Filosofia Do Direito - Waine Morrison
Filosofia Do Direito - Waine Morrison
Filosofia Do Direito - Waine Morrison
(ft. AO
Rfl e
PV artins Fontes ;voDER\BsMo WAYNE MORRISON
FILOSOFIA
DO DIREITO
Dos gregos ao pós-modernismo
Wayne Morrison
Tradução
JEFFERSON LUIZ CAMARGO
Revisão técnica
DR. GILDO RIOS
Martins Fontes
São Paulo 2006
Sumário
Bibliografia . 631
Indice remissivo . . . 647
Prefácio
ternativamente, estão demasiado presentes ou ausentes devido à ênfase excessiva ou sencorajar a crença de que um livro sobre teoria jurídica seja basicamente um livro
à pouca importância que atribui a aspectos de sua obra. Minha única defesa consiste no qual as pessoas aprendam aquilo que outros livros contêm. Na medida em que
em concordar: a tarefa é infinita, e o presente texto resulta de um esforço pragmático. tal crença for sustentada pelos que escrevem, pouco progresso será feito relativa-
Em termos da produção deste livro sou especialmente grato a Terence Kelly, mente ao tema; e, na medida em que for sustentada pelos que lêem, o valor edu-
que não apenas ofereceu um incansável estímulo, como também empenhou-se na cacional do tema permanecerá insignificante" (prefácio de Concept of Law, 1961).
leitura dos rascunhos iniciais da maioria dos capítulos, mostrando-se de valor ines- Trata-se de um ponto de vista meritório, mas que também incentiva uma nova ig-
timável na transformação do que era incoerência desarticulada em coerência rela- norância. Sem dúvida, é fácil escrever um livro didático que não se coloca como
tiva. Roger Cotterrell e Peter Fitzpatrick leram versões posteriores de vários capítu- mera repetição do que foi afirmado por outros, sobretudo se isso desestimula o lei-
los e fizeram comentários extremamente úteis. Rupert Chandler revisou as provas tor a ler os "outros" para verificar o que realmente afirmaram. E não devemos nos
da maioria das versões definitivas. Também sou grato a Stephen Guest por seu esquecer de que a escrita desses "outros" foi, por sua vez, também o resultado de um
apoio e por ter me apresentado, anos atrás, a um guia inédito à obra de Kelsen. Mi- projeto. O presente texto é uma espécie de "projeto contrário". O fato de "nós"
nha pesquisa contou com a ajuda temporária de uma pequena subvenção do Ex- termos passados que são multifacetados e complexos, e de "nós" sermos o resul-
ternal System Research Fund, administrado pelo Instituto de Estudos Jurídicos Avan- tado de histórias tão diversas que nenhuma escola ou conjunto de projetos pode
çados de Londres, e também de uma subvenção da Faculdade de Direito do QMW. abrangê-las, é simplesmente a "nossa" "realidade". Em essência, o destino da hu-
A Editora Cavendish demonstrou, uma vez mais, que é um prazer estar envolvido manidade é continuar sendo um mistério para nós mesmos, mas isso não deve sig-
em seus projetos editoriais, e deixo aqui meus agradecimentos a Kate Nicol, Jo nificar que não devamos nos envolver em processos de articulação, memória e dis-
Reddy e Sonny Leong. A responsabilidade por quaisquer erros, porém, continua cussão. Este texto não é um manual que expõe a verdade da filosofia do direito -
sendo minha. nenhum texto assim é possível. Contudo, se incentivar o leitor a olhar para muitos
Este livro foi escrito em Londres, Atenas e Kuala Lumpur, e cada um desses lu- escritores do passado com renovado interesse, se estimular o surgimento de ques-
gares deixou sua marca. A exposição provém da revisão geral, muitos anos atrás, do tões e de novos debates, terá tido êxito em seus limitados objetivos.
curso de filosofia do direito do QMW, bem como da resposta de sucessivas gera-
ções de alunos aos quais a filosofia do direito pareceu assustadora de início, mas WAYNE M0RRIs0N
estimulante no decorrer dos cursos. Neste momento, quando o governo conserva- dezembro de 1996
dor britânico parece determinado a recusar os recursos adequados a um sistema
universitário de primeira linha, professores e funcionários se vêem mais que nun-
ca diante de grandes dificuldades. E maravilhoso que a atmosfera da Faculdade de
Direito do QMW tenha permanecido favorável e acolhedora. Pude contar com o ir-
repreensível profissionalismo de todo o corpo docente, bem como com a capacida-
de organizacional de Sophia Oliver e Julie Herd em particular. A vários alunos de
Kuala Lumpur, devo a esperança de que o material de um curso de filosofia do di-
reito, necessariamente complexo, possa ser apresentado de maneira relevante e
compreensível sempre que a tal intento se aplicar a energia e o entusiasmo devi-
dos. Em nível mais pessoal, Elespeth e Stuart MacKenzie (sem esquecer de James)
ofereceram-me sua hospitalidade em Kuala Lumpur, Johti Ram patrocinou a pro-
dução do texto de uma versão anterior de minhas aulas (publicada como Elements
ofJurisprudence) e participou de vários encontros agradáveis e estimulantes no bar
Bull's Head, e Annup Sidhu foi providencial em sua insistência em que o projeto
fosse levado avante. Ainda assim, esse projeto só veio realmente a concretizar-se
graças à calma, sabedoria a compreensão que encontrei em Atenas.
Para concluir, retomo a queixa que de início dirigi à obra de Hart. Apesar de ad-
mitir que recorreu aos livros de outros autores, Hart declarou que seu texto não seria
uma apresentação dos pontos de vista deles. Esperava "que esta disposição possa de-
Capítulo 1
O problema da filosofia do direito
ou de dizer a verdade do direito:
um mergulho em questões recorrentes?
Por que os filósofos se perguntam sobre o sentido de palavras tão comuns? (...)
Por terem-no esquecido? (L. Wittgenstein, citado em Redpath, 1990: 82)
O direito, diz o juiz com olhar de desprezo,
Falando com clareza e grande severidade,
O direito é o que eu já lhes disse antes,
O direito é o que suponho que vocês saibam,
O direito é o que vou explicar mais uma vez,
O direito é O direito.
(W. H. Auden, Collected Poems, 1976: 208)
Teremos, em nossa própria época, uma resposta à pergunta sobre o que realmen-
te queremos dizer com a .alavra "ser"? De modo algum. Convém, portanto, que reco-
loquemos a questão do significado do Ser Mas estaremos hoje, ao menos, perplexos
diante de nossa incapaci. a' e . e compreender a palavra "Ser"? De modo algum. Em
primeiro lugar, portanto, devemos redespertar o entendimento do sentido de tal per-
gunta. (Heidegger, Being and Time [Ser e tempo] [1929] 1962: 1)
tivas a pera ntas que na superfície parecem simples. O mesmo acontece com a filo- A reflexividade é, porém, problemática uma vez que convida a um prciçesso
sofia do di eito. Em seu sentido mais simples, a 9sofi .pdireito pode ser defini- qptionamentoijnjlç. Uma vez que isso esteja claro, é óbvio que nenhuma ex-
da como o ousde respostas àpergpnta"oçpieéodireitq?" Tal definição, porém, posição total ou final desses processos pode ser legitimamente oferecida - sempre
é enganosamente simples - e haverá uma resposta com a qual todos se ponham poderia haver outro modo de contar a história, outro item a ser levado em conta.
imediatamente de acordo? Se o assunto é assim tão simples, contudo, por que a per- Todas as exposições enfatizam certas características e negligenciam outras.
gunta vem sendo feita pelo menos desde a época dos gregos c1ásPic os, cerca .de Haverá algum modo que nos permita estabelecer diretrizes claras a respeito do
2Oi tTç.ndu nio se chegou a uma resposta definitiva aperunta "o que tipo de matérias que se possam adequadamente chamar de filosofia do direito, e de
e 6 dio1» quais, dentre suas abordagens possíveis, podemos considerar relevantes ou irrele-
Em termos mais amplos, a filosofia jurídica pode ser definida como a sabedo- vantes? Até bem pouco tempo, a filosofia jurídica ocidental era dominada por uma
ria em matéria de direito, ou como o entendimento da natureza e do contexto do filosofia ddireito especifica - pelo positivismo uridzco -, com as ahordagenscont-
"empreendimento jurídico`. Essa definição muda o enfoque, que então—s e pa- tante,adiõesdo realiouojuridu.o ou do direitb nãffrr- 1 Foje, porem, aumen-
ra uiiiãliistância em que não estamos apenas perguntando "que empreendimento tou dramaticamente o alcance do material incluído nos cursos de filosofia do direito,
é esse?" e "como responder à pergunta sobre o que é o direito?", mas também teri- ou naqueles em que os interesses são claramente afins; além do mais, o campo tor-
\ tando compreender que tipos de coisas estão em jogo quando fazemos essas per~ nou-se tão litigioso e dividido que a filosofia do direito parece não ter nenhuma es-,
. gupts. O primeiro pontoã ressaltar pode parcéf énganosairiife óbvio: existem trutura estável, nem consenso algum a respeito de sua natureza ou área de estudo.
imuitas maneiras de entender o tema básico. O direito é uma entidade autônoma O que tudo isso indica? Estaremos diante de um sinal de progresso ou de uma in-
ou é um processo, um conjunto de processos ou, talvez, um fenômeno social com- dicação de fracasso em áreas-chave? Como podemos saber?
plexo? A legalidade é um modp de pensar? Ou será capacidade de prever o re- O mergulho na leitura de obras de filosofia do direito é uma luta pela auto-
sultado das ações judiciais? O direito é uma atitude argumentativa? Na verdade, pipcjg., por algum grau de transparência quanto à natureza do direito e ao
tem sido chamado de todas essas coisas, e muito mais. Portanto, nossa concepção projetos sociais que envolvem o uso do direito. Levados por nossa preocupação com
mais ampla da filosofia do direito não deve ficar restrita .uma ou outra idéia sobre a reflexividade, entendemos que, para julgar a qualidade de nossa consciência, pre-
. direito, mas sim perguntar-seio époss haver tanta diversida cisamos levar em consideração os pressupostos da análise; po apis entender as
diferentes metodolqgas utilizadas na busca do conhecimento sobre o direito mas
também refleti sob ,.çiferentçjfies peias quais é importante procurar .es~
A NECESSIDADE DE REFLEXIVIDADE? pas à ernta sobre o quqéodireito. Deparamo-nos, também, com problema
o
da contextualidade: podemos fazer a pergunta "o que é o direito?" (e propor uma de-
Em outras palavras, procuramos nos conscientizar não apenas dos tipos de finição ou um modelo que então possam ter sua discussão aprofundada) indepen-
questões que são colocadas pelas diferentes respostas à pergunta "o que é o direi~ dentemente das circunstâncias sociais e históricas específicas, ou a pergunta será
\. to?", ou "qual é a natureza do empreendimento jurídico?", mas tentamos entender sempre feita no âmbito de um ou outro contexto, e a resposta irá então depender
as condições e os estímulos que, na verdade, levam à colocação de tais, p.e. desse contexto? Portanto, ao discutir as diferentes respostas e tentar adquirir conhe-
iu1ionampsa necessidade de chegai io significado Esse tipo de auto-inda- cimento sobre o direito, precisamos ser softd4rLosçpm,asQneua4eQp-
gação e frequentemente chamado dtpJleuL1dade, a reflexividade e o processqj- po empreendimento da filosofia jurídica? Quanto às metodologias, elas aperfei-
diante o qual a ação de perguntar se vdlta para aquele que pergunta ou para as çoam a diferentes perehvas ou serva apenas para a criaçãodEõutfa 7 PaT6
r'Ç convenções d-i tradição na qual o questionamento oeorn m rim tentattadètor- que somos e indddbã li defifd fôr..um.. Logo,
nar-se mais consciente de si mesmo porém, vemo-nos forçados a voltar à pergunta básica. O direito é um fenômeno
\ unico ou existe uma variedade de fenômenos diversos vaga mente
o rotulo "direito"7 E, em termos reflexivos, que fazer desses projetos qirã cbfdcam
2. Tomo a etimologia de jurisprudence* do latim juris, direito, e prudentia, sabedoria, ciência. Portanto,
exatamente essas perguntas? Qual a metodologia adequada para se assegurar de
entendo a filosofia do direito como a busca da ciência ou sabedoria do direito, ou o entendimento prudente
do direito. Ao empregar a terminologia de "empreendingatq jurídico" sigo Beyleveld e Brownsword (1986), que nossa iniciativa de abordar a jurisprudência é consciente de si mesma?
que por sua vez foram buscar esse sentido no dictum deQuller que vê o direito como "o empreendimede A segunda e a terceira citações com as quais este capítulo se inicia ilustram ati-
submeter a conduta humana ao domínio das re raç" FulléE 1969: 96). - tudes opostas diante dos fenômenos sociais. Na segunda, o poetaAuden apresen-
A palavra inglesa Jurisprudence significa filosofia ou ciência do direito. (N. do T.) ta, através da figura do profissional das leis, uma concepção do quaj
4 Filosofia do direito O problema da filosofia do direito b
alei simplesmente "é", oque torna sua definição relativamente fácil e evidente por tais rótulos implica sempre a inclusão de alguns projetos e respostas diferentes à
si mesma. O direito é autônomo, podemos vê-lo como auto-sustentável e, a des- pergunta "o que é o direito?", mas, em termos gerais, o positiymQjjlotem
peito do modo como veio a existir por exemplo, podemos ter consciência de sua
-
afirmado dois elementos definidores fundamentais: (i) o direito éumacriaçãoj.
criação histórica por meio da política do • oder a partir do momento em que exis-
-, mana, épq" pelo homem de alguma maneira; por exemplo, pela vorade ex-
te tem alguitipo
m de forma essencial que podemos descrever. Modernamente, a fi- pressa de governantes políticos o I5êÏhríd - -fravés de um processo de legisla-
-
losofia jurídica anglo-americana tem feito grandes esforços para desenvolver uma ção; (ii) o direito pode ser estudado e bem compreendido mediante a adoção..
ciência do direito que tenha por base o pressuposto de que o direito tem algumas metodologia desenvolvida pelas chamadas ciências naturais" ou 'fisicis' nos se-
características e formas comuns passíveis de identificação, e que isso pode ser cla- culos XVIII XIX,o que se conhece como abordagem pos.tivi; em nome da ob-
ra e objetivamente identificado; ou o direito existe numa área específica, ou não jetividade, essa abordagen.procurava eliminar todas as consideraçõ si.kjtias
existe direito cobrindo a área. Para essa concepçãp. que. costlir0a. ser chamada—de ope.ei nvolver o pensamento do cientista. Após a coleta dos dados apro-
positivismo jurídico, a pergunta "o que é o direito?" deve ser vista como urna pergijn- priados em geral, os conceitos com os quais à legâlismo trabalhava uma meto-
- -,
t'que pode ser respondida por alguma definição relativamente simples que ofereça dologia puramente analítica parecia ideal para decompor os objetos de modo que
urna resposta con.fiável (como, por exemplo,o direito é o poder do Estado ou ti lhes desse uma forma manipulável, e o cientista jurídico devia ter o cuidadoS de im-
junto de regras) que, por sua vez, nos permita criar algum, processo para qjço- pedir que seus valores se introduzissem, na investigação.
nhecimento do direito válido`. Depois de fazer da definição do direito uma questão Nos últimos anos, o positivismo jurídico perdeu seu domínio anterior sobre a
rItdamente sirniple, a aF6rdagens do positivismo jurídico em geral se voltan) filosofia do direito, em parte porque, para concretizar-se,pJ9jetos de análise
para a descrição do mecanismo para o reconhecimento do direito. Outro ponto im- conceitul dependiam de que se questionasse aiptgiç1Qdççio enpeendimçmto
portante é a análise do contexto do 11, 9 jurídico, e porque careciam de consciência social quanto—111à eficácia social do direito.
direito (i.e., as diferentes doutrinas e conjuntos de relações jurídicas). A questão de Sus critidbfárbém afirmaram que, emvãde ser uma abordagem do direito não
saber o que deve ser o direito é uma outra questão?' Antes de examinar a última em i mesmo uma abordagem carregada dc alotes ictktin-
das citações que abrem este capítulo, convém apresentar uma idéia mais clara da dum determinado conjunto de pressupostos que, por sua vez, nos levam a rdfl-
natureza do positivismo jurídico, uma vez que se trata da tradição dominante na tir sobre o ireitode umanra n)u especifica Os projetos contrastantes de dife-
jurisprudência moderna. rentes autores assumem uma nova aparência quando os vemos como criações his-
tóricas em vez de tratá-los como se todos se preocupassem em lidar com alguma
forma essencial comum e pura, alguma entidade transistórica. Comentaristas de
O POSITIVISMO JURÍDICO COMO 1ADIÇÃO DOMINANTE viés sociológico como Cotterrell (1989), por exemplo, enfatizaram que muitas das
NA JURISPRUDÊNCIA MODERNA chamadas características contraditórias da filosofia do direito e dos estudos so-
ciojurídicos podem ser explicadas pelo simples porém habitualmente ignorado
- -
Positivismo jurídico é um rótulo que abriga um conjunto de abordagens afins fato de que diferentes autores têm se engajado em diferentes projetos e, por esse
do direito que dominaram a jurisprudência ocidental nos últimos 150 anos. O uso de motivo, empregado metodologias desiguais com considerações distintas em men-
te. Q direito não é1gi,iif meip&táve1 ou essencialmente transistórico, mas
sip~e nôr~enos empincos diferentemente constitui os em contextos socioiston cos
3. O termo deve é, aqui, empregado deliberadamente. Existe um argumento "moral" em favor do positi- variáveis. Não se trata apenas da questão de que o fato de fazer perguntâs diferentes
vismo jurídico, e a facilidade de identificação não é apenas um efeito colateral epistemológico; é também um
ito desejado. No início do clássico moderno The Concept of Law, de H. L. A. Hart, este autor discute a ampli-
de dos esforços que se tem consumido na tentativa de definir o que é o direito. Hart sugere não apenas que S. Uma crítica moderna importante foi a de Judith Shklar (1964: 3) em Legalism: "O isolamento delibe-
tal esforço seria mais bem utilizado para elucidar nossa compreensão das diferentes categorias do direito, mas rado do sistema jurídico —tratamento do direito como entidade social neutra constitui uma requintada
-
também que, ao mantermos a simplicidade de nosso processo de identificação do direito, estamos preservando ideologia política, a expressão de urna prefárência (...)Aqui, um sistema juiidio po3è Zir tratádo como al-
nossas idéias críticas e morais cotidianas para poder decidir se determinadas leis são boas ou más do ponto de guma coisa'além', uma entidade á seranahsada somente se a considerarmos em termos puramente formais,
vista moral.Vários comentaristas se referem a isso como a "tese da cidadania crítica", ou a conveniência de i,- mesmo quando não tiver a estática atemporalidade realmente necessária a tal empreendimento ( ... ). O forma-
3 questão de i dentJAcar a extencia do direito separada da questao de julgar o valor moral do direito. lismo cria esse'estar além' porque seus partidários percam que um sistema jurídico deve estar'além' para po-
4. Dois dos mais famosos entre os primeiros expoentes do positivismo jurídico, Jererny Bentham (aqui der funcionar adequadamente Para estarlem deve ser auto regulador imune aspressoes iriífírevisive.e
dis..uiido no capítulo 8) e John Austin (discutido no capítulo 9) diferenciam filosofia jurídica exposicional defi- pohãosioralOss e ronduiido por um judiciario u p ei menos tente manter a famosa ceguaLji
IosoflajurMica censorial, ou ciência do direito de ciência da legislação. tE por issõ que é visto como urna série de regras impessoais que se harmonizam entre sik"
7A J4'u,
leva a respostas desiguais, mas de que uma variedade de perspectivas pode ser uma reconhecido como o fundador da tradição acadêmica do positivismo jurídico em -
conseqüência da diversidade e variação inerentes ao material de pesquisa básico. conferências publicadas no início da década de 1830: "a existência do direito é uma
Assim, a variação das respostas propostas à pergunta "o que é o direito?" pode ser coisa, seu mérito ou demérito ép". Essa "tese da sçparaçQ" é crucial em outro
nem tanto a provade iiôfes éjâm certos e 5iihoëfiãdos, mas um f5r- elemento do positivismo; o direito deve ser identificado mediante o uso de uma
teiilTcio da riqueza das perguntas e perspectivas existentes quando se examina a
r questão do direito e da legalidade atraves da riqueza da historia.
metodologia relativamente simples (em geral empirista). Aexistência dod.ireito era
uma questão factual cuja resposta dependia da observação, e não de um complexo
De ueforma esses àutores que se viam como positivistas jurídicos definem a processo de interpreaço e avaliação moral'. Para determinar a legalidade da pro-
tradição? No final da década de 1950, H. L. A. Hart (considerado pela maioria como o mulgação de uma lei, por exemplo, bastava apenas proceder a um teste de origem de
principal positivista jurídico dos tempos modernos) fez um resumo de vários prin-
facto. Isso ressalta uma importante característica do positivismo jurídico: era uma
cípios possívgjs do ppsitiyjuiídiç
filosofia jurídica profundamente interessada em reforçar o uso d6 dir eito coma,-~giu
(1) o argumento de que as leis são comandos de seres humanos; instrumento do Estad.o. rtqder. Como veremos no capítulo 4, na obra de Thomas *
Hdbbes, que lançou as bases sobre as quais Austin criaria a moderna abordagem
(2) o argumento de que não há ligação necessária entre direito e moral, ou entre o do positivismo jurídico, a essência da indagação intelectual rejeita a ideia de qual-
direito como ele é e como deveria ser; v'
quer outro ser transcendentaí: Deus c6mo autor supremo do ideal puro ou Jus-
-
(3) o argumento de que a análise (ou o estudo do significado) dos conceitosjuríjç tododTreito Em vez disso, a preocupação e transferida para a iuloiidade do Esta-
é (a) uma busca válida e (b) distinta das indagações históricas sbbre as causas ou partir de Hobbes, a soberania passa a ser um conceito-chave (em Bentham e
origens do direifõ dais indag ssociológicas sobre a reiaçã9 entre o direito e Austin, por exemplo)8 ainda que, à medida que as sociedades ocidentais modernas
outros fenômenos sociais, e da critica ou ava1iaçío do direito, quer em termos de se transformam em estruturas
' sociais administradas pela burocracia, os "funcioná-
moral, objetivõs sociais oú "funç6'ÇjúéiE em outros terino ualsquer; rios" substituam o soberano como imagem central da autoridade (por exemplo, na
4) o argumento de que um sistema jurídico éum "sistema lógico fe'chado" no qual obra de H. L. A. Hart, 1961, e Ronald Dworkin, 1978,1986; ver, respectivamente, ca-
as decisões jurídicas conet podem ser inferidas, por meioj lógicos, a partir de pítulos 13 e 15 deste livro). Contudo, ao associar o direito a seu papel institucional
regras jurídicas edeterminadas
pr sem referência a objetivos sociais, políticas e etrumental de servo do Estado, o positivismo jurídico esteve sempre correndo
critérios morais; e o risco de toíar-se uma metodologia sem alrna. Pois como poderia haver uma es-
sência do direito se este perdesse sua ligação pré-moderna com um significante
(5) o argumento de que os juízos morais não podem ser emitidos, ou defendidos,
transcendental, transformando-se em nada além de um instrumento humano mu-
como o podem s afirrnaçié. de fatos, por meio de argumentação racional, evi-
dência ou prova"não- cognitivismo" em ética) (Hart, 1957-58: 601-602). tável? Isso não significaria que existem tantos tipos de (não-) direito quanto de for-
mas d6 niões humanas/sociais' O pluralismo jurídico foi sempre 6 "oiifro"
é o entendimento de que o direito do direffõde Estado9.
moderno o dfréif 6sitivo —é algo posto por seres humanos para fins humanos.
-
'I JésséÀZd6d o, odirefro moderno p6de ser visto como um importante iitriio.
É variadamente apresentado como um instrumento de poder governamental, ou sim- mentam que a idéia ou o conceito de direito podem ser analisados independentemente da moralidade. O di-
reito pode ser imoral ou moral; injusto ou justo; repressivo ou socialmente progressista.
plesmente como um instrumento para facilitar um interação social báspre- 7. Como afirma Joseph Raz (1979: 37): "Nos termos mais gerais da tese positivista jurídica, o que o di-
sentar as condições para que os.indivíduQs possam celébrlir cont ratos— testa- reito é e o que não é não configura uma questão de fato social (isto é, a variedade de teses sociais defendidas
transferir propriedades, recorrer a instituições públicas etc. Além disso, um pelos positivistas representa diferentes refinamentos e elaborações dessa formulação sumária)."
princípio fundamental do positivismo jurídico é aquele segundo o qual as leis de 8. Outra influência intelectual importante foi o jurista francês Bodin. Ver Skinner (1978, Vol. 2: 284-301);
qualquer sociedade podem refletir opções morais e políticas,ias-não.há-unnhuma Franklin (1963).
9. De fato, o positivista jurídico clássico John Austin (1832, 1873) se deu conta disso. Sua posição
- -
gção necessária ou conceitual entredireitoe moral. O direito não precisa ser mo- era consciente do pluralismo jurídico, e sua teoria era por ele especificamente chamada de "direito positivo",
r,Lpra ter au lid.ereconhecidà6. Como afiimoiiAust— amplamente ou direito como técnica de dominação pohtica Austin reconhecia a existência de um conjunto de processos
não estatais que operavam de modo que fortalecesse o direito do Estado, mas outros não tiveram a mesma su-
Em quase todos os livros didáticos de direito, a teoria de Austin é apresentada como se fosse uma teo-
6. Essa questão é quase sempre mal compreendida. Os estudiosos que defendem as abordagens posi- ria do direito, de todo o direito. Depois de fazerem tal afirmação, os críticos posteriores podem facilmente
tivistas reconhecem que, empiricamente, o direito é produto de processos sociai, políticos e morais, mas argu- comprometer a imagem de Austin, apresentando-a como nitidamente simplista.
8 Filosofia do direito O problema da filosofia do direito 9
Teremos, em nossa própria época, uma resposta à pergunta sobre o que realmen-
te queremos dizer com a palavra "direito"? De modo algum. Convém, portanto, que re- O acréscimo de perspectivas sociológicas
coloquemos a questão do significado do "direito". Mas estaremos hoje, ao menos, perplexos
diante de nossa incapacidade de compreender a palavra "direito"? De modo algum. Já faz algum tempo que a sociologia vem destruindo aos poucos a confiança dos
Em primeiro lugar, portanto, devemos redespertar o entendimento do sentido de tal juristas acadêmicos em dizer a "verdade" da jurisprudência. O Karl Marx da maturida-
pergunta. de (aqui discutido no capítulo 10) via a ciência jurídica do advogado como ideologia
ou retórica superficial. Enquanto os teóricos sociais de tradição marxista tentavam
É esse o paradoxo - o de que não temos um sentido estabelecido para a pala- negnr a filosofia do direito como unia ideologia do sistema capitalista, eruditos
vra "direito", mas ainda assim pas Iáiida"ii n'&ssidâde de tal senti- 1 lle nos críticos como RoscoePound (1943) tentavam ir além da ciência jurídica, em
do estabelecido - que serviu de inspiração para The Concept ofLaw (1961), de H. L. A. busca dos "interesses sociais" do direito, e estudiosos influenciados pela obra do teo-
Hart. A falta desse sentido ajuda a "deixar tudo como é" (parafraseando o filósofo rico social alemão MaxWeh( ?r que fez ligações entre a modernização da legalidade
lingüifãWittgenstiii., ém JBiHiffftuldàil"fitdifiiâ metodologia filosófica) e e a racionalização da sociedaçie moderna; ver discussão no capítulo 11 deste livro)
torna possível aceitar a definição oficial ou burocrática do direito como a"verdade" çliIerêi'idiram ds'hp'o de corEecimento oferecidos pelas diferentes disciplinas e
do direito com a qual se pode contai paia todos os fins praticos Porem, qualquer mostraram-se propensos a descrever a filosofia jurídica como o discurso dos e para
pergunta sobre fenômenos sociais - aqui,, o direito - é também uma pergunta so- os profissionais do direito, o que permitia que a `profissão" e explicasse- '1 i piqpna
bre a realidade social e nossa capacidade de conhecê-la. e 'pu,l"icóTOP'àulôë'i'T iflilinéfados pela tradição weberiana, entre eles Cotter-'
reli (1989), fazem distinção entre "teoria jurídica normativa", (ou ciência jurídica
segundo a concepção tradicional -.i.e., como tiiosoi direito -, que a considera
ligada aos interesses da advocacia) e "teoria jurídica empírica" (ou de extração mais
sociológica). Em obra posterior (1995); Cotterrell insinua que qualquer afirmação
que a jurisprudência tradicional possa fazer, no sentido de conter a verdade do di-
10. O filósofo alemão Martin Heidegger julgava necessário redespertar em nós o sentimento de admira- reito, é inconseqüente diante das afirmações rivais de natureza sociológica.
ção diante do fato mesmo de nossa existência. Não cogitamos da não-existência, uma vez que damos por cer-
to que existimos. Para viver, devemos aceitar o fato de nossa existência; ainda assim, os processos de refletir ou
submeter nosso ser a uma inquirição sempre perscrutadora constituem a essência da vida humana plenamen-, O apelo das descrições sociológicas encontra-se na
te desenvolvida, e indagar-se sobre seu significado é a questão central da existência cultural. Heideggerper- imagem de distanciamento crítico do material analisado
gunta 'in vivermos sem questionar, o significado de nossa vida não estaremos simplesmente seoo,
u
diao das caturas instintivas que nos cercam? Em outras palavras não sera trcfi ccntial do intelecto huma-
no o perguntar se subo' nossa própria existência,, eternamente questionan 30 ua natureza e))ando ver para A vantagem das descrições sociológicas sobre as perspectivas daquelas "afina-
além do comum e do familiar, em busca do, essencial? das" com o processo jurídico está na distância. Através da sociologia é possível tan-
10 Filosofia do direito O problema da filosofia do direito 11
to interpretar quanto associar as idéias e percepções subjetivas dos agentes jurídi- i içiio da imagem transcendente que a modernidade conquistou quando levou a
cos no âmbito das descrições contextualmente mais amplas. Em termos reflexivos, I )l io apaã ar &iir? làão com "Deus" para uma mera pratic social € rult-
porém, todas as teses sociológicas são as narrativas de seres humanos tentando .\ irR)cleriiidade já se'lirou de muitos candidatos a sibstituii Deus e proclamar
"descrever como dé fáto é", ao mesmo tempo uc estao ii vitave1mentpsas ao o i crentes maneiras de interpretar a vontade divina. A modernidade tem procura-
círculo hermenêutico de seres da mesma classe e categoria que interpretam as prá- 11 hstituir a vontade de Deus pelo conhecimento do mundo natural (como John
ticas e mstituicões criad is por outros seres li um anos Onde situai~se2 Ondãdh_ 1 i n afirmou explicitamente, o utilitarismo viria a fornecer um índice dos preceitos
trdr urna base sólida a partir da qual se possa, legitimamente, "descrever corno de 1 i 51)5). Uma tentativa atual e muito em voga é o movimento do direito e da eco-
fato é"? E pôssível que a sociõlogia irão tenha nenhuma base sólida que possa cor- a nia (cf. Richard Posner, The EconomicAncilysis of Luzo, 4 ed., 1992). Mas cada can-
rfdé)posicionar a jurisprudência tradicional de um modo que nos permita pro- a 1 to tem seus rivais. As dimensões dessa pluralidade intensificaram-se no contex-
duzir uma interpretação fiel da história do direito, oferecendo não apenas uma res- as transformações sociais em que muitos situam o início da pós-modernidade.
posta à pergunta "o que é o direito?", mas também a outras questões relativas às
condições nas quais fazemos essa pergunta e oferecemos a(s) resposta(s).
CONFRONTANDO A MODERNIDADE: DE DWORKIN A BLADE RUNNER
Como vamos lidar com a diversidade da teoria? Ou, inversamente, As abordagens do positivismo jurídico afirmavam que o direito era um instru-
o que fazer do anseio por uma teoria fundamental do direito? niia para se governar as sociedades modernas.Para outras, o direito e mais
1iiTrri nento iiqrdadessobreotipo de sociedade que fé osëiiip-
Uma questão imediata e premente para o estudante de direito atual é a desa- ii idades de compromisso público que fazemos. Qual interpretação é correta, ou as
ber como Udar com a diversidade das perspectivas teóricas do direito. A filosofia ju- ii as apreendem áfgufri fo da legalidade? Nos termos de ambas, dizer a ver~
rídica se volta para o esclarecimento, tem por objetivo nos tornar mais sábios no le do direito pressupõe, implicitamente, responder às perguntas "quem sopros
que diz respeito ao direito e à legalidade, mas a diversidade nos põe diante da e "qual a natureza dapoca em que vivemo'. Trata-se, porém, de questões
ameaçade incoerência e confusão. Ou será esta a maneira errada de abordar o pro- vastas e talvez insondáveis, que podemos compreender como inseparáveis compa-
blema? Devemos abordar o estudo do direito a partir de outra direçãoimulando nheiros de viagem durante a jornada histórica da humanidade. São perguntas que
a diversidade de opiniões e perspectivas? Em qual caso poderia colocar-se a ques- tiveram de ser feitas, e o foram, ao longo da história. Apesar de não serem freqüen-
tão "o que fazer do anseio por uma teoria fun ta1 do dii cito7" carente explicitadas nos textos sobre filosofia do direito, estão sempre implícitas.
Ao longo da história, Qscreverarn sobre o direito mostraram-se geral- Todos os textos incorporam sonhos e esperanças, temores e análise; os textos
mente propensos a produzir uma descrição -mestrado direito, a oferecer wniejâto nossa situarão contempodinea trazem consigo uma longa histo.ra Examinare-
auto}izdo da verdade cio direito. Um teórico chegou ao ponto de chamar sua teo- aros a seguir dois textos da década de 1980. O primeiro e extraído da introdução a
ria de The Pure Theory ofLaw [A Teoria Pura do direito] (Kelsen, 1934, 1970, discutido uma obra fundamental de filosofia do direito escrita por Ronald Dworkin (1986) —
no capítulo 12 deste livro). Por que essa tendência a buscar unidade, coerrmcia e um professor de filosofia do direito que ensina essa disciplina na Universidade de
consistência tem sido tão dominante, mesmo no caso de teóricos que se viam tomo Nova York, nos Estados Unidos, e em Oxford, Inglaterra. Dworkin é discutido no
cientistas claramente modernos? Alguns estudiosos (por exemplo Unger, 1976, 1987) capítulo 15 deste livro; nosso objetivo, aqui, é obter uma primeira impressão de sua
sugeriram que a resposta encontra-se no medo; no daLespQnsbilidade 50- retórica:
cialpe sobrevém se realmente encararmos o fato de que o direito é criação nossa,
eqea sociedade m3derna é um artefato. Para Üief (e outros), estaremos enga- Vivemos no direito e segundo o direito. Ele faz de nós o que somos: cidadãos, em-
nando a nós mesmos sé pensarmos que nos tornamos modernos; na verdade, nun- pregados, médicnjues e proprietários. E espada, escudo e ameaça: lutamos por nos-
ca fomos verdadeiramente modernos, e temos medo de nos tornar modernos. Em so salário, recusamo-nos a pagar o aluguel. somombtigados a pag'ar nossas multas ou
mandãdôs para acadeia, tudo em nome do que foi estabelecido por nosso soberano abs-
vez disso, procuramos substitutos para Deus para que possamos ser esimidou da
trato e ctéreo o direito. E discutimos os seus decretos, mesmo quando os- livros queii-
responsabilidãde -à e criar viu culos e relações soéiais e zelár por eles. Assim, éjq- postamente registram suas instruções e determinações nada dizem; agimos, então, como
sívet—que a busca de alguma disciplina-mestra -- que rc LIC a iuto suliLisnciado di- se o direito apenas houvesse sussurrado sua ordem, muito baixinho para ser ouvida com
reito ou, p6r outro 1ao, destrua a imagem de (relativa) autonomia d legalidade em nitidez. Somos súditos do império do direito, vassalos de seus métodos e ideais, subjuga-
n me'í sua posição social - seja a busca de uma subs- dos em espírito enquanto discutimos o que devemos portanto fazer.
) - *
12 Filosofia do direito O problema da filosofia do direito 13
Corno se explica isso? Como pode o direito comandar quando os. textos j.rídicos e; pela bioengenharia que em geral vivem fora da cidade, retornaram para de-
emudecem, sãoobscurbou ambiguo [A] respsta e que] ( ) o raciociruo jurídico e ntar•se com seus criadores na Tyrell Corporation, uma organização de tecnolo-
um exercício di interpretação construtiva, que nosso direito constitui a melhor justifi- i de ponta. Os replicantes não aceitam a brevidade de seus quatro anos de vida
cativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e que ele é a narrativa que faz dessas miados -o máximo em termos de consumismo -e querem que lhes seja con-
práticas as melhores possíveis. Segundo esseppnto de vista, a estrutura eas restrições
ido . status humano integral. A Tyrell Corporation pode apenas dar-lhes uma
que caracterizam o aru mento juridico só se maiiife.fm quando identificamos .dis-
tinguimos as diversas dimensões, freqüentemente conflitantes., do valor político, os dife- 1)1 ista negativa: "Impossível. Vocês estão condenados a viver suas vidas progra-
rei êãTiosenffêfêcidos no complexo juixo segun
do o quil em teimos gerais e aposm HAdas simulacros de seres humanos, e seus sentimentos são todos falsos!"
edd fõdos os aspectos urna interpretação toma a historia do dirte1hor de ka cd —o"blade runner".—é encarregado d.cg&,Qrep]icantes eeliminá-Ios (ou
t .(Rona1d D 1IiiTv's Empire [O império do direito], 1986: vil) mt'flt4JQ.1
Os replicantes não são robôs, mas simulacros perfeitos que têm uma existên-
1ÇíaDvorkin, "nós" somos os produtos do di 9ssrritório é o im) .1 rápida e furiosa. Como vamos determinar se aqueles dos quais Deckard descon-
o do direito/S omos os produtos de uma jornada histórica na qual a construção de são ou não replicantes? Um deles, Rachei, produz urna foto de sua "mãe" que
uma e,strutura do direito - um grandioso edifício de direitos e princípios - que sus- 1H. permite ter um passado euma historia de vida verdadeiros, como si.. tosse hu-
tenta nossas interações sociais é uma realização suprema. Nossas vidas contempo- ii ia. isso leva Deckard a ligar-se emocionalmente a ela, e depois de eliminar os ou-
râneas e nossas identidades são planejadas e mantidas pela legaid ade, e delare- replicantes ele foge — ao menos na versãb original, comercialmente. distribuída
cebem a energia de que necessitam.Paia írÇsuttia no império, devemos dar o lo Lihnc - com Rachei para a natureza; o filme termina com ambos a caminho de
melhor sentido possível a nossa história e combinar todas as suas partes integran- una paisagem de florestas e montanhas. Rir acaso, ela é especial e foi programada
tes — algumas das quais desconexas - de modo que forme um todo reconfortante e ira viver indefinidamente; o cenario de montanhas e oiestas pem oferecr b po-
engrandecedor. Ao longo desse processo, iremos ao mesmo tempo informar e asse- irIcial para utm esiilõ do vida capaz de dar a ambos a possibilidade de concretizar
gurar nossa idenfídade social. Apresentaremos uma jusfifféativa para a coerção que na existência humana "real".
está por trás deWõssãs Fá— á mo-
stituiçõês e taml5éfrt exigiremos qutill coerção ejja Biade Runner tem por cenário um espaço urbano decadente onde edifícios ou-
ralmente legitimada. Através de uma ciência de direito filosófica e inter2retativa, 11 grandiosos parecem ruínas situadas em ruas abarrotadas de pessoas e shop-
5bdemos encontrar respostas a questões dé idêntidade, saiisfazer nossa necessidade iuig centers nas quais edifícios incrivelmente altos - moradias para os ricos - er-
/ dè identificação com nossas principais instituiçue '-zic1ai e estimular o desenvol-
'em-se sobre ruas onde multidões de asiáticos circulam de bicicleta por entre ban-
vimento progressivo de nossa história juridica sociopolítica. Podemos, então, .br
is de camelôs. O lixo não coletado vai se acumulando, e há uma garoa que nunca
o que fazer neste mundo pós-moderno11 .
«ira. Nas décadas de 1980 e 1990, LQ5 Angeles tomou-se um motivo recorrente para
O segundo texto é o filme Biáde Ïunner de Ridley Scott, 1982, freqüentemente
imaginário da cidade pós-modefria, o lugar onde o futuro já se mostravà; contudo,
chamado de apogeu do cinema pós-moderno (ver, a propósito, Bruno, 1987; Har-
e o cenário de Biade Runner é realmente Los. Angeles, a cidade tornou-se agora
vey, 1990: 308-14;Vattimo, 1992: 83 ss.). Biade Runner passa-se em uma Los An-
icria megalópole poluída, superlotada e dominada por asiáticos. Cada canto é uma
geles imaginária, em 2019. Um grupo de "replicantes", seres quase humanos cria-
ima perigosa, cheia de pobres e marginais que remetem ao universo punk-orien-
Ial-heavy metal-krishna. Enquanto muitos luminosos são identificáveis ao especta-
11. Dworkin é aqui particularmetiie estudado no capíti.10 15; por ora, bista diwr que as citações da dor, alguns deles - como o de uma japonesa tomando pílulas enquanto uma voz
abertura não são auto-explicativas. A citação precisa ser interpretada: como vamos entendê-la? Afirma muitas proclama os prazeres de "férias em outro mundo" - não se deixam identificar. O que
coisas, e pressupõe muitas outras. Quem (é) somos. (esse) "n6s"? .0 que é o direito? Ou talvez a pergunta aconteceu? Essas imagens mostram os resultados de um holocausto nuclear? Ou
deva ser reformulada: o que são os direitos? Ou o que é particular à essência dentro dos. diferentes aspectos
do direito (ou dos direitos)? Ofato de que toda afirmação requer interpretação é óbvio, mas precisa ser cops-
procuram advertir sobre uma modalidade menos identificável de autodestruição?
tantemente reafirmado, uma vez que é freqüentemente esqueci o. Na teoria literária, Stanlev Fish enfatiza Um testamento de uma sociedade moderna que simplesmente se desintegrou de-
qu o si,gnfficadé di palavras é sempre uma questão de contexto e de noso entendimarilo; mesmo nu ní- vido a miltipiicidade de suas próprias pressões internas? Que foi feito dos valores
vel do máximdseõsó cohium, é uniá questo de interpretação Lomo diz Fkh: Uma trase nunca está fora de humanos? Paradoxalmente, os replicantes parecem incorporar mais "virtudes hu-
cõfitexto Não estamos hudár md letims aw ião ( ...). 1 5 mie que parece presr iitdeintorpretaçãojá
éprodutó de uma interpretação` (1980: 284. Em um cap tolo dr eu livro Is Thom a oi 17iisdss?, intitu-
manas' do que os sues humanos Sem duvida o progresso no sentido do aperfei-
lado "Normal CircumsLinces, Literal Language, Direct Speech 'cts, the 0rcuiiai the Eeryday, the Obvious. çoamento das coisas para o corpo social, deixou de ser l'oam
e que se acredite; o
Wht Coes Without Sadng, and Other Special Cases").. que, em tal contexto, pode oferecer salvação? Em Biade Runner, vivemos em m qo.
14 Filosofia do direito O problema da filosofia do direito 15
aignosqpe data i de -urna. época em que teriam tido sua importância reconheci- ii POSSÍVEL ACREDITAR NUMA FILOSOFIA DO DIREITO CAPAZ DE
da. Colunas romanas e gregas, dragões chineses e pirâmides egípcias misturam-se CONTAR UMA HISTÓRIA VERDADEIRA DO IMPÉRIO DO DIREITO NA
com gigantescos anúncios em néon de Coca-Cola, Atari, fim Beam, Trident, Miche- PÓS-MODERNIDADE? OU SERÁAPÓS-MODERNIDADE UMA PERDA
lob e Pan-Am. Ainda que veículos de transporte bem iluminados pairem sobre as DE FE NAS NARRATIVAS COERENTES, NO PROGRFSSO
ruas, e haja algumas cenas rápidas. em que se vislumbram luxuosas dependjicias POSSIBILIDADE DE JÜStIÇA?
eiipresariais, o conjunto todo é uma colagem desconcertante.
Biade Runner talvez seja o exemplo mais facilmente identificável dentre um Nos últimos anos, a partir de uma abordagem analítica, os estudiosos da filo-
conjunto de filmes que anunciam o estranhamento do modo de perceber a realida- ia do direito vêm tentando associar seu trabalho a relatos mais amplos do de-
ivolvimento social. Alguns deles - como as feministas radicais - têm contestado
de no mundo pós-moderno. 0r9 repxsexitado como amedrQntçlor —não é
descrições de progresso social nas quais o liberalismo tem se fundamentado im-
confiáveJ,t.rnpouco os homens podem confiar uns nos outros, Os replicantes e
Ii i tamente. O liberalismo também tem seus defensores. A teoria jurídica norma-
Biade Runner sintetizam as idéias de robôs, ciborgues, andróides e o avanço da bioen-
vi deRonald Dworkin tenta revitalizar a legalidade liberal diante do desafio pós-
genlria, que substituem os seres humanos dos quais se tornam simulacros. Corno
II1)dlrno Para muitos escritores ele e um romântico, um "nobre sonhador'lque
épossívelter existência humana real num ambiente alucinatório cio luminosos ele-
Ice uma trama de coerência e consistência com base em princípios quando a rea-
trônicos que anunciam sexo e ausência de sentimentos, onde donos narcisfstsJi- lidade que suLjz à/ïahdade pós -moderna é a incoerência, a inconsistência e d
sejam orgasmos e máquinas de reaIdade "riial" oferecem (não-) experiências t:alha po1ític,ue papel poderíamos encontrar para Dworkin em Biade Runner? Ou
mais "reais" e estimulantes cio que qualquefoisa que a verdadeira "realidade' tem nela celebração do glamour contemporâneo, L. A. Law*? Em contraste com
a oferecer? Nessa representação desapareceram o amor, a família, os empregos e a hvorkin, parece fácil identificar um vasto conjunto de oponentes que ou se pode
religião, restando apenas o gloriosos frutos das tecnologias de repro11 dução. Será rupar vagamente sob a bandeira do Movimento dos Estudos Jurídicos Críticos,
pQssível manter alguma esperança a. utopia? ii são influenciados por preocupações semelhantes àquelas que motivaram esse
Vattimo (1992) sugere que um tipo menor de utopia está presente em Blade 1 \ imento. Caracterizados pelo ceticismo e pela desconfiança para com o libera-
Runner; um sentimento de alívio diante do fato de já ter ocorrido o desastre ao qual -
iino,aprirneira wsta parece não haver modo algum de conciliar seus respectivos
a modernidade parecia fadada, o que agora nos permite seguir vivendo sem o an- lo tos com o de Dworkin ou os daqueles que defendem o positivismo jurídico.
seio inexorável de (vir a) ser modernos, que foi o que nos levou à catástrofe. Essa Na verdade, parece difícil apresentar uma exposição da filosofia jurídica que possa
utopia, porém, é um afastamento da modernidade; como mundo do "progresso" conter os dois conjuntos de posições de tal modo que se possa estabelecer qualquer
em ruínas, o final de Biade Runner condescende com uma retirada irônica e nostál- i iogo entre eles`.
a para uma existência mais "natural". E uma mensagem de que os elementos
centrais de nossQperíodo modernp tinham por base equívoços e desacertos. Se o
.iluminismo anunciava que o pbjetivo da vida humana era a felicidade em liberda- O PROBLEMA DE OFERECER NARRATIVAS COERENTES NAS
çd estàvaerrado ao acreditar que a análise científica abstrata seria capaz de nos CONDIÇÕES PLURALISTAS E MULTIFORMES DA MODERNIDADE
TARDIA OU DA PÓS-MODERNIDADE
erer a verdade da condição humana, ou que a tecnologia poderia erguer cida-
ofec
des nas quais valesse a pena viver; em vez disso, precisarnos recriar as comanida-
Aie - o períocl la história social que sé inicia com o Iluminismo
des que agôia já estão há tempos perdidas. A mensagem que nos passam os escri-
Ho século XVIII - fundamenta-se em parte na crença de que será possível chegar à
tores existencialistas comoAlbert Çamiis (1956), os filósofos morais como John
'na autoconsciêidCt-ãué'díirespeito à realidade social. A humanidade vai ana-
Finnis (1980) ou Alasdair Maclntyre (1981, 1988), ou os comunitaristas como San-
dei (1982) e Tayior (1985, 1990), é a de que a existência verdadeiramente humana
sóéyossívela partirda convivência cm grupps naturais. Precisamos reinterpretar * Q autor se refáre à série de televisão Los Angeles Law, que foi ao ar nos Estados Unidos de 1986 a
as histórias do passado e descobrir o verdadeiro "direito niura1" que deveriâéstar 114. (N.doT.)
re'endo nossas vidas, 12. Estranhamente, muitos dos proponentes não parecem desejar o diálogo. Dworkin deixa claro que não
1 L C dialogarcom aqueles que chama de "céticos externos" (i.e., críticos que extrapolam os limites das perspec-
s internas da legalidade e se recusam a buscai em primeiro lugar, uma interpretação favorável e construti-
Iradição da legalidade liberal); outros autores afirmam que só se pode dia1oar de.ois iue todos tenham
lIliiitido a natureza ideológica de seu discurso e desconstrui a o todos os textos
t aos auais irão reportar-
r se.
16 Filosofia do direito O problema da filosofia do direito 17
usar o mundo, adquirir um conhecimento seguro e utilizá-lo para criar uma socie- infinidade de seus efeitos. Segundo essa narrativa o_to erdeu
direito 1) sua identidade,
dade ju,ós-modernida4jpode séiIfihTdcomo a percepção de que tal cren- tende e. visto como servo da economia, da
ça não tem validade alguma. Quanto mais conhecimento adquirimos, mais difícil rnQrai, J"Junca .an tes,
,fica narrar uma Tt6iia-iira, ariiei f— uíãã iiharn racionalmente coerente arece,egiu-setantodo direito; nunca antes investiu-se-tão poucaautoridade nele.
ijlifCíiões fundamentais Enunciar a verdade dajjlade rã isso um motivo para preocupações?. Precisamos. poder ter imagens institücTo-
social tornou-se problematico Definimos tal coidâo como 5 problema pos-mo-
derno. Seni d'de'1dentificar a natureza da realidadeçle nosso próprio emos nos dar por contentes em pensar o direito como instrumento de qualquer
eu não constitui novidade--1i itumprojetocrucial desde que a humanidade o político ou ideo1fo iié n?5 momento detiver o"contf&e cfa ordem social?"
começou a registrar suas reflexões intelectuais. Precisamos criar grandes narrativas ra escritores como)wojs çljscussões na filosofia juridoebrç
ao mesmo tempo de,fi _riatuxeza de nossas instit OS-' Ma ~,de nossa identidade social. 9 modo cõiïi pensamos o direito torna-se
asidentidades sõciais. Cõmo afirmou Rosen: "Uma liberdade incapaz de rn reflexo de como vemos os objetivos e conteúdos de nossas instituições, bem
a..aprQpxlaJlão e diferente da escravidão" (196 Í7) orno os compromissos pubhcos de nossas sociedades com e.dec,,s aac4os
' Por que se tomou aparentementetão difícil produzir narrativas coerentes do dfaisTe políticas. Tanto para Dworkin quanto para os membros do Movimento dos
progresso social e do significado de nossas instituições em nossa época? Sem dú- Estudos Jundicos Críticos, o positivismo jurídico enfraqueceu nossa capacidade-de
vida, a'diferença está em nosso contexto e nossa história. Fazemos tantas pesquisas ensar acerca do direito, e e preciso adotar novas formas de itterpreta.çÃo..para
que deveríamôs ter alguma certeza, mas cidi a descoberta vem desestabilizar pLe~en opapeI do direito na formação de nossa situação atual Com que es-
jconfianç ppassado. Admitimos que:-çlY o avanço do coríhimen- rito se deve conduzir eése..põcêssõ7Pàfà Dwôrkín...éfürid. tiental manter o oti-
tocientífico tem um papei crucial no deerivolvimento da sociedade moderna; (ii) sino, assim, ele afirma ser possivel encontrar, na leg eo dociïíiëhtos
a aUifçào deiias formas de conhecimento e novas tecnologias de comunicação ãii — a Consfiftïi EstdbsTnidos é 6grande exemplo umrelato dos
e representação não tornam a modernidade misranspente, mas a_contrário ncípios morais epolíticos .de ri (1996) ofereceJi6s
geram, com frequência cada vez maior, conflitos de perspectivas,1 redesde bii'Kieitura moral da Constituição [dos Estados Unidos"]). Outros exigem que
om.umcação e capacitação tecnologiça, (iii) essa explosão de imagens e saberes rifrentemos com determinação o desencanto com o nosso mundo, e evitemos o
complica todas as formas de identidade social e cria duvidai eistenciais qiedih- rro de superestimar a capacidad&do direito, e ha os que argumentam que deve-
cultm a ação coerente, trazem consigo o medo da falta de sentido das coisas e in- nautelosos com todas as tentativas de construir exposições coerentes v er se;
tensificam a exigência de infãlibihdade tecruca, (iv) Qpfrentamento desse caos devemos, em vez disso, desconst?iiiïiõds exposições, recusando-nos a
parenteeodilema pós-moderno ualUëir1ito em grande escala do direito, paradoxalmente, tal recusa equivale a
tgajar-hapródi.ïçãó e enunciaçãô dê i1ato14. l.ã,podemos fugir à necessidade
A PROBLEMÁTICA ESPECÍFICA DE SE ANALISAR O
DIREITO NO CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE
13.Alguns autores insistem em que é essa a leitura correta, e que só podemos mnter.nossa.it
moral e política se nos tornarmos radicalmente realistas em nossa preciação do direito._O escritor tido
Vivemos em tempos incertos; muitos críticos sentem que as promessas da mo- mo Hans Iei exigia que não apenas despojássemos nosso
dernidade de criar sociedades com justiça social, onde as jessoas seriam felizes, átodos de interpretação do direito de qualquer impureza moral ou ideológica, mas também admitíssemos
mostraram-se falsas. Em termos políticos e sociais, as duas grandes narrativas an- - em si mesmo o direito não era nada além de um veículo para a coerçãq (Kelsen, 1934, 1970).
-
tagônicasda moderrd, ,ade. enfrentam dificuldades: apesar de ainda fornecer mui- 14.Essas vozes não parecem estar dialogando enfre si. Como resolver o dilema? Uma tentação é refor-
ulá-lo, vendo-o como uma questão de linguagem. Isso já foi tentado antes. O fato de que o "mergulho nos
tosdosonct~s .críticos por meio ..dos,.qu tamo.s compreender M.etIras
Vi (modos de dizer as coisas) o constante diálogo da linguagem com a linguagem pode obscurecer a
- -
sociais de nossa epoca, o marxismo esta desacreditado como doutnna poltç en- alidade do ser nunca foi posto em dúvida. Uma das interpretações da desconfiança de Platão com relação
quantooliberalismo parece ser, para muitos, uma casca vazia incapaz de oferecer fltI sofistas aponta para sua consciência do quanto as coisas pragmáticas da linguagem isto e nomes con
ua fonte de significajçiJ. Itos e idéias, podem impor-se em detrimento daquilo que se pretendia que trouxessem à "luz". Eao
O destino do direito contemporâneo reflete essa história de desenvolvimento linguagem nos da a oportunidade de exprimir eanalisar as coiss vendo..de.modo mais claro podemos
perder na te ivd&esclarece las- o que significa que a linguagem tanto serve paLa iluninw quanto
social. Estamos cercados pelo direito. Alguns deram a isso o nome deuridificaçaTq4qs a obscurecer. Ós sofistas utilizavam essa potencialidade da linguagem para confundir e ofuscar, e preocu-
esferas sociais (Teii1éii987tros aludem à proliferação de formas de regula- m-se com a manipulação e os efeitos emocionais, não com a verdade. (Ver nossa discussão do mito da
iitããõjürídica e quase jurídica, e se perguntam se é possível dar algum sentido IVerna no capítulo 2)
18 Filosofia do direito
Agrada-me pensar o direito como uma instituição social que tem por finalidade
atender as necessidades sociais— as reivindicações, exigenias e expectativas decor
rentes da exisidia da sociedade civilizada -, realizando o máximo possível com o mí-
nimo de sacrifício na medida em que tais necessidades ou reivindicações possam ser
ai endidas mediante a organização da d6hdúta humana em uma sociedade potiça-
nwnte organizada. Para os'fids em apreço gosto de ver, na história jurídica, oiiçgistro
de u fij recohement
ci e atendimento cada vez maiores das necessidftdes, reivindica-
çes ou desejos humanos por meio do controle social; um modo mais abrangente e
elicaz de assegurar os interesses sociais; uma eliminação cada vez mais completa e efi-
caz do desperdício e do atrito na fruição humana dos bens da existência - em resumo,
uma engenharia social cada vez mais eficiente (Roscoe Pound, Introduction to the Philo-
s5hf1954:47) -
Concedei-me só mais um verão, ó Poderosas*,
E só mais um outono para aprimorar meu canto.
Para que então, saciado do mais doce dos jogos,
De bom grado possa morrer meu coração-
A alma que, em vida, não alcançou seu direito divino,
Não terá repouso no reino dos mortos.
Mas se um dia me for dado conseguir
O que tenho de sagrado no coração, o poema,
Bem-vinda seja a calma do reino das sombras!
Estarei feliz ainda que não tenha, ali,
Minha lira por companheira.
Terei vivido uma vez como os deuses,
E de mais não preciso.
(Do poeta alemão Hõlderlin; trecho do poema "Nur einen Somrner", traduzido para o
nglês por W. Kaufmann, em seu ensaio "Existentialism and Death", 1965: 59)
* O poeta está se dirigindo às Parcas (o título original alemão deste fragmento é An die Parzen), de onde
inicial maiúscula de "Poderosas", que não aparece na tradução inglesa. (N. do T.)
20 Filosofia do direito Origens 21
FAZER AS PERGUNTAS BÁSICAS OU CONSCIENTIZAR-SE muito bem o que ela não é: a sociedade não é um clube de suicidas (Hart, 1961:
DAS BASES EXISTENCIAIS DO DIREITO 188). Quais são, porém, os limites dessa "sociedade"? E qual o sentido a ser atri-
buído ao "social"?
Roscoe Pound (1870-1964) é freqüentemente chamado de fundador da ciência
jurídica sociológica norte-americana. Em busca dos fenômenos sociais na base da
filosofia jundica,\Pound (1954) definiu o direito como a instituição social que permi- OS ASPECTOS FÍSICOS E EXISTENCIAIS DA
EXISTÊNCIA SOCIAL
tia que as necessidades humanas ossem satisfeitas/Uma parte substancial de sua
obra acadêmica (1921, 1943) consistiu na catalogação de diferentes reivindicações,
A existência social compreende pelo menos dois aspectos diversos: o aspectojT-
exigências e desejos e em sua classificação enquanto instâncias individuais, públi-
cas ou sociais. Pound considerava a organização jurídica como uma estrutura essen- ./1'()e o existencial. Para lutar contra a morte física ou biológica, os seres humanos
precisam abrigar-se dos elementos, comer, beber, reproduzir-se etc. Mas asoçiyi
cial a uma sociedade liberal moderna, e não propunha nenhuma avaliação qualita-
in e ia biojpgi,ça não constitui a totalidade da existência os seres huritanos também
tiva dos desejos, necessidades ou exigências humanos.\m vez disso, oferece urna
dr param com a ajestãoda sobrevivência existenciaj e imort existn.iél O sexo
narrativa histórica do desenvolvimento jurídico na .uail o direito moderno .assa cad.
cessario para a sobrevivência biológica, o que já não e_p caso .çp amQr Amar sig-
necessário
vez mais a reconhecer os "direitos" indiyiduais (em especial a partir do século XVIII),
aNca existirem uma estrutura difereite daquela do mero sobreviver, e amar pode
assegurandooreconhecimntçi de...uma.moijversidade de necessidades, reivin- significar que a morte é de menor importância. Como Gabriel Marcel (1964: 241) es-
dicações e exigências humanas, bem —como de interesses sociais.JO direito é uma
creveu certa vez: "Enquanto .a morte não desempen.h..a. .outro pape.1,alm...daqu.e
técnica de engenharia social, e a história recente mostra otojdtb jurídico como um dar ao homem um incentivo parigir dela, o homem se comporta como um mero
empreendimento relativamente bem-sucedido; a mera existência de maiores nel
ser oiã'Õ'comO um ser existente" O fato de que a existência humana transcende o
cessidades, exigências e reivindicações é sinal de progresso social.
ineraiucute..bióló -ico...o paradoxo da sociabilidade; fornece as bases dos extremos idên-
Ao contrário de Pound, o -poeta alemão HÉilderlin apresenta um conjunto de
ticos do terror e do amor, que denotam o verdadeiro humano.
preocupações radicalmente diferentes em que o objetivo da vidaão é apenas des- A segurança física e a segurança existencial são duas exigências que invocam
frutaros bens da existência; na verdade, a existêiiã'recisa de siçnijicado expressio. dois conjuntos de inimigos Jidé1es gira em tomo do poiO da fome da doença, dos
Para Hüldérlin, pIesmente viver a vid fíãJé"ificiente: a humanidade transcen- assassinatos, da violência contra o corpo e da falta de recursos materiais. O outro
de a vida animal por sua exigência de sentido e sua busca de critérios de concepções ra em torno de um pólo menos obvio que envolve o medo do desconhecido, o
qualitativas de vida. Devemos viver de um modo que nos prepare para a morte - de- i1cdjode conhecimento e estima, o desejo de criar, encontrar beleza e ser um iii-
vemos tentar viver, ao menos por algum tempo, como os deuses. víduo. O direito, a utilidade, o contrato, a economia— símbolos de distância e cálcu-
Em última análise, toda sociedade humana constitui um conjunto de pessoas unidas lo existencial - fornecem os instrumentos relacionais do moderno tardio. Em contras-
•em face da morte. Este é o entendimento central da filosofia política liberal, da ciên- te, o amor e não o direito, o encontro inesperado e não a utilidade, o contato e não o
cia jurídica e da sociologia da religião'.,A morte e a evidência fundamental da rua- contrato, denotam à preocupação com uma relação existencial diferente. Como resol-
de. uação ontolo ca da humanidade, o limite irr ovivel 'a existênc hum ia ver essas discordâncias? Onde está o começo?
Nos mitos dos pré-modernos e nos mitos filosóficos dos modernos - por exemplo, No começo não havia nada; nem palavras nem visões, apenas o vazio. Dê-se a
em variações da narrativa do contrato social -, homens e mulheres unem-se na soli- isso o nome que se quiser - "buracos negros" é a idéia atualmente em voga -' mas
dão diante da morte, para manter a vida e formar a sociedade. Na tradição da filoso- hoje sabemos que não havia nenhum Deus para lançar as bases da criação, nomear
fia jurídica liberal fundada por Thomas Hobbes (1651) e desenvolvida nas últimas as entidades do cosmo e preparar o roteiro de nosso destino. Hoje sabemos que nos-
décadas por H. L. A. Hart (1961), o objetivo básico da legalidade é a sobrevivência. sas sociedades são construções socioistóricas; elas, e nós, poderiam ter se transfor-
Por um lado, o liberal acha difícil dizer qual é o objetivo da sociedade; por outro, mado em alguma coisa diferente do que são hoje. Somos uma contingência. Como
vamos encarar tal fato? Será essa percepção da estrutura social unia conciên,çia,-
pecificamente moderna 2 como tendemos peil—, ou algumas pessoas s?ntpxe
1. A frase é adaptada de Peter Berger (1967: 52) e assim se lê em seu contexto: "Em última análise, toda1
se deram cont e'4ü'êloi a hú'ni'ànidadé, sozinha, que interpretou e estibeleceu o
sociedade humana constitui um conjunto de pessoas unidas em face da morte. Em última instância, o poder
da religião depende da credibilidade das bandeiras que coloca nas mãos dos homens quando. eles se depa- signfflcado dó cosmo 7 E-0— q —u--"e ugre essa conscientização7 Precisamos ter o do-
ram com a morte ou, para ser mais exato, enqunto fazem sua inevitável trajetória até ela." níid'ã"tutãIide da'ten'éTa para'responde' -'---'--"-"" àrguntas sobre o sentido da
22 Filosofia do direito Origens ZÔ
vida social, ou será a história humana um movimento constante de iniciativas e ar- tadas; seu cinto é uma faixa da qual pendem mãos humanas decepadas, e ela é negra
gumentos pragmáticos mergulhados em mistério total? e nua. Terrível, dentes como presas de serpentes, seios proeminentes, um sorriso nos lá-
bios reluzentes de sangue, ela é Kali, aquela do sorriso aterrador ( ... ) que vive nos locais
de cremação, cercada pelo uivo lancinante dos chacais. Fica sobre Shiva, que jaz como
A REFLEXÃO INTELECTUAL COMEÇA COM O MITO E um cadáver a seus pés. ( ... ) Na mão esquerda segura uma taça cheia de vinho e carne, e
O MIS lÉRIO DO SAGRADO na mão direita traz uma cabeça humana recém-cortada. Sorri e come carne podre.
Não podemos conhecer a totalidade da existência. Enquanto intelectuais em Estas palavras não são obra de duas seitas ou cultos e mitologias; ao contrário,
voga anunciam isso como a mensagem pós-moderna, em épocas pré-modernas enquanto as imagens deishn Kali denotam fenômenos...diversos, a identidade
esse mistério essencial era conhecido como o sagrado. E o sagrado desafia todas as do outro. E cada um encarna aspectos cio outro.
tentativas de separá-lo em divisões impecáveis para nosso consumo. Na devoção Krishna brinca com a pastora de gado, mas tamiflém aterroriza Arjuna, e é ao mes-
hindu, por exemplo, o sagrado é às vezes representado em forma de deuses, mas mo tempo a origem vital e o destruidor de tudo. O mesmo se pode dizer de Kali, a
ao fazê-lo está presente uma 5. nidadq qlétic4) de criador q destruidor,Veja-se o quem os fiéis assim se dirigem: "Tu és o Início de tudo, Criadora, Protetora e Des-
iaso de Krishna, o mais amado dos deuses hindus. No Bhagavad-Gita, ele é apre- truidora que és."'
entado como "o tempo que destrói o mundo", mas ele também diz a Arjuna: "Eu A filosofia desenvolveu-se a artir da mitologia. O objetivo da filosofia foi
pou a origem de tudo; é de Mim que tudo [toda a criação] provém." E ele combina e a hurnanidad.. o ÇQ1tLO.
contém aquelas características aparentemente incongruentes: "Sou a origem e a dis- ta as criações de nos intelecto e nossos modelos racionais de modo que os
.olução. (..) Sou a imortalidade e também a morte; sou tanto o ser quanto o não~ ~Je deeu mictr n o'- tianstorme em entd dc', díli
;ser" (a propósito destas citações e das seguintes, ver Kinsley, 1975, apropriadamen- relacionar. Na antigL uia, por exemplo, urna das funções de Zeus (o rei dos deu-
te intitulado The Sword and the Flute: Kali and Krishna, Dark Visions ofthe Terrible and de guardião patriarcal çja.cida.de e de suas leis. Zeus erTaz de punir ter-
the Sublime in Hindu Mythology [A espada e a flauta: Kali e Krishna, visões sombrias rivelmente aqueles que (como Prometeu) recorriam à astúcia para frustrar a razão,
do terrível e do sublime na mitologia hindu]). e preferia a vontade arbitrária à justiça. Mas também era capaz de muitas mudan-
No desenvolvimento do hinduismo, o divino m oca tanto o atraente quanto o ças de humor, sobretudo quando sob influência da atração sexual e dos artifícios
repulsivo O jovem Knshna sintetiza o primeiro, enquanto ausa 1iio se- das mulheres. A primeira consorte de Zeus, Metis, era uma fonte de discórdias e foi
gundo. O Gita é o texto central, mas além dele os que se identificam com Krishna por ele devorada, mas a segunda, TênTtornou-se a deusa da ordem comunitária e
da"consciência
consciencia . e ou san ao
. coletiva - social. mito1ogia
.- - torna-sefilosohaa_tr~
.
avés da
.---
acariciar — que com o tempo se transforma em um jovem cujos folguedos sexuais, maior amplitude de nossas interpretações. Assim, a união do beligerante Zeus com
em particular com Radha, a igualmente jovem e bela pastora de gado, só podem ser tanto a necessidade de si erenciai L eqjiH1STr T
descritos como um "carnaval de prazeres". Krishna traz ao mundo liberdade e es- cumprimento ativo e agressivo das (leis) com o ideal de estabilida e
pontaneidade, beleza e graça, fragrância e harmonia, vivacidade e recreação, paixão az social, ilus trar que a segurança domestica exige, no minimo, a ca-
e intimidade; acessível, irresistível, carismático e cativante, ele é puro fascínio. O êx- pacidade de recorrer à espada. Ainda cjúe nesse caso possamos fazer uma leitura com
tase amoroso é seu caminho para o essencial.
Acoerção e o consenso — o poder de destruir e o poder de capacitar, criar são
2. Nos textos do santo hindu Sri Ramakrishna (1974: 11 e 17), do século XIX, fervoroso devoto de Kali,
-
interligados. A flauta é símbolo da arrebatadora beleza do Krishna eternamente jo- i Divina Mãe, a natureza da deusa consiste em conter, ao mesmo tempo, uma unidade de opostos. No tem-
vem, enquanto a esi e simbol6 TraE qu iodos os aspectos ater- pio em que está sua imagem em basalto, espetacularmente adornada com ouro e jóias, sobre o corpo prostra-
idores das forças destrutivas. As descrições representam-na como uma divindade do de Shiva, em mármore branco: "Ela tem quatro braços. A mão esquerda inferior segura uma cabeça huma-
sanguinária, implacável e feroz. na decepada, e a superior empunha um sabre ensangüentado. Uma mão direita oferece dádivas a seus filhos,
enquantp a outra apazigua seus temores. A majestade de Sua postura mal pode ser descrita. Nela se combi-
nam o terror da destruição com a segurança da ternura materna. Pois ela é o Poder Cósmico, a totalidade do
De rosto medonho e aspecto aterrador é Kali, a terrível. Com quatro braços, uma universo, uma gloriosa harmonia dos pares de opostos. Ela dispensa a morte, assim como cria e preserva. Em
grinalda de crânios e os cabelos desgrenhados, traz nas mãos esquerdas uma cabeça uma das primeiras visões de Ramakrishna, Kali emergiu do Ganges, veio para a terra e deu à luz uma criança
humana recém-decapitada e uma cimitarra. ( ... ) Tem o pescoço adornado por uma guir- que começou a amamentar ternamente. No instante seguinte, assumiu um aspecto terrível, agarrou a criança
landa de cabeças humanas que gotejam sangue, e seus brincos são duas cabeças cor- entre suas poderosas mandíbulas e esmagou-a. Enquanto a engolia, voltou para as águas do Ganges.
24 Filosofia do direito Origens 25
base no gênero, em que as respectivas esferas do público e da espada constituem o tia vida para osgegosa,pqs? A literatura grega e, como tempo, o desenvolvi-
domínio do homem, enquanto a paz doméstica diz respeito à mulher, outra leitu- tu de sua filosofia, parecem refletir divisões fundamentais do espírito humano:
ra possível remete à necessidade de o poder da espada se unir ao conhecimento de kvuues entre aceitação e rejeição do status quo, entre o desejo de ordem e ode trans-
seus efeitos sociais. Assim como Zeus, sem a influência de Têmis, pode ser um ti- ç entre imanência e transcendência; entre a defesa dos padrões convencio-
rano cruel e se1vageiãiE émo ireito, ceo a sua fuaina e suas cor ocias.. ais e o ceticismo diante deles, entre a aceitação do destino/papel de cada um na
em Muitos dos i os de Zeus e Têmis tornaram- e o desejo de alguma coisa mais, ou outra.
se fiadores das leis e da estabilidade social, em particular Dice, Eunomia e Irene. Examinemos o famoso e trágico exemplo de Antígona, a terceira das peças te-
Dice passou a personificar o ideal de justiça que colocava o homem acima do mun- Hnas de Sófocles, escrita no séculoV a.C. Antígona era uma das filhas de Edipo,
do animal. Com o tempo, a palavra dice viria a tornar-se o termo-padrão para pro- a figura trágica do poder masculino que havia sido amaldiçoada pelos deuses
cesso judicial. Como deusa, Dice levava os juízes a se empenhar em deliberar com ter assassinado o pai (o rei deTebas) por engano e, em seguida, casado com sua
integridade lógica em vez de tomar decisões arbitrárias; sua irmã Eunomia represen- diu e assumido o trono de Tebas4. Após a morte de Edipo; irrompeu a guerra civil
tava a harmonia social e jurídica que resulta desse comportamento racional, e Ire- 1 lavou-se uma batalha diante da sétima porta de Tebas - seus dois filhos coman-
ne expressava a paz. Em conjunto, configuravam a idéia social de homonoia, ou o ideal lavam facções antagônicas, e no auge da batalha lutaram entre si e mataram-se. O
de uma comunidade urbana harmoniosa; a filosofia posterior de Platão e Aristóte- imão de Edipo, Creonte, tio de Antígona, era agora o senhor inconteste da cidade.
les retoma a tarefa d ompr ender essa idéia'. (conte resolveu transformar em exemplo o irmão que havia lutado contra, ele, Po ~
&QJAVbO4.. ftQf1t O(
roce, recu do4héfi direit6r sepur adoTk1ela de morte foi promulgada paãa
O
m quer qiiTHe contestasse à ordem, que foi aceita como proveniente da auto-
O PROBLEMA EXISTENCIAL REFLETIDO NA LItERATURA egítima de um governante em sua cidade A peça tem inicio com um coníron-
E NA FILOSOFIA GREGAS: O EXEMPLO DE ANTIGONA i
(ii entre Antígoia e sua irmã Ismênia
.Antígona está perturbada; seu irmão Etéocles "foi sepultado com honras de Es-
A partir de nossa perspectiva, parece que no mundo homérico "os valores bá-
ido, mas Polinice continua insepulto, não pranteado, um festim de carne para as
sicos da sociedade eram dados e predeterminados, e que assim também o eram o
lugar do homem na sociedade e os privilégios e deveres que decorriam de seu sta- aves de rapina *. Antígona pergunta a Ismênia se ela tomou conhecimento da or-
em que, em sua opinião, dirige-se pessoalmente a elas:
1
tus" (M. 1. Finley, 1954: 134). Este é, porém, um juízo de valor moderno, feito com
base em 2 mil anos de história escrita - em outras palavras, não era bem o que É contra ti e contra mim que ele emitiu essa ordem. Sim, contra mim. E logo ele
aparentava ser a seus participantes. Qualquer discussão sobre os conceitos relati- próprio estará aqui para deixá-la clara aos que ainda a ignoram, e para fazê-la cumprir.
vos, à moral ou à justiça ocorre na esfera de um modo de vida que fornece não ape-
nas os recursos, como também o contexto para a escrita e a especulação. Devemos A ameaça não é vã: o castigo para a desobediência é a morte. Para Antígona, o
aos gregos as origens de nossas tradições teóricas filosóficas e sociais do Ocidente. dilema é crucial e coloca um desafio a seu sangue real: "Chegou a hora em que de-
Um dos objetivos dessa tradição tem sido o de transcender a aceitação acrítica da verás mostrar se és ou não digna da nobreza de teu sangue. ( ...) Não é ele meu ir-
vida convencional - identificar as condições para uma existência racionalmente sig-
mão, e também teu, quer queiras quer não? Não haverei- nunca de ahandoná-ld -
nificativa. Mas como eram os instrumentos para se compreender e criticar o contex; nunca!" Ismênia, porém, responde: "Como ousarias, quando é expressa a proibição
de Creonte?"
3. A filosofia nasce da mitologia, mas talvez nunca se livre por inteiro de uma base mitológica. O nasci- Antígona sente-se presa a um dever normativo que transcende sua posição de
mento da filosofia ocidental com Platão Aristóteles traz consigo a graça dos deuses. Em Protdgoras, Platão súdita de Creonte. Ismênia, porém, evocando os horrores sofridos por sua família,
apresenta uma explicação natural das origens da sociedade na qual afirma que, embora os homens primitivos apela a Antígona para que seja realista: ç it.tiu
pudessem alimentar-se sozinhos, agruparam-se em busca de proteção contra os animais selvagens. Contudo,
a vida social era praticamente impossível, uma vez que o homem carecia de aptidão civil (volitike tékhne), ou a
Édi-
capacidade de viver em comunidade. A vida urbana que o ser humano passou a levar era perigosa devido .a 4. Antígona tem por destino uma vida trágica já.a partir:das,drcUflStâflCiaS de ou nasnieiito. Em
seu próprio mau comportamento, mas Zeus concedeu-lhe as faculdades de respeito mútuo e o senso de tusti- po Rei, Édipo se dá conta do terrível dilema da identidade de seus filhos com Jocasta (sua mãe natural). An-
de identidade
vida cívica requer. A filosofia platonica então se volta para a buci d in lodo'rácionii, t eoãuts tígona é ao mesmo tempo sua irmã e filha; as regras não escritas de parentesco e atribuição
que lhe permitam criar a ciddL 1 tado id I Um irgumenlo que nfatl7 o papcl di milolo,,ii ii ii Ju haviam sido infringidas.
ri6emprâriëa pode ser encontrado em Fit?prick (1 992),çMytholyofA4odern. * Tradução feita a partir do texto inglês utilizado pelo autor (Penguin Classics, 1947). (N. do T,)
26 Filosofia do direito Origens 27
( ... ) agora só restamos nós duas; e qual será o nosso fim se transgredirmos a lei e de- ( ... ) proclamaste tua sentença contra o amigo e o inimigo. Tua vontade é a lei tanto para
safiarmos nosso rei? Ó irmã, reflete! somos mulheres, incapazes de lutar contra os ho- os mortos quanto para os que ainda vivem.
mens5; nossos governantes são mais fortes que nós, e devemos obedecer não só nis-
to, como em coisas bem mais terríveis. Que os mortos me perdoem, mas nada posso Antígona dá ao irmão um sepultamento simbólico. Quando os guardas o des-
fazer além de obedecer; mais do que isso é loucura. cobrem e vão contar a Creonte, este desconfia imediatamente que se trata de obra
de algum homem. A tempo, porém, os guardas prendem Antígona e trazem-na pe-
Com uma sombra de amargura, Antígona libera a irmã da obrigação de ajudá- rante o rei. De modo compreensível, dado o fato de que ele é agora seu guardião
la, mas argumenta que ela não poderá livrar-se do ônus de sua opção: oficial e ela está noiva de seu filho, Creonte oferece a Antígona a oportunidade de
negar que tivesse conhecimento da determinação, ou de afirmar que o havia enten-
Quão feliz serei se por tal causa perder minha vida! dido mal. Antígona, porém, abre mão da oferta:
Condenada por saber reverenciar os mortos, serei feliz por repousar ao lado de
um irmão querido ( ... ) Conhecia-a, sim. Era do conhecimento de todos.
Vive, se quiseres; vive, e desafia as mais sagradas leis dos deuses. CREONTE: E ainda assim tiveste a ousadia de transgredi-Ia?
ANTIGONA: Sim, essa ordem não veio de Zeus. A justiça que emana dos deuses não
Antígona justapõe dois conjuntos de obrigações e leis. Sente-se obrigada pe- conhece essa lei. Não considero que tuas leis sejam fortes o bastante para revogar as leis
las leis divinas a sepultar o irmão, ao mesmo tempo que as leis de Tebas obrigam- não escritas e inalteráveis dos deuses, uma vez que não passas de um homem. Elas não
na a deixá-lo insepulto. A resposta de sua irmã demonstra que ela também reco- são de ontem nem de hoje, mas eternas, ainda que ninguém conheça suas origens. Ne-
nhece o conflito: "Não os desafio; apenas não me sinto forte o bastante para ir con- nhum mortal poderá culpar-me por transgressão perante os deuses. Por certo sabia que
teria de morrer, com ou sem o teu decreto. E, se minha morte é iminente, tanto melhor
tra o poder do Estado." Para Antígona, isso não passa de uma desculpa', ela parte para mim. Quem, como eu, vive em meio a tantos tormentos, só tem a ganhar com a ela.
para sepultar o irmão, resignada com a punição que a aguarda. Sua morte será
"honrosa"; viver com o conhecimento de sua incapacidade de agir seria Quando a punição com a morte está prestes a concretizar-se, e Creonte sente toda
nificado a sui'ÍT e'ïã'er ncia A cena da peça passa para a a gravidade de seu ônus, ele apresenta uma justificação de sua absoluta necessidade:
AséinE1éia de Tebas, onde Creonte está discursando para seus conselheiros. De-
pois de explicar a necessidade de sua ordem, os conselheiros anunciam-lhe sua
concordância: rsas, sejam
Aquele a quem o Estado confere poder deve ser obedecido até nas mínimas coi-
elas justas ou injustas. E, sem dúvida, aquele que sabe governar sua casa irá
tornar-se o mais sábio dos reis ou o mais fiel dos súditos. Será ele o homem com o qual
todos poderão contar na tempestade da guerra (...). Não existe maior desgraça do que
S. Este trecho é freqüentemente traduzido como "nascemos mulheres, o que mostra que não fomos fei- a desobediência: ela destrói os Estados, leva os lares à ruína e, nos combates, traz con-
tas para lutar contra os homens"; no texto grego, Ismênia usa o verbo phyo, indicando que é por natureza sigo a derrota dos exércitos. Por outro lado, a simples obediência salva as vidas de cen-
(ph1/sis), e não por convenção social, que as mulheres não tentam rivalizar com os homens.
tenas de pessoas honestas. E preciso, pois, apegar-se às leis com total lealdade.
6. Vários estudiosos retrataram Antígona como um mulher masculinizada. Antígona compartilhou o
exílio de seu pai, enquanto Ismênia permaneceu em Tebas. Ismênia foi, portanto, doutrinada segundo as
crenças da sociedade patriarcal - os homens nascem para mandar, as mulheres para obedecer -, enquanto Mais adiante, Creonte introduz um comentário de teor patriarcal:
Antígona conheceu uma maior auto-suficiência. Em cenas posteriores da peça, Antígona se refere muitas ve-
zes a si própria com um pronome masculino, e Creonte, ao decidir puni-Ia, afirma: "Eu não seria homem; ela, Essas coisas se aplicam sobretudo às mulheres. Melhor ser derrotado por um ho-
sim, seria um homem se eu tolerasse a impunidade de seus atos." Mais para o final, Antígona chega a refe- mem do que permitir que uma mulher nos vença.'
rir-se a si própria como o único sobrevivente da casa de Édipo, com o que atribui a sua irmã um papel entre Coc
os mortos-vivos. Ao optar pela sobrevivência física, Ismênia perde seu status existencial - sua vida deixa de
ter sentido aos olhos da irmã. 8. De forma coerente, Creonte mostra ter preconceitos patriarcais. Não consegue entender o amor de
7. Para alguns autores que podemos descrever como até certo ponto existencialistas' - por exemplo seu filho 1-Temon por Antígona, refere-se à própria esposa corno "um campo a ser cultivado" (verso 569; um
Marcel, Jaspers, Nietzsche e Heidegger -, a vida humana individual traz consigo o ônus de que o indivíduo sentimento que refletia a crença de que era a semente masculina que gerava os filhos e via a mulher como
lhe atribua um sentido. A idéia da morte atua como o campo de provas fundamental. A vida é o desafio de vi- mera provedora de um solo fértil para se depositar a semente). Em O segundo sexo, Simone de Beauvoir argu-
ver e pôr à prova o sentido de estar vivo ao mesmo tempo em que se está consciente da mortalidade humana. En- menta que o simbolismo falo/arado - mulher/sulco é uma tática comum para reforçar a autoridade patriarcal
quanto a mera existência é uma questão de funções biológicas e sociais, o existencialismo enfatiza um aspec- e a sujeição feminina. Creonte mostra-se claramente temeroso de ser suplantado por uma mulher, e adverte
to subjetivo, de autodeterminação da vida - a tarefa de usá-la sabiamente, com afeto e honestidade. o filho contra tal possibilidade (versos 484, 525, 740, 746, 756).
a..;
Filosofia do direito Origens 29
São muitas as tensões aparentes no texto da peça, como aquelas entre o amor soluta. A tensão se dá entre a exiêncipçia1 de obedecer às leis da comunida-
oder, a família e o Estado, e também entre o que poderíamos chamar dj5ú- de como injunçõê étfffãaceitando seu status imemorial de base da veidade
blico e privado, mas a tensão dominante é a que se dá entre a obrigação diante das que enunciam, e a eigência supri-estatal de obedecer a lei de sepultar seu ir~
ordens legítimas de Creonte - estabelecidas como as leis de Tebas - e a obrigação mõ é ré? ifiecer a natureza sagrada da ligaç grila Creonte esta incum-
para com as leis dos deuses. Sófocles não deixa nenhuma outra saída. O destino de bido da responsabilidade de dar forma às leis da comunidade, e vê-se igual-
Antígona é a morte, assim como o do filho de Creonte, desesperado diante do des- mente obrigado, enquanto homem e governante, a deixar-se guiar pelo prin-
tino de sua noiva'. cípio de que um inimigo do Estado não deve receber a honra de um funeral,
e a punir a mulher que desobedece a suas ordens. A comunidade não dispõe
dos recursos intelectuais que lhe permitiriam resolver esse conflito interno";
INTERPRETAÇÕES DAS TENSÕES JURÍDICAS EM ANTÍGONA
(ii) um exemplo da teoria da imperatividade da norma jurídica;
Enquanto o dilema principal gira em torno do conflito entre Antígona e Creonte,
(iii) um exemplo primitivo e incipiente de desobediência civil; uma ação impossí-
a peça contém um grande número de estratos e leituras possíveis, inclusive o conflito
•yel de conceitualizar de modo bem-sucedido, uma vez que a ordem social não
entre o amor e o dever", entre homens e mulheres, entre natureza e cultura e entre 'fornecia os recursos intelectuais que sancionassem um conceito de desobe-
diferentes concepções do direito e sua "adequação" à ordem natural. Essas tensões
diência civil O conceito de desobediência civil, que passou a existir durante o
"fl.egais" são diversamente representadas como:
Ilummismo concede a um indivíduo o"direito" de opor-se a parte da ordem
jïdica em nome do verdadeiro espírito da ordem jurídica. Tal direito não exi-
(i) As exigências do direito natural versus positivismo. Em sua Fenomenologia do es-
tIra os gregos classicos; ao contrário, o que temos são, especificamente,
pírito, o filósofo alemão oitocentista Hegel (ver capítulo 7) interpretou a peça
como uma exposição das tensões latentes da sociedade grega. A cultura grega conjuntos opostos de "deveres";
operava com base na crença na unidade total, baseada em um estilo de vida (iv) o dever de um indivíduo para com sua família versus seu dever para com oEs-
comunitário, "natural". Antígona, porém, recusou-se a de tdTÍíls formas conflitantes e irreconciliáveis de dever que também repre-
Ismênia ao direito natural que sdbordinv iTi111ieres aos homens, e que olítico13;
sentam os elos da sociedade civil em oposição àqueles do Estado político`,-
fãIéiíodtiéJfõ'1ílhnieoo das ordens de Creonte, seguindo, ao contrário, o
déifh divino que de terminava- que um membro da família devia ser sepulta-
do por seus parenl.e, e que seu espírito não teria descanso cri uanto isso não li. Hegel (Phenomenolo,gy.ofSpirit [Fenomenologiadb espírito], trad. inglesa de.A.V. Miier, 1977: pará-
11.
grafo 466) 'Como só enxerga bem de um lado e mal do outro essa consciência que pertence a lei divina sove
ocorresse. Além disso, a determinação de Creonte fazia ser tidb m seílj5Fi- do outro lado á violência do capricho humano, enquanto aquela que se atém à lei humana só ve do outro lado a
prios termos. Cada um é compelido a obedecer a uma lei e desobedecer a ou- obstrnaçro e a desobedlLnua do individuo que lnslstL m v..i sua pu p i iutund idL luis as piesuiçoeS
tra. Estava, contudo, na contramão do direito divino, portador de uma autori- bverno têmum significado universal e público, exposto à luz do dia; a vontade da outra lei, contudo, é exa-
dade contrária, porém rigorosa, que insistia em que Polinice devia ser sepulta- minada no escuro das regiões inferiores, e em sua existência externa manifesta-se corno a vontade de um in-
do, e que um membro da família devia tornar-se especialmente responsável divíduo isolado que, como se contradiz ao primeiro, constitui um ultraje brutal."
12. Segundo a interpretação de Hegel, mais uma vez, a tragédia acentua as contradições internas da vida
por tal tarefa. Hegel apresenta as duas exigências como inegociáveis. Anto- de urna sociedade que não dispõe dos recursos intelectuais fornecidos pelos conceitos de individualidade e sub-
na não é çapade ati'&3rnô umndivíduh autônomo que oÏa fazei uma jetividade. Por sua natureza, o direito implica que o sujeito tenha a capacidade de desobedecer. Trata-se sempre
coisa e não outra; ao ççtrário, ii purtãdoxa.de qma injunção divina qtã é ãb- da relação entre urna entidade e outra. O indivíduo, ou a pessoa jurídica, versus o Estado. O direito exige obe-
chncia mas a realidade da vida social cria circunstancias nas quais a obediência também pede a desobedin
Sem uma noção ddifi viiliiade individualidad'e - sem o espaçií jurídico criado por um conceito de desobe diên-
9. Antígona finalmente retorna ao papel feminino: lamenta o fato de que vai morrer virgem, solteira e cia civil , o enfoque da cultura grega na funcionalidade dentro de uma totalidade não deixava espaço para que
sem filhos,. e em seguida suicida-se depois de ser trancada viva em uma caverna por ordem de Creonte. O sui- a relação indivíduo-totalidade fosse mediada sem contradições. çgpõe em relevo conflitos po-
cídio é visto como uma modalidade feminina de morte, ainda que Hemon, filho de Creonte, também se sui- tenciais e concretos na tradição dopaís, revelando a falta de unidade de ui i L•• ç xiS a ue a unidade
cide - como o faz Eurídice, esposa do rei. existisse. Antígona revelou a no espírito grego, e os sofistas, na leitura de Hegel, revelaram tanto
10. Depois de informado sobre o fim de Hemon, o coro anuncia a força destrutiva do amor: "Amor, in- sua necessidade para o princípio de subjetividade quanto sua incapacidade de assimilá-lo. A vida grega sim-
vencível amor, que repousas no rosto macio de uma jovem; tu que perambulas pela vastidão dos oceanos e plesiipntn não podia ter continuidade uma vez que uma filosofia da individualidade se tornasse mais comum.
pelas casas dos humildes, a ninguém é dado fugir a ti, nem os homens nem os deuses; e levas à loucura todo 3. Ai: ida segundo a leitura de Hegel, é impossível, tanto para Creonte quanto para Antígona. 1ivrasé
aquele que cai sob teu domínio. Transformas o justo em injusto, e semeias a discórdia até mesmo entre filho dacul.. A estrutura múltiplos deveres cada um seguia um conjunto de leis em detrimento doou-
e pai. Tornas destruidora a chama que brilha nos olhos de graciosa e imaculada noiva." tro. Na vida ága, a culpa não r!atnto na má intenção do agente, pois a capacidade de agiz segundo cri-
30 Filosofia do direito Origens 31
(v) a irracionalidade do subjetivismo arbitrário das mulheres versus a razão fria do privilealam."deve ser" surgem e se diferenciam do "é" ou do "está" que caracteri-
Estado masculino, expresso através do dever abstrato para com o direito fotiiia114; zam o "ser natural",Em resultado, transferimos os dilemas morais a tecnocratas es-
pecializados e vivemos nossas vidas na esfera de um espaço social burocraticamen-
(vi) as exigências da razão prática que enfrenta com determinação um dilema ime-
te administrado`.
diato versus as exigências de uma racionalidade teórica (o utilitarismo de Creon- Pli
Antígona fala aos aspectos trágicos e contraditórios da existência humana; tal-
te) que se volta para uma categoria dos interesses de Estado;
vez não haja solução, nenhuma interpretação fundamental. A peça tem exigido
(vil) os primórdios da racionalidade individual - a subjetividade - contra a concep- uma interpretação filosófica constante, e serve de inlc1Q,osbf1a do direito uma
ção de justiça que prega a obediência às regras objetivas do corpo social. vez que a tarefa da filosofia é fornecer urna direfriz racional para a vida prática, per-
mitir que nosTcionemos com nossas instituições e mterpretar e criticar i ssas pra-
Escrevendo no início da década de 1990, Douzinas eWaigoa (1994) suge- ticas. Quando as instituições não têm uma tradição fia de debate - de justificação
rem outra leitura, talvez uma leitura "pós-moderna". Em sua opinião, o dilema de e crítica -' suas formas e funções permanecem profundamente ambíguas e passí-
Antígona é tema de tantas análises em parte porque a dúvida existencial ocorreu veis de abuso (admitindo-se que seja possível diferenciar abuso de l5O)16. É tarefa
no início de nossas tradições do registro escrito, eprecisa ser apreendida por escri- cia literatura (re)apresentar a vida; urna das tarefas da filosofia do direito é iifre
Fà que a possamos compreender. O desejo de Antígona de fazer face a uma fàr e oferecer analises ci lticas do ethos da legalidade na vida Talvez possanioissi-
justiça pessoal - a díke de Antígona - s. precursor da ética moderna, um estado pri- milár ufriamensagem: a filosofia do direito "deve" lembrar que sua base é a vida,
niordiál de ser que antecede o momento em que as metodologias ordenadoras do em vez de tornar-se obcecada com a análise de uma "idéia" intuída a partir das con-
pensamento e da escrita racional fizeram suas demarcações. Adí7ce,de oxjaé dições vitais. Uma idéia que deu nome a uma importante tradição é a do Direito Na-
uma crise existencial .mujtp pessoal - não havia reas que pidesse9 çsoJvpli.o p- tural que foi trazido ao mundo pelos gregos.
blm
ea'á content,o. Os sistemas de reflexão intelectual posteriores definem os dile-
ás existenciais como ausência de ordem e transformam a crueza da existência em --2w 7n4c
coisas que podem ser - de tal que sistemas de estwtuxas morais gue
15.Douzinas eWarrinton elaboram sua análise tendo um objetivo específico em vista: defender a tese
de que a modernas perderam toda e qualquer ligação real corno ser moral, tornando-se
uma mera técní LSTíãléi'Edrádê AbtígcJúa tem p6r'e um projeto de invocar um tempo e lugar em que a
térios posteriores, é incipiente ou, no mínimo, subdesenvolvida - o imaginário estrutural do destino encarre- justiça era Tii figura mais premente, menos desumanizada, mais "real" no sentido de que era um conjunto
ga-se de tudo que o antecede.A culpa seria inerente às ações contrárias àlei da ordem social mesmo que não de exigências no nível da presença real ("a cabeça e o rosto amados de meu irmão") do "outro" (no caso, Po-
pretendesse pbter esse resu1tae réo pudessç ter gido de outra forma. E uma posição trágica nu qual tan- linice), e não de algum argumento formal abstrato ou de se estar preso a uma idéia moral. Em seu argumen-
toigona quanto Creonte ao desobedecerem a uma lei e obedecerernao,utra àssunenuIpaindaie to, as categorias 'e demarcações intelectuais que a modernidade criou reduziram nossa capacidade de aprecia-
nenhum dos dois pudesse ter agido diterentemenle do que agiu. ção da realidade das ligações e interações humanas.A exigência pós-moderna deDouzinas e Warrington con-
4. igualmente extraído da mterpretaçao de Antígona por Hegel. Em sua Filosofia do direito, publicada siste em restaurar a "face" do "outro" como um fenômeno real em nossas discussões i'õõi'is.
em 1821, Hegel ocupa-se dos tipos de racionalidade existentes no mundo, e vê a história do mundo como 16. Para L oSlrsiliãs (1953: 101), a análise do direito não tem como fugir à ambigüidade:
unia questão de desenvolvimento e choque de tipos de racionahda. Para esse auior,o homem busca oco-
nhecsmento das condiçoes universais atraves do pensamento conceitual e da objeto dade voluntária. As mu O direito mostra-se como a1ue se contradiz a si ,próprio. Por um lado, afirmar ser uma coisa essencialmen-
tea ou nobre: é o direito que protege as cidades e todas as outras coisas. Por outro lado, o direito apresenta-se coo
lheres preocqgrn sõ com as questões substantivas idetaiticadas atraves da mdividualidade cóàcreta e do a o,puniao ou decusao coínumRia cidade Le., da totalidade de seus cudadaos Enquanto tal não e de modo algum es-
sm'ento. O homem volta seu olhar para o mundo, exterior e, assim, sencialmente bom ou nobre. Pode muito bem ser produto da insensatéíou da vileza. Não há, por certo, razão algu-
O homem tem sua verdadeira vida substantiva no Estado, no aprendizado etc., assim como no trabalho e no ma para se pressupor que os criadores do direito sejam, em regra, mais sábios do que "eu e você"; por que, entào,"eu
e você" deveríamos nos submeter às decisões que eles tomam? O simples fato de que as mesmas leis que foram so-
embate com o mundo exterior. (..) A essência do destino da mulher está na família, e o estar imbuída de devoção fa-
lenemente promulgadas pela cidade são rejeitadas pela mesma cidade, com igual solenidade, parece mostrar a natu-
miliar constitui a disposição ética de seu espírito.
reza duvidosa da sabedoria que entrou em sua criação. O problema, então, é saber se a alegação do.direito ~ de que
Por esta razão, a devoção familiar acha-se exposta na Antígona de Sófocles (...) sobretudo como á direito da mu- é bom ou nobre - pode ser simplesmente rejeitada como carente de qualquer fundamento, ou se contém um elemen-
Iher, e como o direito de uma substancialidade ao mesmo tempo subjetiva e no plano do sentimento, o direito da vida to de verdade.
\ interior, urna vida que ainda não alcançou sua plena concretização; como a lei dos deuses antigos/xis deuses do mun- O direito alega que protege as cidades e todas as Outras coisas. Afirma assegurar o bem comum. Mas o bem co-
do inferior"; como "uma lei eterna que nenhum homem sabe quando passou a vigorar pela primeira vez". Tal con- mum é exatamente o que entendemos por "o justo". As leis são justas na medida em que levam ao bem comum.
junto de leis e normas é ali mostrado como um direito oposto ao direito público, ao direito do Estado. Esta é a supre-
ma oposição na ética e, portanto, na tragédia; e é? individualizada, na mesma peça, nas naturezas opostas do homem Podemos aceitar a abordagem que Strauss faz da questão sem que seja necessário, porém, comprome-
e da mulher. (Tradução para o inglês-de T. M. Kno; 1952: parágrafo 166) ter-se com sua definição do justo.
Filosofia do direito Origens 33
II. O CONTEXTO DO DIREITO NATURAL DOS GREGOS CLÁSSICOS antropologia moderna tenha tentado fugir às concepções eurocêntricas de uma so-
ciedade primitiva irracional que posteriormente se tornou uma sociedade moderna
racional, ficamos com idéias de sociedades "primitivas" como se dependessem das
O LOCUS EXISTENCIAL DAS ORIGENS DA FILOSOFIA GREGA CLÁSSICA: A forças do mundo natural até um ponto difícil de compreender nos dias de hoje. Nes-
DEPENDÊNCIA NATURAL DA HUMANIDADE EM SEUS PRIMÓRDIOS sas sociedades primitivas, o nível de poder social e tecnologia era de natureza tal a
transformar em questão suprema aquela que remete às ligações e relações com as
Se controlardes o modo como as crianças brincam, e se as mesmas crianças fize- forças naturais.
rem sempre os mesmos jogos, sob as mesmas regras e nas mesmas condições, e se os
mesmos brinquedos lhes derem prazer, vereis que as convenções da vida adulta tam- Certamente houve um tempo (e talvez veja-se um risco de afirmar que tal tem-
bém permanecem em paz quando não sofrem alterações. ( ... ) A mudança, como vere- po ja não esta mais conosco em cj)eartureza se impunha de modo tão impeno-
mos, a não ser a das coisas más, é extremamente perigosa (Platão, The Laws [As leis], so à humanidade gie,praticameate a controlava. A chamada humanidade p
1970: 797). tiva cnpartilhava a vidanitut d c cri micnda em sua rotina por meio de rituais
ciiias que lhe permitissem pit t]cipii da estrutura dessa viciL— e desse modo,
É difícil receber, desde a juventude, uma boa educação para a virtude sem que se conservar-se dentro da esfera da graça da natureza. O natural — cncehido como
tenha sido criado sob leis apropriadas; pois viver com temperança e esforço não agra-
da àmaioria das pessoas, sobretudo quando são jovens; por conseguinte, a natureza e o numino'o e o sagrado - impunha re'peito, c tornou-se a fonte de nornas para_o
E os exercícios dos jovens deveriam ser regidos pela lei. ( ... ) Também precisaremos de leis comportamento humano A vida implicava normas e praticas, rituais e cerimônias
para regular a disciplina dos adultos e, na verdade, em termos gerais, a vida inteira das voltados para a agricultura, a pesca, a caça, o acasalamento, o nascimento, a transi-
pessoas; pois a maioria é mais receptiva à coerção e aos castigos do que à razão e às ção da infância para a vida adulta, o enfrentamento da doença, da morte e do sepul-
idéias morais. Por essa razão alguns acreditam que, se por um lado convém que o le- tamento. Os mesmos imperativos naturais que, acreditava-se, operavam em toda a
gislador estimule os homens à virtude e os exorte a viver segundo seus ditames, com a natureza - o clima, a terra (montanhas, rios, o mar, o deserto, a floresta), o Sol e a Lua
esperança de que os que já receberam uma formação moral virtuosa venham a mostrar- - mantinham a humanidade unida. Porém, seo homem primitivo talvez se sentisse
se sensíveis a.tais desígnios, por outro lado convém impor castigos e penas aos deso- sem poder diante da natureza, ou apenas um poder menor entre tantos outros, ele
bedientes e irascíveis, e banir para sempre do Estado os que forem incorrigíveis (Aris- também se via corno parte do mundo natura]; ao contrário, o homem moderno com-
tóteles, Nichómachean Ethics [Ética a Nicômaco] 10.9.8-9).
preendea natureza como um lugar onde pode exercer suas atividades — urna are-
na onde pode impor sua vontade por meio cia tecnologia Pan o indwiduornoder-
Os textos dos dois pensadores gregos tidos como fundadores da filosofia oci- noi1ireito natural no mais pode ser percebido como algo que simplesmente "ah
dental - Platão e Aristóteles - revelam abordagens distintas da tarefa de estabele-
cer a ordem social e criar mecanismos que estruturem a existência social. Enn-
t de 17. .Para Antoriy Giddens (1990), as culturas pré-modernas enfrentavam uma combinação de verdade
uma "verdade" que residia na natureza. Enquanto o mundo pode parecer cheio de va- e risco diferente daquela enfrentada pelas culturas modernas. O contexto geral do pré-moderno era a impor-
nação, caos, diversidade e deso avam que, por diifrô Iá.dõ, uma tância crucial da confiança localizada. Os mecanismos que proviam a confiança eram:
ordem n- atural subjazia ou era inerente a esse mundo e, uma VC7 que seus pipci- (i) as relações de parentesco como instrumento organizador dos laços sociais no tempo e no espaço;
pios basicos iosscm conhecidotl oern po SIJ.tun as bases daem (ii) a comunidade local como espaço propiciador do meio familiar;.
so.ç4o..omei.. (iii) cosmologias religiosas como modalidades de crença e prática ritual que forneciam uma interpre-
Enquanto a "verdade pura" independe de relações sociais particulares, todo o tação providencial da vida humana e da natureza;
(iv) a tradição como meio de ligar presente e futuro, com açultura temporalmente voltada para o:pas
conhecimento humano é pragmático, perspéctico e metodológico. A história do de- sacio.
senvolvimento do pensamento social grego clássico vai além tex- Por outro lado, o ambiente de risco tinha por características:
tose pôõa abarcar, mas em resumo, surgiu com o desenvolvimento de umgrgp-
de numero de cidades-Estado c foi estimulado pela necessidade— de lidar com no- (i) ameaças e perigos queemanavarn da natureza, como o predomínio de doenças infecciosas, insta-
bilidade climática, inundações ou outros desastres naturais;
vas questões criadas pelo atançç.çlo cpnheclmentc) e da atividade mercantil. Sua (ii) a ameaça da violência humana representada por pilhagens:deinimigos, déspotas locais, crimino-
de mitologia "primitiva" a "grandioso florescimento da razão humana" sos e assaltantes;
(o status que hoje lhe atribuímos) atravessou oito séculos no mínimo. Embora a (iii)' ameaças de cair em desgraça perante os deuses ou sob a influência maligna da magia.
34 Filosofia do direito Origens 35
está", uma vez que ele já não se pode dizer sobre a natureza`. O indivíduo moder- A origem e ordenação do mundo assumiu, pela primeira vez, a forma de um pro-
no entende que uma concepção a6iTfêTf6 itiiiraI como Ro humana em obediên- blema que se colocava explicitamente, para o qual uma resposta devia ser oferecida
cia aos ditames da natureza minimiza o aspecto da vontade coletiva e individual do sem mistério, uma resposta ajustada à inteligência humana, capaz de ser anunciada e
ser humano; o indivíduo moderno quer afirmar seus "direitos" e vê o mundo como debatida publicamente, diante da massa de cidadãos, como qualquer outra questão da
um espaço para interagir e construir, para desenvolver projetos de vida individuais. vida cotidiana (Vernant, 1982: 107).
Inversamente, o direito natural clássico não implicava direitos naturais; ao contrário,
O governo da cidade estava muito envolvido com uma nova idéia de espaço.
implicava funções, fins e deveres naturais. O direito natural criava uma rede de re-
Vernant agumentaqp.e as instituições da pólis tinham por desígnio e concretiza-
lações que posicionava o eu e lhe conferia um sentido fora do qual havia apenas a
çõ aQuilo que se,pode chamar de espaço políticoÕs primeiros planejadoies ur-
morte existencial.
banos - por exemplofliodãf'iô dé Miléõ - éranr teóricos políticos, e a organização
do espaço urbano era apenas um aspecto de um esforço mais geral por ordenar e
O CONTEXTO DA FILOSOFIA GREGA CLÁSSICA FOI O racionalizar o mundo humano`.
DESENVOLVIMENTO DA CIDADE-ESTADO Nesse processo organizacional, os gregos tendiam a descrever o mundo em
termos de opostos polares, que para eles diferiam em espécie; por exemplo:
Quando o poder micênico ruiu sob pressão das tribos dóricas que invadiram a
Grécia no século XII a.C., todo um tipo de governo monárquico e forma de vida so- racional / irracional cultura / natureza móvel,! imóvel profundo / raso
cial centrados no palácio foi destruído para sempre. Enquanto a religião e a mito- seco / molhado rápido / lento forte / fraco escuro / claro
grande / pequeno longe / perto pesado / leve muitos / poucos
logia da Grécia, clássica (o século IV a.C.) tinham suas raízes no passado micênico,
a estrutura social e cultural era dramaticamente diversa. A pessoa do rei divino de- quente / frio masculino / feminino terra! céu
sapareceu do universo social e cultural grego. Quando esse centro desapareceu, a
A lei conhecia sua própria oposição polar: legal e ilegal,. Do modo como os gre-
transformação psicológica resultante preparou o caminho para o desenvolvimento
gos as compreendiam, as coisas têm conjuntos específicos de qualidades que as
daquelas inovações paralelas que estão na base do legado da Grécia clássica: a ins-
tornam - digamos, por exemplo, as coisas quentes - diferentes daquelas que são
tituição da cidade-Estado e o desenvolvimento do pensamento abstrato, racional
ou conceitual (ver, ,a propósito, Vernant, 1982). frias. Os gregos pareciam acreditar que essas qualidades podiam existir por conta
própria'. O quente podia existir independentemente do frio, o legal do ilegal, o mas-
A cidade-Estado era ao mesmo tempo criação, da capaçi,dade. de organização
culino do feminino.
do hiiim lug'ii de ifripeieições Realidade viva convidava ao aperfeiçoamento
Esse processo de fazer distinções bem definidas deu a Platão conç.,çle
Exigia análise racional na esperança da solução de problemas e do progresso: asednheci- mej
idenfificar a estiútuEa do malerfiatico e do geojiretuco
toseguro20; "ser" significava existir de modo tal a ser contável è f iÍi3iife visuali-
18. Por outro lado, o homem moderno leva uma vida apartada dapatqeza.e reliada aos sistemas sociais
Por desligamei7rd' sístemas s iáíi',CI3dens refere-se à melhoria das relações sociais a partir de
contextos locais de interação e de. sua reestruturação ao longo de períodos indefinidos de espaço e tempo. 19. Vernant (1982: 126-7) assinala que o novo espaço social organizou-se ao redor de um centro geo-
gráfico que se tornou, desse modo, o mais valorizado. O bem-estar da pólis assentava-se naqueles que eram
O,, sistemas abstratos dependem de sinais simbólicos formas de intercâmbio que podem ser passadas
aos dem' àllespeif(5 iiàiTãfrit íffit'ãá' espeéí'fii dos indivíduos ou grupos que as manipulam em qual- conhecidos como boi rnesoí, urna 'vez que, por seremi eqüidistantes dos extremos, constituíam um ponto fixo
que servia para dar equilíbrio à cidade. Indivíduos e grupos ocupavam posições simétricas em relação a esse
quer conjuntura particular); por exemplo, o dinheiro e o estabelecimento de sistemas de interação ou inter-
centro. A ágora, que representava essagrganização spacial no solo, formava q atrode um espaço público
dependência. Os sistemas de especialização técnica ou de formação profissional organizam vastas áreas do
comum. Todos qu íéniravam eram, por esse fato, definidos como iguais, isoi: Por sua presença nesse es-
meio ambiente 'material e social em que vivemos atualmente. O advogado e o sistema de conhecimentoju-
publico estabeleciam relações mutuas de perfeita reciprocidade Observegc também o restrito espaço
ndico o projetista de carros e a produção industrial A vida cotidiana exige que tenhamos"fé" no fato de que
em que as mulheres se locomoviam na Atenas clássica. Garner (1987: 84-5) afirma que embora seja possível
as inúmeras coisas_com as quais interagimos - coã iquinas de lavar, carros transporte ufnliê6
anular epocas e lugares nos quais Lii i(Litl\ 1 5u'uido não esperado, qpe as mulhLrs 11/ ' n apaníoes
construções, sistemas de tráfego rodoviário, contas bancárias, cartões de crédito, seguros etc. - funçjoqi piisflcàs kiafortes indiuns dc que em geral ficavam confinadas ao interior d qu u 'ioto mais rica a
como se esper.p que.oiaçam Trata-se de urna criada pela participacao nas praticas da vida cotidiana e casa mais os criados suprimiam a necessidade dc que elas precisassem sair Inulheies não aconipanh
rçad
refoa pelo recurso ap,cJjreiio,,Por trás de grande parte das atividades e condições de operação das enti- varri seus maridos aos jantares em outras iasas, nem aparecian nos jantares ot anizados em budb próprias
dàdeitãõii agências reguladoras, além dos órgãos profissionais cuja função consiste em supervisionar e casas quã ó'f(estivessea pi.esentes di conv dados de seus maridos
proteger os consumidores dos sistemas de especialização, organismos que licenciam máquinas, supervisio- M'm The Ope'.iciety and Its Enemii :"(>dlTPlcto, Pupper (14i 31) argumenta que Platão exemplii.
nam os padrões dos fabricantes de aviões etc.) ca esse "esséndaiismometodelógico". A tarefa'.do conhecimento puro ou 'da íência pura consiste em desco
36 Filosofia do direito Origens 37
zado21. Essa estrutura do conhecimento unia, mas também separava em seus respec- teria parecido inautêntico. Mesmo no texto mais claramente "idealista" de Platão,
tivos domínios, o céu e a terra, condensando a regularidade da justiça e fornecendo a República - que estabeleceu um modelo para o Estado "ideal", onde o regime jurí-
os meios para se impor restrições às vantagens pessoais (ver as palavras dirigidas d2o3.1z gualid çyi -, a base é um entendimento da natureza do prático
por Sócrates a Calicles em Górgias, 508a). e da vida
(Hedoné), como a n çnj . d,a;população..(hoi poliof)
esis. is istaQ !os imediatos, ç .Q9. bem?
A NATUREZA PRÁTICA DA FILOSOFIA GREGA: OS ESCRITOS DE PLATÃO O que está em jogo é o ordenamento de uma
COM BASE NO DESEJO DE ENCONTRAR UMA POSIÇÃO A PARTIR DA opoder1undtr ASrens6êda vida social dev'êm ser equilibradas Pelo pdr i-
QUAL CRITICAR AS CONVENÇÕES DA ORDEM SOCIAL22 Íonal que o conhecimento transcendental) do justo,
Nossa crença de que os conceitos dojusfd,d correto e do bem se referem, em úl-
A discussão sobre a idéia universal do bem sempre tem como ponto de parti- tima análise, a fenômenos que se situam em algum ponto além da confusão da vida
da a questão "humana": o que é o bem para nós?" Ter procedido de outro modo prática, é essencial para permitir que o intelecto direcione as operações da vida prá-
brir e descrever a verdadeira natureza das coisas, isto é, sua realidade oculta que se encontra em algum lugar
para além das aparências que nossos sentidos nos revelam.
-tica. Mas como vamos conhecer a-realidade do justo, do bem edo correto? Podemos
confiar nas opmioes que nos cerc?Tõdem
bate ou daargunti.tí,ç7 Não, afirma--- - -
íegiao verdadeiro atravda-
ossas circunstâncias nos enganam:
--
21. Por outro lado, se tudo é interligado, como ter certeza de que uma coisa é realmente quente, e não precisamos transcender nossas opiniões e cQnvençQes e ver, ou apreendera reali-
fria? Legal, e não ilegal? Boa ou não? q..ponto de ástacontuírio ode que -em rez4e pixes de opQstospla- dja24. Platão está convencido do acerto de sua metodologia epistemológica.
res o que te é urna escala contínua degaus de. gr jni.çaspiaUdade (por exemplo, que o escuro é uma No símile do sol o filósofo combina sua tese do mundo das essências pu-
íiuiisidade zero da luz-,-e- que o repouso é um grau zero do movimento), exirna e u forma totalmente nova io dasrençi
de calculo matem tico, forma bastante difícil de visualizar Um exemplo e a dificuldade de os jidere japone
ras (as "idéias), em contraste com
ssédeclararem culpados ou inocentes nos julgamentos de guerra da Segunda Guerra Mundial Argumen eus divi4ios, em que tepora1 é rebaixado na comparação com a alma,que conhe-
tavam que eram ambas as coisas ao mesmo tempo uma vez que a estrutura de sua ordem social e suas ideias ce as essências É ç
sabre dever e responsabilidade unplicavam que os elementos de culpa ençja_ejam tQtalmente tntçrli par de vagar p1a estreita esfera dos crpos mat
gados impossiveis de separar ntidTos e libera um tipo de heligênda que volta seu olhar para o aspecto imuta-
22. Platão (c. 427-347 a.C.) é reconhecido, juntamente com seu "professor" Sócrates e seu próprio discí- _-'.L-- - -
pulo Aristóteles, como um dos definidores cruciais da tradição ocidental em filosofia e pensamento social. Pia- 172 conhecimento genuino, portanfo, requer uma inteligência
tão vinha de uma família que desempenhara importante papel na política ateniense, e seria natural que ele se- que não esf'pr& Também requer um mundo eli-
guisse sua tradição. Ficou chocado, porém, com a natureza corrupta do universo político e revoltado com a exe- ique possa ser diferenciado do mundo mrial.
cução, no ano 399 a.C., de seu amigo e professor Sócrates. Na juventude de Platão, o-movimento democrático libertar-se do corpo e de seis
era formado por homens de origem humilde que tinham o poder de dominar a assembléia popular com a for-
serão as pre6ndíç6es
ça de sua retórica; uma vez no poder, as políticas tendem a tomar-se populistas, o que agradaria ao público, e sentidos inconstantes, por operaão suas faculdades intelectuais. Deve dirigir
não uma análise racional daquilo que as circunstâncias exigem. Em 386 fundou uma escola para estadistas, a seu olhar para objetos cheios de luz e, banhada da luz ma'desses objetos,
Academia. Isso refletia a crença de Platão de que não havia nada a fazer com a situação política contemporâ- ser capaz de ver a verdade, a beleza e a permanência essenciais.
nea, e que as esperanças estavam em preparar uma geração futura para a busca racional do verdadeiro conhe-
cimento, bem como na necessidade de aplicar tal conhecimento à esfera da política prática. Seu ideal era o go-
verno do rei-filósofo. Seus adversários eram os sofistas, que em sua própria escola ensinavam as q4ãlidades ne-
24. Platão é geralmente tido como discípulo de Sócrates, que não se dava por satisfeito com explicações
cessasao sucesso na vida cotiajana a chave de seus ensnamios era ajetQnca oi arte da expressão das
pronajias e dapiãóTP1áthã qufmiformação apepas ernrtrjca ea pen$osama yzue convencionais; insistia em perguntar sobre o sentido das expressões, e desestabilizava a confianaqqç,_Q-de-
batedor dernonstraya tel em s4as por um ladc processo argumentativo tinha por objetivo
a Eacidd'de expressar sesêjõâ nvencer os9utrQs sem uma di iza supro
pno uso sem nenhumapteçao contra oiab usos. Ai pZb1iêa(esciita c 375 a C) seu tratado mais conheci a busca da verdade ou da natureza essencial das coisas, por outro Sócrates não parece crer que o processo
dé um conjüiio deálogos &ÇIi O Estado idél; As leis, outra obra em forma de diálogo, descreve um Esta- possa oferecer uma resposta absoluta. Portanto, Sócrates é de grande interesse para liberais modernos como
do utópico a ser fundado em Creta, no século IV a.C., e foi escrita pouco antes da morte de Platão.** for aa pesquisa ciêtitffica é fllosófita,n
mos vrdad.akâi1u. Ao contrar PlaJ(opareçe acreditar que oseres humanos são mcapazesdeom
Para suas referências, o autor utiliza a edição Fnguin de 1974, com tradução para o inglês de D. Lee. (N. do T.) ealgiias coisas são lai11ilte
preender a sutileza desta posição e devem, categoricamente, acredi
O texto utilizado pelo autor é a edição lnguin de 1970, com tradução para o inglês deTrevor Saunders. (N. doT.) li tide dÓniélhdr ue possamos argumentar em rsiIdo de nossas
vedijjs. Não ve gé
23.Ver o auto-retrato de Sócrates no Fédon e a discussão, no Filebo, sobre até que ponto a paixão de nos- ãõlõgíág nem por concordância, mas simplesmente verdadeiras; verdadeiras em seu sentido
sos impulsos e nossa consciência podem ser equilibradas, em nossas vidas, èm forma de um todo harmonioso. absoluto, transistórico.
Filosofia do direito Origens 39
de discutir sua reação à injustiça do julgamento e da morte de Sócrates, ele comenta seu interesse pela políti- ida ruz — é o modo platônico de rejeitar o ceticismo co relativismo dos sofistage
ca e. sua aversão à realidade que o levou à formulação da República: - pregavam aosbili,.dd.çi...
-1111 sç .clçga ao conhecimentoZ. perfeito do mod o c i
quanto mais profundamente me dediquei ao estudo dos políticos e das leis e costumes atuals,e qua
...) mais ve- a sociedade deorde nada . Contra eles, Platão argumenta que não só conhe-
lho me tlisiiifínpareceuée aaificuldade di l,ovcrnar bém Nada podia ser feito sem amigos e partidanos cir e possivel,mas onhecimento
que e t rmhéEti' infãlfvel Oc verdadei-
estes não oram fáceis de enconrai iilEui época que havia abandonado seu código moral tradicional, mas Qquc é verdadeiramente reai. Para Platão, o dra-
para a qual a criação de um novo código parecia ser uma dificuldade insuperável. Ao mesmo tempo, a lei e a moral se
ro é infalíveLpor etçm,ppk, 1 C-
deterioravam a uma velocidade alarmante, com o resultado de que, embora eu ansiasse por uma carreira política, a vi- mático contraste entre as sombras e os reflexos da vida na caverna e os objetos reais
são de todo esse caos deixou-me atordoado, e ainda que eu nunca tenha deixado de refletir sobre o modo como as era o indício decisivo dos diferentes: aus em que os seres humarios podiam ser es-
coisas poderiam ser melhoradas, e o conjunto das leis reformado, não agi de imediato, à espera de uma oportunidade
favoráveL Cheguei, por fim, à concluso deque todos.Qs. Estudos existentes eram mal govemados, equeocqpjunto
clarecidos O filosofo via os correlativos das sombras na totali
e
de suas leis não era paíiTéiIde reforme sem tua tstamento drástico uma boa dose de sorte. Na verdade, fui força-
' c1I:l..As divergências entre os homens quantoao significado djtiça,
da-crerótie a única esperança de eu (1 Ii r j ustiça para a sociedade ou para o indivíduo acha-sena verdadeira filo- por exemplo, decorriam do fato de cada um olhar para um aspecto diferente da rea-
sofia e que a humaliãEêsasevein litu. deprbkm is quendeçaãilífi gueíicos conqpstassem o poderpoli
Pgr t jJjísofos(Citado na íntrodução do tradutor
lidade da justiça. Uma pessoa ~ía—Lemqr justiça a significar ogue quer- Que q-
iii, edição Iiguin, 19Ô: 16). vernantes exigissem,com base no pressuposto de que a justiça tem a ver com regras
40 Filosofia do direito Origens 41
de comportamento estabelecidas pelo governante. ()conhecimento verdadeiro não é simplesmente um conhecimento das essên-
Içã.o çi3uib15jéfdqual e asRmbra, concepção de justiça tem alguma is, das forma reais das coisas à espreita no interior de suas aparências incons-
medida de verdade em, reIaço a ela Contudo, governantes d1fereftlixTgErrvdife- li»;, mas vem somar-se à sabedoria (sophía)27. O conhecimento especializado é
rentes modos de comportamento, e não haveria nenhum conceito coerente de jus- "sd rio, mas deve ser distribuído e aplicado (ver Livro 1V da República); a cida-
tiça se o conhecimento que os homens dela têm derivasse exclusivamente da 've ser-bem aconselhada por ele.
orme variedade de seus exemplos.
"a Os sofistas eram céticos quanto à possibilidade do conhecimento verdadeiro;
impressionados diante da \arieddeeda constante transformação das coisas, argu- III. A FILOSOFIA DO DIREITO DE PLATÃO
mentavam que como o conhecimento provem da experiência mdividuaL.uo O
nhecimcnto retiete essa \ ar.iação, sendo portaj-ltQrel.ativoacada
1. pess. Platão con-
cuidava que o resultado de se fundarnentaroconhecirocnto em nossos sentidos éa A CONCEPÇÃO PLATÔNICA DE JUSTIÇA DO MODO
variação, mas afirmas a que o conhecimento real pertence a ossência,à idéia. Não é COMO SE EVIDENCIA NA REPÚBLICA
urna questão daquilo cm ic cc acredita, mas do que é verdadeiramente certo. Na
história da caverna, a busca do conhecimento real pode corrir oeli10 de vida &e- Utem dois buto ve (i) funda-se, sobrç a justiça; (ii) todos
turpado daqueles que se deixaram absorver pela vida prá 'ç,q.41atão é freqüentemen- 1 idadãos que nele iyrp,s,ãodelizes. Para chegara isso, Platão procura criar uma
te acusado de um perigoso, elitismo ao afirmar que os indivíduos que conhecem o 1 , 1,u Estado em pequena escala, tomando por modelo as sociedades um tanto
bem são superiores aos que permanecem presos às convenções morais ou políticas li 1110 is e fechadas de Creta e Esparta pré-clássicas. O naturalismo Platão, não ±
existentes. Isso, por- 11,1 análise científica da realidade da Atenas contemppâ,nea que ele parece con-
em, equivale a perder de vista a preocupação e o sacrifício mui- -
to humanos dos que adquiriram um senso de justiça, do berne assim por diante. 1 li 1 ii repugnante mas
-, uma nostalgia intelectual da suposta pureza de uma epo-
Guiados pela experiência da verdadeira essência do justo, do bem, eles podem ex- Ii' ouro mítica em que todas as coisas ocupam uma "posiçq atrl". Para impe-
trapolar o "justo" e o "bem" convencionais e viver intensamente o embate com a uc sua imagem da sociedade ideal seja vista coma uma volta ao passado, Platão
realidade. Ainda assim, terão de lutar com outros que aceitam a ação concreta das 'senta uma narrativa do desenvolvimento da vida na cidade. Embora a primeira
convenções sociais como única medida do bem e do justo; terão de lutar com as late tenha surgido apenas como resultado de egoísmo material, logo começou
sombras e as imagens do díkciion, isto é, com as coisas humanas (tá ton anthropon), 1 ,( , i seguir a idéia do bem comum. qçé o bem comum?9 conhecê-lo? on çê..o?Pla- Pla-
e com aquilo que pertence à preocupação humana (tá anthropeia). O homem que 1, m
1,111 parece seguro de que alguns podem entender o que o bem comum realmente
conhece o corretoe o justo, ou o bem, pode n ã o ser o vencedor, pois s'eemba- 1111 1 )1
ic-a, e mostra-se bastante predisposto a defender a coerção e a manipulação
te é muito mais vantajosa a posição daquele que conhece os procedimentos da ca- 1 chegar a tais fins Ajuça, então, signca algo como "o que..é necessário para
verna, os subornos, as mentiras, o USO das sombras, a "informação incompleta—d !uocionamento do bem comurn".A democracia, tem papelo da liberdade de pen-
pessoas", as contradições no interrogatprio das testemunhas pela, parte advjsa. Iiii nto mas esta e tambem a iazãõ sua autodestruição A democracia despo-
Quem é, porem, o realista? E será que o homem que aspira a mais do que a mera 1 'hbcidadc' por meio da qual todo indivíduo e livre para agn corno bem lhe
. 1
27. Vejamos um modelo normativo de um sistema jurídico. A teoria da tékhne consiste em aprender a
26. É preciso, contudo, defrontar-se com a pergunta sobre qual é a base concreta desse conhecimento do 40do1ogia da aplicação de regras gerais, mas o fosso entre teoria e prática pode ser muito óbvio. A prática
verdadeiro e do bem. No caso de Pistão o discurso, particularmente em seus escritos autobiográficos (isto é, nas iva da instituição, a organização cotidiana de tribunais, magistrados, advogados, testemunhas, demandantes
Epístolas), surge como experiência mística ou religiosa na qual a luz irrompe subitamente na consciência do eu:
réus, pode exigir uma metodologia que provém da esfera da experiência geral, tendo aver com a relação de
Em resultado da continua aphcaçio ao tema' cm 'o e da comunliao com ele niompe subitamente na alma
11 tis e meios na ação prática ou pseudopolitica. O conhecimento das regras par se não contém na4a que garan-
como uz' que 'uma centelha trouxesse à vidã e que, a partir de então, se alimentasse asi mesma' (llf'ísTola Vil; aia correta aplicação. Na Metafísica, Aristóteles argumenta que o profissional não especializado (o curandei-
341). Qual é, porém, o significado disso? Significa que, para Platão, a totalidade da realidade o domínio ds
-
1, por exertp1o) pode ser mais bem-sucedido do que o especialista (nesse caso, o médico com formação cien-
idéias puras, onde residem a verdade pura e obem é, na verdade, um mistério? Que só por meio de uma ex-
-
1 iics). E, enquanto Pistão enfatiza a importância da experiência prática em seu programa de educação, ele vi
ser
perierina mística ou espiritual podemos ter certe7a de ter chegado a erdadeira i erdide2 Se asi m forntão lindamais fundo, cãientízando-se de que todas as regras devem ser interpretadas fim de que possam
o segredo da justiça areais podei ser eieançdo atraves de processos racionais tudo aq,uilo e que podein ch- viv e criar teoria éuma
1 llicadas. Aqui, porém, como em todas as atividades, a prática é uma forma de teoria
gar 1(k e-ajustiça da filosofia JUI iii 1é hum ano,ei ii,,1o passa de i eialoe adulterador o faliveis do direito e preenderum exame teórico da interpretação, mas. engajar-se'na interpretação
I de p'Ifi. p~ef -~em
í1 11 1 o ,— ~
diiü1eraPlatao entendido iii e eid.édi 50C ci jusiiça puta pen'oaneuoa paia sempre um niiOeno , uie ale a entrar nos domínios da prática.
42 Filosofia do direito Origens 43
lismo, a diversidade e a variedade atraentes, Platão enfatizava seus efeitos desinte- cípio geral de direito e da separação dos poderes (Bamett, 1995; Loveland, 1996), en-
gradores. A autoridade é despojada de seus fundamentos, os jovens não respeitam contram pouca ressonância. Em parte, isso era um reflexo da menor escala em que
os mais velhos, "e a mente dos cidadãos torna-se tão sensível que o menor sinal de operava a cidade-Estado grega - os tribunais, por exemplo, em geral não contavam
coibição é percebido como algo intolerável" (384). Ele adverte que a dissensão pros- com a atuação de advogados, sendo mais uma instituição popular -' e era também
pera quando não há coesão social p que o resultado éaluta de classes. Precisamos um reflexo da crença em que a virtude e a lei eram interpenetrantes. A boa lei leva-
de uma visão social nos assegure de que a estrutura social é justá. va a vjrfl,ide, est resultava em boas leis Ética, política, educação, direito e filosofia
Isso vai de encontro à imagem liberal da liberdade, mas, pergunta Platão, qual o pre- tudojsLormava um todo práticoeindivisjy
eL
ço da liberdade em uma sociedade que ostenta suas desigualdades? Tal sociedade
irá, inevitavelmente, dar origem a uma luta entre as facções antagônicas - os ricos e
os pobres - a propósito dos recursos materiais da sociedade. E o que dizer da con- O PAPEL DA EDUCAÇÃO PARA A "VERDADE"
dição moral da sociedade na qual a experimentação e a diversidade são tidas como
valores? Platão faz uma advertência em sua descrição de uma sociedade permissi- A força básica g,e mantém arpúblicaéocaráter e a educção das classes do-
va no Livro VIII. Lee (1974: 30) sugere que "desunião, incompetência e violência, que minantes ou de urn,,grupqpeçia.lizap "Guardiães". Todos os indivíduos devem
ele tinha visto em Atenas e Siracusa, eram os piores perigos contra os quais Platão submeter-se ao treinamento da intel igência para aprenderem a controlar as pai-
julgava que a sociedade devia ser protegida": \ões, e esse treinamento vai refletir-se em um sistema de educação ou de preparo e
Qual é o papel do direito? O direito assqgura ação coletiva. Referindo-se no- iPiiãõados
nst jovens, harmoniz ando-os com o caráter do governante A educação,
vãmeiTffi'iifáTãvdftiã, Plafã6leva um personagem central do diálogo a ar- porem, não vista como uma transferência do conhecimento para a alma, como con-
gumentar que: ferir: o sentido da visão a olhos cegos; assemelha-se mais a levar o olho a voltar-se
para a luz (Republica, 518b-c) O,,ççj,cador deve oteiccei as condições iias quais o
(...) nosso trabalho enquanto legisladores consiste em levar as melhores mentes a atin- tipõ'derto de mente -Possa desenvolver suas aptidões O sistema e autoutano no sen-
aq10 que chamamos de forma superior do conhecimento, e a ascender à visão do tia'r a única educaçãô oferecida; não se apresenta nenhum sistema alterna-
kem( ) e çpindo fiflalifienteo conseguirem endo n coisas cone clareza impedir tivo, e tampouco valores alternativos são apresentados como desejáveis. Para oci-
que ( ) permanecam no mndo u superior, recs'indo
u se C \ oheipar sprisioneios da dadão médio, não há nenhum estímulo ao questionamentõ das crenças sociais; a
caverna e com eles compartilhar suas honras e recompensas. p'êuisáddíiêàcïoial livre e reserva de dominio de uma elite que ja passou por um
O objetivo enossaTéis1ação não é obemestar especifico de qualquer classe em longo pr'ocesso de educação secundário. O sistema educacional impõe aos jovens
particular de nossa sociedade, mas o da sociedade como um iodo; e esse objetivo .com-
pprtaapersuaso e a coerção, para unir lodos os cidadãos e fazê-los qompartilliar os um unico conjunto de valores, e o fiz dc modo u'sé fadÍes não
benefícios que todo indivíduo pode trazer à comunidade eseu objetivo, "to enfatizar vêhhariF'6i3iar-se céticos quanto a eles Não se trata, simplesmente, de que Pla-
essa atiteide, e o de não permitir que cada um taça o que bem etedde mas sim fazer tão pareça afirmar que existe uma verdade moral a ser conhecida, e que podemos
de cada homem um elo na unidade do todo (Kepúblíca, 519e-520). estar seguros de chegar a conhecê-la, mas é quase insignificante seu desejo de edu-
car as pessoas para que se tornem seres autônomos. Platão não vê sentido no suS-
O filósofo liberal Karl Popper, do século )OÇ é contundente em sua análise desc jetiví_sino; ao contrário, e crucial estabelecer a autondade tUma vez"q so a elite
se "direito natural", vendo-o como uma tentativa de recriar um "modo de vida social dispõe dos recursos da educação, do tempo e da .aprovação f'ivolvdi°se conTa
'natural', isto é, tribal e coletivista" (1945, vol. 1: 80). O direito impregna os padrões quostionameiví'mFalcc tual sistemático segue-se que e massa de população ieO
de pensamento de todos, sancionando uma existênciii&ii ém que_61etivoes- pode esfriar por nenhuma recli7açao que provenha de tal indaccoeseria se't perl
uiiã a individualidade )sO encoraja-la a um amplo ycstionamento s convenções sociais qpe estão nas
ÃTd cio como formador da república ideal é extremamente diferente bases dlQue valor poderia ter uma pessoa que se envolvesse em um pro-
da idéia liberal que passou a enfatizar a tolerância e a pluralidade. Primeiro, deve- cesso pessoal de especulação sem chegar à resposta correta ou, quand'o muito, que
mos entender que mesmo o uso dado por Platão ao conceito que traduzimos chegasse' apenas a uma resposta parcial? Os que conhecem a resposta devem- sim-
como "rpública" tinha um significado diferente de seu uso moderno. Em sua épo- plesmente fornecê-la a essá outra pessoa.
ca, o pcfo grego apontava, na e e, para uma interligação e "Constituição", Para o liberal moderno, Platão tem não apenas uma confiança equivocada na
e "sociedade". O direito não era visto como algo independfe cio social; possibilidade concreta de se chegar à verdade absoluta, como também demonstra
as idéias de um direiR constitucional moderno, infundidas pela ideologia do prin- uma confiança ingênua na capacidade de as elites apreenderem-na e agirem Ç,fifi,,
Filosofia do direito Ori2ens 45
integridade, de modo que usem seu poder em conformidade com os ditames de tão contar a todos os demais outra "nobre mentira": enquanto todos os cidadãos
tTconhecimento. PiTosotos dó conhecimento ida ciência .contemporneos são bem (os membros daquela comunidade) são irmãos e irmãs, nascidos da mesma mãe,
menos otimistas sobre pretensões à "verdade"; Platão simplesmente confia em-ex- eles são de composição diferente, alguns têm ouro em sua natureza, outros prata,
cesso no exercício do poder por parte das elites. Mm do mais, como Aristóteles as- outros ferro ou bronze. Além disso, é importante que os metais, que diferenciam
sinalaria, Platão parece ffij5i de distinguir entre unidade e uniformidade. Tendo as classes, não se misturem ou confundam Assim, enquanto os pais que reco-
em vista sua divisão das pessoas em diferentes papéis sociaispnidade dai6ie- nhecem que seu filho tem ouro em sua composição devem garantir que ele seja pro-
c dade provem do desempenho dos E Pia- movido à classe dos Guardiães potenciais, os pais da criança com ferro ou bronze
• , tão também não sé&pa muito daúITeT 6seguem desempenhar seus em sua constituição devem endurecer seu coração e rebaixá-la às categorias dos ope-
papéis com o devido sucesso. A partir de sua discussão, fica claro que ele conside- rários ou agricultores.
ra impossível que alguém corrí uma doença crônica debilitante possa levar uma vida
gna de ser vivida (República, 407a-407b), e que não admite que uma pessoa pos- a2
'sa encóntrar fontes de valor em sua vida que não sejam aqueles já sancionados. To- A ÊNFASE SUBJACENTE NA UNIDADE DO OBJETIVO SOCIAL
memos o conhecido exemplo do carpinteiro que tem uma doença crônica. Platão
que não faz sentido manterqe resta de sua vida com a ajuda medicina; Três pontos estão na(ase da república ideal de Platão\ (i) a unidade do Esta-
.é melhor do e suprema, (11) esse estado de coisas não e mantido eis
téiilor alguej omasconsguerealiz ã1lo (Republica, 406d- e noririas, mas pelo caráter dos Guardiães R2210 sistema educacional1eral que pro-
4O7 Se uma pessoa não consegue desempenhar o papel solue estrutura sua duz os Guardiães e outros, e (m) os Guardiãeínãohesitam em comanibs
ida, a A opiniãoda pessoa recursos de que dispõem, inclusive os de natureza discursiva e1gemômca, tendo 1 11
é irrelevante, mera subjetividade em desarmonia com a realidade objetiva. em vtifà a maniíten tjEsta. unidade vital certos fato-
Na República ideal, cada pessoa pertence a urna de ordens,.ou classes so- res pragmáticos em atuação para ser unificado, o Eàdo não deve ser muito gran-
ciais legitimadas pelo sistema de educação e çnçNa base está á.acejtação da ver- de nem muito pequeno, e alem do mais não deve conter extremos nqa, pois
que concluíram com êxito sü uma verdadeira cidade é uma unidade, e não um fenômeno dividido (422e). Uma
educação como "Guardiães" irão tornar-se governantes (phylakes) ou guerreiros (cha- cidade requer unidade de fins - este é o verdadeiro mecanismo constitutiv&°.
mados de auxiliares, epikouroí). Platão também enfatizava o imperativo de se man-
ter a unidadeL o tempo todo, uma necessidade que o leva a sugerir a exigência de um Platão é sem dúvida elitista e centralizador; o poder deve ser exercido por um
Conjunto especialistas sistematicamente produzidos e educados, sistema'-
mito de fundação; urna narrativa grandiosa que transmitisse convicções à comuni-
dade toda e legitimasse a divisão por classes e as diversas instituições (414-415d). O sC
Primeiro, os governantes e os soldados são convencidos de que a formação e a edu- 29. O grande teórico da legitimidade, Max Weber (aqui discutido no capítulo 11; sua obra principal é
cação que receberam foi algo que aconteceu em um sonho; na verdade, eles foram Economy and Society, 1978), enfatizava que, quanUo ascises ou os indivíduos afortunados querem justificar
forjados nas profundezasda terra, e sua mãe, a própria terra, foi quem os trouxe à sua posição oelotradiçãoe o método ustial fei'Weber re iãéáÓ üm da 'uféhonda
luz quando eles já estavam prontos. Portanto, devem ver a terra em que vivem como de do sangue corno plFnTllilgern sucessona cjue um rei usaria vara
sua mãe e protegê-la quando for atacada, enquanto seus concidadãos devem ser nado A tra1ição..e um dos trejodosdáipinnesdelegitimação ao lado dos modos 'ca ji'çp e jundi
co-racional Mas a tradição e mais ampla, uma vez que ate mesmo o modo "moderno de autoridade jun
considerados como irmãos nascidos da mesma terra. Os Guardiães deveriam en- dico-racional requer valores comuns que já estejam há muito estabelecidos, e no sistema jurídico moderno - a
forma idéal de dominacjô jurídico-racional - o imaginário do costume, do precedente e da veneração pelas
; decisões do passado é de importância central.
28. Platão está reconhecendo que o sistema precisa de uma fonte de legitimidade que é maior e diferen- 3O.lrtanto, às entidds de existência éõncreta, identificadas como cidades, podem não ser Estados
te dele próprio. Tradicionalmente, enfatizam os estudiosos, a legitimidade deve vir sempre de alguma fonte verdadeiros para Platão, uma vez que não têm o sentido de propósito e unidade que urna verdadeira cidade
que não seja o ato de apoderar-se de si mesma. Todos os sistemas exigem um processo por meio do qual seu (Estado) deveria ter. Os Guardiães são autorizados a impor medidas que assegurem a unidade e acabem com
poder é visto como autoridade por aqueles que a ele se submetem; isto é, como algo de certa forma natural. A le- as fontes 4e conflito e instabilidade A propriedade.. comum eafamlha nuclear não eúste5 sendo substituí
gitimação, o processo mediante o qual nos referimos a uma fonte de valor pressuposto que confere poder em 'da por escolas manfidaspelo Estado e poryro_g,aqas educacionais fixos de controle igualmente estatal. Am-
forma de autoridade, é um evento circular complexo. A fonte de autoridade deve ser sempre pressuposta, tra- bas as medidas se destinam a conferir maior unidade à cidade. Os conflitos po são lados
zida à existência, e ainda assim é sempre pressuposta como algo anterior, como se viesse antes do processo por uma estrutura jurídica, mas simplesmente Portanto uma sociedade pluralista sena considerada
mesmo. O anseio legitimador remonta a algum evento, a uma fundação, a um estado de ser original - não im- como um lasso porPíima vez que seus membros se veriaili a si propnos como paencentsaj.
porta o quão remoto - que fixa a verdade do estado de ser vigente.
46 Filosofia do direito Origens 47
duzirá cidadãos de bom caráter que, por sua vez, vão gerar filhos melhores do que mações; às vezes, estudiosos argumentam que se trata, na verdade, de um extenso
eles próprios, e assim por diante. O direito tem um papel limitado, e não deve ser programa que se destina a chocar o leitor, levando-o a pensar em como a ordem
um obstáculo aos governantes: "holrlerts. Qrs.nãQ.pqcj odens, (.) sabe- social contemporânea poderia ser modificada (Platão, afirma-se, sabia muito bem
rão descobrir facilmente. qua...legis1açãoé,x,cessária .çm, tçm gurõis" (425e). Em que sua república ideal era impossível de ser posta em prática). Ao contrário, sua
vez de ser uma ordenação jurídica ou um código de leis, a educação dos Guardiães última obra, Ajeís, parece propor um meio-termo intelectual com a pureza de seu
confere força estrutural à república, e eles não se vêem limitados por uma Consti- idealismo, que se poderia interpretar coiç uma .sugestão prática sobre a maneira
tuição, ou por leis, em suas relações com as outras classes que constituem o objeto de se criar, com êxito, uma verdadeira sociedade. Como afirma Saunders (1970: 29),
de seu domínio. Para a sensibilidade moderna, a ordem social é envolta em uma os princípios básic dessa nova utopia podem ser assim resumidos:
ideologia total de classe e posição social, refletindo uma suposta ordem natural; em
última instância, mesmo os governantes passam a crer no mito de sua origem e de P (a) certos critérios morais absolutos existem;
sua formação superior. Desse modo, a segurana desse "Estado ideal" funda-se, na
verdade, sobre a predisposição das .essoas em acredit.,it (b) por mais imperfeitos que sejam, tais critérios podem ser incorporados a um có-
digo jurídico;
(c) por seu desconhecimento da filosofia, a maior parte dos habitantes de um Esta-
A ABORDAGEM MAIS PRAGMÁTICA DE AS LEIS do nunca deve pretender agir por iniciativa própria para modificar as idéias mo-
Se fôssemos considerar um ditador que é jovem, moderado, rápido no aprender, rais ou o código jurídico que as reflete; em vez disso, tais pessoas devem viver
com boa memória, nobre e corajoso ( ... ) e que, nesse particular, tivesse sorte também, em total eincondiçjpq1,q incia às regra. eaos preceitos imutáveis que
ele deveria ser contemporâneo de um eminente legislador e ter a felicidade de vir a co- r'ioupgla
nhecê-lo. Satisfeitas essas condições, Deus terá feito quase tudo que geralmente faz
quando deseja tratar um Estado de modo particularmente favorável (Platão, resumo de De novo, Platão está pensando emum Estado pequeno e dotado 1. de recursos
um diálogo de As léis). materiais - um Estado em que não existem grandes diferenças de riqueza ou sta-
tus. Quando das Ià'fiütciiri vez, as leis podért precisar de modificações à luz
A República de Platão é comumente apresentada como se contivesse tudo que da experiência, mas logo irão cristalizar-se em uma forma praticamente imutável.
se precisa conhecer sobre esse autor, uma vez que representa suas mais puras afir- Platão atribui a um Conselho Noturno a tarefa de supervisionar os estudos sobre o
r
............. ' pfl •7) funcionamento do sistema jurídico e de sugerir algumas mudarças. A obediência
-tl J7tl racional, e não o medo das sanções, é o método mais eficiente para se obter obe-
31. Em seu livro Condttzons of Lsberty: Ciml Society anás Rivais; ErnsL Geliner (1991: 31-2) argumenta,
falando em termosgerais, que as sociedades humanas mantêm a ordem por meio da coerção e da supersti- diêficia razão pel i qil cada arhQ lei deve contei um preâmbulo para explicar
Iluminismo tentou substituir essa base portrT ëicieadetivessë poimento a verda- a racionalidade desta e, espera-se, mar redundante o elemento repressor do di-
de e o consenso. Para Geliner, reito p sitivo. E melhor que uma pessoa se abstenha de cometer crimes, ou adote
(...) há muito boas razões pela quais somente a coerção pode formar a base de qualquer ordem social. Qualquer sis- um certo modo de agir, não por medo das conseqüências de seus atos, mas por es-
tema em operaião deve ter alternativas possíveis, tanto da organização em si quanto da distribuição dos cargos nessa
organização estável. Rara uma parte muito significativa da população essas alternativas pareceriam sempre preferíveis,
Ii ar convencida de sua legitimidade. ;_ c49LftO j Jk%d?
df
e não se pode pressupor que todas essas pessoas sejam tolas. É preciso pressupor, então, que elas tentariam pôr em
exeCUção a alternativa mais favorável (a elas), a menos que se vissem coibidas pelo medo Infelizmente, para mim, o
argumento é irrefutável: as condições bastante especiais que-podem induzir as pessoas a aceita a ordem social, inchi- REFLEXÕES FINAIS SOBRE O CONCEITUALISMO DE PLATÃO: ELE
sive sem medo, voluntariamente, são de fato as precondições da sociedade civil, mas estas não surgem com facilidade OFERECE IDEAIS DE REALIDADE OU CRIAÇÕES DA IMAGINAÇÃO?
ou freqüência. A maioria só pode ter interesse em conformar-sé, inclusive sem intimidação, em condições de desen-
volvimento geral em que .a vida social se caracterize muito mais por ganhos do que por perdas.
A razão pela qual a sociedade deve bãsear-se na falsidade é igualmente óbvia. A verdade independe da ordem Para Karl Popper, Platão é perigoso por apresentar o cosmo como se existisse um
social, não está a serviço de ninguém e, quando não obstruída, terminará por destruir o respeito por qualquer estru- Uomínio das essências puras ou de certezas ontológicas que as elites podem vir a co-
tura de autoridade Só as ideias pie selecionadas ou pré -inventadas, e em seguida congeladas pelo ritual e pela san
tiflcaosao passivâ siirma estriífiis i oT(,rnP jâdal espeufira O liste qstioivergp irá destrui1a.Além nhecer. O direito natural seria, então, a obediência do homem às leis criadas de acor-
do mais s teorias, como os filêspfosgostgm de nos lembrar, são subdeterminadas pelos fatos. Em outras palavras, por dcom pjqcimento. A sociedade justa é aquela que seria governada por tal
razão não irá e não poderá engendrar aquele consenso que está na base da ordem social. As circunstâncias de conhecimento, motivo pêlo qual a pólis se tomaria sóbria e racional. Na pólis devi-
um caso, ainda que não ambíguas (o que raramente acontece) não vão engendrar uma imagem comum da situação,
muito menos de objetivos comuns damente organizaçLqjodoijqçm encontraria a felicidade nod TiàU
48 Filosofia do direito
Origens 49
tarefas naturais. O governante retorna de seu encontro com a verdade parpmi-
mas operam com base na classificação deurn material fornecido por técnicas deob-
nar o caos lTfic6da pólis e criar o Estado ju.'ço. O governante tem a garantia de
servaôÇempins6Yvaganente fundamentadas em estudos biológicos. Aristóteles
exercer legitimamenteiï poder não por meio de uma legitimidade política - por
exemplo, o consenso democrático —I mas através de seu entendimento da nature- eqtie piocaremos a essencia das coisa mas que, ao fazê-lo,não postulemos
za matemática da ontologia do cosmo e de sua concepção dessa ontologia. Popper que ti dõ1uretlexo de alguma idéia ou essência pura; ao contrário, devemos ten-
vê em Platão um homem de gênio cuja imaginação política e juriprudencial foi ins- tar ãratureza essencial das coisas do modo como operam nos i
pirada pelo medo d6càosocial pehneCessidade de urna nlíEirais do mundo. Nossa busca da essência de urna coisa é uma busca da natureza
ideologial&'verdadIe"
que capaz de garantii o controle sol
cia Mas ha ocasiões em que também pode- dessa coisa: o que ela é, e como ela se ajusta ao quadro mais amplo do niodus ope-
11— randi do mundo. Ateoriaptônica de um outro mundo atemporalde essências -
mos encontrar Platão sugerindo que sua teoria das idéias é urna necessidade polí-
tica, e não epistemológica32. O trecho-chave ocorre quando Platão faz Sócrates con- rece postular que, de a1um modo, a " eclidade" concreta ds coisas existia fo,o
¶. cluir seu discurso sobre a possibilidade de urna pólis justa por meio de uma alusão tée das estruturas espdak iue damos por certos quando estahelecernq nos-
à sua impossibilidade: sas refações com is coisas. Para Anstoicles, porem, devemos voltar nossa atenção
para o modo como as coisas funcionam neste mundo a nossa volt Que d, ire trizes
Talvez seja um paradigma estabelecido no Céu para aquele que quer ver e, tendo dé€ihos usai? Devemospiocuiar pelas semelhanças suhj isentes no mm intento c
visto, funda urna pólis dentro de si próprio. Não faz diferença se a pólis existe em al- na transformação q,ue nos cercan. Nosso pressuposto hasico e ode qpe a mudanç
gum lugar, ou se irá existir um dia. Ele só praticará os atos peculiares a essa pólis, e ne- não éasual, que as coisas se desenvolvem de modo pm ;sivel1 e que estabelecemos
nhum outro (República, 592b2 ss.). distinç es entras muaanças que são naturais e aquelas que são produto do artifi-
cio humano. KiiTdafiças naturais são respostas aos modos de comportamento já
Sócrates parece argumentar que a pólis "verdadeira", de justiça absoluta, não incorporados que as entidades naturais apresentam; por exemplo, as plantas cres-
será nunca encontrada na história real, e que tampouco é possível encontrar a "ver- cem e adquirem formas específicas, com modos de "ser" que as distinguem de todas
dade" pura; o indivíduo racional não pode afirmar-se em plena posse da verdade, - as demais. Os objetos naturais mudam tendo em vista o seu "fim", e é por meio do
m as apenas deum"ideal" oçQ JtQ.A pessoa racional que procura a justiça deve entendimento desse processo que o "bem" dos objetos e ações se torna visível: "
voltar-se para o idealismo não por querer fugir ao compromisso político, mas por- fim para o qual cada ação é praticada é o bem, o. bem em cada caso particular, e em
que precisa de ideais - ou modelos matemáticos - a fim de orientar-se na contin- ro supremo na totalidade da natureza" (Metafísica, 982b). Qprocesso do-
gerabem
gênciado empírico, que sob outros aspectos mostra-se discrepante. Sua afirmação minantena vida é a mudança - o desenvolvirnento,enão algum modo mQtfo
da verdade do direito natural é um compromisso político com certos modos racio-
de ser. ConsÍdera-se, portanto, que os textos aristol.élicp sol?re a. vila humana tê..jn
nalmente percebidos de organizar e expressar o sentido da vida humana.
por base uma narrativa teleológica ou intencional da natureza humitna: tudo, na natu-
reza, teiiTim 'fim" especi .o€jçanca,ou uni i iunç io cumprir O cosmoeteíeo-
IV. A FILOSOFIA DO DIREITO DE ARISTÓTELES loo em sua estrutura".
Ua vez que a existêjtcja,çia1 e nural e não um compromisso forçado, esta
na natureza dos seres humanos viver gmsociedade. Aristóteles argumentava qu a
ARESTÓTELES E A ÉTICA DOS FINS NATURAIS sôéidde ea ciitemporânea era resultado de um processo gradual em que a na-
tureza do homem vinha se concretizando. Historicamente, diz ele, a cidade-Estado
Ainda que Aristóteles (384-212 a.C.) seja em geral apresentado como o criador é um resultado orgânico da união de várias cidadezinhas que desse modo chegaram
de uma abordagem mais en2pfrica, em contraste com ^o idealismo de Platão, ele,
também compartilha aença em que há urna certa estrutura ontológica abase da
natureza humana e dà.cósii. Os escrito de AristóféIes são extremamente lógicos, 33. Apesar de a mudança aparentemente incluir, para Aristóteles, o movimento, o crescimento, a deca-
dência, a geração e a corrupção, ele parece bem rng otimista do que Platio. Para Popper (1945,Vol. II: 5),
e1es permanece sob a influencia da Wia platnnin, das essências, ns agora 'i essência de algpm.i,a
i,ristote1es
32. Essa leitura nos levaria a argumentar que a imagem da justiça de Platão éem última instância p011- Loisa encontra se cio sua enpa final de desen\o \ n L) L uso em algum is ( unguol A teieologia e a
ticaenão metafísica. Isso contraria a tradição dominante de ler P1iito'di odquã6 afirmação de que a forma ou ai sencia de qua/quer cnsa em processo dedesenvoloincsfQ dentica a0j3(.gpOsito
filTiva concepção
.........................................................................
como essencialmente ontológica; como se estivesse condicionada a afirmação de que existe, de fato, um ayaoadafinqLeni4iic'çãa -ri' qgaie ela — seleengqJvef,..).. A forma ou a idéia que ainda é, com Platão,
•• do-
mimo atemporal de ideias ou essencias que constituem i verdade ultima da existencia. vista como o bem, situa-se no fim,..não no começo. •lsso.caracteriza, no caso de Aristóteles, a substituidø
pessimismo pelo otimismo".
50 Filosofia do direito Origens 51
a um estado de "auto-suficiência". A cidade-Estado não existe meramente para a t.ância para nossa vida prática, uma vez que o bem supremo estaria envolto em mis-
satisfação de necessidades materiais; ao contrário, procura satisfazer a necessidde tério: "Se o bem predicado de várias coisas em comum é na verdade uma unidade,
huaide um da u satisfatou i cisos nos r. e mpnhapor fazer ou alguma coisa dexistência indqpe Eo uta, fica claro que não pode ser
com _que esse modo de vida esteja em harmoffia com a natureza do homem: praticado ou alcançado pelo homem. Mas o bem que aqui procuramos é um beii
que esfõ cddx humano"(zbid, 1096b-1097 a) Devemos buscar as con-
(...) enquanto [a cidade-Estado] passa a existir no interesse da vida, ela existe para o bem cpes do beme do correto que nos forneçam orientação prática parap bem ,viver.
viver. Portanto, toda cidade-Estado existe por natureza. é o fim das outras associa- s princípios da ética podem ser descobertos através do estudo da natureza essen,'
ções, e a natureza é um fim uma vez que aquilo que toda coisa é quando seu desenvol- cial do homem alcançados através de seu
vimento está completo é por nós referido como a natureza de cada coisa, por exemplo a Aristóteles adverte que o nível de precisão não é exato. Contudo, não devemos infe-
de um homem, um cavalo, uma farnilia. Uma vez mais, o objetivo para o qual uma coisa ir, com base na variação e no erro inerentes à ética, que as idéias sobre certo e er-
existe, seu fim, é seu bem supremo; ea auto-suficiência é um •m, e um 'em supremo.
A partir de õ1&rfaEféca dirá que e cidadé:Eta.õ5ii desenvo1vimeto rado sejam puramente convencionais; Aristóteles está convencido de que eles exis-
nadiale q ue o hdrnem e por nature7a um sei inclinado a um e'eçtencu cívica fpolz- t em "na natureza das coisas".
tF6nzoon) (Aristóteles, Política, 1.1). .
Como podemos saber q,uai pçJj pr.a.o hpmeru? Precisamos refletir so-
bre o rodo comd a ta humana é vivida, e chegar a entender o modo como preci-
O desenvolvimento ocorre através da dialética da potencialidade e da realização. samos viver para podermos descobrir quais são nossos objetivos humanos. Podem os
Tudo, no cosmo; tem o poder de tornar- jiiiídïjiie sua forma estabeleceu como )disthiguir entre fins instrumentais (atos praticados como meios para outros fhs1e
seu fim. O fim de uma bolota de carvalho, por exemplo, é transformar-se em um fins intrinsecos (atos praticados em seu propno interesse) Vejamos o caso da guerra,
carvalho. Pdr ora, sua realidade fenomenal é uma bolota; sua potencialidade é um car- em que diferentes i5àii e atividades estão conjuntamente envolvidas em ui pro-
valho. A2assagem dq potencialidade para realização urna lei fundamental dA na~ jeto de extrema abrangência. Os carpinteiros constroem barracas e, assim que as con-
tureza. Para a bolota transformar-se em carvalho, é preciso que existam as condições cluem, já desempenharam sua função de carpinteiros. As barracas também desem-
penham sua função ao oferecerem um abrigo seguro aos combatentes. Os fins aqui
ideais; da mesma maneira, as condições ideais devem existir para que o menino se
alcançados, tanto pelos carpinteiros quanto pela construção, não são fins em si mes-
transforme em homem. O processo é evolucionário e se dá a partir da matéria na-
mos; são simplesmente instrumentais, meios para se oferecer moradia aos soldados
tural básica da entidade; o menino deve existir e ter uma certa natureza para que até eles passarem para a etapa seguinte de sua ação. Da mesma maneira, o constru-
possa transformar-se em homem. Todo ser vivo tem uma capacidade diferente de tor de navios desempenha sua função quando o navio está concluído e é bem-suce-
atividade e organizaçãp,.e há elementos diferentes com os quais os co 'os são cons
dido- em seu lançamento, e aqui novamente esse fim é, por sua vez, o meio para se
tituídos ou orgeiifzadqs: Aristóteles chamou esses modos diferentes de organização transportar os soldados para o campo de batalha. O médico desempenha sua função
de um corpo de almas, e estabeleceu uma hierarquia de fins. A alma vegetativa tem na medida em que mantém os soldados em bom estado de saúde, e nesse caso o
apenas o estado de existir; a alma sensível tanto existe quanto sente, e a alma ra- "fim" da saúde torna-se um "meio" para a eficácia dos combates. O oficial tem por
cional combina as faculdades da existência, do sentir e do pensar. A alma racional objetivo a vitória na batalha, mas a vitória é o meio para a
tem a capacidade de deliberar ela busca a verdade na natureza das coisas, e des-
-
de ser às vezes equivocadajqertç vista.çomo .fim último da guerra, é também o
cobre a.,princípios subjacentes ao comportamento humano. meio para a criação das condições na quais os homens, como homens, possam de-
Etica a Nicô começa com a pissa de que toda arte, toda investigação sdffiêhhãr su -ifunço enquanto honens Quando descobrimosoque os homens al-
, da riria forma, toda ação e busca ten6FTínàIidadé àrúm beni Portanto, a mejam, não como carpinteiros, inédicos ou generais, mas como homens homens
-
fiiésè l6capa a étic a qüe b cõiriportarnento huma- e termos gerais chegaremos então à. ação pela aão,paraa qual toda e alqlleiv
-,
no aspira?" Enquanto Platão parecia aTrgurentar que o ]ionïem aspira e urrf fihe- outra atividade é somente um meio, e esse, diz Aristóteles, "deve ser o heni do ho-
ciffiento da ideia do bem (esse principosupremo do briu er a separado do mundo mem". O bem do homem é uma coisa que existe indep .ntemente dajifeLen-
da experiência e dos homens individualmente considerados e iJose chegapor te t foxtas quai ele se engaj. Uma pessoa pode ser boa em sua profissão sem
meio daascensao da mente, quea do mundo visível pala o mundo intff, pa ser um bom homem, e vice-versa. Estão presentes diferentes níveis de existência e
Aristóteles o princ~fpio .do bem edo correto era inerente a cada homem: "O bem não fippiid iie, Para descobrir o bem ao qual o homem deve aspirar precisamos
éumterrnsigeral que corresponde a uma única idéia" (Ética a Nicômaco, 1096b). descobrir a função distintiva da natureza humana o homem bom aquele que
-
Aristóteles argumenta que mesmo que Platão estivesse certo, seria de pouca impor-( desempenha sua função como homem.
52 %RIPSofla dodir% 53
tM nt a1
Como todas as partes do corpo humano têm funções, podemos procurar a fun- a Lo, afirma Aristóteles, experimentamos 99virUdEn-
ção geral das espécies por meio de perguntas como "qual é a função do homem?", 1 e "a felicidade é um movimento da alma no sentido da excelência ou d virtude".
"qual o modo específico de atividade do homem"? A resposta deve proceder de aná- De imediato, poréni, isso parece estranho. Afinal, o mundo empírico está cfieio
lises empiricamente fundamentadas da natureza humana e das necessidades da vida dc pessoas que sem dúvida alguma não agem virtuosamente, mas que parecem feli-
social. A resposta não pode ser simplesmente a vida, pois esta é obviamente compar- tes; criminosos que não são presos, políticos que mentem e trapaceiam para obter
tilhada com todas as formas vivas de existência, inclusive com os vegetais. Tampou- poder e não largá-lo. Por outro lado, o homem virtuoso muitas vezes parecerqfim-
co é a vida da sensação, uma vez que o que aí se exprime é o tão-somente animal. demente infeliz. Como podemos,mgr111— a fé no conceito da vida virti....osi?
Em vez disso,•para o homem o fim encontra-se numa vida ativa q1e envolva a refle- Anstoteles faz uma e,tfelicid ide verdadeira . meio piaiciAs ten-
xããaáo iacionaj O'n__4ÍMLiaijo jdade Lições do mundo nos instigam com suas pamessus de prazeres, mas tais promessas
a virtud"
o m passam de ilusões - há uma felicidade possi e1 i ei! e geiiujna, se perseginrm,ps
• O aspecto mais importante da pessoa é a alma humana que tem duas partes, \fffide. ão devemos nos esquecer de nosso eu dividido - somos a6 mesmo tem-
a irracional e racional. A irracional por sua vê aIrd Tdüssubpartes: a o racionais e cheios de apetites empíricos pelo prazer físico e psicológico. Embora
vegetativa e a têejoã ou / apetente" Em geral os desejos e apetites agem em devêssemos seguir a regra geral da moralidade, isto é, "agir de acordo com a estrita
oposição ao "principio racional r e opondo-se a ele" A moralidade e a ,vão - e desse modo levai aparte racional d'i uma a controlar u parte iria moa! -'
trefa contínue de mediar oconflito entre os elementos racionájs rac1onajs dos nOSSOS apetites e desejos S5° estimulados e incitados pela enoi me suceesdo de
seres hiiiiiano,. - c oisas trínsecas ao eu, como os objetos e as pesoa.s3'. Nossas paixões, nossa
A compreensão e a ação orientadora é uma responsabilidade central para a pacidade de amor e odio, atração e repulsão, criação e destruição, podem rapidamen-
moralidade. Nada pode ser chamado de bom a menos que esteja funcionando; é te tomar conta de nós e levar-nos em uma multiplicidade de direções. Em si mes-
preciso participar de um jogo para concorrer a um prêmio; qhomem bom vive uma nas, não podem oferecer nenhum princípio fundamental ou medida de seleção. O
vicia virtuosa. que uma pessoa deveria desejar, e quanto? Em quais circunstâncias? Como os seres
1
hunânos devem relacionar-se com as coisas materiais com a riqueza, a honia es
1
outras pessoa? Não temos nenhuma tendência automática a agir da maneira corre-
A FELICIDADE COMO F4 ÚLTIMO DAVIDA HUMANA
i 9 ta neses quesitos; "nenhuma das virtudes morais manifesta-se em nós por nature-
Wfl ea; pois nada que existe por natureza pode formar um hábito contrário a sua na-
A vida humana não é um fenômeno estático, mas sim um fenômeno atiyo -
tureza". Aética davirtude exige que desenvolvamos hábitos; hábitos de bempenr,
desde o momento em que nasce, a pessoa luta por tornar-se humana, para viver uma co adequad am ente. O homem deve ser treinado
vida plena. Comopodemos viver,bema iToda ação humana deve almejar seu , de saber scolher
ofiado paraasociedade,epara tanto é necessáiio. inculcar-lhe ayi.tu
próprio fim, mas poderemos afirmar o que isso significa através da observação em- Uma vez que noss'jaixões nos tornam capazes de uma multiplicidade de
pírica? Por toda parte vemos os homens à procura do prazer, da riqueza e da honra; ações, da abstinência ao excesso, precisamos descobrir o significado preciso do ex-
será que a vida humana é feun i.so7 Arist teles diz que não Se iiIâo, cesso ou da falta e, desse modo, chegar ao conhecimento do meio-termo apropria-
esses, objetivos tem vaIor,pr
, outro nenhum deles têm as qualidades ultimTTito-
suficientes -'aquilo que e sempre desejavel em si mesmo e nunca ep niFu- do Anstoteles aplica um sistema d,ualistde cxUemoS11 por meio do qu i i podm eos
trabalhar nossos sentientos
m empiucos Compreendeos que as \ ecs scntim9S
coisa qualquer" -' qualidades alcanQaveis pela lazão que dela fanam o verdadeiro ápfãz e dor,e que 'is senti-
eiõs de medo Lonlianca luxuua nia,
fim da ação humana A felicidade e o fim que, por si so, satisfaz todas as exigências inõ modo radica' ouseja, excessivimente ou com pouca intsidadeen . c cri eaa
do fim último da ação humana34; na verdade, só optamos pelo prazer, pela riqueza e ro que nossos sentimentos eram inadequados. \Tivcnciaresses em
caso ente
pela honra porque pensamos que "através de sua instrumentalidade seremos felizes". medida certa e nos momentos certos, e dii e ionu 1 is eoi retamente, i teve
A felicidade é outra palavra, ou outro nome para o bem dos seres humanos uma vez
que, J enciá las como deveriamos, significa \'ivenciai o meio termo. Chegar a esse estado
emlb doBèm,fc!iu u
felicidade e a conetizaçao de nossa fuieão disbnti De de Pquihhrio equivale a viv€ nevo i virtude. De novo, o vicio e o extremo, o excesso
34. "A felicidade, acima de tudo, parece ser absolutamente conclusiva nesse sentido, uma vez que sem- 35. O amor e o ódio, ou as "paixões" irascíveis ou concupiscentes fornecem as duas maneiras básicas pe-
pre a procuramos por si mesma, e nunca corno um meio para se chegar a outra coisa qualquer" (Ética a Nicâ- 1 is a parte da alma que desperta o apetite reage a esses fatores externos. A paixão concupiscente leva al-
inaco, 1097b),
guém a desejar coisas e pessoas, enquanto a paixão irascível leva alguém.a evitá-las ou destruí-Ias.
54 Filosofia do direito Origens 55
ou a imperfeição, e a rtude èomeio-termã É através do poder racional da alma que A SITUAÇÃO DA ESCOLHA HUMANA
as paixões são controladas e as ações jgiálas. A itude da cora:e por exep1o,
é o meio-termo entre dois extremos, a saber, avardia
.çp 1. (carência ou falta) e a Temos dois tipos de raciocínio: o teórico (que nos dá o conhecimento de prin~.
_____ ou a cfiançaiffdcià (descomedimento ou excesso) A virtude e pois rípios estabelecidos, ou do saber filosófico) e o prático (que fornece um guia racional
um ésta. ëiT ïnã'6iriffica ue exista alguma fórmula simples à qual para os atos de uma pessoa nas circunstâncias particulares em que elas se encon-
devamos sempre aderir; o que ocorre, na verdade, é que somos instados a seguir o tram), ou a sabedoria prática. O elemento racional permite que o homem desenvôl-
"caminho certo" da ação: "( ... ) Em cada segmento da conduta o que deve ser louva- va a capacidade moral, uma vez que, embora ele tenha uma capacidade natural para
do é o temperamento médio, mas às vezes pendemos para o lado do excesso e outras o comportamento correto, não age acertadamente por natureza: é necessário que a
vezes para o da carência, uma vez que esta é a maneira mais fácil de encontrar o rczão possa enfrentar com êxito o número infinito de posibilidades que a vida nos
meio-termo e o caminho certo"(ibid., 1109). presenta. Não estamp.tedestinados, por alguma força inevitável, àprática do bem; /
Ios....ações devem ser o resultado de uma "escolha delibeiiada,,,en3. harmo- iia o homem, o bem e urna potencialidade, mas iião ira concretizar-se sem o cn-
nia com o meio-termo relativo, determinada pela razão e consoante com o que se- JFso denossa p6 1ihucãoedeno. sconseqpentr opção de pratica-lo E
na detLlmlnado pelo hoiem dotado de sabedorja pratica" (ibid, 1107a) A virtijd o contráiio de Platão e Sócrates, que pareciam inferir que o homem sempre irá pra-
significa agir d acordo com o meio-termo umi dispoio estável de caráter", i car o bem uma vez que o tenha conhecido, Aristóteles não acreditava que esse co-
5.nas o'" ' ter rno não e a mesma coisa para todas as pessoas, ^,nem—exisie um i)liccimento tornava redundante a escolha deliberada. Só • odemos • raticar uma
jieio-termo para t6a6s os atos Cada meio-teimo e relativo a cada pessoa uma ição moral devido àca,pacidade de escolher se fizéssemos as coisas simplesmente
-
vez que as circunstancias sãó igualmente variáveis. No caso da alimentação, o meio- or instinto, por exemplo, n6 hfiiâríamos de ações morais, pois a escolha mo-
termo será sem dúvida dif erente parajum.,ajtaadu1toeun3agarotjaba. Mas para ,i I associa o desejo de fazer a coisa certa ao raciocínio sobre tal fim. A escolha moral
c'dàpessoa existe, não obstante, um meio-termo relativo ou proporcional, a tem- precisada razão.. , )t.art'c/' .....
perança, tTrdIdô cláãriente quais extrerno a sab, a gala
-
A moral humana, portanto, é essencialmente ligada à estrutura das escolhas
vícios para cada um. Além disso, para alguns atos não florais, e isso,,por sua vez, implica responsabi isade humariSe ~iamos6iir ou
,nIermo algum; sua própria natureza já im1iEiá' lfdade'Tno iiusar, lo'iïiiTTa j'E1fii 'ierdadeiramente ca-
a jii õ"ãaUffrio, o roubo e o assassinato São coisas mas em si mes- )az ele fazer uma escolha. Aristóteles afirmava que um ato pelo qual uma pessoa
mas, e não por seus excessos ou carências. Quem as pratica está sempre incorren- dia ser considerada responsável deve ser um ato voluntário. Uma escolha genuí-
do em erro. ipçpppreeri,dç uma ação voluntária. Mas nem todas as nossas ações são voluntá-
De que rn eigmat.a.rliberaLmç.çjrno (Popper, 1945, vol. II; Kelsen, 1957, his, Um ato involuntário é aquele pelo qual uma pessoa não é responsável porque
cap. 4)TpTlem os ir a convenção social identificação do qu..,ecesso ecarên- 1) é praticado por ignorância de circunstâncias particulares, (2). resulta de uma
cia? Não flodo esse' sistema simplesmente uma forma de adaptação às conven- impulsão externa ou (3) é praticado de modo que evite um mal maior. Os atos vo-
çíiêi da sociedade?` Essa é uma crítica que, em grande parte, não há como evitar; h icitários são aqueles pelos quais uma pessoa é responsávelporque nenhuma dessas
a preocupação de Aristóteles, contudo, é com a ética de uma situação ou, em outra 1 ('s circunstâncias atenuantes predomina.
palavras, com o que veio a ser chamado de "racionalidade prática". Toda escol 11, Em geral, a virtude é o cumprimento da função característica do homem e a vi-
existe dentro de alguma forma de oLde. odal..estabelecida: enquanto o contcxk vi ncia que ele tem de seus sentimentos e emoções como o meio-termo entre extre-
para Aoteleseo de uma ordem muito mais fechada do que dcjueadesejadap
fios. Cada virtude éproduto do controle racional das paixões. Levar uma vida -
liberal, ele ãfibui uii9so muito maior sobre a escolha autêntica Nesse sentido,
cosa não significa negar ou rejeitar nenhuma das aptidões naturais do homem mas
os tefds d'e Ah'Ïo'ie1es são atemporais, serçi.pre existimos em um coiioi
'o mante-las sob controle O homem moral vie a vida em sua plenitude, empre-
o pèsd da escolha autêntica incide inevitavelmente sobre nos
y i i~dõ todas as suas aptidões físicas e mentais. Se, por um lado, o homem pode
ii lotar virtudes intelectuais como a sabedoria e a compreensão filosófica através do
36. Para Hans Kelsen (1957: 125), se por um lado a ética de Aristóteles "pretende instituir, de modo .111 (1 1 Sino e da aprendizagem, por outro, a virtude moral .urgç como resultado do há-
toritário, o valor moral, por outro ela deixa a solução de seu próprio problema a uma outra autoridade: a
Ii :o, de oçl,çapalavra ética (ethike), "formada por uma ligeira variação da palavra
terminação do que configura um mal ou uma falta grave e, conseqüentemente, também a determinaçii
que constitui um bem ou uma virtude. Ao pressupor (...) a ordem social estabelecida, a ética de Aristóteles jII. iJ!incdábitoY.Todas as virtudes morais têm de ser aprendidas e praticadas, e só se
tifica ( ... ) a ordem social estabelecida". Iii nam virtudesio daação, pois "tornamo-nos justos através da prática da
Origens 57
Filosofia do direito
li çi
noderados através da prática da moderação, corajosos através da demons- ferencial. Se as pessoas são iguais, devem ter partes iguais; se são desiguais, devem
ção coragem". As virtudes "cardeais" morais são a coragem, a moderação, a ter partes desiguais. Violar esse princípio equivale a ser injusto, mas quais serão os
a sabedoria. padrões e critérios que vão determinar aigualdade e a diférença? *
Tirar cof usõ. chegar a critérios de julgamento consensuais são, contudo,
questões problemáticas. Ainda que o padrão fosse a "contribuição para os (verda-
1 ISTIÇA COMO FUNÇÃO DO TAMANHO RELATIVO DO CORPÓ SOCIAL deiros) interesses da sociedade", tanto a natureza dos verdadeiros interesses da so-
ciedade quanto a natureza da contribuição são profundamente contestáveis: Aristó-
Considera-se que o termo "injusto" se aplica ao homem que infringe a lei e àque- teles sugere que, na prática, podemos resolver essa dificuldade através de processos
ic que toma mais do que lhe é devido, o homem ímprobo. Fica claro, então, que o res- de troca e de regras sociais dentro das quais posámos ca l culaic divise jusfas e
peitador da lei e o honesto serão ambos justos. "Justo", portanto, refere-se àquilo que Etica a ffcômaco, Arit6teles discute a tran-
respeita a lei, que é honesto ou eqüitativo, e "injusto" .é o ilegal, o desonesto e o par- sação; levando em conta a mecânica do dinheiro e da demanda). O sistema jurídico
cial (Aristóteles, Ética a Nicômaro, 1129a).
pode criar a estrutura normativa de tal processo.
&...... 1,1
Uma vez que confiemos em um processo de mercado aberto que funcione de
justiça e "a principal dentre as virtudes", mas e)astem dois sentidos de jus-
liça: um geral e um particular. maneira eqüitativa, o que trazem as pessoas para o processo de troca e negociação?
No sentido geral de justiça, o hornenge.íIenan.eira injusta quando infringe a Que recompensas os indivíduos merecem pelos papeis sociais que desempenham?
leL Será esse um sentido de infração puramente jurídicopositivo: um homem é Àhstôes sugere que o cuteriodo mente esta relacionado a concepção geral do
objetivo da sociedade 6u da cidade-Estado grega O filosofo critica a afirmação de
sempre injusto quando infringe qualquer lei validamente promulgada? Não. Jgi-
Platão de jiie todo Ërtãdo é criado para suprir as necessidades da vida humana, afir-
mas leis são mas, e não seria injusto infringi-las Embora Anstoteles acredite que a
Iëi seja um instrumento poreio do qual a cidade-Estado é direcionada para o bem mando, pelo contrário, que o objetivo fundamental éo de "alcançar o bem" (Política,
comum, ou através do qual uma classe dominante de alto nível dirige a cidade, pode Livro TV cap. IV, ss. 11 ss.). Segue-se daí. que ,ristóteles. ppe classificar a impor-
haver leis que, apesar de sanci.oIiad,go,.,curnpim...ua fialida,e. tância das profissões e dos tipos de trabalhadores de acordo com o modo como
Existem dois tipos particulares de justiça: a distributiva e acoflça. A justiça c5rfltibtIem paia tal objetivo O procedimento que subjaz a justiça social e, portanto,
cQrLetiva aquela "que provê um princípio corretivo nas transações privadas" (ibíd,, a correta.. descrição das diferenças e diferenciações qualitativas em termos do valor
1131a), sendo exercida pelo' jiííi piara 5r fim a disputas e punir infratores (Aristó- as diferentes partes do Estado, e ainda que este seja uma comunhão (ou confrater-
teles assinala que se trata de uma questão complexa. Faz, por exemplo, uma ditin- idade) unida por um objetivo comum e por uma ação comum, é formado por mem-
çao entre justiça formal e justiça substantiva. Uma multa de determinado valor por ros dessemelhantes, funções e políticas distintas e diferentes modalidades de vida
uma infração menor pode dar a impressão de ser justa quando igualmente aplica- padrões de excelência.
da a todos os infratores. Mas o homem rico será muito menos afetado por ela do Contudo, só é possível criar um sentido coerente de mérito social: se o Estado
que o homem pobre. A justiça distributiva é o direito a uma parte dos bens sociais 1 o se tornar demasiaao g TÃ d6iais, 'fdóiíhItidepenriên-
/ relativa afnção que uma pessoa exerce no corpo social Os analistas costumam re- 111 ãiãfá f3contexto de urna soçiedade relativamerrt.e estel
ferir-se a tal direito como princípio de igualdodc proporcional (e, no caso contrário, r livre éoveririar eer governado alternadamente (...), não estar sob as ordens
'rzncípio de desigualdade proporcional ima questão de preferir, subjetivamen- li quem quer que seja, em hipótese alguma, a não ser em um sistema de rotativi-
te, um homem a outro e, desse modo, recompensá-lo mais, mas sim de justificar as lide do poder, e isso somente na medida em que uma pessoa também esteja, por
preferências por meio de critérios identificáveis e consensualmente aceitos.As li / aia vez, sob seu próprio comando" Política, 13117b). Oomem livre parjçipa da
terentes funções do homem no corpo social justificam uma desigualdade natural ii cao política das leis,e parte da livre formacão do Estado O direito e um instnt
correspondem a natwe,a das coisas A estrutura da JutI -i distributiva e tal qqos iii'iíJd
a ordem, mas de uma ordem livre e natural: "que todos mandem em cada
que se sobressaem em suas funções— umecelente professor, por exemplo dev. ao e, cada um pot sua vez, mande cm todos" Assim, poderíamos dizei, o diicito e
Os menos merecedores devem ser o ultima analisi urna subsecqo da política c a filosofia jurídica urna suhscção dLi
enOs recompensados. Boa parte disso tudo parece não apresentar problemas; per i1 isoíigi potagqNa Polilica Alistote. es deixa claro que, uma vez que o direito e a or-
mite, talvez, urna tese da igualdade na medida em que todos são humanos, mas um1c lo: ch comunidade política,a justica e uma tuncão do Estado e a tarefa dqdijT-
tese da desigualdade na medida e üedirüfnapt4õs diferentes e reali, onsistc e1i detejmiiii qual na tu i c/ 1 da justiç a Portanto, a justiça deve ser
diferentes funções São essas aptidões e funções que deternqpa..disttibuição di ii:' parte da.função da política. A questão da justiça interpõe-se entre o legal e o
58 Filosofia do direito
político; não apenas traduz preocupações de duas esferas distintas, como também
associa fenômenos afins e interativos Qual e o fim da associçopo1itica' Criar con-
dições de paz e permitir o desenvolvimento humano. Se houvesse 6ide Capítulo 3
a1TáVô15jêtivo, a justiça - riciElTfido do direito e da estrutura de distribuição As leis da natureza, o poder do homem e de Deus:
assim possibilitada - seria redundante". a síntese da cristandade medieval
Aristóteles parecia acreditar que havia leis naturais que regiam a vida moral e
política. As leis (positivas) do Estado são, obviamente, uma questão de convenção
- são críadãé promulgadas jpor diferentes instituições civis -, além de serem mutá-
veis, enquanto as leis que existem por natureza não derivam da ação humana, mas Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra
são e têm T6à lidade do principio ao fim EÍexpressou haviam desaparecido, e o mar não mais existia. E eu, João, vi descer do céu, de junto
essa f ela por ï duma iiãTogia com o fogo, que invariavelmente queima do de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, como uma noiva adornada para o esposo.
mesmo jeito na Grécia e na Pérsia, enquanto as idéias humanas de justiça e outras E, vinda do céu, ouvi uma voz poderosa que dizia: "Eis aqui o tabernáculo de Deus
convenções variam conforme as épocas e os lugares. Por trás do fogo, que queima com os homens. Habitará com eles e serão o seu povo, e Deus mesmo estará com eles.
demodouniforme por toda parte, podem- s.e,.enco-ntrar er çjdQs.seme1hantes às E Deus enxugará toda lágrima de seus olhos, e não haverá morte, nem sofrimento,
leis que têm a ver com o processo de combustão,_e que chegamos açornpjeender nem grito, nem dor, pois as coisas passadas chegaram ao fim." E o que está assenta-
através do OLCS5O de raciocinar sobre aquilo que oh*i amos Aristóteles parece do no trono disse: "Eis que eu renovo todas as coisas." E também disse: "Escreve, pois
- argumentai que uma lei moral deve L n sua natureza uanto uma estas palavras são fiéis e verdadeiras." E novamente me disse: "Está pronto. Eu sou o
lei científica, e que ambas podem ser reveladas através de um processo de razão e Alfa e o Omega, o começo e o fim. Serei pródigo e generoso com o que quer beber da
observacão esa ideia básica, interpretada de maneiras diversas, viria a ter um pro- fonte da água da vida. Aquele que triunfar herdará todas as coisas; e eu serei seu Deus,
findo efeito e ele será meu filho" [Apocalipse 21: 1-7, AV (escrito por um ancião à beira da morte
os que
na Ilha de Patmos)].
iam essa primitiva abord agem rírica, porém, havia um ponto a considerar:
se, por um lado, não era de modo algum problemático concordar que o mundo de- Enquanto o padre for considerado como um tipo superior de homem - esse ne-
via ser um lugar de análise racional, por outro estar de acordo sobre o significado do gador, caluniador e envenenador da vida por profissão -, não haverá resposta para a
mundo era uma questão totalmente diversa. pergunta: o que é a verdade? A verdade já está de ponta-cabeça quando se aceita o de-
fensor intencional do nada e da negação como representante da "verdade" (Friedrich
Nietzsche, The AntiChrist [O Anticristo] in The Portable Níetzsche: 575).
O homem é produto de causas que não tinham previsão alguma dos fins que es-
tavam atingindo, a saber: que sua origem, seus temores e suas esperanças, seus amores
e suas crenças,.nada mais são que o resultado de uma fortuita disposição dos átomos;
que nenhuma chama, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de idéias e sentimen-
tos serão capazes de preservar a vida de um indivíduo para além do túmulo; que todo
37. Muitos estudiosos (por exemplo Popper, 1945) encontraram, em Platão e Aristóteles, as raízes da o afã de todas as épocas, toda devoção e inspiração, todo resplendor do gênio huma-
idéia (de grande expressão na teoria marxista) de que urna ordem social verdadeira estaria "para além da jus- no, estão fadados à extinção junto com a morte colossal do sistema solar, e que todo o
tiça", onde não haveria necessidade do direito ria sociabilidade espontânea ou na interação humana devida- templo das realizações humanas será inevitavelmente soterrado junto com os escom-
mente organizada. "A amizade parece ser o vínculo que mantém o Estado unido, e os legisladores parecem bros de um universo em ruínas - todas essas coisas, a despeito de não serem absoluta-
atribuir-lhe um valor maior do que aquele que atribuem à justiça, uma vez que a promoção da harmonia, que
mente inquestionáveis, são todavia quase tão certas que nenhum filósofo que as rejeite
parece análoga à felicidade, constitui seu objetivo principal; por outro lado a dissensão, que equivale à hosti-
lidade, é o que eles mais desejam banir. E, se os homens forem amigos, a justiça não se fará necessária entre
pode ter pretensões à permanência. Doravante, a morada da alma só poderá ser edifi-
eles; considerando-se que não basta ser justo, um sentimento de amizade é também necessário" (Ética aNi- cada em segurança no contexto dessas verdades, nas sólidas bases do irredutível de-
câmaco, 1155a). sespero (Bertrand Russeil, Mysticism and Logic, 1929: 47).
60 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder do homem e de Deus 61
A ASCENSÃO DO UNIVERSALISMO COM O DECLÍNIO par ao pavor que ela ins.ira m vez de exigir que os eventos do mundo ocorram
DAS CIDADES-ESTADO GREGAS 'egundo nossos s esigmos, e sofrer uma frustração paralisante sempre que os fatos
não correspondam aos nossos desejos, convém aceitá-los do modo como se apre-
Sócrates, Platão e Aristóteles habitavam um espaço socia es.ecíflco Seu mun- sentam e desejar, positivamente que operem conforme o exigem seus processos
do não iria perdurar. Por algum tempo, seu fim parecia assegurado. as as conquis- naturais; a paz de espírito e uma serena felicidade podem ser obtidas mediante a
tas de Alexandre, o Grande - que criou um império gre 0 -, destruíram as fre i eiras aceitação do mundo como ele é. -
que conferiam intensidade à racionalidade: e.- ai. A cidade-Estado propiciou ape- Õ estoicismo é uma abordagem da vida; implica o controle das emoções e a
iíf'Tieioiaien e emporario para o nascimento da filosofia ocidental; seu de- aceitação tanto das forças da vida quanto do destino em um cosmo que, quanto ao
saparecimento criou tanto um vazio quanto uma oportunidade. Para colocar as coi- mais, é caótico e imprevisível. E não se trata, aqui, de uma aceitação irracional. Por
sas em termos simples, enquanto a filosofia grega clássica era, inevitavelmente, a sob a aparência caótica da vida, os estóicos ar: mentavam c ue o universo era um
filosofia de um cenário, de uma fronteira e de sua transgressão - da caverna e de ordenamento sistemático no uual o homem e o cosmo se comportavam se: rido
sua transcendência—, a filosofia subseqüente teve de lidar com a universalidade. De- pFincípios finalísticos específicos. A razão e a lei operavam em toda a natureza. Os es-
pois de Alexandre, falar sobre o homem como um animal poli—tico não podia mais tóicos reinterpretaram as idéias pagãs sobre a prevalência de muitos deuses que, por
significar "em suas relações com a pólis", mas sim como um indivíduo. Em contra- trás dos eventos e acontecimentos, atuavam no sentido de influenciá-los (a perda das
partida, falar sobre um indivíduo implicava afirmar que o homem era também uni- colheitas, as intempéries, os malogros dos planos, etc.), colocando em seu lugar a
versal; o que quer que dissesse respeito ao indivíduo devia estar associado idéia de uma substância racional de absoluta abrangência que impregnava todos os
nidade enquanto espécie geral. Se,yor um lado, as ao tidões e os deveres do homem fenômenos universais. A palavra Deus era usada • ara conceitualizar uma forma uni-
grego remetiam a sua condição de membro da ordem social, da poli_por uitroes- ficada de razão que controla e ordena a estrutura da natureza, determinando assim
tava preparado o terreno para o surgimento de uma nova entidade social - a do ho-
mem enquanto homem. o curso dos eventos no mundo.
nhecermos o pai e1 que nos cabe desempenhar e ao representarmos esse papel da A ABORDAGEM DO ESTADISTA ROMANO
melho '. H1,11)Cira possível. Enquanto alguns de iiõs têm pequenos papéis, a outros CÍCERO (DE ARPINO, 106-43 A.C.)
(Ifl s mais importantes, mas todos temos um papel a desempenhar. Não pode-
mo c colar as coisas que não, têm rela :. com nosso ia. el, nem .odemos alte- O orador e estadista romano Cícero harmonizaria a idéia estóica de,,uma-lei.na .
raT eios Deve is desenvolver uma a. atia • ositiva, ou um senso de dis- tural universal a dirigir o curso da conduta humana com a atitude psicológica doçé-
tai ic. Ii mento, em relação a. uelas coisas sue se acham alem de nossa capacidade de tip. Cícero escreveu muitas obras filosóficas durante seus (não raros) períodos 'de
\ interferir, concentrando-nos em,nosso pró .rio desern.enhoe nas coisas que pode~ abandono forçado da vida pública. Insone crônico, costumava escrever à noite, com-
mos fazer ou influenciar'. Até certo ponto, podemos ser otimistas: afinal, nós&íemos binando as idéias dos estóicos com outras influências : -e:as. Acreditando que os
controlar nossas atitudes e indagar sobre a natureza do cosmo, mas não podemos in- pregos haviam lançado as estruturas fundamentais de todas as indagações filosófi-
fluenciar seus resultados. J1c.,j.jç,o'. ' vmicv- 'noÁg 5 cas, o impacto duradouro de Cícero está na clareza de seu texto e nas adaptações
que fez das idéias de outros filósofos. Em particular, acreditava a filosofia e a ré~
tórica eram inseparáveis, e culpava Sócrates • or tê-las sepado. Para Cícero, a mais
A RESPOSTA DOS CÉTICOS À IDÉIA DO CONHECIMENTO elevada realização humana estava, no uso efetivo do conhecimento na orientação
COMO GUIA DAS ATIVIDADES HUMANAS das atividades humanas. Ensuantoafilosofia e as outras disciplinas especializadas
oferecem conhecimento, a retórica torna-o eficiente. Uma sociedade livre.,,&ima,,re-
Os céticos (do grego skeptikoí, "inquiridor", "indagador") duvidavam de que ., pública constitucional onde a persuasão, e não coerção, é o instrumento do poder
as afirmações do conhecimento humano pudessem alguma vez oferecer a "ver- político. Contudo, isso não é fácil de alcançar, e o Estado precisa de grandes homens
dade" sobre a totalidade do cosmo. Platão e Aristóteles não haviam descoberto ue façam com que tal amálgama funcione. Para ser eficientes, os melhores ho-
a verdade sobre o mundo; tinham apenas oferecido diferentes concepções da mens precisam unir o conhecimento à eloqüência; uma educação liberal é um pré-
verdade. Os céticos sugeriam que a maioria dos que se perguntavam sobre a ver- requisito esseniaI. A éloquência -e á-Se-rTe-2à dos propóT os i ufrunain a doncep'ço
dade se tornava logo dogmatista, ou por proclamarem que haviam encontrado a ciceroniana estóica de um direito natural subjacente:
verdade, e que portanto não havia necessidade de novas indagações, oupor
anunciarem que a verdade não podia ser encontrada, o que significava que ,.não A verdadeira lei é a razão superior em conforrnidadecom a natureza, disseminada
fazia sentido envolver-se na indagação intelectual. Ambas as posturas negavam entre' todos os homens; constante e imutável, deve chamá-los a seus deveres através de
seus preceitos, e impedir que incorram em erro por meio de suas proibições; e não deve
a necessiddé'de dar continuidade ao processo. Ao contrário, os céticos afirma- nunca controlar ou proibir os homens virtuosos em vão, enquanto suas regras e restri-
vm que a tarefa não tinha fim. A verdade era o objetivo, mas ficava muito além ções fracassam entre os maus. Mutilar essa lei é ultrajante; emendá-la é ilícito, e revo-
do entendimento humano'.. gá-la é impossível; não podemos nos desobrigar dela, quer por ordem do Senado, quer
à, G_LijIdXXéto- de uma assembléia popular; não precisamos que nos seja esclarecida ou interpretada
por ninguém; tampouco será uma lei em Roma e uma lei diferente em Atenas, nem di-
2. Um aspecto problemático desse modo de pensar diz respeito à liberdade e ao determinismo. Se a
ferente amanhã do que e hojse a sem o e uma e a mes a ei, ete na e mutave umn-
natureza é fixa em suas estruturas, e se há o desenrolar dê um vasto drama, não serão fixas as partes? Por que
do toíos os povos e todas as épocas; e Deus, seu criador, expositor e sancionador, será,
preocupar-se? O resultado La não estará predeterminado? Por que dizer que uma pessoa é livre para decidir
sobre a qualidade de seu desempenho se ela não é igualmente livre para escolher, ou ao menos desenvolver,
por assim dizer, o único e universal regente e governante de todas as coisas; e aquele
o papel que lhe cabe? É inquestionável quea liberdade de escolher o tipo de desem.enho sue se tem não é que desobedecê-la, tendo em vistauecom seu ato terá voltado as costas para si pró-
radicalmente diversa da a rmacao se iaersaae para in uenciar o resultado? A distinção que os estóicos fa- prio e para 'a natureza mesma do homem, sofrerá a mais pesada das penas, ainda que
ziam - que éramos livres para escolher nossas atitudes e a qualidade de ribssb desempenho, euanto não evite os outros castigos que a lei considera justos para ,a sua conduta (De Republica,
éramos livres para influenc1. a -. -. - r outra coisa - insustentável. 3.22.33, citado em Kelly, 1992: 58-9).
3. Sem dúvida, os céticos levavam em conta resultados dfterentes. Alguns afirmavam que era impossí
vel haver um juízo conclusivo, e ue devíamos nos abster denegar ou afirmaro..qpquer que foohtu- Todos os homens são iguais serante essa lei eterna; não serante os artefatos ex-
do, sempre ha outra perspectiva. A resposta poderia ser a de que é preciso, simplesmente, ser muito cautelo-
so com o tipo de afirmações que se faz, bem como com o campo que cada tenores de nossas propriedades ou de nossistçâ.o sp,çl, mas sim na2osse da ra-
çoabrage. ãertente
dEFIcismo es a a e ecia uma •1 erença en re i a' ana ise da natureza, (o) a esfera dos sentimentos humanos, zão"Nascemos para a justiça, e só os maus hábitos e as falsas crenças nos impedem
(iii) as tradições dos costumes e leis e (iv) as artes. Em cada área existem certas coisas que devemos simples- de compreender a igualdade e a semelhança humanas subjacentes" (De Legi bus, 1. 10.
mente aceitar. 28-29). Contra Aristóteles, não somos equi .ados .ela natureza para diferentes tare-
64 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder do homem e de Deus 65
O resto do texto prossegue com o tema da comunidade estóica do mundo: quimedes, que era parente e amigo do rei Híeizon, escreveu-lhe que, com o uso
clqualquer força dada, seria possível mover alqüer peso dado; e, segundo nos dizem,
A mais tola das idéias é a crença em que tudo o que se encontra nos costumes éstimulado pelo poder de sua demonstração, declarou que, se houvesse outra Terra para
ou nas leis das nações é justo. Seria tal idéia verdadeira mesmo que essas leis tives- a qual ele pudesse deslocar-se, seria capaz de mover nossa própria Terra. Assombrado,
sem sido promulgadas por tiranos? ( ... ) [ou se uma lei propusesse] que um ditador E-Jíern implorou-lhe fue concretizasse sua sroposta e lhe mostrasse de sue modo um
pudesse condenar impunemente à morte qualquer cidadão que desejasse eliminar, grande peso _poderia ser movido por uma força menor. Arquimedes então dirigiu-se a
mesmo sem julgamento? lpjs a 'ustiça é uma só; une toda a sociedade humana e tem fim navio mercante de três mastros da esquadra real qúe, com enorme esforço, muitos
pçfundamento uma unica lejque e a razão egi ima ap icasa ao er e a proibi honiens haviam arrastado para a praia e depois de pôr a bordo muitos passageiros e a
ção (De L.eiibus. 1.15.42). carga habitual, sentou-se longe do navio e sem nenhum esforço, mas manipulando
66 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder do homem e de Deus .67
tranqüilamente um sistema de roldanas, trouxe-o até ele de maneira sujJome, E ainda assim, Arquimedes [depois de equipar Siracusa com máquinas de guerra]
como se deslizasse .elas à as. Impressionado e compreendendo o poder do engenho tinha um espírito tão elevado, uma alma tão profunda e tamanha capacidade científi-
de Arquimedes, o rei convenceu-o a preparar-lhe máquinas ofensivas e defensivas para ca que, apesar de suas invenções terem lhe granjeado nome e fama por sua sagacidade
serem usadas em todo tipo de guerra (Plutarco, Marcellus'Life [A vida de Marcelo], xiv, sobre-humana, ele não consentia em deixar para trás nenhum tratado sobre esse as-
7-9, tradução inclesa de Bernadotte Perrin, citado por Latour, 1993: 109). sunto. Na verdade, por considerar a obra de um engenheiro e toda arte que atende às
necessidades da vida como coisas ignóbeis e vulgares, ele só dedicava seus mais nobres
•
Através da invençãô da roldana, Arquimedes/muda a perepção e a realidade esforços aos estudos cujo fascínio e sutileza não são afetados 'por questões de necessi-
do que pode ser feito com os objetos físicos da natureza; também altera as relações dade. (Plutarco, Marcellus'Life, xvii, 4-5, citado por Latour, 1993: 110).
políticas ao oferecer ao rei um mecanismo capaz de tornar um homem fisicamente
Reduzir o caminho da reflexão intelectual à busca do conhecimento que permi-
mais forte do que uma multidão. Naquela época, o domínio dos reis era instáel - às
tia a apicação tecnolqgica e. uivale a resvalar .ara o stg,(ys daqueles que se ocupam
vezes, eles deenllfd6 mito da origem divina, outras vezes reinavam como porta-
das profissões comerciais inferiores ou se engajam na política vulgar, À o voltar as
vozes das elites - e carente de meios que lhes assegurassem um poder mais sólido. costas para essa tentaçao e permanecer fiel à busca do conhecimento ouro, Are ui-
O desenvolvimento técnico de Arquimedes muda a como osi ão das relações polí-
medes escapa para o mundo platônico se ora, da caverna, deixando abaixo osafa-
ticas, que agora também podser vistas corno uma questão çl capaçidadetécni-
c'ãem á ge zeres caóticos e im.uros los mortais Contudo, e se ninguém se engajasse nesse
triaJ'statísticâ,TIíeron tinha de lidar com forças sociais que, por moviménto para fora da caverna? E se nossa inteligência permanecesse dentro da
sua própria natureza, sobrepujavam-no infinitamente, o que o deixava sempre inse- caverna, e os homens vissem o mundo como uma mera coleção de entidades, a elas
guro, sempre diante da necessidade de fazer concessões. A.- ora • orém • arecia ps- aderindo um tanto fortuita ou sistematicamente? E se os homens só olhassem para
sível acrescentar a alavanca (do .oder) da tecnoio:a aos o:osde manobra política, a natureza como um lugar para se .ôrem .rática suas aptidões intelectuais e dês
é,10 rei torna-se assim mais forte do que a multidão. A tecnologia permitiu a constru-
cobrir os meios .ara se construirem novas tecnolo as de controle natural e sociil A
ção de novos mecanismos de guerràede defesa - Plutarco conta que, com o auxílio natureza não perderia sua "alteridade", e os homens não se assemelhariam a Deus?
dessa tecnologia, Híeron tornou seu Estado seguro contra ataques externos e, desse
modo, aumentou suas dimensões e riquezas. As conseqüências dessa mudança na
relação entre o ii. 1eçto humano e a natureza viriam a mostrar-se dramáticas --!é~ A RESPOSTA DE SANTO AGOSTINHO E O DESENVOLVIMENTO
mos, ai o .recursor do desenvolvimento dmo. ermdade4 Como relata Plutarco DE UM DIREITO NATURAL 1EOLÓGICO6
(mais ae dois séculos depois de Aristóteles), Híeron tinha boas razões para deslum-
brar-se com o poder da tecnologias. Há alguns indivíduos que, tendo abandonado a virtude e desconhecendo a natu-
reza de Deus e a majestade de Sua natureza eterna e imutável, imaginam estar enga-
Contudo, Plutarco não defende que se tome o caminho de um poder tecnológi-
co cada
'mior. na que ele rerãTe como pôde transformar com su-
cesso a força tísica em um fator proporcional à força política - tornando-se, portanto,
e(97Ct'.
da
6. SantoÀ 2stinho (354-430) é amplamente aceito como uma das, principais figuras intelectuais-
também seu servo —e.: a as à relação pro.orcional entre: ande e .esueno, entre o snsiçao do Classicismo para já Idade Media Nasceu na provincia africana da Numidia filho de pai pagão e
modelo reduzido e a a.licação em dimensões reais ele teme que tal poder possa des- nie fervorosamente cristã. Aos dezesseis anos, Santo'Agostinho começou a estudar retórica em Cartago, ci-
truir as qualidades humanas: dade famosa por sua licenciosidade. Rejeitou a fé e à- moral cristãs, tomando por amante uma mulher com
viveuyor dez anos, e com a qual teve um filho, até mudar para a Itália, onde tomou outra mulher ar
amante. Seu-interesse pela filosofia foi despertado pela leitura de Horten -- ação à
4. Em Natural Right and History, Leo Strauss (1953: 23) observa que Aristóteles "não poderia ter conce- busca da sabedoria eus in er s es permanentes consistiram em compreender de que modo o mal se torna
bido um Estado mundial. Mas por quê? O Estado mundial pressupõeirn deseiurolvinienfn i-ec a síe1 e qual é o papel do mal e do amor na experiência humanai ,om esse o.Jetivo em men e, vo ou-se
o qual .Aristóteles jamais poderia sonhar. 'EsseT1esenvolvimento tecnológico, por sua vez, exigia que a ciência para a filosofia dos mangueus, que pregavam uma ideologia duallsa, egildo,p_qqale çJpj9S
fosse vista como atividade essencialmente a serviço da 'conquista da natureza', e que a tecnologia se eman- rcipio
1 isicos no unn -'asa (i) o_pin da lu ou
z do bem, e
tn (ii) o principio das trevas ou do mal Estes coexistem
cipasse de qualquer supervisão moral e política. Aristóteles não concebeu um Estado mundial porque est cio igualmente eternos e vivem em conflito. O conflito se reflete na luta entre o corpo e a alma humanos,
absolutamente convencido de sue a ciência e essencialmente teonca e ue a liberta ao date talo hiangendo a representação da alma como luz em busca do bem e a do corpo ,como trevasue se inclinam
tro e mora e político levaria a consequeEidiãiiTiôsq facilmente paraomal. Esse pluralismo resolvia alguns problemas, mas colocava outros: por que existem dois
5. A mecânica também se baseia em um ponto focal, e a descoberta do ponto arquimediano tem sido um princípios conflitantes na natureza? is a.. as - as. a i.r na natureza, ou es.erar quc nela encontremos a
componente fundamental. Traduzido para a política, é o local em que a verdadeira justiça se tomaria visível. A verdade, se ela está em .ermanente conflito entre forças antagônicas? Por fim, Santo Agostinho recorreu a umg
busca é, ao mesmo tempo, um engajamento necessário é urna conclusão impossível de ser bem-sucedida. vence, ão neo siatônica na a c o onhécimento imilicava o conhecimento. dos.fins últ,imosj.em
68 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder cio homem e de Deus 69
Mi'
jados em um grande empreendimento quando se dedicam, com intensa e ávida curiosi- razão deve alinhar-se à revelação e, valendo-se de um instrumental lógico, criar r-
dade, a explorar essa massa universal de matéria que chamamos de mundo. Tal orgulho iuttos baseados na se_ rança das entidades a nos reveladas FilosofiEteologia.
é neles engendrado desse modo, isto é, que eles se imaginam habitantes do próprio céu Ima losofia que descuidasse da teo ogia não só nos condenaria a conceber es-
que tão freqüentemente discutem (Santo Agostinho, The Catholic and Manichaen Ways truturas baseadas em inverdades; uma atitude filosófica que negligenciasse a relação
oflife [Os estilos de vida católico e maniqueu], 1966: 32-33). entre o homem e Deus, ou ignorasse as forças paralelas do bem e do mal, seria um
convite à perigosa ilusão de que o homem estaria destinado a usar o poder da razão
Depois de uma longa luta pessoal e intelectual, Santo Agostinho passou a acre- apenas para o bem. Agostinho interpretava a idéia do • ecado ori: nal como a acei-
ditar que o caminho do verdadeiro conhecimento - a verdadeira filosofia - e do amor tação cristã da coexis encia 'o 'em e 'o ma no ornem e, mais ainda, como uma in-
dicaçao dMlilaue de que o ornem soestaria destinado ao bem-, L que
à sabedoria 'rovém do dom da moderação 'unos .rote:e dos extremos da i-
sidade O caminho e o conhecimento puro não consiste em e e lorar o cosmo corno a busca db conhecimento secular e, a esse res.cito a cria ão de tecnologia) seria
um método de alcançar a salvação (terrena ou secu.g1ido se, humano.
fôssemos nos ornar seus so.eranos mas sim em mdagarmo-nos a nbs proprio
ade, como seres lim
—ifãT(5s e dependentes, e assim ascender ao conh
mento daqui o que e MÊIs..puro e AS NARRATIVAS DE VIAGEM E O ASCETISMO PLATÔNICO
Santo Agostinho cristianizou a'esfutuia platônica ao explorar a tese dualista dos NA ORDEM NATURAL DE SANTO AGOSTINHO
maniqueus - o mundo é composto pelás duás forças do bem e do mal, da luz e das
trevas em pefmanente conflito - e a acusação cética dos acadêmicos - não há como O relato de Santo Ãgõstinho de sua conversão à fé em Deus, apesar de impreg-
o homem possa chegar a conhecer a verdade absoluta. Sãnto Agostinho encontrou / nado de linguagem bíblica, é uma narrativa de aflição, intensa aspiração e, por fim,
na fé solução para o ceticismo. Se as entidades fundamentais ríào podem ser des-f da descoberta de um lugar onde a alma atormentada pode encontrar a paz. As Con-
cobertas pela capacidade de investigação do homem, elas devem ser aceitas com base fissões começam pelo regozijo por encontrar um lugar de repouso; as partes princi-
a ±e, e o papel da razão e construir pais consistem em relatos das provações e terrores envolvidos em tal conquista, e as
dáe (e das
coisas que nos são apresentadas através da revelação) _e da razão. Fundamentalmen- Confissões vão terminar com uma prece em agradecimento ao repouso, à paz e à rea-
te, Deus cria o cosmo e é lização. Com Santo Agostinho, a viagem do eu é um reflexo da jornada de toda a hu-
tentativa de buscar compro- manidade. Enquanto no passado, confessa o santo, "eu pensava que viveria misera-
vações lógicas da existência; portanto, a verdadeira sabedoria é a sabedoria cristã. A velmente a menos que estivesse envolto em braços femininos" (Confissões, Livro VI,
XI, 20), e ainda que se tenha mantido apartado de Deus devido ao "peso do hábito
seu caso, isso si iflcava che ar ao conhecimento
carnal", ele acabou por encontrar o verdadeiro caminho. Todos devem, portanto, en-
cia de Deus e à busada.ico.ntade divina. Assim,
Santo Agostinho pode tornar o platonismo e cristianismo praticamente coextensivos Depois de convertido
contrar o verdadeiro caminho da criação e do destino humanos'. O mundo é mais
em um verdadeiro crente em 386 a.C., ele abandonou a profissão de professor de retórica e, em 396, foi no- bem compreendido em termos de uma comunidade cristã, a culminação do desen-
meado bispo de Hipona, um porto marítimo perto da cidade em que havia nascido. Durante sua vida, teste- volvimento espiritual do homem - o que nos levará a testemunhar. "a marcha de
munhou anos de revoltas e desastres militares associados ao declínio do Império Romano, além da transição Deus no mundo". Como vamos interore •s" oi. .i -cimentos" contidos em suas
do paganismo romano para o cristianismo.
7. Por exemplo, a razão provava o princípio da não- contradição, Sabemos que uma coisa não pode ser
e não ser ao mesmo tempo. Podemos usar os instrumentos da razão para policiar e monitorar as afirmações, O ciue leva à verdade de 3 mais 7 equivalerem a 10? Apenas a coisa mais excelente .qu possa existir.
revelando contradições e inconsistências. Desse modo, a alma humana não se vê perdida em incertezas; se Santo À ostinho • atônico ao ar mentar sue as'Çvrdades matematicas sao deçphertn e nao inventadas
'udermos encontrar certos pontos de partida ou entidades fundamentais, podemos criar estruturas racional Aceitando a teoria platônica das idéias ou essências, Santo Agostinho a irma: "As idéias são as
.jl2eritesólida
ólidas. Contudo, sa-os da fé para encontrar o ponto de partida. "Acrarlita na ordem para que formas primeiras, ou as razões permanentes e imutáveis das coisas reais, e elas próprias não são formadas;
possas compçander..a menps que acredites, não compreenderás." de tal modo que são, conseqüentemente, eternas e sempre as mesmas, e acham-se contidas,pa.inteligênci ,
8.De que modo isso funciona? Examinemos a questão ao conhecimento das verdades matemáticas.. San- divinp..'.(Eighty'-tlireeDifferent Questiona [Oitenta e três questões diversas], 46, 1-2). Santo Agostinho conver-
to Agostinho estabelece uma diferença entre as coisas que podemos tocar e as queindependemde nossos sen te a esfera platônica das idéias ou .aincías puras na mente de Deus; na mente divi c1ueaa
ti* os como o conhecimento 'os numeros e . c suas relações,Esse conhecimento não pode provir de nossos ideias sao eternas e imutáveis.Nao ha nada fora de Deus que determine a natureza do cosmo, 4U 1do 1 )u
sentidos,sjm como não pose dêêmiêYdO estado de nossa méte, pois se assim fossesua _estabilidade seria cos,nã2orpu a nada além de si próprio. J
----- —
apenas proporcional a esta si ia as e e nossa mente Mas entendemos que 7 mais 3 equivalem a10 não som 9.Testemunhamos, com Santo Agostinho, a operação de um poderoso impulso: o desejo de criar uma
te agora mas para sempre nao ouve epoca em que 7 mais nao e.uiv es em a • e nao haverá nenhuma filosofia da história. Uma vasta narrativa das origens do homem, de seu passado e presente, e uma indicação
epqçLem . e-ta±etjn se existir' (On heeVvzll 2 12 ss )., mpouco e possivel criticar de seu futuro, dentro da qual banimos o mistério insuportável e chegamos ao conhecimento de nossa essên-
Z..ppr
equi'alere
erem a 10; podemos apenas rejusi ar-nos-com tal fato, imbuídos do sentimento de descobridores". cia e nosso destino.
--
1 iloso fIo do direi o As leis da natureza, o poder do homem e de Deus 71
<12
-si-,
1 Agosl.inbo travou umaluta com seu corvo sua mente; vivenciou
1 1
êxito da ornada de ende de nossa capacidade de nos concentrar no ue é essen-
Lk)s bordéis, da bebida e das prostitutas. Apesar de moderados, em seus aetismo implica a libertação
cia e e e suserar as distra ões e os im. e. imentos. esc
i Lram os temas do anseio, do desejo e da satisfação, que encontram seu da vida na caverna; da estagnação, das ilusões 'e do aprisionamento no mundo do
seu Iílos —no amor de lI7;ïfias de jue a mente se recorda? Deverá termi- corpo; unifica nossos múltiplos desejos na busca de nossos verdadeiros fins. E o mé-
na r nessa ' ó3ãfficu1ar do sucesso platônico? Para o poeta grego Cavafy, escre- todo essencial que confere unidade a nossos esforços e supera aquele repouso no
vendo no Norte da África no século XX, o corpo também se lembra: prazer que ameaça interromper a dinâmica de nossas atividades mais elevada'
na narrativa de Santo Agostinho, a fé é um alicerce. A fé nos permite acreditar em
Lembra-te, corpo, não só do quanto foste amado, uma narrativa que a tudo abarca. A fé ilumina e permite que façamos as escolhas
não só dos leitos em que te deitaste,
certas entre os diferentes objetos do desejo, substituindo nosso desejo por coisas
mas também daqueles desejos que reluziam
nos olhos que te miravam, terrenas (cupidítas selo des&o •or coisas de natureza celestial (caritasj — as coi-
vibrando por ti em v es... .(Cavafy, Body, Reme iiber [Lembra-te corpo]... 1-5, 1984: 59) sas essenciais. Conhecer Deus é participar da grandiosa narrativa de nossa criação,
nossa existência e nosso fim — nossa escatologia11 .
Além do mais, a crença na existência de uma história de total abrangência equi-
Um poeta transmite conhecimento? O poeta era uma figura ambígua no sis-
tema p atonico. A n. • e e- u# icci Platão tenha banido os poetTío Estado
vale à fé na possibilidade de a realidade ser, em última análise, compreensível, sig-
nificativa e aceitável — Deus concilia as oposições do bem e do mal em uma estrutu-
iea1 com base na alegação de que seus escritos eram irracionais e antitéticos pe-
rante o verdadeiro conhecimento, o poeta oferece vislumbres de verdades que, sob ra fundamental que é o sem. istoria pessoa e e anto Agostinho — sua tentativa
A
Outros aspectos, são Jnexprimívei. Para Rosen (1985 43 : "A poesia é o esforço visual de explicar o começo, o meio e o fim, e seu empenho em interpretar e dar forma à
dè tirar o abismo entre original e imagem." A ênfase platônica na visão (por sua vida no mundo subordinam-se à narrativa de uma história mais abrangente; a
exemplo, nas narrativas do sol e da caverna) em detrimento dos outros sentidos história das intenções divinas que, em última análise, só Deus pode conhecer. Ain-
(como o tato, o sentido que fornece a base do legado mais empiricista de Aristóte- da que, sem dúvida, ele possa nos revelar algumas de suas partes.
les) leva-o a um relato poético de proposições ontológicas que, de outro modo, per-
manecem além de nossa experiência. Mas Platão não confiava no poeta, uma vez ASIDÉLS EAMOR
que este favorecia o ingresso, em nossa consciência, de outras
mo nívI da pureza da razão. Ouçamos Cavafy novamente, desta vez num poema in-
es es- 4
titulado When they Come Alíve [Quando surgem vivas]: Tendo sido criado por Deus, o homem depende, em última instância, da graça
de Deus. O homem pode o star • ela prática do bem, mas não tem o poder espiritual
Tenta manter, poeta, de fazer m..cpie e co heu. Ele sã e o auxílio da graç a ivina. nquantoorna
aquelas tuas visões eróticas, é causado sor um ato de livre-arbítrio, a virtude é .roduto não da vontade huma-
ainda que poucas delas tenham permanência. na, mas da graça de Deilç. Enquanto a ei moral pode dar a impressão de dizer ao ho-
Coloca-as, semi-ocultas, em teus versos. mem o que ele deve fazer, ao fim e ao cabo ela realmente lhe diz o que é errado
Tenta mantê-las, poeta, que faça. Onde a lei impera, a fragilidade humana se vê mais exposta: 'a lei foi dada
quando surgem vivas em tua mente
à noite ou no resplendor do meio-dia (1984: 48).
11. As Confissões são uma autobiografia que se apresenta como um relato verdadeiro da vida de uma
O caminho de Santo Agostinho para a humanidade é uma narrativa de ascetis-J pessoa e uma narrativa da descoberta da verdade. Santo Agostinho discorre sobre os fatos e embates de sua
mo e renúncia. Devemos renunciar ao mal e lutar sara superar u uais e uer elementos própria vida, mas apresenta-os como a menor unidade intelectualmente distinta, e ainda assim integral, de
de nossas vidas que se am um O.S acu o a uma vida mais e evada e verdadeira10 uma experiência verdadeira que ele pode nos transmitir. Não se trata de uma questão de abstrair-se da.vida
.O a fim de alcançar a verdade - Deus -' tendo em vista que a vida de um, Santo Agostinho, ocorre dentro dos
padrões e estruturas estabelecidos pelo outro, Deus. Portanto, a experiência de vida de Santo Agostinho não
é um relato do encontro entre alguém e outro, isto é, a experiência do conhecimento de Deus por parte de
10. O neoplatonismo de Santo Agostinho evidencia-se nas diversas discussões em que entrou sobre a Santo Agdstinho, mas uma experiência de vida com Deus, ainda que, de início, esse alguém no tenha ad-
Cidade de Deus. Por exemplo, na ressurreição voltaremos com corpos, mas "enquanto todos os defeitos serão mitido a existência desse "outro". Os seres humanos vivem com Deus mesmo quando não reconhecem
eliminados desses corpos, sua natureza essencial será preservada" (A cidade de Deus, Livro )XII, cap. 17). As- . ntre a .sicologia (explicações teóricas do eu) e a sociologia (ex-
sua existência. Da mesma forma a -
sim, um corpo feminino irá preservar seu sexo, mas não despertará nenhum desejo ou luxúria naquele que o pi -- dos fenô enos sociais) não cons tui uma união de entidades distin-
oes t - * ri e .ressas uru ocuitus
contempla; será parte de uma nova beleza, uma beleza pura que transcende o corpo.
tas, mas uma relação entre uma e a outra.
72 ofla do direito h na %der do/honA 73
o%
para que a graça pudesse ser buscada; a graça foi concedida para que a lei pudesse ço na pólis - contava com a justiça para encontrar um conceito através do qual se
ser cumpri a". O pecado ameaça nos engolir, mas e superado pelo amor de Deus. pudesse, legitimamente, distribuir as recompensas devidas no contexto da partici-
Esse amor é uma dádiva de Deus, e encontra sua expressão máxima no papel de Je- pação variável na pólis, Santo Agostinho procurava, no conceito de justiça, umcrité-
sus Cristo, o mediador entre Deus e o homem. Cristo é uma figura ímpar no sen- rio quetranscendess úal.uer confi: rã ão social especifica, isto é,ue rem etessg
tido de ser Deus tornado mortal para que pudéssemos nos tornar imortais. cosmo - a cnaçao - como um todo. Os termos da discussão grega precedente tome-
?ãiii urmi linguagem e ferramentas conceituais que se tornaram o material para se
criar um imaginário constitucional diferente - Santo Agostinho aceitava uiiild...
JUSTIÇA E DIREITO NATURAL justiça como a virtude de dar a cada um o que lhe é devido - algo que, para um lei-
tor-independente, criava agora novos problemas. Mais especificamente, como vamos
Vimos que, com Santo Agostinho, a história da vida individual ou pessoal do ho- afirmar o qujffdevido" a érnse nos afastamos da especificidade de urna a
mem cri ui subconjunto da história geral da ordem social final — a histonade Deus lahdid? A justiça deve ser meramente convencional; satisfação com padrões dis-
Portanto, a vida política ou pública de um Estado encontra-se sob o mesmoconjn- tribucionais que experimentamos porque fomos socializados em urna determinada
to de leis morais sue mgeuLa do rndwidu Em ultima instância ambas as esferas sociedade? Se assim for, a justiça será diferente em cada sociedade. Mas então não
compartilham uma única fonte de verdadeinteira, inviolada e não sujeita a mudan- haverá uma justiça, mas tantas "justiças" quantas forem as sociedades existentes. Se
ças na vida humana. Por trás das'etitidaldés e operações da ordem mundial está seu vamos aceitar tal estado de coisas, isso não significará que estaremos aceitando um
autor e governante último: Deus. Todas as coisas são verdadeiramente suas criações conceito que, na verdade, não se referia a nada, pois como é possível que X seja jus-
bem interpretadas, mostram-se como traços de seu ser (vestigia). Todos os homens to na sociedade B e, ao mesmo tempo, injusto na sociedade C? A lógica da não-con-
podem che:ar aver e a reconhecer sua verdade, essa estrutura do direito natural ou tradição afirma que não pode haver justo e 'injusto ao mesmo tempo. Colocando as
justiça natural. O direito na' ura é a porção in é eé à "o ornem "ná vers adie--de coisas de maneira mais correta, .ara Santo A:ostinho só, . ode haver uma justiça e,
Deus, ou na lei eteina de Deus. Santo Agostinho baseia-sé na feôna estóica ãti- enquanto nas sociedades concretas pode haver muitas s ercepçõesdo que e justo e in-
fusão docij3iõclã se estende por toda a natureza, governando e re- justo, existe sara a usti a u realidade que transcende essas afirmações particulares
justo,
gendo o funcionamento apropriado de todas as coisas. Para os estóicos, o notls - o anto Agostinho achava que a realidade da justiça devia ser encontrada na es-
princípio da razão - condensava as leis da natureza. Porém, enquanto para os es- trutura da natureza humana em sua rela ão cop. . Ausliça é "o hábito da alma
tóicos as leis da natureza eram as operações da força impessoal de princípios racio- que confere a cada homem a dignidade que lhe é devida. (...) provém da naturea
nais no u ïï 75anto Agostinho interpretava1ei eterna como a razão e a von- (...), e esta concepção de justiça (...) não é .rodiito da o.inião .essoal do homem,
tade do Deus cristão .pessoal A lei eterna tornou-se a divina razão, a vontade de mas sim alguma coisa inculcas a .or um certo soder inato" Exigir que o Estado se-
eus que controla a manutenção (observância) da ordem natural das coisas, e que iíisse' esse pas rão sigru cava, obviamente, impor pesadas limitações morais ao po-
proíbe sua perturbação. A lei eterna, é a razão de Deus no comando da regularida- der político. De fato, argumentava Santo Agostinho, se as leis do Estado não esti-
e a apreensão intelectual humana dos .rincipios eternos e c amas a se sireito verem em harmonia com o direito e a justiça naturais, não terão o caráter de verda-
natural Para que as éis cria mas pe o Estado sejam totalmente justas, dizia Santo deiras leis nem haverá, no caso, um Estado verdadeiro. Uma vez que ele definia uma
AgostinHo, as leis temporais devem estar de acordo com comunidade como um Estado do povo, "não haverá povo se este não estiver uni-
tural, sue, por sua vez,--deriva dodireito eteiho do por um consenso do direito; tampouco haverá direito que não esteja fundamen-
O universo político ãssim conccbidi51õïu-se dramaticamente diverso da pó- tdo na justiça. Segue-se daí que, onde não houver justiça, não haverá comunida-
lis grega. Santo Agostinho não vê o Estado político como um sistema autônomo, mas e". Desse modo, Santo Agostinho parece ter encontrado sua resposta para a ques-
co -io parte de um todo maior. Portanto, o Estado não . expja seu poder de tão de um conceito crítico e investigativo para investigar a ordem jurídica conven-
legislar ao criar leis, ao contrário, o Estado também deve observar as efgeifàd cional. A ordem jurídica deve ter uma base, e essa base não pode ser o processo em
uma justiça de maior ahij5 i8Esa idéia de jústii do mais, é'iim critério si; a mera cfiação do'direito através dos 6rgos do Estado não pode s1gnifqi
que precede o Estado e é eterno. Portanto, Santo Agostinho toiiiava por baé 6res- eles sejam justos. Essa qualidade de Justa jdeve vir de alg,to aqui, está em
suposto .latônico das essências .rirneiras .ara argumentar que a justiça é ajteior cdfifiidade com a origem ultima da verdade a vontade de Deus
às ordenações sociais vigentes. Enquanto a problemática prática da jurisprudência Ao associar à justiça à lei moral, Santo Agostinho argumentava que a relaçã
grega - aprisionada pela questão pragmática de como criar uma estrutura intelectual fundamental ria usti a não é asuelasue se dá' entre homem e h.me,m mas sim en-
capaz de governar racionalmente uma sociedade que girava em torno da participa- tre o ornem e Deus: "Se o homem não servir a Deus, que justiça se pode imaginar
74 Filosofia do direito . .75
As leis da natureza, o poder do homem e de.Deus
que há nele? Ao ver que ele não serve a Deus, a alma não tem nem soberania legí- A humanidade experimenta dois tipos de amor: alguns amam a Deus, outros
tima sobre o corpo nem razao so6 os sentimentos." A justiça coletiva é impossfel amam a si próprios e ao mundo. Roma perdeu-se devido aos vícios de seus habi-
sem a justiça individual dá relação com Deus, sois "se essa usfTTiao or enconifa- tantes. A velha república carecia de uma verdadeira profundidade, uma vez que lhe
da em um ornem, tampouco pos eremos encontrá-la em uma mi,i tio ão. ntre tais faltava a verdadeira justiça, que só é possível quando se está unido no amor a Deus.
homens, pórfãrf1nexiste aquele consenso jurídico que cria uma comunidade de Como Santo Agostinho pergunta em uma famosa passagem:
pessoas". E, de novo: "Não é [injusto todo aquele que] se afasta de seu Deus, e se en-
trega ao serviço do demônio?" Entre outras coisas, servir a Deus e amar seu semelhan- Elimine-se a justiça, e o que são os remos a não ser gangues de criminosos em
te significa reconhecer que todos os homens também devem ter o direito e a opor- grande escala? E o que são as gangues senão remos em pequena escala? Uma gangue
tunidade invioláveis de amar e servir a Deus. Tfití ii tanto se fundamenta é um grupo de homens sob o comando de um líder, unido por um pacto de conivência
no amor do homem a Deus e no amor a seu semelhante.O amor .recede.ajustiça. que determina que o saque seja dividido nos termos de uma convenção previamente
crido alçado a Igreja e FélTgíãõ a urna posição de superioridade sobre o Es- ajustada.
tado temporal, Santo Agostinho concede ao Estado o direito de usar a força repres- Se essa vilania conquista tantos recrutas nas fileiras dos depravados que adquire
siva. O Estado é .roduto da condição secaminosa do homem razão pgia qual é um território, estabelece uma base, captura cidades e subjuga povos, o passo seguinte
preciso aver um órgão de contrô e. nda assim, Santo Agostinho não admite que é arrogar-se abertamente o título de reino, que lhe é conferido aos olhos do mundo não
o princípio da força seja superior ao princípio do amor. Para o santo, a base da so- pela renúncia à agressão, mas pela obtenção da impunidade.
ciedade ideal é a fé e o "sólido consenso" que se verificam quando o objeto do amor Foi espirituosa e verdadeira a resposta dada por um pirata capturado a Alexandre,
é o bem universal que, em sua natureza mais excelsa e verdadeira, é o próprio Deus, o Grande. O rei perguntou-lhe: "Que pretendes ao infestar os mares?", e o pirata res-
pondeu, com irrefreável insolência: "O mesmo que pretendes ao infestar a terra! Mas,
e onde os homens se amam uns aos outros com absoluta sinceridade em sua cón-
como o faço com um pequeno navio, sou chamado de pirata; quanto a ti, como o fazes
fiança em Deus. O fundamento desse amor social é o "amor daquele a cujos olhos
s..
com uma poderosa esquadra, és chamado de imperador" (Livro IV 4).
ocultar o es.frito do am9JO Estado temporal ainda tem unia ri
ção (ainda que sua força não se equipare ao poder criador do amor), pois a ação do
Uma verdadeira sociedade é uma associação de seres racionais unidos por um
Estado pode, ao menos,atenuar alguns males: "Quando o poder de ferir é tirado
acordo unânime a propósito das coisas que amam. O destino do mundo estava no
dos que praticam o mal, eles se comportarão melhor se forem reprimidos. (...) O
Estado não terá sido criado em vão:" Contudo, o Estado que usasse sua força coer- conflito entre dois ti • os de amor e .ois ti.os de cidEm última instância, com
a graça de Deus o verdadeiro amor venceria. Se, por um lado, a linguagem de Santo
civa para fazer cumprir as leis sem justiça seria a manifestação empírica de um
ta do imperfeito. Agostinho exala uma eloqüente imprecisão, por outro podia ser intimidativa em
sua coerção`. Pois, se alguém podia estar convencido da verdade de seu ser essen-
cial, seria uma perversidade apartar-se desse ser "natural"". A relação entre o amor
A IDÉIA AGOSTINIANA DA EXISTÊNCIA SOCIAL DIVIDIDA ENTRE de Deus e o poder de Deus, e a relação do homem com ambos, nunca foi totalmen-
"DUAS CIDADES" E SUA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
Em sua obra principal, sobre A cidade de Deus contra os pagãos, Santo Agostinho 12.Para as concepções liberais, essa crença em uma verdade pode mostrar-se autoritária. Dois fatos as-
se propõe a defender o cristianismo contra a acusação de que a recusa da Igreja em sociados a Santo Agostinho podem servir de exemplo. O primeiro diz respeito a seu papel como administra-
fazer oferendas aos deuses .ag.aosdeRima - qua - dor da Igreja, o segundo à força conferida a um texto quando a estrutura institucional mantém-se fiel a ele
fe crista se tornou a prin-
como verdade consagrada. Quimto ao primeiro, durante a luta com o movimento donatista no Norte da Áfri-
dj5l religião - teria levado ao colapso do Império Romano e ao saque de Roma. Por ca - um movimento dissidente cada vez mais reprimido pelas autoridades - Santo Agostinho concordou aos,
que, se o cristianismo era verdadeiro, (esse novo) Deus na1inha dndidoacida- poucos, e de início com relutância, com as medidas repressivas empregadas contra o movimento. Seu endos-
oé contra w godns7 Sua resposta consistiu em dividir a humanidade em duas, com so a essas medidas parecia constituir uma ação política que contrariava a diretriz básica de seu pensamento,
do ti.os de interesses e ener:a, dois ti.os de amor, habitando duas cidades: mas faz sentido no contexto da ameaça que o movimento colocava à unidade e à necessidade de uma concep-
ção de amor que subjaz ao sistema de Santo Agostinho. O segundo fato remete à interpretação que autdri-
(...) uma delas consiste naqueles que vivem segundo critérios humanos, a outra nos dades posteriores da burocracia cristã deram a seu uso da expressão do Evangelho "trazei-os aqui" (coge i-
que se submetem à vontade de Deus. ( ...) Por duas cidades, entendo duas sociedades trare, Lucas, 19, 23, Uma interpretação que legitimava o uso da perseguição, da repressão e da conversão
violenta, processos muito bem conhecidos nos trágicos eventos da Inquisiço.
de seres humanos, uma das quais está predestinada a reinar com Deus por toda a eter-
nidade, e a outra condenada a sofrer punições eternas com o demônio (Livro XV. 1). 13."( ...) não é uma substância, mas uma perversidade da vontade o apartar-se de ti, Deus, .a•suprema
substância, em direção a coisas mais ba,1ç" (Confissões,VlI, 5).
76 Filosofia do direito As leis da natjez,q, o poder do homem e de peus...,.- 77
,!
te estável. Santo Agostinho se refere constantemente a "uma enfermidade da alma" dades da vontade de Deus do modo como nos foram transmitidas jor revelaçãoi-
que nos afasta de Deus, e afirma que a "desobediência" à vontade divina provém de vina, enquanto ilosofiomeça com o mundo do modo como este foi revelado as
uma "insuficiência da vontade" ou da "escravidão férrea de minha própria vontade nossos sentidos, eããIisa-o ara tentar descobrir seus srincí.ios. A filosofia preo-
( ... ), que me manteve preso a uma escravidão implacável". E possível que Santo Agos- éupa-se com os objetos imediatos da experiência dos sentidos e eleva seu raciocínio
tinho estivesse certo ao falar sobre o peso das preocupações deste mundo e deplo- a concepções mais gerais; em última instância, a mente chega ao fim dos primeiros
rar que muitos pudessem considerar "o fardo deste mundo como uma espécie de princípios das causas originais do ser e, assim, chega à prova da existência de Deus.
peso agradável (...), como acontece no sono", pois, enquanto ele esperava por uma Inversamente, a teologia começa com a fé em Deus e passa a interpretar a vida de
iluminação platônica das massas, as crenças subjacentes a suas es! eranças nãod- todas as coisas como derivadas de sua existência enquanto criaturas de Deus. O fi-
morariam a ser dolorosamente testa *--a, A -são e. óna 'os antigos como aprendizado lósofo decide-se sobre suas conclusões - sua verdade através da análise de des-
geral estava quase perdida na "era das trevas" que se seguiu à queda do Império crições racionais das coisas, enquanto o teólogo trabalha com a segurança de uma
Romano em 476 d.C., e só se mantinha viva graças aos eruditos cristãos que se em- fé absoluta na solidez inabalável do conhecimento revelado. A filosofia pode ofe-
penhavam na busca da "verdade" de tal sabedoria. O saber jurídico ganharia raízes recer cinco maneiras de raciocinar para concluir que Deus existe: as provas do mo-
seculares na pioneira Escola de Direito de Bolonha no t- e. sal e e S d vimento, da causa eficiente, do necessário, por oposição ao possível, a dos graus de
parte central da Itália (com seu início por volta de 1100). Ali, o estudo do Digesto de perfeição e a da ordem do universo (Suma teológica, p. II, r. 1, 2, 3).
Justiniano - que, juntamente com os Institutos, o Código e as Novellae justinianas (li- O cosmo é uma hierarquia de coisas diferentes combinadas em uma grande ca-
vro didático ecoletânea do direito imperial romano tardio), cbnstituía aquild a que deia do ser. Tudo pertence a uma ou a outra espécie, e a variação existente no cosmo
se dava o nome de Co 'us uns Civilis - deu ori:e m a uma tràciição do estuckï do demonstra o alcance da perfeição de Deus, dos anjos aos elementos do fogo, da ter-
direito romano que persiste até hoje. Visto como a encarnação clássica da razão ju- ra, da água e do ar. Cada nível do ser tem uma natureza compósita particular; para
rídica e política, o estudo do direito romano oferecia uma base 'ara a administração o homem, a alma é a forma, o corpo a substância material.
civil. Não obstant a' e • .rte da teoria urídica continuava a ser proposta por
membr6s da Igr&a - e não por juristas - cujo interesse consistia em manter uma AS IDÉIAS DE SANTO TOMÁS DE AQUINO SOBRE OS FINS
síntese das re ações entre o homem e Deus. Uma síntese que receberia sua forma DO HOMEM E O DIREITO NATURAL
mais avançada nos escritos de Santo Tomás de Aquino.
A concepção tomista do direito natural pressupõe uma visão teleológica da na-
tureza humana. O homem é naturalmente voltado sara determinados fins: a felici-
SANTO TOMÁS DE AQUINO: A DOUTRINA TOMISTA COMO APOGEU dade está em alcançar o fim ou o objetivo do homem. Inversamente secar é não agir
DO SISTEMA ESCOLÁSTICO DE FILOSOFIA MEDIEVAL14
com perfeição-U--P oder de secar e a ca .acidade de deixar de agir se_ rido os fins
que, por nossa própria natureza, deveríamos estar tentando alcançar. Esses fins en-
Sendo basicamente um teólogo, anto Tomás "cristianizou" Aristótele,. Não contram-se em diferentes níveis, como no caso das diferentes tendências do homem.
foi apenas o autor de uma filosofia teológica; traçou, também, as linhas gerais da Enquanto Aristóteles havia oferecido uma moral naturalista na qual os homens po-
teologia e da filosofia como meios diferentes de se abordar a vastidão da criação di- liam alcançar a virtude e a felicidade mediante a satisfação de suas aptidões ou seus
vina. Enquanto Santo Tomás concordava com Santo Agostinho que averdadeirafe- ins naturais, Santo Tomás acrescentou o conceito cristão do fim sobrenatural do
licidade estava em c}te_armos ao conhecimento e e • eus, e e enfatizava que os er- Para Santo Agos in o, tanto a origem quanto o fim último da existência hu-
is tos de partida básicos podiam afetar radicalmente nossa vida e, mana estão emDeus. A natureza humana não é auto-suficiente com seus própri os
desse modo, levar-nos a relações falsascom Ddü eologiâ')omeça com as ver- padrões de realização; ao contrário, a humanidade deve combinar os fins do funcio-
namento natural com os fins sobrenaturais. Inversamente, Santo Tomás argumenta-
14. Santo Tomás de Aquino (1225-74), por todos reconhecido como p maior pensador católico da Idade vã que o não podia ser rejeitap15. O corpo fomenta certos tipos de atos, apeti-
Média, sintetizou as idéias gregas clássicas - em particular as de Aristóteles - e as idéias cristãs. Outras in-
fluências vieram de autores árabes e judeus. A disputa entre agostinianos e tomistas dominou a filosofia cristã
da Idade Média, tendo por distinções predominantes aquelas que se verificam entre as concepções neopla- 15. Ao desenvolver uma concepção da natureza humana, não podemos ignorar o fato de que o homem é
tônicas e neo-aristotélicas, o uso da fé ou do raciocínio empírico sobre o mundo enquanto base do conheci- uma substância física. Enquanto Platão havia falado sobre a alma como prisioneira do corpo, e Santo Agostinho
mento, a reação ao corpo ou à atuação por meio do corpo. considerava-a como substância espiritual independente do corpo, ambos negligenciavam o fato de que a alma
/ arf O1I/J77L ,2v1lkb)( 177tt1$
78 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder do homem e de Deus 79
tes e paixões. Os sentidos possibilitam um nível de conhecimento sobre os objetos engajados em tal busca. Para assegurar uma sociedade ordenada e harmoniosa,
sensíveis, e o homem é atraído para alguns objetos percebidos como prazerosos e as leis humanas são moldadas de modo que sirvam de diretrizes para o com-
bons (apetite concupiscente) e repelido por outros que são percebidos como preju- portamento da comunidade.
diciais, dolorosos ou maus (apetite irascível). Essa atração e rejeição constituem os
rudimentos básicos da capacidade humana de amar, sentir prazer, odiar e temer. Esses fatores: .-.Ts da.xid, propagação da espécie,formaço de uma so-
Enquanto os animais são sujeitos ao controle desses apetites irascíveis e con- ciedade ordenada sob leis humanas e a busca da verdade, pertencem todos 2ta-
cupiscentes, o homem escapa a tal dependência e se torna um sujeito livre através ô natural do homem. ei moral` funda-se sobre a capacidade da razão de reco-
da força da vontade e da razão. O intelecto pode ordenar os bens da existência.jj- nhecer o curso apropriado de sua conduta à luz da natureza humana, isto é, depois
quezas, prazer, poder e conhecimento são bens - obetosletimos dos apetites -, de levar em consideração as tendências naturais da humanidade para modalidades
mas não podem produzir a felicidade mais profunda do home . Não. possuem o específicas de comportamento`. Uma vez ue a natureza humana tem certas quali-
cãráterdobemunivers.aique é 15iscado .ela alma humana. Santo Tomás acredita que dades fixas, as regras de comportamento que corresponcem a essas qjdades são
esse bem não se encontra-1na 11s coisas criadas mas sim em Deus, o bri supremo. chama sas se sireito natura.
O homem é uma mistura de sensualidade, apetites, vontade e razão que lhe pr- O que é, então, a justiça? "A usti a é a vontade constante e duradoura de dar
rpite exercer uma escolha moral na construção de sua trajetória ae vida. O homem cada um o que lhe é devido" (Suma Teológica, p. 58, r. 1). Devido a alguém é aquilo que
cria sua vida a partir de atos livres. Se o determinismo físico dominar o homem, ne- é ordenado para cada um, de acordo com as tendências individuais naturais, tendo
nhuma liberdade de o e ..rtants enhuma moralidade, será •ossíve. A liberda- por objetivo a perfeição de seus fins. O devido a cada um não é conferido pelo direi-
de é um pré-requisito absoluto para que qualquer ato seja considerado moral; Santo to positivo, mas pelas tendências naturais da natuÏda humana. Daí se segue, pQrtan-
Tomas afirma que m ato so e humano se for hvr A liberdade im .hca o conheci- t, que se o sireito posi ivo vio ar o sue e naturalmente devido ao homem, essa o. -
mento de alternativas e a capacidade de escolher entre elas A virtude, ou o bem, con- dem (uridico- • ositiva) • odera ser chamada de in usta com base no direito natural
siste em fazer as escolh certas e o meio-termo entre os extremos A virtus e sêa- Boa parte do impulso para essa teoria do direito natural já fora desenvolvida
nifesta com o controle dos apetites, através do exercício da vontade e da razão. Exis- por Aristóteles. Na Etica a Nícômaco, Aristóteles faz distinção entre usti a natural
tem certas virtudes naturais - coragem, temperança, justiça e prudência - que são (physikon dikcuon) e justi a co.. ncion ,s ii 1PI1. • Para ele, a primeira era
complementadas pelo conhecimento-humano da lei natural ou da lei moral. imutável, e a segunda mutável, ou cambiável. Algumas formas de comportamento,
A base da obrigação moral deve ser encontrada, em primeiro lugar, na nature- dizia ele, só são erradas porque uma lei foi criada para regular tal comportamen-
za fundamental do homem. Diversos imperativos são inerentes à natureza do ho- to, e somente depois de sua criação. Para usar um exemplo moderno, só é errado
mem, como a necessidade de preservar sua vida e propagar sua espécie, e também, dirigir um veículo a certas velocidades porque um limite de velocidade foi estabeleci-
porque ele é racional, um imperativo que se volta para a busca da verdade. A verda- do, niu na natureza não há nada que exija que os veículos viagem a tal velocidade.
de moral elementar consiste simplesmente em "praticar o bem e evitar o mal". As- Essa lei, portanto, não é natural; é convencional, sois antes de ser .romulada não
sim, certas coisas parecem razoáveis quando analisamos nossa condição: laae errado em se viajar a velocidades que ultrapassem o novo Emite. Egr
outro lado, argumentaria Santo Tomás, existem algimas leis cujos preceitos ,derivam.
(i) o homem tem o dever natural de proteger sua vida e sua saúde, razão pela qual da natureza, motivo pelo qual o com.ortamento sue regulam foi sempre errado,co-
o suicídio e a negligência constituem erros; mo no caso o ornicic o qua cadp. Contudo, Santo Tomas nao miava seu trata-
(ii) a necessidade natural de propagar a espécie resulta na necessidade fundamen- mento da lei natural àffiples idéia de que, de algum modo, a razão do homem
é capaz de. descobrir a base natural da conduta humana. Em vez disso, raciocinava o fi-
tal da união entre o homem e a mulher (marido e esposa);
lósofo, se aéxistência do homem eanatureza só .odemser plenamente compreendi-
(iii) tendo em vista que o homem busca a verdade, seu melhor meio de consegui-lo das quans o consideradas em-relação a Dei is o direito natur ceve ser s escnto em ter-
consiste em viver em harmonia social com seus concidadãos, que também estão mos metafisicos e teolo cos - como a o haviam feito os estóicos e Santo Aostmho
O direito, diz SantoTomás de Aquino, tem a ver fundamentalmente com obri-
gações que, em última instância, são impostas pela razão.
do homem depende tanto do corpo quanto este cia alma. Para Santo Tomás, o homem é uma unidade de corpo e
alma. Sem a alma, o corpo não teria forma. Sem o corpo, a alma não teria os órgãos dos sentidos, necessários
a&quisiçaodoc(Inhecimnto Enquanto substancia fisica o homem,e um composto de alma e corpo enquan- 16. "A virtude moral extrai sua benevolência do domínio da razão, enquanto sua matéria consiste , 1
to criatura racional, o homem existe e funciona como homem somente quando unificado como corpo e alma. xões ou-operações faz paixão Jistarse ao domínio da raz(Santo Tomás, p. 64
80 Jgsofia do direito 81
c;ft As leis da natureza, o poder do homem e de Deus
Cabe ao direito comandar e proibir (...). O direito é uma regra e uma medida dos Deus, o senhor do Universo, tem a natureza de urna lei. E, corno a concepção das coi-
atos, razão pela qual o homem é induzido a agir ou impedido de fazê-lo; pois a lei (lex) sas da razão divina não está sujeita ao tempo, mas é eterna ( ... ), conclui-se que essa es-
deriva de "impor obrigação a" (ligare), uma vez que obriga uma pessoa a agir. Ora, a pécie de lei deve ser chamada de eterna (Suma teológica, p. 91, r. 1).
regra e a medida dos atos humanos é a razão ( ... ), pois cabe a ela direcionar todas as /
atividades de um homem tendo em vista o fim ao qual se propõe" (Summa Theologiae No intelecto de Deus há um plano que exprime a ordem de todas as coisas ten-
[Suma teológica], p. 90, r. 1).
do em vista seus fins; a esse plano podemos dar o nome de lei eterna. Todas as cria-
fiifas trazem a marca dessa lei eterna, e para o homem essa marca tem um sentido
Qdireito implica poder, impõe obrigações. Mas por trás desse exercício de 2q-
especial devido a sua racionalidade.
der do direito encontra-se a razão. Não se trata simplesmente de que "o que quer que
agrade ao soberano tem força de lei", uma vez que asleis devem "induzir os que a eia
se submetem
1 gir corretamente". Através do direito ositívo,o soberano pode im- Lei natural Jva—
or coisas que não são razoáveis e obrigar o homem a adotar procedimentos impró-
prios, mas nesse caso o que se tem não é a lei operando em conformidade coma na- P direito natural consiste nas uela .arte .da lei eterna sue remete es.ecifica-
tureza. O direito natural é ditado pela razão`. E, como Deus criou todas as coisas, a mente ao ser humano. Se, por um lado, o homem não pode conhecer a totalidade
natureza humana e o direito natural são mais bem compreendi—dos como prodpqçia do plano de Deus, a racionalidade humana garante sua participação na razão eter-
sabedoria ou da razão divina. Como será, éfiifão....ürna definição simples do direito? na, por meio da qual ele pode identificar urnã tendência natural normativa a
tica de atos e i. a oro .riado 18 A lei natural nada mais é que a participação da
A lei nada mais é que um ordenamento da razão tendo em vista o bem comum criatura racional na lei eterna (Suma teológica, p. 91, r. 2).
promulgado por aquele que tem o encargo de cuidar da comunidade (Suma Teológica,
p. p. 90, r. 4).
Lei humana -
Em termos ideais, o direito provém do poder de mandar tendo em vista o bem cb
comum, que "compete a toso o povo ou a a guem sue e o vice-reente de todo o As leis escritas específicas dos governos, ou leis humanas, devem derivar dos
povo. A criação das leis compete ou a fedo o povo ou à personalidade pública que preceitos gerais ,a éi natura . Senso o direito "um ditame da razão prática To pro-
deve cuidar de todo o povo". Além dis ireftoé uma coisa que vive, que existe cesso de extrair oncli.Ia lei é muito semelhante ao que se passa com a "razão
interiormente no povo: "Para urna pessoa, uma lei não funciona apenas do mesmo especulativa" (as ciências). Assim como "extraímos 'conclusões das diferentes ciên-
modo que o faz para aquele que governa, mas também, por participação, para aque- cias", de "princípios não demonstráveis, naturalmente conhecidos", do mesmo modo
le que é governado." O funcionamento ideal do direito acha-se inscrito no coração e "a partir dos preceitos da lei natural ( ... ) a razão humana deve alçar-se à determina-
na vontade do povo, urna vez que a natureza humana é, em última instância, natu- ção mais particular de certas questões". E "essas, determinações específicas, concebi-
reza racional. A partir desse ponto de vista, Santo Tomás faz urna distinção entre das pela razão humana, são chamadas de leis humanas ( ... )". O homem tende natu-
quatro tipos de lei (ver a Suma teológica, Questões 90-95). ralmente para a virtude, mas a perfeição desta deve ser adquirida por meio de algum
treino. Uma lei não é "justa" simplesrnen.tu pelo fato-de ter sido decretada por um so-
lberano Santo Tomás argumentava que é 'q'uë dá a uma lei o 'caráter de lei é sua di-
A RELAÇÃO ENTRE LEI ETERNA, NATURAL, HUMANA E DIVINA mensão moral, sua conformidade com o s eceitos do direito ilT sua dnformi-
- tjYliO dade com a lei moral. Tomando a fórmula de Santo Agostinho, isto é, "aquilo que não
Lei eterna é justo não parece ser lei algufha", Santo Tomás afirma: "toda lei humana tem tanto
da natureza da lei quanto procede da lei da natureza", mas acrescenta: "se, em qual-
( ...),j. lei nada mais é que um ditame da razão prática sue emana dQgQverante quer aspecto, desviar-se da lei da natureza, não será mais uma"lei, mas uma perver-
que rege uma comunidade per elta ... , a. rnitm. o-se que toda a comunidade univer- são da lei". Enquanto essas leis deixam de obrigar em consciência, devem às vezes
sal é regida pela Razão Divina. Portanto, a idéia mesma do governo das coisas em
18. "Portanto, devemos dizer que a lei eterna, do modo como é, não pode ser conhecida por ninguém
17. "Por conseguinte, a ordem dos preceitos do direito natural segue a ordem das inclinações naturais" a não ser Deus e os abençoados que o vêem em sua essência. Contudo, qualquer criatura acjnalcoflbace
(Santo Tomás, p. 94, r. 2).
essa lei através de uma 'irradiação' mais forte ou mais fraca:'. (Santo Tomás, p. 93, r. 2)
82 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder do homem e de Deus 83
ser obedecidas para evitar um mal ainda maior. Santo Tomás não se limitava a negar o Estado não está e* ui .ado para lidar com esse fim último do homem, deve reconhe-
o caráter de lei a qualquer preceito governamental que violasse a lei moral natural; cer a limitaç esuasfuriões; e papel da Igreja conduzir o homem a esse flim. 'San-
tal preceito, afirmava, não deve ser obedecido. Algumas leis podem ser injustas pelo t6'Inãdividiu simplesmente a autoridade nessas suas es eras e preocupa-
fato de se oporem ao bem divino, por exemplo as leis dos tiranos que induzem à ção humana, conferindo autoridade ao Estado em uma área e à Igreja na outra; ao
idolatria ou a qualquer coisa que contrarie a lei divina. As leis desse tipo "não de- contrário, atentou para o Estadoe explicou sua origem em termos de criação divina.
vem, de modo algum, ser observadas, pois ( ...) devemos obedecer a Deus, não aos ho- Para esse ponto de vista, o Estado é desejado por Deus e tem, como função atri-
mens". A razão humana é falível e sujeita a erros; as leis humanas "não • odem ter buída por Deus, o dever de servir de instrumento à e .ressão da natureza social do
aquela infalibilidade sue é inerente às conclusões demonstradas • elas ciências'. rnAo contrário de Santo Aostinho, Santo Tomás não vê o Estado corno pio-
duto da pecaminosidade do homem: mesmo "no estado de inocência o homem te-
ria vivido em sociedade". Mas mesmo então "uma vida comum não poderia existir,
Lei divina a menos que houvesse alguém que detivesse o controle, encarregando-se do bem
comum". A função do Estado consiste em assegurar o bem comum ao manter a paz,
A função da lei é dirigir o homem a seu devido fim. Tendo em vista que o ho- s
or:anizar harmoniosamente as atividades dos cidadao srover os recursos e, -ss'
mem é predestinado à felicidade eterna, além de sua felicidade temporal, deve ha- rios à manut ão da vida e im a edir, na medida do possível, que obstáculos venham -
ver algum tipo de lei que possa conduzi-lo àquele fim sobrenatural. Neste ponto, a se interpor ao bem viver. Este último item, que remete às ameaças ao em viver,
Santo Tomás vai além de Aristóteles, uma vez que afirma que esse filósofo só conhe- atribui ao Estado não apenas uma função ligada ao fim último do homem, mas tam-
cia o objetivo e o fim natural do homem, e que para tal propósito a lei natural, conhe- bém dá conta da posição do Estado em relação à Igreja.
cida pela razão humana, era tida como um guia suficiente. Mas a felicidade eterna O Estado é subordinado à Igrejà)Isso não quer dizer que a Igreja seja um supe-
à qual o homem está predestinado torna "necessário que, além da lei natural e hu- restado, mas apenas que o Estado tem sua própria esfera de funções legítimas, como
mana, o homem seja levado a seu fim por uma lei de origem divina". Portanto, a lei acontece com a Igreja. Dentro dessa esfera, o Estado é autônomo. Contudo, na medi-
divina é acessível ao homem através da revela ão, e encontra-se nas Escrituras, Não é
da em que existefli aspectos da vida humana sue dizem res .eito ao fim sobrenatural
prol uto ia razão humana, mas foi dada ao homem por meio da graça divina, para as- do homem, o Estado não deve colocar obstáculos arbitrários que frustrem avisa espi-
segurar que ele tenha conhecimento do sue deve fazer sara satisfazer tanto seus fins de sua própria esfera, o Estado é aquilo que Santo Tomás cha-
ritual humana..
naturais quanto, mais especi. mente, seus ns sobrenaturais. A diferença entre lei na-
j tura[eJei divina é a seguinte: a lei natural representa o conhecimento racional hua- ma de "sociedade perfeita", tendo seus próprios fins e os meios para alcançá-los, mas
do bem; opera através do intelecto, que dirige a vontade de modo que controle seus o Estado é como o homem; nenhum dos doi se limita a um fim natural. O fim espiri-
tual do homem não pode ser conquistado "pelo poder humano, mas sim pelo poder
ptites e paixões, levando-o a consumar Thm natural mediante a aquisição dJi-
divino". Ainda assim, ,porque o destino do homem inclui a conquista da fruição de -
tudes cardeais da justiça, temperança, coragem e prudência. A lei divina, por outro
Deus, dEstado deve reconhecer esse aspecto do destino humano: ao prover o bem ç-
a.o, provém siretamen e se •eus a raves 'a rëve açao, um som ia graça .ivina
niiiiiiTe seus cidadãos, o soberano deve empenhar-se em alcançar o objetivo de sua
por meio do qual o ser humano é levado a seus fins sobrenaturais; tendo obtido as
comunidade com consciência do fim essiritual da humanidade. Em tais circunstâncias,
virfudes sus eriores Tte6I cas, da fé, da es. eran a e do amor esyjdes são
in ndidas" no homem pela graça de Deus. Desse modo, Santo Tomás ^cristianizou o Estado nao se fifforma na Igreja, mas isso realmente significa que o soberano
eiítrapassou a ética naturalista de Aristóteles, supostamente por ter demonstrado "deve impor aquelas coisas que levam à beatitude celes - . .. :_ té onde for possí-
de que maneira se pode assegurar o desejo natural que o homem tem de conhecer \Lajiiêncla de seus contrários" Desse modo, Santo Tomas afirmava a legitimis ade
Deus, indicando como a revelação se torna a diretriz da razão e descrevendo o módo /do Estado e sua autonomia em sua própria esfera, subordinando-o à Igreja apenas para
/
comb a natureza superior do homem é aperfeiçoada vela graça divina \ssegurar que o fim espiritual último do homem fosse levado em consideração.
Ao mesmo tempo que o saco contro ao compor ameno 'e seus ci. as aos
através da instância da lei, é por sua vez limitado pela exigência da aplicação de leis
A CONCEPÇÃO TOMISTA DO ESTADO justas. Em nenhuma parte a rejeição tomista da autonomia absoluta do Estado é tão
claramente afirmada como quando ele descreve os critérios para a criação do direi-
A partir da definição aristotélica do homem como animal social nascido para a to humano, ou direito positivo. Já analisamos os diferentes tipos de leis: eterna, na-
sociedade política, Santo Tomás concorda que o Estado é uma instituição natural de- tural, humana e divina. O Estado é, =particular, a fonte do direito humano. Cada go-
rivada da natureza1umana, mas-postula que o Estado também tem um dever que verno se vê diante da tarefa de criar leis especificas que controlem o comportamento
lhe e mi. osto no sentido de a usar o ornem a cum 'rir seu fim natural Uma vez que de seus cidadãos nas circunstâncias • articulares de seu a ró ano tem ao e es a a o.
84 Filosofia do direito As leis da natureza, o poder do homem e de Deus 85
Contudo, a criação das leis não deve ser um ato arbitrário; elas devem ser ela- NOTA CRÍTICA SOBRE A MISTIFICAÇÃO DO DIREITO NATURAL
boradas sob influencia 'o .ireito natural, que e a participaçao umana na ei eterna E SUA RELAÇÃO COM A SEGURANÇA EXIS i'ENCIAL
de Deus. As leis positivas devem consistir em regras especificas derivadas dos prin-
cípios gerais do direito natural. Qualquer lei positiva humana que viole o direito na- O direito natural tomista tem força crític. Aos governantes, torna difícil apelar
tural • erde seu caráter de lei, torna-se "uma • erversão urídica" e • erde sua força a Deus a fim de arrogar-se um poder absoluto, uma vez que o governante só tem
de direito na consciência dos homens,, O legislador tem sua autoridade para legis- autoridade na medida em que esta lhe tenha sido assegurada pelo direito natural.
lar a partir de Deus, que é a fonte de toda autoridade, e é responsável perante Deus: Se o governante extrapolar sua esfera de competência e tiranizar seu povo, estará ul-
ujeitos ao
nos assuntos humanos, os superiores influenciam os inferiores por meio de sua 'crapassando sua autoridade legítima. Como os governantes também são s
vontade, em virtude de suá autoridadé de ordem divina (Suma teológica, p. 104, i. 1) direito natural, os súditos podem recusar-se a obedecer e, inclusive, ser desculpados
O objetivo da autoridade política consiste em prover o bem comum; a autori- se deflagarem uma te. e ido uma eo ogica, - p
dade nunca deve ser usada como um fim em si mesma, ou para fins egoístas. O ' Comb, porém, esse direito da natureza pode ser "verdadeiramente" conhecido
bem comum tampouco deve ser interpretado de modo que implique que se perca se depositarmos nossa fé na revelação e permitirmos dúvidas quanto à capacidade de
o indivíduo de vista no todo coletivo. Q bem comum deve ser o bem de pessoas con- a razão natural do homem desvelar áreas suficientes dos planos de Deus para que o
cretas. Desse modo, Santo Tomás diz que "o efeito apropriado do direito consiste cosmo seja verdadeiramente revelado? Os resultados resistiriam ao exame como cor-
em tornar os homen7bons". Isso quer dizer sue a ex.r-ss:* u si' —44
1
relações naturais, ou seriam simples asserções ideológicas? Eis alguns exemplos:
sentido para Santo Tomás na me.iea em que resulte no bem dos indivíduos. Ao
mesmo tempo, Santo Tomás diz que "o bem de qualquer parte é considerado em (i) Santo Tomás aceitava claramente a escravidão, defendendo-a por considerá-la
um simples reflexo da ordem natural e do fim natural de certas coisas:
comparação com o todo ( ... ). Uma vez que todo homem é parte de um Estado, é
impossível que um indivíduoseja bom a menos que bem ajustado ao bem co~ Os escravos não fazem parte do povo ou do Estado (Suma Teológica, 1-11, p. 98, r. 6).
rnum".Todo o esquema da sociedade e suasTeis caracteriza-se pelos elementos ra- O escravo é alguma coisa que pertence a seu dono porque ele é seu instrumento
cionais que o constituem. Portanto, mesmo que o soberano tenha autoridade e po.-
(Suma Teológica, 1, p. 97, r. 4).
der, o direito não deve refletir ese. poder 'em sentido puro, mas sim domesticado
pela razão e voltado para o bem comum. Toda racionalidade, todas as áreas de re- Por essa razão, está provado que alguns são escravos em conformidade com a
gulamentação devem levar em conta a operação do todo. O equilíbrio e a harmp- natureza, (De regimine princípium, Livro 1, cap. 10).
nJmperam de acordo com a razão usta sue em última análise se funda sobre a
certeza da existência de Deus. Mas o que aconteceria se tal certeza se visse .estruí- O Estado deve reforçar essa ordem natural: (...) a cada um o que lhe é devido. Ora,
da? Se a estreita 1jgçao entre o céu e a terra viesse a romper-se e o homem ficas- de uma coisa se diz que pertence a ele quando lhe é ordenada, assim como um escra-
cIio no mundo? O que aconteceria se a filosofia se opusesse a sua incorpo- vo o é por seu senhor. (Suma teológíca, 1, p. 21, r. 1).
ração à teologia e exigisse o direito de esmiuçar toda e qualquer pretensão ao sa-
ber?" A teologia sobreviveria a tal devassa crítica? Ou passaria por um processo de (ii) O elitismo político é naturalmente estabelecido. "Os hoiEnens de inteligência
superior são naturalmente os governantes e senhores dos demais" (Em Me-
desconstrução? O que, então, supriria a razão que está por trás do poder de comando
do direito? taphysicam Aristotelis: Commentaria, prólogo).
mas-
(iii) As mulheres são naturalmente inferiores aos homens. "Por natureza, o
culino é melhor e o feminino pior; e o masculino governa, enquanto o femini-
.9. Como afirma Leo Strauss (1953: 74), a reconciliação medieval da fé e da razão era insustentável:
no a ele se sujeita" (em IV Líbros politicorum: Commentaria, Livro 1, 't'releção
O homem não pode viver sem luz, orientação, conhecimento; somente através do conhecimento do bem pode 3, edição de Parma,Vol. 1V: 377).
ele encontrar o bem de que necessita. Portanto, a questão fundamental é saber se os homens podem adquirir esse co-
nhecimento do bem sem o qual não conseguem dirigir suas vidas individualmente, ou coletivamente, por meio do
empenho solitário de suas aptidões naturais, ou se dependem, para a obtenção desse conhecimento, da revelação di- Para as sensibilidades modernas, Santo Tomás está atribuindo à ordem emipírica
vina. Nenhuma alternativa é mais fundamental que esta: a direção divina ou a direção humana. A primeira possibili- das coisas uma cer z. - cá uiEna .aiiê séi"édsá as quais tal orde111ïíi'Ctem
dade é característica da filosofia ou da ciência no sentido original do termo, e a segunda é apresentada na Bíblia. O "direito". Visto desse modo, o conteúdo específico dessas teorias d3diruilonatural
dilema não pode ser evitado por nenhuma síntese ou harmonização, pois tanto a filosofia quanto a Bíblia proclamam
alguma coisa como a coisa necessária, como a única coisa que, em última análise, tem importância, e a coisa necessá- nãó mais •arecem revela ões de sabedoria eterna sue conferem exkiêndn t'
ria proclamada pela Bíblia é o contrário da que é proclamada pela filosofia: urna vida de amor obediente versas uma à criação, más 'sim uma racionalização daqueles aspectos da ordem cottingnl ' cor-
vida de livre discemimento.
rentemente aceita e um distanciamento das ., -- . 'citados. Assiin iur-
86 Filosofia do direito
so a uma ordem concedida por Deus serve para mitigar o mistério da natureza desse Capítulo 4
Vastõ contin: ente ao mesmo tem .o .ue atenua o desejo filosófico de dar con- Tomas Hobbes e as origens da
Iinuidade à busca do conhecimento. Para muitos mo. emos - e a segunda citação no
início deste capítulo, de Nfetzsche, é ü'm ótimo exemplo - as doutrinas teológicas do
teoria imperativa do direito:
direito natural podem ter servido para libertar o homem do rido do cosmo, mas su~ ou mana transformado em poder terreno
jeitaram-no ao,poder de uma inverdade organizada. A tese do direito natural e da or-
dem natural oferecia segurança existencial ao apurar e domesticar o encantamento do
mistério; a modernidade não demoraria a exortar a humanidade a seguir por outra
trajetória - a.da separação entre homem e natureza e da transformação da percepção
humana da relação entre natureza e direito. Em vez de a lei se tomar o mecanismo
capaz de ligar a capacidade humana de relativa autonomia e autodeterminação o Da harmonia, da harmonia celeste,
funcionamento e ordenamento naturais, a filosofia jurídica dos modernos - aquela Esta ordem universal teve início:
do positivismo jurídico - ofereceu à humanidade o mecanismo mediante o qual, se Quando a natureza jazia sob uma
tomava possível ordenar as relações sociais com base em sua modernidade, isto é, em Infinidade de átomos vibrantes,
sua inaturalidade. A história desse desenvolvimento irá ocupar grande parte. deste E sequer conseguia erguer a cabeça,
texto, mas pór ora é suficiente dizer que a liberdade dos modernos vem com um A voz melodiosa fez-se ouvir das alturas:
preço a pagar: o de um desencanto e consciência da contingência cada vez rnalorés. Levantai-vos, ó mais que mortos.
E verdade que chamar nossa posição no cosmo de contingente equivale a usar E então venham o frio e o quente, o úmido e o seco,
uma linguagem moderna, e denota uma extraordinária transformação. Este capítu- Conforme seu lugar designado,
lo começou com três citações; a primeira é um excerto do Apocalie, escrita num E obedeçam ao poder da música.
Da harmonia, da harmonia celeste,
momento em que perspectiva da morte era extremamente • esada .ara o autor,
Esta ordem universal teve iníço;
ue e s• editar na reli -'ãoe na es o eran a de reconcilia p; a segunda foi De harmonia em harmonia,
extraída dos escritos modernistas anti-religiosos de Nietzsche, cuipando a religião correu todo o registro das n_g.ta wv'is
p. submeter o dese o umano da verda.e aos imites 'as ideolo_ as reli osas, a E foi. corsumarse Ienarnentqi jfip (Diyden, 1687).
última citação é de Bertrand Russell, e nela esse autor defende a contingência. Na
Que obra de arte é o homem, e quão nobre sua razão! Quão infinitas suas facul-
modernidade, a tensão não resolvida pela teologia medieval entre a idéia de que
dades! Em forma e movimento, quão expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo;
"Deus é senhor da História" e a liberdade do indivíduo para dar forma a seu desti- na inteligência, assemelha-se a um Deus; a beleza do mundo, o paradigma dos animais
no ampliou-se quando Deus "morre a morte de mil restrições" (Flew, 1971: 14), che- (Shakespeare, Harnlet, 1604).
gando ao ponto em que o homem se tornou o motor da história. Russeil nos exor-
ta a enfrentar um novo senso de responsabilidade, mas cientistas contemporâneos
como o biólogo molecular Jacques Monod_ (que chamou seu livro de Chance and A A1ENÇÃO DIVIDIDA DO HOMEM NA TRADIÇÃO MEDIEVAL:
Necessity [Acaso e necessidade] também nos exortam a ter consciência do preço É PRECISO lENTAR CONTROLAR OS EVENTOS DESTE MUNDO OU
existencial a ser pago pela morte do conforto que encontrávamos no amor o e P eu. PROCURAR A SALVAÇÃO NO "OUTRO" MUNDO DO AMOR DE DEUS?
O homem deve, por fim, despertar plenamente de seu sonho milenar; e, ao fazê-lo, Shakespea, escrevendo sob a retórica da tradição medieval ao mesmo tem-
despertar para sua total solidão, seu isolamento fundamental. Agora, ele finalmente que e defrontava com o avanço da ética humanista da auto-expressão, deu-nos
se dá conta de que, como um cigano, vive no limite de um mundo que lhe é estranho. uma imagem dupla do homem. Por um lado ohomein, criado imagem de Deus,
Um mundo que é surdo à sua música, tão indiferente a suas esperanças quanto a seu e incorrupto Ha que se rejubilar com
sofrimento ou seus crimes (1972: 172-3). era ser maravilhoso
o que ç homem é capaz de fazer, e desesperar-se com o modo como as circunstân-
Contudo, quando a humanidade emergiu da Idade Média, a jurisprudência viria cias podem corrompê-lo. Por tro lad omem era uma vítima freqüente de uma
a atenuar a tensão entre o amor de Deus e o poder de Deus ao distanciar-se do amor incapacidade radical de fazer escolhas. Como Hamiet podia ser bem-sucedido se era
à rnetafl'sica e ao secularizar o púder. À figiiiEã chave dessa transição seria o inglês Tho- ao homem, e somente a efe, que se pedia para restaurar o equilíbrio do cosmo? Ape-
mas Hobbes. sar de todas as forças que a levavam à dissensão a Europa medieval era unida por
- 1,
uma concepção teológica do cosmo indivisível, o mundo e o céu unidos por uma ca- que se torne um :rande hipócrita e dissirnulador (...)". O príncipe deve ignorar o
deia contínua de causa, efeito e conseqüência. Mas enquanto Dryden, já em 1687, fato de suas ações serem consideradas virtuosas ou corruptas; ao contrário, deve fa-
podia representar um cosmo unido por harmonia musical, os acontecimentos do zer o que quer que for necessário - o que quer que for apropriado — à situação em
mundo fregüentemente soavam pungentes aos Q çJmaQs. Tantotr.i- que se encontra, de modo que obtenha sucesso da maneira mais rápida e eficiente
turaplatônicas quanto as aristotehcas cristianizadas levavam a atenção do homem a possível. A imagem do homem apresentada por Maquiavel era sombria e tinha por
cindir-se entre o mundo existehtee o outro mundo, enquanto se dizia ao homem base uma amarga experiencia Pessoal'.
quea salvação estava fora da caverna, ele desejava humanizar as condições da vida
presente. A luta entre os dois niiindos era intelectuaL. prática. e inexoráyel. Mesmo (...) coloca-se aí uma questão: se é melhor ser amado que temido, ou vice-versa. Não
quando, emMdida poi inec[ida, o duque implorava a Cláudio para lembrar-se da rea- duvido de que todo príncipe gostaria de ser ambas as coisas, mas, como é difícil con-
ciliar essas qualidades, se for preciso escolher é muito mais seguro ser temido do que
lidade escatológica quando se deparasse com a tentação - "Preparai-vos, portanto,
amado. Pois é uma boa regra geral sobre os hom ensbéfõué élés são ifiráfõsV5rú -
para a morte!" -, a morte era um aspecto demasiado presente. Nicolau Maqpvel, veis, mentirosos e trapaceiros, tementes aos perigos e ávidos por ganhos. Enquanto
pensadqjpQ1ítico italiano, talvez tenha sido o primeiro a desprezr o mundo espiri- lhes fizeres o bem, serão todos teus, e haverão de oferecer-te o próprio sangue, seus
tualda escatologia e da redenção, argumentando que devíamos nos concentrarem bens, sua vida e a vida de seus filhos ( ... ) desde que o perigo esteja bem distante. Mas
evitar a idéia da morte na vida corrente. quando o perigo está próximo, eles se voltam contra ti. E então, qualquer príncipe que
tenha confiado em suas palavras e não disponha de quaisquer outros meios de defesa,
irá sofrer grandes reveses; pois as amizades que se adquirem por dinheiro, e não por
O USURPADOR MAQUIAVEL: UMA PRIMEIRA tENTATIVA DE grandeza e nobreza de alma, podem ser compradas, mas a elas não se poderá recorrer
INFRINGIRA CONCEPÇÃO RELIGIOSA DO DIREITO NATURAL em tempos difíceis. As pes.sçrastêm menos escrúpulos em ofender um hom.en que-se
amar do que aquele que se faça temer: a razão é que o amor é um vínculo de obri:
Maquiavel (1469-1527) é famoso por duas obras um tanto contrastantes: Discur- gaçp que os homens, por serem maus, irão romper a cada oportunidade que1hesp
sos e O príncipe. Nos Discursos (que muitos críticos atuais interpretam como o pri- reça servir a seus propósitos; o temor, por sua vez, implic.a..pjedo castigQ.Qq1j
meiro texto a expor as idéias de um "humanismo cívico" ou "republicanismo cívico" iÇ9podem nunca fugi ([151 311977: 47-b).
moderno, a república romana era apresentada aprobativamente, e um tanto idealis-
ticamente, como defensora da autonomia e da liberdade. Os Discursos pregavam A crueldade, a tolerância e a lealdade têm seu lugar, são táticas válidas ou tam-
urna organização republicana livre na qual um espírito unifidostinser- bém podem ser facilmente descartadas, dependendo das circunstâncias. O direito
dte e apresentado como capaz de prodzir u uma nova individualidade - virtu -' não transcende a natureza do homem; é uma mera técnica de governar. As relações
uma ética livre da moral tradicional. Por'sua" z, O príncipé iecomendãea que um sociais são, essencialmeni js pelo poderj. a' .
ionarca absolutista deve ser capaz de grandes imposturas para manter-se no pp- oc -'Z,°7
e impor sua vontade; O príncipe enfatizava a ine\ itabilidade do conflito social e ( ... ) existem dois modos de lutar: um com as leis, outro com a força. O primeiro é um
método próprio do homem, o segundo, dos animais. ( ...) um príncipe deve saber como
a impossibilidade de eliminár a sepaiação entre amigo e inimigo.O overho ffáco utilizar esses dois métodos, e ter sempre em mente que um deles sem o outro não pro-
era em parte um reflexo dos tipos de obrigações morais, ou de imaginação norma- duz efeitos duradouros (Ibid.: 49-50).
tiva, que a religião oficial estimulava. A cristandade colocava a felicidade suprema
na humildade, na inferioridade e no desprezo pelas coisas do mundo, enquanto as Maquiavel organizou sua rejeição da teologia e da filosofia aristotélica como dire-
religiões da Antiguidade (ou assim pensava Maquiavel) haviam enfatizado a gran- trizes políticas, numa visão_4jhumanidade em que os produtos da atiiaçle hurra-
deza de alma, a força do corpo e várias outras qualidades que tornavam o homem ia eram vistos corno fenômenos naturais sujeitos as leis da natureza. As leis são bus
um ser formidável. A cristandade produzira homens fracos, levando-os a tornar-se cadas em seus próprios termos, e não através de metodologias subordinada à reJipii .
presas fáceis de homens mal-iiifenci6nadós: "Nós, italianos, devemos à Igreja de
Rumna e a padres o fato de nos termos tornado irreligiosos e maus (...)Se, por
um lado, a religião é necessària-para
necessária-para manter unido o povo comum e assegurar a 1. Maquiavel estava escrevendo em 1513 e até 1512, quando a família Medici recuperou o
Florença e pôs fim a sua breve experiência republicana. Maquiavel havia sido uma das .principab.
paz e a õrdern, levando-o a temer as consqucs dçQbedecer a autoridade,
da república, cuidando de assuntos internos e das relações com outros Estados.
por outro o governante não deve se deixar conduzixpr mitos religqqs,. A religião 2. A fundamentação análoga de Maquiavel era uma antropologia desagradavelment
era, de fato, um fnômeno "civil", algo que devia ser discutido à margem da mito- presentava homens e mulheres como seres mergulhados no egoísmo, na fraude e i u 11 1'
logia. O governante deve dissimular suas verdadeiras crenças e intenções "de modo 1com uma concepção quase sempre secular do governp.
-44
A IMAGEM ELISABETANA DO COSMO COMO nas universidades, em suas leituras e comentários do Digesto de Justiniano. A associação política requer um
UMA CADEIA ESTÁVEL DE SER mito do sei e um apelo à crença em alguma coisa transcendente é parte do conceito mesmo de corpo místi-
co. Oçâ4d er sobrenatural e místico, que o corpo re]igiQsQ requer foi transferido para as idéias de cornunja-
de politicaOs celebrimte.â dsse ritual com especialistas em direito e em filosofia jurídica que traziam "para
A maioria dos contemporâneos (e, na verdade, a maioria das personalidades do a política secular, por assim di7er, um sopro de incensos de outro. mundo (k nitorowicz 1957 210)
establishment ao longo de vários séculos subseqüentes) ficou chocada com os escri- '5 A escolha se dá ehtre aceitar a tese aristotélica da unidade do bem e da indivisibilidade da ética e da
tos de Maquiavel. Considerava-se que defendiam uma política do mal: o cardeal Re- política, ou em seguir Maquiavel na clara separação desses domínios e enfatizar o papel central do controle
giald Pole afirmou que o escritor italiano escrevera "com o dedo do demônio`. Ma- e do modo de lidar com o conflito na ordem social. Na verdade, as duas imagens não eram totalmente sepa-
radas. Pocock (1973, 1975, 1985) argumenta que o pensamento político moderno abrangia os dois estilos de
linguagem política, um dos quais conseguiu impor-se com o decorrer do tempo. A linagemdavirtudq,foi
brepujada pela linguagem dos direitos, desenvolveu um paradigma de direito nd cquión exprecão
3. O encontra-se no fato de. ele ter, simbolicamente, redu oDeusàfotturia (ou mófmde uma filosofia juridica u ncq,ente. LiberdaiI e autonomia eram expressas pelo termo libertas,
ao acaso), que se assemelha o um inimigo a ser conquistado. Como Leo Strauss interpretou sua mensagem mas, na nova linguagem dos i: ' as, Lictas significava autoridade absoluta, a liberdade de impor seu pró-
(Thoughts on Machiaveili, 1958: 218-23), a natureza torna-se mais ou menos equivalente a uma ordem mis- prio direito. Aauto ido adão consiste, portanto, na liberdade de desempenhar suas atividades 4a
teriosa à qual só podemos nos referir como fortuna. É impossível conquistá-la, mas o homem sábio aprecia proteção do direito; na linguagem repilblárính por ôutro lado, insiste-se na autonomia no sentido de p4rti
seu caráter. Strauss argumenta que Maquiavel "abandonou a compreensão teleológicada natureza e ne- cipação no governã do Estado, presa a uma concepção do homem corno animal político que só alcança a con-
cessidade natural substitumõáje1i ompreensao alfàrnatiã Refere se bhm muih fE'quc nu acid& sumação de sua natureza através de suas atividades na esfera pública. O historiador Quentin Skinner (1978)
te?, mas nunca a "substâncias". Portanto, Maquiavel adverte que, embora o homem moderno cle e colocar mostra que tanto a linguagem dos juristas quanto a republicana coexistiam no desenvolvimento da repúbli-
o cosmo sob controle humlírio, o natureza do cosmo é imprevisível; assim, prc Lkamos aprender a viver com ca italiana, mas que a linguagem dos direitos naturais veio a suplantar a da virtude como uma tradição do li-
o acaso compreendido Lomo uma necessidade não teleologica que cede csj ço a escolto 1 aprudencia e beralismo, emergindo com idéias sobre as leis associadas aos direitos e à subjetividade do individualismo, em
p5fte motivo, ao acaso compreendido corno causa de acidentes simpkamente imprevisíveis". vez de firmar a linguagem do cidadão virtuoso. Skinner vê Hobbes como figura central na criação de um
Os escritos subseqüentes, ainda que não mencionassem Maquiavel, eram em grande parte uma res- modo de raciocínio político no qual a autonomia se converte na defesa dos direitos individuais.
posta a sua conclusão de que a associação política equivalia à união de pessoas detestáveis em agrupamentos * Importante pressuposto do pensamento europeu anterior ao século XIX, segundo o qual todos os se-
instáveis e essencialmente fragmentários. Os textos gregos clássicos e a tradição cristã de Santo Agostinho e res e coiàas, dos inanimados a Deus, existem em uma perfeita relação hierárquica na qual tudo tem seu devi-
Santo Tomás de Aquino haviam conferido à interação humana em associações políticas uma importância qua- do lugar. Esse conceito está na base da filosofia platônica, e sua manifestação mais conhecida no pensamento
se mística. Ernst Kantorowicz identifica um processo na Idade Média por meio do qual o conceito religioso neoplatônico inglês encontra-se no poema Essay on Mau, de Alexander Pope. (N. do T.)
de corpos mysticum fora transferido da Igreja para a idéia de império, e em seguida, em termos gerais, para a 6. O jurista protestante Hooker foi um dos primeiros exemplos desse tipo de pensamento. Ri&li.iI
de qualquer "corpo político" (1957: 193-272). Esse processo era a obra de legistas profissionais concentrados Hooker (1553-1600) foi um teólogo e filósofo social e político inglês. Seu livro Laws of Ecclesiastical Polui,
92 Filosofia do direito Tomas Hobbes 93
A DIALÉTICA DO MEDO E DO PODER QUANDO A to político que nos permitisse perseguir nossos objetivos e nossos interesses.
CONCEPÇÃO MEDIEVAL DESESTRUT[JROU-SE pansão e o prqgres,so eram possíveis, mas sóoseriam se pudéssemos, primeiro, criar
a estrutura de uma 6i-dem social estável Seu segredo era o calculo, o calculo racio-
A ordem terrena da síntese elisabetana era precária. A 5 de abril de 1588 che- nFd seis"f(íiiianos individuais com base em sua experiência da condição huma-
garam notícias de que a Armada espanhola havia partido. O choque fez com que a na. Hobbes concordava com Maquiavel quanto à existência de certas regras naturais
esposa do vigário bêbado de Westport, em avançado estado de gravidez, entrasse em que devem ser obê dsFia criação de uma sociedade pohtica befh-sucedida - ou
trabalho de parto. Nasce ali o filho do casal, um novo Thomas Hobbes (1588-1679). coilhonwa1th, cofio er 4i Hohbes - e e mediantc s obediência i tais regi is como
Como diria mais tarde esse mesmo Hobbes, "minha querida mãeEfeu a luz dois gê- na geometria, e io atiaves do meio exercício das aptidões piaticas de cada um,
meos a mim e ao medo". Na êfdád€ ohberabsnío fit(5õfi3 tire por base essa coiKoriôr fêjis, que o sucesso pode scr alcançado Ate então, contudo, ninguém ha~
eoçdT'o desejo hobbesiano de preservar seu domínio terreno contra a expecta vi7ido diiiíbidadé ou fiétodo suficiente para determinar quais eram8. Com esse
tivada morte'. Hobbes desenvolveu essa perspectiva como se fluísse à maneira de conhecimento, porém, tornava-se possível tomar o controle das organizações sociais
uma corrente intelectual submersa - a perspectiva do direito como uma convenção, e dar-lhes, sucessivamente, as formas que parecessem mais apropriadas'.
e a da sociedade como um artefato - em textos anteriores, conferindo-lhe um novo
e poderoso significado. Em meio a uma ordem social que se deparava com o caos da
Guerra Civil inglesa, Hobbes escreveu o texto fundamental da filosofia política ingle- JL RELAÇÃO DE PODER INERENTE À RELIGIÃO NATURAL
sa, o Leviatã (1651), fundando ao mesmo tempo umajJQspfi4 política dominante COMPARADA COM O PODER DO CONHECIMENTO
para a'i erruae, 6li&Falismo político, e uma iiova ética social, a defesa do
direitos. iühdõt tôrnrtr liüjaam'ihdivídiio buscar à satisfação t Maqyl desagradara a muitos ao dar a impressão de sugerir que a religião ti-
di[àfos, elaborar seus projetos pessoais e sociais e dar-se conta de seu po- nha um conjunto de funções naturais; que a relião era, em outras palavras, upia
der. Qualquer que fosse o poder final do cosmo era indiscutível, afirmava Hobbes, ideologia um modo de pensar que tinha resilítados piti negatis os cfejtos
que somos responsáveis pela sociedade civil, que podíamos conceber um instrumen- positivos e negativos Com o tçrnp, esse "natui ilismo' crescente viria -i tomar-se a
ca de Hobbes teste rounhamos urna in-
base da sociolobi.a (a la Cornte, mas na epo n
til ãÇãO de concepës riãfuralistas nas estruturas intelectuais. O naturdismo ad-
filtração
uma aplicação direta do aristotelismo de Santo Tomás de Aquino à sociedade eisabetana. Embora ele tenha mfue axeriência religiosa tem algum sentido, nias nega a existência de algo
avivado a discussão com expressões pitorescas e emoções fortes, estava convencido de que o aristotelismo
era o único caminho para o humanismo cristão. Em contraste, o novo direito natural do século XVII (o de Gro-
para além da natureza, e portanto não há base alguma para . P crença no sobrena-
tius, por exemplo)viria a fundamentar-se em estimativas de interesse pessoal esclarecido. O direito natural tuf tal crea a7de fafê, um ondiçio da mcnte que tinha um pipcl i cumprir
perdeu a associação que tinha, através da interligação estrutural, com as regras estabelecidas por Deus. Para rraTffi5nufenção do poder na sociedade.A cristandade tradicional sustentava que
Hooker, porém, quando olhamos para o mundo estamos vendo através de olhos que vêem todas as coisas eiiiItffiia instância, Deus ej.í'el de comprovação racional. Deus era o locuse
omo sinais do lugar que ocupamos na cadeia dos seres. O mundo reflete uma ordem subjacente de coisas1 o ser de tudo que não podíamos saber, mas podiamos entender como poder Deus
'que não devemos perturbar, pois se a harmonia da ordem for rompida o resultado será o caos e a destruiçâo.1 erao artiflcepneiro cuja existência devia ser mterida a partir do fato da ord
"Pois vemos o mundo todo e cada uma de suas partes de forma tão compacta que, na medida em que cada
coisa só desempenhar as funções que lhe são naturais, irá preservar tanto as outras coisas quanto a si pró-
çãodopQ; a causa primeira, uma vez que nos demos conta de que tudo que
pria. Por outro lado, se qualquer das coisas fundamentais, como o Sol, a Lua, as esferas celestes e os elemen- existe tem uma causa; o motor primeiro; a fonte da bondade - o lugar do valor ab-
tos, deixarem de funcionar ou mudarem de direção uma única vez, quem não perceberia que a seqüência daí
decorrente implicaria a ruína para si própria e para tudo o que dela depende? E será possível que o homem,
sendo não apenas a mais nobre das criaturas do mundo, como também um rnundm si mesmo, não pro- 8. "A capacidade de criar e manter os Estados reside na adoção de certas regras, como na aritmética e
vocaria danos e prejuizos se viesse a transgredir a lei dc' sua natureza?", na geometria, e não (como no tênis) na observância exclusiva da prática; quanto a tais regias, não foram ain-
Ffubbes passou a maior parte de sua vida adulta como secretário dos Cavendish, condes de Devon- da descobertas nem pelos homens pobres, que não têm a curiosidade nem o método para fazê-lo, nem por
shire. Os estudiosos têm observado como, em sua experiência de vida, Hobbes (assim como John Lõcke) não aqueles que os têm" (Leviatã, ed. Tuck 1991, cap. 21: 145; as referências posteriores a esse texto serão assim
privou de relações familiares habituais; Hobbes levou uma vida mais fechada do que dada às afeições. Ain- anotadas: Leviatã, capítulo e página da edição Tuck).
da que tivesse a coragem de escrever sobre idéias impopulares, orgulhava-se de sua capacidade de esquivar- 9. "inda que nada do que é feito pelos mortais possa ser imortal, mesmo assim, se os homens usas-
se a qualquer forma de perigos físicos. Além de seu exílio auto-imposto na França enquanto a guerra civil as- sem a razão do mesmo modo como fingem usá-la, poderiam garantir que, em virtude de males internos, seus
solava a Inglaterra, Hobbes bebia muito e vomitava para purificar o organismo (apesar de sentir desprezo Estados não viessem a perecer. Pois, pela natureza de sua instituição, destinam-se a viver tanto tempo qilan-
pela embriaguez), jogava tênis, cantava o mais alto possível para exercitar os pulmões e exorcizar os espíri- to a humanidade, as leis da natureza ou a própria justiça que lhes dá vida. Portanto, quando vêm a.ser dis-
tos, e chegava mesmo a tomar banho regularmente. Na meia-idade, parou de comer carne vermelha e, numa solvidos, não por violência externa, mas por desordem interna, a culpa não é dos homens enquanto matéria,
época em que a expectativa de vida não era grande coisa, morreu aos 91 anos de idade. mas enquanto seus criadores e administradores" (Lsvjathan [Leviatãj, 29: 221).
94 Filosofia do direito Tomas Hobbes 95
soluto; a totalidade da perfeição; a fonte, na verdade o poder, da criação; o ser mais Contudo, vinham-se desenvolvendo duas metodologias que forneceriam o ma-
grandioso do que qualquer coisa em que possamos pensar (a chamada prova onto- terial para Hobbes se opor a essa experiência: o empirismo de Francis Bacon e o ra-
lógica de Santo Anselmo); o objetivo, ou o fim, da ordem criada (a prova de Erigena), cionaIig3.o de Renê Descartes.
e assim por diante.
tingência histórica o fato de a contemplação humana desses rni dos limi-
O PAPEL DO PODER E DO CONHECIMENTO NA OBRA DE FRANCIS
tis de seu conhcimento - ter se transformado em forma de religiões organizadas,
BACON": O CONHECIMENTO CONFERE PODER, MAS O VERDADEIRO
cada qual com credos específicos e "anunciadores da verdade" CONHECIMENTO P-ROVÉM APENAS DO MÉTODO EMPÍRICO
®-natitàliiióàéeÍta uma orientação religiosa como parte da psicologia huma-
na: para Hobbes, a religião tinha por base o reconhecimento da existência de uma Francis Bacon foi o precursor da tradição empírica inglesa. Estabelecia urna sólida
causa primeira e um sentimento de assombro e temor reverencial diante do poder de distinção entre o conhecimento inspirado pela revelação divina e o conhecimento que
tal causa em gerar o universo. No Leviatã, Hobbes chocou seus leitores ao argumen- provinha dos sentidos; este último era o único verdadeiramente capaz de melhorar as
taiparentemente, cpie não.existeiehum 'mcuto inevivel oulogico entreesa condições deste mundo. .O pensamento independente e especulativo tinha sua . impor-.,
orientação religiosa natural — o sentimento de assombro e temor diante de nossa fal- tânciaminimizaa em favpr da compilação de fatosp'&'meio a dbservacão organiza-
jta de conhecimento e poder quando confrontados com o absoluto - e o teísmo con- da e sistemática, que resultava na criação de teorias, O antiescolasticismo de I3acon le-
•vencional. Não podemos conhecer a natureza da causa primeira e, quando examina- vou-o a rejeTi'lógica silogística tradicional como meio de descoberta empírica
i'n diferentes soeiëdades, nelas encontramos diferentes convenções relativas à ex-
'os mesmo tempo que herdara de Platão e Aristóteles a idéia de que a mepte ,,çni-
pressão de assombro e temor reverencial — em outras palavras, diferentes estruturas nadpelõiô láiTa1as féçasBacon sustentava que a fonte do verdadeiro co-
atu-
institucionalizadas para julgar o sentido dado a nossos sentimentos religiosos natu- nheciii iif era a natureza em si que não mente Por esse motivo, a mente precisa ser
rais.Võ
rais. Vie—m
--o' jtmtodeiirigaàgem teo ogica cujàfdd; contudo, não vai além de depurada de todas expectativas, conjeturas e suposições que constituem fontes de erro
um sentido expressivo: tal linguagem é de natureza puramente emotiva, e nela não e impureza. O cientista deve observar mundo que o cerca a fim de preparar sua men-
há valores de verdade para além daqueles que refletem a posição do (s) falante (s) (ver te para interpretações imparciais da natureza Esta, segundo Bacon, "traz em si a assi-
capítulo 31 do Leviatã). As conseqüências dramáticas dessa infiltração naturalista no natura de Deus, e são estas, as verdadeiras foin ias das coisas, que constituem o objeti-
posicionamento do direito e da organização política podem ser aferidas por meio da vo da filosofia natural, e não as imagens falsas que a mente humana impõe às coisas"
' verificação da realidade fenomenológica expressa na experiência religiosa. (Hesse, 1964: 143). Portanto, Bacon defendia "a total reconstrução das ciências, das.ar-
Vejamos, primeiro, Santo Agostinho a propósito de sua descoberta de Deus teçje todo o conhecimento humano" sul itiiiinda autondade da convicção reli-
giosa ou filosófica baseada no estudo dos textos de Aristóteles e Platão, bem como nos
como a verdade:
da'Bíblia —qie forneciam ou a autoridade externa da revelação, ou a autond ide inter-
Verdade Eterna, amor verdadeiro, amada Eternidade sois tudo isso, meu Deus... na da razão - pela autondade dos sentidos DL\emos nos libertar de todas is idéias
Mirei-võs com olhos demasiado frágeis para resistir ao fascínio de vosso esplendor. O preconcebidas - OS ídolos da viverna da tubo da leira livre e do'teatro1 - nos pleo-
brilho de vossa luz sobre mim refulgiu, e vibrei de amor e reverência ao mesmo tempo upar uni,e, exclusivamente com os 'tQs fatos podeFn sei deseiõlvidos u5m
(Confissões, VII, 10) 10
11. Nascido em 1561, filho de sir Nicholas Bacon, chanceler-mor e guarda-selos do rei, Bacon foi para
Deus é o único ser verdadeiro, e tudo o mais pode ser posto em dúvida: Cambridge aos doze anos e, já aos dezesseis, era admitido na Gray's Inn.' Tornou-se membro do Parlamento
e, mais tarde, da Câmara dos Lordes; depois, passou a procurador-geral e, por último, a presidente da Câma-
À distância, ouvi vossa voz que dizia: "Eu sou o Deus que É" ( ... ), e no mesmo ins- ra dos Lordes. Escreveu obras filosóficas de grande interesse e teve uma carreira extremamente bem-sucedida
tante dissiparam-se todas as minhas dúvidas. Ser-me-ia mais fácil duvidar do fato de no direito e na política.
estar vivo do que da presença viva daVerdade (Confissões de Santo Agostinho: A odisséia 12. Os ídolos da caverna referem-se às limitações da mente não cultivada, fechada na caverna de seu
da alma, 1969: 1-3). próprio sistema de costumes e opiniões; o ídolo da tribo é a preocupação do homem com as opinia dos ou-
tros; os ídolos do mercado remetem às palavras da vida cotidiana às quais o homem tende a conferii sibl dfica-
dos indevidos; os ídolos do teatro são os grandes dogmas sistemáticos de longos tratados filosóficos me; qi ais es-
10. E também "Que luz é essa cujos suaves raios vêm às vezes atravessar meu coração, levando-me a tudamos os conceitos criados pelo sistema filosófico, e não pelo mundo real. Precisamos destruir todos os ído-
estremecer de temor reverencial, ao mesmo tempo que me aquecem com seu calor? Tremo ao sentir como los e proceder a uma reconstrução que tenha por base a segurança dos fatos do mundo, e apenas deste.
sou diferente dela: contudo, na medida em que a ela me assemelho, ilumino-me com seu fogo. Trata-se do 'Uma das quatro associações inglesas de formação de advogados (Gray's Inn,Lincohz's Inn, Inuer Temple, Mlddk Tem-
fogo da Sabedoria" (Confissões, XI, 9). pie). (N. do T.)
96 Filosofia do direito Tomas Hobbes 97
base em "experimentos", e o conhecimento indutivamente criado a partir de observa- O PODER QUE ESSAS ESTE UTURAS CONFEREM AO AGENtE HUMANO
ções simples de proposições especificas e de suas séries e ordens. O método de Bacon, CONTRASTAVA AGUDAMENTE COM A IDÉIA DE DEPENDÊNCIA
contudo, deixava de compreender o papel,de~hiPótese e depositava uma ing ênua INERENtE j EXPERIÊNCIA MÍSTICA DO.SAGRADO
ciia nos ditos como uniddes esti uturais inquestiona\ eis Não obstante, retirou
a u1oudadc do escolasticismo ennnto mctodoloia científica ao argumentar Aexpriência religiosa, ao contrário, tem por base a presença de algo que é mais
única incira de melhoraras condições do homem no mundo estava na.£Qaqui_ sta do real do que eu mesmo eomundo e minha experiência imediata. Eu, Portanto, tor-
v'ëIã'&iro conhecimento dos proceos n atura is empíricos. no-me relativo. O outro, Deus, é a coisa em relação à qual tudo o mais é relativo. Qual
é o efeito disso sobre n ftãiicia sa-
grada, o eu é o ens realissimus: o eu toma-se o seu próprio fim. O mundo tem interes-
A ABORDAGEM CONTRASTANTE DE DESCARTES`: O lESTE se não na medida em que possa nos revelar o desígnio de Deus para conosco, mas na
DO CETICISMO E A TAREFA DE ERIGIR UMA ES IRUTURA medida em que possamos identificar as oportunidades de aúto-elevação. A consciên-
RACIONALISTA A PARTIR DE VERDADES INCONTESTÁVEIS ciapJ,p,na vê a si própria como o cerrtro,o foco da verdade, do ser; exatamente o que
a modalidade de consciêncr'e1{foa não -s'e"-a credita ser.
Descartes propôs um nõvõ começo e uma nova metodologia para a aquisição moderno. É uma organização
do conhecimento seguro; devíamos erigir estrutiítras de conhecimento sobre as ba- social criada pelo homem que toma a seu cargo os interesses de uma determinada
ses daquelas ntiddes 'ueq sobrevivessem ao teste do ceticismo absoluto. O ceti- área geográfica e se organiza sobre bases que escolhe racionalmente. Para a nação-
cismo cartesiano era intransigente. Não se admitia nem a experiência mística nem Estado resultar da coçj çjçj cistan e,, vr-se para. além d..uçIpqpe
nenhuma apreensão do "outro" Nari'arfativa de Descartes, quando duvidãos de as cidades-Estado gregas podiam conceber, é preciso abandonar
tudo que rã niegiIhamos em uma viagem introspectiva em busca daquo
?iãd iâiio diante.'.-do ser de Deus, diante do. sagrado. Como se descreve no Livro
dçjistência não se pode duvidar, o ponto do absoluto arquimediano, a fonte -,
de Isaias:
d certeza, eme ultima instâniãhêgãï5sfl jçsa propna consciência
"Pso, logo exi" Tudo o mis pode ser posto em duvida, auruca certeza e mi- Eis que, para ele, as nações não são mais que as gotas de um balde,
.de ipa opja extticl1 O puro ego consciente`. Sobre tal não mais que a umidade das balanças;
base pode-se erigir uma estrutura da certeza racionalista". costas e ilhas pesam tanto quanto um grão de pó.
()
13. Renê Descartes, freqüentemente chamado de Lmoinia fii nasceu em Touraine em Todas as nações se reduzem a nada perante ele,
1596. Educado numa escola jesuíta, ficou profundamente impressionm' coa certeza e a precisão da ma- que as yê como menos que nada, como mera insignificância (Bíblia: Is 40, 15.17).
temática, ao contrário da imprecisão da filosofia. Como Bacon, Descartes julgava necessário destruir boa par-
te das idéias correntes e começar tudo de novo. Descartes, porém, não confiava nos sentidos, e tomou a si a E os israelitas, aos quais se prometeu o status de nação, de um futuro destina-
tarefa de criar a certeza intelectual a partir das verdades fundamentais de sua própria razão.
do à grandeza, foram também lembrados de sua dependência... do fato, da realidade
14. Descartes procurou obter uma fundamentação segura para a razão independente da tradição, do
costume e áa imprecisão da experiência. A nova base deveria ser a razão do homem; somente aquelas ver- inconteste de que eram como nada diante de um poder que se erguia sobre todos.
ades que ele pudosrc conhecer através de suãsprps aculdades. A estrutura era um sistema de,- Que a todos criara...
mento cujos diferentes prinuplos eram portanto verdadeiros u'ociados de tal modo que a pente pudes
se mover se facilmcntc di um pirnupio eidadeiro p silo outro A mtematica (com a ca d te Eu sou o Senhor, vosso Santo,
de aje n dci certas idd'. básicas por exemplo que' 2 + 2 = 4) a.~ (uma concepção intelectual de o criador de Israel, vosso Rei.
clareza tal que nenhuma duvida se 'ioina possível) e a deda,p(o processo de raciocinar por inferência ne
•J cessária, a partir de fatos conhecidos com gga) fornecia a metod2gia. O ponto fundamental - o ponto
que era irredutível depois de se duvidar de todas as coisas - era o cogito ergo sum, "penso, logo existo". Com
base nisso deduzimos que outras idéias que também podemos conceber com c1arezae nitidez são também
verdadeiras. Mas que garantias temos de que essas idéias são, de fato, verdadeiras? Em última análise, Des- de pensamçnto e crenças substantivas, mas através de uma análise do sujeito abstraído, comprometido com
cartes tem de introduzir eus conEl a garárRiffiã c6nclusiPã"flui'a, porém, é uma crença defensiva, ainda que padrões de auto-afirmação racional. São essas as origens de uma consciência especificamente moderna E de
racional, requerida pela necessidade de pôr algum fim a uma regressão infinita na busca de uma garantia de- um método analítico abst °atof O pensamento racional pode satisfazer-se com urna metodologia histórica
finitiva; de outro modo, não haveria nenhuma fundamentação, nenhum início para a razão. analítica, e não histórica. O presente texto afirma, em contraste com boa parte da filosofia e d teoria jurídi-
15 Observe-se também outra conseqüência da metodologia cartesiana dïato de ser anti histonca A ca modernas que toda analise tem lugar Íiõ'iãiãuiodde a sintesé anlero» e qimi 50 plenamente
procura da certeza absoluta não é conduzida através de uma análise histórica da'ãensão e queda de formas compreendida como um desenvolvimento que se ria a partir desta Todo pensamento o contoxtual,,,
98 Filosofia do direito Tomas Hobbes 99
Eu, eu sou o que nos, e então o mesmo se pode dizer de nossos processos demarcatórios. Estaremos
apaga tuas transgressões por amor a mim, condenados ao anarquismo epistemológico? Hobbes resolveu as divergências sobre
e que não irá lembrar-se dos teus pecados. a natureza do ser por meio do apelo a um Deus misterioso e onipotente cujo poder
è cujos fins enconfram-se si! lsmëiifi1éii de nossa limitada capacidade de en-
Lembra-te destas coisas, ó Jacó,
tendimento. Deus finalmente pergunta a Jó: "Onde estavas quando eu criei a terra?",
e Israel, pois és meu servo;
dei-te forma, és meu servo; e Jó se vê reduzido a um estado de patética dependência:
ó Israel, não me esquecerei de ti.
desfiz tuas transgressões como uma nuvem, Nu saí do ventre de minha mãe,
e teus pecados como a névoa; e nu voltarei para lá.
volta para mim, pois já te redimi (Is 43, 15.25; 21.22). O Senhor dá e o Senhor toma;
abençoado seja o nome do Senhor.
Como deve'o homem dirigir-se a Deus? A linguagem de Abraão, quando pede / ..
1eL d &J 4P
permissão para orar pela corrompida Sodoma, será apropriada?: 'Atrever-me-ei a fa- Hobbes compreendeu que Deus esta na base da obediência porque "seu direi-
lar ao Senhor, ainda que eu seja pó e cinza?" E Jó16, que de tão maltratado atreveu- to de dominar e punir aqueles que infringem suas leis provém do fato de ser irre-
se a questionar as razões e o poder divinos?"Jó era um bom homem que andava à sistível o seu poder".
procura de Deus, mas que ainda assim foi por ele perseguido e injuriado., É eviden- Qual era a lição? Deus, o misterioso criador do mundo, é senhor do mundo
te que Deus recompensa a bondade e castiga a ma1d;,pqrq que criou. Onde estávamos quando Ele o criou? Poderia algum de nós realizar tal
peito de udbónaade, submetido a tormentos horríveis e reiterados? Jo, que havia proeza? Por comparação, somos semelhantes ao nada. Q poder ei,ié. irre.sis-
11— tível porque (i) com razão, tememos um ser tão superiora nós que criou o mund2
visto os maiip
rosperarem e os virtuosos fracassarem, começou a questionar a preo-
inteiro, (i' iãõpodemosentender o desígnio de todas as coisas criadas por
cupação de Deus e ousou perguntar "por que?" Finalmente, Deus rompeu seu silên-
cio divino e, irônico porém colérico, negou a Jó qualquer direito a questionar o modo ou cada injunção 01 ele cstabelecida para lidar com as exigências da vida
comum entre seres finitos e orgulhosos. devemos, não obstante, acreditar que existe
como exercia seu poder. Hobbes leu a passagem com renovado interesse, perce-
urosito nas regras estabelecidas por um ser tão podei oso, (iii) se ele termi-
bendo que ali havia uma mensagem vital:
nara por impor sua vontade a toda e qualquer oconencia, o melhor a fazei e seguir
E quão amargamente Jó discutiu com Deus, queixando-se por sofrer tantas cala- sua ã1ãra desde o inicio, e (iv) é, natural que vivamos em estado dc ftnoi teve-
midades quando era um homem justo! E o próprio Deus, por sua própria voz, resolveu i:encial diante de tal mistério e que o dotemos de qualidades benignas para dimi-
essa dificuldade no caso de Jóe confirmou seu direito com argumentos,que foi buscar flUijflQSSQ temor,
não no pecado de Jó, mas em seu próprio poder (11w Citizen [Do cidadão], cap. 15: 293). mudo, e se o poder transcende todas as qualidades, não é nem. moral nem
amoral, rtem generoso nem cruel?E se... o poder simplesmente é?
Deus pode exigir obediência e punir o erro em nome de seu poder, e não por- Pi!i52a liãô a sãTêxtraída lirdxperiêndde JëYà simples: poder em esta-
que o erro preexiste a seu poder; seu direito não foi buscado "no pecado de Jó, mas do puro. Era o poder divino que determinava os prócessos do cosmo, que determi-
em seu próprio poder". Não podemos resolver o problema de definir o mal, de tra- nava a verdade. E se o .oder divino orém, fosse simplesmente o funcionamento
çar alinha divisória entre o TgTilegal, crie o m e o bem, a noim1Tdade e o des- da natureza? Uma vez mais e se o poder divino(o positivo, lu, az a
vio da norma, por meio da discussão ffife1ectual ou da revelação da ehüra natural o cont pp,de nossa falta de poder (aausêrjcia, as trevas, a. 1gnQrr1.cia)716
do ffi~üiidõ.'Dã" mos plasmàr nosso destino por seguirmos Hobbes, aquele homem temeroso, vê-se subitamente destemido... Dará a:seu
õEllFâiFs de nossa ontologia; pois nossa ontologia não pode revelar uma ontolo- texto fundamental o título de Leviatã Ao com .reender a s osi ão de ó, Hobbes deu
.
gia que nos fale de nosso télos. Nossas palavras nada mais são que artefatoshuma- uma resposta.a Deus: podemos fazer um acordo.
16. O nome hebraico Jó significa, equivocadamente, "o odiado, o perseguido", e "onde está o pai divino?".
17.A importância de Jó para o pensamento de Hobbes pode ser percebida no fato de que dois de seus pró- 18. Como afirma o Zaratustra de Nietzsche: "Permiti, porém, que eu vos revele todo o:meu coração,
prios textos receberam títulos com base em monstros neles introduzidos: Leviatã, o poderoso senhor do mar que meus amigos: se houvesse deuses, como poderia eu suportar não ser um deus! Frtanto, não existem deu-
"contempla tudo que é elevado" e "reina sobre todos os filhos do orgulho", e Behemoth, o monstro terrestre. ses" (1954: 198).
100 Filosofia do direito Tomas Hobbes 101
HOBBES CONCEBE UM ACORDO COM DEUS POR MEIO DO QUAL guém tivesse fé nos princípios do cristianismo, aceitaria o caráter especial das
O COSMO SE DIVIDE NOS DOMÍNIOS DE UM SOBERANO TERRENO mensagens transmitidas a partir de Cristo, por meio da sucessão apostólica e do
E UM SOBERANO ECLESIÁSTICO sacerdócio oficial. Mesmo o soberano deve "interpretar as Escrituras Sagradas
através de clérigos devidamente ordenados" (XVII, 28). O homem, porém, tem po-
Hobbes se dá conta de que a essência que subjaz à relação do homem com a der no mundo. A harmonia da cristandade medieval é, ao mesmo tfi Ti°timà es-
religião é o mana, ou medo do poder". O poder do desconhecido, o poder do miste- tirocrática qüe se tornou possível graças à capacidade de interpretação do
clero organizado, e um arrebatamento em que o mundo é um texto no qual os si-
rioso, o poder... o mero poder incognoscível que reduz tudo o mais a um ser insig-
nais divinos acham-se inscritos. S 21 11çhbes transfere aluz da ver-
nificante. Criamos religiões oficiais com suas doutrinas elaboradas e cadeias de au-
dade revelada para a'investigação empírica ç,pjj,ço na,pj1. Contudo, a idéia
toridade - e seu direito de conferir autoridade às distinções do mundo terreno - em não é abandonada. Hobbes encontra me-
de
azão do medo desse poder. Pelo temor reverencial diante do mistério do ser. Só táforas de Parmênides e Platão, nas quais a verdade oferece "luz" e dá confiança
podemos nos tornar modernos se nos apronarm do podr que dá orim a esse parase agir, reafirmadas em textos bíblicos22 flsfzjx,ê,jçaje, d,e limda reve-
tiioi, se o trai sfoimarmos em um poder dentro de ngs mesmo lação divina para a razão e a natureza, Hobbes tenta
"Quem pode organizar esse mana na sociedade civil? Todos nos não, uma vez única fonte ao mesmo fõue rnudaodomimo mis precisamos deix .. a
que só iríamos nos contradizer e provocar o caos. Precisamos ser rç caverna, urna vez que agora somos capaz do indagaras sornbra.sformas as
alguémtome decisões. O Soberano é a figura-chave para decidir de que modo ilusões e os proe6s dasformas dessa vida._iafontep ormaseima.-
esse temor reverencialdeve ser expresso, razão pela qual toda religião é, em princí- genseste munJo é a linoiiien,.
pib'íiPi O mistério subjacente as experiências religiosas naturais exigeen- Hobbesé umoii iii tahstj. As palavras não têm uma essência pura ou uma
sãõ; para criar o conhecimento necessário à compreensão precisamos da imaginação coerência natural com certas entidades doiundo Ao contrário, eum instrumento,
epistemológica, e os produtos dessa metodologia enistemoldeica incluem a ordem e suas criações, suas estm rasegnificado,sãortefps , humanqs. Hobbes é cla-
social. Enquanto Hobbes reserva sua plena enunciação epist'mo1ógica para oLe- ro: o mundo moral é produto de artifício ou criação humana. A linguagem torna
viatã,2° em Do cidadão ele se fixou no papel institucional da fé, afirmando que, se al- possível o desenvolvimento de uma cultura complexa. Mas como se pode evitar uma
lk
4o p;Y mistura desorganizada, confusa e caóEd significações, um tartamudeio
de discursos e significados, uma verdadeira guerra civil? A m revela-se como
19. Max Mfiller foi o primeiro a empregar o termo mana na cultura européia, referindo-se a um concei-
um instrumento progressivo permitindo-nos a criação de ,definições e artetatos so-
to na base de boa parte da vida melanesia liçtesjê Muller cita uma carta do missionário R H Codrington
No que diz respeito a crença a religião dos melanesios consiste na convicção çexislrum poder sobre
ciais - razão pela qual o Soberano pode definir à vontade as regras comuns, o di-.
natuial que decorre do fato de se ter liggçs com aregodoinvisivel e no que diz respeito a pratica, a rffpositivo24 -, mas também pode abrir-se à análise reflexiva que diz que, corno
q6effiê6ii6ios meios para se obter esse poder em benefício pr65fi6.7iidéia de uiifSer Supremo
iiéTotaImêiiiá desconhecida, ou mesmo de qilqiiei ser que oc ïima posição muito elevada em seu
mundo... Existe a crença numa força totalmente distinta dqpoder físico, que atua de todas as maneirqpQ- do julgamento individual a um tomador de decisões comum, sempre que os casos se mostrassem de difícil sq-
iveis para o bem e para o mal - uma força que i. extremamente, antajoso possuir ou confi olãiii ata se do lucg E esse,tomador dá deusoes teria a palavra final qu ao que implicaria
implicmi ou não uma ameaça.,
niono...E um jscddFi bê lima ifl *i de iioturc o física e, de cai te modo, sobrenatural, Contud, re- ortlidbõul'do soberano hóbbesiano era sobretudo um poder epistêmico, qual seja o de determ
li 'o ai f e m foi ça ti ia a ou de U 1 k1u nar o significado das palavras na linguagem publica e induzir • do que ele consideras-
e e1 ou upet 101 id eia que ou liomeni possa lei. 1' ssejnana
aio se lisa em iaaja, e pode estaa contido em praticamente tudo,.mas .s.espídtos, tanto as almas desinçpr- e "bom" e "mau".
paradas quanto os serias sobrenaturais, possuem-no e podem compprtiih,:l9. Fazê-lo manifestar-se compe- 21. Quando jovem, Hobbes trabalhou por algum tempo escrevendo o que Bacon lhe ditava. Ira Ba-
te esencio1mente aos seres humanos, ainda que 0111000 possa atuar por meio da água, de uma pedra ou de con, a garantia de que os frutos de suas metodologias de observação viessem a ser aceitas como "fatos" ver-
um osso. Toda arelirpio melanésia consist(-, de fato, na tentativa de se Qter esse mono ou de us-1oembe- dadeiros estava no fato de que Deus havia inscrito sua vontade no processo natural do mundo, e que, desse
nefício próprio - toda s religião no a 150 releia se a todasas paaflcas rgjigiqsas de preces acritips (R H modo, não nos enganaria. A ciência moderna posterior, inclusive o empirismo, não tem a mesma confiança.
Caiuington, 1/ia Melanesians: Studies ia ThcirAnthropology and Folk-Lore (Oxford, 1891: 118-9)). 22. Hobbes cita frases como "a lei do Senhor é pura, e ilumina os olhos"; "tua palavra é uma lâmpada
20. Tuck (1991: xvii) considerava que a questão central, para Hobbes, não era o fato de que em um certo para meus caminhos"; refere-se a Cristo como "a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem ao mun-
estado de natureza nossas carências e necessidades entravam necessariamente em conflito. Ao contrário, "opro- do" (Do cidadão, cap. 4).
blema que afligia Hobbes, e praticamente só a ele entre os outros teóricos de seu tempo, era que mesmo levan- 23. " (Jl) os nomes foram inventados pelo homem" (Hobbes, De Homine 1991; 38).
ddiiTconta-a-tenderrcia dohomem attdpTbteãoo u'ã em pncfala f'omaria pacificas as suas relações 24. "Nós mesmos criamos os princípios - isto é, as causas da justiça (a saber, as leis e os pactos) - por
11 meio dos quais se conhece o que é a justiça ou a eqüidade, bem como os seus contrários, a injustiça e a ini-
sua independência de julgamento sobre o mundo , tçrminaria por colocá-los em conffito. Desse modo, asolu-
ço proposta por Hobbe óEáliuia em eliminar o julgamento independente sobre a maioria das questões pas- qüidade. Pois antes que os pactos e as leis fossem criados, nem a justiça nem a injustiça, nem o bem nem o
síveis de discussão. O homem natural, argumentava ele, perceberiaanecessidade, para todos, da transferência mal públicos eram naturais entre os homens" (Hobbes, De Homine, 1991: 42-3).
102 Filosofia do direito Tomas Hobbes 103
todo significadoé criação humana, é na verdade "carente de sentido". A compreen- seria meramente arbitrário. Como poderia, então, impor respeito? Por definição, urna
são da nnhlrc7n da linguagem.e de suas criações (os textos, por exemplo) dá-nos a ordem deveproc,dde uma fonte.autoxiza.cia para emiti-la,.ima ve qpcIoutra
lernyi de progresso no sentido de podermos dar forma aoç textos e.utijj.zá1os
à_~ forma não será uma , çro, m.s tão-somente um pedido. Precisamos da religião,
como base paia a constïução de uma nova ordem. 'Trata-se, porém, de uma base e a tarefa consiste em reposicionar sua esfera de atuação em vez de destruí-Ia por
paia a ordenaçãó que é passível de autodestruição, de aútodesconstrução; os tex- completo. A religião,pfereç€gpna forma de segurança. Através da palavra de Deus
tos não são entidades estáveis dotadas de significados fixos, mas sim fenômenos do modo como se revela nas Escrituras, e através da razão natural, adquirimos al-
âêt'tds Tõdo tipo de in1êftétação. Além diõ, ôq'u imjediria as tentativas, por gum conhecimento.
paitÈ de súditos1isátisfeitos, dé apelar a uma instância além do soberano, a um po-
dfffiMito, na esperança cfëjie isso pudesse assegurar o significado verdadeiro, Também se pode perguntar como é possível saber que coisas foram ordenadas por
oiTapropriado, de palavras como'dEeito" ou "justiça"? Hobbes estava na corda bam- Deus. A tal pergunta se pode responder: o próprio Deus, pois ele fez os homens racionais,
ba: para manter seu equilíbrio, precisava superar tendências anarquistas no nomi- prescreveu e inscreveu em todos os corações a seguinte lei: ninguém fará a seu semelhan-
nalismo e no protestantismo sem cair na rede do aristotelismo, do escolasticismo te aquilo que considere injusto que um outro lhe faça (On Man [Do homem], 1991: 73).
ou do "papismo". gsignifiçgçlos dados às..PaJwas,,sk artefatQs humanos fixa-
""O homem pode usar sua razão para assumir o controle das condições da vida
dos por definição, nosso pr6prio conhecimento é então preso à linguagem e não
atrnge a essência do mundo, ciado por seres humanos e re side--c-nfffiferentq teo- / humana. Deve dividir sua atenção entre dois mundos, representados pela vida co-
rias que atendem as exigncias da lógica e da estrita definição O conhecimento das mum da caverna e pelo transcendental. Este último é o mundo de Deus, o "outro"
regds rnoraT, assim como o conhecimento da matematica, é consequência de es- aspecto da existência; quanto à vida na caverna, a nossa realidade, cabe a nós com-
tipulações prévi: preendê-la e construir uma ordem social em seus domínios. Como a fé não pode ser
analisada com neutralidade, que permaneça como é; as organizações sociais, por
Que cinco será o nome de tantas unidades quantas estão contidas em dois e três so- outro lado, podem ser analisadas com isenção. Construamos, pois, a ordem social
mados ( ... ) essa concordância será chamada conhecimento ( ... ). Da mesma maneira, se sobre a razão natural.
nos lembrarmos do que é chamado roubo, e do que é chamado injustiça, entenderemos
pelas próprias palavras se é ou não verdade que o roubo é uma injustiça (Do cidadão,
1991: 3734). NO LE VL4TÃ, HOBBES PROPÕE QUE O PODER CONFERE
CONHECIMENTO E QUE O SEGREDO DA ORDEM SOCIAL CONSISTE
EM CONTROLARA INTERPRETAÇÃO DO CORPO SOCIAL
Qualquer que seja o poder racional que usemos, não podemos penetrar o mis-
tério de Deus:
No Leviatã, Hobbes abandona alguns aspectos do acordo que desenvolvera tão
Assim, nenhuma forma deve ser atribuída a Deus, pois toda forma é finita; tam- criteriosamente em Elementos da lei e Do cidadão. Enquanto a fé tem um papel a de-
pouco se deve dizer que ele é concebido ou compreendido pela imaginação, ou por qual- sempenhar em sua obra anterior, em que ele defende a função das autoridades da
quer outra faculdade de nossa alma, uma vez que tudo o que concebemos é finito. Pois, Igreja em determinar de que modo os impulsos da religião natural devem ser enten-
quando dizemos que uma coisa é infinita, na verdade nossas palavras não refletem nada didos e institucionalizados na sociedade, no Leviatã é o soberano quem tem oo-
além da impotência de nossa própria mente (ibid.: 298-9). der de determinar a natureza da crença religiosa na sociedade c5 avançíiiial e a
cla com que agola vemos que oeoobjet$dareligiâo natura125
E como pode o homem saber o que é natural? Hobbes prossegue:
25. Isso fica ainda mais evidente em De Homjne, escrito em 1658 (sete anos depois do Leviatã). Nesse
Natural é aquilo que Deus declarou a todos os homens, através de sua palavra lei que
lioqpqvtoaindaconSenTernoS uma fé pública, tendo,portanto, uma baseFara O con o
eterna, ser nascido com eles, a saber, sua razão natural (ibid.). cante a reli ao e qoesta que garante aRuela Hobbei dixa chro que eãeho loe un ncnk uia
questão particular das p,essoas remaria a anarq'íiia episternolqgiLa Portanto Se a re1igiio ) n' na(.) depen-
Isso, contudo, pode ser levado mais além. Se não podemos ter nenhum conhe- de das pesso2ã
de j5ãrticular (._), deve depender das leis do Estado. E àssim, a religião não deve ser fiosp-
fia, mas sim, em todos os Estados, lei; e, nesse caso, não deve ser questionada, mas observada". As contro-
cimento de Deus, se tudo que falamos sobre ele é empiricamente sem sentido, en- vérsias precisam ser controladas, pois, se fôssemos procurar a resposta no conhecimento científico, "ao nos
tão não pode haver modo algum de criarmos uma base sólida, uma legitimação, voltarmos para o conhecimento científico das coisas que não pertencem à ciência, estamos destruindo a fé
para estabelecermos as distinções que a sociedade civil requer. O direito positivo em Deus, assim como a fé que possamos ter em qualquer um de nós" (De Homine, 1991: 72-3).
104 Filosofia do direito Tornos Hobbes 105
Hobbes inicia o Leviatã com uma descrição das bases da religião natural. De iní- O tempo e o trabalho produzem, dia após dia, um novo conhecimento. E, assim
ia discuão rece umã ir ei3 Fi O corno a arte de bem construir deriva de princípios racionais observados pelos homens
e ~ítulo 1 áborda a sensação, e desta passa para a imaginação as credenciais do
cap -
diligentes que, por muito tempo, estudaram a natureza dos materiais e os diversos efei-
empirismo estão lançadas, mas o que está em jogo é bem mais alto. O- ob je tivo tos de figura e proporção, muito tempo depois de a humanidade ter começado (ainda
que mediocremente) a construir, muito depois de os homens terem começado a criar
Hobbes éaeperiência do sagrado, do santo; aquele modo de apreensão que evo-
Estados, imperfeitos e propensos à desordem, é possível encontrar, por meio de uma
ca ãconsciência da criatura ou da deficiência ontol6a diante dj3riênciado engenhosa meditação, princípios racionais que tornem sua constituição duradoura (a
temoredo fascinio existentes no mis te'iju O sagrado e um mistério; não se trata de não ser em caso de violência externa). E são dessa natureza aqueles que venho expon-
um enigma a ser resolvido, mas de urna experiência do outro mundo, de uma coisa do ao longo do presente discurso (Leviatã, 30: 232).
tão distante do comum que só pode ser um sinal do outro inexpugnável`. Os prin-
cípios da religião organizada travam um embate com esse mistério e nos contam suas Hoba -s cria sua concepção de mundo peça por peça. A análise da linguagem
"verdades", mas Hobbes é mordaz. Em vez de tratar-se da experiência de transcen- no a .ítulo 4 nos adverte a não nos perdermos em urna falsa discussão centrada
der o mundo terreno dos sentidos, e de chegar à verdade genuína a partir do nor- exclusivamente nas formas daTinguag& rnïdissa preo.ipação deve voltar-se para o
mal, a experiência é simplesmente o resultado do esquecimento da diferença entre mundo, e não para os modos de representá-lo aTaero ii.6iundo univer-
estar desperto e sonhando: sidmes' (Leviafã 4 26) precisamos encontrar definições precisas e LOfl-
...,
nos alertar para as boas ou más conseqüências, ou seqüelas, de nossos atos. Ternos / mens deseJ,j'rTi a,a mesmas coisa 'l'nis TIÏã (m)limi relativa escassez de bens.Por-
um critério natura.defelicidade.,, tanto, (iv) da igualdad snpti,es e desqjo do ho'irm surge adiferençaJto.é,
a competição, aguerra civil e a busca de glória. Os homens recorrem à violência e
O sucesso contínuo na obtenção das coisas que os homens às vezes desejam, isto ao embuste, à fraude e à trapaça para satisfazei seus desejos e necessidades. Hob-
é, a prosperidade ininterrupta, é aquilo que os homens chamam de felicidade. bes apresenta uma eloqüente imagem do estado natural:
Hobbes nos diz que estamos condenados a um desejo inexorável: Torna-se portanto manifesto que, durante o tempo emque os homens vivem sem
um poder comum que m mantenha a todos em estado de temor reverencial, eles se
Pois não existe nenhuma eterna tranqüilidade de espírito enquanto vivemos aqui, encontram iqueia condição à qual se dá o nome ce gurra; e essa_guerra, que é de to-
uma vez que a própria vida não passa de movimento e não pode ver-se livre do dese- dos os hoiiTiià côntra'todo os homens (...), a natureza da guerra não consiste em luta
jo (Leviatã, 6: 46). real, mas na conhecida disposição para tal fim, durante todo o tempo em que não se
tem conhecimento de garantias de que a paz irá prevalecer. Todo o tempo que resta é
O sucesso, porém, é a conquista do "poder"; "O verdadeiro sucesso é poder de paz (Levíatã, 13: 88),
( ), o queleva os homens a temerem ou confiarem iiáEi1e1e qp'Ç1 ia-
fã, 10: 63),Todos os homens compartilham uni incansável desejo de poder: 'rn&e- No estado naturili,o.própio fato da igualdade relativa da 'iurnanidaç1e.. ,situa-
sejo eterno e incansável de pode r e mais poder, que so ter,Jitg çomrnor.t.e". O da em um mundo _de escassos recursos, resulta em tensão conhmnua, uma guerra de
processo não tem fim; a obtenção de bens terrenos não nos satisfaz, uma vez que ts ontiafs—urna .teprimi,da, pois
eles são os meios para o poder.A conquista de um nível de poder põe em movi-
mento o desejndejLaisçder. nrptr'tilT'dëiifiía medida defensiva, no Em tal condição, não há lugar para o trabalho, uma vez que seus frutos são incer-
sentido de que o homem precisa de um poder maior para assegurar o desfrute dos tos; e, conseqüentemente, não haverá cultivo da terra, nem navegação, nem o uso de
bens que seu poder passado lhe granjeou. E assim que os reis precisam, em seus produtos que podem ser importados por via marítima. Tampouco haverá boas constru-
países, criar leis que os tranqüilizem quanto à solidez de seu poder e, no estrangeiro, ções, nem instrumentos para mover e remover as coisas que requerem muita força, nem
lançar-se em guerras que protejam e aumentem seu poder (capítulo 11). Os pode- conhecimento da face da terra, nem cálculo do tempo, nem artes, nem letras.,,I ,.b,a-
rosos usam a religião Para criar imagens de "leis" quais acrescentam narrativas vej5Qci.çdaçle, e,,.o qneé.,pior,.reina,rá um medo. constante, e perigo de-morte-violenta;
imaginarias do futuro do mundo e do destino pessoal, uma vez que "onsideram-se e avidado homem será solitária, pobre, sórdida, emh'-utecida e breve (Leviatã, 13: 89).
os melhores para governar osoütros e rever tem em benefci p,oprio o uso maxi-
mo de seus poderes" (capítulo 12) Taia rever,ter êssa htstona, precisa rn_gi Hobbes argumenta que a situação em que viviam os índios americanos ofere-
noyo começo,. um começo que tenha pores fundq.rnentos dq "çndiç. natu- ce exemplos daquilo com que nos parecíamos no passado. A criação de governos
ral da humanidade". nos tira dessa condição natural, o que resulta em civilização e impede nossa queda
no caos`. Não é que já nasçamos em pecado, pois sem o poder de um soberano e
de um Deus que definam o pecado, a natureza desconhece tal coisa:
O DIREITO NATURAL SECULAR DE HOBBES, OU "AS REGRAS
NATURAIS DA CONDIÇÃO HUMANA"25
2.. Compare-se com a imagem a. escritor inglês Locke. EnTwo Treatises ofGovernment (1690) e em
seus diversos ensaios e cartas (escritos entre 1667 e 1692), o homemé visto CQfl1Q e vivesse num ertade
fez os homens mais ou menos iguais nas "faculdades de corpo natureza no qual ainda detém ana jsse de certos direito$ n2 rcO básicos (tem, por exemplo,i' direito
e mente"; as direnças entre l não, tão,grandeque alguém poss&Jegun.uma naturaI de possuir todos os ftitos da terra que encontrar), e o ps'Lo com o governo necessário ix SSe-
tagem,rf "o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte ( ) lurar esses direitos. Portanto, oc!o_corn,qgoyemo r,eforça os direitos de propnedade e uraImcn 'ás-
tdi'tes épíêiáé'ii direitos de "vida, liberdade e pose". O governo é necessario para impedir nne"
no caos, uma vez que "a depravação da humanidade e tal que ela prefere a injustiça de aposs 1o fluto
28. A construção analítica de Hobbes de uma imagem do homem na "mera natureza" fornecerá as ba- do trabalho alhei6'ã esfãí'ar-se por prive -seu- rio u',tento". Tendo em vista essa tendência uaiural, é
ses para o pensamento liberal através de Locke e do contraste estabelecido por Austin entre "associação na- necessário elaborar leis que protejam a propriedade e estimulem a criação da propriedade,"A necessidade de
tural" e "associação política", e receberá sua formulação moderna com Hart, em sua formulação das condi- preservar o ser humano da posse daquilo que adquiriu com o trabalho honesto, e também de preservar sua
ções mínimas do direito natural (Concept of Law, 1961: ver capítulo 13 do presente texto). liberdade e sua força, graças às quais pode adquirir o que mais desejar ter, obriga os homens a travar relações
108 Filosofia do direito Tomas Hobbes 109
Os desejos e outras paixões do homem não constituem, em si mesmos, pecado. humanas, são sociais; para fins de ogarjzçAo da sociedade, admitiremos que.tão
/ Tampouco o configuram as ações que decorrem dessas paixões, até que se deparem com _uen nundo fora ela sociabilidade da caverna. E a justiça de nosso muno
J uma lei que as proíba, o que não pode ser feito enquanto não forem criadas as leis; e ne- do interior da caverna funda-se sobre um ato original de poder, sobre a violência
J nhuma lei poderá ser criada antes de se chegar a um consenso quanto à pessoa que irá
que reprime e mantém sob controle aquela outra violência que sempre está presen-
criá-la.(Leviatã, 13: 89). te na ausência da violência`. A paz da sociedade civil civilizada tem por base nos-
-
sa compreensão daotencialidade onipresente da violência da sociedade civil.
Trata-se de umaatrmação radical: antes do poder dq governar não
.
nenhum modo de diferenciar s o. do errado o mal do bem. No estado natural, .
As paixões que predispõen os homens à paz são o medo da morte, o desejo das
-
coisas que são necessárias para uma vida confortável e a eperalça de 6btê1'raças
( ... ) nada pode ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e injustiça não têm a seu trabalho. E a razão sugere critérios apropriados de paz por meio dos quais os ho-
aí lugar algum. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não pode ha- mens podem ser levados ao acordo. Esses critérios são aqueles que, sob outros aspec-
ver injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a tos, são chamados de leis da natureza (Leviatã 13: 90).
injustiça não são inerentes às faculdades do corpo ou da mente. Se o fossem, poderiam
coexistir em um homem que estivesse sozinho no mundo, assim como seus sentidos e O ZLt ..........:L
'7
suas paixões. São qualidades que dizem respeito ao homem emsociedade, não em so- O direito natural n~ edad, consiste em um direito da condição natural no
1idãojeviatã, .13: 90). sentido de exercer um pod.er básicoe preservar a vida eJçrdade. O direito da
natureza e "a liberdade que cada homem fãii-d usar seu poder, do modo que lhe
Este trecho, de importância crucial, é facilmente mal interpretado. Tem sido en- recer melhor, para a preservação de sua própria natureza, ,,(...)". A liberdade e "a
tendido como se implicasse que tudo que é legislado por autoridade competente e ausência de obstáculos extdtos" que impedem um homem de usar seu poder
reconhecido como lei válida devesse ser conseqüentemente justo; que, além do p0- "conforme o que lhe for ditado por seu julgamento e razão" (Leviatã, 14: 91). Mas
sitivismn jurídico, não existe criterio ue possa questionar a justica de um Iéi1i- o homem se dá conta de que precisa abrir mão de parte de sua liberdade natural
da Frata-se de um absurdo Hohbes desconstroi a iceta de algum padrao idepen- prgçq estado natural. A razão nos diz qual é a_ lei natural:
deifte do pensamento social do homem que possa fornecer urna referêncinatural ocurar a paz e sgui-la.)Em seguida, discernimos uma segunda lei natunil: .im
que assegure a validade de nossas afgmações de justiça e injustiça`. mem medida em que outros também o estejam, a "renunciar a si '
padrão. Ou, mais precisamente, o estado natural não nos oferece nenhum, mas nos- direito todas as coisas e, no que diz respeito aos outros homens, a contentar-se
so-entndimento desse fato pode pode constituir, em si, esse padrão capaz de nos com a m ilrdeque concederia a outros homens em relação a
mostrar um caminho. Nosso raciocínio sobre a condição humana um raciocínio -
(Leviatã, 14: 91).
desenvolvido depois que as falsas imagens e promessas da religião foram descons- A terceira leijnatural hobbesiana diz respeito aos contratos. Hobbes parece ar-
truídas nos oferece u m sistema de coordenadas no qual dispomos de critérios de
-
gumentar que um sentimento in-
justiça e injustiça. Mas .pode haver outros... Embora Hobbes veja com ceticismo divíduos no estado natural Esse se torna o método peïo qual a paz c asseguraçia,
toda afirmação que não siga o percurso bacoiuiiho issàriao significa que,a medi- uma vez que existe uma terceira lei da natureza: "Que os homens cumpram os pac-
due a sdd5edade piogni1a udo va '.egu1r-se um aumentqia qualidadenoal- tos ue celeb ,ire m, ,cm o que os pactos são inuteis L não passam de palavras vaiias"
cance dos argumenleo humano' Na IL-Ilidade esta é uma consequência da teoria Leviatã, 15: 100). Isso, porém, é ao mesmo tempo natural e não-natural. A natureza
de Hobbes. Todas.as.pretensões ao direito e todas as reivindicações de justiça são provê uma forria de se criarem vínculos sociais, "víncuh3s diediane os quais os ho-
-.—, -.-. ..... .........
..
4/ao-
sociais entre si para que, através da ájuda mútua e da junção de suas:forças, eles possam garantir-se. mutua 31. Hobbes associa intimamente a criação do direito e seu. cmprimento, Uma vezu 111 JI]
mente suas propriedades e as coisas que contribuem para o bem-estar e a felicidade nesta vida." Assim, o ob- ca começa com o soberano, a justiça significa a administração de tal ordem. A justiça não pode prcced r cria-
etivqpçgisip.a1.do goverq riste, n,pxesersar,,4qoi1pque.,pa5samOs.a chamar de opersço da sociedade ção da ord,em jurídica efixar seu significado como "uma coisa de substância empfrica". Em ortILiiipala?1u:;, ujelara
iij..a série, em pequena escala, de interações ao longo do corpo social. O governo cria leis 'para a defesa uma justiça que se encontra para além da caverna significa invocar a metafísica, agora excluála dos 111,11/e,: di, 11IrO
dos bens temporais", protegendo o homem contra a rapina e a fraude de seus concidadio ( ) eavioíen natural. Muito embora não possa haver um apelo transcendental a tal justiça não empírica, p0 III 1 \/Ilir
boas e más leis, uma vez que o objetivo da ordem jurídica é a proteção social e a criaçii das comi,,,-.,. ';i5
drêhdaulidado 11 doi estranhos (Primeira Carta, The Works of John Locke in Teu Volumes, 1823: 45).
30 Ëinprego com precisão o verbo "desconstruir". Como veremos mais adiante, aóbra de Hobbes'e de a busca da felicidade. [A leitura de Derrida (1992) sobre a justiça segue Hobbes exatamente: cf Force hr / 11W
Nome prefigura, nessa érea, as energias desconstrutivas radicais de Jacques Derrida. The "Mystical Foundation ofAuthority".I
110 Filosofia do direito Tomas Hobbes 111
mens se vêem comprometidos por obrigações", mas que precisam de alguma for- lação a suas posses. Mas todas as limitações naturais nas quais a sociedade civil se
ça externa, ou conseqüências nocivas, para se assegurar de que não sejam rompi~ fundamenta são criadas pela disciplina e pelo funcionamento da lei`.
dos`. Os homens podem transferir mutuamente seus direitos por contrato; os con- Hobbes sistematizou cerca de dezenove leis naturais mais apropriadamente, -
tratos fornecem a metodologia para a obtenção de bens e a conquista do poder. conclusões relativas ao que é apropriado para a preservação e defesa do homem na
Mas os contratos precisam regi ç,p tj.gçgz. °iiçisamdo poder do sociedade` inclusive a afirmação de que nenhum homem é juiz de si próprio. Um
-
direito —eessediifõfge que exista urnô.fonte de poder — para definir qu mecanismo para julgar deve ser construído: uma ciência, e um poder, de "culpa e
tiça e arnanufei6T,o coutiolo, e ixijustiça seu rompmentq33 Trata-se de um rito inocência".
rico de fundação legitimação constituição. ErnborapJylfiumaten-
- -
dência natural a usar os contratos, estes serão inúteis amenos qp.e exista algumo-
der cap,az de tazêJos c.uixiprir e 'piinu seu rompimento mas tal poder e, ele pró-
- -,
A SOLUÇÃO HOBBESIANA PARA OS PROBLEMAS
DA CONDIÇÃO NATURAL: A CRIAÇÃO DO SOBERANO,
prio, criado pe~t2_Lacto- UM SER ARTIFICIAL, UM DEUS MORTAL
antes que as palavras "justo" e "injusto" possam fazer sentido, é preciso haver algum
poder coercitivo que obrigue igualmente os homens a cumprir seus pactos por medo Os homens podem constituir-se em um só corpo - uma instituição - capaz
de algum castigo que seja maior que o benefício que esperam obter mediante o rom- de julgar.
pimento do pacto, e também capaz de valorizar aquela propriedade que os homens ad-
quirem por contrato mútuo, em recompensa pelo direito universal de que abriram mão; Uma multidão torna-se uma pessoa quando é representada por um único homem
e esse poder não existe antes da criação de um Estado (Leviatã, 15: 100-1). ou pessoa, de tal modo que isso se dê com o consentimento de cada um dos que for-
mam essa multidão. Pois é a unidade do representante que configura a pessoa, e ape-
nas uma pessoa; e não existe outra maneira de entender a unidade na multidão (Levia-
Esse é também o ponto em que se inicia a propriedade; a propriedade só se tã, 16: 114).
torna uma possibilidade por meio das regras do direito. Não há nenhum direito na-
o
tural à propriedade, uma vez que esta é uma função da legalidade; conseqüente- \ O soberano será uma instituição, um corpo, mas essa unidade é artificial uma -
mente, a propriedade não é uma coisa que se coloca contra o Estado, mas é por este criação. Na verdade, o soberano é uma instituição criada pelos poderes a ele trans-
criada (em outras palavras, a tributação não é nenhum roubo!)`. A propriedade é a feridos, pelos membros individuais da sociedade, para agir do modo como lhe per-
abstinência artificialmente controlada da interferência na fruição dos outros em re- mitem os poderes dos quais se abriu mão`. O soberano é criado pelo evento do con-
trato social. O contrato social é a metodologia que institui um "poder comum" que
pacifica o corpo social e reduz:
32. "Vínculos cuja força nlo provém de sua própria natureza (uma vez que nada se quebra mais facil-
mente do que a palavra de um homem), mas do temor de alguma conseqüência funesta que decorra da rup-
tura" (Leviatã, 14: 93). 35. "De modo que a natureza da justiça consiste em manter a validade dos pactos, mas tal validade só
33. Hobbes se refere à lei natural que nos obriga a honrar os contratos como "a fonte e a origem da JUS- começa com a constituição de um poder civil suficiente para forçar todos os homens a mantê-los; e é aí, tam-
TIÇA. Pois onde não há pacto anterior não há direito a ser transferido, e todo homem tem direito a todas as coi- bém, que começa a existir a propriedade" (Leviatã, 15: 111). 0 s-
sas; conseqüentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Contudo, é injusto romper um pacto depois de havê- 36. "A esses ditames da razão os homens costumam dar o nome de leis, mas o rãzem indevidamente.
lo celebrado. E a definição de INJUSTIÇA nada mais é que o não-cumprimento de um pacto" (Leviatã, 15: 100). São apenas conclusões, ou teoremas sobre o que leva à conservação e a defesa deles próprios, ao passo que
34. Uma tática muito apreciada pelos novos teóricos dos Direitos Naturais, como o teórico político fran- a lei, corretamente definida, é a palavra daquele que, por direito, tem poder sobre os outros. Ainda assim, con-
cês Bodin (1530-1597) antes dele, e Locke (1632-1704) depois, consistia em afirmar que existia um direito na- tudo, se considerarmos que os mesmos teoremas são transmitidos pela palavra de Deus, que por direito co-
tural à propriedade em nome de cuja defesa o Estado adquire existência. Hobbes argumenta que tal direito manda todas as coisas, será então apropriado chamá-los de leis" (Leviatã, 15: 111).
seria incompatível com o objetivo de se alcançar a boa ordem subjacente à entrega de nosso poder ao sobe- 37. "E, tendo em vista que a multidão não é um, porém muitos, não se pode entendê-la como apenas
rano: "Uma quinta doutrina, que tende à dissolução do Estado, é que todo indivíduo tem a propriedade ab- um, mas como muitos autores de tudo quanto seu representante diz ou faz em seu nome; cada homem cnn-
soluta de seus bens, chegando, inclusive, à exclusão do direito do soberano. De fato, todo homem tem uma c,,ãeilepresaa±ant,comum a auto s .- e - - .articularme - . edos certencem as a oes •r'
propriedade que exclui o direito de qualquer outro súdito, e ele só a tem em decorrência do poder do sobe- ticadas pelo representante, caso a autoridadejue lhe concederam seja ilimitada. De outro modo, quando o
rano; sem a proteção deste, qualquer outro homem teria igual direito à mesma coisa. Contudo, se o direito limitam, no que diz respeito à representação e à extensão desta, nenhum deles possui mais do que aquilo em
do soberano também for excluído, ele não poderá exercer a função em que foi colocado, que consiste em de- que lhe deu autorização para agir.
fendê-lo tanto dos inimigos externos quanto dos males causados por outros, e conseqüentemente o Estado E, se o representante consiste em muitos homens, a voz do maior número deve ser considerada como
deixará de existir" (Leoíatã, 29: 224-5). a voz de todos eles" (Leviatã, 16: 114).
112 Filosofia do direito Tomas Hobbes 113
todas as suas.vontades, por pluralidade de vozes, a uma única vontade, o que equivale apresentam em seus apelos à eqüidade ou à justiça. O senso moral dos homens é va-
a dizer: designar um homem, ou uma assembléia de homens, como seu representante. riado e individualista. Contudo, eles consentiram em obedecer ao poder do sobe-
rano, e esse poder "obriga-os a obedecer". Hobbes estabelece uma diferença entre
Isso é mais do que consentimento ou concórdia; é uma verdadeira unidade de to-
"ordens", "quando um homem diz 'faz isto' ou 'não faz isto', sem esperar nenhu-
dos eles, em uma única e mesma pessoa, criada por um pacto de cada homem com todos
os outros, e concebido de tal modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: ma outra razão além daquela que decorre da própria vontade de quem o diz" e
autorizo e cedo meu direito de governar a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de "conselho", "quando um homem diz 'faz isto' ou'não faz isto', e deduz suas razões
homens, com a condição de que renuncies a teu direito em favor dele, autorizando, de modo do benefício que desse modo traz àquele a quem o diz" (Leviatã, 25: 176). Enquan-
semelhante, todas as suas ações. Feito isso, a multidão assim unida em uma só pessoa pas- to um homem "pode ser obrigado a fazer aquilo que lhe ordenam", não se pode
sará a chamar-se ESTADO, em latim CIVITAS. Esta é a geração daquele LEVIATA, ou an- forçá-lo a prestar obediência ao conselho (a menos que, por meio de um acordo, o
tes (para falar com mais reverência) do deus mortal ao qual devemos, abaixo do Deus conselho passe para a esfera da ordem), uma vez que o dano ou a vantagem são
imortal, nossa paz e nossa defesa (Leviatã, 17: 120). \) exclusivamente seus. Em última instância, "a lei é uma ordem", eosoberano tem o
poder exclusivo de determinarqu is.sãqos interessesdasdd.. umÏa-
A essência do Estado é rag.qu manifestação da vontadep,ieie. que comanda—
Em seguida (capítulo 26), Hobbes introduz uma análise que prefigura aquela
Uma pessoa, de cujos atos cada um dos membros de uma grande multidão, por dos realistas jurídicos norte-americanos do século XX. Primeiro, reconhece o poder
acordos mútuos, transformou-se em autor, a fim de que ela possa usar a força e os meios \ que as autoridades legais têm de determinar a natureza empírica da lei. 'Todas as
de todos eles, como lhe parecer oportuno, tendo em vista a paz e a defesa comuns a to- "j9xemlo. "escritas ou xtoprecisam de interpretação" (Leviatã, 26:190). Esse
dos (Leviatã, 18: 121). não é um processo que possa ser regido pelos livros dos filósofos morais, mas tra-
ta-se, um última análise, da arena do juiz nos casos particulares. Em segundo lu-
A relação entre soberano e súditos é assim estabelecida. Como o poder é a es- gar, Hobbes diferencia dentre "leis positivas humanas" as leis distributivas (as que
sência da questão, o soberano não pode sujeitar-se à lei, mas apenas a alguns ou- determinam os direitos de todos os súditos) e as leis penais. Estas últimas determi-
tros meios. Hobbes é claro: nam a penalidade, e neste ponto Hobbes antecipa os argumentos que Kelsen apre-
sentaria cerca de três séculos mais tarde, isto é, que seus destinatários são, na ver-
O soberano de um Estado, quer se trate de um homem, quer de uma assembléia, dade,as autoridades jurídicasue têm de determinar se houvç infrações P,apiçar
não tem de sujeitar-se às leis civis. Como tem o poder de criar e revogar as leis, deve li- à sanj,
bertar-se dessa sujeição quando bem lhe aprouver, revogando as leis que o incomodam
e criando novas leis; e, conseqüentemente, já era livre antes, uma vez que é livre todo [Leis] penais são as que declaram que penalidade será infligida àqueles que vio-
aquele que pode ser livre quando quiser. Tampouco é possível que uma pessoa esteja larem a lei, e que se dirigem aos ministros e funcionários que cuidam de sua execução.
obrigada perante si mesma, pois o que pode obrigar pode libertar, e assim não se pode Ainda que todos devam ser antecipadamente informados das penas aplicadas por suas
di7er que esteja obrigado aquele que somente o está perante si mesmo (Leviatã, 26: 184). transgressões, ,a ordem não se dirige ao delinqüente, do qual não se pode esperar qu
. .
se ca e fielmente a si proprio, mas aos ministros públicos aos quais compete fazer
O soberano é o ponto social em que reside o poder, e o poder não pode obri- •cuffiptir aTlihifl1dadc (Lc'hLtã, 26: i97
gar-se a si próprio. Se um poder superior tiver de existir, tratar-se-á do poder do so-
berano. O soberano é absoluto. Em terceiro lugar, a metodologia da ordem no Estado deve obedecer a certos
preceitos, pois de outro m6do iria contrariar a lei da natureza (por exemplo, a lei civil
deve ser sistematizada e publicada, uma vez que uma lei secreta não é apropriada)".
O DIREITO COMO AUTORIDADE DO SOBERANO 1énecria e. pq1icada, a lei deve mostrar sinais ,çque...em sua origeirnen-
REFORÇADA PELO PODER contra-se a vontade do soberano, deve haver alguma norma para o reconhecimento
Não existe nenhum sentido moral natural de obediência à lei. Por tratar-se ape-
nas de uma tendência geral -'qualidades que predispõem o homem à paz e à obe- 38.Para o cristão que acreditava que o comando do soberano contrariava a lei de Deus, .Hobbes ofere-
diência (Leviatã, 26: 184) -, o direito natural não garante o direito civil. Abandonados cia pouco conforto: 'Procura Cristo em martírio."
39."Nenhuma lei criada depois de consumado um ato pode transformá-lo em crime .(...), uma lei posi-
a seus próprios recursos, os homens diferem quanto às qualidades substantivas que tiva não pode dar-se a conhecer antes de ser criada, razão pela qual não pode ser obrigatória" (Leviata, 27:203).
114 Filosofia do direito Tomas Hobbes 115
das leis adequadas, bem como para que se possa diferenciá-las das ordens prove- descobrirem e articularem os princípios da razão e das estruturas da filosofia polí-
nientes de pessoas não autorizadas. O direito pode decorrer da adoção tácita, pelo tica para criarem a teoria jurídica moderna e instruírem a população em seu uso e
soberano, de regras locais costumeiras e também pode ser claramente promuJad4 racionalidade A maior batalha pela esta ilidade social,çhzj,petto a opinião sççal
por decftõo soberano em função le:'slativa ou .el. zes ca.. 27 . As leis civis Hobbes argumenta que, uma vez que se tenha conseguido ensinar às nações "os
sao uma especie se regras. Á s regras permitem a certeza de expectativa, a confian- grandes mistérios da religião cristã, que estão acima da razão, não há dificuldade
ça nas promessas e a criação de bens sociais; criam uma esfera sustentável de rela- (enquanto um soberano estiver na plenitude de seu poder)" em acreditar que tal
ções com aquilo que chamamos de propriedade. A soberania é "o poder integral de processo educativo não venha a dar bons resultados (Leviatã, 30: 233). O soberano,
prescrever regras". porém, deve cumprir sua palavra: não só a punição de súditos inocentes vai contra
a lei natural, como também "o soldado mais comum pode exigir o pagamento por
Regras por meio das quais todo homem pode saber quais são os bens de que pode sua participação na guerra como uma dívida" (Leviatã, 28: 220). Se os súditosv
desfrutar, e que ações pode praticar sem ser molestado por nenhum de seus concida- agir conforme a lei ede modo previsível, o soberano deve ver asipróp
dãos. E a isto os homens chamam propriedade. Pois antes da constituição do poder so- mos semelhantes.
berano ( ... ) todo homem tinha direito a todas as coisas, o que levava necessariamente à
guerra. E essa propriedade, portanto, que é necessária à paz, constitui o ato daquele po-
der com a finalidade de assegurar a paz pública. Essas regras de propriedade (ou meum PARA FUNDAR A MODERNIDADE, A AI'ENÇÃO DA HUMANIDADE
e tuum), do bom e do mau, do legítimo e ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis DEVE CONCENTRAR-SE NO PROGRESSO E NOS IEMORES DES 1h
(Leviatã, 18: 125).
MUNDO, OU A NECESSIDADE DE CONTROLARJ. ESCATOLOGIA
Em certo sentido,ointo, a vontade do soberano é geral, formal - não subs-
O Leviatã tem uma divisão nattiral: a primeirnprte consiste na discussão do
tantiva. A natureza normativa da leis deixa implícito que elas não são meras expres-
mundo secular, enquanto a segunda aborda a natugegdp - s Toda a base
sões do capricho de um determinado soberano (ainda que seja possível criar regras
que possuem efeitos muito específicos); ao contrário, estamos diante da criação de da primeira seção, a criação TaTação entre soberano e súdito, provém "exclusiva-
um espaço social para a atividade individual. As regras permitem que os indivíduos. mente de princípios naturais". Contudo, antes de Hobbes voltar-se para a discus-
- em contratos, ponhamem prática seus desejos-Tle progresso, poder, re.pên- são da cristandade, julga necessário concluir a seção secular com uma imagem esca-
sãe bens na medida iiéattiéniéiir conformidade com as regias. O sQberano for- tológica da punição natural (cap. 31). As imagens seculares do passado (ainda qie
néce ps .basesupontrqgimediano cuja criação permite o Óesenvolvimeri.to. dçurna interpretemos seu estado natural comouma narrãfiVí como se'Y precisam de re-
nova for= de poder social - a previsibilidade da ação no meio de estranhos em forço; asi ãffã'fiã õcatológi— comuna ao iscurso religioso - devem ser encara-
unia nova t moderna sociedadeTvdI De que depende, porem, o poder do soberano? das com
Hobbes oferece duas respostas:idepende da operação bem-sucedida do sis- Escafologia é o discurso que trata do relatujjpal .a a da morte; Hobbes dei-
tema que, uma vez constituído, precisa funcionar de maneira uniforme. O bom xa claro que, como a e cacia imoj, der do soberino exige que ele tenha podu sobre
funcionamento da justiça assegura que os homens não abandonem a condição da a vida e a morte, se houyesse uma promessa, urna recompensa de vida eterna para
sociedade civil eretornem à condição natural, o que eles não fazem por reconhe- os que se opõem a ele, o poder terreno iria ver-se comprometido° Assim, as promes-
cerem que não é de seu interesse próprio fazê-lo; (ii) depende do populacho com- sã e ésperáriãara uma sociedade fundada na razão natural devem ser claramente
preender a base racional da existência e dos direitos do sua vezps
fundamentos desses direitos precisam ser ensinados de forma diligente e verdadei-
mento, conhecimento-poder, A imagem do social, a auto-imagem da sociedade - fornecidas pela filosofia,
ra, uma vez qe não podun ser mantidos por nenhumalej civil nem peio tufox da
pela teoria jurídica e pela "sociologia" - é um elemento que contribui para o controle do social. Não apenas
puntçãQlqgal" (Leviatã, 30: 232). A sociedade moderna é 1 mo uma casa que só permite que se instaure um "objetivo", mas que o "normal" possa ser identificado por oposição ao "diver-
dura enquanto durarem os materiais de que é gente". A partir de Hobbes, esse é um tema velado que percorre os textos de Bentham, Austin, Weber, Kelsen
mpLecisppo; os materiais daÇQtção-preeisam-segarantidnSpeli'rin- e H. L. A. Hart, e é reinterpretado na obra de Foucault. É a base daquilo que mais tarde Gramsci chamaria de
cpis_daiazão."4° A bTj da soberania moderna é a capacidade de os intelectuais hegemqnia, e que o movimento dos Estudos Jurídicos Críticos identifica como o controle social secreto no
mundo ocidental moderno.
41. "A manutenção da sociedade civil depende da justiça, e esta depende do poder de vida ou morte,
40. Portanto, o desenvolvimento social do Leviatã é duplo: o poder do soberano determina a verdade bem como de outras recompensas e punições menores que são inerentes àqueles que detêm a soberania do
das reivindicações antagônicas de conhecimento, mas então o conhecimento aceito determina a verdade so- Estado. É impossível que um Estado tenha permanência se qualquer outro, além do soberano, tiver o poder de conce-
bre a qual se funda a soberania e o poder desta. Temos, portanto, as origens de uma espiral poder-conheci- der recompensas maiores do que a vida ou de infligir punições maiores do que a morte" (Leviatã, 38: 306-7).
116 Filosofia do direito Tomas Hobbes 117
distintas daquelas contidas nas Escrituras. Hobbes volta-se para uma argumentação no Ser Supremo (Deus) como ponto focal, vemo-nos diante de uma desconcertante
detalhada cujo efeito consiste em demonstrar que não há contradião entre a inter multiplicidade de perspectivas. O mesmo processo de visualização que revela o mun-
pretação dËcntiase a neçesdade de obqgaço civil Em u1tmihse, a crença do como espaço de transformação a partir de dentro também significa que o mundo
religiosa torna-se uma questão pçssoal na medlda era qu e ií 1fabilize o Es- não é governado por nenhuma perspectiva naturalmente legitimada e por nenhum
tado.Hobbes apresenta uma narrativa histórica na qual a Guerra Civil inglesa, apesar ponto de vista controlador. Hobbes estabilizou essa desconcertante multiplicidade
de algo a ser temido, teve o efeito positivo de romper o domínio da doutrina religio- através da formação de um poder terreno - o soberano - que assumiu o mana e os
sa dominante e do poder eclesiástico. Daí por diante, a moral viria a tornar-se uma papéis do olEdtô transcendental como abonador da estrutura da concepção de mun-
qustão çç argumntação racional, e a fé uma questão inteiQr. Portanto, o Leviatã é 1 do. Um novo triângulo de interpretações e conceitos substituiu a idéia çpi çuiar
um texto cheio de esperança de um novo alvorecer: uma modernidade funaEíTta a Medíãnfíbandono da cavdinã m buãde ïíih segura posição da
confiança no poder da razão ena liberdade daféparticu1ar verdade; essas interpretações agora forneceiiíuma metodologia para a transp -ia-
çT1rida no interior da caverna. O triângulo pode ser assim descrito: (i) o cosmo
Tgraiim mundo de objetos representados, (u) a verdade e o ponto orgadof
CONCLUSÃO: ENTENDER O DILEMA E O LEGADO ffrtfa-
QUE HOBBES NOS DEIXA ao - ode er assegurada por algum ponto fora da caverna queflão
710 signiticante transcendental, em vez disso a verdade deve '-.er aval iadlãe-
A mensagem de ferênça a (iii) sua adequação a um sujeito (para Hobb suia capacidade de garan-
era simples: o jnhiïntQpoeeQ Lppde- com
o verdadeiro conhecimento das condições empíricas do funcionamento da pture- tir a ordem social para o soberano) à luz de seu desempenho pragmático42. Hobbes
za, o homem podenajntervir côin efie ia r umaova ordemal coloca uma reivindicação ou prerrogativa natural em lugar do direito natural, e
rr Porem, e
substitui a vontade pela lei; ao fazê-lo, crliib -ponto de partida da filosofia política e
sêhrento fosse determinado com base na metodologia? Métodos cientí-
da teoria jurídica da m6aTnidade.
ficos diferentes - como é o caso do argumento protestante de que o indivíduo pode
A solução dos velhos problemas é o início de novos problemas. O que fará da
ignorar a hierarquia da Igreja por meio de petições pessoais a Deus não levariam
modernidade um sucesso? Se "nós" não somos mais um todo natural (uma criação
a resultados diversos? A ética protestante destruiu a eficácia e a estabilidade da ca-
de Deus), como seremos capazes de conhecer a diferença entre o sucesso e o fra-
deia do ser, ainda que a imagem fosse mantida por acadêmicos que difundiram os
casso? Hobbes talvez respondesse que o sucesso será aquilo que tiver de ser: uma
estudos jurídicos (como Hooker) e outros, no sentido de que Deus torna-se uma
vez estabelecida, a existência contínua do Estado irá cuidar de sua própria vitalida-
entidade à qual os cidadãos sentem, individualmente, que têm o direito de suplicar
de. Na verdade, a evolução empírica/histórica do Estado tem menos importância que
quando foremperseguidos pelas autoridades deste mundo. A lealdade da socieda-
uma explicação racional que nos diga por que devemos aceitar sua criação e forma.
de medieval - estabelecida em cadeias de reciprocidade e hierarquias de ser - no-
O fundamento da autoridade do soberano encontra-se no pacto daqueles indivíduos
bres, reis e Deus, vê-se desestabiizada se as pessoas puderem entrar em relação di-
isolados e calculipta. squecrianum Leviatã, um deus mortal, um artefato. A força do
reta com Deus, ou indicar seu próprio rei. Hobbes reprime o desjo protestante de
conhecimento subjetivo ao replicar que o poder gera conhecimto. Leviat, b soberano, provm a anpênciçaqea niiRi.doque, urna vez concedida,
A tarefa daTeori jurídiçonsistia em ftiodernizar o direito natural e estabilizar nãõ poer reyqgada, --à mqderrridade não admite recuos, As relações jurídicas
vieram substituir as normas sociais pré-jurídicas (que são, elas próprias, material-
a ordem social diante das pressões resqltnte 6lcIíj do i Tevalismo, Hob- mente ligadas a relações de hierarquias sociais). Fomos testemunhas de um trans-
bes introduz a moderna relação súdito-soberano e oferece urna nova configuração formação social e ética: o nascimento de urna liberdade social e atraiTisformação da
e legitimidade epiteogicas
mol aãutoridade do poder. O diieiio positivo ou huma-
éTli na 1egaidadePdft iiiPi está no comando, e quem presta obediência
no substitui o direito natural em decorrência do processo de natúraiização. A pers1
pectiva natuiahsta desintegrou a ontologia de D ' é-' que se transformou em uma quando o soberd detém o poder? Todos nós, no sentido de que todos delegamos
nosso poder a ele. Em nome de quem o soberano fala? No dos súditos, no nosso...,
idêià que era importante para o homem, o medo de Deus tornou-se urna fun,ç ç na-
0
tut&,jfletindo o predomínio do mana. Quando nós, modernos, olhamos para o cos-
mo, nele não mais encontramos uma mensagem natural de harmonia e posição; tra- 4. Se a escritura é tão aberta à interpretação que a ordem precisa ser imposta, que dizer então das leis
ta-se apenas de uma massa de materialidade. Quem somos, então? Somos sujeitos escritas? A lei é um paradigma da vontade; da vontade e da intenção expressas de um corpo soberano. Que
racionalmente configurados (cidadãos de um Estado); as unidades estruturais bá- razão, porém, está na base de tal vontade? Ou não haverá nada além de poder na base de uma lei? Por si
sicas do mundo,ocial, que agora poden olhar pr g inuRdo comq fóiíffe nos- próprio, será o processo capaz de fornecer uma base suficiente? Se é esse o resultado testemunhado no sé-
culo XX, por meio do qual os processos democráticos vieram a legitimar o poder da lei, isso não é de modo
sacriatividade,pde consumar-se. Contudo, se anulamos o domínio da Igreja, da fé algum evidente por si mesmo.
118 Filosofia do direito Tomas Hobbes 119
ou será assim mesmo?` A filosofia jurídica em grande parte, uma tenta- namos a Hobbes em nossa época atual - pós-moderna -, tal fato pode ser visto
tiva de encontrar e compieender a soberania Através da filosoha, esta rõ a-se vi- como conseqüência direta dos avanços que esse autor obteve em sua epistemolo-
ííti Contudo, iilmodelo é destruído por meio da investigação analítica tão logo gia. Contudo, ele foi apenas um ponto inicial da modernidade. Hobbes não podia
é criado, pois, conquanto existam aqueles que o definem como uma questão de re- afirmar abertamente que estávamos a sós no cosmo; precisava ainda empregar uma
fletir sobre os fatos sociais e o sucesso pragmático (Hobbes, John Austin), por ou- linguagem que demonstrasse alguma fé em Deus. Se a fé for totalmente excluída do
tro lado os juristas (como H. L. A. Hart, por exemplo) irão afirmar que eles não são sistema hobbesiano, a ordem então repousa sobre a autoridade e a vontade do so-
nem puros o bastante em sua filosofia, nem que se acham engajados na sociologia. berano, mas o soberano de Hobbes não tem nenhuma racionalidade - além do in-
Enqianto isso, os que procuram esse modelo na sociologia irão criticar o empenho teresse pessoal calculista dos súditos - a ser conferida ao status intrínseco e obriga-
dos autores que os antecederam como mera ideologia, podendo ser levados à des- tório com o qual, como o filósofo parece pensar, é preciso envolver essa autorida-
crença em que o soberano venha algum dia a falar em nome do povo (como no Marx de e essas leis", que só podem ser asseguradas pela coerção, pelo poder. E Hobbes
da maturidade) ou forçados a envolvê-lo em uma psicologia que remete a Deus não enfrenta essas tensões com total determinação, pois ainda se submete à retóri-
(como foi o caso do sociólogo francês Emile Durkheim). ca da existência de Deus`. Contudo, se perdêssemos toda a fé em Deus, o poderflào
Hobbes abre caminho qo direitose transforme i norma e que as reta- sé vefij5fi dlff'tísdcré qualquer valor moral? Não iria tornar-se, simplesmente,
ções jurídicas tornem-se ppç j1ura..daEstado. Com o tempo, o Estado o princípio da dinâmica, razão pela qual o mundo não seria de modo algum natu-
irá assumir as tarefas da administração, da vigência e da submissão à lei e da regu- ralmente ético ou espiritual? Hobbes fra: entou a cadeia do ser, apoderou-se de
lamentação do corpo social. Muitos irão questionar sua esfera de ação, enquanto mana do outro mundo —eoqu e acont _ço,tiLri,iuiq Se, com o tem-
outros irão enfurecer-se diante de sua disciplina". No contexto pós-moderno, per- po, a era moderna percebe-se desencantada, isso em parte talvez se deva ao fato de
guntamo-nos se o avanço do direito tornou as estruturas éticas do corpo social tão o conhecimento ter se apropriado de mana sem compreénder o mistério (incom-
frágeis, a ponto de restringir seriamente sua capacidade de oferecer-nos algo além preensível) que lhe conferia significado.
de uma sociedade baseada na lei e na ordem`. E, se na busca de orientação retor-
se propusesse uma concepção de liberdade que envolve a capacidade humana de perseguir seus próprios ob-
43. Como afirma um ator contemporâneo, não há resposta para essas perguntas. "A república é uma jetivos (seu liumori), ao mesmo tempo que se reconhecesse que, para assegurar as condições ideais, capazes
criatura artificial paradoxal, formada por cidadãos unidos apenas pela autorização concedida a um deles para de evitar a coerção e a servidão (que tornam impossível o exercício da liberdade individual), é necessário pra-
ser o representante de todos. O soberano fala em seu próprio nome ou em nome daqueles que lhe conferem ticar a virtude cívica e servir ao bem comum. Somos instados a praticar a virtude cívica e a servir ao bem co-
seu poder? Trata-se de urna questão insolúvel, com a qual a filosofia política moderna vai engalfinhar-se até o mum para que possamos assegurar o grau de liberdade pessoal que nos permita perseguir nossos objetivos
fim dos tempos. Na verdade, quem fala é o soberano, mas são os cidadãos que falam através dele. Ele se toma pessoais (nossos projetos de vida); em vez de ver uma contradição entre liberdade negativa e positiva, Skin-
seu porta-voz, sua persona, sua personificação. Ele os traduz e pode então traí-los. Eles lhe dão poderes e po- ner aponta para sua necessária coexistência. Sem urna idéia do bem comum e da participação cívica, estamos
dem então impugná-lo. O Leviatã só é formado por cidadãos, cálculos, acordos ou divergências. Em resumo, não condenados a perceber o direito como uma estrutura carente de significado positivo; uma estrutura que nos
é formado por pada além de relações sociais. Ou, por outro lado, graças a Hobbes e seus sucessores, estamos diferencia mutuamente enquanto indivíduos, mas que tanto aprisiona quanto separa. Nosso acúmulo de su-
começando a entender qual é o significado de relações sociais, poderes, forças, sociedades" (Latour, 1993: 28). cesso material - nossa felicidade - é alcançado ao preço da prisão dos que não conseguem ser bem-sucedi-
44. Todo o corpus da obra do teórico social francês Michel Foucault, por exemplo, é um debate sobre o dos e infringem a lei na busca de sua felicidade (ilegal).
papel da lei e da disciplina. Para Hobbes, o homem se ajusta à sociedade pela disciplina, não pela natureza. 46. E exatamente esta a queixa de H. L. A. Hart contra o modelo da Teoria Imperativa que ele baseou va-
45. Outro modo de fazer essa pergunta consiste em indagar para que tipo de liberdade caminha o Oci- gamente em Austin nos capítulos iniciais de seu livro Concept of Law (1961). Como veremos mais adiante, a
dente. A liberdade do homem "moderno" - desde Hobbes - é entendida como a liberdade de desfrutar a bus- critica de Hart é equivocada no sentido de que negligencia o inevitável elemento político que flui como uma
ca de seus objetivos privados e suas posses materiais, a salvo da interferência dos "outros" e contando com cadeia indivisível ao longo de Hobbes, Bentham e Austin. Não obstante, permanece a questão: o que pode
a estrutura do direito (comercial, civil, criminal). O preço disso é renunciar ao ideal de liberdade dos antigos, instituir a autoridade e sobreviver à análise reflexiva?
a liberdade de participação ativa no poder coletivo (por maior que seja seu elitismo na prática), uma vez que 47. E surpreendente o contraste entre a cadeia do ser, de tradição clássica e teológica, e o individualismo
isso implica que a pessoa é apenas um elemento da comunidade (e não um indivíduo que independe de puro. Para Oakeshott (1975), a tradição do direito natural não morreu por inteiro, e Hobbes nunca teve uma teo-
apoio exterior). O escritor liberal Isaiah Berlin (1969) faz distinção entre uma concepção "negativa" de liber- ria satisfatória ou coerente da vontade. A solução conciliatória para a qual se inclina a filosofia política adotada
dade (simplesmente a ausência de controle e coerção externos) e uma concepção "poil ea" de liberdade (a foiasijj.iãcidã uma Abria do di eito natural reconstituído com as idéias de "voiídã'dã'Hóbbcs. Unia uiiio
idéia do cumprimento e consumação da verdadeira natureza humana). Para Berlin, a segunda concepção é indic expressões co ntade era! e Rousseau, Vontade racional, de l-f e,eontiv.'ul,de Kns,
antimoderna e potencialmente totalitária, e não pode ser aceita por um verdadeiro liberal, uma vez que exi- quet. Uma r.evivificação da teoria do direito natural dos estóicos com o enxerto de uma teoria da
ge do homem a postulação da existência de uma noção objetiva do bem viver. Portanto, a interpretação do 48. Conquanto Hobbes lance as bases do positivismo jurídico através detiuso de unia narrativa cien-
ideal republicano clássico de liberdade como participação na realidade de um governo comunal não pode ser tífico-naturalista e da firme defesa do direito positivo (à custa do common law), ainda é cedo demais para cha-
aceita. O historiador Quentin Skinner (1978) não aceita essa conclusão, acreditando que é possível construir má-lo de positivista jurídico. Ele não pode respirar a atmosfera criada por Comte rio século XIX, com sua to-
uma idéia de liberdade que, conquanto ainda negativa (no sentido de rejeitar uma definição substantiva de tal confiança na capacidade que tem o conhecimento positivo, ou científico, de encontrar os métodos e as
eudiamonia), inclui os ideais de participação e virtude cívica, Skinner relê o Discurso de Maquiavel como se ali condições para um futuro paraíso na terra. Hobbes tampouco pode criar uma religião da humanidade.
Capítulo 5
David Hume - Defensor da experiência e da tradição contra
as afirmações da razão como guia da modernidade
carou as pretensões da razão em tornar-se a base e o guia do desenvolvimento de Hume é visto como propositor de um naturalismo consumado, ruzindo o homem
uma nova sociedade (destruindo, assim, a tese ontológica do direito natural2), em a um mero feixe de causa e efeito a partir do que são banidas todas as idéias trans-
vez de propor alguma coisa de positiva para a modernidade'. Cético radical em sua ndentes de moral ou da alma humana. Para Bany Stroud, a afirmação central de
filosofia, e conservad.. em suas concea ões políticas e sociais, Hume parece em Hume é que "a razão, como tradicionalmente entendida, não tem papel algum na
desacordo com a tendência otimista do Iluminismo4. Recusando-se a criar imagens vida humana" (1978: 14), situando Hume na corrente conservadora dos filósofos do
especulativas de utopias futuras, ele voltou-se para a história para mostrar o que senso comum.
somos e como aqui chegamos (durante sua vida, foi reconhecido primeiro como Esses pontos de vista têm se complicado com uma proliferação de erudição hu-
historiador, depois como filósofo). Na tradição da erudição humiana legada por miana. Muitas interpretações recentes preocupam-se ostensivamente não com o
Kemp Smith (1941), Hume "empiriz?7 6}ornem a tal ponto que o alcance do co- desmonte dos textos de Hume - como fez, historicamente, a tradição analítica -' mas
nhecimento relevante a nossas preocupações (e, assim, capaz de servir de guia à com a contextualização e o entendimento da importância de sua obra'. Lido como
ação) deve ficar restrito ao entendimento do lado sensível e emocional do homem, UM dos que contribuíram com a criação de novos conceitos na fflosQfja4urídica, Hume
e devemos .escon ar das afirmações feitas em nome da razão. Kemp Smith suma- aferece um modo de entender im licitamentee or que dois su eortes essenciais do
ria afirmações-chave, como "a razão é e deve ser escrava das paixões", para repre- common 11~ - a ex e enc a e a tradição - puderam sobreviver dian e do crescente
sentar Hume como um pensador para o qual só somos verdadeiros aua4psb potencial do positivismo jurídico - uma idéia do direito como instrumento do domí-
"guiados pela natureza, agindo (...) não através da razão, mas do sentimento (...Y'. nio racional, ou a estrutura ão da ordem social através s - um códi:o racional e
gico. sabotar as a e ações da razão, Hume permite e ue as ale a
Têcia e da tradição sobrevivam e sejam "raciona mente defendidas".
com sua recepção, observando mais tarde que "nunca antes uma tentativa literária foi tão infeliz", pois
a obra "saiu natimorta do prelo". Seu próximo livro, Essays Moral and Political [Ensaios morais e polí-
ticos], publicado em 1741-1742, foi um sucesso imediato.
Hume então revisou o Tratado, simplificando ou popularizando os argumentos para o público ge-
A IMPORTÂNCIA. DE HUME PARA A FILOSOFIA DO DIREITO-
ral, e publicou-o com o novo título de An Enquiry Concerning Human Understanding [Investigação sobre ENCONTRA-SE EM PARIE EM SUA ILÇAO
o entendimento humano] Além de seus extensos livros sobre a história da Inglaterra, Hume escreveu E DA EXPERIÊNCIA QUE ESTAVAM SOB ATAQUE IMPLICITO
três outras obras que viriam a aumentar sua fama: Principies of Morais and Politi cal Discourses [Princípios DO LEGADO HOBBESIANO
da moral e discursos políticos] e, depois de sua morte, Adam Smith publicou o livro que os amigos de
Hume tinham-no aconselhado a não publicar enquanto ainda vivesse, Dialogues ou Natural Religion
[Diálogos sobre a religião natural]. Smith foi mais criticado por permitir a publicação desse livro do que
Hobbes substituiu Deris pelo conceito do indivíduo previdente enquanto base
por qualquer coisa que ele próprio tenha escrito. da ordem social. A ordem social moderna devia ser uma estrutura tornada possível
Hume foi para a França em 1763 como secretário do embaixador inglês. Seus livros lhe haviam pelo direito - pelo domínio do soberano - e autorizada pela compreensão racional
granjeado urna enorme reputação no continente europeu, e ele tinha uma relação confusa com Rous- dos indivíduos de que esse centro de poder secular era exigido pela indetermina-
seau, a quem convidou para ir viver na Inglaterra num período em que Rousseau enfrentava uma crí-
tica muito hostil na França. Não foi uma estadia muito agradável, com Rousseau revelando suspeitas
todas as vezes que Hume tomava providências para organizar sua permanência no país. Durante dois
anos, de 1767 a 1769, Hume foi Subsecretário de Estado, e em 1769 voltou para Edimburgo, onde sua 5. Posição mais tarde criticada por Hegel: "uma vez que o homem de senso comum recorra ao
ntimento, ao oráculo que traz em seu peito, estará acabado para todos os que dele discordarem; ele
casa tornou-se um centro de encontros literários e filosóficos. Morreu nessa mesma cidade em 1776.
2. Hume afirmava que, qualquer que fosse o conhecimento que pudéssemos adquirir com base ii apenas de explicar que não tem mais nada a dizer a ninguém que não pense e sinta da mesma ma-
no modo de operação das coisas - na realidade objetiva -, não poderíamos inferir, diretamente desse cira que ele. Em outras palavras, esmaga sob os pés as raízes da humanidade. Pois é da natureza da
conhecimento, uma resposta à pergunta "corno devem ser as coisas?". 1 iumariidade insistir no acordo com os demais; a natureza humana só existe, de fato, na consumação de
3. Como diz David Faith: "A filosofia de David Hume vem provocando reações há cerca de dois 1 ma comunidade de mentes. O anti-humano, o meramente animal, consiste em permanecer na esfea
séculos e meio. A maioria esmagadora dessas reações tem sido negativa, com base na opinião de que do sentimento e só ser capaz de comunicar-se nesse nível" (Phenomenology ofStjç).
a filosofia de Hume é negativa, uma ne:a ão do: ãticamente cética do conheii-nto humano dr 6. Aos nomes d Kemp Smith, ou, alternativamente, aos dãüeles que viram apenas o clássico cé-
verdade e do valor." co, vieram juntar-se novos nomes, como Duncan Forbes (1975), Donald Livingstone (1984), David
Hume foi recentemente o alvo de um escritor pertencente ao movimento dos Estudos jurídi- lith Norton (1982), Frederick Whelan (1985) e Alisdair Maclntyre (1988). O resultado foi um aumen-
cos Críticos. Em Theory, Political Theory, and Deconstruction, Matthew Kramer (1991: 145-6) afirma que das perspectivas e modalidades de entendimento cujo efeito enriqueceu, assim como tornou mais di-
"o conservadorismo assoma como a ideologia dos particulares. Com raiva, e quase sempre com elo- 11 a tarefa de haver-se com Hume. Hume foi sempre um sintetizador em cada um de seus textos, quer
qüência, os pensadores conservadores têm ridicularizado os grandes esquemas dos visionários que usem propriamente filosóficos, como o Tratado da natureza humana (1978 [1739-401) (em todas as pró-
procuram transformar a política numa arena de experimentação... Hume foi o filósofo dos particulares diiias referências, esse texto será citado como (r, número da página) ou as Investigações (1975 [17771)
por excelência". • ido como 1, número da página), quer ensaísticos, como as Histórias, os Diálogos (1957) e os Ensaios.
1) L1\J
124 Filosofia do direito David Hume 125
ção da subjetividade diante da condição "natural" do homem. Neste mundo secular, (iv) se o eu não é confiável, tampouco poderemos confiar nos fatos inferidos a par-
aunidçjjsica éo indivíduo racionalmente evidentequeseiotna senhor de sua tir de nossas percepções sensoriais, tendo em vista que são organizadas pelo eu.
existência e de tudo que possui. O direito é o instrumento do soder se a e Isso significa que não temos como chegar à certezapois tudo é • assível de des-
ferramenta e e um sujeito umano que começa a assenhorear-se do mundo e a sub- constru ão, nada é se: ro. Como vamos lidar com e • e a tataço7
Ietêlàiii:ilise racional, confiante em seu poder de raciocínio, ca 'az e ar uma
estrutura socia , uma socie. ao e, atravé.epiíbli- (v) Hume su:ere e ue temos uma o. ção - (a) recuar para a passividade niilista e
modalidades de direito -. a nervoso e social, ou (b) lidar com as narrativas e categorias do
co, civi e cnmin. -, tuso inter gado. O mundo torna-se um domínio de oportunida-
senso comum sue a "vida comum" e a .jesenta. Hume .ro eõ a se nda o
infinitas a ser controlado pela legalidade especificamente, contrato, propriedade, ç. mas pergunta: com que tipo de dis • osi ão de es .írito iremos nos situar ria
individualidade e defesa das relações jurídicas por meio da sanção criminal.
"vida comum"? Sua sugestão é o recurso a um ceticismo atenuado. Portanto:
A modernidade irá orientar-se pelos desejos, pelo raciocínio e pela felicidade do
indivíduos que formam o corpo social. O direito servirá para pacificar internamen- (vi) devemos atuar ientro de uma tradiçg. Todo empenho e todo conhecimento
te e estruturar um conjunto de localidades - nações-Estado emergentes - ao fornecei humano provêm de uma tradição. Contudo, precisamos também compreender
uma base constitucional, um contrato social e, através do soberano assim constituído que a tradição não nos traz a "verdade", no sentido de entidades absolutas e
- o Estado constitucional -, o direito criará as condições para que haja interação social inegáveis que nos ofereçam a pureza e a certeza que desejamos. Ao aceitarmos
no interior desse espaço. os instrumentos e métodos de nossas tradições, estaremos condenados a exis-
Hume, porém, questiona a confiança e o otimismo relativos a essa idéia de uma tir acenas em meio a con eturas e sus osições, alem do mais e t e uinmos uma
modernidade emergente que, além de ser uma esfera de possibilidades para os de-- idéia de nossa identidade (enquanto pessoas, indivíduos, advogados ou juízes)
sejos do eu, será também capaz de deixar-se reger pelo eu racional livre. Embora ao recordarmos e pensarmos através de nossos métodos ligados à tradição e dos
Hume destrua qualquer vínculo remanescente entre a razão humana e a fé em Deus êisdnossas tradições;.
—dlise modo contri.ua cara o .rocesso de moderniza ão - ele também desesta- (\íi) assim, afirma Hume, as ré.- as de ustiça e as regras da ordem jurídica são o
iza a eperan
bilsça em uma vida set ra com base nas estruturas do racionalismo car resultado de processos históricos de tradi õe -. e devemos hesi-
tesiano. Hume pergunta que tipo de base dá sustentação à idéia de um eu livre e ra tar em introduzir mudanças drásticas simplsmentep. a .- e • -lo cria-
cional que seja capaz se con ecer as s da razão na moral e na ética, e que ii m igumargumento lógjçQ atraente (com base na "igualdade", por exemplo).
criar uma nova ordem social. Precisamos compreender os tipos de conhecimento envolvidos nos argumen-
Este capítulo segue trajetória do raciocínio de Hume no "Tratado / da quiJ tos racionais, assim como os limites de tais argumentos. Inversamente,
apresentamos aqui um resumo:
viii) se erocurarmos conhecer o funcionamento real do mundo, a oderemos reunir
(i) Hume tenta seguir estritamente os preceitos baconianos e cartesianos no sen fatos_jco utilizá-los como guias de nos proce.sso de construção social.
tido de eliminar cepticamente todos os ídolos regiosos ou metafísiosub
tituí-los por certas verdades;
ISURGIMENTO DE CONCEITOS METODOLÓGICOS PARA SE ENTENDER
(ii) em seguida, porém, pergunta: de onde virão essas verdades? Humenãqon A SOCIABILIDADE HUMANA: INDIVIDUALISMO VERSUS HOLISMO
na razão pura;, argumenta que tal razão não tem nada de importante a nos di
zer sobre o mundo; o que, então, usaremos como base de nosso conhecimen Como conseqüência desse projeto, Hume oferece uma reconstrução imag-
deste? Apenas fatos da observa ão e e .eriência do eu pírico - mas será (111 r vi lo .sueito is 'e -. e que, em termos pragmáticos, contorna a linha divisória en-
podemos ter certeza da estabilidade desse "eu" fundamental? ndividualismo metodológico e o ismo socia
(iii) Hume ocura um "eu" que seja ao mesmo tempo atomístico e inteiro, i
só encontra um ... con sa e desestabilizadora de impressões e emoçi O individualismo metodológico
- o que se chama de "eu" não passa de uma percepção imaginária da idei i li
dade, construída em interação simbólica com todo um conjunto de entidi L
le
Og9jiQjj2esiao oferece teorias sociais criadas com base no individualismo
des sociais. Como o "eu" não pode nos oferecer segurança, temos de d ológico, ou que consideram os indivíduos como unidades estruturais básicas,
fiar
---
nos fatos do muidMas: alguma coletividade - por exemplo, a pólis - ou totalidade—, como ainterpre-
126 Filosofia do direito David Hume 127
tação do cosmo como produto da vontade divina. Os indivíduos estão condenados só devia ser leal para com sua sociedade se, e na medida em que, a sociedade fosse
a ser independentes uns dos outros, e não existe ordem social natural. O problema capaz de satisfazer suas necessidades? Que dizer da 'osi ão de todos a.uees - a
é, então, como harmonizar as vontades individuais no contexto de um todo social? Hob- maioria, nos primórdios da modernidade - sue eram excluídos de uma real 'artici-
bes resolve-o - intelectualmente - através da imagem do contrato social original por pação na constituição social (as mulheres, os que não tinham propriedade alguma,
meio do qual os indivíduos racionais colocam um soberano como foco central do po- os escravos, os "outros"); o sue os levaria a aceitar a .osi ão dos mais afortunados?
der legítimo. Contudo, se a tradição religiosa, o mito e o costume forem eliminados
em favor de uma nova aborda.- em científica da base da ordem social será .os.sjvel
1 esenvolver um racionalismo ca az de manter a autoridad . 5 to-de-
5 5,5
As origens da tradição expressiva
verá estar no poder em estado puro? Hobbes resolve a questão postulando que a or-
dem social deve basear-se no consentimento individu. e ao menos, no entendi- Abriu-se, assim, um caminho para uma linha de .ensamento alternativa de-
senvolvida • elo romantismo de Rousseau, • artil ada .or He : el (ambos discutidos
mento raciona de que todos os indivíduos teriam dado seu consentimento (uma
iio capítulo 7 deste texto) e herdada .or Marx (discutido, aqui, no capítulo 10). Nes-
vez que a alternativa é a guerra de todos contra todos)'. O contrato social mistura a
sa linha, o homem é a.e.uenado selas circuns .a aas suais se encontra; a hu-
liberdade natural (autonomia) com a legitimidade, oferecendo-nos uma narrativa do
manidade deve aspirar a tornar-se algo além das tristes criaturas que seu comporta-
individualismo metodológico: a sociedade moderna é criada a partir da massa dos in-
mento demonstra serem. Essa tradição mantém viva a idéia de transcendência; em
divíduos e de suas vontades. nome de nossa "humanidade", exi: mos sue nossa "essência" se dest a ai: o até
Como vamos nos relacionar com a sociedade moderna assim formada?8 A cons- do contexto empírico se nossas vidas arbitrariamente 'imitadas.
tituição sociojurídica será apenas uma forma instrumental de ordenação social sem Por outro lado, poderíamos encontrar as bases para nos identificarmos com
nenhum valor em si mesma, personificando tão-somente nossos medos do que se- sociedade e lhe prestarmos obediência quando ela for nossa, no sentido de ser nos-
ria a vida sem ela? Ou essa moderna constituição sociojurídica exprime a moralida- sa cria ao isto é a a o,. e e udermos ver a sociedade como o resultado da promoção
de das sociedades? de e - -s - entos nossos, que pertencem à nossa natureza Ejtual. Como
Primeiro, a narrativa instrumental. Na narrativa instrumental, o papel do direito afirmou Charles Taylor (1979: 113): "Somente uma sociedade que fosse uma ema-
na constituição do corpo social encontra-se i,criqçap e, px conseguinte, na manu- nação do livre-arbítrio moral poderia restabelecer uma pretensão a nossa fidelida-
tenção das regras (de quaisquer regras; seu conteúdo moral interessa menos que sua de que se pudesse comparar àquela da sociedade tradicional. Desse modo, uma vez
eficácia); as re: as se, a, anecem entre os siij,itos e o caos social que decorreria do mais a sociedade iria refletir, ou incorporar, algo de um valor absoluto... Somente as-
subjetivismo individual. Uma vez que o objeto desse sistema de regras é a preser- sim se poderia deixar de falar em uma ordem cósmica."
vação da ordem, como a modernidade vê a forma organizacional, o medo de alguns
críticos é que os que se submetem à,siiegras venham a perder sua criatividade in-
dividual e a tornar-se "meros objetos da vida administrada" (Adorno e Horkheimer, HUME NEGA QUE POSSAMOS ENTENDERA TOTALIDADE DA
1972: 32; em termos mais gerais, Weber, 1984). EXIS lÊNCIA APENAS POR MEIO DO USO DE NOSSA RAZÃO E SUGERE
Ao mesmo temppque se afirmava realista, a narrativa instrumental fazia um UMA EXPLICAÇÃO ESIRUTURAL-FUNCIONAL DO
uso medíocre à., i es do .assado. Negligenciava um aspecto fundamental çla CORPO SOCIAL EM QUE âJBAWÃO E A EXPERIÊNCIA SÃO
experiência reli: osa: o aspecto expressivo. A narrativa instrumen a não fornecia um OS ASPECTOS IMPORTANTES DO PROGRESSO SOCÍÃL
--
conteúdo através do qual cada pessoa pudesse identificar o corpo social. O cálculo
mero e simples poderia mostrar-se suficiente? Ou isso significaria que um homem Hume dá três passos fundamentais:
ic 7'
(t) separa o conhecimento dos fatos do conhecimento das idéias e das relações
7. Repetindo a estratégia de legitimação contida no contrato social hobbesiano: "Todo súdito é au- entre as id '
tor de todos os atos praticados pélos soberanos () o consentimento de um súdito ao poder soberano
está contido nestas palavras: autorizo ou tomo sob minha responsabilidade todas as suas ações" (Le- (ii) desconstrói as alegações da "razão", mostrando que o único conhecimento ver-
víatã, 21: 265, 269). djçpodemos ter da condição humana é adquirido a partir da observa-
8. Em outras palavras, se a sociedade moderna se constitui por meiodri.direi:_ito (quer através de ção e da experiência;
algum documento fundador, num ato de vontade política, como uma declaração de independência e
uma Constituição escrita, ou lentamente, como na Constituição inglesa), qual é nossa relação com essa inicia a desconstru ão da idéia do eu, demonstrando assim que temos de con-
Constituição? tar com a e e eriênc • . di ão "social", 2 não individualismoi1Í'
128 Filosofia do direito David Hume 129
Primeiro passo: separar o conhecimento do fatos detalhada e na elaboração de modelos lógicos, mas é difícil a erceber como tal em-
do conhecimento das idéias preendimento elucida alguma coisa de substancial a ósito do mundo nos
cfEãTAinda assim, azem-se muitas afirmações favoráveis a esse tipo de conheci-
Esta era uma idéia-chave do Tratado que, como Hume percebeu, não havia fica- mento, afirmações que na verdade são ou exemplos da "razão extrapolando seus li-
do tão clara quanto ele pretendia; por esse motivo, ele a reformulou mais claramen- i-nites" ou meras tautologias.
te nas Investigações: segtilo conhecimento dos fatos, remete às afirmações relativas ao modo
como as coisas sao, de fato, no mundo, e estas podem ser testadas (ou podem-se fa-
Todos os objetos da razão ou da indagação humana podem ser naturalmente divi- zer tentativas de testá-las) mediante a verifica ão do modo como corres. ondem ao
didos em dois tipos, a saber, Relõõêãe Idéias e Questões de Fato. Ao primeiro tipo perten- estado de coisas sue .retendem representar. Esse tipo de conhecimento nos revela
cem as ciências a a eome a, 1 gebra e Aritmetica; e, em resumo, toda afirmação que é como as coisas realmente são no mundo, mas à verificação de tal conhecimento é di-
intuitiva ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos ildil. Hume vai demonstrar que o maior problema está na relação entre a observação,
quadrados dos catetos é uma proposição que expressa a relação entre essas duas figuras. a criação de fatos e a impossibilidade lógica de criar "leis" baseadas na recorrência
Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre esses núme-
das coisas que observamos (por exemplo, o simples fato de nunca termos visto um
ros. As proposições desse tipo são confirmáveis .ela mera o a era ão do • ensamento,
sem depender 4qque existe em qualquer parte do universo... cisne negro não si: ifica sue, amanhã, um cisne negro vá aparecer; não podemos,
As questões
Í â- de fato, que são os segundos objetos da razão humana, não são deter- logicamente, enunciar uma lei física natural em cujos termos o os os c snes sao
minadas da mesma maneira; tampouco nossa comprovação de sua verdade, por maior hraiicos", tudo uue .odemos dizer e sue "em nossa exienência - sto e como re-
que seja, é de natureza semelhante à anterior. O contrário de toda s uestão de fato é ain- sultado de nosuaa.tb8ervações - os cisnes são de cor branca". O fato de o sol sem-
da possível, aois nunca pode implicar uma contrai ição e e concebido pela mente com pre nascer de manhã não determina, logicamente, que eleva nascer amanhã cedo).
a mesma acuidade e nitis ez, como se tosse sempre muito adequado à realidade. O fato Hume confiava nessa distinção para eliminar, cepticamente, muitas afirma ões s -
de o sol não nascer amanhã não é uma proposição menos inteligível, e não implica mais conhecimento que via outros autores fazerem.
contradição do que a afirmação de que vai nascer (1, 1V, primeira parte: 25-6).
Analistas posteriores reftmse a isso como o "dilema de Hum". O filósofo Segundo passo: a desconstrução das afirmações de "raciocínio abstrato",
afirma que todo conficimento pertence a uma ou outra dessas duas categorias disT ou de filosofia pura, para fundar a nova sociedade
tintas e mutuamente exciiidentes. Além disso, a evemos ser sempre claros quanto ao
tipo a - con ecimento que estamos afirmando. A partir do primeiro terço do Tratado, Hume começa a utilizar o teste do cepti-
oçonhec&nen. a s idéias - 1 ia . ' ntre as idéias, remete à elabo- cismo. Ao introduzir "O sistema cético e outros sistemas filosóficos", argumenta
ração de conceitos e às relações lógicas entre os conceitos; esse conhecimento das que, enquanto a razão se apresenta como um novo sistema dominante da verda-
relações entre as idéias tem por fundamento proposições que são necessariamente de, pdnos adentrar sua estrutura, apontar -contradições internas e mostrariaté que
verdadeiras ou exprimem verdades necessárias (como, por exemplo, a de que um sol- 2att1ra extrai suas bases de premissas não racionais.
teirão é um homem que não se casou), e para testar tal estrutura perguntamos o que
se segue, ou o que não se segue, o que é ou não logicamente compatível com aque- A razão aparece primeiro como detentora do trono, prescrevendo leis e impondo
la afirmação. A regra lógica fundamental é a le u * ão-contradi ão; uma coisa não máximas com ascendência e autoridade absolutas. Seu inimigo, portanto, é obrigado a
pode ser "A" e "não-A" ao mesmo tempo. Não é possível enunciar "B" e, em segui- buscar refúgio sob sua proteção e, ao fazer uso de argumentos racionais que compro-
da, criar um argumento lógico no qual "não-B" seja enunciado; disso decorre que, vem a falácia e a imbecilidade da razão, produz, de certo modo, uma patente por ela
Se' um argumento dessa natureza for encontrado, ficará evidente que ocorreu uma firmada. Essa patente tem, de início, uma autoridade proporcional à autoridade pre-
contradição interna. Se assim for, o argumento é claramente falho. 9problema com sente e imediata da razão, da qual provém. Contudo, como se supõe que contradiga _a
as afirma ões desse ti, o de conhecimento, afirma Hume, estavajaofata d..seuui- razão, vai aos poucos minando a força daquele poder dominante e, ao mesmo_tempo
tô imitado em sua capacidade de nos dizer al-o a - •.vo.sohre o mundo; uma vez asua pio . a. .. a. Por fim, ao longo de uma diminuição regular e justa, ambas desa
que a estru ura era cria a através de um processo de dedução lógica e reeição da parecem no nada (T, 186-7).
autocontradiçãogumentos dedutivos válidos jnão poderiam nunca nos dizer
mais que J fosse inerente às premissas do arg nientQ. Afirmamos e criamos É isso que, em anos recentes, veio a ser conhecido comoçesconstnição" A tá-
com base nessas proposições através de um engajamento na argumentação lógica tica dHume consiste em infiltrar-se na própria estrutura que confere ao raciona-
130 Filosofia do direito David Hume 131
lismo sua força, e desmontá-la. Hume já havia advertido que havia muitos autores Terceiro passo: a desconstrução do eu
que apelavam à razão para invocar uma imagem de destreza e confiança, com a fi-
nalidade de afirmar que a razão substitui a ignorância e a mitologia, razão pela qual Se a única base real em que podemos confiar é a da observação e da experiên-
cia, poderemos con ar que o eu o ereça um ponto de referência se_ ro e, assim a-
multiplicam-se as controvérsias, como se tudo fosse incerto; e essas controvérsias são rantir o processo de observação e experiência? Para avaliar a resposta de Hume, ire-
conduzidas com grande entusiasmo, como se tudo fosse certo. mos nos concentrar em um breve trecho do Tratado, a saber, a Seção VII do Livro 1;
a Conclusão desse livro, intitulada Of the Understanding [Do entendimento].
Em vez de um verdadeiro avanço do conhecimento, a vitória cabe, d fato à Hume inicia essas páginas como se fizesse uma pausa para tomar fôlego em
retóri meio a uma grande aventura; é um momento de reflexão - de voltar o ato do exame
crítico para além do mundo observado, para o sujeito que faz a observação`.
Em meio a todo esse alvoroço, nãoj.â. razão que sai vencedora, mas a eloqüência;
e nenhum homem precisará desesperar-se de conseguir adeptos da hipótese mais ex-
Antes, porém, de lançar-me às imensas profundezas da filosofia que tenho à minha
travagante desde que seja hábil o bastante para apresentá-la nas cores mais favoráveis.
frente, vejo-me inclinado a parar por um momento em minha posição presente e refle-
A vitória não é conseguida pelos guerreiros que manejam a lança e a espada, mas pe-
tir sobre a viagem que me propus fazer, e que sem dúvida requer o máximo engenho e
los corneteiros, tambores e músicos do exército" (T, xi-xiv).
esforço para poder chegar a uma feliz conclusão (T, 263).
Ao contrário, Hume nos pede para
Hume partiu, como sempre, de uma concep ão racionalista do eu mas desta
( ... ) ir direto à ca. • o centro dessas rjênrias knatureza humana em si, da qual, vez apresentou de tal modo o fato de nossa confiança na idéia de um "eu" coeren-
endo uma vez senhores, poderemos sem are contar com uma vitória fácil em outras te ue nos conscien zamos ena ente de ue Hu e nao e u da ueles "infalí-
aves 'a exposição] dos princípjQp a - , . anã podemos, de fato, veis, para além da evidência de uma demonstração tanto de sua identidade quan-
propor um completo sistema das ciências, criado em bases quase inteiramente novas, to de sua simplicidade perfeitas" (T, 251).
as únicas a propóto das quais se pde..tera1guma certeza Hume submete o conceito do eu ao teste da e a eriência e da observação; ten-
ta chegar a seu proprio eu através de sua capacidade se observaçao, mas descobre
Aqui, Hume parece obedecer a todos os ditames do subjetivismo iluminista, ser isso impossível - não se encontra nenhuma impressão distinta que corresponda
transpondo a base da epistemologia para os ombros do sujeito,o homem, visto como à noção da "mente" ou do "eu". Em vez disso, diz-nos o filósofo, "quando pene-
uma entidade auto-suficiente. Além disso, tro mais profundamente naquilo que chamo de 'eu mesmo' ( ... ) não consigo apreen-
der outro eu mesmo além daquela série de percepções que estão presentes naquele
.( ... ) tendo em vista que a ciência do homem é a única base sólida para as outras ciên- momento" (T, 252). Portanto,
cias, a única fundamentação que podemos dar a essa ciência deve repousar sobre a ex-
periência e a observação (1, 1O
eu não é uma entidade una e segura; ao contrário, é um espaço em rrto na alegoria da caverna de Platão, Hume sente que só consegue descre-
rentes mensagens e impulsos vão e vêm. Não se trata, portanto, de uma ba' i' *lema de forma narrativa, perguntando:
Posso estar seguro de que, ao abrir mão de todas as opiniões estabelecidas, estou
O RESULTADO DE NOSSA BUSCA PELA BASE DO SUJEITO Indo a verdade? E que critérios usarei para percebê-la, ainda que a sorte viesse fi-
INDIVIDUAL MODERNO É A INCERTEZA E A CONFUSÃO, iente guiar-me os passos?
EM VEZ DE UMA BASE SÓLIDA
nrrativa de Hume não descreve um processo ao longo do qual somos guia-
A ausência dessa base segura em um eu autônomo coerente traz problell
m libertador - a deusa do sol ou o libertador dos grilhões da caverna -
natureza política, pessoafepistemo ogica. vê ao encontro do ser da verdade; Hume oferece apenas a companhia da •
Politicamente, por exemplo, se se considerar que o liberalismo tem iníd
céptica Em decorrência disso,
a obra de Locke e Hobbes, ambos grosseiramente rotulados de empiristas, tal
depositou muita confiança na noção de consciência privada do indivíduo (uma
.m seguida ao mais exato e preciso de meus raciocínio..ão consigo oferecer
cepção do eu) enquanto base sobre a q.ual se pdia moldar a entidade ( iit k
6i1Üi pela qual deva aceit-1o; e nada sinto além de uma forte tendência a
indivíduo autônomo12 . etos de acordo com a conce' ão em • ue se
Na ausência de tal segurança, como podem os indivíduos alcançar auk'nik aiÇ6.
de opinião ou desejo71-Iume expõe sua própria experiência:
nicos: ias sãoperiência e o hábito. Mas esses guias nos perturbam e
Primeiro, fico assustado e confuso com aquela solidão lastimável em que sou
cado com minha filosofia, e vejo-me como um monstro estranho e solitário que, perceber como o ridículo o nosso desejo de encontrar "o princípio original
de misturar-se e viver em sociedade, foi banido de todas as relações humanas e " que foi "nosso objetivo em todos os nossos estudos e reflexões".
totalmente abandonado e desolado... Ao olhar para os lados antevejo, por tula
controvérsia, contradição, raiva, calúnia e difamação. Ao olhar para dentro de n hr uão decepcionados ficamos quando nos damos conta de que essa conexão, liga-
encontro além de dúvida e ignorância... De tão grande minha fraqueza, sinto qu ou iiiergia encontra-se tão-somente em nos mesmos, e nada mais e que a determi-
as minhas opiniões se enfraquecem e desmoronam quando não contam com a a cfa mente, que se adquire pelo habito (1', 266)
ção dos outros. Hesito a cada passo, e toda nova reflexão me faz temer a exiul t'n
um erro e absurdo em meu raciocínio (T, 264). remos acreditar na existência de princípios fundamentais que residem em
omínio que nos é extrínseco; contudo, ao analisarmos essa crença "ou nos
12. A medida que essa interpretação das considerações de Hume sobre o eu descstal'ili/ emos ou dizemos coisas sem sentido".Qentido que encontramos nas pa-
gado lockiano pode ser vista ao contrastarmos seus efeitos com a síntese clássica de MiiI Õ,provém de algum domínio puro de essencias platônicas, nem da mente
(1962: 3): "O caráter possessivo do individualismo do SéCU1çjj encontrava-se em sua cuIiii as das lutas de nosso próprio intelecto.
indivíduo como essencialmente o proprietário de sua própria pessoa ou suas aptidões n a-se de uma afirmação espantosa, pois ameaça subverter tradições inteiras
r&ie por sua psse. O indivíduo não era visto nem como um to o mora nem conit
um tocTo social mais vasto, mas como um proprietário de si mesmo. 4 relação de prnprk'dade, Já-Ias de suas bases. Hume diz que a dificuldade não é percebida na vida co-
tornado, para um número cada vez maior de homens, a relação deimportância c'njeial 1ara1 .0 contrário, deparamo-nos com ela quando se trata de "entender quando
naçao de sua verdadeira liberdade (...) foi inscrita na natureza Qindivíduo. OJjyíio, pei ha e de acordo com seus princípios mais gerais". Quando somos absolutos
é livre ma e suas aptidões. A essência humana cojsLv. da racionalidade, ela "subverte-se totalmente, não deixando o menor sinal
vfç da dependência da vontade dosouiros.ea liberdade é uma função da posse."
Recordemos que John Locke afirma que a razão de o homem ter criado a sociedade o48 Istência em nenhuma proposição significativa, tanto na filosofia quanto na
teção daquilo que post1 ainda assim, a base da propriedade privada consistia na na". Em última análise,
um "eu' encerrado em si mesmo e os objetos do mundo: 'ora a terra e todas as £aItm!a,
res sejam comuns a todos os homens, ainda assim todo homem detém a propriedade de Mima Não ficamos, portanto, com opção alguma a não ser aquela que se dá entre uma
pessoaEsse joão-ninguém tem um direito exclusivo sobre si mesmo Podemos dizer qç 0w o falsa e razão nenhuma (...). Não sei o que se deve fazer (...). Posso apenas obser-
são propriamente seus. 9 que e ele tire do Estado, q
sido provido pela natureza e ali de" _sociado a seu trabalho e ligado a atguno
taassoc que é corfiumente feito, isto é, que essa dificuldade é raramente, ou nunca, objeto
lhe sua prqp.riedade" (Locke, Segundo tratado, seção 27).
132 Filosofia do direito David Hume 133
O eu não é uma entidade una e segura; ao contrário, é um espaço em que dife- Como na alegoria da caverna de Platão, Hume sente que só consegue descre-
rentes mensagens e impulsos vão e vêm. Não se trata, portanto, de uma base segura. ver o problema de forma narrativa, perguntando:
4)L,/ J4•• Posso estar seguro de que, ao abrir mão de todas as opiniões estabelecidas, estou
O RESULTADO DE NOSSA BUSCA PELA BASE DO SUJEITO seguindo a verdade? E que critérios usarei para percebê-la, ainda que a sorte viesse fi-
INDIVIDUAL MODERNO É A INCERIEZA E A CONFUSÃO, nalmente guiar-me os passos?
EM VEZ DE UMA BASE SÓLIDA
A narrativa de Hume não descreve um processo ao longo do qual somos guia-
A ausência dessa base segura em um eu autônomo coerente traz .roble dos por um libertador — a deusa do sol ou o libertador dos grilhões da caverna —
natureza política, pessoa e epistemo ogica... que nos leve ao encontro do ser da verdade; Hume oferece apenas a companhia da
Politicamente, por exemplo, se se considerar que o liberalismo tem início com
dúvida céptica. Em decorrência disso,
a obra de Locke e Hobbes, ambos grosseiramente rotulados de empiristas, tal início
depositou muita confiança na noção de consciência privada do indivíduo (uma con-
Em seguida ao mais exato e preciso de meus raciocínio não consi:o oferecer
cepção do eu) elIquanto base sobre a qual se poderia moldar a entidade política do razão"ãlfiTpa a qua deva ace à- o;e nada sinto além de uma for e tendência a
indivíduo autônomo`. consi erar, e eci elua nte, os ob etos de acordo com a conce ao em sue se - ti.
Os fatores análogos do subetivismo e da busca conscienciosa de uma base ra- por nossas estruturas racionais. Em filosofia, o desenvolvimento subseqüente da
cional para nossas crenças consumaram agora sua vingança. O resultado é o caos in-
--
epistemologia consiste, em grande p rt se res a ostas a ume que tentam se con-
,
te1&tu / a m ip ici a e e impressoes sem nenhum sentido a.arente. t orãid&a e um vazio ou de um abismo sue subaz a nossas tentativas de en-
contrar uma ase intelectual se a eara a moderrnda e. Os ue acreditavam no o-
Estou pronto a rejeitar toda crença e raciocínio, e não considero opinião algum dér da razãõ pura encontraram seus ar idários em Kfij (ver capítu o 6 'este livro)
nem mesmo para percebê-la como mais provável ou verossímil. Onde estou, ou o qu eeg&ver capífri o 7 deste livro enquanto Nietzschel' (ver capítulo 11)
,
sou? De que causas derivo minha existência, e a que estado retornarei? Que favores ter crise o centro mesmo de sua obra.
tarei obter, e que ira devo temer? Que seres me cercam, a uuem influencio ou 'ar quei Essà questão ocupa o centro da chamada crise das ciências sociais na moderni-
me deixo influenciar? Todas essas questões me confundem, e começo a ver-me no mE dade tardia ou na pós-modernidade. Na época de Hume, era conhecido como o ar-
deporave dos estados, mergu aio na mais profunda escuridão e totalmente privad
gumento de que, sem Deus, não haveria como assegurar nossa separação entre o
d5 uso equa quer mem.ro ou ac da.e (T, 269).
,' bem e o mal e, em última análise, nada que desse à vida humana um significado
sólido; o niilismo ameaçava`. E continua sendo assim; como contrapor-se a esse
SUPERAR O VAZIO SUBJACENTE AO NOVO
COMEÇO DA MODERNIDADE
13. Para Kant, Hume havia falhado ao não desconfiar da existência de uma ciência pura da razão.
Ele "levou seu barco para terra firme, por segurança, atracando no ceticismo, e ali o deixou ficar e apo-
É assim que Hume descreve, com grande eloqüência, a crise de fundamentos C 11
drecer; no que me diz respeito, tenho por objetivo conseguir-lhe um timoneiro que, por meio de prin-
fundamentabilidade. Procuramos uma pptção absogue :aranta os cálculos cp i cpios astronômicos extraídos do conhecimento do globo terrestre, e munido de uma bússola e uma
irão constituir os fundamentos intelectuais das instituições verdadeiramente modei verta marinha, possa dar-lhe rumo certo" (1902: 9).
nas, mas não encontramos a certeza. Estaremos condenados ao fracasso? Hume co A narrativa de Kant segue a terminologia de Hume, mas transforma a rocha estéril do ceticismo
segue apenas sintetizar: Uma "ilha cercada pela própria natureza, com limites inalteráveis. E a terra da verdade - palavra en-
c antadora cercada por um vasto oceano tempestuoso, a terra natal da ilusão onde mais de um ban-
-
É auspicioso, portanto, que a natureza consiga dobrar a tempo a força de todos u de bruma e mais de um iceberg em rápido derretimento criam a aparência ilusória de praias mais à
[elIte, enchendo o marinheiro intrépido de falsas esperanças e levando-o a tomar iniciativas que não
argumentos cépticos, impedindo que exerçam qualquer influência considerável sobre lhe permitem voltar atrás, mas que ele também não pode consumar" (1965: 257). O próprio sistema de
razão (f, 186-7). Kerit também deve enfrentar crises inevitáveis, ocorrência que "não podemos ignorar, mas tampouco
ulerar. Toda sustentação nos falta, aqui, e a maior perfeição, não menos que a menor perfeição, é in-
A "natureza" intervém no derradeiro momento de absurdo metafísico, desfaze substancial e infundada para a razão puramente especulativa, que não faz o menor esforço para reter
do a tensão tanto ao diminuir a intensidade do dilema quanto ao transferir a atençli cem uma nem outra e, na verdade, não sente privação alguma ao permitir que se desvaneçam por in-
para preocupações mais práticas. Hume volta para os jantares, o gamão e as cnn uro" (1965: 513). Por fim: "A coisa em si é, de fato, dada, mas não podemos ter discernimento algum
he sua natureza" (1965: 514).
versas com ami:os. Encontra-se "absoluta e necessariamen e se ermma.o avivei, 14. Em sua réplica implícita a Hume, Nietzsche afirma que o desejo de retomar da crise à 'vida
conversar e a* 'r co,. .utraspessoasJaos afazeres da vida çjmum urrium nada mais eue iiiri dos sintomas 'a a. - í limaria; um sintoma 'e nossa inca.acidade
Essa volta à vida comum e o psicologismo que parece sustentá-la fornecem de Eããiar com nós mesmos, uma recusa e - e somos scuienquanto indivíduos, devendo,
ponto de partida em que, como acreditam muitos, Hume desespera da razão e 1 e 1 uto arcar como onus a e nossa so ia ao uma incapacia a' e a e afirmar nossa vontade indiaal co
duz as esperanças em uma nova ordem social à esperança no "fluxo da naturci o fundamento último de tos asas coisas, e de se dar conta de que somos centrados em nós mesmos,
vão constrangidos por qualquer ordem externa de coisas. A solução nietzschiana transforma a cor-
ou no fluxo natural das interações involuntárias do homem. Hume parece dL qi
ente da natureza de Hume em "uma vontade interior" que ele c 'ama e 'vo a e a e o ncia om
se tentarmos controlar o mundo racionalmente e planejar uto futuras, ou ii'
aias
hase em uma cru i . an, 1 Z e nós á ir ó ponto sensive 'a oso a crítica de Kant tomou-
- sociedade justa, estaremos condenados à incoerência inte ectual; em vez sisso, 'e gradualmente visível até mesmo a olhos cansados: Kant não mais tem direito a sua distinção entre
só~s—ob— s devem restringir-se à experiência e à observação, elas mess.dep 1
JéTiMÔ- parencia e coisa em si (1967 300) Pra aticamente Nietzsche sustenta .ue as cate orris só são
dentes de uma confiança (não-racional) no funcionamento natural do mundo. verdades' no sentido de que são condições devida para nós: como o es .aço euclidiano é uma'verdade'
Isso funda uma tradição conservadora no sentido de que parece oferecer iii endiciona 167: 2 : imagem ao a.ismo esa sempre presente em Nietzsche é a lembrança que
-
utiiaraiustra em sua mensagem de que o jogo da vida deve continuar para além dessa suspen-
fé no funcionalismo natural, na qual a fé metafísica em Deus é substituída pela Í dv. Uma mensagem que continuamente rompe o impasse da falta de maior análise do "fato" de que
funcionamento natural das institui ões e da interação progressiva. Em termos i critério da verdade reside na intensificação do sentimento de poder" (11967: 290).
ticos e econômicos, é melhor deixar o mundo aos duïdlidli?la enação i wvà 15. Quando Hume agonizava com câncer no intestino, o ensaísta Boswell fez-lhe uma visita com
ou da mão ocultado mercadoque irá então avaliar os valores, em vez de tentn 111 1 esperança de, finalmente, encontrá-lo disposto a admitir a existência de Deus. A paciência e a resistên-
136 Filosofia do direito David Hume 137
niilismo? Hume parecia defender uma aceitação estóica de algum fluxo natural lógico deve ter responsabilidade social. Deve coexistir com os bens sociais`. Essa
que subjaz ao mistério último da vida. Considera-se que o argumento contrário de volta à vida comum não é irracional mas eminentemente racional; é raciorfáfba-
Nietzsche - ter a coragem de criar nossas próprias "verdades" - leva à criação de pro- sear nossa vi 5 a e ossa ar entação intelectual nas narrat vas do mundo social,
jetos irracionais. Uma solução pragmática alternativa é a do Wittgenstein das últimas exemplificado, para Hume, ela 1 se ão moral. Contudo, as alegações dos que
obras, que admite que nunca chegaremos a uma base de verdade absoluta, razão pela participam da visa comum podem, elas mesmas, estar sujeitas a um ceticismo mo-
qual devemos simplesmente atuar com base em um ou outro sistema. Em Sobre a derado apropriado a tal vida.
certeza, Wittgenstein afirma: Assim, devr mos imuor as narrativas do mundo social, pois devem servir tanto
de estrutura para nossas aspirações quanto para os adversários dialó:cos de no-
Todo teste, toda confirmação e contestação de uma hipótese já ocorrem no interior sãs atividades. 'n' a ë3isêticiasocia 'náo"so me co oca em' interação social R
de um sistema. E esse sistema não é um ponto de partida mais ou menos arbitrário e ímcfrcii16 coexistente de contemporâneos em determinada posição geoeconômi-
duvidoso de todos os nossos argumentos; na verdade, pertence à essência daquilo que ca, mas também me associa a uma forma peculiar de continuidade temporal, uma
chamamos de argumento. O sistema não é tanto o .onto de .artida .uanto o é o ele- / existência em coordenadas de tempo/espaço mediada pela lembrança do passado,
mento em que os argumentos têm sua existência (1969: 16). fortemente sentida por Hume na esfera do costume, que vai de antecessores a su-
cessores. E uma seqüência que extrapola os limites de minha vida, tanto no passa-
O PRAGMATISMO DA VOLTA DE HUME ÀVIDA COMUM do que antecede meu nascimento quanto no futuro, para além de minha morte.
Essa máxima parece muito próxima da volta de Hume à vida comum. O pre- O PAPEL DA MEMÓRIA E DAS NARRATWAS DA VIDA SOCIAL
ceito humiano de que a filosofia não deve apartar-se da "rude mistura terrena" da
vida comum não significa, porém, que tudo que podemos fazer se 'resume a ana- Hume resolveu essa instabilidade do eu postulando umyapel ativo-Para a me-
lisar as regras e viver segundo seus ditames, como parece pensar Wittgenstein (e, ad- mória.A memória permite que a imaginação configure uma série de percepções, em
mitamos, como era a política conservadora cuja "justiça" Hume afirmava). Afinal, Ç?forma de uma unidade capaz de criar uma ficção do eu, através das quais podemos
ainda que o pensamento e a filosofia devam começar pela vida co-niqMde ordenar apresentações que de outro modo seriam caóticas. A ficção do eu é produto
retorno a esse ti.. a .i e eroontiecer EfU€ da memória, por intermédio da faculdade da lembrança e da reflexão sobre nossas
percepções passadas, que as representam como totalmente interligadas por uma rede
(...) não podemos oferecer razão alguma para nossospjjuçípios_mais gerais e refinados de relações. Através desse ato de lembrança e criação ficcional, a memória transfor-
além de nossa experiência de sua realidade, que é a razão do m - is e te vul t ar e sue, ma "um feixé ou um conjunto se i erentes percepções" na ficção que 'i:iiEia
para ser descoberta, não exiêae início nenhum estudn.(L..xili)
noção ou uma idéia que representa difdrentes pefêções em forma de uma enti-
dade .adronizasa sue e a unica .ossi.i sase 'e isentisase continua de que d-
Contudo, nossa aceitação do funcionamento natural do mundo é moderada; pomos. Que tipo de presença, então, tem o eu? Hume enfatiza que, apesar de essa
David Faithorton chama-a de naturalismo moderado, como circunstância con- crença no eu ser uma "crença natural", e portanto exigida pelo funcionamento da na-
comitante ao cepticismo moderado de Hume. O cepticismo é uma, de.cião moralj tureza, é "uma confusão e um erro" afirmar que equivale a uma identidade pes-
çsamos desenvolver um distanciamento crítico das afirmações de poder. Como soal real (T, 254). Além disso, a ficção do eu tem outra fun ão, sois quando não a
Humeifirma na in os uçao dldTi'rõkido, 'essa' decisão não é tomada pelos que de- utilizamos "tendemos a ima:'nar afma coisa desconhecida e misteriosa". Em
fendem os "sistemas filosóficos modernos" - ao contrário, eles impõem "suas con- outras palavras, o uso da fic ão do eu e o reconhecimento reflexivo de que se trata
jeturas e hipóteses ao mundo por meio dos sistemas mais exatos" Çf, xviii). A atitu- de uma ficção salva-nos da armadilha da metafisica, isto e,5 o entusiasmo se cri ,. r
de ideal diante de tais afirmações é a postura cética - mas esta deve ser guiada por uma estrutura sobre uma 5 ase a samen e enuncia sá corno ver. adeira.
uma compreensão de seu papel social. Em outras palavras, o ceticismo epistemo-
16. Aqui, Hume mostra-se bastante conservador ao entender a contínua jornada do indivíduo in-
cia estóicas com que Hume se recusava a transigir em sua posição diante da morte deixou Boswell em teligente como algo que defende as tradições correntes da época; da mesma forma, suas posições mo-
profundo desalento. Nem mesmo várias garrafas de vinho do Porto e a visita a uma prostituta conse- ralistas não céticas têm algo daquilo que Hume apresenta como a narrativa apropriada ao progresso
guiram melhorar o mau humor de Boswell! intelectual.
140 Filosofia do direito David Hume 141
uma dedução de outras que dela diferem por completo. Porém, como os autores ge- Em certo sentido, porém, trata-se de um falso "mistério", pois Hume cria uma
ralmente não tomam essa precaução, recomendo-a eu aos leitores, e estou convencido noção para preencher esse vazio: foi a própria "natureza" que escapou da armadilha
de que essa pequena atenção subverteria todos os sistemas comuns de moral, e certi- da reflexividade ao acercar-se do abismo da razão o que é, então, essa natureza, e
-
fiquemo-nos de que a distinção entre vício e virtude não tenha por base apenas a re- como é tão poderosa?
lação entre objetos, nem seja percebida pela razão (T, 469).
Portanto, Hume subverte a tese ontológica do direito natural tradicional. Sua A SUPOSIÇÃO DE UMA NATUREZA BENÉFICA QUE FUNCIONA
mensagem e simp es .uestões de fato e auestões • valor s' • esferas diã.t.as Não
-
POR MEIO DO ACÚMULO GRADUAL
se pode inferir um "deve" a partir de um "é". O conhecimento sobre o atual estado
de ajguma coisa não nos diz como ela deve ser. Contudo, argumenta Hume, essa dis- A idéia de "causas e mecanismos secretos" da vida social implica que temos o
tinção não costuma ser estabelecida. potencial de pôr a descoberto os modos de operação de um .eterminismo sue) u.jacen-
acen~
Hume afirmava ser possível substituir a base transcendent.-i sa da- obri- ts~~ e essa concepção evoca uma mudança de nossa atitude para com o mundo
rgação por uma "base natural", ou .or uma compreensão do funcionam - entq natural nossa anterior "admiração" supersticiosa pela ordem natural das coisas é substituí-
dos sentimentos". Com o tempo, o conhecimento científico dos sentimentos morais, isto da por uma relação mais mundana que vê todos os objetos simplesmente como itens
é, um conhecimento de psicologia e da composição natural do homem e seu meio regidos por relações de causa e efeito. O respeito ou o temor religioso é destituído;
ambiente, poderia racionalizar o poder da religião sobre a opinião pública e substi- somente a fragilidade de nossos instrumentos conceituais e investigativos nos im-
tuí-lo. O homem não deveria voltar-se para a razão abstrata, mas sim reconhecer a pedem de revelar os mecanismos operacionais da natureza'.
orientação inerente a suas paixões e seu desejo naturais. Afinal, são esses que estrü- então, o homem? Será ele uma entidade naturalmente determinada?
taram a sociedade civil, e precisamos compreendê-los bem 'ara usar esse enten- Que dizer d6livre-ar.itrio? A isersase e a neéessidade reconciliam-se como dife-
dimento como guia das institui6Eô as e civil e política`. rentes lados da mesma moeda: a determinação da vontade por motivos. Estes, por
Assim, a análise empírica deve estruturar a esfera da imaginação; além disso, as sua parte, são apresentados como entidades causais que operam dentro da realida-
indagações do homem não devem voltar-se para a formulação de concepções do de dos eventos. Os motivos são fatores dentro do padrão de causalidade empfrica;,
"todo"; deve, antes, concentrar-se em situações da vida comum e buscar o conheci- o homem é parte do fluxo do mundo, e o mundo deve ser naturalisticamente con-
cebido'. Simplesmente, não existe nada fora do mundo que possa ser mantido es~
mento que se pode extrair de tal orientação. A "verdadeira" filosofia não está inte-
ressada em o ere féi5rii df6tal abrangência; na verdade, pode apenas concen-
trar-se na aparência empírica, e não planeja contar a história toda; afirma deixar o 22."As ações da matéria devem ser vistas como exemplos de ações necessárias e, a esse respei-
mundo, em última análise, como um mistério. Como Hume afirma na conclusão da to, tudo que estiver nas mesmas condições da matéria deve ser reconhecido como necessário" ÇI', 410).
Natural History ofReligion [História natural da religião], Além disso, "na comunicação de seu movimento, em sua atração e coesão mútuas, não há os menores
indícios de indiferença ou liberdade. Todo objeto é delimitado, por um destino absoluto, a um certo
grau de direção de seu movimento, e não pode mais desviar-se dessa linha precisa na qual se move,
O todo é um enigma, uma charada, um mistério inexplicável. A dúvida, a incerteza tanto quanto não pode transformar-se em um anjo, um espírito ou uma substância superior" (T, 400).
e a suspensão do julgamento parecem ser o único resultado de nosso mais apurado exa- 23. Ao aplicar isso à personalidade humana, Hume parece confiante "em uma vitória total (...),
me desse assunto. tendo provado que todos os atos da vontade têm causas particulares" (t, 412). O entendimento do na-
tureza humana e visto como a aalicaçao das lições das ciências físicas sue ha sidoaas e Sa-
pO1 7Ltu to d '- con. princípio causal é portanto central, e se houver um erro em tal princípio não teremos cci toza
20. Hume deixa claro que sua iniciativa confraria implicitamente certas formas de poder, em par- do conhecimento; contudo, oprincípio causal for independente do deseo subetivo aolcpio; aspi
ticular o religioso Em seus Diálogos, sustenta que o verdadeiro uso da religião consistia em aproveitar- rar a uma expansão do conhecimento e a um s6Iido pro esso na ordenação dos assuntos 1111111a11osi
se da situação psicilogica nas quai4"1azoes de moral e lusti a [precisam de a.oio racional mas sue a Primeiro, Hume coloca o princípLo q5ais sfinalmente afirma coe esse rrn-
flzfQrça..o ornem a instituir a religião como um "principio independente'-'—D que inevitavel- cípiõ está a salvo do ceticismo, uma vez que não se funda na razão, mas na "natureza"; a i.strictiiiu 40
mente se torna "apenas um disfarce da ia ... se .. ambição" (D, 114-5L mundo não se er. e sobre as áidã1es da razão, mas é uma massa variável denjlades utivitite ra-
T[ "os ermos 'o amigo se Hume, Adam Smith, tanto nossa sobrevivência quanto nosso poten- cão, obe.ecendo em u rima an i . • luxo de causalidade
cial para a felicidade pão têm sido "confiados às lentas e incertas determinações de nossa razão (...), 24. Donald Livingston observa que o sistema • e 1mt ivo que ume adota oficialmen te é puro
mas sim aos] instintos originais e imediatos". A ciência dos sentimentos morais pode colocar a questão teísmo". Livingston assinala, contudo, que não se trata do teísmo religioso tiãclicionnl. (lhe Nu1111o171-
da obrigação em bases estritamente "empincas". Como Adam Smith especifica, a questão agora "não diz tory of Religion, H. E. Root (org), Adam and Charles Black, Londres, 1956— referido no texto comuNa-
respeito a uma questão de direito, se assim posso dizer, mas a uma questão de fato" (1976: 114-5). tural History, seguido pelo número da página havia dado uma explicação da crença religiosa doho
-
142 Filosofia do direito David Hume 143
tável e, desse modo, constituir a estrutura de referência fundamental para que pos- todo homem concebia o modelo de uma república; e, por mais novo ou fantástico que
samos entender e ordenar as instâncias particulares; ao contrário, os princípios da fosse, ficava ansioso por recomendá-lo a seus concidadãos, ou mesmo por impô-lo pela
ciência - o princípio causal, por exemplo - desempenham essa função, e confere-se força (lhe History of England, Oxford, 1826, vol. vii: 136)26
sentido ao mundo através da observação dos fenômenos aliada ao uso RçLmar
desse princípio. Essa conclusão do problema de fundamentação da modernidade - Por conseguinte, na Investigação Hume se refere aos levellers* como "um tipo
oiTiãllsïiiientífíco - deveria levar as pessoas à valorização da modéstia intelec- de fanáticos políticos provenientes de espécies religiosas". Precisamos de uma cons-
tual, estimulando-as a moderar seu entusiasmo e atenuar suas expectativas; expecta- ccipolítica baseada em um estudo apro • nado da história natural. Nem todos
tivas de outro modo indevidamente despertadas pelas ficções. podem, pessoalmente, particlear do processo político - em vez disso, os
Como resume Livingstone (1988), Hume apresenta um quadro em_que a auto- buscar a representação constitucionaí—, e precisamos de regras de justiça (de di-
ridade e, por sua vez, a ordem social, mantêm-se unidas pelas muitas e diferetus reito) abrangentes, que estabeleçam uma sólida autoridade. As paixões do ho-
manifestações da consciência social dos indivíduos e pela estrutura narrativa do todo mem são capazes de induzi-lo a muitos sentimentos conflitantes, sujeitos a uma
soci. . Assim, os padrõessiiolíficos existem como uma confluência temporal repetição ordenada (ao controle do direito). O direito, por sua vez, é mais justo
entre experiências e ambições futuras passadas. Idéias e motivos são posicionados quando reflete em seu desenvolvimento as estruturas do hábito e do costume -
pela evocação narrativa do passado. Corno 1qs contrários aos argumentos em seu papel básico na vida normal é a prote ão às re: as de propriedade e o fQrta-
-
favor das essências atemDorais do direito n. al e eas .osições do cont socia
entao vigentes, Hume vê os ia. roes narrativos .ue constituem a ordem política e so-
lecímento se seito e da reci.rocidade mútuos. Quando o homem se afasta da
coibição do costume e da tradição, o controle pelo direito é crucial. Como diz
cial corrente como uma mistura do tradicional e do contingente, não se trata dos ob-
Hume nas Investigações:
etos à a razao "autônoma".
ssã con ança na técnica narrativa significa que Hume freqüentemente mistu-
boas leis podem gerar ordem e moderação no governo em que a educação e os costumes
ra a prescrição descritiva com a confidencial'. O indivíduo só tem uma esfera limita- instituíram pouca humanidade ou justiça no temperamento dos homens.
da de interesse político; o modelo da antiga pólis não é algo a que possamos aspirar.
A crítica humiana dos argumentos em favor de uma pólis reconstituída é apresenta-
" A liberdade, o comércio e o progresso no "bem-estar" social das artes e da
da como fundamentalmente epistemológica: os que a recomendam produzem visões
ciência só podem existir no Estado ordenado que se pode criar por meio dê leis
ideais saídas do vôo abstrato da razão, no qual
justas que sustentam a autoridade do governo e incorporam a lealdade natural do
povo. Além disso, a felicidade privada, garantida pelo cultivo das virtudes priva-
mem, vendo-a como resultado de necessidade psicológica.) Com base na observação da complexidade das, só pode existir em decorrência dessas bases cívicas. Contudo, para Hume a
do mundo, somos levados a acreditar que existe algum propósito ou desígnio, e a partir daí somos le- estabilidade política estava em risco devido à exposição a correntes sociais meta-
vados a ideia de uma inteligência .ue e una e rndivi . anto Mesmo as adversidades da natu-
reza, ao se mostrarem por toda parte, tornam-se provas de algum plano coerente e estabelecem uma
físicas que estavam em desacordo com a manutenção da estabilidade política e
uni.a.e .e proàsitb ou ir(enção, por mais inexp cave e incompreensível que possa ser" Natural ' das regras de justiça`.
History 74, citado em Livingston (1988). Livingston afirma que "o conhecimento científico avançado po-
deria ruir sem essa crença", vendo nisso "um novo insight especificamente humiano". Enquanto
"Ne on Tio le e outros .iwiani argumentado que o raciocínio científico pode fornecer bases lãdii-
dpara a crença em um autor intei ente su .remo Hume argumenta em sentido contrário: para ele, 26. A essência desse argumento é reproduzida por Popper (1945) em The Open Society and its
a cren a eu ii autor inteli:ente supremo é .ue serve de base 'ara o .ensamento científico" (ibid: 179). Enemies.
25. O programa de moderação política, um programa para uma certa confiança no hábito, no cos- * Facção radical de partidários do igualitarismo que, liderados por John Lilburne, tiveram forte atuação
tume, na prudência e reserva diante do raciocínio, e numa postura crítica diante de toda afirmação não política na Inglaterra entre 1645 e 1649. (N. do T.)
evidente, equivale a um programa derivado da análise humiana da natureza do mundo. Ou é esse o 27.A liberdade individual pode ser mais bem assegurada ao se esclarecer a relação entre.os mun-
caso, ou a postura normativa de Hume não é mais que a origem de uma tradição de modernidade, o dos público e privado em que os indivíduos se encontram. Não devemos esperar demais das promes-
fundamento último daquilo que constitui um ato ponderado de opção filosófica. Veja-se que Hume não sas do público, pois, se fôssemos incorrer na falácia de depositar nossos me. . - peranças no domi
incorre nas premissas lógicas de sua armadilha do "é" - "deve ser". Ele não fundamenta sua postura ruo publico externo da política 'e Estado estaríamos corren.o o risco . e 'erder o controle moral • ue
normativa na posse de um certo número de verdades absolutas em sentido positivo. De fato, sua po- exercemos sobre nossas proprias vidas e nossa felicidade. Não era papel do governo instruir a propó-
sição deriva da crise cética que envolve a ausência de tais verdades, mas a partir daí ele oferece uma sito da formulação ética ideal da ordem social; ao contráiio, o verdadeiro papel do Estado deveria se#
solução que, em si mesma, deve equivaler a alguma forma de direito a uma "verdade da metanarrati- o de reagir às necessidades funcionais do corpo social natural e alu. ar a omenta-To .'- obedecer aos
va empirista de Hume". perativos da operação empírica e do desejo naturalista.
12
144 Filosofia do direito David Hume 145
NOSSA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DEVERIA ERIGIR-SE A PARTIR gressiva da modernidade, não é tanto uma questão de participação "ética" numa
DAS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA SE DESENVOLVERA SOCIEDADE estrutura comum e abrangente de identidade social, mas sim um .rocesso de i si-
lENDO EMVISTAA CONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM ferença intencional por parte dos indivíduos, processo sue evita grandes reivindi-
cações universais e esti os po iticos semelhantes. Movimentos sociais como o dos
Deve a humanidade sonhar com uma sociedade perfeita? De novo, Hume exor- leveliers - que propunham a intervenção do Estado nas questões de alocação da
ta à modéstia. O movimento e a reforma gradual são possíveis, mas o mesmo não propriedade e uma política moldada na participação em uma república reconstituí-
spode dizer da perfeição por meio da revo ução ou .e outros eventos, E assim que da, do gênero polís - ofereciam visões utópicas de uma democracia radical pela qual
"os homens d,yrn,.porta rito, tentar resolver com paliativos as uilo sue não s odem Hume sentia uma profunda aversão. Primeiro, pensava Hume, a epistemologia dos
cii".A estrutura da ordem social contemporânea (isto é, as regras bastante rígi- leveliers estava errada, e não apenas isso: era também desnecessária. Precisamos ex-
justiça) é necessária devido a certos traços empíricos da condição humana. cluir o motivo do racionalismo de quaisquer estratégias legítimas. Segundo, deve-
Em especial, a escassez de meios p turgis araa provisão do homem; o fato de que mos ser cautelosos diante da retórica do progresso e da utopia. Ainda que se pudes-
oFilimitadüéihsua generosidade; a dureza da.vida ocialm,..é ate- se compartilhar uma certa fé "progressista" no homem em momentos de otimis-
nuada por sentimentos ..e so .ariçdade: mo, a mu o ança implicava gran 5 es perigos; ecisamos da tradi ão e da au oridade
m vez se exor açoes otimistas e impetuosas à participação e à liberdade, a res-
Se todo homem tivesse mais afeição por seu semelhante, ou se a natureza satis- posta de Hume pode ser retrospectivamente sintetizada em uma palavra: institucio-
fizesse, em abundância, todos os nossos desejos e necessidades, [então] o ciúme por nalismo. O institucionalismo representava a vitória gradual da moderação política;
interesse, que a justiça pressupõe, deixaria de existir; [tampouco, diz Hume, haveria a a negação do fanatismo da política partidária e um processo que conservava alguns
necessidade de que as regras de propriedade per se] ( ...) nos levassem a aumentar a be- mecanismos de antigas estratégias de legitimização da autoridade, uma vez que co-
nevolência dos homens, ou a generosidade da natureza; tornaríamos a justiça inútil ao
ocupar seu lugar com virtudes mais nobres e benefícios mais valiosos (1, 494). locava o dever fundamental do cidadão exclusivamente em te mos da manutenção
das regras de justiça: êm particular, das regras dëf6priedade e dos direitos jurídicos
estabelecidos dos cidadãos.
Se pudésse os substituir a escassez material pela abundância
(....) ou se todos dedicassem aos outros a mesma atenção e afeição que dedicam a si pró- AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS DISCIPÚNAM A IDADE AO LHE A
prios, a justiça e a injustiça seriam igualmente desconhecidas entre os homens (T, 485). CONFERIR HÁBITOS ESTÁVEIS DE COMPORTAMENTO
A solução racionalista do sroblema da justiça consistia simplesmente em criar Os atos, as crenças e o poder político humanos precisam ser re: lados, posicio-
soluções a partir das "fantasias da imaginação", mas desse modo o homem não te- nadoTinseridos em estruturas e situas os e t u ii •s e expectativas
ri5 nem segurança nem realidade. Devemos nos distanciar das elaborações dos ra- pai ronizadas. Em sentido amplo, o comportamento ("moral") aceitável só é possí-
cionalistas, "olhar em todas as direções do mundo" e assentar nossa aspirações vel dentro de uma sociedade estruturada e, combinado com o que Hume chama de
políticas e sociais sobre as bases reais e empiricamente operacionais da autoridade. "princípio de parcimônia" (significando, aqui, que temos uma dis.osição natural a
autoridade não pode pretender justificar-se pela evocação de uma esênciaxacio- respei ar a autoridade estabelecida e a ser moderados em nosso entusiasmo • olíti-
nalistamente dfliIida, rfiàsárn, pelas ações observáveis no movimento natural da co / que cria estruturas sistei2laticas para _a visa social, irá Dermitirue haia estabi-
ociedade. Precisamos do conhecimento da inte: a ão • nal em que Tiiãle social.
Como vemos no Livro III do Tratado, Hume pensa que a história demonstra que
a felicidade e a prosperidade do homem [sejam como] um muro erguido por muitas a liberdade, o comércio, o refinamento e o progresso nas artes e nas ciências só avan-
mãos, que continue a erguer-se a cada pedra que lhe seja acrescentada ( ... ). [A socieda-
de deve ser um edifício de felicidade er ido iela virtude social da usti a ( ... ), a cons- çaram e 95 ^ s nos uuais vi_oravam soas eis e Constitui ões, eortanto, ha uma
trução de uma abóbada na qual cada pedra desmoronasse [sem] a ajuda e a combinação relação historicamente demonstrável entre essas duas variáveis. A sociedade livre
mútuas de suas partes correspondentes (L 304-5).
28. Duncan Forbes interpreta Hume como se esse autor propusesse a comparação entre "gover-
Esse edifício lentamente construído, a própria existência social do homem, é frá- no regular moderno e governo irregular medieval, onde a personalidade do rei era de importância fun-
gil e sua construção se dá ao longo do tempo. Dentro dele a vida, a vida social pro- damental e onde o respeito pelo princípio geral de direito, enquanto tal, era frágil ou inexistente. Nes-
146 Filosofia do direito David Hume 147
.nx
será a sociedade das boas leis e dos cidadãos disciplinados, que aprenderam a con- como um produto natural, sua estrutura é essencialmente superior às idéias de or-
frolar seus desejos e paixões. ganização social que qualquer abordagem racionalista poderia nos oferecer".
Uma tendência do século XVIII consistia em utilizar a história para introduzir O que, então, irá nos servir de guia? A coesão natural da sociedade nasce da in-
mudanças sociais e fomentar os tipos de convulsão social dos quais a Revolução teração da vida cotidiana e opera mais satis atoriámente quando a natura i.a. e 'o
Francesa continua sendo o exemplo supremo. Hume se referia a esse uso da histó- sentimento solidário não é dEfigurada pel . .ecula as . Lcio-o-,* t.. "A questão
ria como uma tendência polêmica a sancionar o conflito político, uma história fictícia ao governo- não é a arena da razão pura, "o senso comum e a experiência superficial
que tecia teias de sonhos e utopias. A história "deve" ser "científica", e a verda- sao su cientes À justiça socia não é algo que tenha por base um corpo de
deira análise histórica, concebida como um estudo do avanço e desenvolvimento, primeiros princípios, mas é basicamente a adesão às regras criadas com base no con-
poderia por sua vez tornar-se uma força contra-revolucionária; uma "história filo- vívio social, em particular o "abster-se da propriedade alheia" Çf, 489), e decidir ques-
sófica" a serviço de uma política de moderação. Neste ponto, como assinala Duncan tões de justiça significa preocupar-se com questões pragmáticas de comportamento
Forbes, Hume divergia dos outros grandes autores do Iluminismo escocês ao apa- social`. Embora o "remédio" para o problema da justiça "não provenha [diretamen-
rentar uma certa falta de "sofisticação sociológica". Hume atribuía ao acaso, à con- te] da natureza, mas do artifício, o fato é que
tingência e às intenções de atores-chave do processo político um papel mais im-
portante do que uma sociologia estruturalista, isto é, uma abordagem determinis- 30. Um exemplo básico é a idéia de distribuir a propriedade segundo o princípio do mérito, em
ta de absoluta profundidade, teria admitido". oposição à defesa humiana da posse vigente (isto é, da posse legítima). No Tratado, Hume havia suge-
As escolhas do homem são em .iricamente ex 'licáveis no contexto do .roduto rido que o sentimento de solidariedade levaria o homem a levar em conta considerações relativas à
'natura que e a socie.a.e - igualdade (sua própria versão era que um homem digno receberia mais bens do que um homem in-
digno; contudo, isso parece uma anomalia diante da rigidez das regras. Nas Investigações, Hume con-
tificiais", trata-se de uma artifici. i* ao e que surgiu "naturalmente", e deve sua neces- sidera que a imaginação racionalista dá origem a uma transformação social ao induzir o homem à bus-
sidacíe aos pro ..,-orais. Â necessi.a.e das regras de usti anão é um ar ca de um ideal abstrato - uma vez mais, a da distribuição por mérito. "Uma criatura de posse da razão,
mento racionalifienfe conseqüencial por meio do qual o homem escolhe, como num mas desconhecedora da natureza humana, delibera consigo mesma quais regras de justiça ou proprie-
c6ntrato, como um ato de vontade em grande escala, mas sim como um partícipe do dade serviriam melhor para promover o interesse público e estabelecer a paz e a segurança no seio da
mecanismo de transforma ão social. Contudo, esse entendimento da participação humanidade; seu pensamento mais óbvio consistiria em atribuir as maiores posses à maior virtude, e
dar a cada um o poder de praticar o bem proporcionalmente a sua inclinação. Numa teocracia perfeita,
em pro ne le a. e natural pode ser conservador em si mesmo. Se a constituição das onde um ser infinitamente inteligente governa por meio de vontades específicas, essa regra certamen-
regras dejisti
ejusti m processo de utilidade, então o homem poderia mudFlT te teria um lugar a ocupar e poderia servir aos mais sábios desígnios. Fosse, porém, a humanidade pôr
vremente as regras de justiça, conforme lhe ditassem seus argumentos abstratos dê em prática tal lei... É tão grande a incerteza do mérito, tanto por sua obscuridade natural quanto pela
utilidade, mas há uma imagem quase imutável na concepção humiana das regras presunção de cada indivíduo, que de tal lei nenhuma regra de conduta específica resultaria jamais, e a
justiça. Nega-se o niiçmas opreço é o recurso, a uma ideologia de fçp conseqüência imediata seria a total dissolução da sociedade" (1, 192-3). Assim, Hume concede um certo
reconhecimento ao argumento do mérito, mas contrapõe argumentos baseados em seu conhecimen-
presumida para as cuestões do mundq. Uma vez que a sociedade veio a existir to "empírico" da natureza humana e dos fatos históricos - sua reviravolta da posição adotada no Tra-
J) tado, onde, no conflito entre solidariedade e justiça, a justiça sai vencedora, pode refletir sua crescente
preocupação com a análise histórica. E também pode ser vista como um argumento que demonstra
sas circunstâncias, os homens que houvessem se tomado grandesreis em uma monarquia moderna que o uso da razão deve ocorrer necessariamente em um mundo imperfeito e combinar-se com a con-
seriam maus reis". Forbes (1979: 94-109) sugere que, em sentido geral, Hume é "um remoto ancestral firmação das investigações empíricas.
do Estado moderno essericia mente surocratico se ax V e .e 31. A "uma paz e ordem gerais" ou "uma abstinência geral das posses dos outros", refle-
29. Essa • iferença é ambígua porque, por um lado, Hume parece ter tido urna certa aversão à te o interesse pessoal de cada pessoa que deseja estar segura em termos pessoais e de propriedade.
idéia mesma de que se pudesse chegar a um conhecimento suficiente da "realidade" do determinismo Essa segurança e felicidade só podem ser alcançadas através da sociedade e de uma estruturação da
que permitisse uma análise estrutural da história, como Marx faria mais tarde; por outro lado, contu- justiça, e, até certo ponto, a justiça é um reflexo do interesse pessoal. A utilidade da justiça encontra-
do, ele sente a necessidade de afirmar que deve haver algum esquema de fluxo natural, ainda que nun- se no fato de satisfazer o interesse pessoal. Assim, afirma Hume, a utilidade pública é a origem única
ca venhamos a ser parte dele. A primeira afirmação pode nos dar uma noção da história como resul- a jus iça, e os re conseqüências
1 benéficas dessa virtude constituem o fundamento uni-
1
tado de decisões que os homens levaram a cabo, tanto como indivíduos quanto como agrupamentos co de seu mérito. ontu • o, din. a qué a u i' isa. e socia ou o interesse pessoal induzam o omem à so-
temporários, em vez de apresentar esses homens como se chegassem a decisões resultantes de esta- ciedade, ou a um sistema de justiça, trata-se de algo que extrapola o interesse pessoal que fornece a
dos intencionais implícitos e compreensíveis em sua natureza de objetos nos quais essas intenções de- base mojul da justiça. A qualidade moral da justiça não se funda no interesse pessoal, mas sim no sen-
correm de condições causais - que devem ser colocadas em prática e são inexoravelmente consuma- timento de solidariedade. Condenamos a injustiça não apenas quando nossos interesses pessoais es-
das pelo ser humano. O homem se toma, assim, um instrumento de outras forças. Hume não pode, tão em jogo, mas também sempre que ela gera, nos outros, um sofrimento ou desagrado que pode-
porém, ser visto como defensor de uma abertura radical nos assuntos humanos, como um proponen- mos compartilhar por meio da solidariedade. "Vemos, assim, que o interesse pessoal é a razão orl.nol
te precoce da contingência "pragmática" dos assuntos humanos - a exigência de dar a fundamentação do estabelecimento da justiça; mas a solidariedade com o interesse .úblico é a ori:em da a.rovç.o'
apropriada que é inerente ao empirismo torna-se demasiado forte. moral que esta a serviço sessa vir
148 Filosofia do direito David Hume 149
a natureza oferece um remédio, em termos de julgamento e compreensão, para o que é das quais se determinam a propriedade, o direito e a obriação não contêm sinais de
irregular e inconveniente a suas inclinações (f, 489). uma_qngem na , mas sim se a fl.cio e invenção" Aparentam ser "semasias o nu-
merosas para terem vind aariatureza'Te "são passíveis de modificação por parte das
Em o .osição ao sue afirmam os teóricos do contrato social a "convenção Ida leis humanas"; contudo, "todas elas têm uma tendência direta e evidente ao bem pú-
justiça] não tem a natureza de uma promessa", mas provem de "um sentido geral de blico e à defesa da sociedade". Hume afirma que "esta última circunstância é admirável
interesse comum" cuja verdadeira expressão mutua pos e gerar soluções danature- em dois aspectos", e é esclarecedor apresentar sua afirmação por completo. Nela se lê:
za de uma promessa, mas qua1 rconcepçãb de um "estado de natureza.""a o, rirdo
Primeiro porque, muito embora a causa da elaboração dessas leis esteja original-
qua o ornem ten a esta • elecido um contrato "deve ser vista como mera ficção",
mente na consideração para com o bem público, tanto quanto este é uma tendência na-
como algo semelhante à idéia de uma "idade de Ouro" à qual Hume se refere como tural de tais leis ainda assimêlas seriam artificiais, • osto que intencionalmente criadas
uma invenção põe ica ara ume, a con 'ança na noção de um estado original, ou e voltadas para determinados fins. Segundo porque, fossem os homens dotados de uma
estado de natureza é um recurso alternativo ao motivo da Idade de Ouro`. forte consideração para com o bem público, não precisariam nunca ter-se deixado coi-
Vimos que, para os autores liberais do século XVII que geralmente são conside- bir por essas regras; de tal modo que as leis da justiça decorrem de princípios naturais
rados predecessores de Hume, a "sociedade civil" - a apresentação, nos primórdios da de maneira ainda mais oblísua e artificial. Sua verdadeira ori:em é o amor- .róxjo, e,
modernidade, de um conceito de auto-entendimento - nasceu como um ato repentino como o amor-próprio de uma pessoa é naturalmente oposto ao de outra, todas essas p41-
de indivíduos que perseguiam fins individuais. Para Hume, porém, não há decisão sú- .xões egoístas são obrigadas a ajustar-se de modo que convenha em algum sistema de
coduta e comportamento. Portanto, esse sistema - que abarca o interesse de cada in-
bita - nenhuma ruptura com os lentos e graduais processos da natureza. Em vez disso,
divíduo - é sem dúvida vantajoso sara o público, ainda que não tenha sido esse o obje-
é muito mais acertada a concepção do desempenho da virtude da justiça, isto é da ob tivo .retendjdo sor seu 528-29
diência às re: as de ustiça, como al:o intrínseco ao fluxo: adual da naturez. •ue vem
operando através de uma vasta quantidade de ações humanas individuais. A natureza Assim, as iriteões dos "criadores" - juizes, legisladores, "interesses de classe"
tem desempenhado a tarefa com grande sutileza, uma vez que essas "regras por meio e assim por diante - não são suficientes, enquanto entidades causais, para explicar
verdadeiramente a evolução e operação do sistema de justiça. Mesmo quando po-
demos ter indícios de que os legisladores criam leis em interesse próprio, em nome
32. Hume nos leva a desconfiar das abordagens racionalistas da noção de justiça através do uso de suas "paixões egoístas", eles estão dentro do fluxo natural, com o resultado de que
retórico de um princípio social de parcimônia - ele afirma que se a "regra" de justiça "for muito confu-
sa e de difícil formulação", a sociedade deve então "ser apreciada de modo acidental, e o resultado de têm de "ajustar-se"gm sistema de conduta e comportamento" cujo todo traz um
muitas épocas". Para Hume, requer-se um grau não muito elevado de especulação racional para apreen- benefício social "Eão pretendido por seus criadores". Privadas das justffiaçoeaãTa-
der o conceito de justiça pois are a de usti a nada mais e aue are a sara a estabilidade da posse' zão abstrata, as regras de justiça ainda assim são vinculantes, e a base de sua auto-
uma posição tão simples e obvia sue todo sai ou mãe sara manter ajaz entre seus filhos, deve es- ridade pode ser demonstrada pela devida investigação da "história natural"".
tabelecê-la; e esses .rimeiros rudimentos de justiça devem ser a.erfeiçoados dia após dia, à medida que Esse conhecimento da história natural e do funcionamento das paixões pode ser
aocie. a. e vai se toman.o maior, , . con a içao natural do homem exige tais regras de justiça,
usado contra as idéias de mudança revolucionária radical, ou contra a arbitrarieda-
tendo em vista que "aquilo que deve ser visto como certo é que a justiça só extrai sua origem do egoís-
mo e da limitada generosidade dos homens, juntamente com a escassa provisão com que a natureza o de da simples "versão de comando" do positivismo jurídico. Em contraste temos,
atende em suas necessidades" (T, 495). Embora o funcionamento da justiça possa envolver a articulação evolutivamente, uma grande narrativa do "desenvolvimento empírico e natural do
daqueles princípios que assumem o caráter de universalidade e generalidade, estes, por mais importan- direito"; este protege a força da lei contra mudanças fáceis e defende-a das acusa-
tes que possam se tomar para a continuidade operacional do sistema de justiça, não podem ser conside- ções de arbitrariedade ou parcialidade. Não é necessário que algum conjunto fun-
rados essenciais a suas origens ou a sua força vinculadora real; uma vez que "é certo que a imaginação damental de idéias inatas ou um ponto de referência externo, como a existência de
deixa-se afetar mais pelo que é particular do que pelo que é geral, e que os sentimentos são estimula-
dos com dificuldade quando seus objetos são, em qualquer grau de intensidade, vagos e indeterminados" Deus, nos forneça a base do senso moral humano. Q avanço e o funcionamento da
ÇL 580). A defesa da instituição da justiça é essencial, e isso é superior à possível inexatidão do particular:
"Enquanto um único ato de justiça, considerado em si mesmo, pode ser freqüentemente contrário ao
bem público, ( ... ) o que é vantajoso é a concordância da humanidade com um esquema ou sistema ge- 33. Em The Wealth ofNations [A riqueza das nações), Smith apresenta argumentos favoráveis ao
ral de ação." Assim, "perante qualquer tribunal de justiça" pode ser "um exemplo de humanidade to- aumento do nível geral de prosperidade de todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, minimiza o papel
mar uma decisão contrária às leis da justiça ( ... ); contudo, todo o sistema de leis e justiça é vantajoso da política. O desenvolvimento e a expansão da classe média é crucial para a ordem social, uma vez
para a sociedade" (T, 589). Além do mais, uma vez que as regras de justiça tenham sido estabelecidas, que "nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz quando, em sua maior parte, seus membros forem
elas são "naturalmente consideradas com um forte sentimento moral que pode provir de nada além de pobres e miseráveis". Smith associava a condição dos indivíduos a sua experiência com a divisão do tra-
nossa solidariedade para com os interesses da sociedade" (T, 579-80, itálico no original). balho e ao meio em que viviam.
-- '-
justiça natural podem ser explicados pelos recursos da natureza humana (aiqpi a humanidade, e que são instintos empíricos "absolutamente universais em to-
prio e uma certa benevo encia)5êias aptidões da ação (comunicação das as épocas e nações". A maioria dos homens não se deixou seduzir pelo univer-
através ctãli ectl5Iço do impulso de apossar-se do que pertence aos ou- so da reflexividade. Eles deixaram-se influenciar por sentimentos inconsiderados que
tro e pela inte: idade da interação social (reconhecimento mútuo). muito devem às ideologias religiosas inconsideradas; os sentimentos morais são
A .usca de con ecimento é guiada por nossa crença em que o saber irá fomen- mais verdadeiros, pois são conseqüência de nosso ativo engajamento na realidade de
tar a transformação social e natural. Se, por um lado, a implicação de Hume é clara nosso mundo social e material. Um engajamento que nos permite "um certo la-
- precisamos analisar empiricamente nossas instituições jurídicas e adquirir um en- zer ou urna certa inclinação a refletir sobre regiões invisíveis e desconhecidas`.
tendimento real de seu funcionamento -, por outro ele parece confiante em que tal
análise irá ajudar as transformações culturais já em andamento. No sistema penal,
por exemplo, Hume observa um movimento que se distancia da "inaturalidade" A FILOSOFIA OU A lEORIA MORAL É REDUNDANTE? A FILOSOFIA
das concepções religiosas de equivalência e avança para um progressivo sistema de DO CERTO E DO ERRADO DEVE SER SUBSTITUÍDA PELA ANÁLISE
reações naturais possibilitadas pela condição senciente - as reações naturais aos in- EMPÍRICA DA UTILIDADE NATURAL?
fratores vêm se tornando "mais naturais" à medida que diminui o poder da religião.
(Q direito deve estruturar-se de modo que permita o devido funcionamento do cor- O edifício todo da "teoria moral" é questionado pela análise de Hume. Qual, en-
po social, e a criação moderna do "direito civil" é um produto avançado do fluxo tão, o papel da discussão filosófica sobre as distinções morais no empirismo huniiano?36
\ natural que une "a indústria, o conhecimento e a humanidade ( ... ) em uma cadeia A questão tem uma importância relevante: corno podemos construir um siste-
(indissolúvel" (1966: 278). O controle social é ligado às relações sociais e à intera- ma ético baseado na faculdade de sentimento ou solidariedade sem reduzir a ética
ção do indivíduo com seus semelhantes, e os riscos de transformação social pode- a uma questão de gosto em que os juízos morais são subjetivos e relativos? Hume
rão ser, e serão contidos através da expansão da classe média, aquela "classe in- argumenta que os sentimentos morais são encontrados em todos os homens, que
termediária ( ... ) que é a melhor e mais sólida base da liberdade pública" (1966: 284). estes louvam e censuram as mesmas ações, e que o louvor ou a censura não decor-
Através de sua participação na indústria e do prazer com o "luxo" que se segue, o rem de um estreito egoísmo. Ao contrário, temos um processo natural de solidarie-
homem se socializa para a convivência pacifica mesmo diante das maiores pressões dade. De novo, o alvo de Hume ao descrever a moralidade é um modelo de racio-
e oportunidades permitidas pela crescente divisão do trabalho. nalismo puro: um modelo em que a moralidade é o tema para que a razão, e só ela,
O poder de governo só pode oferecer um incipiente instrumento de controle so- nos revele sua natureza ao produzir um quadro de "diferenças abstratas e racionais
cai; a força pura, o instrumento de coerção visível à disposição dos governos, é de entre o bem e o mal morais" (T, 466). Em contraste, o argumento fundamental de
alcance limitado; ao contrário disso, o costume e o hábito são as verdadeiras forças Hume é o de que, como a moral tem a ver com a vida prática, o resultado é que a "fi-
inibidoras das tendências um tanto anti-sociais do ho -uLDiversas restrições à con- losofia moral" deve ser alguma coisa que irá
' duta do homem operam nas mimosituações - q- ele interage com seus seme-
lhantes; o indivíduo sente a necessidade-de-preservar sua reputação e conviver com influenciar nossas paixões e ações e extrapolar os serenos e indolentes juízos do enten-
as reaçõdlos outros diante de seus atos. O controle efetivo consiste na "o .inião" dimento, [e] como a moral exerce influência sobre as ações e afeições, segue-se que não
influenciadora. Adam Smith era ainda mais específico; o con ecimento do "senti- podem ter origem na razão; e isso porque a razão por si só, como já demonstramos,
/ 'mento natural de justiça" (isto é, um impulso psicológico) poderia, com o tempo, subs- não pode nunca exercer tal influência. A moral excita as paixões, produz ações e impe-
tituir tanto a coerção explícita quanto o poder da fé religiosa e o idealismo transcen- de que ocorram. Nesse particular, a razão por si só é de absoluta impotência. Portanto,
dental a ela associado. Para ambos os autores, a chave do pro esso social esta as regras de moral não são conclusões de nossa razão (T, 457).
em influenciar os "juízos coe ivos 'a sociew a. e. P e a o, tanto Hume quanto
Smith viam a dfência da religi5 moagocapaz de conferir uma tendência
35. Natural History, pp. 21 e 31.
mais "natural" à "opinião" social, ou, na expressão de Smith, aos "sentimentos mo- 36. Nas Investigações (1, 170), o problema é assim colocado: a moral "deriva da razão ou do senti-
rais" da sociedade`. Hume sustenta que os sentimentos morais são comuns a toda mento?; chegamos ao seu conhecimento por meio de uma cadeia de argumentos ou de inferências, ou
de um sentimento imediato e um senso interior mais sutil?; como todos os julgamentos bem funda-
dos de verdade e falsidade, devem ser os mesmos para todos os seres racionais inteligentes? ou, como
34. O projeto de filosofia do direito de Smith consistia em criar uma Theory of Moral Sentirnmts a percepção da beleza e da fealdade, devem fundar-se inteiramente no tecido e na constituição parti-
[Teoria dos sentimentos morais] (para usar o título de sua principal obra sobre filosofia do direito) sem culares da espécie humana?". O objetivo de Hume consiste em chegar a uma "modificação de todas as
referência de base aos modelos básicos da teologia. Os sentimentos morais diferem dos religiosos por investigações morais e rejeitar todos os sistemas éticos que, por mais sutis ou engenhosos, não tenham
serem paixões diretas, enquanto as concepções religiosas são efeitos secundários de tais paixões. por base o fato e a observação" (L 175).
152 Filosofia do direito David Hume 153
O papel da razão é secundário para o mecanismo de funcionalidade empírica do sos interesses particulares". A concepção humiana de sentimento e solidariedade
mundo - a razão só deve servir para trazer à luz o que foi decretado pela natureza`. moral se opõe à teoria ética tradicional, que sustenta que a moralidade consiste na
A seguir, Hume faz uma nova afirmação, pois não apenas a distinção entre o relação entre as ações e uma regra de direito e uma ação como boa ou má, depen-
bem e o mal não é algo que exista nas categorias da razão, como também não se tra- dendo de a ação estar em acordo ou desacordo com a regra. Hume rejeita a hipó-
ta de algo que dependa de "qualquer questão de fato" passível de ser descoberta tese de que existem regras morais, afirmando que tal tese é "confusa" e não poderá
por uma simples investigação positivista: nunca "tornar-se inteligível". Podemos enumerar as qualidades que dão ao especta-
dor a sensação prazerosa de aprovação: "discrição, cautela, iniciativa, trabalho, eco-
Tomemos qualquer ato que se considere iníquo: o homicídio doloso, por exemplo. nomia, bom senso, prudência e discernimento". Há também um consenso pratica-
Observemo-lo em todos os seus aspectos e vejamos se nele se encontra aquela exis- mente universal - mesmo entre os mais cínicos dos homens - a propósito do "mé-
tência objetiva ou real a que chamamos iniqüidade. Seja qual for nosso enfoque, só en- rito da temperança, sobriedade, paciência, constância, reflexão, presença de espírito,
contraremos um certo número de motivos, paixões, desejos e pensamentos. Não há, no rapidez de pensamento e propriedade de expressão". O que há, nessas qualidades,
caso, nenhuma realidade objetiva. A iniqüidade nos escapa por inteiro à medida que que provoca nosso louvor? O fato de que são, ao mesmo tempo, úteis e agradáveis.
procedemos ao exame do objeto. Só conseguiremos encontrá-la ao voltarmos nossa re- Em que consiste tal utilidade? Hume responde:
flexão para nosso íntimo e ali nos depararmos com um sentimento de desaprovação
que se manifesta em nós a propósito daquele ato. Temos aqui algo de concreto, mas tra- para o interesse de alguém, certamente. Interesse de quem, portanto? Não apenas o
ta-se de objeto do sentimento, não da razão. Está em nós mesmos, não no objeto. De nosso; pois nossa aprovação freqüentemente vai mais longe que isso. Assim, deve tra-
modo que, quando declaramos iníquo qualquer ato ou caráter, não há sentido algum tar-se do interesse dos que se vêem servidos pelo caráter ou ação que aprovam.
em nossas palavras; queremos apenas dizer que, a partir da constituição de nossa natu-
reza, somos tomados por um sentimento de censura diante da contemplação do ato ou A utilidade é "uma tendência a um fim natural". Portanto, a distinção moral es-
do caráter em questão (T, 468-9). sencial dá-se, de fato, entre o que é útil e o que é pernicioso:
A teoria moral é mera conversa; seus elementos "racionais" são uma superes- se a utilidade (..) for uma fonte de sentimento moral, e se essa utilidade não for sem-
trutura à verdadeira economia subjetivista de "um certo número de motivos, paixões, pre considerada em referência ao eu, segue-se que tudo quanto contribui para a felici-
desejos e pensamentos" que atravessam e estruturam as reações do eu. Na verdade, dade da sociedade recomenda-se diretamente a nossa aprovação e boa vontade. Temos
aqui um princípio que, em grande parte, explica a origem da moralidade. E por que de-
( ... ) avittude [é] qualquer ação ou qualidade mental que dá a um espectador o sentimen- vemos procurar sistemas obscuros e remotos quando já existe um tão óbvio e natural?
to agradável de aprovação; a iniqüidade é o contrário (ibid.).
Voltamos, assim, ao ponto inicial deste capítulo; às considerações sobre a fun-
O sentimento de solidariedade ou confraternidade é um "princípio da nature- damentação do eu moderno e às interações entre a teoria social, as concepções do
za humana para além do qual não podemos esperar encontrar qualquer princípio eu e a estruturação interdependente das relações sociais. Hume nos adverte de que,
mais geral". Assim, "louvamos as ações virtuosas que foram praticadas em épocas assim como a busca do eu nos leva a vivenciar o caos ao extrapolarmos as regras
remotas e países distantes nos quais a maior sutileza da imaginação não descobri- da vida cotidiana, também a justiça social precisa aderir às regras estabelecidas do so-
ria o mais leve indício de egoísmo, nem encontraria nenhuma relação entre nossa ciaL a fim de evitar o caos. As regras do eu e as regras do social refletem os preceitos
felicidade e segurança atuais e fatos tão apartados de nós". Da mesma maneira, "um dessa epistemologia. As bases da modernidade são tradições, mas a modernidade
ato generoso, intrépido e nobre praticado por um adversário se impõe à nossa apro- julgou que sua racionalidade se apoiava nelas. Se o direito deve ser o instrumento
vação, ainda que, em suas conseqüências, possamos reconhecer que prejudica nos- da vontade do soberano, ele deve se manter vigilante devido ao temor do que seu
instrumento possa desconstruir. Afinal, a menos que nos situemos dentro de uma
tradição, não existe presença ou ausência, particularidade ou diferença; justiça ou
37. Assim, por exemplo, Hume declara que a razão pela qual o incesto é permitido no reino ani- injustiça, nenhuma base para a expressão significativa.
mal e não na cultura humana parece estar no fato de que, através do uso de sua razão, o homem declarou
sua "torpeza", promulgando leis que o proíbem. Contudo, a explicação moral não está em nossa ra-
cionalidade, uma vez que isso implica uma argumentação circular: "Porque antes que a razão possa
se dar conta dessa torpeza, a torpeza já deve existir; e, por conseqüência, é independente das deci-
sões de nossa razão e é mais objeto que efeito de razão" (T, 467).
Capítulo 6
Immanuel Kant e a promoção de uma
modernidade racional crítica
Os direitos do homem devem ser tidos como sagrados, por maior o sacrifício que
o poder governante tenha de fazer. Não cabem, aqui, meias medidas; de nada vale pen-
sar em soluções híbridas, como um direito pragmaticamente condicionado, a meio ca-
minho entre o direito e a utilidade. Toda a política deve curvar-se diante do direito, ain-
da que a política, em retribuição, possa ter a esperança de chegar, mesmo que lentamente,
a um estágio de brilho duradouro (Kant, citado por Williams, 1983: 42).
1. Kant passou toda sua vida na pequen cidade de Kbnigsberg na Pníssia Oriental. A idéia de dever
pessoal dominou seu pensamento e sua vida pessoal. Sua educação iniciou-se no Coliegium Fredericianum de
sua própria cidade, cujo diréi tum1lnTpieiïsta, e em 1740 Kant entrou para a Universidade de Kdnigs-
berg. Sua formação universitária enfatizou grandemente o poder da razão humana de mover-se com convic-
ção no domínio da metafísica. Interessou-se pela física newtoniana, interesse queEE14ifíjiéifí6iIi importante
papel no desenvolvimento de sua filosofia original e crítica. Depois de concluir o curso universitário, Kant
passou cerca de oito anos trabalhando como preceptor de filhos de famílias ricas, e em 1755 tomou-se pro-
fessor da universidade. Tornou-se professor catedrático de filosofia em 1770.
Enquanto a vida pessoal de Kant é pobre em acontecimentos marcantes - nunca viajou, nem travou re-
lações políticas ou sociais importantes—, ele foi extremamente bem-sucedido como
do por sua conversa brilhante e sedutora. Kant costuma ser representado como um velho solteirão cujas ati-
vidades eram planejadas com tamanha precisão que os vizinhos podiam acertar seus relógios quando ele saía
de casa às quatro e meia para sua caminhada diária, indo e vindo oito vezes pela pequena rua em que mo-
rava. Sua disciplina estava à altura de um espírito que buscou auniversalidade da razão, e em sua maturida-
156 Filosofia do direito nnnanuel Kant 157
diferença entre as coiçepçes do certo (baseadas na idéia de que se pode afirmar halhar com as narrativas da vida comum, Kant primeiro analisou as ciênciaspqra-
que alguma coisaé. certa independentemente da consideração de seus propósitos menteformais da razão, depuradas de conteúdo empírico, em búa de um entendi~
sociais ou outros valores) e do bem (em que o valor é identificado em relação acon- mento a prjori,e depois direcionou a mesma metodologia ara nossos sentimentos
seqüências meritórias de outros prppósitos), e enfatiza o primado do certo sobre o morais cotidianos, em busca dos presipostos racionais que lhes davusfentião.
bem. O liberalismo deontológico de Kant nos pede para considerar que a humani- O objetivo era manter tanto a filosofia quanto a moralidadê como domínios nos quais
/1
, dade é formada
\- por indivíduos,
,-,- independentes
. .--- e morais,
- capazes de orientar-se ra-
/ a razão, e não o costume ou a análise empírica, fosse dominante. Contra Hume,
unete ao longo,ças expenencjas da vii. Kant argumentou que a razão pura podia transmitir conhecimento verdadeiro sobre
Nos Prolegômenos, Kant reconhece que as obras de David 1-lume "desperta- o mundo', e que nossas concepções morais corriqueiras pressupunham, racional-
ram-no de seu sono dogmático" e lançaram seu pensamento em uma nova direção. menfe, que algumas coisas eram puramente certas em e de si mesmas, enquanto
Na leitura de Hume, Kant encontrou a afirmação de que o único conhecimento pps- outras eram erradas'. E assim era a despeito de nossos desejos emocionais ou nos-
sível era ou o de relações de idéias, ou o de observações empíricas. A filosofia com- sas idéias sobre o que era socialmente útil.
punha-se das piimeiras, que, segundo Hume, equivaliam a diferentes discussões O projeto social de Kant operava por meio de sua epistemologia; especifica-
sob o risco de andarem em círculos tautológicos. Ao contrário, as florescentes ciên- mente, ele pede ao indivíduo moderno que: (i) adote aaciondadç crítica em vez
cias empíricas pareciam oferecer o verdadeiro conhecimento; contudo, elas pdprias do ceticismo; (ii) faça uma vigorosa separação dos tipos de conhecimento e (iii) se
assentavam-se sobre bases não-racionais. Ao longo de sua formação, Kant fora le- pergunte quais são os pièupofos fundamentais que tornam esses conhecimentos
) vado a acreditar na razão e a esperar que, mediante ouso da razão, os homens co- possíveis, e procure descobrir os princípios racionais inerentes a essas proposições;
nheceriam os deveres que deles se esperavam e saberiam o que era certo fazer na em seguida, que combine essas análises em (iv urna história filosóficaqu airnl5iia
vida. Hume parecia desvalorizar essas crenças; adicionalmente, colocava-se então uma finalidade as eTsforços humanos, iõlongo do quais seremos, por nossa vez,
um novo conjunto de questões. Qual era a relação do homem com a "natureza" e gi.iiadój ela racionalidade crítica.
a vida comum do mercado, e com suas necessidades sensíveis e seus desejos psi-
cológicos? O que aconteceria com nossas idéias sobre a moralidade e Deus s,pç-
nhecimento sobre omundo só nos chegasse atravésdas ciências empíric? Estaría- O PRINCÍPIO DE AUTONOMIA RACIONAL SERIA
mos condenados a relegar as idéias sobre Deus e a moralidade à esfera do não-ra- O GUIA DA MODERNIDADE
ci nal? A moralidade era realmente formada por sensações, emoções e sentimentoso
naturais? O homem preçisaya seguir anatureza ou poderia encarregar-se, racional- Kant talvez tenha sido o primeiro escritor a definir o homem moderno como au-
mente, da construção de uma nova ordem----------
social e mundial? Se assim fosse, com todefinidor, e não como um ser que interpreta conjuntos de significados a partir dos
quais princípios de razão poderia ele contar? quais as coisas se posicionam empiricamente na ordenação cósmica. O homem mo-
derno poderia livrar-se das amarras com o passado e descobrir sua verdadeira "1-tu-
npidade' ao snvofierTifis e atividades auto-impostos e naonaturaete
EM RESPOSTA A HUME condicionados. O homem moderno não deve s&
O questionamento cético de Hume podia ser respondido por meio da razão? guiado pelo instinto, nem alimentado e instruído por um conhecimento que já lhe
A resposta kantiana implicava tanto um projeto epistemológico (preocupado com / chega pronto; ao contrário, deve produzir seu saber a partir de seus próprios recursos.
as pretensões da verdade ao conhecimento) quanto um projeto social. O projeto e.-
4-0
epistemológico seguia a busca humiana das bases do conhecimn o mas, em vez de 2. Kant estabelece uma distinção entre a razão teórica - a razão daquilo que normalmente chamamos
desconstruir as idéias da razão pura ou doeu experiencial, para de ciência, razão prática - a razão da moralidade e o juízn cçtético - ou as questões relativas à beleza e à in-
terpretação artística. Para Kant,o princípio metodológico fundamental consiste em diferenciar o puram nte.
formal ou lógico do sensório; ele afirma qie o primeiro é uniwrsal e necesà io em ,eu, p1 ilicipi
le produziu uma obra que definiu boa parte dos contornos do desenvolvimento intelectual do liberalis-
de ele to i segundo é incidental e concreto, ou particular.
1i( moderno. Esse fluxo começou com a monumental Crítica da razão pura em 1781, e daí avançou para os 3. Kant chamava essas proposições de "sintéticas ci priori", ou de conhecimento que se aplicava ao
Prolegômenos a qualquer metafísica flitura em 1783, Fundamentos da metafísica dos costumes em 1785, Primeiros mundo mas não provinha da observação do mundo.
princípios metafísicos da ciência natural em 1786, a segunda edição da Crítica da razão pura em 1787, a Crítica 4. Por trás desta distinção, Kant estabelece uma distinção racionalista entre o que chama de "coisas-
da razão prática em 1788, a Crítica do juízo em 1790, A religião nos limites da simples razão em 1793, e uma pe- em-si-mesmas", ou o mundo como este é "em si", e as "aparências". Nossos conhecimentos empíricos per-
quena obra, o Projeto de paz perpétua, em 1795. tencem ao mundo das aparências, enquanto a razão pura busca o conhecimento das coisas "em si mesmas".
158 Filosofia do direito Immanuel Kant 159
Garantir abrigo, alimento e defesa ( ...), toda diversão capaz de tornar a vida agradável, a razão não funciona instintivamente, mas requer experiência e instrução para poder
discernimento e inteligência e, por último, inclusive a generosidade de coração - tudo avançar, gradualmente, de um tipo de discernimento a outro (1983: 13).
isso deve ser fruto exclusivo de seu próprio trabalho (1983: 14).
Enquanto Hume perdeu as esperanças no conhecimento seguro da interação
4gjçiadee singularidade do homem encontram-semãap.addade.de social e na tese das faculdades empíricas comuns à humanidade, Kant defende a
usar a razão'; esta é uma capacidade que todos os homens compartilham enquan- existência da"razão pura (...), uma esfera assim independente e au-sffiiente". A
to seres racionais, e que lhes permite extrapolar os limites de seus padrões locais ou razão não é passível de c6ntaiiiiiçãósübjétiVàu desejo arbitrário, mas nos
comunitários de crenças socializadas'. A razão deve ser, ela própria, objeto de análi- compreender sua nateza inter-relacional:
se racional'. Não havia sentido em confiar em nossas intuições morais como se um
apelo à intuição respondesse ao apelo de nossos adversários ao sentimento', a in ~ Nãonos tqçguma parte sem afetar todo o resto. 1rtanto, nao podemos fa-
tuição deve ser racionalmente analisada: zer nada primeiro determinar a posição de cada parte e sua relação com o todo, pois,
como nosso juízo não pode ser corrigido por nada de fora, a validade e aiitjjjdade de
cada parte depende da relação que mantém com todo o resto, dentro do domínio da
5. Podemos afirmar que em "use a razão" e "use-a para dirigir sua força de vontade" está contida a ríRão=Na--esfera dessa faculdade, podemos determinar tudo ou nada (1902: 10-1).
mensagem fundamental de Kant. Como uiobbes (ver caffi.i o 4 deste livro, Kant toma a história deJó
para intelpretar a verdade religiosa Depois de passar por grandes revezes Jo se volta pari seus amigos em A humanidade encontra-se em uma viagem de descobertas. As circunstâncias
busca de conselhos; oferecié-The uma interpretação doutrinal de seu sofrimento, afirmando que este deve
do indivíduo moderno se assemelham a estar embarcando em um navio para uma
representar o castigo divino pelos pecados passados de Jó, dos quais ele não tem consciência. Recomendam-
lhe peça perdão a Deus. Ele se recusa, indicando que tem a consciência limpa e não precisa arrepender-se. viagem através de mares desconhecidos. Hume, dizia Kant, foi obrigado a deixar seu
Por fim confronta-se com Deus, que lhe mostra seu supremo poder. Como vamos entender tal conseqüên- navio à deriva na corrente da natureza, mas a análise de Kant pode nos oferecer
cia? Kant argumenta qpeJó está certo ao ignorara interpretação doutrinal de seus amigos, uma vez que
Deus demonstrou uma ordenação do todo na qqgi e reblrui riádéFbiTdãijue Seus camrn es um piloto que, conhecedor de princípios astronômicos seguros, extraídos do conhe-
permaneçim inescrutaveis para nos Nau podemos saber tudo razão, pela qual asinterjretçoes doutrinais cimento do globo terrestre, e de posse de uma carta marítima e uma bússola, pode go-
serão inexatas Como podemos nos n oentsr7 Precisamos apenas da Integridade do coração e não do mento vernar sguramete o navio e 1evá-o para onde qi iiseri902: 9).
de nossos insight, da sincera ãiitconteste confissão de nossas dúvidas e do distanciamento das convicções
falsas que na verdade não temos" On thefailure of ali Attempted Philosophi cal Theodícies [Sobre o fracasso de 1 i •. ç./ o ..............a c.&ci ea-c
todas as teodicéias filosóficas intentadas], 1973: 292-3). Precisamos de uma compreensão geral do caráter ou chave estava no desenvolvimento Ue uma racionalidade crítica baseada nos
da forma da totalidade, mas não podemos conhecer a totalidade. Nossa relação moral com Deus depende não da tund'àffjent racionais que sustentam as circunstâncias da vida cotidiana tomo
i1idde fenomenal da experiência, mas da integridade de çpgçp.e da verdadeira moralidade. uena emDeuseomod como no,; tratamos mutuamente enquanto indr—
6.Tanto Hume como Kant desejavam furtar-se aos limites da localidade, às convenções da caverna pia- dtadõlhvre-arbitno O prefacio a primeira edição da Critique of Fure Reason
tônicã ou à segurança dos sistemas de moralidade de base comunitária. Humo conseguiu fazê-lo ao postu-
lar uma base ernpfrica universal da natureza humana. Sua interpretação histórica - concentrada nos gregos [CiErfica da razão piiiâfbéuí claro a esse respeito:
e romanos clájsicos —mostrou-lhe que havia unia uiiiEnte da natureza humana ao longo dos séculos. Em
oposição à tendência romântica das luzes, que encontrava na educação um grande potencial para transfor- Nossa época é, essencialmente, uma época de crítica à qual tudo deve submeter-
mar o comportamento humano (para John Locke, ao nascer os seres humanos eram como uma folha bran- e. A réligiã-poféõh -de sua santidade, e a legislaço, po[contaTiTiiajestade,
ca que seria mais tarde preenchida por suas experiências e sua educação). JJinne, achava que os gregos e ro- tentam mnterse.à.mgfl3çlo espírilarrítico. Ao assim procederem, contudo, desper-
manos clássicos eram levados pela busca de sexo poder e amor—próprio, diferennandséiTtõioas tam suspeitas contra si mesmas e não podem reivindicar aquele respeito sincero que a
Lessoas que via u: volta li papel das 'vtituiçoesanter esses desejos univ€: es sob controle e a refor razão confere a quem quer que consiga resistW aeu exame lavre e aberto.
ma social podia ser empri i ndida mediante o entendimento das caracteristicas universaã da condiçaohupiia
Knj,.jpiurounLentnu os pressupostos ra onais que transcendiam as convençue de nossas crenças em
tuiçoes cotidianas O entendimento crítico também abordava aqie QQqpê edo como o en-
7. Como Kant sugeriu em sua análise das práticas religiosas: "Ajoelhar-se ou lançar-se ao chão, ainda tendimento e a razão podem cbiihecer independentemente das exeriêradà?Des-
que para demonstrar reverência para com as:coisas divinas, é contrário à dignidade humana; o mesmo se pode
dizer da invocação de coisas divinas por meio de imagens concretas, pois desse modo as pessoas se humi-
lham não diante de um ideal que sua própria razão lhes apresenta, mas de um ídolo que é obra de suas pró- 9.A filoofia foi exortada a voltar sua atenção crítica para a constituição, o poder e a estrutura da razão
prias mãos" (The Metaphysicai Principies ofVirtue [Princípios metafísicos da virtude]), 1964: 99). humana em si - para fazer uma mudança de perspectiva "copernicana" (Crítica diz razão pura, 1949: segundo
8. Somente a intuição moral não é o bastante. Kant argumenta que a pura intuição moral equivale me- prefácio). A investigação básica da ciência era o objetivo da Crítica da Razão Pura; o da Crítica da Razão Prá-
ramente a "um sentimento interior" provocado pela situação ou pelo material que está sendo lido ou dis tica e dos Fundamentos da Metafísica dos Costumes eram o tratamento dispensado a esse conhecimento da
cutido. Como é o caso das Escrituras (discutidas em Religion within the Lirnits of Reason Alone [A religião nos natureza do mundo, as responsabilidades morais e as obrigações sociais do homem que configuravam sua
limites da simples razão], 1960: 100 ss.). "humanidade" específica.
Tmmanuel Kant . 161
160 Filosofia do direito
entendimento análise dos candidatos à inclusão em `um sistema de raciocínio
se modo, o entendimento crítico não destruía a metafísica, mas produzia uma "úni-
ca e súbita revolução" que preparava o terreno para o verdadeiro conhecimento me- "puro". O processo é repetido na Crftica da razão frátfcc, para aftalisar criticamente
lonalidade inerente a nossos sistemas de convicção moral. Partimos do fato da
tafísico (1965: 21-2).
nossa moral costumeira efetiva; não desejamos afirmar o conceito de "moralidade"
como nosso produto final, mas sua realidade é aceita ou "pressuposta" —prflr de
RECONHECER OS TIPOS DE CONHECIMENTO, CADA QUAL COM nosqo reconhecimento das exigênciase dos deveres morais. Em seguida assumimos
DIFERENTES PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS que devemos ser livres para satisfazê-las, para as condições de sua operação".
Nosso comportamento racional nao ocorre passivamente, mas é resultaTo da
O primeiro passo consistia em preservar, na filosofia, sua pretensão de nos di- participação ativa da mente atuando de acordo com o que Kant chama dejcjiase-
zer coisasde iuxportânciaxeaL sobre-o mupçjg. Seguindo a divisão humiana entre re- 'idadq. Nossas interações morais são regidas pela razão prática; na taz.ã9 pr4tiç.a,
lações de idéias e relações de fatos, Kant afirmava: a ligação entre"vptade..e "razão" é tal que a vontade é a faculdade de agir de
acordo com uma idéia reguladora chama a ireito". Isso regula e distingue a von-
(...) todo 1iecimnrQjçioé de dois tipos: ouínàterial e preocupado com algum
objp, ou orm e preocupãEIexcIusivamente como a forma do própr. - nte idimen- iãde humana da capacidade de agir segundo o desejo, que Kant vê como uma ati-
to eda própria razão — com as regras universais de pensamento enquanto tais (Ground- vidade essencialmente passiva e reativa. A operação da vontade em face do "direi-
work o]' the lvi taphysics of Morais, 1964: 53 [Fundamentos da metafísica dos costumes]). engajamento ativo todornínio da a ãopratica de nossa capacidade racional
com idéias regu]adoras.f Ll9fl&C..a. )( ÇV1.. ,9J
Jart distinção entre as rrnas a priori doentendiment e. q(ntéúdo seno
Kant fazia
Cada um se báséiaem déffs características que es-
truturam nossas capacida. es humanas de entendimento. Todo conhecimento é As categorias fundamentais da ciência e a divisão do mundo
conhecimento humano, uma função do que e do como podemos vir a conhecer. nos domínios do inteligível e do empírico
sujeito humano nunca poçgyer o mundo como este era em sua pureza, mas acres-
centa iieração de um mundg (essenciaimente misterioso) certos modos de per- Ao analisarmos como a ciência é possível, a justificação das idéias que vemos
ceber, certos pssu postos, e é sornente_através desses modos de perceber edo uso como provedoras das bases do conhecimento científico (os conceitos a priori)provém
desse&prssupostos que o conhecimento Q torna pQssí3zeL. O coi3hQç ejto é de nçtssreconhecimento cle].as..c.omo condições básicas do pensamento são elas -
A necessidade de desenvolver pressupostos e modos de perceber A função das categorias fundamentais ao mesmo tempo base e limi-
te. As ten ativas de obter um conhecimento não condicionado pelas categorias do
Admitimos que não podemos deixar de usar certas características fundamen- "e ntendimento como ocorre na metafísica tradicional devem ser rejeitadas como
- -
to. Pd kci, nosso questionamento se processa assim: Como a matemática pura é de um processo de eliminação no qpal se explicam todos aauelesapectos derivados da expe inria em ter-
mos daiênsaçao e o isiduo e eahcaveÍi termos da estrutura da mente ou daquilo qu e K ant chama de
possível? Como a ciênciapura.diiiEireza é posível?1° Em segui, a, ap icarifos esse
"categoria
~Ju dientendimento", Assim, o conteúdo ou a 'materia" da experiência, o conteúdo sensório a pos-
-1...............................
tenon, são produzidos pela sensação, e a fõrma" da experiencia, aquilo que nos permite compreaidêla, é pro-
- mente..
, ..fl_..
... , ,.es_. -.
'L
Êsta última característica e o componente formal que abrange as cond i c ões do conheci-
10. Ver Prolegômenos a toda metafísica futura capaz de se apresentar como ciência, trad. inglesa de Paul r eí membros são universais, cpceituaseapriorísticoSC, Críiica da lIlZãO :UY.
Carus, Open Court, La Salie (Illinois), cujos capítulos trazem esses títulos.
ê-mø' cv e17Le4Ld191' ' '& j (tf m..c LI
162 Filosofia do direito Immanuel Kant 163
dogmáticas e contraditórias em si mesmas. Não podemos alcançar o mundo "puro" dade" que era observável, e onde as coisas funcionavam em obediência ao princípio
e apreender as coisas como elas são em si mesmas independentemente das catego- de causalidade e, portanto, da necessidade. Regulados por estas idéias, podemos
rias da mente; contudo, podemos ter consciência da natureza limitativa dessas ca- discutir a natureza humana apenas na linguagem 7lãTêfência empfriafixhivia,
tegorias, e então podemos, significativamente, conceber os conceitos de realidade e para Kant esta era uma visa abstrata dpessoa humana.
conhecimento para além do entendimento humano. Aquilo que, de um lado, é tor-
nado compreensível através das categorias, Kat çh,pa de mun o "dos fenôqg- [Existem] dois pontos de vista a partir dos quais [a pessoa] pode ver a si mesma e
nos", ao que nuitra dqç1ado, chama de nôurnpps Desse modo, o resul- conhecer as leis que regem o emprego de suas capacidades e que, por esse motivo, re-
gem todas as suas ações. Er
tad&—empirista d-0410 por meio do qual os conceitos que fornecem base episte~ ce a
eiapodeconsiçierai-se—na medida em que perten-
nologica divam, em ultima instância, do costume da reiterada associação na ex- adasensíveUcomoalguérnque vivesoIiasJ da natureza (heteronomia);ëm
sêgundQlugar -na medd em que pertence ao inundo inteligivel - podeçnsiderarse
periênéetransforindo em u rna solida objetividade que provê ur13aseIifii como alguem que vive sob o domínio de leis que por não dependerem da natureza, não
Como consequência, porem, o mundo se divide naquilo a cujo conhecimentopode- são empiricas ruas tem sua base tão-somente na razão (citado emWilliams,1964 120)
nunca conhece
Quando as ações e escolhas do homem forem vistas corno eventos no mundo
espaço-temporal, deverão ser submetidas às leis dê necessidade empírica. Tome-se,
A RACIONALIDADE DA MORALIDADE E A DEFESA DA CONCEPÇÃO DO
por exemplo, a área do direito criminal. Quando começamos, como observadores in-
HOMEM COMO UM INDIVÍDUO LIVRE, COMO PRESSUPÕE O DIREITO
dependentes, a explicar as ações humanas, podemos remeter a perpetração de cri-
mes a fatores como a hereditariedade, a educação e o meio ambiente. Criamos um
. J3 Que vamos fazer com nossa linguagem da moralidade? Qual é a base de nossas
esquema explicativo e icaz. m esquema que, de tao encaz, começa a dar a impres-
idéias sobre moral e deveres jurídicos, ou sobre Deu? Devemos reduzi-Ias a meras
são de que era impossível, para a pessoa, não ter agido desse modo; impõe-se-nos
questões de sentimento? De necessidades emocionais? Kant pede que usemos a lin-
urna inevitabilidade de ação. O qie acontece com nossas idéias comuns sobre oh-
gugem de nossa vida social iaasornQppnto4,,. partíde que procuremos
vre-arbítrio? Parece que só usamos tais idéias devido à falta de informação sobre as
bases raçionais.dertQsp usodaJnguaggm condições, os fatores e os eïiifffincia que nosrmpedem de ter um conheci-
O que é um ser humano individual? Uma seção da realidade; mas sob que pers- mento total- do ato praticado por uma pessoa - e, portanto, de prever exatamente
pectiv L e quais são os limites, que se colocam para
o que ela faria nas circunstâncias. Por conseqüência, à medida que a ciência avança
qualquer conceito usado a respeito dela7 No discurso das cpçias rias em de-
qpjç
teremos menos confiança na realidade da moralidade. O direito criminal, por exem-
senvolvimento, pressupomos as noções de causa tu, a implicação e a de que plo, vai tornar-se redundante, substituído por medidas de proteção social (que pre-
todo ato humano é praticado por urna e.idnt rrniaada, no mundo espacial tendem impedir a conduta indesejada, de maneira determinista).
terppr,alContudo, não agimos como se assim fosse; na moralidade da vida cotidia-
na, tratamos os outros como indivíduos capazes de fazer promessas e escolhas, e os
consideramos responsáveis por suas ações. Muitos conceitos que usamos na vida O homem transcende sua natureza empírica e é capaz de um curso
prática implicam que um indivíduo deve ser tratado como um ser autônomo que se de ação regido pela razão prática
motiva ccihfiuiUiífitente.To nega- ligações desse indivíduo com a realidade físi-
ca, afírmándo, assim, como um a priori ao qual não temos direito? Ou estaremos Kant, porém, observa que mesmo à luz dessa potencialidade insistimos em con-
enfatizando "uma outra realidade"? siderar o homem responsável por suas ações, e aderimos à prática social geral de
atribuir-lhe a culpa ou a recompensa devida. Quando usamos a razão teórica, adota-
mos uma postura que se transformou nos diferentes papéis de criminologista, soció-
A parcialidade da ciência empírica logo, psicólogo etc., enquanto, em nosso papel cotidiano na sociedade civil, atribuí-
mos a alguém o louvor ou a culpa, consideramos a situação à luz da razão prática.
Kant via o empirismo de estilo humiano como um sistema correto sob muitos E à luz da razão prática que temos sentimentos morais e elaboramos leis que têr,
apçctos pensar em um ser humano como um como sQu-piessLiposto,o fato de que as pessoas não necessitam Iifringi -Ias. Na ver-
complexo men qçpjppjinito, contingente, de substância física real, e demarcado por dade, estamos dizendo que uma pessoa não deveria fazer certas coisas, e, se ela não
lados pelo mundo físico. O que poderíamos saber sobre a pessoa? Podería- devia ter praticado uma ação, mas na verdade a praticorj, estamos dizendo que para
mos observá-la interagindo com outras particularidades objetivas em uma "reali- ela,deveria ter sido p ssíl.não praticá-la. Contudo, enquanto psiclogos etc., te-
164 Filosofia do direito Immanuel Kant 165
mos o potencial de oferecer lima explicação completa que nos1 ~11eve à conclusão de Essas categorias da liberdade pois assim desejamos chamá-las, em contraposição
-
que não ha, simplesmgnte nada de vrsivel a nos que pudesse ter perm4qea aos conceitos teóricos que são categorias da natureza têm uma vantagem manifesta
-
essoãse a1fivesse da prática da ação. É nesse dilema que trOUZ um estra- sobre estas últimas, que são apenas formas dê pensamento que, através de conceitos
nhôfíeito pecu1i àião hiniaiíí'ao qual chama de aquela universais, designam, de maneira indefinida, objetos em geral para cada intuição que
nos seja possível. As cate orias da liberda s • o • o lado são conceitos • ráticos ele-
-
• iberda mentares que determinam a faculdade da livre escQlha. Embora não nos possa ser • ada
Esse é um exemplo do que Kant chamava de '(pbieofranscendentais")Trata- nenhuma intuição que corresponda exatamente a essa determinação, a faculdade da li-
se de jtQ&qiie..transcendem a experiência e os sistemas-descritivos baseados na vre escolha tem por base, a priori, uma lei prática pura, e o mesmo não se pode afirmar
O criminologista que baseia sua abordagem nos fundamentos do empiris- a propósito de qualquer dos conceitos do uso teórico de nossa faculdade cognitiva (Cri-
mo nunca será capaz de levar em consideração o funcionamento dessa "causalida- tique o! Practical Reason, citado em Beck, 1960: 139).
de". Contudo, mediante uo de objetos transcendentais po~ã considerar o de- &acLeL K cLiira-p do »n6 e,~v4 .
lito em questão (ele usa o exemplo da i j como algo totalmente indetermina- Contudo, esses conceitos, que para Kant constituem a base da vida prática, intr
do em relaç condição anterior d homep. "como seoiftatordef1agrasse uma duzem urna confusão terrível, pois estão "para além dos limites" da razão científica".
série de efeitos completamente por si próprio". Kant afirma que, quando nos vemos Podemos então nos dar conta de que as leis da moralidade são leis da, razão ra.
ante de uma situação em que nossa razão teórica nos diz que condiçempirtcas Ha um limite para além-36— .qü2 o conhecimento cie ti não pode
dèténaramaçsdeum pésoa, podéríios ter pjettsões, e ficamos livres para -argumentar quea&ieis da natureza oa
tal psso respsavel, e culpa-lã Etrnos, portanto, justificados ao considerar um úiika forma de causalidade; há uma outra abordagem da compreensão do gig-
homem responsavlórsuaães ainda que, como (futuros) criminologistas, tam- nffia ser humano que se baseia nessa "fé racional"TEi'Tréserva a moralid-
bém possamos dizer que "antes de terem acontecido, estão todas predeterminadas d6ira os ditames impostos peló& hé&nen científico. No podehaver ne-
no caráter empírico". Como estamos justificados nesse caso? Kant afirma: rihum conhecimento dessa outra causalidade, inda que como somos informados -
mentos de causalidade no tempo e sob as leisaa natureza; porem, se tudo deve ter uma causa, enlao deve
Assim como o conhecimento fechado e determinado que o observador empí- existir uma causa as leis da natureza. Mais ainda, essas duas conside-
rico espera identificar, existe sempre "uma outra causalidade" em operação, que pode rações são necessárias para conferir absoluta validade aos princípios de causalidade; contudo, parece que am-
assegurar um diferente curso de ação, e esse "outro" é, por sua própria natureza, bas não podem ser verdadeiras. A solução dessa antinomia encontra-se para usarmos o título do livro de
incapaz de localizar-se em qualquer série causal da cadeia espaço-tempo.gi Strawson sobre Kant em urna divisão dos lmutes— do sentido (1966 li) _Ã tese que amia realidade côu
sal não contida nos limites das leis naturais, e a antítese, que afirma que í&da causação fica na limites das
pçia tanto do domínio e p uantadxlnral. A capacidade de compartilhar leis natiiiais quer das ia conhecidas quer daquelas ainda por descobrir, podem_r ambas verdadeiras se suas
esse outro domínio de causalidade,ad eçtoohomem que faz di.o re,p&a área. orem discriminadas. As áias d iiiia restringem-se a seus domínios específicos e não
sujeito idealarã51ouvor e a condenação moral que acompa participaÇ9j. podem, legitimamente, extrapolar os limites ou confins de sua esfera. Portanto, a tese aplica-se à relação en-
disposiçõeffítiãráticas deinossoiïtundo. Além disso, é com base no pres- tys que representam a coisa-em-si, e que aqui contêm a idéia de uma causa suficie e-
ii conceitos a ela associados que a nos, enquanto a antítese se restringe às relações entreos fenômenos. Legitimam-se, assim, as aplicações se-
r dag e distintas doentendjhiiano que $o.copyajisieIs na existencia,.aegitiuiaçã. de
vida prática, livre e racional se toma possível. Essa vida racional e livre vem da inte- de coisas e ocasionadafa pistinça êi tre ohíundo da aparencia e cïïnundo dos numena Esse dualismo
ração da vontade com uma lei a priori que é fundamental para o funcionamento da restringe a ciência e restabelece o mistério; não se trata, contudo, de uma superstição ou de um mistério dog-
moralidade. Kant afirmava: miiojiias sim de um misteno de bases racionalmente demonstradas. _.. -
«
166 Filosofia do direito Imnianuel Kant 167
desse outro domínio para sua própria completude, mas não pode nunca estabele- sições morais, existe apenas um conjunto de tais princípios e condições que passa-
cer sua natureza13. Sem ele, porém, o próprio ser da razão teórica corre risco e, se rão no teste de aceitabilidade crítica racional. A tarefa da filosofia moral consiste em
tentarmos prescindir do domínio do "outro", iremos "lançá-la [a razão teórica] no empenhar-se em revelar esse conjunto de pnncipios.
abismos do cepticismo".
Reconhecemos implicitamente os fundamentos da razão prática e de nosso
O imperativo categórico livre-arbítrio em nossas atividades cotidianas de louvor e censura
De sua parte, o funcionamento da liberdade humana sujeita-se às regras Quando uma infração é cometida nesse mundo kantianamente reconciliado, o
que na verdade traz consigo a enunciação lingüística da condenação não é o cará-
inteligiveis14 Podemos criar regras sobre o certo, pododétefiiTiïar o que a na-
ter da atividade, imanente e ligado ao fenomenal, mas o caráter inteligível. Quais-
tureza exige de nós. As exigências fundamentais da moralidade são concebidas de
quer que sejam os padrões das formas de vida do mundo dos fenõmenos que confi-
modo quefaçgíprt próriiístrutufa daraciona]idade; segue-se, então, que as
guram a posição sociológica ou psicológica (em sentido behaviorista, por oposição ao
exigênciastmorais4evem,prqr, çseressacionaipo sentido kantiano, mais vago) de uma pessoa, não afetam a iniqüidade de seu ato, um
obrigatórias. Qpapel do filósofo moral consiste em buscar os axiomas do certo e os mal que é dela e foi por ela introduzido no mundo no exercício de sua liberdade".
pJincipios de aço..çjucorrespondem aos phricipio de moralidade A mais famo- Para Kant, as categorias da razão prática - o funcionamento da lei moral —for-
sa regra de Kant é o Categori cal Imperative [Imperativo, categórico
, ]: necem um mecanismo que abiizàosdesejos_conflitantes s irnpu]so emp-
cõ do mundo espaço-temporal,ealei moral e a condição de funcionamento do
Age somente segundo uma máxima tal que possas, ao mesmo tempo, querer que 'eu cjui e'7êiiTãdit vifiFifi "eu mesmo" Esta e, porem, uma tarefa difícil, eKan
ela se torne lei universal. coloca a natureza da "vontade" na posição central de sua solução. Ali, faz distinção
Age como se a máxima de tua ação pudesse ser erigida, por tua vontade, em lei
entre desejo no animal, f6rma humiana que sujeita a razão as paixões` e a forma
iversal da natureza (Groundwork of the Metaphysics of Morais, 1981: 421; 30).
superior ddeêj3que não ifpenas sujeita as paixões a razão, mas que se submete,
ela propria, ao podiazáo. M _iridivfduJs1acionais são parte de fim universal
Kant argumenta que as únicas regras morais aceitáveis são aquelas que todos
racional. Aqui, porém, temos um problema fundamental - o da relação da vontade
poderiam adotar. Amoraliade nos —impõe princípios e condi ç-és para a ação que
com o mundo das aparências. De que modo a decisão moral, a atividade da vonta-
—uma vez compreendidos - estáo racionalmente qualificados ao consentimento de de, o pensamento moral, interagem com o mundo fenomenal? Na verdade, como
qualquer comuiiidade possivel, alem disso, Kant insinua que, na base de nossas po- vai exercer controle, ou mesmo ser relevante? Kant argumenta:
É dever do homem lutar por essa perfeição, mas sem alcançá-la (em sua vida), e sua
13. "Portanto, a questão de saber como um imperativo categórico é possível pode ser respondia na me-
obediência a esse dever pode, nesta perspectiva, consistir apenas em progresso contí-
dida em que se possa fornecer o único pressuposto sob oqual esse imperativo se torna possível por si só -
em outras palavras, a idéia de li'fi3e. A neceflidâde desse pressuposto é discerníveL e em grande parte
nuo (ibid.,VI: 446; 241).
isso é suficiente para o uso pratico da razao, isto é, para deixar-se convencer da validade desse imperativo e,
portanto, da lei moral; mas o modo como esse pressuposto se toma possível em si mesmo não poderá nun- .A lei moral só pode existir ngsfera fenomenal como um ato de vontade, de em-
ca ser discernido pela razão humana" (Kant, Grounding for the Meta physics of Morais [Fundamentos da meta- penho consciente.pQjíparte de pessoas reais. Refleidmente, podemos avaliar ações
física dos costumes], 1981: 461; 60). possíveis. A dupla categorização kantiana do '(desejpY, tão diferente da leitura em-
14. Lembrando que, para Kant, "fundamentalmente, o verdadeiro método da metafísica é o mesmo
que, introduzido por Newton nas ciências naturais, tem produzido resultados tão frutíferos", uma afirmação
pirista de Hume, envolve nossa capacidade de avaliar nossos desejos, ver alguns e-
como 'a causalidade psicológica subrnete.Qhomem auma necessidade natural tanto quanto o faz a'causa-
hdadenácaiiida rfle1êi3 desejo kantiano de afirmar Ídhciodãrnento cumpridor das eis que caracteriz ,
in teligíveis. De modo interessante, na cronologia da produção de Kant urna obra anterior, a Críti- 15. Kant afirma que demonstramosnosso reconhecimento desse fato em nossa experiência do remorso.
ca da razão teórica, é comumente interpretada como se concedesse uma liberdade irrestrita e essa outra esfe- O remorso, diz ele, mesmo quando assume a forma de rotular um acontecimento de acidente ou engano, só
ra, ao passo que na Crítica da razão prática o filósofo a vê como uma esfera sujeita a seu próprio gênero de pode, por sua própria natureza, ter uma causa verdadeira. Ao contrário do arrependimento (que é a simples
causalidade. A operação dessa esfera é desprovida de matrizes espaço-temporais, estando assim fora do tem- reflexão que se segue a um evento), o remorso é reflexão sobre um mal introduzido iiojxarndc O remorso não
po; isto significa que, em sentido crucial, a moralidade é também atemporal.Vemos, portanto, que a contin- éaçã.onãope.desfazex,o.quqjoi feito; trata-se smtplesmente do doloroso reconhecimento
gência e a eternidade coexistem na totalidade da reconciliação kantiana. em nossa liberdade, cometemos um erro.
168 Filosofia do direito Immanuel Kant 169
les ç..omP qualitativamente "desejáveis" e outros como qualitativamente "indese- o.ediência àsuilo que é parte da .essoa mesma—e nãõ a uma força externa'. Como
jáveis'; a ação a partir de alguns como "aceitável", e de outros não; e isso para re- sujeito, o omem extrai os preceitos da ação de sua própria vontade, e não de al-
conhecer que a diferença crucial entre o homern ..oaninat sen guma fonte empírica externa: o homem em circunstâncias empíricas pode sentir
o primeiro. paixões desejos sue o levam aa rçdeterminada maneira - nas I..dipõeja
TA a'ãô sob a lei moral ligjips ca.acidadedeup-avaliaç L traço aptidão da vontade para substituir esses desejos _pela vontade de realizar outraati-
distintivo entre a instância kantiana e a,,humiana encontra-se nãnuo,jaLqçjsermos vidade além daquela que é objeto clf seu desejo. Depois de refletir,
conscientes de nossa capacidade de tomar decisões a propósito de ações dese'as,
is em dois tipos diferentge nvTffí56 dessa copsçinc A humiana é subme- Ele deve admitir, sem hesitar, que para ele é possível. Ele julga, portanto, que pode
tIdiu'iha esfera em que a av é,appode deixar de ser, um modo à- fazer uma coisa porque é consciente de que deve fazê-la, e reconhece em si mesmo a
liqfltitativa. O ffidivíduo e ligado aos sentimentoshtaL desejáv eis em um pia- liberdade que, não fosse a lei moral, ter-lhe-ia permanecido desconhecida (1949: 30).
no de seTffidade e satisfação eventual. No ato de decidir entre dois cursos de
ação possíveis, a instancia de Humes tenta tornaresej dos diferentes comensu raveis Como sintetiza Acton: VÁ
,,de acordo com os requisitos da instrumenllidade, funcionalidade sistematização
5fViitãi u 1idor sua vez,a instância kantiarta pretende transcenctera'ava- Um homem que, para tentar reme
li ïntitaiiva mediante a imposiãivaI iações qualitativas A1nrorã'í hereditariedade e situação financeira, está por assim d(zer abandonãionajm-
co a a cidadidc ordenar classifie 11 e eitc°orizar o valor qualitativo de te sua racionalidade que não foi possível evitar equivale a colocar- se corno
desejos diferentes quando sao julgados Ti ora sujeito passivo de estímulos externos ao mesmo tempo que se demonstra que nia,e
A ambição ia construç rnpii'ista do conhecimento consistia em transformar coisa (Se reconhe emos as obrigações que a moralidade nos irnpoo, ernp-
€a.j
a razão, tanto quanto possível, em instrumento de cálculo egoísta, uma ambição nos ipsofacto cotnoresoo livios, pois aceitamos alei moral como algo cio onson.n-
cuja expressão máxima deu-se na s .utrina do utilitarismo ant,não a aceita e de- cia com noqsa razão.prjica, e .ressupomos nossa capacidade de ajustamento a ela
clara ç4at,-se na tiva de nossos—desejos—significa engajar-se (1970: 51-2).
em um modo de vida,qpalitativamente divdrso - que chama de verdadeiramenté
que exprime a qualidade distintiva do seri-tumano. A esfera desse juízo, a es-
DEFININDO A ONTOLOGIA DO AGENTE RACIONAL
fera do "deve", não pode existir na natureza puramente material; a epende dos se-
res que vivem apartados ia natureza matePi
A transcendência k'antiàfiTãiTia caverna d Tvisiia1ização do verdadeiro nexo da O homem se constitui tanto no domínio fenomenológico quanto na transcen-
dência deste, o dos nôumenos; portanto, a verdade absoluta do homem - sua "es-
humanidade provêm de recursos inerentes ao próprio homem - a sua razão, que
confere o ideal de humanidade. A lei moral que corresponde '- não a nenhum re sência" - está além da armadilha da contingência empírica, além do tempo, além
me particular de moralidade (que, apesar de costumeiro, pode ser visto-como da expressão temporal. O homem vacila entre dois modos de ação e encontra-se
\-- -
injus-
mas a coerçao da moralidade em si, e entranhada na pessoa realmente separado do mundo empírico natural das aparências, ou do mundo po-
no é m merocelculõ do intcreu-e pessoal, mas encontra-se na lítico que lida com os desejos materiais da humanidade. Ele pertence a dois domí-
nios - o empírico e o ético/moral`.
Jflj/ '?C orl,&
16. A tendência do utilitarismo tem consistido em abolir as distinções qualitativas de valor com base no
fato de que representam percepções confusas das verdadeiras bases de nossas preferências, que são sensórias 17. Kant afirma: "O h?mem é um ser que tem o poder da razão prática e é consciente de que sua esco
e quantitativas; está aí implícita a esperança de que, uma vez que nos desvencilhemos de urna forte avaliação, lha.é livre (uma pessoa); e, m sua consciência da liberdade e em seu sentimento (que é chamado de sentimen-
seremos capazes de calcular friamente - mas a base de cálculo benthamista foi precedida pela comensurabili- to moral) de que justiça e,ihjustiça são cometidas contra ele, ou por ele contra outros, ele vê a si mesmo como
dade das unidades que totalizam as unidades significativas de prazer e dor. Os utilitaristas estão certos ao ve- alguém sujeito à lei do 4ver, não importa quão obscuras possam ser suas idéias" (Anthropology, 1974:185).
rem seu inimigo como o mecanismo de forte avaliação qualitativa, pois o mecanismo da Razão prática kantia- is. Ë muito conhecida a objeção de que Kant nos apresenta uma situação teórica habitada por "pes-
na não pode ser simplesmente reduzido a mero cálculo. Além disso, é mais do que a diferença entre avaliação soas" muito bstratas ou empiricamente "irrelevantes", que conservam urna autonomia ou independência
quantitativa e qualitativa, ou a presença, per se, de um desejo mais alto, mas é a capacidade que têm os dese- majestosas à custa da negação de sua própria realidade enquanto indivíduos reais e empíricos (isto é, de, sua
jos de se distinguirem relativamente ao valor e, desse modo, à idéia de uma tabela de valores. O indivíduo "real" individualidade). Isso já foi percebido de início: Hegel encontrava em Kant o erro do idealismo ao apar-
kantiano se abstém de mentir não porque isso irá trazer tal ou tal conseqüência, mas porque tal prática é sim- tar-se do mundo, e via a filosofia kantiana como criadora de um dilema quando procura estabelecer a exis-
tência de Deus (o fundamento absoluto do bem no mundo) através da ciência da razão, nas passando essa
_
170 Filosofia do direito Immanuel Kant 171
A reflexão do homem sobre as forças das quais é intermediário leva-o tanto ao terística central do homemç,o homem sgçL está no fato de ele envolver-se com
"firmamento estrelado acima [quanto] à lei moral que lhe é inerente". Na ação prá- uma "esfera dos fins" na qual "tud,otenipi,ipreço ou dignidadg. Tudo que tem preço
tica, o homem combina continuamente os conceitos apriorísticos e universalistas da õrle ser sul5áfiEiíd po outra coisa cpmo seu equivaiénte; por outro ladõ, tudo que
lei moral com sua ativa interpretação da existência social. A aplicação dos princípios efáãTéii çqualquer preço, e portanto não admite equivalente, tem dignidade".
transcendentais é a tarefa ativa da vida moral". Aquilo que está ligado às inclinações e necessidades humanas gerais - algo a
que podemos chamar de bem - tem um preço de mercado. áquilo que, sem pres-
sppenhuma necessidade, corresponde a um serto gosto, isto é, com o prazer no
CONTRASTANDO O CERTO E O BEM mero jogo sem objetivo de nossos meios e recursos, tem um preço efetivo. Mas aqui-
lo que constitui a condição sob aál somente alguma coisa pode ser um fim em si
As doutrinas centrais da obra posterior de Kant sobre o direito, The Metaphysics resiào tem um mero valor relativo isto e, um preço, mas sim um valor intnnse-
of Morais (que contém The Metaphysicczi Elements ofjustice [Elementos metafísicos da qq, isto é, diggidade A isso podemos dar o nome
justiça]) parecem universalizar as afirmações morais, afastando-as de sua localiza-
ção em qualquer comunidade particular, e apresentam o LaciQcínio moral como uni- A moralidade é a única condição sob a qual um ser racional pode constituir um fim
versal a todos os homens (seres racionais). A Metafísica é precedida por um livro in- em si mesmo, pois somente através dela é possível ser membro legislativo da esfera dos
titulado Grounding of the Metaphysics of Morais (diferentes traduções aqui utilizadas fins. Assim, a moralidade e a humanidade, na medida em aue esta é capaz de morali-
remetem a 1959, 1964 e 1981), obra que Kant direciona ao leitor comum, que tem dade, detêm o privilégio exclusivo da dignidade. A habilidade.e a diligência no trabalho
um "conhecimento racional comum da moralidade". O texto deve atuar "dentro do ti um vafo dá mercado ...i, ii'ias a fidelidade às promessas e'a benevolência para com
conhecimento moral da razão humana comum" e revelar as condições essenciais o cípio (não baseado no instinto,) têm valor intrínseco.
das idéias comumente defendidas na época, a constituição racional do sensus com- As ações [morais] não precisam da recomendação de nenhuma disposição ou gos-
munis. A precondição essencial é que existem as situações em que as pessoas sabem to subjetivo para que as possamos ver com apreço e satisfação imediatos, e tampouco
Muito &iii disáernir ii pt1ca, o certo e o errado, o bem e o ma, á obrigação e a precisam ser alvo de alguma inclinação ou sentimento imediatos. Elas exibem a vonta-
de que as torna objeto de um respeito imediato, uma vez que, para impô-las à vontade,
resposta, e nossa tarefa consiste em descobrir a base racional dessa confi ra ao.
não se precisa de nada além da razão (1959: 53).
Tde Kant procura fundar a modernidade na universalidade, no sentido de
que se preocupa em destruir as limitadas concepções substantivas das respostas mo-
A sociedade não deve nunca incorrer na mentalidade de "mercado" em ques-
rais condicionadas que provêm da socialização, em sensus communis, por parte da for-
tões de punição - a dignidade não admite os cálculos e o etos administrativo dos
ça retórica da racionalidade universal do homem. Kant não et&preocupado em pôr
"preços", mas tão-somente os laços absolutos do raciocínio deontológico`.
a descoberto as crenças de nenhuma área específica, de nenhuma comunidade, mas
sim em formular pafa Lodo e qualquer "homem": a metafísicaé"a
tr,em con'o sisíematica, Lodo o COIO (ão tempo verdadeiro e ilusório) Contraste entre o certo e o bem{acrítjç.j tiHllrism
do conhecimento filosófico que provém da razão pura" (Critique of Pure Reason [Crí
tica da razão pura] K84 1 -B 8o9, citado em Acton, 1970). Os homens compartilham O legado deontq_jgjço 1eJÇnt contém um ataque central ao utilitarismo.
uma natureza racional e são capazes de autodireção: "a natureza racional se distin- Bentham (ver discussão no capítulo 8 deste livro) apresentou a utilidade como prin-
gue das outras no sentido de que propõe um fim em si mesma" (1959: 56).çrac cípio-chave para se superar, em parte, as narrativas subjetivistas dos intuicionistas
morais relativamente ao que constituía, na moralidade, o certo e o bem. Os intuicio-
nistas morais poderiam responder a Bentham com o argumento de que princfpLo
busca para o domínio da fé na Crítica da razão prática quando a razão não apresenta resultados satisfatório
de utilidade é atraente porque, aparentemente, é isso que é inerente a sdesejos d9
Fra Hegel, Kant é.fõrçado a sedar conta das falhas da filosofia crítica; uma falha centrada na impossibilidad
,de conhecer a "coisa-em-si" (Hegel, History ofPhulosophy [História da filosofia], Vol. 3, 428-30).
homem— felicidade, não sofrimerúQe que além dissd temos a crença intuitiva de
19. O agente kantiano não está preso a um cosmo de significado fixo, razão pela qual enfrenta o mun
do em seus próprios termos - uma liberdade moral de agir que é transcendentalmente regida. Ao deparar-s,
com o mundo natural desurnanizado, o agente atua em um mundo sociomoral desnaturalizado, regido po 20. Com efeito, Kant reconhece ameritalidade de mercado"jcomo uma espécie totalmente diversa de
princípios do "outro" transcendental. As operações do homem na sociedade são ditadas pelo primado da ra )rdenamento social - é determinada por gratificaçã6nsória e recompensa pela submissão (fetichismo de
zão prática sobre a razão teórica.—, a razão prática tem existência dupla: tanto no contexto da criação públic produtos). Sua estrutura é oposta àquela de um sensus comrnuois verdadeiramente racional e universal, e por-
e na posição sociopolítica aberta quanto em circunstâncias privadas, ainda que de fundamentos universais. tanto carece dos recursos que permitam que a razão se instaure.
172 Filosofia do direito Imrnanuel Kant 173
que deveríamos sentir mais prazer e menos infelicidade e sofrimento neste mundo. 1 O segundo dilema também diz respeito a um dilema médico: vamos chamá-lo
Segundo esta leitura, enppiesmenteapoderadessa intui ão e a trans- de o paciente do quarto 306. Nosso médico está num hospital em que seis pacientes
fqma erpuma teoria gqqj. O utilitarismo su:ere que deveríamos nos concentrar na aguardam por um transplante de órgãos; um deles precisa de um fígado, outro de
conseqüência de gualquera-ç há nada de intrinsecamente.bucertaem um coração, um terceiié5dêumEm, e assim por diante. Sem otianaplaiit.es, oseis
um ato; obom ato é aquele que produz maiores conseqüências para.a.eiiciIade e.o morrerão. Não há ór:ãos dis.oníveis. Um paciente do quarto 306 está ali para sub-
prazer, ou qpe tem a conseqüência de satisfazer as preferências das pe.ssQas. meter-se a urna operação de rotina. Seus órgãos são saudáveis. E se o médico usar
Contudo, o utilitarismo freqüentemente se depara com um conjunto de objeçõe o paciente do quarto 306 como fornecedor de órgãos? Esse paciente morrerá, mas
que podemos chamar de monstruosidade moral, em que o resultado que parece me- sefãi6EFe de vida para outros seis. Se assim procedesse, o medico não estariapa-
lhor em terdiió Conseqüenciais orre in direta oposição a nosso raciocínio intuitiVo tfcdoum gesto nobre? Criar condições para o florescimento do vida...
e à idéia do certo. Para abordar essa questão, podemos nos enajar em diferentes ex- O terceiro exemplo, o melhor de todos, é o de a ppçao de _um inocente ocasio-
periências i 21 nar umgrancle bemgçjl. Outilitatismqjp. tjfj.ç que as pessoas sjarn punidas sornen-
Um grupo comum de exemplos é chamado dejmas dos medico-?. NopF- )seocastigo produzir as melhores conseqüências. Para uma teoria da punição como
ro exemplo, devemos imaginar que estamos em pp de guerra. Um médico est meio de dissuasão, não se pune alguém porque e certo e justo que certas pessoas
cuidando de um homem gravemente ferido, em condições em que o próprio médi sejam punidas; ao contrário, elas são punidas de modo_ que, em decorrência do ato
co está arriscando sua vida. Para salvar o homem, ele precisa de todo seu tempoi de punição, o transtorno social diminua, uma vez que o crime é reprimido. Exami-
atenção: não pode distrair-se de modo algum. Se cuidar de qualquer outra coisa aléi riemÓ76rém, o exemplo seguinte, que em geral se conhece como o dilema do xeri-
desse homem, ele morrerá. Nosso médico está correndo um grande risco, mas s fe. numa cidadezinha do sul dos Estados Unidos, e nela corre o boato de que
esquece de tudo isso. Ao fim e ao cabo, ele sobrevive e o homem se salva. Diríamo negro estuprou uma mulher branca. O xerife local é basicamente um honie
que o médico não é apenas muito corajoso, mas que se trata de um herói. Com de boa índole. Ele se dá conta de que uma multidão de linchadores armados está se
própria vida em risco, manteve-se fiel a seu objetivo. Deve ser recompensado. Bntn preparando para ir para o bairro negro da cidade, o que vai resultar em um grande
tanto, e se a distração possível fosse o fato de que não havia um únqo hpmem número de espancamentos e linchamentos. Por entender que muitas pessoas vão
mas vários? Imaginemos que haja mais cinco feridos: seu estado não é i e é sofrer, o xerife vai para o bairro negro antes que os linchadores ali cheguem, e prer't-
mente tão gra quanto o dd primeiro, mas morrerão se não -r atendidos ele um nego que é uma pessoa decente, simples, boa e totalmente inocente.Oi.e-
o médico concentrar seus esforços no homem mais gravemente ferido, osoul rife manda prendê-lo, submete-o a um julgamento simulado e manda enforcá-lo,
morrem. Imaginemos que ele assim procede, e que os outros cinco morrem -se' L)iz de linchadores: "Muito bem, já peguei o estuprador; ele con-
ele ainda um herói? Devemos recompensá-lo ou achar que tomou a decisão erra fessou o crime e foi enforcado; se quiserem, podem ir ver com seus próprios olhos."
E se ele descuidar do primeiro para atender os outros, e o primeiro morrer? Já e Nada mais justifica que os linchadores se dirijam ao bairro negro para linchar al-
mitimos que, se o médico ficar cuidando dele, estará praticando um ato digno de 1 guém. O resultdo é que friuitas vidas são salvas. Justifica-se a ação do xerife? Qua-
11
vor, mas estaria ele justificado se deixasse o primeiro morrer para cuidar dos outro',' se todas respondemos: "não, pois quem foi punido era inocente". O xerife, porém,
E se alguns dos feridos forem oficiais, e alguns soldados rasos? Deve o médico podalear ãjie à pessoa em questão teve uma morte rápida e quase indolor, e que,
penhar-se mais no tratamento dos oficiais? E se alguns dos feridos forem na ve muito embora seu sofrimento tenha sido lamentável por tratar-se de alguém ino-
cente, foi mínimo em comparação com o sofrimento que teria tomado conta da ci-
de inimigos capturados, que há bem pouco tempo estavam tentando matar os iii
dade se os linchadores tivessem se lançado sobre um grande número de inocentes.
bros da companhia à qual o médico pertence?
. maioria ci.as pes.soas acredita, que o utiliarismo está erraçio nessassituaçõ
e que econtrapõe a fortes intuições que temos sobre ap ,4do.certo spbw
21. A apresentação de experiências intelectuais antiutilitaristas é urna tática comum que algun'. a avaliação conseqüencialista.
tores tentam atenuar ao estabelecerem urna distinção entre 6Ctilitrismo de ato (que considera a ÇI LI O quarto exemplo é mais sutil (tem algo dos dilemas médicos), e foi apresen-
urna espécie de regra geral e leva em conta os efeitos da observação geral ou da não-observação dii Lido poiBfiiTWilliams (1973). Pede-se que imaginemos um exploredor ingl
Urna defesa comum consiste em afirmar que, se agíssemos da maneira "desumana" que autilidid i
sugerir, havcrfa urna perda geral de confiança em nossas instituições snciai e a felIcidade socii b 1,1,
quqyai.para uma cidade sul-americana ai ncoatra um pelotão de furi la ri 1CI 1 to que
ria em declínio Por exemplo, o nfvef de confiança diminuiria. Ao menos cio teoria, é fácil desemh;nI,. está prestes a matar vinte índios em represália por atos de protesto cnn Ira o govr-
desse tipo de argumento - bastaria considerar os atos de tal maneira que não se tomassem públicu, rio. O capitão da milfciaoferece a3viftare o 'privilégio" de atirar em um dos índios
impediria que houvesse perda de confiança. com a condição de que, se ele assim o fizer, os demais serão libertados; caso contrá-
174 Filosofia do direito Immanuel Kant 1175
rio, diz ele, todos os vinte serão fuzilados. Como não há possibilidade alguma de o quando desestimula outros delinqüentes potenciais de cometer crimes, por medo
visitante desarmar o capitão pela força, o que deve então fazer? O utilitarismo res- de que venham passar pelos mesmos sofrimentos de um criminoso condenado.
.2Pde qpe ele deve matar o índio, e Williams comenta o fato de que cti1itismo Será uma dissuasão específica quando desestimular o próprio infrator de cometer
rão apenas dá essa respgsta, mas tambéipa dá como resposta dbviaWilliams não um crime.
a considera tão óbvia por uma série de razões, aí incluídos o ato de matar e o fato Por sua natureza, a punição leva aum certo sofrimento - o sofrimento do cri-
de que o argumento utilitarista parece impor ao visitante o dever de cometer um minoso. Um bom utilitarista deve mostrar, portanto, que puniçãq. é preferível às
crime. O utilitarismo não põe em relevo a inconveniência de se forçar uma pessoa medidas de re.uçao .o crime que provocam menos (ou nenhum) sofrimento. Entre
a fazer algo que vai contra seus valores. No caso em questão, espera-se que o visi- outras maneiras de prevenir ou reduzir o crime, os utilitaristas clássicos (e moder-
tante faça uma coisa à qual todo seu ser e sua integridade se opõem. O utilitarismo nos) levam em conta os meios capazes de diminuir as tentações de cometer crimes.
simplesmente não leva em conta esse conceito de dignidade ou a idéla Os exemplos desses meios são o controle da venda de explosis ou de arrnas de f-
pessoa tem umieona1idade moral, transcendente. cil ocultamento, as advertências no sentido de nunca deixar bens port4teisà vista ou
em chave, ou a impressãocíer6eda c( )rren te de difícil rprodução. Ao conceber um
código penal, os utiWtàristuis vêelii tais 'questões como passíveis de motivar o crimi-
Contrastando o certo e o bem: o exemplo da condenação e dajção noso que planeja um crime a cometer o menos sério dentre as alternativas que pos-
sa ter em mente. Por exemplo, se a pena tantoyara estupro quanto para homicídio
A punição é a imposição deliberada de sofrimento, e em geral acreditamos que qualificado for a execução, o estuprador não se sentirá estimulado, no quees-
a imposição consciente de sofrimento, perda, miséria e privação a uma pessoa equi- peito ao Código Penal, a deixar sua vítima com vida.
vale a fazer algo moralmente errado; de que modo, então, iremos justificar essa ação Do ponto-de
deliberada? O utilitarismo sustenta que a única razão válida para se punir alguém - - .- ---vista utilitarista, nenhuma legis1aç penal estará garantida se não
.,- \_ .—_1 - --, - -,
é a expectativa das conseqüênciasfavoráveis que possam advir de tal prática, en- --
for eficiente,
'- isto .
e, se não servir para - -
a prevenção ao crime. Isso exclui as leis ex post
facto e as que nao sao adequadamente promulgadas, assim como a punição de crian-
anto a téôiiã da reffibuiãõ tefita que ajunição sóse justifica pelo fato de le-
ças, de pessoas com problemas mentais ou que foram fisicamente forçadas a fazer
var o infrator a receber aqui
lo que merece. Essas posiçteóricas o contraditó-
o que fizeram. A legislação penal também não deve ser inútil ou desnecessária.
rias; uma olha para o futuro, a outra pra o passado. Será inútil quando gerar conseqüências piores, no que diz respeito à felicidade ge-
posição utilitarista clássica - aquela dos filósofos e reformadores do direito na
ral, do que o delito que pretende prevenir - por exemplo, a pena capital aplicada no
tradição de Beccaria, Jeremy Bentham e William Paley (1743-1805) - pode ser resu-
século XVIII aos que roubavam produtos usados para alvejar dos locais onde se fa-
mida nas seguintes proposições:
zia esse tipo de trabalho. Será desnecessária quando o crime puder ser evitado ou
desencorajado a um custo inferior ao da punição - por exemplo, por meio da ins-
1. A única razão aceitável para se punir uma pesoa é o fato de que a punição irá
trução já a partir da infância.
ajudar na prevenção ou redução do crime. i/
Deixar-se levar pelo que o infrator merece, do ponto de vista utilitarista clássi-
2. A única razão aceitável para se punir uma pessoa de determinada maneira ou co, é o mesmo que confundir-se ou equivocar-se. Paley esclarece bem a questão:
em determinado grau é o fato de tal maneira uuj,grau oferecerem a maior proba-
bilidade de redução ou prevenção do crime. O crime deve ser evitado de um jeito ou de outro; conseqüentemente, quaisquer
meios que pareçam necessários a esse fim, sejam ou não proporcionais à culpa do infra-
3. As pessoas só devem S. r punidas se a punição for o melhor modo de prevenir tor, serão corretamente adotados, pois na base de tal decisão encontra-se o princípio
ou reduzir o crime. / que, por si só, justifica plenamente a imposição de uma pena. ( ...) O próprio objetivo
com que se institui um governo humano exige que suas normas se adaptem à supres-
Ao condenar alguém, um juiz utilitarista tem os olhos voltados para o futuro. são dos crimes. Esse objetivo, seja como for que possa atuar nos projetos de infinita sa-
Está preocupado com o bem que a punição possa trazer a todos os envolvidos no becl,pria, nem sempre coincide, na determinação das penas temporais, com a punição
caso. O objetivo geral consiste em elevar ao máximo a felicidade de todos. O crime proporcional de culpa (Paley, Vol. II, Livro VI, cap. 9).
é uma redução da felicidade. Osjuízes e legisladores utilitaristas vêem a punição
corno apenas uma. riedida patã 1idar coiruo crime. ( maioivalor da puni- Para cada proposição da perspectiva utilitarista.clássicaexiste uma contrapro-
ç9ÇQflsiste em dissuadir ou prevenir o crime. A punição é uma dissuasão gi posição da teoria da retribuição clássica:
176 Filosofia do direito Irnmanuel Kant 177
1. A.única razão aceitável para se punir uma pessoa é o fato de ela ter cometido um Ao decidir como e até que ponto um criminoso deve ser punido, Kant insiste
crime. em que a única coisa que se pode levar em consideraç,p &o ato pp,1e
po r praticado.
2. A única razão aceitável para se punir uma pessoa de determinada maneira e em O sistema 'uitçã"dëVêeFfirosarnente formulado e apenas com base na
determinado grau é o fato de a punição representar aquilo que ela merece. natureza docrim,ç. Tio que diz respeito à gravidade, a punição deve ser classiffE&-
àiivaldade de iïdioes com aWaiidãde do crime. De-acordo com esse prin-
3. Quem quer que cometa um crime deve ser punido em conformidade com seu (ípio de igualdade,
grau de merecimento.
( ... ) qualquer dano não merecido que infligirmos a uma pessoa será um dano infligido
A teoria da retribuiçã o_pede que o juiz tenha em mente a ação praticada pelo a nós mesmos. Se a difamarmos, estaremos difamando a nós mesmos; se a roubarmos,
criminoso, istQLo..delito. O que o criminoso meretá ligado ao que Fez, 'à gra- estaremos roubando a nós mesmos; se a matarmos, estaremos matando a nós mesmos.
vidade do crime. As conseqüências possíveis ou prováveis da punição do crimino- Somente a lei da retribuição (jus talionis) pode determinar cojatidão
m o tpQ,gu
so são irrelevantes. A'tdia kanffna da piiniçio e um dumentd rauonahsf dpunfpjJTodos os outros critérios' flutuam ao sabor dos ventos e, tendo em vis-
tornoue conhecida""f' uma teoria dos direitos naturais Em lhe ivíetaphysical ta que a eles se misturam considerações externas, não podem ser compatíveis com o
Elements ofJustice [Elementos metafísicos da justiça] (1965), Kant rejeita os argu- princípio da justiça pura e estrita (Kant, ibid.. . 332).
mentos utilitaristas de Beccaria ao mesmo tempo que reforça sua abordagem dos
"direitos" com os laços absolutos do raciocínio deontológico. Ele argumenta que Portanto, Kant nos diz como eaté que ponto Qdeyetuo,s p,unir, ,caso ,venharnos
não podemos depender de cálculos no que diz respeito aos efeitos da punição1 pu io. Não se trata, porém, de uma responsabilidade trivial, pois o crime deve re-
da não-punição, sobre o total de bondade existente no mundo (quer definamos tal ceber~ o que merece. Temos o dever absoluto de dar ao crime o devido castigo:
ceber
bondade como prazer, quer corno satisfação dos desejos etc), mas que devemos
submeter a punição ao teste que irá demonstrar se ela satisfaz a capacidade de y- Ainda que, por consenso geral toda uma sociedade civil viesse a desintegrar-se
tonomia d'e uma pessôa PortafifoTp1essuõe-s'que os indivíduos tenham a capa- (por exemplo, se os habitantes de uma ilha resolvessem separar-se e espalhar-se pelo
cilfaide de determinar seus próprios objetivos enquanto criaturas livres erain,is, mundo), o último assassino ainda na prisão deveria ser antes executado, para que todos
edelevar suas vidas reconhecendo essa capacidade em todos osoutros membro paguem por seus atos e para que a culpa associada ao homicídio não seja imputada a
dá sociedade humana. A punição é, assim, infligida a um indivíduo por sua intru- urn'povo'ue teria deixado de insistir na aplicaçao da pena; se assim proceder, tal'-pov'o
poderá ser visto corno cúmplice dessa violação publica da justiça legal Kant, ibid.: 333).
s na auFônomià"d u7tfo,,t O Sa o'v''nsiacfa à6gr.0 e lu t.juide
'tal jesimpeito e intrusão., egu ,-s que a puni ção deve ser rigorosamente lim,J-
tàda, em tipo e duraçãd, à gravidade moral dos atos que o criminoso tenha ptica- Para os utilitaristas, isto não passa de puro rigor moral. É preciso lembrar, porém,
- ' — que ateoria da retribuição clássica e o utilitarismo clássico são extremos opostos.
do; contudo, a pureza dessa ligação e "tal que ela nao deve ser h mitaaa apenas em
tensão e duração, motivo pelo qual a punição excessiva é um erro, mas que deve
ser infligida sempre que necessário, uma vez que não punir é igualmente errado A DESCRIÇÃO KANTIANA DA MARCHA DA HUMANIDADE
(não respeita a autonomia do criminoso) Kant é o paradigma da teoria da retribui-
ção clássica: Em suas diversas discussões sobre moralidade e filosofia política, Kant des n
volve uma visão particular da natureza do progresso e do papel do homem. a
A punição judicial não pode nunca ser usada como meio de promover algum ou-
tro bem para o próprio criminoso, ou para a sociedade civil; em vez disso cleye,,,em todos i''hgesso é movimento que se volta para obem suprerrio.} O homem em $(e
os casos, ser lhe imposta exclusivamente com base no fato de ele ter cometido um crime, enomenoloicamente considerado, está sujeito às leis da natureza, e em sii
pois um sïuman não'pode nunca ser manipulado simplesmente como uiipiojia cia racional no corpo social está sujeito aleis que se aplicam tanto extr im,iIII
egoncoeo
os fins de outra pessoa ) O direito rclativo à 13iInição epm impe,rat,ivo ca,i-
,
internamente (nós mesmos, considerados tanto fenomenológica quant w ) im ww
bre daquele que enveredái pelos tortuosos caminhos de uma teoria da felicidade à pio- camente). No que diz respeito às leis de nosso estado de liberdade,
cura de alguma vantagem a ser obtida por meio da desobrigação penal do criminoso ou
dà redução de sua pena em conformidade com a máxima farisaica: "E melhor que um
-
( ... ) na medida em que só se voltam para ações externas, são chamL tili
homem morra do que todo im povo venha a perecer." Se' a ju_sfiçã legal perecer, não porém, éticas quando também exigem que elas próprias [as leis] cnlIiIuti
valerá a pena que os homens continuem vivos neste mundo (Kant, 1797: 331-2). ri determinantes da ação.
178 Filosofia do direito Immanuel Kant 179
O homem pode usar as estruturas da cognição humana - a estrutura da liga- a não ser sob uma idéia de liberdade que já tragfisi o conceito de "autonomia" e
ção entre humanidade e razão - para iniciar a função da vida social na esfera da ra- é daí que procede o"princípio universal de moralidade" c'imperativo categórico".
zão. A humanidade Em que vai bnsistir tal liberdade? A liberdade não é a falta de coerção, mas
Ii uma forma particular de. coerção.
II '---l---- .
Para,o homem, o verdadeiro estado de liberdade
-
( ...) não pode prescindir das associações pacíficas e, contudo, não pode evitar as constan- / encontra-se em sua sujição a Lei moral que ele proprio se outorga, e atInge seu pon-
tes agressões mútuas. Segue-se que [a humanidade] se percebe naturalmente destinada
a criar por meio da cofuulsão mútua, sob leis que pro\m dela mesma - uma aliança / to malaltoqidi3 omm eei a necessiadedessaléêsua
d absoluta au-
1 ffi{rsóbr6 as a5es do agente racional. O progresso social, aquilo que parece ser
qe, apesai de constantemente ameaçada pela disen fa erais SAn- d6biisumaço teleológica do homem, efetua-se através da mediação do juízo à me-
tJipolbgy, 1974: 11T
dida que transforma as pessoas de seres pré-racionais em seres racionais. O homem
mo
é o criador de seu caráter social progressivo, bem como de seu caráter individual, "na
Kant afirmaque, qudo um hon-iem pauta duas ações pela lei devido ao ter-
medida em que é capaz de aperfeiçoar-se de acordo com os fins por ele próprio ado-
ror ou à coação, estamos diante de um motivo meramente hipotético, mas qu,qian-
tados". A construção do social é uma problemática de natureza claramente ético~
dõôirêôrfiTútiva e a aceitaçãb da lei em si, o que têmos 6 um em conformidade
moral, sendo a verdadeira atividade do empreendimento "humano" (1974: 183).
com a máxima categórica Ajj[rdáce 50 xistcjio segundo casq, e provem da"au-
O progresso do social só pode ser estruturado pelo estabelecimento de normas
tonomia da vontade" em oposição à "heteronomíi" do agente, que opera em obediên-
éticas reguladoras - na aceitação e arficulação comunitária dessas normas a orien-
cia não às exdrtaçõês de sua reflexão rácional, mas por paixão, medo ouespéãça
tação racional do homem enquanto ser social se vê afetada, e a expressão resultan-
de recompensa. O agente heteronômico é verdadeiramente o agente "escrâvo", e,
te dá a conhecer a concretização expressiva da dignidade humana. As leis criadas
ainda que em sua falta de força ele desempenhe as ações observáveis da moralida-
de, buscou refúgio em sua sujeição à "natureza" e/ou à "força superior". Po,de_çlís- pelo homem na vida social devem
farçar sua mentalidade escrava e sua amoralidade em uma confusão de discursos,
( ... ) avançar por si mesmas, uma aliança que, apesar de constantemente ameaçada pela
mas isso precisa estar sujeito ao exame critico, e essa orientação crítica é necessá- dissensão, faz progressos gerais (1974: 191).
rii a conquistada- autonomia que lhe permitirá agir comojacionalniente
aútônomo e, ao fazê-lo, atrair o respeito de outros seres racionais. A vida ético-política do Estado moderno deve ser constitucional, ligada pelas
Em What is Orientation in Thinkíng [O queorfentação no pdriãàmento] (conti- leis públicas criadas sob a direção de
do em Kant, 1949), Kant parece afirmar que q_g?rantia do progresso é a ca _9 acidade
da próppa razão de colocar-se na direção certa, determinando para si mesma o uma idéia da razão que, não obstante, tem um valor prático inquestionável, uma vez que
correto do procedimento transcendental. Esta é a confiança plena da imâff.ção ra- pode obrigar todo legislador a estruturar suas leis de tal modo que elas poderiam ter sido
cionalista - a verdadeira fé metafísica. Visto assim, o progresso do homem é, de fato, criadas pela vontade comum de toda uma nação, e a ver cada sujeito, na medida em que
parte da marcha da razão: uma marcha que é também uma trajetória histórica na este possa reivindicar sua cidadania, como um representante dessa vontade geral. E esse
qual estão aglutinados os diferentes aspectos da existência humana. O pano de fundo o critério da legitimidade de toda lei pública (Theory and Practice, p. 74).
do posicionamento fenomenológico do homem são os aspectos metafísicos da ra-
zão prática nos pressupostos de Deus, imortalidade e liberdade, e suas interações
no contexto da vida de coexistência e cooperação racionais com os outros seres hu- A MARCHA DO TODO
manos racionais, Qhomem considera-se, em primeiro lugar (na medida em que
pertence ao mundo sensível), corno um ser que vive de acordo comas leianatu- A pessoas individualmente, mesmo nações inteiras, pouco refletem sobre o fato
de que, enquanto cada um persegue seus próprios objetivos a seu próprio modo - ob-
rzaetqrgnqmia); em segundo lugar (na medida em que pertence ao mundo inte- jetivos quase sempre antagônicos entre si -, todos avançam inconscientemente rumo
ligível),acredita estar submetido a leis que,or independerem da natureza, não são a um objetivo natural desconhecido, como que levados por um fio condutor; e se em-
mpfricas - têm sua fundamentação única na razão. E a partir dessa interface que penham em promover um objetivo ao qual atribuiriam pouca importância ainda que
se desenvolvem as estru turas referenciais da vida social, e desse modo a potenciali- dele tivessem consciência (Kant, Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Intent
dade limitada da vida sensível da caverna - ou em outras palavras, como coloca Pla- [Idéia para uma históduiversa1 de um ponto de vista cosmopolita], 1983: 29).
tão, a vida da cidade dos porcos - torna-se passível de ser transcendida e guiada .&
pelo processo transcendental. Nesse contexto, "o homem enquanto ser racional" Kant postula que a sociedade avança para a constituição de uma comunidade
não pode nunca existir em um sistema regido pel6ïudofimérito de sua vontade, ética mundial em que o processo da criação de uma comunidade política constitui
180 Filosofia do direito Immanuel Kant 181
o primeiro passo. Há duas áreas nas quais o progresso deve ocorrer: (i) o progresso Temos aqui um dever que é sui generis; não dos homens para com os homens, mas
na política e no desenvolvimento de um sistema jurídico mundial; (ii) o progresso na da raça humana para consigo nféffiãuma vez que a espécie de sere racionais con-
ética e na correspondência entre a criação interna (ética) de leis e a criação externa. tra-se, objetivamente, na idéia dá razão, e destina-se a um bem social: a promoção do
São duas as etapas de associação: mais alto bem como um objetivo social (1960: 89).
Uma condição jurídico-civil (política) é a relação dos homens entre si, na qual eles Podemos, assim, postular um Çetivo para a históri: a idéia "sublime, apesar
são todos semelhantes e se submetem, socialmente, a leis jurídicas públicas (que são, de nunca plenamente alcançável" de uma comüiifdbde etica (1960: 91), e podemos
em termos gerais, leis coercivas). Uma condição ético-civil é aquela na qual eles se en- depositar nossa confiança na razão: "A religião universal da razão" (1960:113) pode
contram unidos sob leis não coercivas, isto é, leis exclusivas da virtude (1960: 87). levar-nos a "um Estado ético (divino) na Terra". A lei moral da razão está "erigin-
do, para si própria (...), um poder e um reino que sustentam a vitória sobre o mal e
A condição jurídico-civil apresenta uma estrutura externa,sriaçip compromissos que, sob seu próprio domínio, garantem ao mundo uma paz eterna" (1960: 114).
que deriu3iiisfrain, através dos instrumentos coercivos formais, o modo como os indi- Nosso compromisso com a razão vai superar o estado desumanizador da comuni-
víduos vão agir de maneirà legítima. Kant, porém, via essa odedade cdiio uma_çs- dãde ôlítia, transfor suar a época e superar a instância política, abrindo espaço para
trutura um tanto frágil, que dependia dessa lef"artificial" para uféfos diferentes im- ãéifca. O espírito e a configuração da modernidade irão transformar-se na "paz"
pulsos, desejos e projetos que, de outro modo, ameaçan ragmen-lá. táTNéslià etapa, o di5espfrito ético universal. Um sistema de direito abrangente e passível de aplica-
funcionamento da lei consistia em manter a coesão de um grupo de pessoas social- ção constitui, a esse respeito, não o objetivo de ordenação humana; tampouco re-
mente desunidas através da moderação e do controle das reivindicações individuais. presenta uma condição suficiente para a sociedade desejável, mas é uma condição
O suLrjetivistodas atitudes contingentes e históricas do homem, que sob outros as- necessária. Em última análise, a mensagem de Kant é simples: pra nos tornarmos
pectos se mostra exacerbado, precisava ser submetido aum. sistema de leis do Estado, cri p,devemos primeiro nos colocar sob o domínio do direito.
eo funcionamento dessas leis coercivas tinha por base o princípio da estrjqcipro-
cidade no tratamento
1 -1 dispensado
1— aos demais, uma vez que nenhum indivíduo está
fparado para dar ao outro nada mais que a liberdade de que destruta. Este não
um estado de paz social Em nossa situação política atual urLdlco-cLv71) efos in-
ternamente em um estado de natureza, pois ninguém aceita que a autoridade púj-
ca e geral tenha o poder de julgar "qual «o devér de cada hme5n em cada
O Estado não pode 36rig o homem a viver desta ou daquela maneira; pode apenas
dizer-lhe como ele pode e deveria viver. A sociedade civil éproduto da dimensão "po-
lítica" do homem, e o domínio da sociedade civil divide-se em duas esferas, a pública
ea hvada, uma demarcação que se nostrou fundámental para o liberalismo; a qsfe-.
ra privada da virtude liberal,"-e, a esfera pública do "direito" político,"]egítimo". Alegi-
tiação do interior dá continuidade direta à tradição do religioso, e a do etiptjas-
foma-sc na ordenunstitucionalizada que legifmia atravea dac.' u' . a
1 ed1ormais do Estado. A comunidade ética, que com pqpo - assim o espera
Kant - virá substituir a comunidade política, nãopode basear-seem leis cocivas,
como aqulas da condição política, uma vez que, para a comunidadtica, "oçppcei-
tq mesmo implica isenção de coerção" (1960: 87. O homem progride-aadeixar o es-
tado ético de natureza, e desse modo libera o Estado da evistênciadeleiscorcivas
coma adoção cfé motivos virtudsos e o desempenho de ações regidos pela idéia ,de
conquistar o mais alto bem social, qiÏêéo objetivo sociatffltimo22 .
"o conceito de um objeto individual completamente determinado por meio da mera idéia"), e também como
22. Apesar de central, esse conceito é ambíguo. Como Beck (1960) o vê, o conceito do mais alto bem é a maior felicidade, combinada, do modo mais proporcionalmente perfeito, com o mais alto giau de perfeição
também descrito de diferentes maneiras: como o reino de Deus, o mundo inteligível, a existência dos seres moral, e a afirmação contida nos Fundamentos da nzetafïsica dos costumes, segundo a qual "duas coisas cons-
morais sob a lei moral, a vocação moral do homem, o "ideal regulador da razão" (tendo por um de seus ideais tituem o summun bonurn - a perfeição moral da pessoa e a perfeição física de seu estado".
Capítulo 7
De Rousseau a Hegel:
o nascimento da tradição expressiva do direito
e o sonho da eticidade do direito
A passagem do estado de natureza para o estado civil produz uma mudança ex-
traordinária no homem, ao substituir, em sua conduta, o instinto_pela justiça, e ao
rir a seus atos a morahdaTlie que antenormente cafeciãhiSb então quando a voz do
dever toma lugai Tosimpulsos físicos e dos direitos do apetite, é que o homem, que
até aquele momento só considerara a si próprio, se dá conta de que deve agir segundo
diferentes princípios e consultar sua razão antes de dar ouvidos a suas inclinações... O
que o homem perde CQ o contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimftã-
d6 a tudo o que tente _e-consiga. obter o que ele ganha e a liberdade civil e a proprie-
dade de tiidô o cjie tem Se queremos evitar oovãhãfinduma cdIsác6n-
tra a outra, devem os estabelecer uma clara distinção entre a liberdade natural, que só é
limitada pela força do indivíduo, e a liberdade civil, que é limitada pela vontade geral...
AIóa c[êT o que o homem adquire na condição civil, a
liberdade moral, que por si só dele faz o verdadeiro senhor de si mesmo; pois o mero
imaulso do apetite é a escravidão, enquanto a obediência auma lei que prescrevemos a
nós mesmos e a ITbeYddêÇJããii-Jacques l6dsseãu, ii Sociarcõfrãëí'[cYtiïtfãtõ s6
cial], [1 Í973: 19)
, [Se, por um lado,] o dinheiro compra tudo o mais, não pode comprar a moral e os
cidadãos (Jean-Jacques Rousseau, Discourse on the Arts and Sciences* [Discursos sobre
as artes e ciências], [1750]).
* No original francês, Discours sur les sciences et les arts, que deveria, portanto,, ser traduzido como Dis-
curso sobre as ciências e as artes; estamos, porém, seguindo o texto inglês. (N. do T)
1. Rousseau nasceu em Genebra, em 1712; sua mãe morreu pouco depois, e aos dez anos de id.ide n
pai, relojoeiro, deixou-o aos cuidados de uma tia que o criou. Depois de um breve, período num ifliti nilo
184 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 185
nização estava criando um contexto radicalmente diferente para a humanidade. No tante, mas que fora transformada ao longo de seu envolvimento com a sociedade.
sentido que a sociedade moderna transgredia - ou extrapolava - qualquer estado Como conseqüência, a autôcrítica é uma foisita de crítica social, e crítica social é au-
natural, uma questão básica que se coloca é a da legitimação. O que poderia fazer a tocrítica. O novo "eu" moderno é um eu social que uma nova ordem social tornou
diferença em termos de poder e recompensa na moderna estrutura social aceitável?' possível, mas essa ordein social recisa do eu para..recriar-se a i própria, e a ruo-
Rousseau não foi uma pessoa socialmente ajustada; sua carreira literária come- dernidade exige que o sujeito social pré )moderno se transforme em um novo eu
çou com um ensaio premiado que tem por título Díscourse on 11w Arts and Sciences socialConttido, o que se ganha e o que se perde ao socializar-se a humanidade ten-
(1750). Trata-se de obra de extraordinária força retórica em que o autor argumenta d'i vista essa nova ordem? O processo de civilização é o desenvolvimento pro-
que a moral fora corrompida pela substituição da religião pela ciência, pela sensua- gressivo e irreversível de um indivíduo plenamente moderno, ou será a sublima-
lidade na arte, pela licenciosidade na literatura e pela ênfase na lógica à custa do sen- ção de aspectos da natureza humana, a disfarçar restrições desumanas, em nome da
timento. O livro tornou Rousseau imediatamente famoso, e seus textos posteriores devida socialização?
foram muito bem recebidos. De que modo nossas instituições modernas emergentes exprimem a verdde da1
O contexto lo sujeito moderno - novas organizações e procedimentos, novos condição natural do ser humano? A "fu'Traça o di religião, 9' tradição, do
costume e da "ordenação natural", em favor da modernidade, deixa a humanidade
poderes — ameaçavam cercear a liberdade, ou agytononiia. Os temas da falta de po-
mts 1ie ou a transfrmairrilesmente, em servos de um novo senhor? A liberda-
der, da alienação e clã urezestãiïà1ase das preocupações de Rousseau. A mo-
de pëiiifte que nos tomemos píenamente humanos - no sentido de realizarmos nos-
dernidade impõe ao homem as perguntas "quem sou?" e "o que sou?", mas ele se vê
sos próprios fins e desejos, em oposição àqueles que nos são impostos pela natureza?
atormentado por emoções, esperanças e temores conflitantes, e dificilmente conse-
Se seguirmos os projetos de nossa "auto-afirmação", estaremos nos engajando em
gue chegar ao entendimento de sua posição pessoal; de que modo, então, se pode
um comportamento mais plenamente "humano", em oposição à obediência aos im-
julgar o social? Compreender essa fraqueza já era um ponto de partida que propu- pulsos de nossa natureza, não importa quão satisfatórios sejam estes últimos?
nha um primeiro princípio: o de que o pessoal e o social estavam interligados. Nos- A idéia de uma disjnção fundamental entre as condições social e natural bas.e
spersona1jdacie é função do contexto sqcial e histórico em que nos encontramos. a toda obra de Rousseau, servindo de pano de fundo para seus escritos sobre direi-
Que d1er, então, da nova sociedade do Iluminismo? Como compreender esse con- to e política (o texto clássico é 77e Social Contract [O contrato social], doravante cita-
texto, e qual foi o impacto da modernidade emergente sobre a condição humana? do como CS). Através da socialização, o homem se transforma "de um animal estú-
Rousseau estava convencido de que uma nova forma de existência humana havia pido e limitado em um ser inteligente, em um homem. ( ... ) [Obedecer] somente ao
sido criada Em oposição a 1-lume, sugeria que a natureza humana n5o era uma cons- impulso dos apetites equivale à escravidão". A constituição política e jurídica proce-
de a um'desnaturalização" criátiva do homem. Assim, a modernidade podia ofe-
recer espaço para o desenvolvimento radical de um novo tipo de humanidade; pox.,
onde aprendeu todo o lixo inútil que se costuma chamar de educaçao (como ele próprio afirma nas Con- outro lado, podia sujeitar-nos a. pntias limitativas e nos-transformar ém meros ob J-
fissões), sua educação formal encerrou-se ainda aos doze anos. Rousseau, porém, era um leitor voraz. Depois
de trabalhar como aprendiz de um gravador de estojos de relógios, deixou Genebra e levou uma vida errante, jetos regidos por normas. Precisamos de conceitos morais para julgar as transforma- t'A
conhecendo muitas pessoas que o ajudaram a viver modestamente ou o apresentaram a outros benfeitores, ções da modernidade. Rousseau sugere que as instituições quede algum modo, não
até que ele finalmente se estabelecesse na França. Seu trabalho mais duradouro consistia em fazer notação inçrporam nossa 1ibedlidédefinir nossos próprios fins, privam-nos de nossa
musical, ainda que por algum tempo tenha sido preceptor dos filhos do ar. de Mably, homem de grande in- humanidade. Além do mais, nossas instituições serão um obstáculo à liberdade
fluência em Lyon, e mais tarde secretário do embaixador francês emVeneza. Suas influências mais óbvias foram quando não reconhecerem nem incorporarem nossa humanidade. O ser humano
as leituras de Platão,Virgílio, Horácio, Montaigne, Pascal eVoltaire. Em Paris, freqüentou os círculos literários,
mas ficou chocado com os extremos de riqueza e existência social, a imponência das catedrais e a pobreza
tem muitos impulsos contraditórios: "todas as instituições que colocam o homem em
terrível dos cortiços, o esplendor dos salões e os temas trágicos das peças de Racine. Apesar do contato cada contradição consigo mesmo nada valem" (CS, 3: pp. 464 e 128 das Complete Works).
vez maior com os círculos sociais mais altos, nunca se sentiu à vontade nesse meio, e em 1746 conheceu Thé- As instituições sociais devem expressar e reconciliar as verdades do eu humano; de
rêse Levasseur, jovem e inculta criada com quem veio finalmente a casar-se em 1786. outro modo, estamos condenados às contradições e incoerências inumanas. As ori-
2. Em 1755, Rousseau identificou o problema da ordem social em termos de um paradoxo: "O homem gens da insatisfação encontram-se tanto na ordem social QUANTO na composição
nasce livre, e por toda parte encontra-se agrilhoado. (...) Como ocorreu tal mudança? Ignoro-o. O que pode
legitimá-la? Creio que posso resolver essa questão. (...) A ordem social é um direito sagrado que serve de base
do eu humano. Não .ode haver recuo para uma análise quer do social sem o pessoai
a todos os outros. Esse direito, porém, não provém da natureza; tem por base a convenção. O problema con-
siste em saber que convenções são essas" (abertura do Livro Primeiro do Contrato social). O homem deseja a
liberdade, mas coloca-se em grilhões; uma sujeição legitimada pelas convenções da ordem social. Esta, po- 3. O contexto dessa o o em social é a cidade. A cidade representa tanto a nova liberdade, uma liberda-
rém, não é um mero reflexo de uma ordem natural, mas sim um artifício criado pelo homem. de no anonimato, quanto o tenor, o terror da (in)sociabilidade incontroláveL
186 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 1187
quer do pessoal sem o social. O pessoal é criado elo social e o social é o domínio O CONTRATO SOCIAL
em que o pessoal adquire existência.
Os discursos emergentes sobre direito e sociedade tendiam a negar essa inter- Rousseau não usa a idéia de contrato social para descrever a transição do esta-
relação. Os discursos "modernos" separavam as esferas de análise, compartindo a do de natureza para o de sociedade civil; ao contrário, o contratosocial fornecia uma
condição humana; na discussão política, por exemplo, enfatizavam mais a eficiência resposta a pergunta "por que deve uma pessoa obedecer leis-de uma soedde mo-
do que a afetividade'. O protoliberalismo da época sublinhava que a estrutura jurí- deã"Dnto social e um grãúde ensaio sobre ale g] ti mi lo dani odernidae,
dica somente apresentaria instrumentos de intefaã ali mpeãs6aIo domínio dibá tentativa de transformar urna idéia instrumental em um fenômeno expressivo.
docidãhãl5átiato que celebra contratos Corno consequêncu o igrnfidã?'1 Observe-seREji'íi afiiadição expressiva é também normativa. Os ensaios de Rous-
cia» avi má'tornar-se urna atividade privada Rousseau imaginava que no passa- seau não são uma fria descrição do desenvolvimento histórico da modernidade; na
do-havia-mais inserção,sociáVe pureza Como afirmou no Discurso sobre as artes e verdade, são interpretações estéticas das condições ca.azes de asse: rar a le,' 1
ciências: "Os políticos antigos falavam incessantemente sobre a moral e a virtude, dade no início'fa rnodernid. Rousseau cria seu ensaio sobre a justiça, por exem-
enquanto os nossos só falam de negócios e dinheiro" ([1750] 1973: 19). As antigas re- plo, para nos capacitar a criticar o social á partir de um ponto de vista "contingen-
públicas pagãs de Atenas e Esparta pareciam oferecer exemplos de inserção social; te". Precisamos chegar a um locus, a um distanciamento de nosso contexto aRartir
um estilo de vida e um discurso político em que a constituição social oferecia urna dos quais possamos com çaçlçr melhor ç ,aa1iacriücamentenossascondjçfi
pátria às pessoas que a criavam, ao contrário do individualismo cada vez mais Mas n 5ddbnis nunca transcender nosso contexto; o símile platônico da caver-
adotado emnome da liberdade moderna. As repúblicas clássicas eram habitadas por na não pode ser experimentado na vida real; de que modo, então, podemos esca-
homens fortes e cheios de orgulho; suas peças refletiam os pontos culminantes da par a nossa imersão na convenção? Para fazê-lo, temos que "pôr de lado todos os
tragédia e da comédia. Ao olhar para seus concidadãos Rouau só conseguia ver fatos" e criar modelos e imags hipotéticos em comparação com os çp,ga-
a busca hobbesianadejjid mos entender mellr nosso pjesente "As pesquisas [relatwasasongens e
damentos da desigualdade entre os homens] não devem ser consideradas como ver-
Não sois nem romanos nem espartanos; não sois nem mesmo atenienses. Deixai de dades históricas, mas somente como O Li Lfl nU ocinio hipotetico e condicional, mais
lado esses grandiosos nomes que não vos assentam bem. Sois mercadores, artesãos e bur-
bemusado para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar sua verdadeira
gueses, sempre preocupados com interesses particulares, com o trabalho, os negócios e os
lucros; uma gente para a qual a própria liberdade não passa de um meio de adquirir sem origem '1 Jscourseon the Origins and Foi.ndations oflnequality among Men [Discurso
obstáculos e possuir sem segurança (Letters from theMountain [Cartas da montanha], 3: 881). sobre as origens e os fundamentos da desigualdade entre os homens], 1964: 103).
O contrato social mistura o histórico, o teórico, o ficcion
—111 al e o hipotético; ainda
De que mQds,j1as condi ões dos primórdis da modernidade, os homens po- que a impureza dessfodologia possa nos desagradar, el fambém reflete o re-
deriam tornar-se tão virtuQgqs remoto? ATsposta conhecimento rousseauniano da impossibilidade inerente de se afirmar a "verda-
de Rousseau apontava para uma ordem social justa. Como isso se tornaria possível? de" da condi ão humana. Rousseau remete a um discurso que expõe uma genealogia
Son- ente seoçontrato social que fundavaanova sociedade fosse a expressão de uma do indivíduo moderno ao mesmo tempo que nos fala de verdades especulativas so-
vontadeeraF. bre a humanidade. Não .odemos ter urna ciência total ou absoluta do sujeito mo-
demo pois tal sujeito não é mais natural, mas soei oculturil: "A passagem does-
tado de tufpara êãfud3iil opera uma mudança verdadeiramente notável
4. Os novos discursos da modernidade estavam enfatizando a distância e o controle. O homem era ti- noindivíduTSïi15Ttúi oTri fint6 íâJfifiem seucompoitamento, e confere a
rado de sua posição "natural" em nome da liberdade; isso, porém, aumentava a necessidade de um discurso suas ações urna base ii oraLda,çpríicarecia no ptssado" (CS, i, viii, 1973: 177). oir-
e uma técnica para se criar uma nova ordem que pudesse comandar o (novo) compromisso individual. A for-
ma tradicional de legitimação é compromisso, a do "direito natural", havia se rompido: "Observo que, da e
(De que modo o contrato social institui a justiça?)OhorneiJeizno estado /
moderna, os homens n o,,s,eie1a,c unam n amante âoseLpelaJpfça,oupehi interesse pessoal; os anti- de desfrutava de independência absoluta e só tini i Ç
gs por sua vez agiam muito mais por convicção e pelas afeiçoes da alma pois não negligenciavam a hngij obedecer às leis que ele próprio criava. Embora fosse basicamente motivado pelo
gem dos smaífl A face da Terra era um hvro no qua1ii arqiiã'os eram presiados (1 J Rousseau Émzle desejo de autopreservação, esse dese10 levava-o a reconheçer a necc'ssid iJ ii ',ii
1979: 3t)'' tidëde sua fiiimanidade compartida. Sua inocência natural corrom1rcn 51: iii i\;
5. Essa resposta é passível de várias interpretações. Cada idéia pode ser analisada, desconstruída e re-
posicionada em diferentes esquemas. Rousseau tem sido visto como instig?clor,tçónçqgdgplução France-
dos con aos sociáisoTrom'iu ciiouVí'ios e tornou-se motivado a U)IOL li se ac11iil
sa, como figura paterno retórica do maummo, como defensor d deito e corno um filóso- de seus semelhante. iconc6rrência para ser bem-sucedido -q Jon; i iii o; Jemat
'fõ que levou a conseqüências totalitárias. está na origem dos çrinles e iniqüidades que os homens infligirin; o iii mi outros.
188 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 189
r c —
deia criar uma relação soial
Como se por que onciÍÏass a independência_q de uma pequena elite e expresse a vontade do povo como um todo: Nesses termos,
homem tinha naturalmente com as necessidades da vida social?,A tarTT6nsistia o cidadão que pode ser fodó ãóbE lei estará obedecendo não a um ins-
desenvolver uma "associaão que defendesse e protegesse, com a totalidade da trumento de dominação específico, mas a um valor geral.
força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e na qual cada um, apesar de
unido a todos os outros, pudesse ainda assim obedecer somente a si próprio". Para Que todos devam obedecer, e ainda assim ninguém tome a si o comando, e qu_e
resolver o problema da tensão entre o individual e o social, este último deve tor- tosvpp-isere na'ter ( ) Esse prodigios são obi do direito E so-
nar-se a encarnaço do pessoal; as leis vão ii 3rfência porque são aquilo que rpente ao direito que os homens deve' ajEEttçà e' a1ibérdad É esse sàliitar órgõd'a
ii21pomos a nos mesmos, alem de exprimirem nossa vontade geral vontade de todos que estabelece, no direito civil, a igualdade natural entre os homens.
O contrato social não foi ufri acontecimento passado, mas sim uma realidade (..) A primeira dentre todas as leis consiste em respeitar as leis (A Discourse on Political
Economy [Discurso sobre economia política], 1973: 124).
viva presente onde quer que houvesse um governo legítimo. Esse contrato vivo é o
princípio fundamental que subjaz a uma associação política, no sentido de que ofe-
rece um mecanismo por meio do qual todos ajustam sua conduta individual de modo A IDÉIA DAVON1TADE GERAL
que a harmonize com a verdaddiú1iberdade dos outros. O homem'troca sua "li-
br'Elad natural" por uma "liberdade civil" e pela observação dos "direitos" de pro-
Como podem os diferentes segmentos e as diferentes vontades subjetivas da
riédde. Numa 'T'ase fámosã, 1ousseau"dfine o contrato social em 1éfiõEe população ligar-se de modo que forme um sistema racional?9 A lei só expressará a ra-
cada indivíduo coloQaj 5ua pesQa e sçgipo4çr iuia ppss,çonm, sob a dire-
cionalidade de todo o corpo social se for produto da vontade geral, e se essa von-
ção P rema da vontade geral por meio da qual nos relacionamo&mutuamente
tade geral representar a vontade do "Soberano". A vontade do Soberano não é a
como partes constituintes de um "todo indivisíve1". Além disso, nos termos do con-
vontade arbitrária de um indivíduo ou grupos de indivíduos; o príncipe ou a elite
trato, aqueles que se recusam a obedecer à vontade geral podem ser forçados a
que compõe o soberano são um corpo distinto da entidade do soberano na filoso-
fazê-lo; os homens podem ser forçados a ser livres. O contrato social é omecanis-
fia do direito. Q Soberano é a centralidaçde prxde,r e a vontade geral que dirige
mo por meio do qtíàJ o prbblema da construçã6do moderno é resolvido, isto é, a
fóiçã constitutiva do direito'. esse po.der por miq da lei`. De uma forma ideal, o Soberano consistiria na totali-
O contrato social forn"vida e existência ao corpo político", mas a legisla dade do núrrej'o de cidadãos da sociedade; a vontade geral, portant6, é a ntade
ção lhe concede "movimento e vontade". A idéia de uma vontade : eral soluci II única do total dos cidadãos. As muitas e diferentes vontades da po.ilaiçã'o podem
urna questão premente, isto é, Rousseau pretende que a lei seja livre do domíni ser consideradas como umasó vontade porque todos fazem parte do contrato so-
cial, e nos termos desse contrato concordaram em dirigir suas ações de modo que
alcance o bem comum. Cada cidadão compreende que deve abster-se da prática de
6. Em que vai consistir essa liberdade civil? Nos termos de nossa discussão anterior da obra de,Hol
bes, parece.que consistirá numa liberdade negativa (definida por Hobbes quando ele se refere à "liberdal
natural", e que leva à idéia do liberalismo acerca da liberdade diante da coerção, como "Liberdade ou aut 9. "Como uma multidão cega, que freqüentemente não sabe o que deseja porque raramente sabe o que
nomia significa, em sentido próprio, a ausência de oposição; por oposição entendo os impedimentos extt bom para si, realizaria por si mesma tão grande e tão difícil empreendimento quanto um sistema de legis-
nos do movimento" (Leviatã, capítulo 21), ou liberdade diante da coerção etc. Rousseau parece estar buscand' lição?" (CS, 1973:193).
i,.imanova.fQrma dejiberdade cívica, ou de liberdade de viver como um ser mãi plenamente humano do qu 10. Nas seções originais que estavam no Geneva Manuscript of the Social Contract (incluído em 1973:
se permitia no passado, sem ser destruido pelos conflitos pessoais e sociais. 251), Rousseau assim define o soberano: "Há ( ... ) no Estado uma força comum que o mantém e uma vonta-
7. 'U problema e encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comt de geral que dirige essa força; a aplicação de uma à outra constitui a soberania. A partir daí fica claro qo o
a pessoa e os bens de cada associado, e através da qual cada um, apesar de unir-se a todos, possa ainda ot 'c)berario é, por sua natureza, apenas uma entidade coletiva, que tem apenas uma existência abstrata e
decer somente a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes. (...) As cláusulas desse contrato (...) são iva e que is eia associa.a a essa pa avra não pode estar uni à'TãZiuela dà'Emn uruco individuo
mesmas em toda parte, e tacitamente admitidas e reconhecidas em toda parte. (...) Quando bem -i i Isso signifi'a que-iacofijirnto de homens que exercem o poder soberano pode ser limitado pelo
didas, essas cláusulas podem reduzir-se a uma só - a alienação total de cada associado, com todos os 1 da filosofia jurídica. Portanto: "( ...) a vontade dominante do príncipe é, ou deveria ser, apenas a V' Ii.
direitos, à comunidade toda, ( ... ) porque, se os indivíduos conservassem certos 'direitos, não haveria um ;oral ou o direito; sua força não é senão a força pública concentrada em suas mãos, e, tão logo 1 iie
perior comum que decidisse entre eles e o público; como cada qual seria, até certo ponto, seu próprio ji lamentar qualquer ato absoluto e independente em sua própria autoridade, os laços que iran t 'i
logo pretenderia ser juiz de todos, e o estado de natureza seria então mantido" (CS, 1973:174). do começam a afrouxar-se. Se, finalmente, o príncipe viesse a ter uma vontade particul ir iuk .15
8. Para Rousseau, o problema central da política era como "colocar a lei acima do homem", o que vo otadedo soberano e a empregar a em mãos em obediem 1 1 ii 1
comparava "à quadratura do círculo em geometria". A liberdade moderna estava presa ao projeto de obeda"i Ir, heria, por assim dizer, dois soberanos, um de direito e outi'o de fato; a unian ci 1 '(''liii 11111'
cia às leis, e não aos homens. lirtamente, e ogprpo over-se-idJolvido"_(CS,1973: 211-2).
190 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 191
qualquer ação que possa levar os outros a voltar-se contra ele; desse modo, cad a age contra a lei está agindo contra seus próprios interesses; incorre em erro no sen-
qual se dá conta de que seu próprio bem e o bem comum estão interligados`. Em úl- tido de estar, equivocadamente, colocando seus desejos subjetivos em oposição ao
tima aff Tdõéonffàto aô fficoia-sé à dos de- Estado justo do qual, objetivamente, sua vontade deveria ser parte componente
mais no sentido de que se voltam, todas, para o mesmo fim: o bem comum. termos políticos, o sistema eleitoral e a elaboração das leis deveriam ser guiados pelo
A vontade geral é um conceito específico; não se trata do simples cálculo matemá- obÈ EIoprirndidial do bem édmufu ou da justiça social. Só podemos nos convencer
tico da "vontade de todos", como a mera manifestação empírica dos votos em qual- de que as leis promulgadas estão, de fato, em sintonia cqp'i ayontade geral, nos-
quer sistema eleitoral simples._A vontade de todos só se converte em vontade geral sos em que o sistema todo se volta para a obtenção de justiça social e as leis e
içoX~s_ex
qIo estiver em conformidade com os objetivos do bem comum; em :eral, é sim- esse compromisso.
plesmente a vontade de uma maioria, ou de uma minoria que tem voto. Uma socie- Podeirnos estar certos de que a idéia da vontade geral é de uso efetivo? Como se
Y dde pode não ter uma vontade geral; ao contrário, sua "vontade de todos" pode ser poderia estabelecer uma vontade geral, um sistema político justo? O que ia
aquela de uma facção política, e seu objetivo tão-somente a expressão de grupos de o ponto de partida para esse veículo de— pura modernidade? A resposta dada por Rous-
interesse dominantes`. Rousseau parecia acreditar que a difusão de conhecimentos seau a essa pergunta num capítulo intitulado "The Legislator" [Do legislador] (CS,
j1 apropriados a respeito de problemas sociais específicos permitiria que aopõ 1973: 194-7) demonstra a impossibilidade de a modernidade fundar-se a si própria.
J\ dddãos assumissem a forma de umaévontade geral`. O conhecimento relativo
as vontades de todos são então dirigidas Para que um povo emergente pudesse apreciar as máximas sãs da política e ob-
fao problema social leva a um consenso,-
fr para o bem comum; a vontade geral nos leva, portanto, a justiça social. servar as regras fundamentais da arte de governar, o efeito teria de tornar-se causa; o
espírito social, que deve ser obrada instituição, teria deprfØlr ao estabelecimento da
Em que bases pode a obediência ser obtida pela força? Sonenfequando ope-
próprijntituiçãp, e os homens teriam dejjji.tes c,sJej aui1oue deveriamitor-
rarmos com base na idéia de que a lei foi criada com o bem comum ou a justiça so- nar-seedeois delas.
cial em mente. Nesse caso, a lei exprime a vontade geral, não sendo, portanto, o re-
sultado instrumental de interesses específicos`. Em tais circunstâncias, a pessoa que Estamos num írculo teórico vicioso em que o efeito deve precedera causa
consciência social que seria produto das instituições modernas teria de já existii paia
produzir-ins-tituíõs módçins. As instituições livres so funcionarão se os cidadãos
11. Desse modo, "aquele que se recusar a obedecer à vontade geral será obrigado a fazê-lo, por todo o
forem homens livres, mas somente homens livres podem (livremente) criar institui-
corpo. Isso significa nada menos que será forçado a ser livre, pois é essa a condição que (...) o protege contra
a dependência pessoal" (1973: 107).
ções livres. Portanto, devemos encontrar alguma forma de momento fundador e me-
12. Para Rousseau, a soberania limitada é uma contradição em termos. O soberano tem o direito de im- canismo fu adõiiià ofereca as condições por meio das quais um sistema livre pos-
por o que quer que o bem comum exija. De que modo, então, vai demarcar "os limites dos poderes sobera- sa vir a existir. O Estado livre precisa de um deus ar machina, de um "legislador", para
nos"? (CS, Livro II, capítulo 4). Os limites são, muito simplesmente, os da justiça. O Estado tem o direito ili- fundar suas instituições:
mitado de intervir em nome do bem comum do todo quando for necessário fazê-lo, mas não tem o direito
de intervir quando essa condição não estiver preenchida. "O soberano não pode impor a seus súditos quais-
quer restrições que sejam inúteis para a comunidade, e nem mesmo pode desejar fazê-lo." Em termos em- A descoberta das melhores regras sociais apropriadas às nações demandaria urna
píricos, sem dúvida, é assim que tem sido: freqüentemente em países que poderiam remontar a Rousseau em inteligência superior, que conhecesse todas as paixões humanas mas não vivenciasse
sua história de fervor revolucionário e suas idéias de imposição do bem comum. nenhuma delas; que não tivesse relação alguma com nossa natureza, mas que a conhe-
13. Essa exigência provavelmente reduz o alcance da legislação com a qual Rousseau imaginava que um cesse plenamente.
Estado racional pudesse comprometer-se. Ele afirma claramente que "nenhuma função que tenha um obje-
tivo particular diz respeito ao Poder Legislativo" (CS, 1973: 192). Rousseau estabelecia uma distinção entre Nenhum indivíduo tem essa presciência desinteressada, mas as elites devem ten-
"magistratura" e as marcas da "soberania". A tomada de decisões particulares ou a criação de "comandos"
esecíficoç q2!,s6 digam respeito a "uma questão particular" pertencem à primeira categoria, isto é, não são
tar identificar o caminho que leve à ordem social justa numa sociedade essencialmen-
atividades características do dfreito. Rousseau atribuía o declínio da democracia na antiga Aféóa ãõ fat6Ué te corrupta, propondo leis com argumentos dirigidos à população de tal modo que
os gregos promulgarem leis que satisfaziam caprichos pessoais e criarem favores perticulares (ver discussão as tornem aceitáveis a um povo ainda não preparado para as exigências da pura ra-
no Discurso sobre a desigualdade, e também em CS, 1973: 187, e sobre a decadência social como resultado da zão. Rousseau observa que, historicamente, a estratégia comum consistira sempre em
compreensão equivocada do papel do direito, Livro III, capítulo 11).
"recorrer à intervenção divina e atribuir sua própria sabedoria aos deuses", e desse
14. Convém lembrar que, para Rousseau, essas leis não são muitas ("um Estado assim governado [de
acordo com os princípios de Rousseau] precisa de muito poucas leis", CS, 1973: 247), e que o processo políti- modo "convencer, pela autoridade divina, aqueles que não se deixam 'motivar pela
co é aberto ao escrutínio, assegurando que a necessidade de uma lei específica seja facilmente reconhecida. prudência humana" (Complete Works, referências em CS, 3: 381, 383-4; 67-8, 69-70).
192 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 193
O discurso racional é baseado no irracional; a verdade moderna, numa falsidade; o tros; através da alienação do indivíduo em nome da comunidade (a incorporação teó-
moderno rica do individual à vontade geral). Rousseau tenta legitimar e tornar suportáveis as
cadeias de dependência com que arcamos na sociedade civil. Só justificamos nos-
saJçfda de auto~suficiência e felicidade egoísta por meio da criação se uma iser-
INTERPRETANDO A MENSAGEM DE ROUSSEAU dade poha tic na úãl"femos de nos ismd urna coisa maifdo que somos em
qualquer estad ffitãIc:1iãTidô àsifri üfríã nova individualidade digna de respeito.
Como lidar cop,aítnqneza,de Rousseau? Estará ele dizendo aos governantes Para vários críticos, essaéatens5o política central ao pensamento dê RÕÜèàul é1
que só a fraude e o embuste lhes permitem governar com êxito? Ou estará advertin- exige a total subordinação do individual ao social em nome do indivíduo e a fim de
do pessoas a se acautelàrm"diante dasóméssas e ilús6éque seus governan- ciar uma individualidade que émais plenamente humana cio que uma individuali-
tes podem lhes impor? E o que dizer da vontade geral, essa idéia reguladora que, por dade não sdaãl. As instituições pcilíficás não apenas garantem as condições através
ser tão facilmente mal compreendida - como se Rousseau estivesse descrevendo d'õãiíii'divíduo busca satisfação, como também deveriam enobrecer seu cará-
uma realidade -, converte-se tão facilmente em uma totalidade? Ainda que, em seu ter e reconciliar as exigências conflitantes da socialização. O Estado legítimo deve
desejo de assegurar que a Constituição social não perca sua natureza expressiva, produzir indivíduos saudáveis tanto quanto dar segurança à propriedade`. Qual a
Rousseau sacrifica o indivíduo à totalidade? No sistema rousseauniano, projeta-se razão de se viver em uma sociedade "da-lei-e-da-ordem" na qual somos livres para
o cidadão moderno como um homem p1enariente socfiuiili'Chomem tão conscien- ãêüííiular 5ropri'êdã'dë ëlfuafõfitratosceEo' dé'hosso direito de fazê-los cum-
........
te de Sua mterdependencia social que nao correra o risco ae aestruir cjJos p- pnr,se nossa humanidadese degrada iie'se empenho'e se fragmenta devido alu-
ciais buscando iefugo em sua subjetividade16 Cdnfido, ao descrever de que modo tas e contradiç6es internas7 A questão se coloca em nossa propna epoca com força
nossos governantes precisarão cdnvencer-nos de que não foram eles que criaram nos- fenbda; não apenas fasamos a apreciar o argumento rousseauniano de que os
sas novas leis, mas que estas derivam de alguma forma de vontade divina ou neces- fundam~ s da ordem iurídica saqdjtlportância crucial para se determi-
sidade funcional, Rousseau apresenta tanto a imagem de uma arma para nossa sub- nar o "tipo de direito" que temos; na verdade, o fato de a idéia de contradições inter-
jetividade quanto a possibilidade de que desmistifiquemos tal dominação. Quer a tihõ'ffistância definidora da condição humana na modernidade liberàl)
consciência da estratégia para se criar legitimidade funcione no sentido de nos mis- ser central aos Estudos Jurídicos Críticos (ver capítulo 16 deste livro) é apenas uma
tificar, quer de nos dar maior transparência no que diz respeito a nossa existência manifestação temporária de que o dilema de Rousseau não foi ainda resolvido. A
social, a criação e a defesa de nossas liberdades podem ser atribuidas à nossa cria- mensagem de Rousseau para nós pode muito bem ter sido simples: cuidado com to-
tividade social e à nossa boa vontade. das as teorias sociais que pretendem fazer com que a modernidade pareça natural!
Rousseau discorre sobre a intensificação, sob a égide da modernidade, das ten-
sões inerentes à vida social; o direito interliga-se às instituições sociais e ao nosso
discemimento cultural. Um direito que se esqueça de exprimir a cultura do povo será II. FRIEDRICH HEGEL: A FILOSOFIA DA RECONCILIAÇÃO TOTAL
umdireitoperveno,,. Precisamos uns dos outros tanto quanto tememos uns aos ou- E A BUSCA DA ETICIDADE DO DIREITO
Como são cegos os que podem imaginar que instituições, constituições e leis po- imagem do desenvolvimento social como algo impulsionado pela dialética (o choque
dem continuar existindo quando já não mais se ajustam à moral, às necessidades e aos dppostos),ïFiioria avançava sob o impacto do choque de tendências antag-
desígnios da humanidade, e depois de exauridas de seu significado; e que as formas às casQualquer posição estática continha tendências conflitantes - aparentemente con-
quais a compreensão e o sentimento deixaram de ser inerentes possam conservar o po- traditórias -, e à medida que as contradições aparentes se chocavam e transpunham
der de unir uma nação (Hegel, Werke [Obras], 1798: 150-1; citado em Sabine e Thorson, para uma novaposição (uma sintese temporaria dos mdIhréT elemenlos das ds
1973: 574-5).
posições oposta), novos conflitos e novas contradições aparentes tornavam- vi-
síveis. Poderíamos chegar à superação do condito e das contradiçõesociai) sera
1-TEGEL: RECONECTANDO O DUALISMO DA CONDIÇÃO a história humana um processo inevitável de movimento contínuo em que se nego-
HUMANA À TOTALIDADE DESTE MUNDO ciam conflitos e opoções e se fazem concessões mútuas somente para que tudo isso,
por sua vez, se transforme imediatamente em hoos conflitos?
Enquanto Rousseau afirmava que somente o Estado capaz de chegar à perfeita
justiça social poderia resolver as contradições da condição humana, e Kant parecia nos
deixar suspensos entre dois mundos divididos, Hegel argumentava que, ao menos A LIBERDADE COMO CRITÉRIO~ CHAVE DA MODERNIDADE
teoricamente, a reconciliação era possível". Sua mensagem, porém, é profundamente
ambivalente. Enquanto Hegel parecia expor uma filosofia de perfeita justiça social - a Influenciado por Kant, Rousseau e outros filósofos, Hegel aceita o princípio de
totalidade social da comunidade ética—, ele o fez dentro de uma filosofia da história e autonomia e o projeto social de conquista da liberdade como essência da moderni-
do desenvolvimento social passível de múltiplas interpretações. Apresentou-nos uma cfc
jq, masarguenta que uma novarlihião de felicidade e libei dado tojinou-sevi-
' sivel quando situamos quilo 4iie o15ériavamos empiricamente ao nosso redor
dentro da totalidade da históda fiíos6ffca. O objetivo tradicional da felicidade en-
20. A inferência kantiana é a de que a metefisica está além da ciência, que rara a mente humana é im- qiiantõíão da exisiêii humana transposta para este mundo implicava que
possível alcançar o conhecimento teórico da realidade tbdaT hgàlréni, po partiu do pressuposto de que "o o homem só poderia ser feliz quando fosse livre. Enquanto a liberdade deveria ser um
qe ãriional e rêal e o ijue e real e racional", razão pela qilâTiudo o u. existe e pfiye .econhecirnen
édiitado de construção racional. Era uma concepção total que fornecia novas bases para se pensar à es- principio regulador que conduzisse o destino histórico da humanidade, Hegel afir-
tru mesrãà d 1idàd e suas manifestações na moralidade, no direito, na religião, na arte, na história mava que a liberdade devia ser entendida em seu sentido mais amplo e expressivo.
e, em especial, o pensamento em si. Suas idéias têm rido um impacto substancial. Boa parte da filosofia do A liberdade deveria ser a liberdade de vir a ser;o homem deve desenvolver uma cons-
século )O( representa revisões ou rejeições de aspectos de seu idealismo absoluto. ciêpçjegLpxdprio como parte.de um processo socio-histórico que se volta para
Hegel nasceu em Stuttgart em 1770,e o jovem Hegel foi influenciado tanto pelo movimento românti-
co na poesia quanto pelos escritos de Platão e Aristóteles. Estudou teologia na Universidade de Tübingen,
oobtetivo da liberdade absolutã. Não devemos fundamentar uma análise da socie-
participou ativamente das discussões sobre a Revolução Francesa e seu interesse foi aos poucos se voltando dade em concepções estáticas, ou em alguma análise filosófica que proponha sua
para a relação entre filosofia e teologia. Em certo sentido, Hegel transformou aescatolo:a cristã na .ual o análise como se a verdade da existência social pudesse ser apartada do contexto so-
homem encontra seu destino no Juízo Final ena vida a partir de então, em uma filosofia da história na qual ciofflosófico; um contexto essencialmente histórico". A liberdade é um processo his-
o 4genvo1viroçnto da-totalidade do çonhecimento humano é essencialmente a mesma do ordenamento ra-
cional da história, e assim (substitui) nosso destino
Em 1801, Hegel passou a ensinar na taculdade da Universidade de leria, e sua primeira grande obra, 21. Em essência, Hégel:
The Phenomenology ofMind [Fenomenologia do espírito], foi concluída à meia-noite, antes da Batalha de leria
em 1807. Com a universidade fechada devido a essa batalha, Hegel sustentou a si mesmo e à esposa (casou- 1. A realidade é um processo histórico.
se em 1811), trabalhando como diretor da escola secundária de Nuremberg, onde permaneceu até 1816. Ali 2. O processo histórico d/ermina fatores que lhe são intrínsecos;xemplo, como os seres hu-
escreveu sua influente Science of Logic [Ciência da lógica], que o levou a receber convites de várias universida- manos se comportam. A natureza humana não é uma constante; acha-se implantada em estilos
des. Em 1816, entrou para o corpo docente da Universidade de Heidelberg, onde no ano seguinte publicou a de vida e em
Encyclopedia of the Philosophi cal Sciences in Outline [Resumo da Enciclopédia das Ciências Filosóficas], obra em 3. Há um desenvolvimento perceptível ria história; a história "progride", e esse progresso é dialético.
que apresenta a vasta estrutura de sua filosofia em seu triplo aspecto, isto é, lógica, filosofia da natureza e fi- 4. O objetivo da humanidade é a felicidade, mas esta deve ser encontrada na liberdade; a história é
losofia do espírito. Dois anos depois, Hegel tornou-se catedrático de filosofia na Universidade de Berlin, onde um movimento em direção à concretizção da liberdade humana; esse processo é reflexivo, i.e.,
permaneceu até sua morte por cólera em 1831, aos 61 anos de idade. Em Berlin, Hegel escreveu muito, ainda implica nossa consciência da liberde e do conhecimento cada vez maior de nós mesmos.'
que quase todos os livros tenham sido publicados após sua morte. Suas obras do período incluem Philosophy 5. O perigo da liberdadea alienação; alienação é a situação em que parte de nosso eu parece alheio
o! Ri,iili TPilioofia do direito] e conferências publicadas postumamente, como Philosophy of History [Filosofia a nosso verdadeiro eu - em que a humanidade entra em desacordo consigo mesma. A alienação
1. Aesthetics [Estética], Philosophy ofReligion [Filosofia da religião] e History of Philosophy [Histó- será superada quando se entender que tanto a razão social quanto a razão pessoal são uma só
lia Li coisa, e que tal coisa é verdadeiramente racional.
196 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 197
tórico; a liberdade que o homem procura __modernidade deve consumar-se por objetificado, o indivíduo só terá objetividade, verdade (Wahrheit) e existência ética quan-
meio de urna sociedade de bases normativas. Urna sociedade que reconheça a auto- do for um de seus membros. ( ...) A vocação (Bestimmung) dos indivíduos é levar uma vida
nomia e a particularidade individuais ao mesmo tempo que suas estruturas atuem universal. Suas outras satisfações, atividades e modalidades de conduta têm vida subs-
tancial e universalmente válida como seu ponto de partida e seu resultado (Filosofia do
cmo um mediador da individualidade, convertendo-a em um todo eçgnIe direito, parágrafo 258).
constituído. A sociedade justa combina a particularidade pessoal e a unidade subs-
tantiva dentro das formas objetivas da soberania civil. O chamado cidadão moderno e "livre" da sociedade civil, liberto da tradição e
do costume, não euficiéfffëiiiente livre Ele se déïxa absorver pelo jogo de forças
O ESTADO DEVE REFLETIR NOSSA NECESSIDADE econômicas; seguindo o cpnteú.do .contingentede seus desejos, busca os prazeres e
DE UMA ORDEM SOCIAL MORAL vieúIt destino gerado por decisões tomadas por outros no mercado. Uma nova for-
11
r±ià deobjetividade se faz necessária para dar ao indivíduo moderno um estilo de vida
Se a felicidade é urna questão de viver a vida verdadeiramente livre, as restrições racionalmente válido, e ainda assim livre. Os esforços incertos do "homem econômi-
sociais às quais nos sujeitamos devem ser moralmente defensáveis. Enquanto regime ceni sexclirecionados para u e nhq em nome do bem cornu
de poder coercivo, o direito deve refletir o empenho moral da sociedade. Na usc
O Estado é a realidade da liberdade concreta. Contudo, a liberdade concreta con-
desse objetivo Hegel parecc eliminar qualquer distihçào entre direito e moralidade site• em j.ie.aindixidualidade pessoa) e seus interesses partiI esnãoapena'z a)can-
1,
- entre a lei humana e amoralidade—, situando-os, na verdade, no conteto. de uma cem seu pleno desenvQiyimenta,,e,o reconhecimento explícito de seus direitos
ordem social eticamente constituída. Em Philosoplui ofRight [Filosofia do direito], ,ern,primcbo lugar,,se integrem por vontade pr6pria ao interesse geral e, em se-
Hegel rejeita explicitamente a idéia de contrato social corno base para a explicação da gundo que conheçam e desejem (1 universal (...), que o reconheça,m como seu fim
natureza da obrigação política. Ao contrario de Hobbes e Locke, para os quais a le- eseuq,bjr o, e selam ativos em sua broca. O resultado é que o universal não predo-
gitimidade do governo civil tinha suas raízes na aprovação por parte do indivíduo, mina nem se consuma a não ser através dos interesses particulares e da cooperação da
HegLafirmaya eaJegitimidade as oç sin.stituiçõ.es governamentais do Es- consciência e da vontade particulares; do mesmo modo, os indivíduos não vivem como
tado tinha por base princípios de moralidade política imanentes aos costumes, às pessoas privadas que se voltam exclusivamente para seus interesses; no ato mesmo de
xõrinas é práticas pré-jurídicas que configuravam aquilo que chamava de socieda- desejá-los, desejam o universal à luz do universal, e sua atividade é conscientemente vol-
tada para esse fim exclusivo (Filosofia do direito, parágrafo 260).
de civil. A tendência utilitarista dominante no pensamento iluminista via na socie-
dade civil os fundamentos de uma forma de associação em que predominava o nexo Para Hegel, contudo, a sociedade civil consistia de formas de associação huma-
contratual — a união de indivíduos essencialmente apartados e atomísticos com a fi- na, como a família e o lar, que eram de natureza essencialmente não-contratual, e
nalidade de obter vantagens e segurança mútuas. A idéia hegeliana de comunidade que, em conseqüência, geravam princípios de legitimidade e obrigação que eram vim-
era muito mais ampla: culantes independentemente da aquiescência ou do acordo voluntário de seus mem-
bros. Hegel insistia em que tais formas de associação eram metafisicamente anterio-
Se se confundir o Estado com a sociedade, considerando-se como seu objetivo es- res ao indivíduo, no sentido de que a família, o lar e as outras instituições formado-
pecífico a segurança e a proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o interesse dos ras da sociedade civil não podiam ser apropriadamente entendidas como associações
indivíduos enquanto tais irá tornar-se a finalidade suprema de sua associação; seguir- instrumentais - isto é, como associações que só existiam para promover a consuma-
se-á, então, que se tornará facultativo ser membro de um Estado. Contudo, a relação en- ção dos fins e objetivos de seus membros. Portanto, Hegel caracterizava overda-
tre o Estado e o indivíduo é de natureza bem diversa. Uma vez que o Estado é espírito
deiro Estado como uma comunidade ética ,ou, mais exatamente, como uma ír-
ma de Sittlichkeít*, que incorporava bens ,e,valoresmoxais.inLti nsecos a seu sis k "ia
6. O conhecimento traz liberda e. Em fases anteriores da história do mundo não estávamos no con- foiJe lgras,.-
i Leis e j;iÓie-Inuntos institucionais`.
trole da situação, pois as coisas nos aconteciam sem que nos déssemos conta de que aconteciam,
nem compreendíamos totalmente q1. era sua natureza. Porém, como hoje temo9nsciência de
que o mundo social é criação nossa, nossa própria razão pode estipular suas leis. * Moral. (N. do T.)
7. Procuramos a vida em uma sociedade racionalmente ordenada.1a chegar a tal sociedade, não de- 22. A obra de Hegel exerceu uma enorme influência para muito além de sua costumeira identificação
vemos impor-lhe algum padrão de racionalidade, mas sim trazer à luz a racionalidade dos proces- com o marxismo. Na tradição inglesa, a concepção comunitária de Hegel da associaçãu.políticu Joi nininada
sos que historicamente a tem constituído, e construir a partir daí. A técnica consiste em descobrir e reafirmada pelo influente filósofo Green nos livros Prolegomena to Ethics (1883) e lo/mis ou tio' i'riuu0u1u9 of
o que é racional no real, intensificá-lo e desenvolvê-lo de modo que permita que possa realizar-se. Political Obligation (1886), ambos de publicação póstuma, e também por l3radley em seus Ethical Stu1ic (1876).
198 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 199
O ESTADO CONSTITUCIONAL É UM DESENVOLVIMENTO nal, mas o que se usava eram apenas abstrações; a Idéia estava ausente, e a tentativa ter-
HISTÓRICO QUE DEVE SER ENIENDIDO E CONTROLADO COM minou no máximo de terror e crueldade (Phílosophy of Right, parágrafo 258).
REFERÊNCIA AOS INSIRUMENTOS CONCEITUAIS DO
CONHECIMENTO HISTÓRICO E À NOSSA LEITURA DA HISTÓRIA Em seu desejo de universalizar a liberdade e a autonomia que, em sua opinião,
COMO MANIFESTAÇÃO DE UMA VIDA SOCIAL ÉTICA sustentavam a Revolução Francesa, os agentes ignoravam o saber social; o terror ja-
cobino brotava de uma liberdade desenfreada. O grande número de agentes indivi-
O Estado é a concretização da Idéia ética. É espírito ético na qualidade de vonta- duais e grupos defendiam a racionalidade subjetiva sem incorporar e restringir o prin-
de substancial manifesta e revelada a si mesma, que conhece e pensa a si mesma, rea- cípio de autonomia individual dentro da objetividade da consciência histórica. Inver-
lizando o que sabe e na medida em que o sabe (Philosophy ofRight [Filosofia do Direito],
samente, o Estado plenamente moderno deve ter consciência da dialética histórica.
parágrafo 257).
O Estado deve ter vrua çig ração jurídico-constitucional no sentido mais
eira ou ideal, a sociedade ai e o Estado justo amplo do termo. Precisa ser um rmperzum da lei Esse p,q~der,pQrem,precisa ser e,
A Constituição política
dever ãflõTt iiéimentos dialéticos progressivos relativos aJppslção social e ao o império da lei vina a erigir a eticiciacle do direito`. A Revolução Francesa demons-
recõnheclmLnto do valor da digmdade humana individual O Estado e plenamen- iiãFa que as divisões entre as classes sociais, entre o rural e o urbano e entre os dife-
te"racional quando se organiza de acordo com a totalidade do conhecimento da con- rentes grupos, facções e indivíduos, eram tão profundas que alguma forma superior
dição humana e desenvolve seus argumentos substantivos de modo que reflita esse de obtenção de unidade se fazia necessária. Hegel recusava-se a recuar para a tra-
conhecimento. O Estado não pode abrir mão da questão da justiça e do direito em dição do absolutismo patriarcal ou a voltar-se para o vago imaginário de um Volksgeist
nome uma mãltadomercaclç, ori de outro mecanismo "natural"ilUbjEehte germânico, puro e orgânico. Em vez disso, o objetivo da humanidade consiste em ill-
a sociedade crvi!bcontrao, e preciso dar,conteúdo—substantivo a idéia de vonta- cançar uma perfeita autoconsciênci&daothd de seu er a modernidade deve-
que oteoncos do contrato social, com suas idéias de liberda- tiatfuiide dentro do poder social doprio conhecimento, assim como o com~
de natural, iffõt tfato historiéo deque a liberdade humana depende da inserçao romiríàrqiifEstacto racional que obedecesse aos ditames desse conheci-
soià1.—Páfilóô6, ate mesmo a idéia rousseauniana de contrato social` é inacei- iiíëhto. "O Estado racional", a encarnação substantiva da racidualidade, fornéceria
tável, pois em sua opinião tal idéia mecanismo unificador e um espaço apropriado à plenitude da vida moderna da
humanidade. A unidade, porém, nãb deve destruir a individualidade; o Estado deve
( ... ) reduz a união dos indivíduos de um Estado a um contrato e, desse modo, a uma resolver a questão das divisões da sociedade civil sem abrir mão do principio de li-
'coisa baseada em suas vontades arbitrárias, suas opiniões e sua adesão expressa e ins- berdEédOiiidividuo deveuasdr preservado ao se situar a individualidide através
tável; e o raciocínio abstrato começa a extrair as inferências lógicas que destroem o
do desenvolvimento de um a. teoria jurídica dos direitos individuais (direitos de pro-
princípio absolutamente divino do Estado, juntamente com sua majestade e autorida-
de absolutas. Por esse motivo, quando essas conclusões abstratas chegaram ao poder priedade, direitos contratuais, o Íécáfie , cimento da existência dos direitos), em uma
produziram, pela primeira vez na história humana, o espetáculo prodigioso da derrocada realidade historica obJeti\ imente dada do Estado O indivíduo só pode ser pfeser-
da constituição de um grande Estado real e sua completa reconstrução ab initio, unica- vado corno uma-força de vida real se se admitir qué a indl\ iduilidade depcnck de
mente com base no pensamento puro, depois da destruição de tudo o que existia. A urna totalidade social organizada no entorno da progressão dialética do particular e
vontade dos que o recriaram era dar-lhe o que alegavam ser uma base puramente racio- do uhiversa!, do individual e do social
Kiridividualidade e a sociabiidade não eram pólos mutuamente excludentes; a
No período contemporâneo, o estudioso conservador Michael Oakeshott seguiu o exemplo de Green e Bra-
contrário, eram instrumentos conceituais por meio dos quais reconhecíamos di íer e 1 -
dley ao não reconhecer nenhuma distinção absoluta entre a organizaãã jurídica e constitucional do Estado tes espaços dos movimentos históricos. Quando reconhecemos que a indivklunli
e as práticas culturais, econômicas e religiosas que constituíam a esfera da sociedade civil. Era um erro, afir- d5de existir como — parte de uma totalidade, compreendemos que dc'si'jii
mava, conceber o Estado como um mero "conjunto de pessoas" organizadas para fins jurídicos, econômicos universal é, ao mesmo tempo, um movimento de "superação e- preservação"
ou políticos, ou concebê-lo como um simples território físico sujeito à jurisdição de um sistema particular de dividual (o particular) em favor do universal e a salvaguardada individu alid; li'( () i i
leis e administração civil. A autoridade exercida pelas instituições formais do governo de Estado, insistia ele,
tra o perigo de uma totalidade não-ética. O desenvolvimento do dircTtn 1 1
pressupunha sempre o contexto fornecido pelo todo social isto é, pela "totalidade em uma comunidade real
-
que atende às necessidades de todo o espírito dos indivíduos que a constituem" (The Authority of the State: do constitucional racional era o centro da teoria social de Hegel; mostr v
10). A autoridade do Estado não provém do consentimento voluntário ou do acordo promissivo
dadÉiás;_ enecotra-5c,exclu, na comp1 aUo que o próprio Estado confere às necessida-
des daspessnas concretas. 23 Para usar o título da terceira parte da Filosofia do direito de Hegel.
200 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 201
instituição social básica fora construída através da dialética social (AuJhebung), ou serviço público, a vontade do monarca e o poder unificador da identifiçp-
dos processos por meio dos quais os lados antagônicos do argumento racional entra- n'ãFfi contexto dêá totalidade, capaz de abriga cada tiEsses iementos em
vam em choque e os melhores aspectos de ambos incorporavam-se à nova posição. uma existência comum que os harmonize a iodos. E de e fã üêá modernia
aiéEnderá o caráfrtrágico da vida grega... A ordem jurídica, porém, corria o risco
de ignorar a necessidade de unidade expressiva:
A AMBIVALÊNCIA DA IMAGEM DE HEGEL:
ROMANTISMO E ADVER[NCIA As estátuas são agora meros corpos dos quais a alma viva partiu, assim como os hi-
nos são palavras exauridas de toda crença. A mesa dos deuses não mais oferece alimento
Hegel tem inspirado tanto a direita quanto a esquerda do espectro político. Em e bebida para o espírito, e em seus jogos e festivais o homem não mais recupera a alegre
parte, é interpretado como um romântico histórico que oferece imagens edificantes, consciência de sua unidade com o divino. Os trabalhos da musa agora carecem do poder
mas, se por um lado só podemos dar sentido a nossa identidade através da história do espírito, pois este adquiriu certeza de si próprio a partir do esmagamento de deuses
e apreciar as glórias do passado, por outro não deveríamos nem subestimar nem su- e homens. Transformaram-se naquilo que são para nós agora - belos frutos já colhidos das
perestimar os efeitos progressivos e cumulativos de nosso desenvolvimento social. árvores, que um destino cordial nos ofereceu do mesmo modo que uma jovem poderia
Precisamos de um espírito motivador para guiar o desenvolvimento social, um Geist colocá-los à nossa frente... Contudo, assim como a jovem que nos oferece os frutos co-
lhidos é mais do que a natureza que diretamente os provê - a natureza diversificada em
que possa nos entusiasmar e incorporar-se a todas as nossas instituições sociais. O suas condições e elementos, a árvore, o ar, a luz e assim por diante -, porque resume tudo
que, porém, pode nos oferecer esse Geist? Como podemos ter certeza de que essa fi- isso em uma modalidade superior, no brilho de seu olho autoconsciente e no gesto com
losofia tem qualquer fundamento na história real? que os oferece, assim também o espírito do destino que nos apresenta aquelas obras de
Hegel oferece uma leitura da história do mundo em termos das tensões entre arte é mais do que a existência ética e o mundo real daquela nação, pois constitui a inte-
subjetividade individual e totalidade ideológica. As antigas cidades-Estado gregas riorização, em nós, do espírito que nelas foi ainda exteriormente manifesto.
ofereciam visões de força e finalidade, mas não eram capazes de tolerar os desafios
da individualidade. Em seu livro Phenomenology ofSpirit [Fenomenologia do espíri- A mensagem é simples - nós, modernos, corremos o risco de perder nossa ima-
to], Hegel abre mão do espírito da polis enquanto padrão para se avaliar a vida so- ginação intelectual para os áridos textos do utilitarismo -, mas a resposta é difícil. Em
cial moderna; enquanto a cultura grega pode nos oferecer uma bela unidade, em parte, Hegel contrapunha utilidade a paixão romântica2' e criava uma leitura filosó-
contraste com a qual freqüentemente nos envergonhamos de nossas divisões, a li- fica do mundo que provia o Estado de um objetivo abstrato capaz de dar significado
berdade dos modernos supera, em importância, aquilo que perdemos. Hegel en- expressivo à vida social. Isso porque, sem unidade expressiva, logo nos veríamos per-
contra na cultura grega primitiva uma contradição básica, no sentido de que a vida didos na felicidade hobbesiana, na busca do prazer individual através dos jogos da
grega não dispunha de recursos intelectuais para manter a subjetividade, mas não vida burguesa; nossa vida cotidiana mais como um reflexo de nosso capital. A mo-
podia evitar que ela se tornasse presente. A sociedade só podia progredir ao trazer dernidade transformaria os seres humanos ou em conformistas banais, séiE nç-
a subjetividade à luz, mas, uma vez em vigor, ela perturba o equilíbrio da racionali- rihum sentido de missão pesoa em individuos alienados, incapazes de encon-
dade grega. Ela desintegra seus padrões, e um novo equilíbrio só se torna possível a trarientidopara a vida"'
partir do princípio do eu como um sujeito independente e livre. Essa individuação
deve, contudo, ser bem fundada; deve existir dentro de um estilo de vi,da que impo-
n1riiifei justos à subjetividàde e a harmonize com urna eticidade mais ampla e 25."( ... ) podemos afirmar com absoluta certeza que nada de grandioso no mundo foi conseguido sem
paixão" (Filosofia da história, [63).
institucionalizada Para Hegel, esse é o problema central da existência social. Ele 26.A imagem hegeliana do sujeito social moderno era a do burguês. "O sujeito entrega-se aos prazeres
parece ter receado que o mundo cuja a subjetividade, mas que nenhum estilo devida da mocidade, constrói-se a si próprio com seus desejos e opiniões em harmonia com as relações subsistentes
posa, efetiamente, vir, a acomoda Ia. Sua posição oficial, contudo, éque o...Fstado e com sua racionalidade, penetra a concatenação do mundo e adquire uma atitude apropriada perante ele.
Por mais que tenha lutado contra o mundo ou padecido sob sua tirania, na maioria dos casos ele terwiii.i
moderno, com sua complexa estratificação do agente independente.edaíamiia, jun-
encontrar uma mulher e algum tipo de colocação, casa-se e torna-se um burguês de espírito tão cO
tamente com os mecanismos da sociedade d mercador-a orie-ntação-unive4-W do quanto todos os demais. A mulher cuida dos afazeres domésticos, nascem os filhos, e a esposa adoro li,
de início era única, um anjo, passa a comportar-se como todas as outras esposas; a profissão do hornviii i
consigo trabalho e transtornos, o casamento torna-se fonte de aflições domésticas" (Estélica,
24. Para Hegel, a sociedade grega pré-socrática mostrava harmonia entre a razão, o desejo e a ação. Sócra- 27. Para Hegel, os gregos antigos trabalhavam com idéias substantivas sobre o que
tes acabou com essa harmonia simples ao perguntar "O que é a justiça? Por que obedecer às leis? Qual o senti- bem. As práticas cotidianas reconheciam e referendavam a pessoa de acordo com os papéis
do da vida?" O filósofo grego também subverteu a ordem social ao estimular a reflexão individual. Uma vez em desses papéis na totalidade geral. Porém, conquanto cada papel extraísse seu significado dt' ai Ii .11
movimento, a subjetividade só pode encontrar abrigo em um meio social que permita a consciência individual. operação no todo, ficava aberto à possibilidade de divergência à medida que outros papél'; ii ci .
202 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 203
AVONTADE SOBERANA, OU A NATUREZA desenvolvimento histórico do progressivo desdobramento do espírito moderno, que
DA VONTADE DO SOBERANO a chave para a utilização do poder é a constitucionalidade. Em certo sentido, toma-
mos por base a racionalidade incipiente legada por Hobbes. A imagem hobbesia-
Hegel afirma que a ordem jurídica do Esta1dp$cional compreende três elemen- na é a incoporação do mana à realidade do poder dentro da centralidade da von-
tos: (i) a natureza constitucional da soberania;(ii) a natureza básica do direito como tde qu&é o podTer dôEstdõTHdbbes centraliza aquilo que, sob outros aspectos
conjunto de princípios que buscam a universalidade - cada "idéia" espírito, a qual- 'são as dif vntades de um ordenamento naturalmente caótico da subjetivi-
quer momento, é incipiente e deve ser constantemente trabalhada; (iii) a necessidade dade - para a paz social, sob aspectos cruciais, o que deve contar é a vontade do so-
de comparar os princípios jurídicos com a realidade empírica - a pureza da idéia do d berano, e seu poder transforma essa vontade no elemento organizador do progresso
reito deve defrontar-se com o conhecimento de sua realidade em situações concretas. social. A ausência de uma vontade social operativa em termos gerais - uma vontade
integral - exige que uma vontade única seja produzida e sustentada pela força. Para
Hegel,inversame.atasaciedaftekabaseparaaarticuiaçãoeaconcretização diÇ
Constitucionalidade zõo que só pode ocorrer quando os membros da sociedade estiverem integrados
pg5jto social da razão e com ele e identificarem, não se pode obrig-los, com
O fato de a soberania de Estado ser a afirmação da natureza ideal de todas as auto- êxito, a contrariar o' caminhos a razão Um exemplo disso e a historia da relação
ridades específicas que nele atuam dá origem ao fácil e muito comum mal-entendido senhor-escravo.
de que essa idealização é apenas força e pura arbitrariedade, enquanto a "soberania" é
um sinônimo de "despotismo". Este último, porém, significa qualquer estado de coisas
em que a lei tenha desaparecido e a vontade particular enquanto tal, quer a de um mo- Identidade jurídica e a contingência do moderno:
narca, quer a da plebe (ociocracia), vale como lei ou, mais ainda, assume o lugar da lei; o exemplo da relação senhor—escravo
ao contrário, é apenas no governo legal, constitucional, que a soberania vai ser encon-
trada como elemento essencial da idealização (Philosophy of right, parágrafo 278). A história se fundamenta na dominação do homem pelo homem, fato que o
direito reflete, e as relações entre senhor e escravo manifestam uma divisão de pa-
O Estado constitucional - a legalidade - é a resposta à pergunta "como se pode péis historicamente aceita. Que consciência torna isso possível? Vejamos o que diz
organizar uma modernidade racional?" A liberdade inicial da filosofia moderna pre- Aristóteles:
cisa encontrar reconhecimento empírico e um meio através do qual possa obter re-
sultados. O direito deve ser o meio que reconhece a necessidade racional do espí- ( ... ) existirá alguém que a natureza tenha destinado à condição dé escravo, e para quem tal
rito da humanidade e lhe dá uma res.osta.Hegel, contudo, vai mais além: como ele condição seja justa e vantajosa? Ou não será toda escravidão uma violação da natureza?
argumenta que o .ireito já az isso, pode apresentá-lo como o meio que irá articular Não é difícil responder a esta pergunta com base no raciocínio e nos fatos. O fato
e concretizar essa necessidade racional. Podemos nos dar conta disso quando bus- de que alguns devam mandar e outros obedecer não é só necessário, mas também con-
veniente; desde que nascem, alguns se vêem destinados à escravidão, outros a mandar
camos uma compreensão geral da operacionalidade do direito. Nossa análise do (Aristóteles, Política, 1, 4-5).
- .-
direito deve ser consciente em termos sociais e historicamerffêlituada no conheci-
mento pleno de que o direito atua corno rnediadoid's Aristóteles "confiava" na natureza e estava profundamente inserido na rede de
urna divisão desigual tmos separar legalidade de despotismo e ler, no relações sociais na qual vivia. Não conseguia percebê-las - como fazem os modernos
- em termos de contingência ou construção social, mas via-as como "naturais"".
Quando as sociedades amadurecem, ocorre uma maior diferenciação dos papéis e do conhecimento social;
Contudo, quando os indivíduos se libertam da totalidade da ideologia que configu-
essa divisão pode ser interpretada como desintegraçao e oposição socia, mas e fundamental para o desen-
volvimento de níveis mais altos de conhecimento e perspectivas sociais. Em suma, para o desenvolvimento
do Geist, ou espírito. O indivíduo, porém, pode achar que o desenvolvimento da diferenciação é grande de- 28. Podemos descrever Aristóteles como um pensador que preparou um inventário da ética, lo c leve,
mais para ser compreendido. Enquanto a complexidade da modernidade permite que o indivíduo se afirme res e dos dedos de percepção do mundo grego. Ao contrário de Platão, que era originalmenN , i ii
e comece a escolher uma identidade pessoal para si mesmo (em oposição a uma identidade atribuída), isso Aristóteles tinha sólidas raízes em seu mundo empírico. O "sujeito" deAristótelas não eia Lll'i
pode resultar no colapso da liberdade e na falta de sentido pessoal: a única esperança é que o indivíduo com- cia. A relação "senhor grego"—"escravo bárbaro" não foi um "acidente" no sentido de uui.i r iiç.iu Iii;l,j
preenda que ele só adquire seu reconhecimento enquanto tal ao ser um membro atuante de uma comunida- (e, desse modo, poderia facilmente ter sido uma outra coisa); ao contrário, pareceu como se 1 ,,:; "III ri]",
de mais ampla (ver discussões emTaylor, 1975: 433-6, 487-8; Kolb, 1986: capítulo 2). isto é, nada além do desempenho do papel dos objetivos correspondentes a cada um.
204 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 205
ra o modo de vida socialmente aceito, a "confiança existencial" deixa de existir". ria um modo absolutamente seguro de separar o bem do mal, o moral do imoral.
Isso acontece porque, a despeito da força da imagem dominante do mundo e da na- Nesse caso, o direito não poderia nem garantir a liberdade nem constituir o mecanis-
turalidade dos "papéis" à disposição de todos, existem as percepções sociais anta- mo facilitador de uma modernidade livre.
gônicas e. os conflitos de interesse. A relação senhor-escravo é de domínio e, por mais Também é preciso prover a doutrina do direito de uma consciência histórica que
"natural" que esse domínio possa parecer, o senhor e o escravo ocupam posições nos permita dizer a nós mesmos que estamos progredindo; de outra forma, ela não
sociais distintas que encerram - ao menos potencialmente - um conflito (ver dis- poderá servir de registro dos avanços de nossa criatividade institucional. Portanto,
cussão, Taylor, 1975: 153-7). E, seja qual for a consciência social dominante que le- como Hegel nos assegura, devemos tratar a história como o progresso da razão que
gitime a relação senhor-escravo, existe a possibilidade de ser questionada por outro se torna autoconsciente.
conceito - como o de "igualdade natural". A luz de tais fatos, interpretamos as formas cambiantes do conflito senhor-es-
Como Hegel o descreve, o senhor, o sujeito "superior", desvencilha-se da desa- cravo como o desenvolvimento da consciência da liberdade através da qual a huma-
gradável idéia de igualdade ao atribuir ao "outro" um status inferior e usar o indivíduo nidade se estabelece como um objeto para si própria. Ao interpretar essa situação
"inferior" como um meio para ser bem-sucedido. O escravo é forçado a trabalhar a tangível, testemunhamos não apenas o desenvolvimento histórico da razão, mas
fim de conferir liberdade à subjetividade "superior" de seu senhor. Nesse trabalho, também a inserção real da razão em uma institucionalização normativa dentro da
porém, o "inferior" engaja sua própria subjetividade no mundo do real e desenvol- realidade mundial de dominação e subjugação, de sangue e desespero. Hegel nos
ve uma subjetividade independente da subjetividade de senhor, ainda que a ela vin- assegura que a razão tem três posições no mundo: a linguagem (representação), a luta
culada. O domínio convida à resistência, tanto em termos físicos como intelectuais; (a contenda pela norma de reconhecimento; a esfera da política) e o trabalho (a lida;
o terreno da economia). No início do conflito senhor-escravo, duas posições subjeti-
o conflito resulta no desenvolvimento e na articulação de novas normas de condu- vas contrárias estavam em relação contraditória, ao longo do conflito cada subjetivi-
ta e novas maneiras de perceber a natureza da relação. O escravo nega o domínio dade antagônica suplanta sua particularidade, e tanto a identidade do escravo quan-
do senhor, uma atividade que significa a capacidade de autocriação e exprime a bus- to a do senhor se transformam - cada qual se transforma em um ser humano livre
ca de liberdade que transforma a natureza em cultura. Nós, "modernos", entende- e moderno. Agora, cada um deve assegurar o mútuo (auto-)reconhecimento de cada
mos que a diferença entre escravo e senhor não pode ser encontrada no nível da na- qual como (um) outro, um ser humano real. Isso só se torna possível através da me-
tureza; ao contrário, situa-se na história da institucionalização das relações sociais. diação do direito (moderno), que configura o estado de liberdade e garante direitos
Uma história na qual a história concreta da dominação e da subjugação encontra- modernos ao (antigo) escravo. Ao ser investido de direitos, o escravo deixa o estado
se codificada em categorias sociais legítimas - as leis da sociedade. A busca de liber- de natureza e se converte em uma pessoa moderna; da mesma maneira, o senhor é
dade envolve uma luta contra essas formas de "legitimidade" - contra a doutrina humanizado.
jurídica que atribuía valor intelectual essas instituições sociais. Ao tornar-se "mo-
derna", a doutrina jurídica invalida a razão corporificada nas instituições sociais
pré-modernas - uma luta que é a força constitutiva da liberdade. A história humana é um processo racional que atua através da
Contudo, se essa liberdade converter-se em subjetividade exuberante - se, em irracionalidade dos projetos sociais inconscientes do indivíduo
outras palavras, a modernidade vier a tornar-se apenas uma massa de indivíduos
com suas diferentes perspectivas -, nenhuma liberdade verdadeira será possível. Ne- Em qualquer época, indivíduos e grupos, bem como seus escritos e conceitos,
nhuma liberdade verdadeira seria possível porque não haveria como chegar a um acham-se em uma relação de conflito que impulsiona o desenvolvimento histórico,
acordo sobre o que constituiria os fatos morais da modernidade, e tampouco have- ainda que os indivíduos não estejam, conscientemente, empenhando-se em criar
uma história progressiva. Contudo, através de sua interação e da comunicação social
do conhecimento, bem como a partir de suas lutas diversas e de múltiplas facetas, a
29. "A consciência única e individual, do modo como existe. na ordem ética real ou na nação, é uma razão da modernidade emerge e institucionaliza-se em forma de uma Constituição
confiança sólida e inabalável na qual, para o indivíduo, o Espírito não se decompôs em seus momentos abs- político ~jurídica`.
tratos, e por esse motivo ele não tem consciência de si mesmo como um ser de individualidade pura por sua
própria conta. Contudo, uma vez que tenha chegado a essa idéia, como deve chegar, terá perdido essa uni-
dade imediata com o Espírito, sua confiança. Ao constituir-se desse modo ( ... ) o indivíduo ter-se-á colocado 30. Há um sentido em que Hegel toma a idéia do funcionamento natural subjacente do mundo - Apre-
em oposição às leis e aos costumes. Estes são vistos como meras idéias destituídas de essencialidade absolu- sentada por Hume e Adam Smith .- e trata-a como o progressivo desdobramento da iiz.i. (mtii&I. ii
ta, como teoria abstrata sem vínculos com nenhuma realidade, enquanto ele, como esse "eu" particular, é sua quanto Smith funda uma tradição política na qual essa racionalidade deve - absolutarro'iihe ],,v(, lei seu
própria verdade viva" (Phenomenologij of Spirit, 1977: 259). desenvolvimento delegado à mão oculta da natureza (cuja mais alta expressão a moocul do mercado),
206 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 207
O direito é o instrumento que ao mesmo tempo registra esse avanço ético da tornando conhecidos. O funcionamento das instituições do Estado oferece "a base
humanidade concreta e estrutura as condições para a etapa seguinte. As ativida- sólida não apenas do Estado, mas também da confiança e dos sentimentos que o
des das autoridades de Estado, a realidade viva da Constituição e o funcionamen- cidadão por ele nutre. São os pilares da liberdade pública, uma vez que através de-
to do sistema jurídico configuram uma série de pontos de referência institucionais les a liberdade particular é real e racional" (Philosophy of Right, parágrafo 265). Li-
para a identidade coletiva e individual e a formação da vontade. O desenvolvi- ções universais são extraídas da particularidade dos conflitos sociais. Através des-
mento do sistema jurídico deve ter a função de desenvolvimento da representação sa história de conflito social e da concretização da interdependência do particular
da humanidade. e do geral, do individual e do social, o Estado se "educa" e cria instituições que
"concretizam" a racionalidade. Através da análise rigorosa de suas leis, de seu de-
senvolvimento e das conseqüências sociais dessas leis, o Estado adquire consciên-
As particularidades do desenvolvimento jurídico cia de seu funcionamento e se abstém de servir somente aos interesses privados
ou ao capital investido.
Princípio - plano de existência -, o direito é uma essência oculta que, enquanto tal
e por mais verdadeiro em si mesmo, não é completamente real (Philosophy of Right). A realidade abstrata ou a substancialídade do Estado consiste no fato de que seu
objetivo é o interesse universal enquanto tal e a conservação dos interesses particula-
Em qualquer época, o direito é um fenômeno ao mesmo tempo presente e ocul- res, uma vez que o interesse universal é a substância destes ( ... ). [O Estado] funciona e
to. E sempre uma possibilidade, uma potencialidade que surge através do esforço atua com referência a objetivos conscientemente adotados, princípios conhecidos e leis
humano. O direito surge através da vontade, através da paixão humana de dar rea- que não são meramente implícitas, mas têm presença concreta na consciência; além
lidade concreta aos princípios`. A paixão individual do agente legal deve fundir-se disso, o Estado atua com conhecimento preciso das condições e circunstâncias existen-
ao dever, à apreciação ética de sua tarefa. O agente —juiz, advogado - não pode fu- tes, uma vez que seus atos são pertinentes a elas (Philosophy of Right, parágrafo 270).
gir a seus desejos e objetivos pessoais, mas estes precisam fundir-se a concepções
de justiça e dever para poderem transcender o desejo arbitrário`. Acima de tudo, pre-
cisamos ver o direito como um "todo" - a particularidade de qualquer lei e qual- A ambição do direito
quer sentença é uma expressão do DIREITO à medida que este se depura ao longo
da progressão dialética (histórica) da racionalidade da natureza humana. O que impulsiona o direito é uma ambição: a ambição de introduzir "o prin-
cípio do ser e do conhecimento racionais na racionalidade do justo é do direito".
O direito é o instrumento através do qual o homem expressa sua vontade - uma
Qual a direção do direito? vontade social -, mas as leis só podem ser racionais quando se recusarem a ser
meramente uma questão de simples fatos ou um instrumento vazio da(s) von-
O desenvolvimento jurídico em sua totalidade é o Estado em busca dos inte- tade(s) caótica(s) ou arbitrária(s) dos poderosos. Hegel nos diz (romanticamen-
resses universais da humanidade à medida que tais interesses vão aos poucos se te) que o direito se libertou de sua positividade meramente arbitrária, recusou a
barbárie e se pôs a serviço da verdade, enquanto o conhecimento deixou de es-
tar preso a preocupações extraterrestres e passou a concentrar-se na realidade
Hegel replica que devemos nos encarregar desse processo e assegurar que as interações reconheçam a ação do mundo`. Em resultado, o sistema jurídico passou a expressar o desenvolvi-
significativa. Por sua vez, o liberalismo terá dúvidas quanto a qualquer esquema dominante de interpretação
histórica que, a partir da perspectiva de uma visão total, afirme discernir a verdadeira base significativa para mento da razão social - é o caminho pelo qual o mundo ideal se transforma no
a comunidade humana. mundo real. Hegel então exorta o agente legal a sonhar o sonho pleno das luzes,
3:1. Em linguagem surpreendentemente semelhante ao discurso da integridade jurídica invocado por no qual o mundo se torna passível de conhecimento, e a ir em busca da recon-
Ronald Dworkin quase dois séculos depois (ver capítulo 15 deste livro), Hegel argumenta que é "direito ab- ciliação racional dos interesses universais e particulares através do foro da "etici-
soluto da existência pessoal obter satisfação em sua atividade e seu trabalho. Se se pressupõe que o homem
deva interessar-se por alguma coisa, ele deve participar de sua existência aí envolvida; ter sua individualida-
dade" do direito.
de gratificada por sua realização" (Philosophy of History, 163).
32. "Os objetivos que os agentes se estabelecem são limitados e especiais (...) mas em sua racionalida-
de] o significado geral de seus desejos interliga-se a considerações gerais e essenciais sobre a justiça, o bem, 33. "O domínio dos fatos descartou a barbárie e as veleidades injustas, enquanto o domínio r!, iifa
o dever etc., pois o mero desejo, a vontade em suas formas grosseiras e selvagens, não pertence à cena e à de abandonou o mundo do além e sua força arbitrária, de modo que a verdaclr'ira reconcIlhto, Cjuw 1
esfera da história universal" (Philosophy of Histonj, 166). Estado como imagem e realidade da razão, tornou-se objetiva" (Philosophy of Right, parágrafo 360),
208 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 209
O PAPEL SOCIAL E OS LIMItES DO CONHECIMENTO MODERNO do próprio homem, vivo em seu mundo real. O problema fundamental é a incapa-
cidade de o homem encontrar-se neste mundo; sua alienação da existência. O ob-
Na modernidade, o homem concorda em seguir, sem hesitar, pelo caminho em jetivo da filosofia não deve ser o conhecimento particular, mas o conhecimento da
.que for conduzido pelo conhecimento. O conhecimento toma possíveis tanto o bem totalidade - em suma, o estado de completa sabedoria".
quanto o mal. Antes de passar a conhecer - como vemos no relato bíblico da queda
do Jardim do Éden —, a humanidade não podia fazer nem o bem nem o mal.
A DIALÉTICA DA MODERNIDADE: AÇÃO,
O que [a queda] realmente significa é que a humanidade elevou-se ao conhecimen- ESPERANÇA E DESTRUIÇÃO
to do bem e do mal; e esse conhecimento, essa distinção, constitui a fonte do próprio
mal. O ser mau situa-se no ato de reconhecimento, na consciência (Lectures on the Phi- O avanço do conhecimento serve de modelo para o desenvolvimento social.
losophy ofReligion [Lições sobre a filosofia da religião]), III: 301). Portanto, Hegel nos assegura que podemos tomar a ciência como nosso modelo. O
erro da tradição medieval — uma tradição na qual a religião definia o que era racional,
Só podemos conhecer o pecado através do conhecimento; portanto, só pode- real e verdadeiro — converteu-se na verdade de hoje. Da mesma maneira, na esfera
mos conhecer a verdadeira salvação através do conhecimento. Esse conhecimento do ético só podemos julgar o verdadeiramente justo no fim da história". O mal pode
não deve ser negativo, nem uma percepção daquilo que não conhecemos, ou da rea- transformar-se no bem e o pecado pode ser perdoado, pois, se for bem-sucedido, irá
lidade intransponível do mistério, mas sim a confiança plena na consumação do Es- tornar-se a nova ordem, irá converter-se no real, no racional, na estrutura do bem. O
pírito Absoluto, ou a chegada àquela etapa em que desfrutamos de autoconfiança bem futuro é sempre alguma coisa que transcende a estrutura do bem do presente.
A revolução deve ser sempre temida, mas é também a portadora do bem (futuro).
e capacidade de reflexão plenas.
Por outro lado, o contrato social e a defesa da soberania hobbesianos constroem-
se através do conhecimento de nossa fragilidade; o soberano torna possíveis as con- 34. Não precisamos nos debruçar sobre os textos complicados e freqüentemente obscuros .nos quais
dições nas quais nossa busca do bem-estar equivale a nossa busca da "felicidade". Em Hegel tenta desenvolver essas idéias. É.suficiente dizer que Hegel chama nossa atenção para características
última instância, buscamos a felicidade através do mercado protegido pio direito ci- diversas e talvez paradoxais - do impulso para o conhecimento total; especificamente: (i) as origens irra-
vil e criminal. Por trás do direito encontra-se o poder absoluto que é necessário para cionais da razão, ou as origens injustas do justo; (ii) a dialética da destruição..e construção: todas as épocas
são a dialética do desejo de liberdade e o terrorismo da destruição do presente; a inevitabilidade da relação
nos salvar de nossa fraqueza e da morte. Como, porém, seremos legitimados a viver? amigo—outro nas questões humanas. O outro - o inimigo, o erro, o• imprevisto, ainda-por-ser — é o oposto do
Hegel é claro: devemos criar um conhecimento capaz de reconhecer nossa to- mesmo — o amigo, a conformação, a repetição, o redescoberto, o similar; (iv) a pergunta constante: como va-
talidade social. mos conceber a totalidade da existência? O fundamental é a apresentação do Deus como ele é em seu ser
De que modo, porém, se faz possível essa representação total? Hegel volta-se eterno antes, da criação da. natureza e como um espírito infinito.. Contudo, se a base da busca do conheci-
mento era.a irracionalidade do mito, transformado em fé em Deus, então a trajetória do conhecimento mo-
para o desejo na base da religião, perguntando-se ao que irá assemelhar-se a nos- derno é à fé no alcance absoluto da soma do(s) conhecimento(s) do homem. E isso é perigoso, pois o que
sa ciência — na verdade, a totalidade de nossa(s) ciência(s) — se convertermos o espí- aconteceria se viéssemos a perder essa fé — como muitos afirmariam que é o que nos mostra a condição pós-
rito da religião — Deus — em um espírito que impregna este mundo? Se, em vez de moderna? Surge, então, a ameaça do niilismo. Se perdermos nossa fé na possibilidade de a humanidade che-
sonhar o sonho religioso da escatologia do Juízo Final, um observador todo-podero- gar ao conhecimento pleno da eternidade, por que então acreditar em qualquer coisa? Que dizer, então, do
projeto de construcionismo social? Pois, como Hegel o definiu, o objetivo da política, da literatura e da luta é
so que adquirisse o conhecimento pleno de nossas fraquezas e projetos humanos a.criação e a reprodução de uma ordem normativa estável que facilite a universalização da individualidade
— o Deus que está acima deste mundo —, convertêssemos a idéia do que é certo e er- social.— um individualismo ético que deve a verdade de sua (legítima) existência a sua particularidade indi
rado, justo e injusto, presente e futuro, imanente e transcendente, em subconceitos visível de um todo social. Um todo cuja legitimidade funda-se sobre a garatitia do conhecimento toti 1. 1 rn
de um conhecimento humano da totalidade da existência humana. Contudo, ainda outras palavras, para Hegel o que impede o niilismo não é o fato de que Deus continua a existir, mas q
humanos, não seremos afetados pela morte de Deus, uma vez que o homem sempre desejou ser
que criássemos um entendimento filosófico que funcionasse desse modo, o que iria direito moderno será o instrumento através do qual a criação de Deus irá transformar-se no b ri i '
garantir a efetiva coincidência da totalidade do que acontece, da história, do conhe- reito (humano). Mas isto deve - absolutamente deve -ser preservado da imaginação instit ii 1 dLi
cimento humano e de nossa conquista da "verdadeira" felicidade existencial? positivhade; devemos acreditar no sonho da totalidade ética -no direito que se toma puro t si '. '•.l
Nada além, talvez, do desejo de acreditar no projeto da modernidade. Em cer- de "respostas certas" às questões jurídicas e éticas.
35. Uma vez que tudo que é real é racional, e tudo que existe é natural, então tul,i IJH
to sentido, Hegel está dizendo que todos os esforços da tradição medieval estavam porquanto existe. Toda ação deve, por sua própria natureza, perturbar o que tem exisl('n,ii iii
certos, mas que o objetivo estava errado. A teologia cristã estava certa desde que a modo, deve contrariar o bem do presente. Nesse sentido, portanto, toda ação é má ou
interpretemos não como a busca de um Deus transcendental e imaginário, mas sim mos uma linguagem cristã).
210 Filosofia do direito De Rousseau a Hegel 211
Os críticos assinalam a falta de qualquer encorajamento, da parte de Hegel, de CONCLUSÃO: HEGEL E O SONHO DE UMA MODERNIDADE PLENA
um amplo debate público sobre o funcionamento do Estado. Uma vez que se exige
que o Estado siga a razão, a mera opinião popular equivale a um desvio do que real- Hegel oferece um sonho filosófico em que o objetivo da liberdade moderna con-
mente interessa. Enquanto a liberdade de expressão estiver assegurada, o fato de que siste em alcançar um estado de total conhecimento e reconciliação das tensões hu-
a Constituição é racional, o governo é estável e as discussões políticas são tornadas manas. O direito é, ao mesmo tempo, o veículo de construção social - a estruturação
públicas é tomado como garantia de que o Estado se preocupa com o interesse pú- da solução de conflitos - e o artefato por meio do qual a humanidade da racionali-
blico e que, desse modo, o que os cidadãos dizem não tem muita importância (ver dade moderna se expressa. Por conseqüência, Hegel nos adverte de que se a lei per-
Philosophy of Right, parágrafo 31.9). desse seu sentido e passasse a ser visto como nada além de um instrumento vazio,
Como pode o cidadão comum ter certeza de que o Estado é, de fato, racional, e a era moderna perderia seu espírito. A modernidade precisa levar em consideração
que, ao concordar com a ordem jurídica, ele está "desejando o universal à luz do não apenas os seus objetivos, mas também os seus meios. Se o direito é o instru-
universal", e não sendo enganado ao concordar com leis cujo único objetivo é a pro- mento do poder - como no legado de Hobbes -, o que irá desejar o poder? De que
moção de interesses pessoais? Ainda que ele possa acompanhar as discussões polí- serve o contrato? A mera sobrevivência não é o bastante, e precisamos transcender
ticas, sua confiança na racionalidade de todo o sistema repousa em bases não-racio- a possibilidade da individualidade desmedida.
nais. A religião e o patriotismo servem de bases reais. Nessa narrativa, a história é a luta da racionalidade humana intersubjetiva -
atos da vontade humana - no sentido de se criar um todo social: a totalidade do
A garantia da Constituição ( ... ) encontra-se no espírito de todo o povo, isto é, no Geíst, a mente. A história é o progresso da consciência humana à medida que esta
modo determinado (diferenciado e estruturado) em que este tem a autoconsciência de trava as lutas dialéticas de seu tempo. A Constituição moderna é ao mesmo tempo
sua razão. A religião é essa consciência em sua substancialidade absoluta (Encyclo pedia, jurídica e não-jurídica. A constituição da entidade social moderna repousa sobre a
parágrafo 540).
O sentimento político, o patriotismo puro e simples, é como uma convicção que estrutura do direito, mas o direito é a mediação, o ato de pôr em relação as subje-
tem por base a verdade (..) e uma vontade que se tornou habitual. ( ...) em geral, a con- tividades dos seres humanos concretos. E, à medida que a modernidade se desen-
fiança ( ... ) ou a consciência de que meu interesse está contido e preservado no interes- volve, perde qualquer abonador transcendental - Deus desaparece e passa a ser
se e na finalidade do Estado (Philosophy of Right, parágrafo 268). substituído pelo desejo humano. A não ser a racionalidade humana, não pode ha-
ver absolutamente nada a fundamentar o "direito natural". Os efeitos são dramá-
Como, porém, podemos estar convencidos de que essa consciência mais pro- ticos - o que, por exemplo, assegura que o Estado justo pode ser alcançado? Como
funda - essa proteção contra a mera opinião popular - é comum, racional e capaz poderíamos estar certos de conseguir reconhecê-lo como tal? O homem moderno
de fornecer uma base real? O que impede que seja apenas outro interesse particu- perde a capacidade de transcender o imanente na busca da pureza do puro ou na-
lar mascarado de universal? O que impede que o populacho se submeta fielmente turalmente "justo", em referência ao qual deseja livrar o direito daquilo que consi-
a leis que provêm de um estado de (in)consciência meramente habitual? Em última dera injusto. Pouco surpreende que o positivismo jurídico passasse a dominar o
análise, o esquema de Hegel não oferece garantias contra a falsa consciência. O ci- pensamento da teoria jurídica a partir de meados do século XIX, uma vez que, com
dadão não tem como saber se o Estado é realmente racional; pode apenas confiar
em tal racionalidade35 . gado hegeliano, porém, trata-se de uma concepção simplista da liberdade; eles querem saber por que prefi-
ro ver x e não y, por que desejo comprar certos produtos e não outros. Talvez pensem que estou sendo ma-
nipulado, que minhas preferências, em vez de serem "minhas mesmo", são o resultado de campanhas publl
36. Os liberais afirmam que a filosofia de Hegel leva a um Estado que é um todo único e orgânico e citárias, de outras pessoas que formam minha opinião. Tomo-me um escravo da moda. E, se fui manipulado,
pretende comportar-se racionalmente e ordenar todas as coisas racionalmente, mas que não pode permitir a não sou livre. Para saber que sou livre, a partir dessa perspectiva, é preciso saber não apenas. que posso fazer
operação do empreendimento, da iniciativa, excentricidade ou dissensão individuais, coisas que se oporiam o que preferir, mas por que motivo prefiro o que faço. Minhas preferências são racionais?
continuamente ao planejamento racional. Torna-se intolerante à iniciativa individual e, desse modo, de con- Para Hegel, a liberdade seria mais do que a capacidade de satisfazer meus desejos e caprirli .. de sa-
figuração totalitária - o oposto da liberdade (individual). Hegel não se opunha à liberdade individual, mas tisfazerdesejos que outros me induziram a ter para que possam me vender alguma coisa. A Ilbeu 1,1con-
sua concepção da liberdade era diferente da concepção liberal. Consideremos a idéia de liberdade na esfera sistirá em minha realização enquanto indivíduo racional.
econômica, no mercado. A concepção liberal defende a liberdade no sentido de o povo poder agir como lhe Contudo, quem poderá saber quais são as necessidades reais, e quando o desejo é verd. II II tiL co-
parece melhor, seguindo suas preferências. A escolha de programas a assistir ou de conceitos de obscenida- nhecido? Será possível superar o abismo entre razão e desejo, ou entre moralidade e mi........;;:1? Po-
de, por exemplo, são questões de preferência. O indivíduo é livre quando não o impedem de ver o que dese- deremos construir uma síntese social que nos permita criar uma sociedade harmflnica 11 .IlII o iive da
ja. Isso é tudo que o economista liberal precisa saber para decidir se alguém é livre. Para os seguidores do la- natureza humana possam conciliar-se? 0 liberal prefere dizer que não, que a imagem toda é su'ita.
212 Filosofia do direito
a modernidade, todo direito que se postula como direito torna-se real, torna-se di- Capítulo 8
reito propriamente dito. Quando a consciência jurídica - em sua crítica do direito Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart MUI:
natural - torna-se uma forma incipiente de positivismo jurídico, a capacidade de o desenvolvimento inicial de uma base utilitarista para o direito
distinguir o direito justo do injusto não é inerente à capacidade de reconhecer o di-
reito, mas passa para a esfera da capacidade de dizer o que o direito deve (vir a) ser.
Isso, porém, pode significar que, com a modernidade, o direito é apenas um instru-
mento do poder; ou, em termos nietzschianos, quando Deus desaparece, quando
perdemos toda idéia teleológica, a questão da justiça transforma-se numa batalha
entre diferentes vontades de poder. A vontade de inscrever na positividade do di-
reito as "obrigações morais" que nos são apresentadas pelos intelectuais - aqueles
que criam e controlam as idéias da filosofia do direito. O direito torna-se, então, o I. INDÚSTRIA, CAPITALISMO E A JUSTIÇA DA MÃO OCULTA DO
instrumento dos sonhos? Nos sonhos do profeta filosófico, seremos nós - os sujei- MERCADO: A OBRA DE ADAM SMITH
tos dos intelectuais da modernidade - instados a criar a partir de imagens de po-
tencialidade? O barro grosseiro de que é feita grande parte da humanidade não pode ser molda-
Quando o direito natural desaparece, a lei não pode mais ser interpretada como do (.... , à perfeição. Poucos homens, porém, através da disciplina, da educação e do exem-
uma declaração da natureza sobre o que deveria ser; pode apenas estipular o que a plo, talvez não se deixem impressionar a tal ponto, no que diz respeito às regras gerais,
natureza deveria ser. O direito pode moldar nossa natureza, nosso mundo social e que não as observem em quase toda ocasião, com tolerável decência, e ao longo de toda
sua vida, de modo que evite qualquer grau considerável de reprovação (Smith: The
nosso ser socialmente construído, mas o moderno torna-se uma contingência.
Theory of Moral Sentiments [Teoria dos sentimentos morais], 1976, 111 5.1).
As perguntas clássicas: quem sou? o que sou? voltam a ser feitas. Porém, se a
natureza não nos enredar em suas leis, essas perguntas se transformam em "quem Assim como todo indivíduo ( ... ) se empenha ao máximo tanto em empregar seu
devo tomar-me?" e "em que devo converter-me?". Na concepção clássica de Platão capital no cuidado dos negócios domésticos, e em dirigi-lo de tal modo que seus frutos
sejam o mais valiosos possível, todo indivíduo se esforça, necessariamente, por elevar
e Aristóteles, o direito deveria permitir que consumássemos nossos papéis e obje- ao máximo a receita anual da sociedade. Na verdade, em geral ele nem pretende pro-
tivos naturais até que, ao fim e ao cabo, morrêssemos honradamente. Por sua vez, mover o interesse público, nem sabe em que medida o está promovendo. ( ... ) Tem em vis-
Hobbes associou o direito ao medo; o medo da destruição. Agora, Hegel pede que ta somente o seu próprio lucro, e nesse caso, como em muitos outros, uma mão invisível
nos livremos do medo que subjaz ao liberalismo para podermos vir a ser; devemos leva-o a lutar por um objetivo que não estava entre suas intenções (Smith, An Inquiry into
nos associar ao movimento espiritual da história do mundo. Devemos sonhar com the Nature and Causes of the Wealth ofNatíons [Investigação sobre a natureza e as cau-
a grandeza de nossa própria razão e, ao vivê-Ia, engrandecer nossa dimensão hu- sas da riqueza das nações], 1970: 456).
mana. Ou, em termos mais hegelianos, devemos opor, dialeticamente, o pesadelo in-
dividualista ao sonho da unidade plena. Devemos acreditar que a única razão pela
qual o medo do caos social existe em nós é o fato de podermos sonhar o sonho da O ENTENDIMENTO DO FUNDAMENTO MORAL DA PROPOSTA
DE ADAM SMITH DA MÃO OCULTA DO MERCADO
totalidade de uma modernidade expressiva na qual nos tornamos o que sonhamos
ser para podermos, então, conhecer aquilo em que nos convertemos. Teremos, as- O escocês Adam Smith' costuma ser satirizado como a figura paterna do capita-
sim, um estilo de vida que expressa a verdade de nossa natureza livre, porém comu-
nitária, naquela cidade que a eticidade do direito tornou possível. lismo laissez-faire. Tido como defensor do egoísmo como fio condutor das ações hu-
1. Adam Smith (1723-1790) é considerado como um dos mais influentes economistas .pol(tiu;
mundo ocidental, mas na verdade ganhava a vida como filósofo moral e professor de filosofia juró liii N
cido em Kirkcaldy, na Escócia, Smith foi para a Universidade de Glasgow em 1737, onde foi i ii ii
Hutchçson. Estudou e trabalhou no Balliol College, em Oxford, por sete anos a partir de 1111), 1 ri. ti
Kirkcaldy em seguida. Em 1748, mudou para Edimburgo, onde tornou-se um bom amigo le 1 ).r\H 1
lorde Kames. Foi admitido como professor de lógica na Universidade de Glasgow em 1 1, i 1,!!!!
guinte trocou a cadeira de lógica pela de filosofia moral, onde permaneceu por des ti,,?. i , I?i.V,t
que tratasse de questões de teologia natural, ética, direito e governo. A Teoria dos Seu! '/eu/e nui'it nt
senvolvida a partir de seus cursos e publicada em 1759; teve seis edições até 1790. A ul??,, liii I'tiit r''liidti
214 Filosofia do direito Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Miii 215
manas, Smith é muito lembrado por argumentar que as relações sociais devem, em O interesse pessoal é o motivo dominante por trás da atividade econômica.
grande parte, ficar a cargo da mão oculta do mercado livre, dos resultados de incon- "Todo indivíduo empenha-se continuamente por encontrar o emprego mais vantajo-
táveis interações de indivíduos egoístas e interesseiros - as verdadeiras entidades so para qualquer capital de que disponha." O capital é empregado com maior van-
ontológicas da (não-)sociedade. Isso não passa de uma grosseira simplificação. Em- tagem na produção e venda de bens que satisfaçam as maiores necessidades de um
bora esteja longe de ser um perfeccionista social, Smith tenta desenvolver uma teo- povo. O capitalista é involuntariamente levado a trabalhar para satisfazer essas ne-
ria empiricamente baseada em seu modo de entender a condição humana, que une cessidades sociais, pois, ainda que busque o próprio lucro, contribui para o bem-es-
o interesse individual ao interesse social de modo que gere o desenvolvimento de tar geral: "uma mão invisível leva-o a lutar por um objetivo que não estava entre suas
uma perspectiva de progresso marcada pela orientação política. intenções". O bem-estar geral - avaliado como o aumento dos bens de consumo e,
Smith é famoso por duas obras: The Theory of Moral Sentiments [Teoria dos senti- desse modo, como a satisfação pelo seu uso - será mais bem atendido ao se permi-
mentos morais] ([1759] 1976) e An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of tir que cada pessoa persiga seus próprios interesses.
Nations [Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações] ([1776] A imagem de Smith da mão oculta do mercado não é um fenômeno associal.
1970). Na primeira, que se funda sobre o conceito de solidariedade como faculdade Smith adota uma teoria da interação humana e um papel para o direito que estabe-
humana geral, a idéia do "espectador imparcial" oferece um mecanismo para se ava- lece as condições para que a economia de A riqueza das nações funcione. Ele já ha-
liar a justiça das transações. Enquanto essa obra parecia oferecer uma análise daqui- via especificado esses fatores na Teoria dos sentimentos morais. A busca implacável da
lo que sancionava os vínculos sociais, A riqueza das nações, com suas idéias-chave so- satisfação do interesse pessoal (ou do amor-próprio, como na verdade Smith o cha-
bre a divisão do trabalho e a natureza egoísta do ser humano, parecia enfatizar uma mava) é controlada pelos mesmos fatores que nos oferecem solidariedade social; em
preocupação contrastante, isto é, o modo como uma sociedade pode tornar-se rica particular, Smith depura a noção de solidariedade que, como indicara David Hume,
em termos de bens de consumo'. constituía a base da psicologia moral`. Todos nós compartilhamos "um sentimento
O crescimento econômico só é possível quando algumas pessoas em uma so- comum que nos liga a todo homem simplesmente porque ele é nosso semelhante"
ciedade possuem um suprimento de matérias-primas ou de bens manufaturados (1976: 90). O desejo egoísta não é o motivo dominante da ação: aquilo que podemos
maior do que o necessário para satisfazer suas necessidades imediatas; esse estoque chamar de egoísmo é na verdade diferenciado por Smith como a forma de amor-pró-
excedente oferece a oportunidade de comércio entre pessoas com graus variáveis prio que resulta em dano ou descaso para com os demais. Os seres humanos são
de necessidades. Uma pessoa começará a especializar-se na produção de um certo criaturas voltadas para os próprios interesses; como Smith deixa claro na Teoria dos
produto quando a demanda deste for grande o bastante para assegurar ao produtor sentimentos morais (VII ii 3.16,1976: 304), toda virtude implica uma "louvável" aten-
que suas outras necessidades podem ser supridas em troca da produção desse pro- ção por "nossa felicidade e interesse pessoais", mas essa atenção é atenuada pela
duto. Inicia-se uma divisão do trabalho que irá se desenvolver até que alguns tra- solidariedade'. E este o conceito-chave para Smith. Como funciona?
balhadores só estejam produzindo uma parte muito pequena de um produto manu-
faturado. Essa especialização mínima aumenta a produtividade e dá início à produ-
ção em massa. 3. Muitos críticos consideram que os dois livros nos conduzem por duas direções opostas: a filosofia ju-
rídica da Teoria dos sentimentos morais enfatiza o papel da dependência recíproca como se esta fosse a força
aglutinadora da solidariedade social, enquanto a Riqueza das nações parece enfatizar a ação individualista e o
interesse pessoal como motores da interação social e do desenvolvimento social. Alguns críticos, como H. T.
na Inglaterra (ver comentários feitos por David Hume em Carta a Smith, citados em Raphae], 1985: 16-7), e
levou o padrasto do jovem duque de Buccleuch a convidar Smith para ser tutor deste, prometendo-lhe uma Buckle, no século xix, reconciliaram ambas as posições ao afirmarem que Smith estava lidando com doir s_
pectos da natureza humana: o solidário e o egoísta. Outros afirmaram que o Adam Smith da Teoria t/n;
pensão vitalícia. Smith renunciou a seu cargo de professor em Glasgow para assumir esse novo posto, que
exigia que viajasse pela Europa durante dois anos. Quando deixou de ser tutor do duque, Smith voltou para timentos morais era um idealista, enquanto o da Riqueza das nações revela uma tendência mais realist;t. ( ) II
Kirkcaldy e ali, recluso, passou dez anos escrevendo A riqueza das nações, obra que, publicada em 1776, cons- ticos exageraram a diferença entre os dois textos. Ambos apresentam um relato sociológico ou ei' 11Í1•itI tia
titui a base de sua permanente reputação. características que, para Smith, estruturavam a condição humana. Na Teoria dos sentimentos mor i,
2. Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações mistura uma descrição das reais ginação e solidariedade são os mecanismos funcionais da socialização, enquanto naRiqueaa das naçõe .' irri-
condições da manufatura e do comércio na época de Smith, e uma história da economia européia, com reco- te divisão do trabalho leva à dependência mútua.
mendações políticas. Smith é extremamente crítico do mercantilismo, com sua crença em que dinheiro é ri- 4. A maior parte da Teoria dos sentimentos morais é uma exposição de psicologia moral. Smii h 1 ]Ia-
queza, e que a melhor política econômica para um país é a retenção, dentro de suas fronteiras, do máximo menta sua exposição da filosofia moral numa discussão da natureza humana ou da psicologia empíru,i. Dei -
possível de ouro e prata. Ao contrário, ele define a riqueza em termos de bens de consumo, e considera como ceita-chave de sua psicologia moral a solidariedade, nosso sentimento solidário diante de dvtiio,,;i II: 'es
país mais rico aquele que ou produz ele próprio, ou pode importar de outros, a maior quantidade possível de de ira ou afeição de uma outra pessoa: "Seja qual for o sentimento provocado por qualquer II ii liii pes-
bens de consumo. soa em questão, no íntimo de qualquer espectador atento surge uma emoção análoga diante da situação dela,"
216 Filosofia do direito Adain Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Miii 217
O DESENVOLVIMENTO DA IDÉIA DE SOLIDARIEDADE que esses sentimentos nos sugerem uma idéia geral de algum bem ou mal que se
abateu sobre a pessoa observada. Saudamos o indivíduo que venceu os 100 metros
A solidariedade não é nem a apreensão absoluta e intuitiva do que é justo (como olímpicos e compartilhamos sua alegria, ou ficamos desapontados com o evidente
se proposta por uma concepção divina da essência da natureza humana), nem emo- pesar de nosso representante, que ficou aquém da marca, porque compartilhamos
tividade subjetiva; ao contrário, trata-se de um conceito que remete à reconstrução um certo conhecimento da natureza da proeza tentada e da emoção nela envolvida.
racional a que Smith submete nosso interesse inteligente e reflexivo, tendo em vista a Além do mais, podemos nos enganar quanto à causa de algumas paixões e ficar
compreensão dos sentimentos que experimentamos ao nos engajarmos nas relações aborrecidos até compreendermos suas causas, quando então podemos mudar radi-
sociais. Solidariedade é a capacidade natural que uma pessoa tem de participar (em calmente de atitude. Smith argumenta que a solidariedade não provém tanto do fato
sua imaginação) dos sentimentos dos outros. Por exemplo, freqüentemente com- de presenciarmos paixões ou emoções; sua origem remete mais a nossa observação
partilhamos da alegria ou tristeza dos competidores em um evento esportivo, ou ponderada da situação que a provocou, e Smith reforça esse ponto de vista ao obser-
ficamos contrariados com o sofrimento de uma outra pessoa; ao fazê-lo, experimen- var que às vezes sentimos por outra pessoa uma afeição que ela parece ser totalmen-
tamos prazer ou dor semelhantes ao que o outro sentiu. As emoções que sentimos te incapaz de experimentar, como quando nos sentimos constrangidos diante d
enquanto espectadores não é igual ao(s) sentimento(s) da(s) pessoa(s) diretamen- comportamento grosseiro de alguém apesar do fato de tal pessoa não se dar conta
te envolvida(s), mas em nossa condição de espectadores podemos comparar nossas da impropriedade de seu comportamento. Assim, enquanto Smith afirma que a so-
próprias reações (solidárias) a uma determinada situação com os sentimentos da- lidariedade é a base de nosso julgamento tanto da propriedade quanto do mérito
queles diretamente envolvidos. Podemos achar que há uma "perfeita coincidência" dos sentimentos de outras pessoas quanto dos sentimentos e ações que a elas se se-
entre nossa reação solidária e o sentimento original da pessoa em questão; se assim guem, o que está em jogo é um processo complexo. As paixões da pessoa principal
for, sugere Smith, então aceitamos com aprovação os sentimentos do participante', só parecerão justas e apropriadas ao espectador quando estiverem em perfeita con-
julgando-os certos e apropriados: sonância com as emoções solidárias deste.
Assim como Hume, Smith acreditava que as pessoas deviam fazer-se continua-
( ...) no sentimento de aprovação há duas coisas a assinalar; primeiro, a paixão* solidá- mente perguntas sobre sua vida e a natureza de seus atos. Como podemos adqui-
ria do espectador, e, segundo, a emoção que nele surge ao observar a perfeita coincidên- rir uma boa impressão de nossa própria conduta? Smith pensava que só podíamos
cia entre a paixão solidária em si própria e a paixão original na pessoa diretamente en- ser imparciais se olhássemos para nosso próprio comportamento como se se tratas-
volvida. Esta última emoção, em que consiste propriamente o sentimento de aprovação, se do de uma outra pessoa. Desse modo, podemos julgar-nos a partir do mesmo
é sempre agradável e prazerosa. A outra pode ser agradável ou desagradável, de acordo ponto de vista utilizado para julgar os outros, e nossa aprovação ou desaprovação de
com a natureza da paixão original.
nossa conduta vai depender do fato de podermos ou não nos sentir solidários com
os sentimentos dos quais provêm nossas ações. A consciência, "o juiz dentro de nós",
Não se trata de mera emotividade. Sem dúvida, podemos às vezes nos deixar
nos permite fazer uma comparação apropriada entre nossos próprios interesses e
comover pela simples percepção de uma grande alegria ou tristeza por parte de al-
os interesses dos outros. Com sua ajuda, podemos abordar o ideal do homem de
gum estranho que se encontra em condições sobre as quais temos pouco conheci-
perfeita virtude, aquele que possui tanto o domínio de seus próprios sentimentos
mento. Na verdade, porém, Smith está se referindo ao despertar de emoções em um
quanto sensibilidade diante dos sentimentos alheios.
campo interpretativo das experiências cotidianas. Os sentimentos solidários não pro-
As regras gerais sobre o que é apropriado na conduta humana nos oferecem di-
vêm da simples observação de determinada emoção em outra pessoa, mas o pesar
retrizes. Devidamente fundamentadas, isto é, operando a partir dos fundamentos de
ou a alegria que testemunhamos desperta em nós sentimentos parecidos, uma vez
uma teoria jurídica natural, essas regras têm sua base no sentimento que ccrtO ti-
pos de comportamento evocam, e nosso próprio respeito pelas regras deve partir da
5. "O homem cuja solidariedade faz eco a meu sofrimento não pode senão admitir a justeza de meu correspondência entre elas e nossos próprios sentimentos ao observarmos a con-
pesar. Aquele que admira o mesmo poema ou o mesmo quadro, e admira-os exatamente como eu faço, deve duta dos outros. Smith enfatiza que as regras são generalizações prov(,iiirntes d'
por certo admitir o acerto de minha admiração. Aquele que ri da mesma piada, e ri comigo, não poderá ne- exemplos particulares nos quais a conduta despertou o sentido de adequa çi o
gar a propriedade de meu riso. ( ...) Se os mesmos argumentos que te convencem também convencem a mim,
aprovo necessariamente a tua convicção" (Teoria dos sentimentos morais, 1976: 16-7).
rito na humanidade. Em conseqüência, adotamos um senso de devei; ou uma
* A palavra "paixão" (passion, no original) é aqui utilizada nos sentidos de "disposição favorável", "forte vel consideração para com essas regras gerais. O senso de dever nos dá i i m 111 r'tivo
inclinação emocional" etc., e não no sentido (em geral negativo) de um sentimento que paralisa a ação da para agir mesmo quando carecemos do sentimento apropriado para observar na-
razão sobre a conduta; (N. do T.) turalmente a regra sempre que surge a ocasião de fazê-lo. Existem vários conjuntos
218 Filosofia do direito Adain Smith, Jereiny Bentham e John Stuart Miii 219
de regras em operação no âmbito da sociedade, e dentre elas as regras de justiça fo- porém, de uma imediata e instintiva aprovação daquela aplicação que é a mais apro-
ram as que se desenvolveram com a máxima exatidão. Inseridas na ordem jurídica, priada para alcançá-lo (ibid.)
essas regras exigem o desenvolvimento de um rigoroso senso de justiça, pois have-
rá muitas ocasiões em que sua utilidade não nos parecerá óbvia. Se existe uma garantia metafísica, trata-se da idéia de uma ordem natural que
subjaz à interação humana. A base teórica de Smith encontra-se "nos inalteráveis
princípios da natureza humana", passíveis de observação pela imaginação empírica,
HÁ ALGUMA GARANTIA ABSOLUTA PARA A IDÉIA DE SMITH SOBRE e em nossa aceitação de um "Autor onisciente da Natureza". A solidariedade é o dom
A SOLIDARIEDADE E O ESPECTADOR IMPARCIAL?6 do onisciente Autor da Natureza'.
Que dizer da escatologia? O que vem substituir o Juízo Final? A idéia do espec-
Tomados em conjunto, o conceito de solidariedade e a idéia reguladora do es- tador imparcial assegura-nos que, conquanto a solidariedade atue no sentido de as-
pectador imparcial nos fornecem tanto uma idéia sobre a base da solidariedade segurar o sentimento solidário e nosso desejo de louvor e de evitar a reprovação, não
social quanto um mecanismo operacional para avaliarmos o senso comum ou co- se trata de um mecanismo simples. Smith faz distinção entre o "homem exterior",
tidiano do acerto ou do erro de nossas ações. A idéia do espectador imparcial nos que é influenciado pela natureza irrefletida de seus desejos - para evitar a censura e
permite ser racionalmente imparciais; não é um ponto de observação perfeito. Trata- buscar a aprovação - e o "homem interior", que atua na esfera de um conjunto mais
se de um mecanismo de ajuste racional, não de uma garantia metafísica. Empregan- profundo de qualidades "em busca do mérito e por repulsa à reprovação". O es-
do a linguagem de nossa discussão anterior de David Hume, tal mecanismo opera pectador imparcial, o homem interior, pode ficar confuso devido à força e à violência
quando estamos inseridos nas narrativas e tradições da vida cotidiana; na linguagem dos atos e palavras do homem exterior; a crise existencial está na ruptura e no con-
de um teórico posterior, o liberal John Rawls (discutido no capítulo 14 deste livro), flito decorrente. Para Smith, a tensão existencial só pode ser resolvida pelo recurso
com essa idéia procuramos obter um "equilíbrio reflexivo". Esse resultado pragmá- à nossa convicção em uma universalidade subjacente à condição humana; contu-
tico não era do agrado daqueles que desejavam segurança metafísica, ou que dela ne- do, se fôssemos reduzir essa convicção à fé em um Deus que conciliasse todas as
cessitavam. David Hume não foi aceito para a cadeira de filosofia moral na Univer- coisas e providenciasse uma justiça perfeita no mundo por vir, estaríamos colocan-
sidade de Edimburgo, para a qual foi convidado James Balfour of Pilrig. A filosofia do uma arma ideológica poderosa nas mãos daqueles que afirmam conhecer a von-
moral de Balfour incluía a idéia de um juiz perfeito, um "espectador ideal" ou "anjo tade divina. Estaria em jogo nosso entendimento da condição empírica da humani-
do céu", alguém capaz de ter uma total "visão dos assuntos humanos" e de ver to- dade, e não um apelo ao poder de um juiz supremo e a um sistema de certo ou er-
dos os fatos que pudessem "enfraquecer a ligação comum e perturbar a paz e a tran- rado para além de nossa interpretação dos atos empíricos e das ações humanas'.
qüilidade do público" (1753: 73-4). O espectador imparcial de Smith não tem essas
qualidades sobre-humanas:
O PAPEL DO DIREITO POSITIVO E DA PUNIÇÃO COMO GARANTIAS
( ...) a presente indagação não diz respeito a uma questão de direito, se assim posso dizê- DA SOCIEDADE "COMERCIAL" MODERNA
lo, mas a uma questão de fato. Não estamos, no momento, verificando com base em que
princípios um ser perfeito aprovaria a punição às más ações, mas sim com base em Na Teoria dos sentimentos morais, Adam Smith adotou a idéia de um jogo ou
que princípios uma criatura tão frágil e imperfeita quanto o homem as aprovaria de uma corrida como sua metáfora da vida social. A vida é um jogo competitivo no qual
fato (1976: 77),. os participantes lutam pelo sucesso e recriminam aqueles que infringem as regras
para obtê-lo:
Como vai ser guiado o homem? Smith dá continuidade ao argumento de Hume:
7. Portanto, o onisciente Criador da Natureza ensinou o homem a respeitar os sentimentos e
Ainda que o homem ( ... ) tenha naturalmente o desejo do bem-estar e da preserva- niões de seus irmãos; a ficar mais ou menos satisfeito quando eles aprovam sua conduta, e mais ou r, x'o.
ção da sociedade, o Autor da Natureza não encarregou sua razão de descobrir que uma contente quando a desaprovam. Fez do homem.., o juiz imediato da humanidade; e, a esse resp&; . 1 'ii
certa aplicação das punições é o meio apropriado para a obtenção desse fim; dotou-a, à sua própria imagem e colocou-o como vice-regente do mundo, para supervisionar o compori ii
seus irmãos, A natureza lhes ensina a reconhecer esse poder e essa jurisdição" (1976: 128-30).
8.Em um trecho admirável (1976: 131-2), Smith delineia a imagem do Deus justo que iii
6. Para uma visão geral da teoria smithiana do espectador imparcial, ver A. L. Macfie, Tlie Individual in So- sofrimentos deste mundo no próximo. Ao mesmo tempo que reconhece o apelo retórico de 1,11 1 igi Ii., LI
ciety (Londres, 1967), cap. 5; T. D. Campbell, Adam Sinith's Science ofMorality (Londres, 1971), cap. 6; D. D. Raphael, mostra-se grato por ela ter sido freqüentemente "exposta ao escárnio dos trocistas", uma vez (11 ' -•'
"The Impartial Spectator", em Essays on Adam Smith, A. S. Skinner e T. Wilson, orgs. (Oxford, 1975), ensaio 1V. quase sempre em desacordo com o padrão de recompensas aceito por nossos sentimentos i i w],I,
Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Miii 221
220 Filosofia do direito
hipotético ou expressivo. Hume e Smith forneceram as idéias centrais de interesse dor*. Enquanto outros estudiosos argumentariam que isso reduzia a complexidade
pessoal, solidariedade e história natural. A busca é a da chave da história natural que dos seres humanos a um complexo comportamental "desumano", Bentham achava
possa explicar, tanto em termos descritivos quanto prescritivos, as mudanças no di- que essas duas características forneciam não só o padrão necessário a uma filosofia
reito1 na opinião moral e no governo. E preciso ler por trás dos fenômenos superfi- jurídica "censória" (isto é, crítica), mas também um modelo das causas do comporta-
ciais dos motivos e interações historicamente particulares, bem como dos vínculos
mento humano que o legislador hábil poderia controlar e usar para dirigir o com-
que mantêm as relações humanas, para poder ver a realidade dos imperativos do in- portamento social`.
teresse, do trabalho e do individualismo. A questão básica do progresso social era a
busca de justiça; mas onde se poderia encontrar o padrão que servisse de base para
a tecnologia da justiça? A solução encontrada por Bentham foi o utilitarismo. A natureza colocou a humanidade sob o domínio de dois senhores soberanos, a
O utilitarismo de Bentham é uma tentativa de criar uma ciência objetiva da so- dor e o prazer. Só a eles compete indicar o que devemos fazer, assim como determinar
o que faremos. A seu trono estão atrelados, por um lado, o critério que diferencia o cer-
ciedade e da política que fosse tão livre da subjetividade humana quanto ele espera-
to do errado, e, por outro, a cadeia das causas e dos efeitos (Bentham, An Introduction
va que nosso destino pudesse estar livre das contingências da religião e do acidente
to the Principies of Morais and Legisiation [Uma introdução aos princípios da moral e da
histórico`. O princípio de utilidade é um dom da natureza; a própria natureza forne-
legislação], cap. 1; texto utilizado: Penguin Classics, 1987: 65).
ce o ponto arquimediano em que interesse e razão se combinam. Em The Introduction
to the Principies of Morais and Legisiation [Introdução aos princípios de moral e le-
gislação], impresso pelo próprio autor em 1780 e publicado em 1789, Bentham uniu A utilidade impregna as ficções e teorias sobre os direitos naturais, aquelas
psicologia, ética e jurisprudência às linhas clássicas que o filósofo francês Helvé- afirmações de Blackstone que na opinião de Bentham se reduziam a um "absurdo
tius havia sugerido`, isto é, o governo do ser humano pelos ditames do prazer e da sobre pernas de pau"". Bem compreendido, o Treatise on Human Nature [Tratado
"direitos naturais" do homem, que pretendiam provar. O Fragmento foi bem recebido enquanto se pensou ontologia moral básica: os homens não são nem bons nem maus; são apenas um conjunto de impulsos, ins-
que fora escrito por um jurista de renome, mas, quando se soube tratar-se de obra de um jovem de muito tintos e motivações. O impulso mais forte é o desejo de poder, que para Helvétius é produto de um desejo
pouca experiência, foi ignorado. A idéia de que a razão era ignorada pelo establishmcnt britânico seria uma mais básico, o de prazer. Assim mostrada, a natureza humana fornece ao cientista material para criar uma so-
característica dominante na vida de Bentham (junto com seu amor pelos gatos! Ele chegou a pedir desculpas ciedade bem ordenada. Ao influenciar a operação dos desejos e apetites, o legislador pode criar harmonia,
aos gatos por tê-los rebaixado ao compará-los aos políticos ingleses). O projeto de toda sua vida consistiu em ordem, felicidade e uma interação social bem equilibrada. O jurista torna-se um "legislador-analista". Como
construir uma nova série de prisões de arquitetura revolucionária - o Panóptico - que, pensava ele, iria enri- o homem não tem um estado ontológico natural de "graça" ou moralidade natural, a ordem social e indivi-
quecê-lo e criar a base institucional para uma nova sociedade. Entre seus textos posteriores encontram-se A dual e, desse modo, a felicidade social e individual, tornam-se uma questão de organizar racionalmente as
Defense oflJsury [Defesa da usura] (1787), sua famosa Introduction to the Principies of Morais and Legisiation peças, os impulsos e as influências da maneira correta, ou socialmente mais eficaz.
[Introdução aos princípios da moral e da legislação] (1789), A Pica for the Constitution [Um apelo à Constitui- * O termo original (pain) será aqui traduzido como "dor", quase sempre com o sentido de "sofrimen-
ção] (1803) e Catechisnl of Pariiamentary Reform [Catecismo da reforma parlamentar] (1809). Bentham tor- to moral". (N. do T.)
nou-se urna personalidade pública influente, e seu grupo fundou a Universidade de Londres; morreu em 12. Para citar o teórico social judeu Voegelin (1975: 69-70), a ordem é agora vista como algo "estreita-
1832, aos 84 anos de idade. mente associado à ( ... ) instrumentalização do homem. Este não é mais uma entidade que tem seu centro exis-
10. Não se pode afirmar com certeza até que ponto o utilitarismo extrai sua força da classe média emer- tencial em si mesmo; tornou-se um mecanismo de prazer, dor e paixões que pode ser aproveitado por outro
gente do capitalismo do século XVIII. Para o marxista Trotsk o utilitarismo surgiu como parte dos fatores homem, o "legislador", tendo em vista seus próprios fins.,. Somente quando se destrói o centro espiritual do ho-
ideológicos que passam uma imagem de coesão social quando o que existe é conflito. "O evolucionismo bur- mem, através do qual ele se abre ao realissimu,n transcendental, é que o legislador pode usar amassa desor-
guês se detém, impotente, no limiar da sociedade histórica, porque não deseja reconhecer a força motriz da denada das paixões como um instrumento.
evolução das formas sociais: a luta de classes. A moralidade é uma das funções ideológicas dessa luta. A clas- 13. Bentham não descobriu o princípio de utilidade, e muito embora não precisemos chegar a ponto de
se dominante impõe seus objetivos à sociedade e a habitua a considerar imorais todos os objetivos que se citar a avaliação de Marx (para quem Bentham era um homem de mentalidade "tacanha" que se "paw' v-
contrapõem aos seus. É esta a principal função da moralidade oficial, que persegue a idéia da "maior felici- cheio de afetação", e concluiu que "o princípio de utilidade não foi descoberto por Bentham. Ele simpi, L te
dade possível" não para a maioria, mas para uma minoria pequena e cada vez menor. Tal regime não pode- reproduziu, a seu modo obtuso, o que Helvétius e outros franceses haviam afirmado com esprit no sécul, 1 1),
ria durar nem uma semana através do uso exclusivo da força; precisa do cimento da moralidade. A produção a idéia de sua importância que alguns grupos ainda defendem na Inglaterra pode não passar de 'ii
desse cimento constitui a profissão dos teóricos e moralistas pequeno-burgueses. Eles irradiam todas as cores 14. O princípio da maior felicidade do maior número foi defendido como o único guia racion. II i. iii,, 1,,1
do arco-íris, mas em última análise continuam sendo apóstolos da escravidão e da submissão" (Leon Trotsky, a moral privada quanto para a política pública. Um comentário sobre metodologia. Bentham inel i i ii i III i ii
Their Morais and Ours: The Moraiists and Sycophants against Marxism [A moral deles e a nossa: moralistas e si- ga discussão do prazer e da dor como forças motivadoras, e tentou mostrar de que modo é po.iv'I I.i,:,'i iui
cofantas contra o marxismo], Union Books [193911994: 8). cálculo de sua quantidade e influência. Admitiu que o prazer e a dor eram comensuráveis, com im mi
11. Com sua obra De i'Esprit (1758), Helvétius é por muitos considerado como o criador da psicologia nada quantidade de uma compensando uma determinada quantidade da outra, e que podiuiii
que Bentham viria a desenvolver. Com Helvétius, a salvação torna-se plenamente secularizada. Ele constrói das de modo que se pudesse proceder a um cálculo da soma dos prazeres. Esse cálculo defirui ii ,i ili.ijL)l li-
Lima imagem perfeccionista da sociedade a partir de uma antropologia que priva os seres humanos de urna cidade de um indivíduo e de um grupo de indivíduos. Eventualmente, Bentham reconheceu que a estrutL ii
224 Filosofia do direito Adam Srnith, Jeremy Bentham e John Stuart Miii 2
da natureza humana] de Hume nos permite encontrar, na história natural do direi- Embora a validade do princípio de utilidade não pudesse ser provada, Bentharn
to, uma narrativa do cálculo, por parte da natureza, dos custos e benefícios da mo- afirmava poder demonstrar que as chamadas teorias "superiores" da moralidade
ral e dos deveres legais. A moralidade não é um imperativo categórico abstrato; sua eram ou redutíveis ao princípio de utilidade, ou inferiores a esse princípio, pois não
base real é a necessidade natural. Contudo, não podemos presumir que a estru- tinham um significado claro nem podiam ser coerentemente seguidas. Tomemos a
tura de nossas instituições sociais realmente corresponda aos princípios funda- teoria do contrato social como explicação de nossa obrigação de obedecer à lei; além
da dificuldade de determinar se alguma vez houve, de fato, tal contrato ou acordo,
mentais; muitas não o farão.
Bentham argumenta que a obrigação de obedecer, mesmo na própria teoria do
contrato, repousa sobre o princípio de utilidade, pois na verdade afirma que a maior
O PRINCÍPIO DE UTILIDADEPODE SER COMPROVADO? felicidade do maior número de pessoas só pode ser alcançada se obedecermos à lei.
OU BENTHAM ASSUMIU SUA VALIDADE? Se for esse o caso, continua Bentham, por que desenvolver uma teoria complexa e
cientificamente duvidosa quando o problema todo pode ser rapidamente solucio-
Qual é o status dessa necessidade natural, e de que modo ela nos dá uma mo- nado mediante a afirmação de que a obediência é melhor porque a desobediência
ralidade? Em poucas frases, sem indicar exatamente como o faz, Bentham vai do fato causa mais mal do que bem? Da mesma forma, são redutíveis ao princípio de uti-
de que desejamos o prazer para o juízo de que devemos buscar o prazer, ou de um lidade as proposições antagônicas de que o bem e o certo em uma ação são deter-
fato psicológico para o princípio moral de utilidade. A utilidade, ou "aquele princí- minados por nosso senso ou entendimento moral, por nossa razão ou pelo princí-
pio que aprova ou desaprova toda e qualquer ação, segundo a tendência que pare- pio teológico da vontade divina. Como não podemos conhecer o prazer de Deus,
devemos observar "qual é a natureza de nosso próprio prazer e proclamá-lo dele".
ce ter de aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo"
Desse modo, somente as dores e os prazeres nos dão o real valor das ações, e, em
(ibid.: 65), nos dá o critério dominante que tem por base a realidade do interesse
última análise, estamos todos empenhados em aumentar a felicidade, tanto na vida
pessoal. Bentham não explica como é possível transpor a distância existente entre afirmar
privada quanto na pública.
que os homens desejam prazer e asseverar que devem desejá-lo, ou que é certo que o dese-
jem. Contudo, está convencido de ter descoberto um princípio fundamental, capaz
de julgar a adequação das ações: "[Quando uma ação] está em conformidade com O DIREITO COMO INSTRUMENTO DA REFORMA UTILITARISTA
o princípio de utilidade, dizemos sempre ou que ela deveria ser praticada ( ... ) [ou]
que se trata de uma ação correta" (ibid.: 67). Associar o dever ao prazer é o único A estrutura otimista do "positivismo jurídico clássico" torna-se, assim, visível.
modo de "conferir sentido às palavras deveria, certo e errado, e outros termos aná- Sua convicção principal é simples; uma nova ciência do direito e da reforma pode-
logos; de outra forma, carecem de todo e qualquer sentido". Bentham tinha cons- ria criar as condições para uma sociedade moderna disciplinada. O interesse de
ciência de não haver provado que a felicidade é a base do "bem" e do "certo"; a Bentham pelo direito é anterior a suas preocupações com a reforma política e cons-
própria natureza do princípio de utilidade, diz ele, é o fato de não se poder de- titucional, e sua teoria da utilidade forneceu tanto uma metodologia para orientar
monstrar sua validade: a reforma quanto um suporte e uma justificação para ela. Embora a reforma pos-
sa parecer filosoficamente radical, era também conservadora; pretendia poupar as
Será passível de demonstração? Parece que não, pois aquilo que se utiliza para pro- instituições britânicas das conseqüências de coisas piores que pudessem ocorrer.
var todas as outras coisas não pode, ele próprio, ser demonstrado; uma cadeia de provas Bentham sempre temeu as revoluções que, em seu tempo, viu varrer o continente
deve ter seu começo em algum ponto. Fornecer tal prova é tão impossível quanto inútil europeu e as Américas. A ordem e a segurança eram preocupações centrais, as-
(ibid.: 67). sim como era crucial poder contar com essa previsibilidade da interação e da cer-
teza do resultado. O comércio eficiente exige um sistema jurídico que faça cum-
básica da.combinação de prazeres e, em particular, os prazeres de outros indivíduos, era fictícia, mas concluiu
prir as promessas e assegure as expectativas legítimas`.
que essa ficção era "um postulado sem cuja aceitação todo raciocínio político se vê imobilizado". Bentham pre-
tendia ser o "Newton das ciências morais", e achava que suas ficções psicológicas não eram mais fantasiosas
do que aquelas que se haviam mostrado eficazes para o desenvolvimento da ciência da mecânica. 15. "Para fazer uma idéia clara de todo o alcance que deveria ser concedido ao princípio de segurança,
AIé o disso, Bentham acreditava que, ao utilizar sua teoria, podia eliminar as perigosas ficções que encon- é necessário levar em conta o fato de que o homem não é igual aos animais irracionais, limi1nlu ao timpo
ii toda a filosofia jurídica e em todo o raciocínio político contemporâneos. Assim, termos como direitos, presente tanto no prazer quanto na satisfação, mas que ele é suscetível de prazer e dor por antipação, e que
Lide,a Crvoa e o bem-estar geral eram todos passíveis de uso fictício e defendiam certos interesses já
Lide, não basta protegê-lo contra uma perda real, mas também assegurar, tanto quanto for possível, que suas pos-
li Ii vursamente, as ficções usadas por Bentham eram ideais que "diluíam" as ficções prejudiciais. ses não venham a sofrer perdas frituras."
Adatn Smith, Jeremy Benthain e John Stuart Miii 227
226 Filosofia do direito
A definição de direito de Bentham Da autoridade constitutiva, a vontade constante (pois pode-se apenas presumir que
assim seja) é a de que a felicidade nacional, a felicidade do maior número, seja aumen-
tada; a essa vontade, em cada ocasião, é dever da suprema legislatura, de acordo com sua
Nossa preocupação é o direito positivo, que é, mais caracteristicamente, produ- competência, fazer vigorar e cumprir (em Parekh, 1973: 218).
to da vontade do legislador.
Contudo, se o Legislativo aprovar leis contrárias ao princípio de utilidade, elas
Uma lei pode ser definida como um conjunto de signos enunciadores de uma von- "não devem ser, por esse motivo, tratadas ou mencionadas como nulas e sem efei-
tade que, concebida ou adotada pelo soberano de um Estado, diz respeito à conduta a to por juiz algum" (ibid.: 218).
ser observada em determinado caso por uma determinada classe de pessoas que, no Como, exatamente, o soberano torna sua vontade conhecida e efetiva? Exis-
caso em questão, supõe-se estarem sujeitas a seu poder. Essa vontade conta, para sua
realização, com a expectativa de certos eventos que, como se pretende, deveriam ser às tem, na verdade, dois conjuntos de leis, um deles — chamado de leis principais — di-
vezes ocasionados por sua declaração, e cuja probabilidade, como se pretende, deveria rigido aos cidadãos, e outro — chamado de leis subsidiárias — dirigido às autoridades
atuar como um estímulo para aqueles cuja conduta está em jogo (1970: 1). para que façam cumprir o primeiro`. Se as autoridades deixarem de fazer cumprir
a lei principal, estarão elas próprias sujeitas ao julgamento por parte de outras au-
Existem quatro elementos, a saber: (i) o direito é criação da vontade do sobera- toridades que agirão em conformidade com novas leis subsidiárias. E, conquanto
no; (ii) essa criação é dada a conhecer aos cidadãos e às autoridades do Estado; (iii) algumas leis possam ser convites aos cidadãos para que ajam de acordo com seus
o direito determina certos cursos de ação ou exige a coibição de certas ações; (iv) o próprios desejos — fazer testamentos etc. —, Bentham enfatiza que a punição e as san-
direito conta com o emprego de sanções. ções são características essenciais de um sistema jurídico (1970: 134).
Bentham parece ter rejeitado a idéia simples de "comando"; trabalha com uma
complexa teoria imperativa para a qual preferiu empregar o termo "mandato". O O PAPEL DAS SANÇÕES
curso de ação determinado pelo direito pode assumir uma de quatro formas, espe-
cificamente (a) um comando - "use cinto de segurança"; (b) uma proibição - "não A primazia das sanções provém da concepção benthamista do funcionamento
use cinto de segurança" —; (c) uma permissão para abster-se — "você pode não usar da utilidade subjacente à interação social. Assim como o prazer e a dor atribuem os
cinto de segurança —; (d) uma permissão para agir — "pode usar cinto de segurança". verdadeiros valores aos atos, também constituem as causas eficientes do comporta-
Por trás dessas formas, contudo, estão as características paralelas da (i) soberania mento. Na Introdução aos princípios de moral e legislação (capítulo III), Bentham dis-
e da (ii) coerção estruturada pelas sanções. tingue quatro fontes de dor e prazer que ele descreve como causas do comportamen-
O direito não precisa originar-se diretamente do soberano, dado que o direito to e chama de sanções. Uma sanção é aquilo que dá força vinculatória a uma regra
pode ser visto como criação da vontade do soberano por concepção ou adoção, ou seja: de conduta ou lei, e essas quatro sanções são chamadas de físicas, públicas, morais
e religiosas`. Em todas essas áreas a sanção, ou a causa eficiente do comportamen-
quando foi ele [o soberano] que a aprovou, e que a promulgou pela primeira vez, nas pa-
lavras ou outras foiii tas de representação em que vem expressa; pode-se dizer que lhe per-
tence por adoção quando a pessoa da qual ela provém diretamente não é o próprio sobe- peito como sendo ilegal — como sendo inválida — aludir ao fato de que extrapola sua autoridade (seja qual for
rano ( ... ) essa vontade deve ser observada e considerada como pertencente a ele (1970: 21). a expressão usada) — seu poder — seu direito — constitui, apesar de prática comum, um abuso de linguagem"
(Bentham, 1977: 485-6).
17."A vontade do legislador sobre o assunto em questão foi, de fato, declarada, e acenou-se com a
ameaça de punição em caso de falta de adesão a tal vontade; contudo, no que diz respeito aos meios de se
O soberano pôr em prática tal ameaça, nada de semelhante foi ainda dado a conhecer. Que caminho pode então
lador tomar? Existe apenas um, que consiste em continuar no comando como antes (.,.).Tudo que '' '
A suprema legislatura é onipotente. Ainda que possa haver "controles" e dire- fazer ( ...) consiste em promulgar uma segunda lei, exigindo que alguma pessoa aplique a predição qi II' .1 II
trizes, não pode haver, logicamente, nenhuma limitação jurídica de tal poder`. A pró- panhava a primeira" (Bentham, 1970: 137-9),
18.Por exemplo, "Se os bens de um homem,, ou sua própria pessoa, forem consumidos pelo fo$;
pria utilidade, porém, apresenta um princípio diretor para a legislação: lhe ocorreu devido àquilo que se chama de acidente, foi uma calamidade; se em razão de sua pi 1
dência (por exemplo, por ter se esquecido de apagar a vela), o fato pode ser chamado de puniçs i d;i ,ii içe
sica; se ocorreu devido a urna decisão do magistrado público, teremos uma punição que decorrI' II'
16. "( ...) não se pode afirmar que a autoridade do corpo supremo tenha, a menos nos casos em que as-
sim o determinar uma convenção expressa, quaisquer limites determináveis ou fixos - isto é, que o fato de blica; isto é, aquilo que normalmente se chama de punição; se a ocorrência resultar da falta dc iji ii 1'
afirmar a existência de qualquer ação que ela não possa praticar - referir-se a qualquer coisa que lhe diga res- zinho, que se negou a prestá-la por não apreciar seu caráter moral, teremos uma punição cleconli 1' ci .;, lO
228 Filosofia do direito Adam Srnith, Jeremy Bentham e John Stuart Mil! 229
to, constitui uma ameaça de dor. Na vida pública, o legislador entende que os ho- Como indica esse cálculo, Bentham estava interessado fundamentalmente nos
mem; 'e sentem ligados a certos atos somente quando estes têm uma sanção cia- aspectos quantitativos do prazer, o que o leva a crer que todas as ações serão igual-
ra d eh"; associados, e tal sanção consiste em alguma forma de dor se o tipo de con- mente boas se produzirem a mesma quantidade de prazer. Assim, "computamos to-
dLI li 1 determinado pelo legislador for infringido pelo cidadão. Portanto, a principal dos os valores de todos os prazeres de um lado, e os de todas as dores de outro. O
preocupação do legislador é decidir que formas de comportamento tenderão a au- equilíbrio, se pender para o lado do prazer, indicará a boa inclinação do ato, (...) se
mentar a felicidade da sociedade, e quais sanções serão mais passíveis de produzir pender para o da dor, indicará a má inclinação deste" (1987: 88).
essa maior felicidade. A palavra "obrigação" recebeu significado concreto através do Uma vez que compete ao legislador desencorajar alguns atos e encorajar outros,
conceito de sanção de Bentham, pois esse termo agora significava não algum dever como irá classificar aqueles que devem ser desencorajados por oposição aos que
indefinido, mas a perspectiva de sofrimento para quem desobedecesse a regra mo- devem ser encorajados?
ral ou jurídica. Ao contrário de Kant, para quem a moralidade de um ato depende
de se ter o motivo certo, e não das conseqüências do ato, o utilitarismo leva à po-
sição oposta - a moralidade depende diretamente das conseqüências. Enquanto O OBJETIVO OU A FINALIDADE DO DIREITO
Bentham admite que alguns motivos são mais passíveis do que outros de levar a uma
conduta mais útil, isto é, a uma conduta capaz de aumentar a felicidade, ainda é o O método de legislação de Bentham consistia, primeiro, em mensurar a "perver-
prazer, e não o motivo, que confere a qualidade moral ao ato. Além disso, Bentham sidade de um ato", e tal perversidade consistia nas conseqüências, na dor ou no mal
adotou a posição de que, sobretudo na esfera social em que o direito opera, a lei só provocados pelo ato; os atos que produzem o mal devem ser desencorajados. Ben-
pode punir aqueles que realmente infligiram sofrimento, qualquer que seja seu mo- tham diz que existem males primários e secundários que afetam o legislador. Um
tivo, ainda que se admitam algumas exceções`. ladrão causa mal a sua vítima, que perde seu dinheiro, e este é um caso de mal pri-
mário. Mas o roubo também cria um mal secundário, pois quando é bem-sucedido
sugere que o furto é fácil; assim, diminui o respeito pela santidade da propriedade,
O CÁLCULO DO PRAZER E DA DOR com a conseqüência de que esta se torna insegura. Esses males secundários são fre-
qüentemente mais importantes do que os primários, uma vez que — para usarmos o
Cada indivíduo e cada legislador ocupa-se em evitar a dor e alcançar o prazer. exemplo do roubo - a verdadeira perda para a vítima pode muito bem ser conside-
Contudo, prazeres e dores diferem entre si e, desse modo, têm diferentes valores. ravelmente menor do que o dano infligido em termos da redução da estabilidade e
Com uma tentativa de obter precisão matemática, Bentham fala de unidades, ou do da segurança (por exemplo, o medo do crime) no conjunto da comunidade.
que chamava de conjuntos de prazer e dor, sugerindo que, antes de agirmos, deve- O direito objetiva aumentar a felicidade total da sociedade ao desestimular os
mos - e realmente o fazemos - calcular os valores desses conjuntos (capítulo M. atos que possam gerar más conseqüências. Um ato criminoso ou ilegal represen-
Considerado em si mesmo, seu valor será maior ou menor dependendo, como afir- tam, por definição, uma prática claramente prejudicial à felicidade do corpo social;
ma Bentham, da (i) intensidade, (ii) duração, (iii) certeza e (iv) propinqüidade (ou somente um ato que, de alguma forma específica, inflija na prática algum tipo de dor
proximidade) do prazer. Quando consideramos não apenas o prazer em si, mas as - diminuindo, assim, o prazer de um indivíduo ou grupo específico - deve ser obje-
conseqüências às quais pode levar, outras circunstâncias devem ser também calcu- to da preocupação do direito. Na maioria dos casos, o governo realiza sua tarefa de
ladas, como (v) a fecundidade do prazer, ou suas possibilidades de ser acompanha- promover a felicidade da sociedade ao punir as pessoas que cometem atos ilegais cla-
do por uma maior quantidade das mesmas sensações, isto é, por mais prazer, e (vi) ramente avaliados como danosos pelo princípio de utilidade. Foi a convicção inve-
sua pureza, ou as possibilidades de que o prazer não será acompanhado por prazer, utilidade ; 11
terada de Bentham de que, se o legislador usasse apenas o princípio de utilidadepa
mas por sofrimento. A sétima circunstância é a da extensão do prazer, isto é, o nú- decidir quais atos devem ser considerados como "legais", muitos atos control
mero de pessoas aos quais ele chega, ou que são por ele afetadas. pelo direito de sua época teriam de ser interpretados como uma questão de m
privada, sujeita tão-somente à sanção da opinião. Portanto, o utilitarismo teve
seqüência de exigir uma reclassificação do comportamento para se detem 1 í 1,11 1 1 IA
moral; se a ocorrência se deve a um ato imediato de desaprovação de Deus, manifestada em razão de algum ações ou atividades deveriam ser apropriadamente reguladas pelo governo. () 1 111
pecado que a pessoa em questão tenha cometido, ( ...) uma punição resultante de sanção religiosa" (1987: 85). cípio dê utilidade criou uma nova e simples teoria da punição, uma teorí 111
19. Enquanto pode ser verdade que o legislador nem sempre possa levar em consideração os motivos,
a questão do motivo é vital na moralidade. Bentham, contudo, parecia considerar tanto as obrigações morais opinião de Bentham, não só podia ser justificada mais rapidamente do 91 -
quanto as jurídicas como coisa semelhante, no sentido de que, em ambos os casos, as conseqüências exter- rias mais antigas, como também era capaz de alcançar de modo mais ef 11 i'.
nas da ação eram tidas como mais importantes do que os motivos que lhes eram subjacentes. jetivos da punição.
230 Filosofia do direito Adam Smith, Jererny Bentharn e John Stuart Miii 231
A CENTRALIDADE DA PUNIÇÃO nidade. Há, então, uma justificativa para a punição, no sentido de que através dela
se pode assegurar, efetivamente, o máximo bem para o maior número possível.
Dado que "toda punição é um mal em si" (uma vez que inflige sofrimento e dor), Além de fornecer a base racional para a punição, o princípio de utilidade tam-
segue-se que "com base no princípio da utilidade, se devêssemos alguma vez ad- bém oferece uma pista para a natureza da punição adequada. Bentham descreve as
miti-la, só deveríamos fazê-lo na medida em que se comprometesse a eliminar um propriedades desejáveis de cada unidade (ou conjunto) de punição ao examinar "a
grande mal" (1987: 97). Ao mesmo tempo, o "objetivo que todas as leis têm em co- proporção entre punições e transgressões à lei" (título do capítulo XIV), e apresen-
mum é o de aumentar a felicidade total da comunidade". A punição deve, portanto, ta as seguintes regras: a punição deve ser suficientemente forte para superar a van-
ser "útil" para se obter um maior agregado de prazer e felicidade, e não se justifica se tagem que o transgressor possa obter com sua transgressão; quanto maior a trans-
seu efeito consistir unicamente em acrescentar ainda mais unidades, ou conjuntos, gressão, maior a punição; se houver uma situação em que um infrator potencial es-
de dor à comunidade. O princípio de utilidade exigiria claramente a eliminação da tiver determinado a cometer uma infração, mas puder optar entre várias, a punição
"retaliação" pura, em que se faz alguém sofrer somente porque seu ato causou dor para a maior infração deve ser suficiente para induzir um homem a preferir a me-
a sua vítima, uma vez que nenhum objetivo útil é atendido ao se acrescentar ainda nos séria; as punições devem ser variáveis e adaptáveis para poderem ajustar-se às
mais dor à soma total já sofrida pela sociedade. Não é que se rejeite a instituição da circunstâncias particulares, ainda que cada infrator deva receber a mesma punição
punição; ao contrário, a aceitação do princípio da utilidade aponta para uma reava- pela mesma infração; a quantidade de punição nunca deve ser maior do que o mí-
liação da questão de por que a sociedade deve punir os infratores, e para uma re- nimo necessário para torná-la eficaz; quanto maior a incerteza de que o criminoso
classificação dos casos que são "adequados" e "inadequados" à punição. A punição será apanhado, maior deveria ser a punição potencial; e, se um crime for habitual,
não deveria ser infligida (i) quando for infundada; por exemplo, quando o crime pu- a punição deve superar não apenas a vantagem decorrente do crime imediato, mas
der ser simplesmente compensado, e quando houver uma certeza virtual de que a também aquela dos crimes não descobertos. Essas idéias levaram Bentham a defen-
compensação virá com certeza; (ii) quando for ineficaz, no sentido de não ser ca- der regras capazes de assegurar que a punição fosse variável, de modo que se ajus-
paz de impedir um ato prejudicial; por exemplo, quando uma lei criada depois do te ao caso específico; eqüitativa, para infligir uma mesma dor no caso de infrações
ato for retroativa, ou ex post facto, ou quando uma lei já existe mas não foi publica- semelhantes; proporcional, para que as punições de diferentes tipos de infrações se-
da. A punição também seria ineficaz quando estivessem envolvidos uma criança, um jam proporcionais; exemplar, de modo que se imprima na imaginação dos infrato-
louco ou um bêbado, ainda que Bentham admitisse que nem a infância nem a into- res potenciais; sóbria, para evitar o excesso; reabilitadora, para corrigir o comporta-
xicação eram bases suficientes para a "impunidade absoluta". A punição também mento censurável; incapacitante, para dissuadir infratores futuros; compensatória,
não deve ser infligida (iii) quando for improfícua ou excessivamente onerosa, "quan- para aquele que sofre; e, para evitar novos problemas, a punição deveria ter aceita-
do os danos em que resultasse fossem maiores do que aquilo cuja ocorrência im- ção popular e ser passível de remissão por justa causa.
pedisse"; ou (iv) quando for desnecessária, "quando o dano puder ser impedido ou Depois de uma ampla e (enfadonha) catalogação da base do direito e da puni-
interrompido sem ela, isto é, a um menor custo", sobretudo nos casos "que consis- ção, Bentham conclui, chamando atenção para a objeção de que alguns infratores
tem na disseminação de princípios perniciosos em matéria de dever", uma vez que simplesmente não agem como calculadores racionais. Sua resposta é categórica:
em tais casos a persuasão é mais eficaz do que a força (citações, 1987: 97-102).
Uma questão era saber se um determinado tipo de comportamento deveria fi- Alguns existem, talvez, que ( ... ) podem ver a sutileza utilizada na regulamentação
car a cargo da ética privada ou tornar-se objeto de legislação. Bentham respondeu- de tais regras como um trabalho perdido; pois a ignorância crassa, dirão, nunca se preo-
a ao simplesmente aplicar o princípio da utilidade. Se o fato de envolver todo o pro- cupa com as leis, e a paixão não faz cálculos. Contudo, o mal da ignorância admite cura:
e ( ... ) quando questões tão importantes quanto a dor e o prazer estão em jogo, e no mais
cesso legislativo e o aparato punitivo faz mais mal do que bem, a questão deveria ser alto grau ( ... ), quem haverá que não calcule? Os homens calculam, uns com menos
da alçada da ética privada. Ele estava convencido de que as tentativas de regular a exatidão, outros com mais; mas todos calculam (1987: 111).
imoralidade sexual seriam particularmente improfícuas, uma vez que isso exigiria
uma complexa supervisão, e o mesmo ocorreria com "crimes como a ingratidão ou
a rudeza, em que a definição é tão vaga que o juiz não poderia, com segurança, ser O RADICALISMO LIMITADO DE BENTHAM REVELA-SE EM
investido do poder de punir". Os deveres que devemos a nós mesmos dificilmen- SUAS IDÉIAS DE REFORMA QUE VISAVAM AOS INTERESSES DA
te poderiam ser objeto da preocupação do direito e da punição, nem deveríamos ser BOA ORDEM E À PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE
"coagidos" a ser "benevolentes", ainda que em certas ocasiões pudéssemos ser res-
ponsáveis pela omissão em ajudar. Contudo, a principal preocupação do direito de- Estava claro, para Bentham, que muitos elementos do direito e da estru ti 1;
veria ser a de estimular os atos que pudessem levar à máxima felicidade da comu- cial geral da Inglaterra não se ajustavam às exigências estabelecidas pelo p'i'
232 Filosofia do direito Adam Smith, Jeremy Bentha,n e John Stuart Mill 233
de utilidade. Onde quer que encontrasse uma discrepância entre a ordem jurídica e nitiva. Desse modo, o direito criminal defende as criações sociais que o direito civil
social vigente, por um lado, e o princípio de utilidade, por outro, Bentham desejava utiliza - propriedade, contratos, obrigações, bens.
a reforma. Atribuía a maior parte dos males do sistema jurídico aos juízes que, acusa- Talvez Bentham tenha levado ao máximo possível a relação entre a história na-
va, "criaram o common law. Sabe o leitor como eles o criaram? Do mesmo modo que tural, a indústria, a proteção à propriedade, as vantagens a ser obtidas através da obser-
um homem cria regras para seu cão. Quando teu cão faz alguma coisa que te desa- vação das regras do jogo comercial e o reforço do direito civil pelo direito criminal. Por
grada, esperas até que ele volte a fazê-la e, então, dás-lhe uma surra. E assim que os trás da esperada normalidade da sociedade civil, e por trás da segurança e da paz so-
juízes criam leis para ti e para mim". cial, assomava a inevitabffidade da coerção. Uma confiança absoluta na utilidade justi-
Bentham encontrava o maior obstáculo à reforma na estrutura da sociedade aris- ficava essa coerção. Além disso, ainda que os vários textos de Bentham sobre o uso das
tocrática. Por que os males sociais e os males do sistema jurídico persistiam mesmo punições em substituição à pena de morte freqüentemente cheguem quase a impli-
depois de ele ter demonstrado que diferentes modos de comportamento produziam car —quando não a estipular claramente - a tortura e o terror penais, o panóptico (uma
"a maior felicidade para o maior número?". A resposta, pensava Bentham, era que os espécie de prisão ou casa de inspeção) codifica as estreitas ligações entre o Estado uti-
poderosos não queriam "a maior felicidade do maior número". Os governantes preo- litarista e a sociedade dos gálagos*. Por mais de vinte anos, Bentham esteve obcecado
cupavam-se mais com seus interesses particulares. Bentham tinha plena consciência com um projeto de construir e dirigir, sendo pago por isso, uma série de instituições de
de que os homens procuram sua própria felicidade. O objetivo do governo, porém, vigilância ideais que ofereceriam uma tecnologia de regras de múltiplas finalidades.
é ajudar a alcançar a maior felicidade do maior número. Sempre que os detentores
do poder representam apenas uma classe ou um pequeno grupo, seu interesse pes- A moral regenerada, a saúde preservada, a indústria revigorada, a instrução difun-
soal entrará em conflito com a devida finalidade do governo. O modo de superar tal dida, os encargos públicos reduzidos, a economia sólida como uma rocha, o nó górdio
das leis de assistência social não cortado, mas desatado - tudo isso graças a uma sim-
conflito ou contradição consiste em combinar governantes e governados, ou em co- ples concepção arquitetônica ("Panóptico, or the Inspection House" (1838-43), vol. IV,
locar o governo nas mãos do povo. Se governantes e governados se tornarem uma Collected Works de Bentham).
só identidade, seus interesses serão os mesmos, e estará assegurada a maior felicida-
de do maior número. Essa identidade de interesses não pode, por definição, ser ob- Um rigoroso sistema de vigilância e controle totais e contínuos. Até mesmo os
tida sob uma monarquia, pois o monarca age em seu próprio interesse ou, na melhor exercícios físicos seriam um "desfile militar". O resultado?
das hipóteses, objetiva a felicidade de uma classe ou grupo especial que o cerca. Du-
rante boa parte de sua vida, Bentham teve fé em uma elite ilustrada, mas, ao per- E se o espírito liberal e a energia de um cidadão livre não fossem trocados pela dis-
ceber que suas reformas provavelmente nunca seriam aceitas, mudou de opinião e ciplina mecânica de um soldado, ou pela austeridade de um monge? E se o resultado
passou a defender a democracia radical. Era esse o contexto, acreditava, em que suas desse primoroso invento não fosse a construção de um conjunto de máquinas à seme-
idéias poderiam ser aceitas, uma vez que os governantes são o povo e os represen- lhança do homem? Chamemo-los de soldados, de monges ou de máquinas: eu não me
tantes deste são escolhidos exatamente porque se comprometeram a defender seu importaria; desde que fossem felizes (íbid.).
máximo bem. A aplicação do princípio da utilidade exigia claramente, do modo como
É pouco afirmar que o panóptico - que um Bentham já entrado em anos resu-
Bentham o via, a rejeição da monarquia com todos os seus corolários, e desse modo
miu como "um magnífico instrumento com o qual, na época, sonhei em revolucio-
ele aboliria o rei, a Câmara dos Pares e a Igreja oficial.
nar o mundo" (citado em Semple, 1993: 288) - tenha sido negligenciado pela lite-
ratura jurídica",- trata-se, na verdade, de uma surpreendente ausência`. Para alguns,
A ARMADILHA DO PANÓPTICO
* Q gálago é um pequeno primata africano caracterizado por olhos muito grandes. (N. do T.)
Há uma dualidade na concepção de direito de Bentham: à primeira vista, o direi- 20. Como afirma Janet Semple (1993: 1) ao iniciar seu estudo recente do panóptico: "A perdi ii •i 1.1
to civil e o criminal parecem duas esferas distintas. O direito civil protege a aquisição panóptico de Bentham é um projeto cheio de contradições e ambigüidade; uma prisão que é pari,, ii iii
contratual de bens, e parece operar segundo concepções naturais de utilidade que uma investigação filosófica, administrada por um carcereiro que foi representado tanto como um i i
os protagonistas da vida comercial compreendem. O pesar decorrente da obrigação dor desumano quanto como uma personificação do Estado utilitarista. É um empreendimento iii, livi,1
de abster-se dos bens alheios é incomparavelmente menor do que as vantagens con- que parébe pressagiar o totalitarismo. Os estudiosos trataram o panóptico com pouco interes. 1
mas por vinte anos esse projeto obcecou a mente extraordinária de um de nossos maiores filó:; 1
feridas pelos direitos correspondentes adquiridos com a propriedade, enquanto o di- gédia da vida de um homem que, aos olhos de seus amigos, parecia feliz e bem-sucedido."
reito criminal penaliza diferentes tipos de agressão à vida social. Contudo, o direito 21. O panóptico, porém, não foi ignorado pela criminologia. Foi retomado por Michel l, li
civil não é auto-suficiente; precisa do direito criminal para conferir-lhe sanção defi- que o via como "o deslize da razão penal". Ainda que muito poucos tenham sido construído, mil, 11u
234 Filosofia w0 direito Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Miii 235
é a prova de que o utilitarismo de Bentham leva ao totalitarismo; para outros, de- to de que os sentimentos morais são parte integrante do funcionamento natural da
monstra a fragilidade das concepções de progressistas sociais que acreditam que interação humana -, mas parte desse conceito para nos oferecer um mecanismo que
deveríamos ser todos governados pelos novos conhecimentos que a modernidade nos permita avaliar a totalidade da felicidade social22. Em síntese, a idéia do perfei-
produz; uma vez que o grande teste tanto do poder do panóptico quanto do exercício to espectador independente funciona do modo como apresentamos a seguir. A ca-
do poder sob a legitimação do conhecimento era a visibilidade, que tipo de teste é a vi- pacidade moral dos indivíduos está contida na noção de solidariedade. As pessoas,
sibilidade se aqueles que observam ficam aterrorizados pelas afirmações do conheci- porém, variam quanto ao grau de solidariedade ou empatia que conseguem sentir.
mento? Para outros, ainda, o panóptico é o resultado final do reducionismo na- Algumas são muito capazes de sentir solidariedade; outras, não. Ora, imaginemos
turalista inerente ao utilitarismo - os seres humanos reduzem-se simplesmente a alguém que seja perfeitamente capaz de solidariedáde, e teríamos quase um santo.
complexos de prazer e dor; onde estará, então, a dignidade que a tradição kantia- Uma pessoa assim refletiria e aceitaria completamente nossa dor e nosso prazer; ha-
na, "orientada pelo direito", considera fundamental para a humanidade? veria uma perfeita simetria de solidariedade. Imaginemos agora que acrescentamos
uma segunda condição: o fato de que esse espectador é também onisciente. Não lhe
AS IMAGENS DUPLAS DE VISIBILIDADE E CONIROLE escapam as dores de ninguém. Ele conhece todo prazer e toda dor, e recria-os em
INERENTES AO UTILITARISMO sua própria experiência. Uma vez que tal pessoa experimenta toda a dor e todo o so-
frimento existentes no mundo, sem dúvida essa entidade agiria de modo que au-
O panóptico foi o ponto final de diferentes processos de reducionismo, cálculo mentasse a totalidade do prazer que ela própria experimenta. E, como tudo é agre-
e desejo de controle inerentes ao utilitarismo benthamista. O utilitarismo é estreita- gado, a verdadeira distribuição de prazer e dor não importaria; o que contaria seria
mente ligado à idéia de controle; pretende oferecer-nos uma modalidade de cálculo a soma total dos padrões de distribuição. A pessoa daria sempre preferência ao pa-
através da qual possamos aferir o resultado superior da política e da distribuição. Ofe- drão de distribuição que resultasse no maior agregado de prazer, não importa que
rece-nos um mecanismo por meio do qual podemos visualizar a cena e calcular os padrão fosse. Em outras palavras, esse ser ideal preferiria um mundo que se con-
resultados, um mecanismo cuja utilização nos permite imaginar que podemos assu- formasse ao princípio de utilidade. O mundo utilitarista bem organizado deve ser
mir o controle. Em textos recentes sobre a justiça, o filósofo norte-americano John o Estado ideal para o perfeito espectador imparcial`.
Rawls (1971) tem nos lembrado quão central ao pensamento utilitarista era um mo- O modelo parece estruturar - cientificamente - o exercício do poder e fornecer
delo hipotético de tomada de decisões - o espectador independente - que pressupu- o ponto de observação ideal (ou o modelo hipotético ideal de tomada de decisões)
nha a visão total e o conhecimento total. para se avaliar as relações e as ações humanas e determinar os cursos de ação concre-
A imagem de um espectador independente utiliza algumas das idéias empre- tos a serem seguidos. O argumento parece convincente, mas as coisas são bem mais
gadas no "espectador imparcial" criado por Adam Smith - particularmente o concei- complexas. O modelo equivale a uma exigência injustificada de uma imagem de to-
talidade que nenhuma instituição humana pode, de fato, chamar a si`. Adam Smith
preta o panóptico como exemplo básico de tendências do condicionamento e da produção da subjetividade
foi muito mais modesto; a idéia de totalidade foi substituída por uma mão oculta,
moderna. Era uma instituição "onidisciplinar", sem nenhum enfoque que não a criação de uma disciplina ri-
gorosa e um comportamento conformista. Embora ouso do panóptico não se tenha difundido, as prisões ins-
creveram-se profundamente nas estruturas ocultas da sociedade moderna. Quando se sabe que as prisões 22. O filósofo utilitarista liberal John Stuart Miii, um dos mais importantes pensadores do final do sé-
são instituições fechadas, é interessante notar que Bentham pretendia que o panóptico fosse aberto ao pú- culo Xlix, afirmou que o utilitarismo dizia respeito à felicidade social geral, e que a utilidade exigiria do de-
blico, que poderia visitá-lo, examinar sua arquitetura e manter a instituição sob controle. As prisões são fra- tentor do poder - o soberano / governador—, caso se desempenhasse à maneira utilitarista, que fosse um ob-
cassos penais cujo número vem se expandindo - de que modo tais fracassos podem ser um sucesso? Fou- servador imparcial e desinteressado: um espectador independente.
cault argumenta queas prisões funcionam em conjunto com o fracasso, e não apesar deste - as prisões pro- 23. Essa figura ideal é, por certo, um substituto de Deus, pois na tradiçãõ cristã Deus é personificado
duzem uma forma particular de delinqüência, a patologia do crime. A experiência do aprisionamento cria um exatamente como uma figura onividente, onisciente e todo-poderosa que se ergue acima do mundo em que
conjunto de problemas sociais para os reclusos que assegura que eles continuem a cometer crimes quando vivem os homens. Não admira que um utilitarista inveterado como John Austin - que ainda acreditava em
libertados, mas isso, em vez de indicar a necessidade de acabar com as prisões, parece antes exigir que os in- Deus - pudesse referir-se à utilidade como "a medida dos comandos de Deus".
fratores voltem a ser presos, e que o número de prisões seja aumentado. Isso está ligado às relações de po- 24. E se nossa pessoa não experimentasse os problemas peculiares a certos grupos - por exemplo, se
der: o poder permite a produção do conhecimento; ti conhecimento é uma forma de poder; concretizado, esse fosse incapaz de sentir solidariedade por certos segmentos em decorrência de sexo ou raça? A capacidade so-
poder permite que se criem mais formas de conhecimento. A mudança social toma-se uma espiral contínua lidária de tal pessoa não seria integral. Analogamente, se nosso espectador ideal for menos que onisciente
de poder e conhecimento. A idéia da prisão como reformatório exige que se crie um conhecimento social que haverá um problema semelhante, uma vez que a falha de conhecimento torna imperfeita a capacidade de ser
visualize o praticante de um crime de tal modo que se possa considerá-lo como um ser que precisa de cor- solidário. Essa imagem ideal do espectador é impossível. É simplesmente impossível determinar o conheci-
reção. Garante-se, assim, uma nova forma de dominação. mento total ou o entendimento simétrico total dos pontos de vista de todas as outras pessoas.
236 Filosofia do direito Adam Smith, Jererny Bentham e John Stuart MilI 237
e nenhuma instituição humana ou corpo de governantes poderia se supor capaz de dade à minha concepção das coisas. Agora eu tinha opiniões; uma crença, uma dou-
realizar essa tarefa. Duas concepções constitucionais e dois conjuntos de desejos re- trina, uma filosofia; num dos melhores sentidos do termo, uma religião" (1966: 256).
formistas estão aqui em operação. O utilitarismo se volta para os ideais de controle Contudo, ele também descreve uma devastadora "crise mental" pela qual passou
e reforma, enquanto a idéia da mão oculta limita nossa concepção de nós mesmos aos vinte e poucos anos, e que atribui às deficiências dos primeiros anos de sua for-
como indivíduos poderosos. John Stuart Mill tentaria reconciliá-las. mação. De tão confiantes na doutrina da utilidade, seus professores haviam negligen-
ciado o lado emocional da vida, e isso levou Mill a considerar impossível combinar
seus sentimentos pessoais com sua doutrina social. Especificamente, em decorrência
III. JOHN STUART MILL: A REFORMA DO UTILITARISMO
E O DESENVOLVIMENTO DO PRINCÍPIO DE LIBERDADE da ênfase colocada na aquisição da capacidade analítica, ele não fora capaz de ad-
quirir uma visão geral da vida social. A educação utilitarista não havia "conseguido
Portanto, a mudança que está em curso e, em grande parte, já se consumou, é a criar ( ... ) sentimentos fortes o bastante para resistir à influência diluidora da aná-
maior já ocorrida nos interesses humanos. ( ... ) Quem quer que sobre ela medite e não lise". Além disso, embora o utilitarismo parecesse uma técnica extraordinária para
perceba que uma revolução tão grande contamina todas as regras de governo e política a tomada de decisões, não oferecia imagens de progresso social que estimulassem a
existentes, e torna inúteis todas as práticas e previsões baseadas exclusivamente na ex- imaginação. Os "antigos e conhecidos instrumentos, o louvor e a censura, a recom-
periência passada, carece do primeiro e mais elementar princípio da arte de governar em pensa e a punição", criavam uma adesão "artificial e fortuita" ao utilitarismo, em vez
nossa época (John Stuart Mill, "Civilization"). de aprofundar as ligações naturais de sentimento. Criava-se, desse modo, uma dua-
Se parecesse que o livre desenvolvimento da individualidade é um dos aspectos lidade que, de diferentes maneiras, viria a ocupar o centro de todos os seus escritos:
fundamentais do bem-estar, e que não se trata apenas de um elemento complementar a diferença - e também a interligação - entre o pessoal e o social. A relação assumia
a tudo o que se entende pelas palavras "civilização", "instrução", "educação" e "cultura", várias formas: a impossibilidade de criar, cientificamente, as bases da nova socieda-
mas de uma parte necessária e da condição de todas essas coisas, não correríamos o de, uma vez que os fundamentos da sociedade humana encontravam-se, em última
risco de que a liberdade viesse a ser subestimada (John Stuart Mill, On Liberty [A liber- análise, para além da ciência"; uma abordagem científica do direito e da ordenação
dade], [18591). social não criaria as condições para a obediência; em vez disso, o indivíduo preci-
saria encontrar seu próprio domínio de crença e sentimento, ao mesmo tempo que
reconhecesse o papel da ordem jurídica na criação do espaço em que teria lugar sua
ENTENDENDO O CONTEXTO DA HUMANIZAÇÃO INTRODUZIDA POR
JOHN STUART MILL NO UTILITARISMO CLASSICO DE BENTHAM busca pessoal. Depois de sua crise pessoal, Mil desenvolveria o pensamento utilita-
rista - que quase o havia levado a um colapso mental irreversível - de um modo que,
Ainda que talvez não tenha sido tão dura quanto conta a lenda, a infância de em última análise, faria ressaltar a pureza de sua força conceitual e seu alcance".
John Stuart Mill foi uma experiência de socialização utilitarista. Filho de James Mil!, Em seu famoso ensaio sobre o Utilitarismo, Mill procurou defender o princípio
amigo íntimo de Jeremy Bentham, Mill afirmou terem sido as opiniões de seu pai que da utilidade, e começou com uma definição desta que era compatível com Bentlin in:
"A crença que admite a utilidade, ou o princípio da felicidade da maioria, como fui
"deram o caráter distintivo à publicidade benthamista ou utilitarista"; quanto aos
damento da moral, sustenta que as ações estão corretas na medida em que tetu 1 i
canais que levariam o utilitarismo de seu pai a influenciar a reforma da Inglaterra,
Mill afirmou que "um deles fui eu mesmo, a única mente que, expressamente forma-
da pelos ensinamentos dele, viria a exercer considerável influência sobre diversos 26M1 descreve como ingênua a antiga crença no poder do conhecimento positivo: "não esp'i iv.
jovens"". Em sua autobiografia, Mill narra o impacto provocado pela leitura dos regeneração da humanidade a partir de qualquer ação direta sobre ( ...) a benevolência altruísta e o i i i-,i
textos de Bentham sobre punição e prisões (como não foram publicados em inglês tiça ( ...), mas sim a partir do efeito do intelecto bem formado, que viria a regenerar os sentimeni . ;'
na época, Mill leu a edição francesa de Etienne Dumont): "Quando terminei de ler Isso, porém, fracassou, e o elemento elitista em Mill levou-o então a argumentar que somente " ii 1
o último volume do Traité já não era mais o mesmo homem... A obra conferiu uni- levados por mais nobres princípios de ação" deixavam-se assim afetar; a maioria era incapaz
27. A educação de Mill conscíentizou-o de divisões que ele jamais poderia reconcilin,—til,
modernidade consistiu na criação de um mecanismo social que na verdade sobreviveu no , i fl 1h.
ver tentado reconciliá-las. Quando Miii empenhou-se em chegar à reconciliação, pare( i,i .1
25. É evidente que estamos discutindo John Stuart Mill fora de contexto histórico. Em termos de filo- para o socialismo; quando se absteve de fazê-lo, foi o liberal clássico de nossa época, dii I'
sofia do direito, ele talvez tenha sido o discípulo favorito de John Austin: ao desenvolver o texto completo das de aberta, os direitos das mulheres e a tolerância. Miil tem sido às vezes descrito corno ' 1
lições, o que Sarah Austin utilizou para complementar os escritos deixados por seu marido foram as anota- Rees (1977); por sua vez, outro escritor afirmou que nas obras de Mill é possível detectai
ções de Mill das aulas de Austin. os ventos que sopraram nos primórdios do século XD(" (Anschutz, 1953: 5).
238 Filosofia do direito Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Mill 239
a promover a felicidade, e erradas quando tendem a produzir o contrário desta. Por exercido pela sociedade sobre o indivíduo" (a edição aqui utilizada é a Penguin
'felicidade' entende-se o prazer e a ausência de dor; por 'infelicidade', dor e priva- Classics, 1974: 59, e a citação acima foi extraída da frase inicial do ensaio). Contudo,
ção de prazer" (1987: 278). Contudo, ao ampliar a teoria, Mill defendeu uma abor- ao menos na superfície, há uma certa ambigüidade em sua construção dos princí-
dagem qualitativa, e não quantitativa, da questão do prazer. O sistema de Bentham pios diretivos, o que nos leva a pensar na tese dos "dois Mills": parece haver dois
havia fundido formas de prazer que só diferiam em sua quantidade, isto é, diferentes princípios centrais ao ensaio, cada qual tido como supremo.
modos de comportamento produzem quantidades diferentes de prazer. Bentham Primeiro, Mill anuncia que vai enunciar um princípio como padrão de aferimen-
afirmou enfaticamente: "o trivial é tão bom quanto a poesia", deixando implícito que to da relação entre liberdade (autonomia) e autoridade:
o único critério para a virtude é a quantidade de prazer que um ato pode produzir.
Bentham chegou, inclusive, a falar sobre a criação de um termômetro moral que pu- O objetivo deste ensaio é o de enunciar um princípio muito simples, que permite
desse medir os diferentes graus de felicidade ou infelicidade - para ele, a virtude não controlar incondicionalmente as relações entre a sociedade e o indivíduo no sentido de
compulsão e controle, quer os meios utilizados sejam a força física, na forma de penali-
estava associada a tipos específicos de comportamento. Mill não podia concordar: "é dades legais, quer a coerção moral da opinião pública.
melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito", e reiterou que
preferia "ser um Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito". O pressuposto de Seu verdadeiro princípio veio a ser conhecido como o princípio de dano (ou prin-
que todos os prazeres eram comensuráveis era falso: "Os seres humanos têm facul- cípio de liberdade).
dades mais elevadas que os apetites animais, e, uma vez conscientes delas, não vêem
como felicidade nada que não inclua sua gratificação" (ibid.: 279). Era absurdo cal- Esse princípio é o de que a autodefesa é o único fim que justifica que a humanida-
cular a felicidade como uma função exclusiva da quantidade de prazer. de, individual ou coletivamente, possa interferir na liberdade de ação de qualquer um
Isso punha abaixo todo o edifício intelectual do utilitarismo. Se os prazeres têm de seus membros; que o único objetivo em cujo nome o poder pode ser legitimamente
de ser classificados em termos de sua qualidade, e não de sua quantidade, isso não exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é
só torna impossível um cálculo de base matemática, como também impede que o o de impedir o dano aos demais. Seu próprio bem, tanto físico quanto moral, não é jus-
prazer seja um padrão coerente de moralidade, uma vez que esta se torna mais li- tificação suficiente (ibid.: 68).
gada à questão (aristotélica) clássica de gerar situações que põem em relevo a po-
tencialidade de ser verdadeiramente humano. Além do mais, Mill era um moderno. A adesão a este princípio possibilita uma forma de vida social que amplia a li-
Qualquer que viesse a ser o modo de vida "natural" da pessoa moderna, tratar-se-ia berdade; inversamente, se os indivíduos ou o colegiado (o governo) interferirem con-
de uma vida criada pela capacidade tecnológica humana de criar ordens sociais`. tinuamente com as outras pessoas, torna-se impossível instituir uma forma de vida
Isso levou Mill a uma nova busca dos primeiros princípios através dos quais se pu- social liberal. Deve-se conceder ao indivíduo um espaço "social" privado no qual
desse governar a sociedade moderna e, desse modo, criar condições capazes de per- ele possa agir como quiser, e o que um indivíduo faz não é da conta do governo nem
mitir o desenvolvimento do homem e a verdadeira felicidade humana. de qualquer outra pessoa, na medida em que ele não cause dano a outras pessoas
no sentido relevante a ser definido. Com o tempo, isto passou a significar "na me-
dida em que o indivíduo não interfira nos direitos dos outros".
A LIBERDADE E A BUSCA DO PRIMEIRO Mill estabelece uma distinção crucial entre dano e ofensa. A interferência nas
PRINCÍPIO A GUIAR A POLÍTICA vidades de um indivíduo não se justifica pelo fato de outras pessoas não gos li
do que o indivíduo está fazendo; na verdade, é preciso haver dano no sentidu h'
A obra mais conhecida de Mill é seu ensaio A liberdade, publicada em 1859 sofram uma interferência física, ou que a interferência se volte contra seus 1
quando, aos 53 anos, ele era um respeitado autor de textos cruciais sobre lógica e de propriedade e outros direitos patrimoniais. A parte esses exemplos, as i 111vi
economia política. Mill afirma corajosamente que seu tema não é uma questão fi- des de um indivíduo não são da conta de ninguém.
losófica, mas sim "a natureza e os limites do poder que pode ser legitimamente Esse é um princípio vital que se tornou um dos princípios fundamenhii:;
tados liberais modernos". Para justificar o controle e a coerção do Estado tio',
28. "Por outro lado se, como acredito, os sentimentos morais não são inatos, porém adquiridos, não são
menos naturais por esse motivo. É natural do homem falar, raciocinar, construir cidades e cultivar a terra, ain- 29. O princípio extrai sua plausibilidade social de seu "ajuste" ao progresso social do ,.t
da que estas sejam faculdades adquiridas. Os sentimentos morais não são, na verdade, parte de nossa natu- da diferenciação na modernidade ocidental - uma imagem de desenvolvimento social que 'iii
roxo tio, sentido de estarem presentes, em qualquer grau observável, em todos nós; infelizmente, porém, esse logo "oficial", o francês Emile Durkheim, interpretava como o resultado de uma crescei ii' 19
um fato admitido por aqueles que mais acreditam" (1987: 303). lho e uma divisão da existência social em uma pluralidade de esferas sociais. A diferenciiçi ''«o'1
240 Filosofia do direito Adam S,nit/i, Jere#ny Bentham e John Stuart Mill 241
duta individual, é necessário que a conduta que procuramos coibir produza danos Terceiro, dessa liberdade de cada indivíduo segue-se a liberdade, dentro dos mes-
a outros cididãos. A sociedade só pode controlar aquela parte da conduta do mdi- mos limites, de combinação entre os indivíduos; a liberdade de unir-se tendo em vista
c afeta outras pessoas. As partes que só dizem respeito a ele próprio e à sa-
qualquer objetivo que não acarrete dano aos outros. Espera-se que os que se unem já
vídi tenham chegado à maioridade, e que não sejam forçados ou enganados.
tiol çu de seus desejos pertencem à esfera do domínio do indivíduo sobre si próprio,
S( 1 )j(' sua mente e seu corpo - o indivíduo é soberano em seu domínio privado. Mill
Portanto, os indivíduos também devem desfrutar a liberdade de interagir, de reu-
dtJiie toda uma esfera de ação inscrita por esse princípio. O princípio permite a cria- nir pessoas que agem consensualmente entre si, sempre a partir do pressuposto de
ção de uma esfera reflexiva, ou de atenção aos próprios interesses, que a sociedade que não prejudiquem outros indivíduos. Mill assim resume sua doutrina:
discriminou para o indivíduo e pela qual o Estado só tem um interesse indireto. Essa
esfera compreende: A única liberdade digna desse nome é a de lutar por nosso próprio bem do modo
como nos parecer melhor, desde que não tentemos privar os outros do que é bom para
Primeiro, o domínio interior da consciência, que exige liberdade em seu sentido eles, nem colocar obstáculos a seus esforços por consegui-lo. Cada um é guardião de
mais abrangente: liberdade de pensamento e sentimento, liberdade absoluta de opi- sua própria saúde física, mental ou espiritual. A humanidade ganha muito mais ao per-
nião e discernimento em todas as questões práticas ou especulativas, científicas, mo- mitir que cada um viva corno lhe parece melhor do que ao forçar cada um a viver como
rais e teológicas. parece melhor para os demais (todas as citações extraídas de 1974: 71-2).
À primeira vista, afirma Mill, pode-se pensar que "a liberdade de expressar e Mill está convencido de que sua "doutrina opõe-se categoricamente à tendên-
publicar opiniões pertence à esfera de um princípio diferente, uma vez que perten- cia geral da opinião e da prática correntes". Da mesma forma, opõe-se à tendência
ce àquela parte da conduta de um indivíduo que diz respeito às outras pessoas". do utilitarismo benthamista para a "disciplina". Mill admite que o interesse das an-
Contudo, a liberdade de publicar é tão importante, ou quase tão importante, quan- tigas repúblicas pela "disciplina física e mental de cada um de seus cidadãos" pode
to a liberdade de consciência. Na prática, o mesmo raciocínio é inevitável. ter sido admissível em uma pequena cidade-Estado cercada por inimigos; contudo,
o Estado do mundo moderno desenvolvido, em particular a maior dimensão e se-
paração entre a autoridade temporal e a espiritual (e a ascensão das consciências
Segundo, o princípio exige liberdade de preferências e ocupações, de traçarmos um
projeto para nossas vidas que esteja de acordo com nosso próprio caráter, de fazermos individuais) ofereciam a potencialidade de novas liberdades, bem como de técnicas
o que quisermos, sujeitos às conseqüências que podem advir, livres de obstáculos in- e desejos que, individualmente, poderiam extinguir-se".
terpostos por nossos semelhantes na medida em que nossos atos não os prejudiquem Que dizer, então, do poder diretivo do princípio de utilidade? Mill o terá des-
mesmo quando possam considerar nossa conduta como tola, perversa ou equivocada. truído enquanto princípio que se destinava a fornecer o padrão condutor da mo-
dernidade? De início, A liberdade parece um enigma a esse respeito. Primeiro, Mill
Precisamos ser livres para conceber nossas vidas como projetos, e cada um de afirmou que deve haver um princípio fundamental a conduzir a interação social
moderna, e propôs os princípios de liberdade ou dano como tal princípio - apresen,
nós "deve" ter o espaço social para desenvolver e dedicar-se a nossos projetos de
tando-o sem ressalvas ou meio-termo -, mas então, na página seguinte, apresentou
vida sem interferências, na medida em que não causemos danos aos demais.
outro candidato. Ali, afirmou:
que a moralidade incorpore a grande diversidade que decorre do fato de as pessoas terem ocupações e mo- Vejo a utilidade como o recurso supremo de todas as questões éticas, mas dv
ralidades muito diferentes, o que acontece ou porque elas têm moralidades profissionais, ou concepções morais tar-se de utilidade no sentido mais amplo, baseado no interesse do homem enquail l , ,
amadurecidas que são relevantes para as pessoas em seus papéis sociais específicos ou nos demais aspectos progressista (ibid.: 70).
de suas vidas. Não existe um conjunto de crenças morais fundamentais, únicas ou simples, que configurem
uma consciência coletiva simples e uniforme, estabelecendo uma orientação abrangente para a população toda. À primeira vista, deparamo-nos com dois princípios fundamentais possível ,
Ao contrário, a substância daquilo que as pessoas deveriam fazer moralmente é ambígua. O princípio de Mill que o contraste? Estaremos diante de uma prova da tese dos "dois Mills"?
se ajusta à imagem de Durkheim daquilo que este chamava de consciência coletiva (cf. Cotterreii, 1995: cap. 9),
e que antevia como algo passível de tornar-se uma entidade mais problemática nas condições da moderni-
dade avançada (solidariedade orgânica). Há uma necessidade de orientação e de se impor limites ao que as
pessoas fazem; mas elas vivem sob diversas condições e diferentes estilos de vida, e provêm de ambientes 30. Na mesma seção, Mlii se empenha em criticara nova "religião da humanidade" propo'Ia 1,, .\
sociais diferentes. Desenvolvem atividades diferentes (diferentes projetos), o que se deve permitir desde que, te Comte (1973; 1974), cujos textos haviam estado entre as principais leituras de Mil dura o Ii ii.' «1
concretamente, não causem dano a outras pessoas. Se não o causarem, o Estado não deve nem interferir em crise pessoal. Conquanto se inclinasse favoravelmente à concepção comtista de que precisomi'
suas vidas nem determinar o modo como devem viver. bases para a solidariedade social, passou a ver como totalitária a pressão moral que Comte 'ioI'
242 Filosofia do direito 243
Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Mil]
A COMPLEXA INTERAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO Devlin era um essencialista moral refinado; parecia acreditar que os princípios
DE LIBERDADE E O UTILITARISMO GERAL
morais nunca mudam; o que muda é a tolerância pública relativa ao desvio deles.
O liberal milliano pode ser mais cético com relação à tese de uma base ou existência
Em A liberdade existem todos os tipos de conflito aparente entre os princípios
atemporais desses padrões morais. Essa diferença "epistemológica" pode ajudar-
de liberdade e utilidade. O próprio Mill descreve várias situações potenciais nas
nos a entender muitos dos outros conflitos entre liberdade e utilidade que se evi-
quais se pode depreender que a maioria interfere; algumas são aparentemente bas-
denciam na modernidade tardia; por exemplo, os debates sobre paternalismo de
tante triviais, outras impressionantes. Ele descreve o caso dos países muçulmanos
Estado ou legislação sobre saúde e segurança. O princípio de dano parece especifi-
que proíbem a ingestão de carne de porco inclusive por parte dos cristãos que por
car que os governantes não podem autorizar a intervenção coercitiva em nome do
acaso neles vivam, ou de países católicos que se opõe ao casamento dos padres. A
bem da própria pessoa; contudo, ao menos a partir de certas concepções políticas,
ingestão de carne de porco e o casamento dos padres são fatos que Mill situa na
uma parte substancial da administração do Estado assistencial moderno interfere
esfera da atenção aos próprios interesses. Em outras palavras, desde que o que se
nas escolhas que as pessoas fazem tendo em vista seu próprio bem`. Até que ponto
come não prejudique os outros, ainda que se sintam ofendidos, desde que não ocor-
serão esses tipos de leis uma invasão da escolha de um estilo de vida, e quais serão
ra dano algum, ninguém tem o direito de interferir. Portanto, o dano, e não a ofensa,
legitima a interferência. seus limites? Em que medida essa linha de pensamento deve prosperar? Será pre-
A aceitabilidade do utilitarismo foi muito ajudada pela publicação da obra Uti- ciso, por exemplo, proibir os alimentos gordurosos? Fumar deve ser proibido?
litaríanism [Utilitarismo] em 1861, só dois anos depois da publicação de A liberdade. A existência de dois princípios antagônicos em A liberdade será uma contradi-
Muitas das mais impressionantes e importantes aplicações desta última têm enfa- ção real ou apenas mostra aspectos diversos de uma totalidade complexa? Para res-
ponder a essa pergunta é preciso situar, respectivamente, os papéis dos princípios
tizado o conflito entre individualismo e utilitarismo, ou entre o princípio de dano e o
utilitarismo. O princípio de Mill tem sido um ponto de referência constante nos de- de liberdade e utilidade na imagem de Mill do desenvolvimento da modernidade.
bates sobre a criminalização ou descriminalização de práticas como o consumo de Mill apresenta uma narrativa da modernidade na qual a liberdade - no sentido de-
drogas ou a homossexualidade (no famoso debate entre H. L. A. Hart e lorde Devlin, finido pelo princípio de dano - e a criação de uma esfera voltada para o próprio in-
que se seguiu à publicação do Relatório Wolfenden (Report ofthe Committee on Ho- teresse levarão a uma diversidade cada vez maior de estilos de vida, opiniões e co-
mosexual Offences and Prostitution, 1957). Hart adotou explicitamente a posição de nhecimentos. Não se trata de uma imagem neutra; há uma ligação específica entre
Mill`, enquanto Devlin argumentava que devemos estar preparados para usar o sis- a questão de por que é desejável ter esse tipo de liberdade e o que há de bom na
tema jurídico em defesa de uma moralidade fundamental: diversidade.
O argumento ocorre primeiro no nível da liberdade de pensamento e opinião,
( ...) sociedade significa uma comunidade de idéias; sem idéias comuns sobre política, mo- e passa para outro nível que Mill chama de experiências de vida. No nível da liberdade
ral e ética, nenhuma sociedade pode existir ( ... ) elas não podem ficar à margem da socie-
dade em que vivemos (Devlin, The Enforcement ofMorals [A imposição da moral], 1965:10).
32. É possível que a preocupação básica de Devlin fosse na verdade o niilismo, ou a perspectiva das
conseqüências se a contingência e a arbitrariedade potencial da vida social fossem reveladas. A experiência
do niilismo surge com a percepção de que não existe uma maneira obrigatória de perceber as coisas. As cren-
31. No debate entre Hart (Law, Liberty and Morality, 1963: esta ampla defesa do liberalismo da teoria
ças que alguém tinha anteriormente, seus objetivos e fins parecem ser aviltados, e a unidade de prop(;il'
jurídica e crítica do "moralismo judicial" talvez seja a melhor obra de H. L. A. Hart, sem dúvida superior a The
vida social se dilui. Devlin parecia sugerir que, se os princípios morais basilares de uma sociedade foes'ni es.
Concept ofLaw) e lorde Devlin sobre a descriminalização da homossexualidade, Devlin apresentou um crité-
tos como contingências, então a sociedade entraria em colapso. Apresentou três princípios para h. iii, ii eu
rio para o que deveria ou não ser descriminalizado em termos daquilo que ofendesse profundamente o homem
o impulso de Mill com seu próprio desejo de estabilidade: (i) máxima liberdade compatível com ii
sensato. Em parte, tal postura se assemelha intelectualmente à da análise durkheimiana de que as coisas são
social; (ii) o direito deve ser lento ao mudar sua postura moral, pois tem de preservar os fundaru'nii,.
criminais quando chocam a consciência coletiva. Devlin usa um argumento utilitarista categórico, citando ca-
tais da sociedade; (iii) a privacidade deve ser respeitada ao máximo possível.
sos (por exemplo Bowman os. lhe Secular Society, [1917] AC 406) para demonstrar a opinião judicial anterior
de que o direito deve intervir e fazer cumprir a moralidade de modo que salvaguarde áreas "essenciais a sua 33. Por exemplo, as leis que regem ouso dos cintos de segurança. Poderíamos argumezil.ti 'I
ta deuma interferência em nossa liberdade de dirigir sem ter de usar o cinto de segurança. Seni ,Iiivi,Li,
existência". Devlin, portanto, defendia a intervenção do Estado e esperava que este criminalizasse certos atos
rém, há uma justificação utilitarista, isto é: se as pessoas não usassem os cintos, muito mal; iii 1 ii' 1
independentemente do dano que na verdade viessem a provocar. Nos termos da argumentação de Devlin é
acidentes de trânsito, e os serviços de saúde gastariam muito mais dinheiro coma maior use ''iii
melhor, para o bem da comunidade, banir certas práticas. Ainda que na origem do debate estivesse a homos-
tes. O mesmo argumento se aplica aos capacetes para motos. Acredita-se que os cálcul.". iIiIiI.,i ii.
sexualidade, que, como Devlin parecia sugerir, ofendia profundamente o público, ele terminou por conter sua
do número devidas poupadas se os capacetes forem usados, ouse o mesmo ocorrer coJ 1
aparente aversão à homossexualidade para aceitar que o direito fosse moderado.
rança, justifiquem a criação e a aplicação de tal legislação.
244 Filosofia do direito Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Mill
de pensamento e opinião, Mill argumenta que na verdade existem quatro razões nos tornaremos mais plenamente humanos no futuro se não formos programados
pelas quais é preciso tolerar outros tipos de opinião além daqueles com os quais es- como algum tipo de máquina, mas pudermos nos desenvolver de muitas maneiras
tamos de acordo. diversas. A humanidade deve ter diferentes projetos de vida e idéias antagônicas so
bre o sentido da vida. Tanto nos pensamentos quanto no modo de viver, a diversi-
Primeiro, se qualquer opinião for forçada ao silêncio, tal opinião pode, até onde sa- dade vai gerar a individualidade. A reflexão é crucial:
bemos, ser verdadeira. Negar tal fato equivale a presumir nossa própria infalibilidade.
Segundo, ainda que a opinião silenciada estiver errada, poderá - o que muito co- Se o cultivo do entendimento consiste mais em uma coisa que outra, trata-se certa-
mumente acontece - conter um fragmento da verdade; e, como a opinião geral ou cor- mente da aquisição dos fundamentos das próprias opiniões (ibid,: 97).
rente sobre qualquer assunto raramente (ou nunca) contém a verdade toda, é apenas
através do choque de opiniões contrárias que se dá alguma possibilidade de completar Tampouco devemos admitir a racionalidade de nossas crenças pelo simples fato
o conhecimento da verdade. de já existirem há muito:
Terceiro, ainda que a opinião aceita não seja apenas verdadeira, mas a verdade toda;
a menos que se lhe permita ser, e que na verdade o seja, vigorosa e seriamente contestada, A tendência fatal da humanidade em deixar de refletir sobre uma coisa quando ela
será considerada como um preconceito pela maioria dos que a recebem, com pouca com- já deixou de gerar dúvidas é a causa de metade de seus erros (ibid.: 105).
preensão ou sensibilidade por suas bases racionais. E não apenas isso, mas...
Quarto, o significado da própria doutrina estará em risco de perder-se ou debilitar-
se, bem como de privar-se de seu efeito vital sobre o caráter e a conduta: o dogma será Os dois princípios associam-se e operam conjuntamente em nome do progres-
professado apenas formalmente, ineficaz para o bem, mas capaz de contaminar a base so social. Depois de enfatizar a diferença entre sua posição e a de Bentham ao afir-
e impedir o desenvolvimento de qualquer convicção real e sincera que provenha da ra- mar que precisávamos distinguir a qualidade e a quantidade da utilidade, Mill argu-
zão ou da experiência pessoal (1974: 115-6). menta que existem formas superiores e inferiores de utilidade. As formas superiores
são as que, para um indivíduo, provêm do autoquestionamento, da experiência de
A vida numa sociedade que permite a diversidade de opinião é um fenômeno argumentar e examinar criteriosamente concepções e estilos de vida alternativos. É
existencial diferente da vida numa sociedade fechada. Mill está preocupado em criar uma utilidade que decorre da experiência da diversidade e complexidade. Mill argu-
as condições que permitam o desenvolvimento de livres-pensadores, e nas quais o menta implicitamente que certas condições sociais são necessárias para que, a lon-
pensamento possa libertar-se do despotismo do costume. go prazo, os indivíduos possam desfrutar da utilidade nesse sentido mais alto. A
longo prazo, a liberdade é muito importante para a utilidade no sentido mais alto;
Entre as obras do homem nas quais a vida humana é devidamente empregada a liberdade produz os tipos de diversidade que nos deixam livres para criar diferen-
para aperfeiçoar e embelezar, a primeira em importância é certamente o próprio ho- tes formas de vida e novas tecnologias.
mem (ibid.: 123).
A verdade ganha mais com os erros daquele que, com estudo e preparo, pensa
por si próprio, do que com as opiniões daqueles que só as têm porque não se dão ao O PRODUTO FINAL DA INTERAÇÃO ENI'RE LIBERDADE
trabalho de pensar (ibid.: 95). E UTILIDADE É O PROGRESSO SOCIAL
As pessoas deviam criar suas próprias idéias ao pensarem por si mesmas, con- A liberdade e a reflexão levam a sociedade a um nível superior. A exper 1.1 1
testando as alternativas que se lhes apresentam. Alguma coisa de valor vem à tona vida do indivíduo deve, portanto, tornar-se uma questão de alternativas Sob 1,111,
II
a partir dessa diversidade de argumentos, ainda que muitas das opiniões sejam
ele possa refletir". Para Mili, a vida deve ser autocriativa e escolhida pelo i 1 , 1 ii ii
equivocadas. Se uma pessoa argumenta com idéias e posições que lhe são próprias,
divíduo a partir das exigências conflitantes de todas as possibilidades 1! 1
ela se liberta do despotismo do costume e alcança a individualidade racional`. Só
em oferta. Escolhemos nossa trajetória devida, desenvolvemos nossos 'i 1
34. Mil! (ibid.: 123) argumenta implicitamente contra a combinação bentamista de utilidade e discipli-
35. Assim, a posição é a de que a liberdade produz diversidade, que produza individl 1.111
na, deduzindo qual é o valor se tivermos alcançado superioridade tecnológica mas também criado pessoas
na, que produz utilidade no mais alto sentido. Este é um argumento baseado no interk 'i '1 . M11,1
que são "autômatos em forma humana". "A natureza humana não é uma máquina a ser construída segundo
um modelo e obrigada a fazer exatamente o trabalho que lhe for determinado, mas sim uma árvore que pre- na qual as pessoas estão continuamente perguntando e questionando: "Por que estamc'; ;i1IIl
cisa crescer e desenvolver-se por todos os lados, em conformidade com a tendência das forças internas que tamos vivendo assim?", "Por que nós, estudantes de direito, estamos loucos para nos W1i .
dela fazem uma coisa viva." "Como vai indo minha vida?", "Que tipo de pessoa sou?" e "Que significo eu?"
246 Filosofia do direito Adain Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Mill 247
vida com base na consciência que temos dessas alternativas e, assim como com a li- ou da necessidade de controle social em oposição ao princípio de liberdade
berdade de pensamento aprendemos a partir dos erros dos outros, com a experiên- Mill). Contudo, Stephen põe em foco um insight sociológico crucial: o funciona-
cia da diversidade aprendemos a partir da comparação entre nossos pensamentos mento do Estado ou das leis oficiais depende de sua adequação às leis não escritas
e experiências e os dos outros. Aprendemos ao testemunhar os erros e os acertos das ou não oficiais que operam na sociedade. Para Stephen, o Estado liberal vitoriano
vidas alheias, do mesmo modo que aprendemos a partir dos argumentos certos e só era possível graças à disciplina social imposta pelas leis não escritas. Em sua opi-
errados de nossos semelhantes. Estamos a serviço da utilidade ao trilharmos esse nião, a sabedoria de todas as épocas estava codificada nessas leis e, portanto, a in-
caminho socrático escolhido por nós mesmos, questionando-nos e dirigindo-nos tolerância social era um mecanismo de proteção natural. Além disso, Stephen dis-
por nossa própria conta e risco. Além do mais, a longo prazo podemos também ser- cordava de Mill quando este clamava por uma categoria de ações voltadas para o
vir à utilidade em seu sentido superior. próprio interesse, as quais deviam ser toleradas desde que não causassem dano a
Isso exige uma cuidadosa demarcação das áreas nas quais as pessoas se depa- ninguém. Ele argumentava que tal postura era demasiado atomística; quase tudo o
ram com a diversidade. O princípio de dano de Miii tenta configurar o direito no sen- que uma pessoa fazia afetava as demais. O suicídio, a libertinagem e o consumo de
tido de que a legalidade demarca um espaço social em que os indivíduos possam drogas não prejudicavam apenas aqueles que os praticavam; portanto, a sociedade
desenvolver-se com liberdade de opção, com limites definidos ao se evitar a interfe- tinha o direito de interferir para proteger os outros e a si mesma. Além do mais, Mill
rência que prejudique os demais. Portanto, a criatividade da teoria que Mill oferece parecia ser otimista demais na opinião que fazia das pessoas comuns; Stephen acha-
ao direito permite que este constitua o espaço da individualidade; mas também de- va que a massa humana era excessivamente mal-educada para poder criar códigos
vemos ter consciência de quão limitado é o papel que o direito escrito ou do Estado morais próprios, e tampouco tinha a força de caráter necessária para obedecer aos
desempenha no controle social. Mill tinha aguda consciência daquilo que chamava códigos que desse modo houvessem criado. Assim, as sanções sociais externas eram
de direito não escrito - convenção social - e, se nos esquecêssemos do papel da opi- necessárias para se manter a moralidade. Por último, Stephen rejeitava a concep-
nião social ou do impacto dos meios de comunicação de massa, estaríamos ignoran- ção milliana de que a pluralidade e a diversidade seriam boas em si mesmas. O fato
do uma fonte vital de opressão social. de a virtude assumir diferentes formas não significava que a variedade fosse sinô-
nimo de virtude. Uma nação de degenerados demonstraria mais variedade, mas se-
OS PAPÉIS RESPECTIVOS DO DIREITO ESCRITO OU DO ESTADO E ria também mais criminosa e, desse modo, nunca chegaria a ser uma nação melhor.
DO DIREITO NÃO ESCRITO E A NECESSIDADE DE TOLERÂNCIA Em razão disso, Stephen estigmatizava a dissensão e a variação como comporta-
mentos tolos e frívolos.
O uso de sanções foi exigido para fazer cumprir as leis oficiais ou do Estado, mas
as sanções sociais - o ostracismo, por exemplo - atendiam a leis não escritas. Mill ar-
É POSSÍVEL TRAÇAR FACILMENTE AS FRONTEIRAS
gumentava que as pessoas poderiam ser reprimidas por leis não escritas e sanções
ENTRE DANO E OFENSA?
sociais ainda mais do que por leis oficiais. Fica claro que Mill sentia uma profunda
repugnância pela estreiteza mental da sociedade vitoriana, e que defendia a tolerân-
Seremos capazes de estabelecer facilmenté uma distinção entre dano e ofei
cia por sentir que a liberdade, a individualidade e a pluralidade tinham um valor éti-
co superior ao da conformidade e da padronização; faziam do homem um ser "de Em seu livro Harm to Otl-zers (1948), o professor norte-americano Joel Fienbur',
mais digna contemplação". sentou uma lista de exemplos nos quais nos deparamos coma questão de P
quais casos a ofensa se converte em dano. Ele apresenta, por exemplo, toda i 111
rie de coisas desagradáveis que uma pessoa pode fazer dentro de um ônihii:
James Fitzj ames Stephen e a defesa da intolerância a simples leitura de um jornal que não agrada aos outros passageiros e i i i ti
cada em alto volume até a masturbação, a relação sexual completa e o sx' nt1111
A liberdade, de Miii, foi amplamente atacado pelo juiz vitoriano James Fitzja- mais. Esses exemplos se destinam a examinar as diferenças entre ser sii
mes Stephen (Liberty, Ecjuality, Fraternity [Liberdade, Igualdade, Fraternidade], 1861). alvo de uma ofensa e sofrer algum dano. Esse é o ponto crucial do principi
Stephen defendia a intolerância, argumentando que sua prática preservava a socie- ou liberdade de Mill, só que aqui em outros trajes. Entretanto, até cert J 11
dade da violação da lei. Sua escolha do termo "intolerância" talvez tenha sido um táf ora dessas coisas desagradáveis praticadas dentro de um ônibus co i 1 .
erro, e Stephen costuma ser rejeitado como um reacionário (alguns de seus segui- ponentes da sociedade individualista moderna. Ficamos a nos perguti 1, 11
dores deram preferência à linguagem da ordem social, da disciplina, da autoridade dade poderia, de fato, ser coerente sem algum controle sobre a conduta 1 11,
248 Filosofia do direito Adam Smith, Jereiny Bentharn e John Stuart Miii 249
denável. A experiência de instituições como o movimento do Living Theatre * ou, de moral e política. Através da liberdade de pensamento e de expressão, aprenderemos
maneira diversa, ao surrealismo do Théâtre de Complicité**, consiste em contestar e, com o "outro"; ao sermos tolerantes com ele, ao permitirmos a diferença e a diver-
através da transgressão, demonstrar a força do desempenho convencional de papéis sidade, estaremos tecendo um tipo de rede básica que cria uma nova forma de soli-
e das expectativas do comportamento cotidiano. dariedade social.
A questão é complexa e seu objeto instável: a linha divisória entre dano e ofen- De que modo isso se reflete na questão da justiça? Talvez estejamos afirman-
sa é uma medida de variação em que o ponto crucial da distinção é evidentemente do que a solução do problema da justiça seja uma função da imagem da natureza
muito sutil. Hoje, muitos temem que esse processo tenha ido longe demais - em todo humana e da existência social. Mill parece otimista diante do pressuposto de que, se
o mundo ocidental apresentam-se argumentos conservadores afirmando que o de fato houvesse sociedades centradas na liberdade e na diversidade, em experiên-
Ocidente perdeu o senso de autoridade e que, em decorrência disso, deixou de ter cias de vida e na individualidade, as pessoas teriam uma existência com um mínimo
coesão social. Por outro lado, pergunta-se, haverá de fato uma sociedade coesa que de ressentimento. Contudo, a previsão apavorante para o futuro é que a sociedade
tenha alcançado uma grande diversidade e cujo povo esteja engajado em diversas pudesse desintegrar-se; não serviria à utilidade no sentido superior, mas em vez dis-
experiências de vida? Os excêntricos argumentam que não somos suficientemente so produziria divisões drásticas entre a liberdade e a utilidade. Não há uma respos-
tolerantes`. ta fácil. O modo de enfrentar esse problema pode ser uma questão de otimismo ou
pessimismo quanto ao desenvolvimento das sociedades modernas.
O OTIMISMO DE MILL A PROPÓSITO DA MODERNIDADE
QUE DIZER DA IDÉIA DE UMA CIÊNCIA DA SOCIEDADE?
Mill era um otimista; acreditava que as experiências de vida reais poderiam ser O PRINCÍPIO DE LIBERDADE SIGNIFICA QUE NENHUMA CIÊNCIA
sintetizadas por uma sociedade vibrante que poderia experimentar um amplo nível É POSSÍVEL? A PROCURA DA VERDADE FORNECE
de diversidade e, ainda assim, ser coerente, e que isso produz utilidade em seu sen- O MODELO PARA A SOCIEDADE ABERTA
tido superior. Contudo, se não se pretende que a liberdade e a utilidade entrem em
conflito, precisamos de tolerância e de uma concepção narrativa do progresso social. Se todas as pessoas, com exceção de uma, tivessem uma única opinião, a humani-
A questão é: a diversidade e a liberdade vão produzir tolerância ou ressentimento? dade não estaria mais justificada ao silenciar tal pessoa do que esta, caso tivesse o poder
Se produzirem ressentimento, este poderá então levar a formas coercivas de contro- de fazê-lo, estaria justificada ao silenciar a humanidade ( ... ).
le social; a forma de dinâmica social que nasce da diversidade pode ser imprevisível. O mal característico de silenciar a expressão de uma opinião está no fato de se es
Muitos talvez procurem dar as costas às experiências de diversidade e liberdade. Mill poliar a raça humana, a posteridade e a geração atual - aqueles que discordam da oi
imaginava que, a longo prazo, serão instauradas a compreensão e a tolerância mú- nião, ainda mais do que aqueles que a defendem. Se a opinião estiver correta, eles strn
tuas; as pessoas aprenderão com as experiências de vida de seus semelhantes. Ao privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se estiver errada perderão o
que quase equivale a uma grande vantagem - a percepção mais clara e a impressão ma is
permitir diferentes estilos de vida, por mais que se possa discordar deles de início, a
viva da verdade produzidas por seu embate com o erro (íbid.: [185911974: 76).
longo prazo a sociedade passará por um avanço na qualidade da argumentação Há uma enorme diferença entre se pressupor que uma opinião é verdadeira pou I 1
com todas as oportunidades de se contestá-la, ela não foi refutada, e pressupor '1
dade com o objetivo de não permitir sua refutação. A liberdade total de contrz cl /
* Pioneiro do movimento off-Broadway nos anos 50, o Living Theatre de Julian Beck e Judith Malina
marca um movimento de vanguarda altamente renovador na dramaturgia ocidental. Foi um teatro de ruptu-
futar nossa opinião é a condição mesma que nos justifica ao presumirmos su. i v
ra que forçou os cânones tradicionais, aos quais se acrescentava a contestação política. O Living Theatre este- tendo em vista a prática de uma ação; e não existem outros termos nos quais u
ve no Brasil na década de 70; seus membros foram presas em Ouro Preto, onde permaneceram por dois me- tado de faculdades humanas possa ter qualquer certeza racional de estar certo (ti)ii
ses até serem expulsos do Brasil pelo presidente Médici. (N. do T.)
** Companhia fundada em Londres, em 1983, por Annabel Arden, Simon McBurney e Marceilo Magri. O panóptico pode ter exercido tanto fascínio sobre o utilitarismo bei 1
O grupo desenvolveu um tipo de "teatro total" que utilizava experimentalmente a mímica, a improvisação,
as técnicas da commedia dell'arte e da atuação dos palhaços, e as acrobacias, mesclados às formas mais tradi-
porque Bentham parecia ter poucas dúvidas sobre a "verdade" de sua ptc;iç 1
cionais de teatro, inclusive o teatro No. (N. do T.) do chegado meio século depois, a filosofia social de Mill era um refl\
36. Atualmente faz-se grande uso retórico da década de 60, tida como "permissiva". Afirma-se que foi epistemologia mais "liberal"; os seres humanos não podem conhecer a vc Lo
uma época de experimentação e diversidade social, mas os anos 60 podem muito bem ter produzido a rea-
ção da maioria moral, as exigências de um tipo de conformidade opressiva e coerciva e a indignação diante
das pessoas rotuladas de "estranhas", atitude que se tornou comum em nossos dias. 37. 0 mesmo se pode dizer da filosofia jurídica de John Austin, cf. capítulo 9 do presente texto.
250 Filosofia do direito Adam Srnith, Jeremy Bentharn e John Stuart Mill 251
soluta de maneira inequívoca. Sua conciliação do princípio de dano com o utilitaris- A FILOSOFIA LIBERAL PRECISA SER COMPLEMENTADA COM
mo permite o desenvolvimento de um grande número de práticas de vida. Esperava- O DISCERNIMENTO HISTÓRICO E SOCIOLÓGICO
se que, desse modo, viessem a florescer formas de vida social eficazes e meritórias.
O que está em jogo é saber quem pode dizer a "verdade" da vida social. E o que é A idéia da evolução estava solidamente arraigada no espírito dos meados da
a verdade? Que condições socioestruturais são necessárias para se permitir o sur- época vitoriana, e, em sua idéia de progresso, muitos se voltavam para uma concep-
gimento de possibilidades futuras para a existência humana? A máxima de Hume ção grosseira da evolução por etapas inevitáveis do desenvolvimento humano. Con-
segundo a qual os seres humanos só são tão bons quanto suas instituições contém tudo, enquanto Mill acreditava que as instituições inglesas deviam espalhar-se pelo
a solução do problema - uma sociedade progressista requer uma ordem jurídica e mundo, o determinismo evolutivo em estado bruto era alheio a sua obra. Ao con-
um conjunto de instituições sociais e políticas que permitam o desenvolvimento da trário, "ele assimilara duas idéias que eram ao mesmo tempo bem fundadas e impor-
tolerância, da diversidade e do pluralismo - em qualquer época serão inimigos do tantes. A primeira era o fato de que as instituições políticas dependiam das institui-
liberalismo todos os que procurarem, sob a alegação de algum conhecimento supe- ções sociais, e a segunda era a natureza psicológica da sociedade" (Sabine e Thorson,
rior, eliminar o pluralismo em nome da pureza e da certeza. O que estará, porém, na 1973: 650). Quando se compreende isso, a idéia de Austin de "hábitos de obediên-
base do liberalismo? O liberalismo deve fundar-se no ceticismo? Pode-se afirmar cia" (ver capítulo 9 deste livro), usada para caracterizar um aspecto da soberania,
que isso não oferece defesa alguma contra aqueles que enfatizariam a fragilidade torna-se um modo de comportamento induzido por uma instituição social. Da mes-
do pluralismo para a tomada de decisões? ma forma, os argumentos adotados por Austin e pelo pai do próprio Mill sobre as
Quando Mill passou por uma crise pessoal e questionou seu utilitarismo, vol- atitudes psicológicas associadas ao trabalho e ao consumo não são naturais ou imu-
tou-se, entre outros, para os escritos de Comte e Coleridge, dos quais extraiu diver- táveis, mas antes os efeitos da ordem capitalista. Além do mais, A líberdade apre-
sas conclusões: senta a tese de que o governo liberal depende do respeito social e moral pela indi-
vidualidade e pela liberdade.
Que a mente humana tem uma certa ordem do progresso possível na qual algumas Vejamos quais são as implicações dessa combinação de individualidade e liber-
coisas devem preceder outras, uma ordem que o governo e as autoridades públicas po- dade. Não se trata de liberdade no sentido de cada um desempenhar seu papel na
dem modificar até certo ponto, mas não indefinidamente; que todas as questões das ins- máquina bem azeitada do utilitarismo benthamista, nem da eudaemonia da tradição
tituições políticas são relativas, não absolutas, e que as diferentes etapas do progresso hu- aristotélica clássica, nem do comunitarismo expressivo de Rousseau e Hegel. Ao con-
mano não apenas terão, como deverão ter, diferentes instituições; que o governo está trário, essa liberdade "liberal" é a possibilidade prática, para cada indivíduo, de per-
sempre ou nas mãos, ou passando para as mãos de qualquer que seja o poder mais forte seguir sua felicidade como lhe parece melhor, de voltar sua vida para um conjunto
de uma sociedade, e que a natureza de seu poder não depende das instituições, mas es- de projetos pessoais e procurar concretizá-los. Desse modo, o pluralismo liberal pa-
tas dele dependem; que qualquer teoria ou filosofia geral da política pressupõe uma teo- rece distanciar-se da tese de que existe uma concepção substantiva e única do bem
ria anterior do progresso humano, e que o mesmo se pode dizer de uma filosofia da his-
tória (Autobiography, 1873: 162, citado em Sabine e Thorson, 1973: 649). comum que a sociedade deve expressar e corporificar. E muito fácil afirmar tudo
isso de forma negativa: uma forma em que a liberdade liberal se assemelha a uma
liberdade vazia e sem raízes, "desfrutada" no âmbito das regas jurídicas de um jogo
Voltamos a Hume: para ser realista, o entendimento filosófico precisa tanto de
comercial essencialmente predatório - uma sociedade de mônadas atomísticas e
uma consciência histórica quanto da complementação de um conhecimento empí-
egoístas. Contudo, isso também pode ser expresso de forma afirmativa; a sociedade
rico da situação humana - de uma sociologia. A psicologia individualista na qual, em
liberal realmente representa certos valores: não é neutra, uma vez que a própria re-
boa parte, o liberalismo de fins do século XIX se fundamentava, precisava casar-se
cusa em evitar uma imagem de perfeição humana equivale à adoção de uma mia-
com uma análise histórica do desenvolvimento das instituições sociais e da raciona-
lidade que lhes era inerente`.
sitivos e mostrar a tais pessoas de que modo a reforma pode tornar as coisas ainda melhores; (iii) a tática do
reformador deve adaptar-se à época e ao lugar em que ele vive. Os ingleses viam com desconfianç;i o
38. Críticos favoráveis a Mill têm sugerido que o filósofo extraiu três lições das leituras que fez duran- so especulativo ou sistemático; portanto, o reformador teria maiores possibilidades de sucesso ao concentrar-se
te suas crises: (i) não basta simplesmente criticar as instituições, leia e diretrizes políticas; a crítica deve ser em questões particulares, e só lentamente tentar introduzir princípios mais gerais.
acompanhada por propostas de alguma coisa melhor; (ii) a tática bentamista de descartar os que defendiam Estas talvez tenham sido as táticas de Mill, e o fato de que ele talvez tenha renunciado voluntariamen-
instituições obsoletas como se apenas defendessem interesses pessoais era um erro, uma vez que as práticas te a escrever uma formulação de seus princípios políticos e sociais gerais - preferindo, em voz disso, escrever
e instituições que hoje eram obsoletas no passado haviam servido a um fim social, e as pessoas que as de- ensaios sobre temas específicos - pode ter favorecido sua recepção entre os ingleses, mas também dado ori-
fendem ainda vêem nelas aspectos positivos; portanto, o reformador deve trabalhar com esses aspectos po- gem à impressão de que ele podia defender pontos de vista contraditórios,
252 Filosofia do direito
39. Ronald Dworkin .é aqui estudado erro capítulo à parte. Por ora, basta dizer que, em sua opinião, o li- John Austin (1790-1859) criou a estrutura profissional.çlp ensino da teori j
ti
beralismo deve afirmar-se de modo positivo. Portanto, ele pode assim descrever a posição de MiO: "Uma vez rídica em por sua vz, sua filosofia jurídica extraiu seus fundamenL
que os cidadãos de uma sociedade diferem em suas concepções, o governo não os tratará como iguais se pre-
ferir uma concepção à outra, ou porque as autoridades acreditam que uma delas é intrinsecamente superior,
ou porque urna delas é adotada pelos grupos mais numerosos ou poderosos" (1978: 127). Isso, porém, não
1. A Universidade de Londres foi criada em 1826 por um grupo vagamente associado r ]Bei 1
equivale a fazer do liberalismo uma posição conciliatória, admitida somente na ausência da verdade; em vez
tham, com a finalidade expressa de reformular o alcance e a substância da educação superi 11 ,1 ]Jigi,11v11a.
disso, Dworkin (adotando uma postura um tanto kantiana) afirma: "O liberalismo não pode ter por base o ce-
John Austiri' aceitou a oferta da cadeira de filosofia jurídica com entusiasmo e, para prep . 1
ticismo. Sua moral constitutiva determina que os seres humanos devem ser tratados como iguais por seu go-
com a es.posa Sarah para Bonn, onde aprendeu alemão e estudou aobra histórica dos COlIlIO;
verno não porque não exista certo ou errado em moral política, mas porque isso é que é o certo" (ibid.: 142).
bre os códigos romanos e leu as obras mais recentes de Hugo, Thibaut e Savígny.Ao viEn;
40. Os inimigos podem ser diferentes: enquanto os nazistas podem ter atacado de emboscada a demo-
1828 e 1829, tendo entre seus alunos John Stuart Mil, George Cornewell Lewis (que foi nni;;;;iI i tu \.Iil
cracia pluralista da República de Weimar, a indiferença, a apatia e o populismo podem ter sido os inimigos
ta juntamente com Austin), sir John Romilly e sir Wihiam Erle, todos os quais se tohiariarn r; ii It o i efoi ii
do liberalismo no fim do século XX.
254 Filosofia do direito John Austin 255
obra de Hobbes e Bentham'. Enquanto este último entra com a influência imedia- resses,os de toda uma população eram sacrificados e o povo era explorado" (L. e J.
ta, Austin reconhece sua dívida para com a clareza com que Hobbes expôs a neces- Hamburger, 1985: 31). Tanto o sistema político quanto o jurídico precisavam de urna
sidade governo forte e raciondi um goverioue usa o direito positivo— os reforma radical. A nação-Estado reforniuio,d&que e tinha em mente daria a todos
comandos do soberano - coi..i.nsrwnqnto para moldar retorrnao pnjunto de o direito ao voto eseria uma associação política esclarecida e racional que não hesi-
deveres e obrigações que fornecem a estrutura para,2 progressp da sociedade taria em recorrer à coerção autorizada - um controle secundado pelo poder de punir
Contudo, concentrar-se no poder e no comando equivale a não se dar conta do se- e prender - de acordo com a orientação dos conhecimentos positivos em desenvol-
gundo aspecto do modo como Austin entendia o legado de Hobbes: a necessidade vimento. Por sua vez, a teoria jurí& a estrutura de urna nja
do conhecimerito.da çq ohurnaria e das condiçõeçle governo, bem como a ne- constituição - uma constituição sociopohtica - que incluía os elementos essenciais do
cessidade de criar uma ordem social moderna4 .
conheimentg,do poder, do comando e daobediência, todQs unidos e orientados por
O jovem Austin sustentava uma "crença dogmática (...) em que a aristocracia usa- urna nova crença social: o utilitarismo. O fundamento dessa constituição - dessa
va o Parlamento e outras instituições como os tribunais, a Igreja e o Exército para pro- nova ordem social - não é a vontade subjetiva ou a vontade das elites que, fisica-
mover seus próprios interesses, os quais, por serem os interesses de urna classe, eram mente, configuram a soberania, e tampouco se reduz a uma questão de relações de
sinistros. Conseqüentemente, enquanto a aristocracia perseguia seus próprios inte- poder. Austin defende uma crença objetiva; como ele afirma claramente em sua Li-
ção TIL acredita na capacidade de o(s) conhecimento(s) positivo(s) revelar(em) as ver-
dades subjacentes da estrutura sociopolítica', e considera jue o papel de educação
dores nos ano seguintes. Austin não era pago por seu cargo, mas esperava-se que seus honorários viessem consiste em difundir pelo menos os aspectos fundamentais desses conhecimentos
de subscrições pagas pelos próprios alunos. Apesar de ter recebido uma proposta salarial no início da déca- parQtpda a sociedade. Na combinação de governo racional e população educada en-
da de 1830, desistiu de sua cátedra em 1832 por razões financeiras, publicando nesse mesmo ano The Provin- con.sqchave do progresso soc)tl objetivo é a modernidade, e essa mode
cc of Jurisprudence Deterniined [Delimitação da esfera de ação da filosofia do direito], uma versão aumentada
da primeira parte de suas lições. De acordo com Sarah, John Austin ficou profundamente deprimido com o
ide deve tornar éún dspaço social unido pelo conhecimento, com uma consciên-
fracasso de sua cadeira de filosofia do direito, fato por ela descrito como "a verdadeira e irredimível tragédia 'cia de si mesmo gerada por um entendimento plenamente realista,,çiQnal de sua,,
de sua vida - o golpe do qual ele nunca se recuperaria". A segunda edição de The Province foi publicada em ç pos r
1861, dois anos após sua morte, e a primeira edição completa de The Lectures onJarisprudence [Lições de Juris- O primeiro texto publicado por Austin, que apareceu em The Westrninster Re-
prudência] ou 17w Philosophy of Positive Law [Filosofia do direito positivo], que Sarah havia compilado a partir
das notas de Austin, foi publicada em 1863.
view - um periódico criado por Bentham em 1824 - era uma análise crítica do direi-
2. A relação entre Austin e Bentham é mais complexa do que a avaliação de que Austin simplesmente to de primogenitura e do papel da aristocracia na administração social. Austin che-
aplicou as idéias e Bentham. Enquanto o jovem Austin uma vez declarou a Bentham que "sou verdadeira- gou, inclusive, a comentar favoravelmente a Revolução Francesa, chamando-ae
mente seu discípulo", seu irrestrito apoio inicial ao constitucionalismo radical de Bentham parece ter empa- "anéiecessária reforma", infelizmente "não realizada com maior discrimina-
lidecido na época em que ele começou a preparar suas aulas. Sua-subseqüente posição conservadora levou-
,o a distanciar-se de Bentham, que ate a morte não deixou de ser um constítucionalista radical çãõeclernência"6. A crítica de Austin ao papel reacionário que a aristocracia vinha
3. Coá Eãritoelogiame'ã1iáo 'Eànffd no trecho que citamos no início deste capítulo, isto ,"que o go-
evemo bom e estável é quase ou simplesmente impossível, a menos que os aspectos fundamentais da ciência
política sejam conhecidos pela maioria da população", Austin acreditava S. Isso não pretende sugerir que a natureza tenha tal objetividade. Austin, contudo, parece ter pensa-
dois erros capitais 1 Ele associa excessivamente a obrigaçao religiosa a obediência [e não leva em do assim (embora eu não vá tão longe quanto Morison (1982), que tenta unir Austin e Jarnes Miii, cujo livro
ração os casos em que atitilidade (...). 2. Ej,g atribui a origem da soberania e da so- Elements of Política] Econorny [Elementos de economia política] era especificamente uma rigorosa cnnci'1 'i 'a-
ci!Ie política independente a um acordo ou pacto fictício" (1873: 278L lização de "leis naturais" tornadas visíveis pela "ciência da economia política"). Autin acreditava Ii'
4. Em Legisla tors and interpretara, Bauman pede que desvinculemos nossas idéias acerca da educação da mente nas ciências emergentes do homem eda economia. Em si4Qopinião, as..4sjj,çp,itIiii
idéia põsterior ele escolaridade, e que tentemos recriar um sentimento associado às pretensões à ilustração naestavaiíTdüirihdo bffldàd'
que caracterizavam a educação. Bauman (1987: 69) sugere que a educação era, antes, a idéia do conjunto da 6. Citado em Lotte e Joseph Hamburguer (1985:32), que assim resumem o artigo de Au.i ii;
sociedade edo ambiente hmauoJntegraL"mÍd,adoc com a finalidade de levar os seres humanos,â cio, Austin criticava a primogenitura com argumentos econômicos, mas no fim o que cnorb'ii,iv,, ti
lar a arte da vida social racional, apropriar-se dela e colocá-la em prática. A educação jamais era vista como cendência aristocrática e o desgoverno aristocrático'. A rirnogenitura não apenas !' vi ii
uma arca distiãfa na diyiso social do trabalhi3;ïratavi-se, ao contrario, de unia função de todas as instit riqueza agrária nas mãos de poucos, mas também1 à exploração do povo, pois os filhos ,ii,n:; limi;, .i 111
ções sociais, um aspecto da vida cotidiana, um efeito total de infigurar a sociedadá segundo a voz da Razão pãj1fês exclus idoda haranca dc 'S US pais,teria1 m de ser mantidos com dinh i 1 ulili 1 ii ii ii ti
(..'Ë[ucação' representava t ôiii projefôd tocar a formação do ser humano sob a única e total responsa- ctume da pnmogenituia entre a classe diiigente o povopodia ser tribui idu ti 1 iii
da sociedade como um todo, e, em especial, de seus legisladores". Bauman vê a educação como par- ração... Os cargos que haviam sobrevivido aos fins para os quais foram criados i imite ' ii viva' SI'
te do direito cada vez maior que o Estado tem de formar seus cidadãos e orientar suaconiut&apr'ãfld ãrdopúblico, pois os emolumentos de tais cargos inúteis forneceriam previdência conL' ii li e 'I.i. '. luvas
uma sociedade dirigida. mais novos da aristocracia" (1985: 31-2).
256 Filosofia do direito John Austin 257
desempenhando nas instituições sociais era parte de um movimento ou consciência tifica como "razão". Para Austin, a chave dessa ciência é a compreensão da natureza
intelectual geral de que um novo estilo de administração social se fazia necessário. do tipo específico de "comando" que é o direito positivo. Um comando é a expressão
Na era do feudalismo, o domínio por parte da aristocracia ou da nobreza possuido- de um desejo, o significado de um desejo que se distingue "pelo poder e pelo objeti-
ra de terras operava através da dependência do homem para com a sua localidade e vo, por parte do grupo dominante, de infligir mal ou sofrimento se o desejo em ques-
de uma ideologia através da qual a nobreza administrava a ordem e zelava pelos in- tão for negligenciado". Por ser passível desse mal, a parte comandada é "circunscri-
teresses de todos. A nobreza tinha um privilégio de nascença e um papel funcional. ta ou obrigada" pelo comando e colocada "sob o dever de obedecê-lo".
Contudo, a administração aristocrática só podia garantir a ordem social e supervisio- Austin especifica que "uma lei é um comando que obriga uma pessoa, ou pes-
nar a continuidade do costume e do privilégio associados aos fatores análogos da soas, úiãddféiiriihãaT dufa",
dFi e opera por meio de uma relação desu-
tradição (inclusive de uma religião que permitisse a administração da Cristandade) e pë?idfçI Ële nega qua l quer justificação tradicional ao termo "superioridade"
de uma geografia política que consistia na fragmentação social de localidades va- m o termo tenha sido freqüentemente "sinônimo de precedência ou excelên-
Ebora
gamente federadas. Em fins do século XVIII, os cânones da nobreza possuidora de cia", Austin volta-se para a clara identificação hobbesiana do poder como chave -do
terras eram disfuncioidiifé iianda deiirra nova ordemsciFBauman comand. Contudo, er&3poder bóftf6simples, o poder huma-
(1987: 29üéfé ué — o eIadfffiÍrativo dos membros da aristo- no é impregnado de relações recíprocas; vista a partir de uma certa perspectiva, uma
cracia agrária eram estreitamente ligados a seus direitos de propriedade e circunscri- parte é superior, mas vista a partir de outra é inferior; os governos podem ser derru-
tos pelos limites destes últimos: "Eles não tinham uma base própria, nem flexibilida- bados pela resistência do povo. Essas dualidade de imagens :depoder e fragilidade
política - percorre toda a obra dAustih éâfêirc{porua fe na educçiõriõja-
de suficiente para ser facilmente colocados a serviço de um governo centralizado e
peTF do iiço do corhcimento para forncer um rnodëlb de goverúôTáciona1.
um sistema jurídico centralizado que transpusesse os limites dos Estados dos no-
Põéfiqiiarftou.stin acreditá que o 'conhecimetito sólido irá fornecer as
bres." Ao artigo de Austin seguiu-se, em 186, sua nomeação como professor de filo-
bases e estruturas da nova ordem social, ele também pensa que não cabia especi-
sofia do direito e direito das nações na nova Universidade de Londres. Austin mudou-se ficamente ao jurista aprofundar esse conhecimento; na verdade, sua .arefaconsis-
com a esposa Sarah para Bonn; onde permaneceu por algum tempo preparando suas
tia em concentrar-se no esclarecimento da natureza da técnica fundamental ou da
aulas período em que não só se de,ip irnpressioi , pç . j ra racional do direi-
fufio1Togia dadireçã6—o_djreito pQiDyp idnva teoria jurídica faz-se necessa-
to romano, como também pela racionalidade das elites prussiapasdminjo ri —para o domínio do direito, enquanto outros conhecimentos positivos,
apreço em que a população -is tinha Esse perpdq - talveL o mais feliz da vida de em especial a ciência da ética - em grande parte redutível à utilidade - fornecem a
Austin - mostrou-se :mportank pela mudança ocorrida em suas concepçõespohti- direção e a justiça social para que o poder possa comandar. A moderna ciência do
cas, que passaram a favorecei o governo das ehf'es esclarecidas A norma falida da gqyerno deve ser da governabilidade pelo direito e peio conhecimento, pão pelo
vontade da aioiioi devia sei- substituída pelo governo racional segundo os di- desejo arbitrário; enquanto a soai ê'"ê"dhiã relaà5'de homens dominando ou-
tarnes do conher im nto positi-vo um i fórmula pus também ser 1 para manter a tros h ê'htulheres, a dominação que estrutura a sociedade moderna deveria
distância as idéias de uni governo por mioi ia popular que o Círculo bent1asta operar de acordo com o direito, guiada pelo conhecimento e confiante. em sua jus-
passara a defendor depoisde perder as esperanças de mudar as concepções .Ji- tiça (utilidade)8.
tédominantes,
A filosofia jurídica pode desempenhar um papel único na educação social; pode f?
fornecer uma análise de um instrumento-chave da modernidade - o direito positi- 7. "(..) o termo superioridadenifica g: õ poder de atingir os outros com infortúnio e sofri
vo -, e pode énfatizar a responsabilidade que acompanha o poder associado a tal to, e de forçá-los, através do medo do infortúnio, a moldar sua conduta segundo os desejos dos outro.. ( )
O poder ou a superioridade de Deus é simples ou absoluta (..)".
instrumento. O exercício do poder político é fundamental para o pensamento jurí-
8.A questão básica que ligava politicamente Bentham,Ausp,,e John Stuart Miii pode ser asii
dico de Austin, como ele deixa claro em sua definição inicial (que se segue às cita- sa Como instilar mais inteligência no governo7 Bentham preferia igualar os interesses d
ções da Lição 1) "A questão da teoria juridicaeodireito positivo o direito simples vernados —isf Tâidfãérãa'diimocracia radical; esta, poi ivóliïiOléi'i ui"íd'ii a
ou estritamente assim chamadJu o direito criado pelos dirigc'nte j36hfili6parasu- uma doutrina política realista, e de que 'esta vai ser aceita pelo povq.Sco j'.' li,[, , ii
bfdffiãdds polftíco" Odirèitõ coniste m regras cnadas para a oiTentação de um do não seguira o principio da maior felicidade do maior numero uma elite esclareci( Li i w1 1 wi 1í
mõfios para associar suaTtlicidade ã'õdáifJéIihStuartMillprefcri.....i ilin 1, 1, 1.1
ser hflinte por um ser inteligente que terá poder sobre ele", e o conjunoas tiva pluralidade dçyoxps - através de um maior número de'—v"'õt'o's, 1 pessoa iii ii ii o
regras efàfelecidas por di értés politicos" A ciicia jurídica deve reconhecer o mais mflueãio que a mc.riJta - e uuiapopulaçaa.bemeducada nau apenas c SWIIR iii iii 1h o tu
dTiitilpositivo, as regras criadas pela "v6nfãiie" política ou aquilo que Austin iden- puII'I ii
John Austin 259
258 Filosofia do direito
1. RESGATAR AUSTIN DOS COMENTARISTAS apresentar uma definição conceitual limitada do direito euma metodo1. ogiaqu se-
para as preocupações morais e políticas do estudo do direito' Assim, Austin pode
ser considerado responsável por profissionalizar e racionalizar a tradição potencial
QUEM É O JOHN AUSTIN DOS TEXTOS SOBRE FILOSOFIA DO DIREITO? do positivismo jurídico, dando-lhe a forna em que se tornou apropriado à criação de
uma ciência do direito. Segundo essa interpretação, Austin, em nome do rigor ana-
John Austin tem a duvidosa distinção de ser a figura paterna da moderna filoso- lítico e conceitual, se parou o estudo do direito da tarefa de-identificar seu contexto
fia jurídica inglesa, em particular, e visto corno iniciador do positivismo ,jundico9 e social n&realidade social,e também da tarefa de identificar seus efeitos constituti-
formulador de uma teoria do co mando ou teoria imperativa do direito (Hobbes tem vos sobre essan)esm...rç Jjç de.Tal impressão é, contudo, o resultado de uma sim-
do universo da filosofia jurídi- plificação excessiva que se encontra no material didático 'habitual. Em termos simples
ca)". Para muitos comentaristas, Austin é uma figura menor na filosofia jurídica que e claros, enquanto as Lectures on Jurisprudence [Lições de filosofia do direito] envol-
Bentham, e seu papel histórico deve-se em parte à circunstância fortuita de que, en- vem uma complexa argumentação elaborada como uma síntese em torno de um pro-
quanto toda a obra principal de Austin já estava publicada na década de 1860, a de jeto de governo moderno, os professores de direito têm abstraído o esboço de uma
Bentham permaneceu em grande parte inédita até bem mais tarde"'. Austin parece teoria jurídica analítica, ignorando as estruturas políticas e éticas que lhe dão vida.
prontamente compreensível e facilmente descartável; além do mais, como o positi- Austin foi vítima de uma forma particular de filosofia analítica, uma abordagem ana-
vismo jurídico tem sido alvo de ataqi.içs último ,.
lítica da qual ele próprio é freqüentemente visto como epítome", mas que tem pas-
d&ttdiïiii6Tndevidamente o campo de estudo para a teoria do direito ao nos sado a impressão de que podemos reduzi-lo sem perda de integridade intelectual
-
- a umas poucas proposições básicas que podem ser facilmente compreendidas, mos-
tradas como simplificações e rejeitadas como unilaterais. Esse resultado, porém, é mais
9. Uma afirmação crucial do positivismo jurídico é a separação analítica entre direito e moral; mais es- o efeito da tradição interpretativa dominante do que do material original".
pecificamente que muito emborap ordem jurídica empiri'a de uriã socadã oss Ebem indare
sobre argumentos morais, não há urna li ão necessária ou conceitual entre direito e moral. Em outras pa-
lavra áquanto o direitó"iiatural ou as posições expresiivad fi"fientar que o direito é "poder mo- bftv 0~0-
ralmente justificável", ou "a expressão de preocupações verdadeiramente humanas", o positivisipp4urídico 12. Algumas das críticas ao positivismo jurídico não chegaram a ser polêmicas. Apreciações favoráveis
argumenta queo direito pode ter qualquer tipo de conteudo Duas ideias centrais do positivismo sã podem ser encontradas em Guest (1992), enquanto Simmonds (1986) defende o intelectual positivista ao
demos identificar o quaisquer JU1700 morais ( ) fal o d. urna regra ser ou
e odireito existcntr a 01 cinitii qu examinar várias concepções errôneas relativas à teoria positivista. Em primeiro lugar, os positivisqjãO-
niiiaàende de saber se tem em sua origem unia . lonit como uma lei escrita ou uma açapjudicial gqin gcesãârsárnenInJçqportânciadamoralidaje. Eles não precisam ser céticos morais em nenhum senti-
Se fi ãdá' tariaëffi"rlli fiti{ãà, sásá uma regra jurídica qu'er seja Ua, quei má, justa ou injusta. do, mas podem estar profundamente interessados na crítica moral do direito, tendo em vista a reforma des-
Do mesmo modo, o simples fato de uma regra ser justa ou razoável nãd a converte em parte do direito se não te. Em segundo lugar, os gusitivistas não negam que a moral influencie oconteildo do direito. Sem dúvida,
estiver fundida em fonte de direito reconhecida (u) coes de lei por meio das quais afirmamos a os legisladores ffitéfdh'suas convicções morais, e o direito é in-
e,ostencia dos direitos e deveres legais não são por sua própria natureza juizos morais fluenciado, em seu conteúdo, pelas concepções morais que predominam na sociedade em termos gerais.
1ÜP5ucos mios dá'p dàiiia morte, fiàlà&Tjiiva obïa havia estabelecido o estudo da filosofia Contudo, uma regra só se torna lei quando tiver sido estabelecida em urna fonte tal corno umaJei escr ita °u
jurídica na Inglaterra. E hoje também se sabe que a influência de Austin sobre o desenvolvimento desse as- um caso decid,jo seiiiidiis do positivismo juridico ümpouco negam que os urres as vezes decidi ei
sunto na Inglaterra foi maior do que a de qualquer outro autor" (1-1. L. A Hart, introdução a The Province of sos por referencia a valores morais ou eno,nome da po lít ica ncia'lO que eli..s r ,lfll E que os m/c-;
Jurisprudence Determined, 1954). dãiíii tiruizos rnoiis oi sociais ao tentarem compicender a natureza do direito. c trnlc 1 otilud
11. Como explica Cotterrell, porém, a obra de Austin exerceu uma atração específica sobre a profissão de determinar quais são as regras'ielevantes, 'um juiz pode descobrir que as regras jurídicos relevo iii -. 1
das leis, o que torna o argumento da publicação apenas uma explicação parcial. "A forma da teoria jurídica oferecem uma resposta para o caso que ele tem em mãos. Urna vez que o direito preexistent tu
de Austin e a ordenação de suas preocupações permitem que ela ofereça uma teoria jurídica normativa que resposta, o juiz deve decidir o caso com base em considerações de natureza extrajiuidicial. FOI 'III
era particularmente apropriada às preocupações políticas e jurídicas de seu tempo. Além do mais, exemplifi- os iositivistas não negam que possa haver urna obrigação moral de obedecer ao direik; r1lul'nl,I1Il
ca uma certa concepção geral do direito, e o faz de modo extremamente conciso e direto. Na verdade, o "fra- natureza do direifo a se estex9u não ser ohcdeçiili l',,I1 Jo,i'. 1 1 111».
casso" de Austin em tantas coisas mundanas pode ter sido a condição de seu sucesso nisso. Ele perseguiu,
tãesj1sXirttâs.
a,piixentenigute com total coerência mvi lm'igem especifica decomouma cienciao direitppogrq,or 13. Como Hart prossegue no trecho acima citado, "pois a filosofia jurídica inglesa teili '.1 1' .1111 LI
iaar-se possível. Sm a incansve1 curiosidade intelectual`'dl 'Bentham que levou o grande pensador a en-
-
de natureza predominantemente analítica (...)" (1954: xvi).
gajar-se numa enorme diversidade de projetos Austin dedicoucom rifinçoà teoria dodireitoqapenas
14. Os primeiros sinais de uma abordagem apropriada, contextual e integrada surgira ii ii. 1 , 1m 1 II'
-
fizera parte das preocupações de Bentharn. Quando suas idéias divergem das de Bentham, isto se dá devido
W. L. Morison (1982). Os textos detalhados de Rumbie (1985) e dos Hamburgers (1985), qs iii 'i 1.111111111,1
ao fato de ele preferir uma l'i'bstinada (por exemplo, sobre a natureza da soberania) ou um realismo tei-
imagem geral da vida e dos argumentos de Austin, foram em grande parte ignorados pCIII f il e i,iiiii.i l ii .1
moso (por exemplo, ao discutir a legislação judicial) onde Bentharn se equivoca ou tenta desenvolver análi-
Uma exceção é o texto weberiano de Cotterrell (1989), The Político ofjurisprudence.
ses mais radicais sobre a causa da reforma jurídica ou política".
260 Filosofia do direito John Austin 261
ASPECTOS DA ABORDAGEM USUAL DE AUSTIN constitutiva social que a teoria jurídica oferece; terceiro, ao colocarmos o problema do
uso que H. L. A. Hart fez de Austin, podemos abordar questões que remetem tanto
Três características são evidentes no tratamento geralmente dispensado a Aus- ao modo apropriado ou à política de leitura de outros autores quanto à (des)constru-
tin. Primeiro/ ele é visto como um autor que seHnhou em criar urna metodolo- ção da teoria. Esta última questão será reservada para a discussão que mais adian-
par i o estudo do direito que,per de restringir exevamente. o te faremos da obra de H. L. A. Hart. O grau em que Austin separou sua ciência do di-
direi t a urna esLrutu ra de comando, ob?diência habitua1e sanção, évaliosa por ar- reitqde preocupações sociais mais pTs o valor L teoria jurídica anaTffi6a e a
gurnentar que os estudos jurídicos devem tomar-se científicos`. Sendo, o legado imag1nqão institucional que e nos oferece servirão de diretrizes desféapifu,
dëAusim e visto como sua formulação das legras b src'is di forma anahtica de teci~ coppienptando a apresentação do significado da teoria do direito 'de Ãustii
najurididà que passou a caracterizar o posili ismo jurídico (a saber, uma discussão A maior parte dos comentaristas não coittextualiiou rà con-
cIaia e pdsa dos "conceitos" e o estabelecimento de uma análise doutrinária dos trário, sugeriu-se um número limitado de usos para se estudar seu esquema básico.
materiais jurídicos fundamentais), e, desse modo, a metodologia que Austin ofere~. Primeiro, tem-se afirmado que existe uma justificação empírica para o estudo da
ce a teoriajuridica parece indicar qudireito pode ser compreendido como se.. não teoria de Austin: um objetivo de "aclarar a cabeça", como afirmava sir Henry Maine.
se pcisasse levar em consicferacão nenhuma nai tativa conextqJ Terceiro, lerAus- Sugere-se que, para ler Austin, enfrentemos "a difícil arte do pensamento preciso".
tiiTii ds criticas de H L A Hart (1 061) e acuitu o texto de Harf omo uma de~ Como diz Rumble: "Em particular, o exame criterioso de sua obra estimula seus es-
stração das deficiências de Austin 17 Em resultado, este é visto comoinferior àque- tudiosos a aclarar, quando não a desenvolver, suas próprias idéias sobre muitas das
le éaiffdã idíirgT'ãT'idëpàrte um autor a ser estudado porque a referência a ele é questões mais prementes da teoria jurídica. Essa experiência é benéfica, por mais di-
imprescindível para se acompanhar o nascimento do positivismo jurídico moderno, ferentes que tais idéias possam ser das concepções do próprio Austin" (1985: 2). Se-
ele é ç dr.demiagsirqplistae incipiente,para ser relevante nossas pjeo- gundo, afirma-se que, ao estudar Austin, podemos encontrar erros na definição da
Euiações conte rnporâneas chave para a teoria jurídica - erros que estimulavam o desenvolvimento intelectual,
as três características podem ser reposicionadas como problemas para uma mas que agora percebemos como concepções equivocadas do direito. Como Hart
teoria do direito consciente de si mesma. Primeiro, podemos colocar a questão do uso afirmou no prefácio de sua edição de 1954 de The Province ofJurísprudence Determi-
a ser feito de Austin e dos valores da teoria jurídica analítica enquanto metodologia ned: "a demonstração de onde e por que, precisamente, ele está errado, tem-se re-
do entendimento; segundo, ao colocarmos a obra de Austin no contexto do desen- velado uma fonte permanente de iluminação" (1954: xviii). Este segundo uso da obra
volvimento da modernidade, podemos ver um importante capítulo da imaginação de Austin combina com um terceiro, especificamente o de compreender e ensinar o
significado da tradição dominante na teoria jurídica inglesa, a combinação do posi-
tivismo jurídico com a teoria jurídica analítica. Visto c moruiifiloso.fcvanallitiçç u.s.tm
15.Assim Davies e Holdcroft (1991: 16) iniciam seu capítulo sobre Austin: "jrnAi$in (1790-1859)
não parece interessdQem,u i.e2çarnemp(iico das sociedades reais; parece mais pjo-
talvez seja o rniis influente dos positivistas jurídicos ingleses ( ) Seu ob1etivo consiste em diferenciar o di
reip de outros tinomenos em putiuiIu das regras de rnoial 1ra e'le a clareza de pensamento sobr cppocprn.. o escliuccimento çle conceitos, e não comquestões históricas ou socipj
tureza do direiio le(luL-r uma demarcação rigorosa e categófi'ca do tema da teoria jurídica." Assim também gicasis. Por certo é verdade que grande parte da obra de Austin é dedicada ao escla-
Lloyd Coposilisisti \ustm procurou mostrar o que e de fato o direito em oposição ao que deveria ser
sgun.do concepcois ext.Taídas da moi 11 ou do direito natural 5"Rua os bLnlhamistas o posfiwsipe
c exigir u.m'i explic yio empírica simples do direito desprovida de metafísica ou misticismo ( ) Em termos
e4
18.Tal é, por exemplo, a opinião de Herbert Morris em. lhe Encyclopedia of Phüoàvphy, publicada em
racionais, precisava-se apenas de algum comafiEiOanteriorTde modo que o direito não fosse, de fato, mais 1967, que é um exemplo básico da concepção ortodoxa sobre Austin (particularmente depois da publkviço
que uma série de ordens dadas aos seres humanos, com a aplicação de penalidades e sanções em caso de deso- de The Concept of Law (1961), de H. L. A Hart. Morris argumenta que "para Austin,írçluw.e da ciência ,li' li
bediência. Se se tratava ou não de urna simplificação exagerada, ou em que sentido a palavra "comando" era reito encontra se numa rigorosa analise di Iii]
aqui usada, eram questões não plenamente exploradas por aqueles aos quais tal abordagem parecia ser uma sançoiiierioridade ohru,açao soheráíiii
explicação tão óbvia da essência do direito; para Austin, o problema consistia simplesmente em associá-la à -" 7Aeimproprieclades da teoria de Austin resultam sobretudo do fato de ele selecionar como insij uni ii-
doutrina universalmente reconhecida e apreciada da soberania jurídica" (Lloyd, Introduction to Jurisprudence, tos básicos de análise os conceitos de comando e obediência habitual ( ... ) [Moi-ris faz um resuni o t i. i
5ed., 1985:255-6). das críticas mais conhecidas]. Além dessas críticas, Austin tem sido acusado de falta de originalide I&. 1 e
16."Não obstante, o pensamento de Austin permanece ainda digno de exame não somente devido a mo em seus erros fundamentais, pois concepções idênticas podem ser encontradas em H bi'i; e1 111,111
sua vasta influência, sobretudo nos países onde vigora o consmon law, mas também em razão de sua grande Ë compreensível que nos admiremos da grande influência de Austin, bem como de sua reputaç. a' i 1 i i e
capacidade de aplicar a análise à teoria jurídica" (Lloyd, 5 ed., 1985: 255). filósofo do direito.
17.Davies e Holdcroft (1991), por exemplo, dedicam quase oito páginas de um capítulo de dezoito pá- Primeiro, o positivismo de Austin e sua insistência em separar questões de fato e de v; ii, 'i i,'rii 11, 111
ginas sobre Austin ao tema "Hart sobre Austin". Além disso, as críticas de Hart não recebem nenhuma res- filósofos do direito sensíveis facilidade com que essas questões podem ser confundidir; e, e i i i 1 e ç i II lei.
posta crítica. disso, ao quanto podemos nos enganar, pensando já ter respondido a uma dessas questó; quando, 111
262 Filosofia do direito Çj Johp Ay.tin 263
j'_&
-,
recimento e à exposição das relações entre conceitos jurídicos. Além disso, ele dese- reito. Segundo essa tradição, a teorií( jurídica excluiu de sua esfera de interesse ques-
java sinceramente criar uma estrutura ou teoria para a "teoria geral do direito" que tões que requeriam a exposição do verdadeiro conteúdo das decisões de uma juris-
nos permitisse situar as características essenciais de qualquer sistema jurídico sem dição específica, questões de história jurídica ou intelectual, tanto específicas quan-
descrever os detalhes de qualquer sistema particular, uma tarefa reservada à "teo- to gerais, e questões que buscavam juízos éticos do conteúdo ou da eficácia de leis
ria particular do direito". Austin parece iniciar suas lições propondo uma resposta específicas. Tudo isso, afirma-se, foi por Austin delegado à "ciência da legislação"9. A
clara à pergunta "o que é o direito?", resposta que parece reducionista e simples - as tp .jir'hsa analítica .reocu.ava-se com questões de análise conceitual em qliã—~
criticas comuns afl?ffiam q êlreduzivaideiade direito asde soberania, comando, tro areas pnncipaime, a analise do conceito do direito em si, segundo<) as de-
odiiIaFiãbTitual e sanção, desprezando os diferentes sigmflcadosqueqpreen- finiçõesdtermbi, rceii oa inter-ilação de termos jurídicos basicosi
o comportamento humano ao domínio de regras possa chamadas relações juridicas,tquarto,.ti analise efe outrosiceitos np-jundicos e as
ter. Ainda que Austin empregasse os termos regras" e princípios", affia-se que distinções entre ,Qpç.ejtqs. eos conceitos jurÍdicos.
ele teria sido cego a seus significados mais sutis para os estudos jurídicos. Segundo a Na Lição II, Austin afirma: "E realmente importante que os homens pensem com
interpretação dominante, Austin é tido como um metodologista cujas contribuições nitidez e confiram significado ao que dizem." A filosofia jurídica analítica subseqüen-
substantivas são equívocos. Portanto, o estudo de sua teoria pode ser útil no sentido te tem valorizado o rigor intelectual e a lucidez da escrita em detrimento de qualquer
de permitir que nos demos conta dos erros do passado, uma vez que avançamos tan- preocupação mais ampla com a realidade social e política. Em resultado, nas últimas
to por meio da constatação de erros quanto da aceitação de posições corretas. décadas positivismo jirídicopassoua ser atacacIopor ser um empreendimento
Além disso, Austin é ensinado como figura-chave do desenvolvimento da tradi- sustentado2orsimesrnççnctlode qualquer contexto,.pistantede qualquer
ção do positivismo jurídico e como poderoso incentivador de técnicas da filosofia ju- necessldade de encontrar racionalidade soiaf idÏreito, de acordo com críilE& de
rídica analítica. Embora não seja conceitualmente necessário ser ao mesmo tempo aiThlosofia juridica analítica não pode pre, tender ser nada
um positivista jurídico e um jurista analítico, Austin desempenhou ambas as ativida- alem déui ãfpectipFcíãT dá'reãlfdde do direito'°
des. Assim, suas Lições de filosofia do direito são "a mais alta expressão dessas corren- das lições de Austin é urna ex-
tes de pensamento na filosofia jurídica anglo-americana do século XIX; [além disso] periência de encontrar algo "além" da imagem dos comentaristas (refiro-me à Filo-
as formas contemporâneas de positivismo jurídico podem ser interpretadçQmo sofia do direito de Austin, que contém o texto integral das Lições e foi publicada mi-
unotniüção da tradiçao iniciada por Austii LRumble, 1985 3) cialmente em 1863; a edição utilizada neste capítulo é a quarta edição, de 1873)
textos de Austin são uma estranha mistura de aridez,i sra, afirmações de
/
conhecimentõdé ãfddês iitica s e eticas eretoricapassional Por exemplo, ime-
RELENDO AUSTIN COMO UM POSITIVISTA ANALÍTICO: dfatamente ap6õT áiiffiiRiitado, em que Austin exige clareza de pensamento
PRECISAMOS LEVAR EM CONSIDERAÇÃO O PROJETO GERAL DE e de fala, ele argumenta que a concentração nos conceitos pode nos levar a perder
AUSTIN PARA APRECIAR SUAS DISTINÇÕES ANALÍTICAS?
Os chamados autores "críticos" da teoria jurídica e os positivistas questionam as 19. De modo interessante, Cotterrell (1989: 81) sugere que é exatamente esse fato da racionalidade for-
conseqüências da tradição positivista jurídica. A filosofia jurídica analítica, porém, de- mal que Austin introduz em sua incipiente ciência do direito (em oposição a uma discussão substantiva do
finiu minuciosamente o alcance de questões teóricas que se poderiam colocar a pro- conteúdo de leis específicas) que torna sua jurisprudência tão aceitável para os profissionais do direito do fi-
nal do século XIX. "[Austin] preocupa-se basicamente com a forma do direito e a estrutura da autoridade ju
pósito do direito, e delimitou em um círculo conciso os limites da disciplina do di- rídica. Talvez se possa sugiL arhrcimentopofissional numa época de mudanças contínuii no rlr
to, decorrentes da atividade direcionadora e leoalativa do Estado iopuclessc. ser unificado em rir
idéias sobre a forma e a estrutura do direito, e não em torno de idéias sobre o conteúdo suL rid iv' ii, Ir
dade, respondemos à ottra. Maimportante ainda, as falhas de Austin, todas associadas, decerto modo, a reito.O conteúdo do direito não estava apenas potencialmente em mutação constante, mas rir rirém Iii:i;i .1'
seu imperativ1mo foram úteis. Ele não estava so na peivepçace ua Leria ideia-1a1 ideia de que o dir it6 controle dos advogados (ao contrário da situação em épocas anteriores, quando os juizes tanto 1 , 111 L111
simplesmente a impressão da vontade do mais forte sobre a do mais fraco A principal virtude dàÃusti quanto controlavam o desenvolvimento jurídico). Era o resultado de considerações políticas que nb, , 1« ri
taãETf6de ter desenvolvido, defendido e apurado sistematicamente essa idéia, despojando-a com iran- ser facilmente introduzidas no campo do conhecimnto profissional dos advogados".
depjvcisão do enfpque ãxcesêiizo sobre as características do direito que a associam a coerçao Mais que isso 20. Pa'fa Cotterrell (1989: 227), "a racionalidade sistemática essencial do direito pode ser ir riu / a1.1.1
seu modelo enfatiza que o hábito de ver o direito como coerção obscurece seu Ejl em nossas vi- cidade de identificaras origens formais de cada regra ou regulamentação em alguma fnn ti" «1911 1
das. Deposdenstn, _comcendemoso que há no direito melhor do que aQuioue nele não existe. E esse bígua e reconhecida. No que diz.rupeitoà substância da doutrina jurídica, a racionilirir, Ii Iii
o seu legado principal. Ele nos oferece mais um exemplo em filosofia, do fato de banhaünoaJguma coisa a meramente 'fragmentada' ou localizada... O efeito dessaosÍiivação dó direito vi liili ri ],-i 111 , iiIiIi
partir de uma afirmaçãoTEEá4iàndo nada poderíamos ter ganho a p waflrmação verdadeira (fade`da pratica jurídica tarpaeé iïiiiãiãEïiIca não teórica, distante diii rir timi i 1 i i vi ilv III Iii, Ii
264 Filosofia do direito John Austin 265
de vista a realidade social e política. (Sua crítica a David Hume resume o que há de na idéia do direito". A Lição III fornece o contexto da abordagem analítica de Aus-
subjacente em seu próprio empreendimento: Hume é criticado por "lidar com temas tin; trata-se, sobretudo, de uma indicação de sua compreensão abrangente do em-
desconexos com extraordinária habilidade, mas demonstrar uma profunda incapa- preendimento sociojurídico para a construção da modernidade. Contudo, para con-
cidade de apreender seu tema como um todo" (1873: 153). Austin deixa claro que a siderar a Lição III como muito importante para a compreensão da filosofia jurídica
guerra com as colônias norte-americanas e o estado de tensão contínua que havia de Austin, precisamos levar em conta a natureza e o significado de seu pensamento
entre os Estados Unidos e a Inglaterra desafiava abertamente os cálculos utilitaris- jurisdico "positivo" em si.
tas mais sensatos, e que fora engendrada por afirmações apolíticas de "soberania" e
"direitos": "A maioria estúpida e enfurecida que se lançou nessa guerra odiosa não
se dava conta nem falava sobre outra coisa que não fosse a soberania da mãe-pátria QUAL É A BASE EPIS IEMOLÓGICA DA ANÁLISE DE AUSTIN:
e seu suposto direito a tributar seus súditos coloniais." Em contraste, a questão domi- SERÁ ELE UM SIMPLES POSITIVISTA CONCEITUAL,
UM EMPIRISTA OU UM SOCIÓLOGO?
nante deveria ter sido como a Inglaterra devia ter procedido em nome de seus prin-
cipais interesses. Os governos têm "projetos", e se o projeto do governo inglês esta-
Segundo uma famosa crítica feita por H. L. A. Hart a Austin, este deu início a
va mudando, a conversa sobre direitos deveria ter sua importância reduzida. O ter- seu corpus teórico propondo uma definição conceitual do direito, em vez de chegar
mo "soberania" denota um fenômeno social vivo, mutável; não estamos lidando com a um entendimento do direito que fosse posterior à observação da natureza dos fe-
um conceito lingüístico abstrato. Da mesma maneira, as pessoas que falavam em di- nômenos jurídicos. Ao definir o direito em termos de comandos, oediênciahabi-
reitos como se estes existissem fora do processo que os criara e lhes atribuíra signi- tual e sanções, Austin pode ser acusado por Hart (1961 capítulos 2, 3 e 4) de no ter
ficado, estavam enganadas: "Como se um direito tivesse valor por si próprio, ou em se dado conta da riqueza da legalidade; espicitiL maente, do papel do direito na cons-
nome de alguma coisa a ser acalentada e afirmada independentemente do bem que tituição política do Estado moderno, de) elemenLo normativo das regras jurídicas edo
pudesse trazer" (1873: 123-4). Para Austios conceitos acham-se inseridos nog- apeto de concessão de pQcler de muiLia regra' iuridicas Ainda que concordasse
cessos sociais Não faz sentido falar de direitos como sefes se sufentassem sobre que o positivismo jurídico era a metodologia correta, Hàrfsentiu-se então capaz de
suas pr6pf iii.— os dii eitos não paramde pe por si sos mas extraem seus fun- oferecer um novo ponto de partida, um início baseado no deslindamento de diversas
damentos darealidade dos deveres correspondentes; deres que dyr3r. exe- armadilhas lingüísticas e no retorno a nossa preocupação com a realidade (suposta-
quiveisara poderem ter esênjiiâaI21 mente de qualquer maneira) do funcionamento cotidiano do direito. Para Hart, Aus-
tin começou com uma definição e em seguida elaborou uma estrutura a partir dela,
em vez de examinar a variação existente nos efeitos e nas funções do direito. A ques-
OS CONCEITOS DE AUSTIN SÃO PARIb DE UMA SÍNTESE GERAL tão colocada por Hart (ainda que suas críticas a Austin sejam equivocadas por várias
razões) fora mais bem apresentada no século XIX por Nietzsche, que uma vez
Austin elabora suas lições com referência a uma síntese intelectual categórica da queixou-se de que a abordagem positivista da filosofia separava conceitos e vida ao
análise e do progresso social; apresenta urna concepção da condição hum e submetê-los a uma análise conceitual sem nenhuma preocupação com as circuns-
reproduz um principio fundamdbTàl - o da utilidade - que ira servir de símbolo da tâncias que lhes davam vida e forneciam o contexto do qual extraem seu verdadeiro
justiça social Sua discussão do principio de utilidade na Lição III, e do bem comum significado22. Austin é em parte um conceitualista; ele começa com uma defi n içn
na Liçã6iV, demonstra a síntese subjacente que confere sentido ao objeto analíti- do direito, mas há um aspecto muito sério nessa definição. A definição de Ausi 111
co de suas lições, isto é, "desenvolver e expor os princípios e distinções implícitos ajusta a sua agenda reformista; deixa claro que o direito é um instrumento [o
verno. Austin, porém, não é geralmente contextualizado; ao contrário, seja
que se diga sobre ele, predomina sempre a atribuição de uma episternolii
21. Austin está tão certo disso que afirma que os deveres precedem os direitos. Os direitos derivam de
um conjunto de deveres. Em sua revisão das Lições de filosofia do direito de Austin, John Stuart Mil pôs em dú- tivista e uma metodologia analítica. H. L. A. Hart afirma que o legado dui ,itI>
vida essa relação de dependência, dando o exemplo dos papéis respectivos do carcereiro e do prisioneiro. "E
dever [do carcereiro] manter [os prisioneiros] confinados, talvez em grilhões", mas como podemos dizer que
o direito de um prisioneiro é criado? Do mesmo modo, "é dever do carrasco infligir a pena de morte a todas 22. "A filosofia reduzida a'teoria do conhecimento' não é, de fato, mais que um ti>» 1'
as pessoas que com tal finalidade lhe são levadas; poder-se-ia, contudo, fazer menção ao culpado como al- doutrina da abstinência - uma filosofia que nunca vai além do limiar ese esforçi l , i,i ii),x
guérri que tem o direito de ser enforcado?" ("Austin on jurisprudence", em Dissertations and Discussions, 4 vo- entrar—isso é filosofia no limite de sua autoridade, um fim, uma agonia, uma cc i>I,,
lumes, Boston, 1868, 4: 236 e 234). deria tal filosofia predominar?" (Beyond Good and Lvii [Para além do bem e do moi J A
((
266 Filosofia do direito John Austin 267
o de separar direito e mor4jçjgi&5. A força de Austin, portanto, está em ter abstraí- Para Austin, o direito é essencialmente uma questão de processo: um direito/re-.
dign ificado central dos conceitos de sua inserção social e ter lhes dado vida in- ga_e uma especie séêõtiiaiid6griitido dcntro de uma soicdade PólitiL por diri-
dependente e autônoma'. Ao criar essa estrutura autônoma, essa independência, "foi gentes políticos a súditos políticos, contexto no qual o dirigente político tem o p: :der,
Austin quem primeiro deiistrou aos junsEas ingleses, e m seu prprio idiõiii. se assinar, déïfffligir unI mal ou sofrimento qtiando o comendo ter dc'sobe-
q.ie modõô cóhhecimento, inclusive aqiie1e do direito inglês não sistematizado, com dctdo -Se-um'a-série decomandos for desobedecida e não se infligir mal algum, não
seus labiuntôlidd defâffiés adia ser ampliado e ter sua exposição aperfeiçoada me- dõrfndo, portanto, Qbedidncia alguma, simplesmente não faz sentido afirmar que
diante TTiso d dn sitdra teórica e urna análise jrecia(Hart, T uIT llLlLsistealegal está em yigor.
Quat porérfi6 status Uà análiselb direito de Austin? Em outras palavras, qual Austin emprega os termos soberano, comando, sanção e obediência habitual
é a natureza de sua pretensão a "conhecer"o direito? A questão não costuma ser para lidar com um fenômeno social complexo'. Assim, para sir Henry Maine, escre-
vista como um problema nos textos didáticbs: Austir'pode ser rotulado de arquipo- vendo em fins do século XIX, Austin estava respondendo a uma transformação so-
sitivista ou de empinsta ingênuo Pot outro lado, ds citicos alegam que ele toma um cial`. O teórico social alemão Max Weber (1978), escrevendo no mesmo período, ci-
tipo de direito, o direito criminal com sua centralidade de coerção, e a_ parti r de1 .de- tou Austin como o escritor que realizou o necessário processo de racionalização (no
£nvolve incondicionalmente seu pense inento. Sem dúvida, a preocupação analítica contexto dos estudos jurídicos ingleses) que o sistema jurídico anglo-americano exi-
de Austin põe grande ênfàse na exposio do direito do modo como este se lhe apre- gia para o desenvolvimento de uma nova forma de administração governamental.
senta. Como ele se apressa a esclarecer, Cotterrell, escrevendo em 1989, encontra em Austin conceitos e descrições do direi-
to ãpropriadô à ascënsão do Estado centralizado. O modo como Weber definiu ësse
A existência do direito é urna coisa; outra é seu mérito ou demérito. Se existe ou processo ^ dê-iàdioúalização é o témado capítulo 11 deste livro, mas é tentador dizer
não é uma pergunta; se se ajusta bem ou não a um padrão aceito já é outra pergunta que distância entre Austin e Hart é que Austin _ testemunhou o desenvotiuimentodo
(1873: 220). pró- cesso-de iiàbiofiàhzação (do qual foi itvoroso
r partidário), enquaxrt Hart (1
viéTii'Piiiio a seus éliultados -
Portanto, Austin leva-as questões de reforma jurídica, as questões sobre qual Há mais enfJgo do que simplesmente afirmar que Austin tem aguda consciên-
deveria ra natureza do direito, para o domínio da ciência da 1egislaãõ;etinto cia das realidades sociológicas; é muito fácil chegar a tal conclusão29. Todas as suas
a analise do direito fica restrita a um estudo positivista das leis postas pela autori-
dadé_central do Estado25. Ele lega unia metodologia à tradição positivista jurídica da
26. Para Cotterrell (1989: 79), "trata-se de reflexos conceituais de um tempo e lugar específicos, trans-
resposta à pergunta "o que é o direito?" ao engajar-se numa busca de tipo "escritura formados de um modo que lhes confere o potencial de falar a outras gerações, sob diferentes circunstâncias
matriz", pois, uma vez que possamos demonstrar que as leis foram validamente ela- jurídicas. No caso de Austin, porém, esses conceitos são formulados com uma clara consciência das questics
boradas, damos por finda nossa análise da natureza do direito. A definição de Aus- sociológicas que suscitam". Uma dimensão de seu pensamento "quase totalmente ignorada por seus críticos
tin, porém, é na verdade mais ampla; é uma concepção política do direito. Para Cot- no campo do pensamento jurídico normativo".
27. "Porém, se os analistas jurídicos deixaram de perceber muita coisa que só pode ser explicada com o
terrell (1989: 61), essa "visão governamental do direito" implica que "em certo sentido auxílio da história, eles viram muito que, inclusive em nossa época, é incorretamente visto por aqueles
o direito é, para ele, governo de fato". Se for esse o caso, depreende-se que conhe- por assim dizer, deixam-se levar pela história. A despeito dos fatos, a soberania e o direito só aos pouro';
cer o significado do direito significa conhecer o significado do governo. Em outras viam assumido uma forma na qual respondiam à concepção que deles haviam formado Hobbes; Ben ffia i i i
palavras, direito e governo não podem existir fora do processo de governo. Austin, mas a correspondência realmente existia em sua época, e tendia continuamente a tornar-se mais
feita" (Sir Henry Maine, "Sovereignity and Empire", em Early History of Institutions, 396-a.
28. De fato, a teoria do direito de Hart enquanto sistema auto-regulador de regras no qual ,1
des jurídicas e políticas são, elas próprias, constituídas por regras em suas funções, é uma interpr'ii,.»
23. "As principais doutrinas de The Province ofJurisprudence Detersnined podem ser facilmente identifica- se didática na linguagem da jurisprudência analítica de um sistema weberiano de regulamen 1
das nos predecessores de Austin (...). A realização de Austin consistiu em separar essas doutrinas das discus- completo, como veremos com o disciplinamento normativo que antecede a normatização do suji i
sões políticas e filosóficas nas quais estavam inseridas, e em reafirmá-las com nova firmeza, senso de detalhe e dernidade tardia.
precisão, de modo que os advogados e pensadores políticos pudessem não apenas entendê-las, mas também 29. Austin tem sempre um olhar apurado para a realidade social. Sua mensagem aos q e'. ii
usá-las para dissipar a confusão (...)" (Hart, 1954: xvi). riam contra o poder inconteste que o Estado tem de determinar que uma lei é imoral, e porolil 1.: .
24. Por volta de 1881, Amos podia afirmar que Austin "libertou o direito do corpo morto da moralida- era sociologicamente realista. Como ele colocou ao afirmar que o direito positivo pode ter 11. e
ç 111.
de que ainda se apegava a ele" (Amos, lhe Science of llaw, M edição, 1881: 4). do moral: "Uma lei que de fato existe é uma lei, ainda que dela não gostemos ou que difira
25. Ainda que certos autores, por exemplo na M edição de Lloyd, afirmem que "Austin evita a palavra do qual regulamos nossa aprovação e desaprovação ( ...).
'Estado", ele afirma que, enquanto "Estado" tem um grande número de significados, "o 'Estado' é geralmen- Afirmar que as leis humanas que se chocam com a lei divina não são obrigatórb
te sinônimo de'o soberano'. A palavra designa o indivíduo ou o conjunto de indivíduos que detém o poder su- leis, é totalmente absurdo. As leis mais perniciosas e, portanto, aquelas que,m si ' .: . '. 9
premo numa sociedade política independente. É esse o significado que associo ao termo" (1873: 249, nota [p]). Deus, têm sido e são contin ãpcaasos triSii'na is (uida. Suponha:
268 Filosofia do direito John Austin 269
discussões de seus conceitos são submetidas a testes de realidade social, seja o que Austin é parte, e não antecedente de seu projeto geral. Austin não é um simples po-
for que se pense sobre sua real eficácia. Três exemplos: (i) Austin tra,ça uma distinção sitivista no sentido de que sua afirmação do conhecimento não tenha pretensões a
entre sociedades naturais e políticas, e o teste é sociológico: "A marca positiva da so- nada mais que a "coisa-em-si", pois sua imagem do direito positivo é um elemento
berania e doci âd3'o1ftk'a indépndénté é un ' falível em casos específi- de uma estrutura geral. A mensagem positiva fundamental consiste em deixar claro
cos ou particulares" (1873: 233). (ii) Em circunstâncias revQlu ionárias, a aceitação, em que medida podemoemttix afirmacõesque açam sido a propósito do direi-
como tempo, dos comandos de novos governantes e o teste para se 'aber s está em tbinã' isso não significa .qi.Ieurp entendimento geral esteja neccssauamente perda-
vigor um novo conjunto de leis (m) Austin deixa claro que, teoncainente, todos os dci': flfiações de Austin sobre filosofia do direito são'.. jarigmíticas no sentido de
iliídiios de--uma sociedade podenaffi sci palte do soheran6 a exigência de una teoriajurídica clara se .coiocpno sentido de que algo sela
te, "exercer
"exercer poderes soberanos"), mas, em termos de rea1je social, nnj..gia so- feito, se algo conçistiu em criar unia imagepa do direito que lhe permitiu tornar-se
ciedade permite que mais que ~_mipri.a tnha ç qpoder polítp. iiiitriïiliento podetoo e racional da modeinidade E possivel, contudo sugerir qúé
m
Não há dúvEl 7l que Austin tem profunda consciência da complexidade e am- a confiança que Austin inicialmente sentia por isso enquanto fenômeno social prático
bigüidade do mundo social e político. Além disso, ele parece consciente da contin- e exeqüível foi mais tarde comprometida por uma série de dúvidas. PouAie ser no di-
gência permanente das questões humanas. Ainda que, idealmente, a utilidade "deva" lema fundamental do pensamento de Austin possamos entrever a prefiguração do
sair vencedora se deixada sem organização" (deixada no sentido de "sem a força de destii dr nossos'tninó présentes pós-modernos?): fa!ta de diretrizes do direito.
vontade de organizar a sociedade humana racionalmente, ou os instrumentos po-
líticos para fazê-lo"), as questões humanas podem - a qualquer momento - mergu-
lhar no fanatismo e no caos. A sociedade humana moderna é um avanço sobre o que DIGRESSÃO SOBRE A RELAÇÃO EN IRE POSITIVISMO
veio anteriormente (Austin se refere amiúde aos vestígios de um passado bárbaro), E O POSITIVISMO JURíDICO DE AUSTIN
enquanto o passado também tem muito da grandeza que de certa forma se perdeu
(por exemplo, Austin demonstra grande reverência para com a clareza e a lógica das nas ciências físicas, considera-se que um único experimento conduzido com exati-
estruturas de pensamento que floresceram na Roma antiga, ainda que fossem imper- dão é uma base sólida para se chegar a uma conclusão universal ou geral, o que é apro-
feitas"); em suma, a vida é precária. Num sentido muito real, a qualidade da vida hu- priadamente chamado de indução (Austin, 1873: 679),
mana em sociedade depende da vontade dos dirigentes políticos de impor e fazer
cumprir a ordem racional. Depende da vontade que eles tenham de ser modernos. Portanto, Austin defendia o uso da indução como método pelo qual a ratio - ou
A filosofia do direito tem, aqui, um papel a desempenhar. A filosofia jurídica o verdadeiro princípio ou regra de direito - pudesse ser criada mesmo a partir de um
dapré-'rnp,.derni,ç1çl,e faz sentido q,uando o significado dos conceitos é interpretado ' único caso citado a um juiz. Seu modelo sara o sos ismn, comqpdjja
como parte deuma n,ai..aiipIa. Contra isso, a criação austinianade uma filosofia jurídicara o...p.rogreo can,çonaiças.fisicas ou naturais O positi-
"ciência abstrata do direito" tem a desempenhar um papel ao mesmo ernpo'tTe vismo jurídico de Austin foi expresso com a confiança crescente na força progressi
trutivo c construtn o Ela rompe o dominio da opinião do passado e ao fazê-lo per- ta do conhecimento que se desenvolviaem nos primórdios do século XD(.Ainda q 11
o termo "direito positivo" tenha sido usado por Hohbes, por . e.çemplo, para 1 n
mite que:se instaure uma nova racionalidade32. A reivindicâção de conhecimento de denotava o dimif ado pelo homer, op9ição ao direito 1 ,1 divino ou riatu .
s€dilIUXTeferhuiiihou o desenvolvimento de um corpo mais ilbrangente dl II
proibido pelo soberano com apena de morte; se eu praticar esse ato, serei julgado e condenado, ese eu não samil'to iuÈ fia chamado de positivismp' Esse positivismo realmente pro
conrordar cãntei que contraria a lei dïDatrí'JoTribufiàI71é'Jústiça ira demonstrar a inconse AugusComte (1798-185Z), pensador social do séculpXíX (e criador do tei 1 fl o
quçiq,Ie meu raciocínio ao enioi ar me enfcofi.fridade com & lei cu i ade foi por mim citada ciologo") que jiifãf57ôs a investigaçio dc fatos positivos, a observação de fen iiin
Ç..)" (1873: 220-3). Os argumtuos de.desóedíé ii1n6 iãliséutidos em profundidade por Austin,
e o desenvõlvimentb indiihzõ do direito a cspeculaç90 metati'ica e ao doi
que era um utilitarista dedicado.
30.Ver discussão de Austin no início da Lição 111 (1873: 127). êdi'a'séúéi metodologia positivista teri'i6nseqüências soci
31. Por exemplo, ainda que a noção de bem comum fosse corretamente colocada como o objetivo da trenfa importância, tornando possível uma nova ordem mundial". O positivii ii
política, as repúblicas antigas sacrificavam o indivíduo à "árida abstração" do bem público (1873: 161).
32.Como Austin prossegue, em sua discussão da desobediência à lei: "Induzir o povo à resistência atra-
vés de certas concepções de utilidade pode ser útil, pois a resistência, quando fundamentada emperspectivas 33.0 tom das Lectures on Jurisprudence de Austin, particularmente o da Lição ai, lembra 11 1 "1'
claras e definidas de bem-estar, é às vezes benéfica. Contudo, afirmar publicamente que todas as leis perni- acorifiança demonstrada por Comte no avanço do conhecimento, Auguste Comte via o s(' ul.\ o'
ciosas ou contrárias à vontade de Deus são inúteis e não devem ser toleradas, é o mesmo que pregar a anar- época do nascimento da "ciência positiva", que traria consigo uma visão de mundo e um2,1,1,
quia, igualmente hostil e perigosa à regra sábia e benigna e à tirania estúpida e insolente" (1873: 221), que substituiriam as épocas passadas, nas quais haviam predominado o teológico (ou fiCtíci'' ii'I o
270 Filosofia do direito i John Austin 271
a ser associado aos métodos empíricos de investigação e, em particular, a uma abor- minar todos os preconceitos subjetivos. Quando aplicado às ciências sociais, esse
dagem unificada de pesquisa que reivindica a universalidade dos métodos das ciên- procedimento pode então ser visto como "isento de valores", o que significa que o
cias naturais. pesquisador se distancia ao máximo de seus próprios valores e de suas opiniões pes-
Austin deixa claro que a razão de tornar-se positivista está no fato de ser esse o soais. Uma metodologia descritiva fornece o ponto de partida do processo (podemos
caminho para a verdade, e que somente a verdade pode ser um guia seguro para o notar que as críticas dirigidas por H. L. A. Hart em The Concept ofLaw (1961) a Austin
progresso social da modernidade. Na análise do direito de Austin, uma vez que te- situam-se no contexto da alegação metodológica de Hart de que ele está se enga-
nhamos chegado a um acordo sobre a metodologia positivista devemos aceitar a jando em uma mera análise descritiva da legalidade - uma alegação repetida no pós-
verdade da análise (razão pela qual devemos aceitar a verdade da economia política escrito da edição de 1994 de The Concept ofLaw).
como algo que nos informa sobre a verdade da política econômica) e, ao desenvol- Para Popper, essa descrição não passa de um mito infeliz. Sob o argumento de
ver nossa análise, devemos abrir mão de nossos desejos subjetivos (Lição III). Qual que o naturalismo ou o cientificismo não é apenas uma exposição inexata do modo
é, porém, o status do desejo austiniano de seguir a verdade? Essa discussão pode ser como os cientistas realmente trabalham, mas que também não é garantia de obje-
aclarada por meio do exame da crítica formulada por Karl Popper sobre a pureza do tividade ou isenção de valores, Popper indica outra versão do procedimento cientí-
positivismo. fico. Em vez de começar pela coleta de dados ou pelas observações, os cientistas
têm em mente conjuntos de problemas para os quais formulam soluções especulati-
vas. Para Popper, o verdadeiro teste da boa ciência consiste em saber se essas solu-
Objeções ao positivismo: o exemplo de Karl Popper ções são ou não estruturadas de modo que se mostrem abertas à crítica e permitam
que a comunidade científica tenha acesso às idéias e aos dados experimentais a fim
Em uma série de obras que datam de meados da década de 1930, Karl Popper, de poder testá-los - e não que sejam afirmações dogmáticas da "verdade" - com
talvez o mais conhecido filósofo de textos científicos publicados em língua inglesa base na observação e na coleta de dados. Se uma solução for refutada, o cientista ten-
no século XX, criticou o positivismo por sua tendência a projetar o processo cientí- ta outra solução até que se encontre uma capaz de resistir temporariamente às crí-
fico como uma iniciativa mecânica ou desvinculada da idéia de valor. Popper acha- ticas. Essa solução é então aceita até que novas críticas venham contestá-la. Portan-
va que o positivismo, ou naturalismo ou cientificismo, termos aos quais dava pre- to, a ciência não opera de modo indutivo, da observação para leis gerais, mas de
ferência, ajustava-se à visão corriqueira do modo como os cientistas trabalhavam, modo dedutivo. Com a palavra "dedução", Popper não se mostra tão preocupado
mas não correspondia à realidade da prática científica. com a transmissão da verdade que vai de premissas a conclusões, ou seja, com a idéia
Primeiro, a visão corriqueira. Segundo tal imagem, os cientistas partem de ob- de que, se as premissas são verdadeiras, as inferências delas extraídas são também
servações e avaliações, coletando dados criteriosamente e compilando estatísticas;
verdadeiras. Ao contrário, preocupa-se com a transmissão inversa da falsidade que
depois de identificar padrões e regularidades avançam, por meio da indução, até vai de conclusões a premissas. Se acharmos que as conclusões são falsas, então um
chegar a conclusões gerais ou a leis capazes de descrever seus dados. Essa aborda- ou mais dentre os pressupostos iniciais devem ser igualmente falsos. Portanto, o pro-
gem é uma garantia de objetividade, uma vez que os cientistas se esforçam por eh-
cedimento do cientista não depende de teorias indutivamente derivadas de fatos po-
sitivos, mas da falsificação de soluções experimentais propostas a problemas. A ciên-
Cornte acreditava que "a humanidade encontra-se agora no limiar da vida plenamente positiva, cujos ele-
cia da natureza, assim como as ciências sociais, são conduzidas como experiências
mentos estão todos preparados, e apenas espera que a coordenação destes venha formar um novo sistema intermináveis de tentativa e erro.
social, mais homogêneo estável do que tudo que o homem já vivenciou até o momento" (cours de philosophie Popper também questiona a suposta objetividade dos procedimentos científicos.
positive, VI: 436). Esse novo conhecimento, uma sociologia positiva, forneceria um':ous de crenças cientifi- O esquema mítico que ele ataca coloca a objetividade da ciência como algo que de-
camente verificáveis (uma "religião positiva") que daria uma nova base às sociedades européias, dilaceradas pende da objetividade do cientista. Assim, chegamos a uma posição em que o cien-
pela revolução e pela quebra da unidade religiosa. No Systéme de politique positive [Sistema de política positiva],
particularmente no Livro IV, Comte argumenta que, enquanto a unidade de crença for essencial tanto para a
tista deve depurar-se de preocupações humanas e subjetividades pessoais. Um ob-
sociedade doméstica quanto para a internacional, será possível obtê-la através de novos conhecimentos e in- jetivo só estará assegurado quando o cientista, enquanto pessoa, eliminar todo ,;
sights das condições sociais e internacionais. Por exemplo, um novo interesse comum entre as nações poderia pressupostos subjetivos. Para Popper, porém, a objetividade é um fator n ri
basear-se no "estabelecimento de uma doutrina social comum às diferentes nações e, conseqüentemente, a soa, mas um produto ou uma qualidade do método crítico em si; ele n ri ii i
uma soberania espiritual habilitada a sustentar essa doutrina ( ... ). Até que isso aconteça, a ordám européia es- objetividade se instaura através da crítica mútua dos cientistas - a obj't i vi (1 1111
tará sempre no limiar da perturbação, não obstante a ação, igualmente despótica e inadequada (ainda que
provisoriamente indispensável) exercida pela aliança imperfeita dos antigos poderes temporais, mas que não
produto social. Segundo esse ponto de vista, o cientista natural não ( i ' ii i
pode oferecer nenhuma garantia sólida de segurança" (1973: 642-3). menos partidário ou "subjetivo" do que sua contraparte da ciência S.cLII.Iinl;! i l
272 Filosofia do direito John Austin 273
cia extrai sua objetividade de uma tradição crítica que permite e estimula a crítica das A DEFINIÇÃO DO DIREITO
teorias dominantes. A objetividade na ciência está diretamente associada a circuns-
tâncias sociais e políticas, e não a preconceitos deste ou daquele pesquisador. Em Como já se observou aqui, Austin inicia suas lições com uma clara definição do
última análise, isso é explicável direito; a questão intelectual que se coloca não é lembrar como ele inicia a Lição 1,
mas sim compreender o significado pleno por detrás das palavras:
em termos de idéias sociais como competitividade (tanto de cientistas individuais
quanto de diferentes escolas); tradição (sobretudo a tradição crítica); instituições so-
ciais (por exemplo, a publicação em vários periódicos concorrentes e por vários editores A matéria da teoria jurídica é o direito positivo; direito, simples e expressamente
concorrentes, bem como as discussões em congressos); o poder do Estado (sua tolerân- assim denominado, ou direito estabelecido por dirigentes políticos para subordinados
cia pelo livre debate) (1976: 96). políticos ( ... ).
Pode-se afirmar que uma lei, na acepção mais geral e abrangente em que o termo
Não é que exista um domínio perfeito de realidade verdadeira que possamos é empregado em seu sentido literal, é uma regra estabelecida para a orientação de um
usar para corrigir nossas teorias e nossos enunciados lingüísticos; ao contrário, po- ser inteligente por um ser inteligente que tem poder sobre ele ( ... ).
demos manter a idéia da existência da realidade independentemente da mente hu- Dentre as leis ou regras criadas para os homens, algumas são estabelecidas por di-
mana operando como ideal regulador enquanto nos damos conta de que nossas con- rigentes políticos, soberano e súdito; por pessoas no exercício do governo supremo e su-
cepções e experiências científicas remetem a um nível de "conhecimento" que mal bordinado, em nações independentes ou sociedades políticas independentes [é este o
chega a aproximar-se dessa verdadeira "realidade". Não precisamos tomar por base objeto da ciência positiva do direito].
a idéia de nossos conhecimentos como reflexos da realidade absoluta; em vez dis-
so, podemos lidar com uma noção funcional de objetividade, e deveríamos nos em- Austin não recusou um papel ao direito natural, mas deixou de levá-lo em
penhar em criar as condições nas quais os cientistas pudessem aplicar o método crí- consideração. Em certos sentidos, Austin é um pluralista jurídico: sua teoria positi-
tico-racionalista e assimilar as afirmações e os resultados verdadeiros dos outros. va do direito é uma teoria de um único tipo de direito: os comandos dos dirigentes polí-
ticos formulados para os subordinados políticos numa sociedade política independente. A
teoria do direito positivo de Austin é uma imagem do direito centrada no Estado.
II. COMPREENDER A ESTRUTURA DA Ele não nega que grande parte da existência cotidiana seja vivida por pessoas sob
FILOSOFIA JURÍDICA DE AUSTIN o domínio do status, do costume, ou de prescrições morais; simplesmente afirma
que o tema apropriado a uma ciência positiva do direito positivo são as leis cria-
Resumindo a argumentação anterior: muitos dos comentários sobre a obra de
das em sociedades políticas independentes (nações-Estado) por dirigentes políti-
Austin enfatizaram certas definições ou citações para fins de análise crítica, e mmi-
cos para subordinados políticos, e que têm a autoridade do poder de coerção do
mizaram a inter-relação fundamental do todo. O tema condutor das lições de Aus-
Estado por detrás delas.
tin é o papel do direito na criação do bom governo; a chave é fornecida pela utili-
dade, que apresenta uma concepção basilar: "em uma cadeia de lições sistemáticas
sobre os fundamentos lógicos da teoria jurídica, tal exposição é um elo necessário"
O DIREITO É TANTO UMA CRIAÇÃO QUANTO UM
(1873: 84). A utilidade não é apenas um instrumento para se avaliar o que o direito
ELEMENTO CONSTITUTIVO DA CIVILIZAÇÃO
deveria ser; é a chave para se demonstrar de que modo a interação social realmente
cria o direito do modo como ele é. Austin era um utiitarista consumado, fato que,
como sugerem comentaristas recentes, levou-o a avançar do mero empirismo para A nação-Estado confere vida ao direito positivo, e a utilidade fornece o ii
uma explicação comprometida e normativa do direito: o direito é o mecanismo do mento de medição através do qual se podem criar políticas progressistas. Seu
governo utilitarista. tor da obediência do público geral às leis, nenhum governo seguro se torno "1
sem governo seguro não há propriedade, fruição de posses ou cultura. O '1 lv
vidariente assim denominado, só passa a existir com a ascensão de soci'J ii:,lo
34. Tanto para Sarah quanto para John Austin, o conhecimento garantia a autoridade racional. Seus ar-
líticas independentes e a criação de um soberano, mas o direito também 1 v 4 11 li
gumentos em defesa do ensino primário universal era o de que "permitia a criação de uma lealdade inteli-
gente e instruída à autoridade" (Lotte e Joseph Hamburguer, 1985: 38). A autoridade precisava de uma nova tais organizações existam (ver discussão sobre soberania).
base racional devido à desintegração moral e social, bem como ao fato de que as fontes da autoridade ha-
viam sido destruídas.
274 Filosofia do direito John Austin
A RELAÇÃO ENTRE PODER E SUPERIORIDADE risprudência, porém, Austin estava otimista com relação ao fato de que uma ciência
ética apropriada poderia estabelecer-se e superar seus obstáculos. Com o tempo, en-
Somente Deus mantém (com o homem) uma relação de poder absoluto. As re- quanto um conhecimento profundo ficaria restrito aos poucos especialistas, a popu-
lações sociais são recíprocas e instáveis: "a parte que é superior quando vista a par- lação poderia assimilar os princípios condutores e, "se imbuída desses princípios e
tir de uma perspectiva revela-se inferior quando vista a partir de outra" (1873: 99). hábil na arte de aplicá-los, mostrar-se-ia dócil à voz da razão e bem armada contra
Em tempos normais, um monarca pode ser "o superior dos governados: seu poder os erros e sofismas" (1873: 131). Essa difusão da verdade ética diminuiria drastica-
é em geral suficiente para obrigar à obediência a sua vontade. Os governados, po- mente a discórdia social e revelaria um conhecimento apropriado da natureza da
rém, coletivamente ou em massa, são também superiores ao monarca, que se con- cooperação social`. Austin dá o exemplo da instituição da propriedade privada, exi-
tém no abuso de sua força por medo de provocar sua ira, transformando em resis- gida pela utilidade porém alvo de muitos "preconceitos perniciosos". "Para os po-
tência ativa o poder que se encontra latente na multidão" (1873: 99). Os indivíduos bres ignorantes, a desigualdade que inevitavelmente se. segue à benéfica instituição
desempenham um grande número de papéis e funções: um indivíduo pode ser um da propriedade é necessariamente odiosa. O fato de que eles, que trabalham dura-
"membro de uma assembléia soberana" e, desse modo, superior a um juiz no sen- mente e produzem, devam viver com tão pouco enquanto outros, que 'não cultivam
tido de ser um dos membros responsáveis pela criação de leis que sujeitam esse os campos nem fiam', regalam-se com os frutos de seu trabalho, parece, aos olhos in-
juiz, mas esse mesmo indivíduo também é um "cidadão ou súdito" responsável, vejosos dos pobres e ignorantes, um monstruoso estado de coisas: uma situação
perante tal juiz, por sua vida de obediência às leis. mantida por poucos à custa de muitos, em franca incompatibilidade com os carido-
sos desígnios da Providência." Esse preconceito tem muitas conseqüências. Provo-
ca boa parte dos crimes que têm na pobreza sua causa imediata, mas que na ver-
A UTILIDADE É O PRINCÍPIO-CHAVE DA JUSTIÇA SOCIAL dade decorrem de uma visão equivocada do que é socialmente possível. De modo
crucial, cega o povo à verdadeira causa de seus sofrimentos e das únicas soluções
As Lições III e 1V contêm uma defesa do princípio de utilidade (o mais próximo verdadeiramente possíveis. "A necessidade e o trabalho decorrem da mesquinharia
critério de direito, e a técnica para a criação de políticas na administração social) e da natureza, e não da desigualdade que é uma conseqüência da instituição da
uma interpretação do objetivo da organização política, ou seja, o bem comum. propriedade." Austin então afirma que a condição humana na terra exige a insti-
A primeira afirmação de Austin é a de que os homens são falíveis; os seres hu- tuição da propriedade privada, e que o mecanismo decisivo do capital é conse-
manos simplesmente não podem, por si sós, dominar a verdade da condição hu- qüência direta da propriedade. Ainda que os pobres sejam usados pelo capital, des-
mana, e a autoridade, o testemunho e a confiança são inevitáveis. Mesmo em um sis- fazendo-se necessariamente dos frutos de seu trabalho, e estejam "condenados" a
tema ideal de direito e moralidade em rigorosa sintonia com os princípios morais, as um "trabalho eternamente fatigante e servil", Austin reconhece a co-dependên
regras podem ser conhecidas, mas os fundamentos lógicos que existem por detrás que o processo engendra: "Com efeito, ainda que não no direito, os trabalhado'
delas não podem dar-se a conhecer em sua plenitude. Toda ciência requer uma cer- são co-proprietários com os capitalistas que contratam seu trabalho."
ta fé na autoridade, pois, enquanto o papel dos especialistas é investigar, analisar e Austin faz então uma afirmação extraordinária: na verdade, diz ele, se os pol o
disseminar suas descobertas, o público deve "confiar, normalmente, nas conclusões chegarem a entender os princípios da economia política, poderão mudar a n
às quais chegamos por via autorizada". Enquanto essa confiança, essa deferência za de sua posição e negociar poder, forçando assim uma surpreendente melh
para com a autoridade, é "perfeitamente racional", nenhuma estrutura desse tipo suas condições. De novo, é a certeza absoluta de Austin na força de uma "vi
existe atualmente no que diz respeito à ética. Portanto, as ciências ligadas à ética o que lhe permite dizer: "No verdadeiro princípio da população, descoberto
(legislação, política e economia política) acham-se num estado de confusão que se à sagacidade do sr. Malthus, deve ela buscar a causa e o remédio para su a p o o
deve, em boa parte, ao fato de os que investigaram a ética não terem adotado a ati- e excesso de trabalho árduo" (1873: 133). Mediante o uso de seu conheci'nh, u
tude científica da imparcialidade e "terem, desse modo, chegado a resultados diver- povo poderia pôr fim à "sórdida sujeição ao domínio arbitrário de alguns
gentes". Isso condena a maioria da população, que não dispõe nem de tempo nem
de recursos para adotar uma atitude totalmente crítica e indagadora diante dos tes-
temunhos que lhe são oferecidos, a permanecer à mercê da opinião. De modo con- 35. Tanto para Sarah quanto para John Austin, o conhecimento era uma garantia de n, i i H
comitante, boa parte das estruturas jurídicas e morais atualmente em vigor "têm por nal. Sua argumentação em favor da educação primária elementar enfatizava o fato de que
ção de uma lealdade inteligente e instruída à autoridade" (Lotte e Joseph Hamburger, 19t .0)
base o costume instintivo, e não a inflexível razão", e são muitos os obstáculos à di- base racional para a autoridade se fazia necessária devido à desintegração moral e social, li
fusão e ao avanço da verdade ética. Na época em que escreveu seus textos sobre ju- de que as fontes tradicionais de autoridade tinham sido minadas.
276 Filosofia do direito John Austin 277
entenderia que os ataques à propriedade são na verdade ataques às instituições que como o homem pode fugir ao peso dessa lei que impregna toda a natureza anima-
criam a acumulação, descobriria que realmente tem um profundo interesse pela se- da." Com esse princípio, Malthus atacou todos os grandes e radicais projetos de en
gurança da propriedade e que, "se ajustassem a totalidade de seus membros à de- genharia social; a reforma limitada e feita aos poucos era o único caminho realista
manda por seu trabalho, compartilhariam abundantemente, com seus empregado- a ser seguido. Além do mais, o direito deve aliar-se ao direito subjacente do desen-
res, das bênçãos dessa proveitosa instituição". volvimento social; não deve acontecer nada que estimule os pobres a se reprodu-
Como observamos na terceira das citações no início deste capítulo, Austin afir- zirem. Se a estrutura jurídica contivesse quaisquer dispositivos que melhorassem as
mava que um povo esclarecido era mais útil a um juiz do que todo um batalhão de condições dos pobres, o resultado seria simplesmente a produção de mais filhos e
policiais. Chisick (citado em Bauman, 1987: 80) afirmou que "nem mesmo no auge a correspondente redução da criação de riquezas. As leis promulgadas não deviam
do Iluminismo considerou-se que as pessoas eram capazes de pensamento inde- ser proibitivas quanto à opção, mas destinadas a deixar claras as conseqüências ne-
pendente ou de opção política", enquanto Bauman (ibid.: 80) afirma que "as falhas gativas de certas escolhas. Para desencorajar os pobres a ter filhos em condições nas
intrínsecas da 'multidão' impunham limites intransponíveis à ilustração, compreen- quais seu sustento não estaria assegurado, era preciso criar uma lei que declarasse
dida como o desenvolvimento da capacidade de pensamento claro e racional e to- que nenhuma criança nascida de casamentos futuros seria levada em consideração
mada de decisões competentes. Ilustração era algo de que os governantes precisa- quando se tratasse de aliviar a pobreza. Portanto, "se algum homem resolver casar-
vam; seus súditos careciam de treinamento para a disciplina". Bentham havia escrito se sem a perspectiva de conseguir sustentar uma família, deve ter a mais cabal li-
com a máxima clareza, demonstrando confiança numa divisão social na qual mui- berdade de fazê-lo". Tal homem ficaria, contudo, ao sabor das conseqüências. "Ele
tos seriam aproveitados pelo mercado e pelo utilitarismo, enquanto o panóptico e a será deixado à mercê da punição da natureza, a punição da necessidade... E preci-
disciplina estariam à espera dos incivilizados" (Moarrison, 1996). Se o panóptico era so ensinar-lhe que as leis da natureza, que são as leis de Deus, tê-lo-iam condenado,
bem como à sua família, a sofrer pela desobediência a suas reiteradas advertências."
o nó górdio benthamista que mantinha a ordem social, a crença na conquista e na
Não se trata da punição dos que têm poder político, mas do funcionamento das leis
clareza do conhecimento positivo tinha a mesma função para Austin. O mundo era
sociais naturais; o direito positivo é apenas o instrumento mediador. Além disso, ne-
o tema de análise, e as diferentes ciências podiam torná-lo transparente; a lingua- nhuma medida pode ser tomada nos casos de filhos abandonados ou ilegítimos: "Se
gem dessas ciências podia reproduzir uma realidade subjacente. Austin tem certe-
os pais abandonarem seu filho, deverão ser responsabilizados pelo crime. Em ter-
za de que "não há nenhuma incerteza específica no tema ou na matéria dessas
mos comparativos, a criança tem pouco valor para a sociedade, uma vez que logo
ciências"; as dificuldades são externas, encontram-se nas atitudes daqueles que as
será substituída por outras." Maithus é igualmente hostil a qualquer idéia de di-
estudaram. O progresso estará assegurado se lutarem pela verdade "com aplicação
reitos inerentes, e até mesmo, como sugere a citação abaixo, a qualquer conversa
obstinada e com a devida imparcialidade"36 .
sobre o direito social à existência:
A confiança de Austin na verdade de An Essay on the Principie ofPopuiation [En-
saio sobre o princípio da população], que o reverendo Thomas Malthus colocara como Se o homem que nasce em um mundo já ocupado não puder contar com a subsis-
fundamento da economia política, é reveladora. Em parte como resposta às inter- tência que lhe é devida por seus pais, e se a sociedade não desejar o seu trabalho, ele não
pretações otimistas da necessidade de progresso humano (feitas por Condorcet e terá direito à menor parcela de alimento; na verdade, não terá justificada a sua existên-
Godwin, entre outros), Malthus interpôs a alegação pessimista de, que a população, cia. O poderoso festim da natureza não tem lugar livre para ele. Ela lhe diz que se vá, e
se não controlada, aumenta em progressão geométrica, enquanto os meios de sub- cuidará de executar suas próprias ordens (citações extraídas de Arblaster, 1984: 246).
sistência aumentam em progressão aritmética, com conseqüências desastrosas pre-
visíveis. O feito "científico" de Malthus é revelador de uma verdade básica: a de que A estrita adesão aos princípios de economia política logo levou ao maior "i
o governo da sociedade humana não era visto como uma teoria, mas como uma ver- sacre" do liberalismo inglês, a condenação de 1,5 milhão de irlandeses à Mo11
dade que necessariamente devia servir de diretriz à política. Como diz ele: "Não vejo inanição de meados a fins da década de 1840, bem como à crueldade da to
de assistência social (ver Arblaster, 1984: 254-9).
36. E em nossos dias? É uma banalidade afirmar simplesmente que as coisas não funcionaram como
Austin esperava ou pretendia. A busca desinteressada de conhecimento não resultou em uma estrutura de O CONCEITO DE SOBERANIA
verdades coerentes e estáveis. Ao contrário, o perspectivismo, o relativismo e o subjetivismo imperam. A con-
fiança nas leis naturais que fundamentam o desenvolvimento humano já se desvaneceu há muito. O direito
não pode reivindicar legitimidade simplesmente para pôr em relevo as funcionalidades e estruturas subja-
Para Austin, "todo governo supremo é legalmente despótico". flt
centes à interação social. rã geral do pensamento de Austin, seria ilógico que o soberano fos' [ii
278 Filosofia do direito John Austin 279
lei, uma vez que se trata da autoridade máxima, do centro em que se concentra o de civilização; em outras, porém, a obediência ao mesmo superior é prestada por tão
poder de urna nação. poucos de seus membros, ou a obediência geral é tão infreqüente e irregular, que
não passam de simples sociedades naturais.
( ...) Segue-se que (...) o poder do soberano não é passível de limitação legal [grifo Austin também se refere a uma sociedade política independente como "comu-
de Austin]. (...) O poder supremo limitado pelo direito positivo é uma total contradição nidade política" (1873: 234). Suas questões sobre comando e obediência são idéias
em termos. que refletem sua preocupação com a capacidade de um governo político concretizar
As leis que os soberanos costumam impor a si mesmos, ou aquelas que costumam seus desejos. Em períodos de guerra civil ou de revolta nas colônias (Austin se re-
impor a seus seguidores, não passam de princípios ou máximas que eles tomam por guia, fere à guerra inglesa entre Carlos 1 e o Parlamento e à revolta do México contra a
ou que preconizam como tal aos que os sucedem no poder soberano (1873: 2704).
Espanha), as perguntas que se colocam dizem respeito à situação sociopolítica do
modo como esta existe empiricamente:
Na LiçãoVT, Austin explica "as características que distinguem as leis positivas"
mediante uma análise das expressões: Quando a colônia insurgida, que é agora a nação mexicana, passou da condição de
província insurgente à de comunidade independente? Quando o conjunto de colonos
"Soberania", a expressão correlata "submissão", e a expressão "sociedade política que trouxe a soberania ao México passou da condição de líderes rebeldes à de governo
independente", que lhes é inseparavelmente ligada. ( ...) Todo direito positivo, ou todo supremo? Ou quando o conjunto de colonos que trouxe a soberania ao México tomou-se
direito simples e expressamente assim denominado, é criação de um indivíduo sobe- soberano de fato?
rano, ou de um corpo soberano de indivíduos, para um membro ou para membros da
sociedade política independente em que tal indivíduo ou corpo detém o poder sobera-
no ou supremo (1873: 225-6). Enquanto o conjunto dos membros de uma sociedade política é considerável,
"uma sociedade política independente pode ser dividida na parte de seus membros
Enquanto instrumento do poder político, o direito é representado como ele- que é soberana ou suprema, e na parte que simplesmente se submete". A compo-
mento-chave da garantia de progresso social. Austin faz uma distinção central en- sição é urna questão de fato histórico.
tre sociedade natural (primitiva, simplista) e sociedade política (em que o direito
Na maioria das sociedades verdadeiras, os poderes soberanos são monopolizados
pode operar).
por um único membro do todo, ou são exclusivamente compartilhados por poucos de
seus membros: e mesmo nas sociedades verdadeiras cujos governos são considerados
Uma sociedade natural, uma sociedade em estado de natureza, ou uma sociedade
populares, a parte soberana é muito reduzida em comparação com o conjunto da comu-
independente porém natural, é formada por indivíduos que são ligados por relações mú-
nidade política. Uma sociedade política independente governada por si própria, ou go-
tuas, mas que não são membros, soberanos ou súditos, de nenhuma sociedade política.
vernada por um corpo soberano formado pelo conjunto da comunidade, não é algo im-
Uma sociedade só será uma sociedade política se a totalidade de seus membros es-
possível; contudo, a existência de tais sociedades é extremamente improvável (1873: 243).
tiver habituada a obedecer a um determinado superior comum (1873: 231).
Tal sociedade deve ser independente; as elites políticas não devem obediência Austin acrescenta explicações numa nota de pé de página:
às ordens de ninguém mais.
Se todos os membros de uma sociedade política independente fossem adult
cionais, cada qual estaria naturalmente apto para exercer poderes soberanos;
A totalidade ou o conjunto de seus membros deve ter o hábito de obedecer a um
ginarmos uma sociedade assim constituída, podemos também imaginar uma
certo superior comum, enquanto este determinado indivíduo ou conjunto de indiví-
estritamente governada por si própria, ou na qual o governo supremo é estri 1
duos não deve ter por hábito obedecer a nenhum indivíduo ou conjunto de indivíduos.
governo de todos. Ocorre porém que, em toda verdadeira sociedade, muito; II
bros são naturalmente inaptos ao exercício dos poderes soberanos: e mesn
Esse critério não é simplesmente uma questão de definição, mas sim de socio- ciedade cujo governo seja muito popular, os membros naturalmente inapto,- LI
logia: "a característica positiva da soberania e da sociedade política independente é dos poderes soberanos não são os únicos membros excluídos do corpo
um critério falível em casos específicos ou particulares" (1873: 233). Não é difícil en- acrescentarmos aos membros excluídos em razão de inaptidão natural t
contrar exemplos importantes, e Austin afirma que é assim que as coisas se passam mulheres, por exemplo) excluídos sem tal necessidade, veremos que tu i i i i
na Inglaterra e em toda sociedade independente relativamente avançada em termos ria, mesmo em tal sociedade, encontra-se em mero estado de sujeiçã 1.
280 Filosofia do direito John Austin 281
mente, muito embora o governo de todos não seja impossível, toda sociedade verdadei- mista não devesse ser visto como um governo fraco, e conquanto Bentham defen-
ra é governada por um de seus membros ou por alguns de seus membros que provêm desse a existência de limitações constitucionais, para Austin os artifícios para a limi-
do conjunto deles (1873: 2434). tação legal da soberania, como as declarações de direitos e garantias e a separação
dos poderes, eram questões problemáticas que às vezes levavam ao próprio fracas-
O conceito de soberania de Austin é freqüentemente mal interpretado. Muitas so na prática, sendo também indefensáveis em termos lógicos. Não que não hou-
vezes fazem-se afirmações bizarras, como as de que Austin não teria tolerado a vesse limitações constitucionais efetivas; o fato é que estas eram conjuntos comple-
criação da Comunidade Européia (CE, hoje UE [União Européia]). Trata-se de um xos de crenças e práticas que não podiam ser chamadas estritamente de "direito",
absurdo. Austin dá um exemplo dos exércitos aliados ocupando a França em 1815, pois eram antes uma forma de moral crítica. Isso equivale a dizer que, na verdade,
depois da derrota de Napoleão. Durante a ocupação, "as determinações dos sobe- a opinião pública esclarecida e os ditames do princípio de utilidade asseguram um
ranos aliados foram obedecidas pelos governos franceses e, através do governo, governo responsável37. Em seus últimos anos, Bentham argumentava que a sobera-
pelo povo francês em geral. Contudo, como as determinações e a obediência eram nia política devia ser inerente ao povo, uma vez que desse modo o interesse do
relativamente raros e efêmeros, não foram suficientes para configurar a relação de povo, o interesse geral e o interesse do governo se tornariam uma só coisa. Enquan-
soberania e sujeição entre os soberanos aliados e os membros da nação invadida to o jovem Austin talvez estivesse de acordo, o Austin da maturidade deixou de
( ... ). Apesar dessas determinações, e apesar dessa obediência, o governo francês e acreditar na base de tal argumentação; de que modo a mera opinião poderia ser ga-
seus súditos eram uma sociedade política independente da qual os soberanos alia- rantia de um governo racional?
dos não eram a porção soberana" (1973: 228). A implicação é clara: se se houvesse
criado uma estrutura política através da qual as determinações fossem regularmen- "Aqui se encontra a diferença entre os governos de direito e os governos de homens"
te emitidas e obedecidas, teria ocorrido uma mudança na natureza da soberania da (1873:519).
França. Talvez, se um conselho de ministros tivesse sido criado, com um represen-
tante de cada uma das nações envolvidas, o resultado tivesse sido a criação de uma A opinião, porém, é crucial. Sustentando o soberano há um vazio pré-jurídico.
nova estrutura de subordinação, mas também de independência. O crítico, porém, O soberano - o Estado - nasce de um conjunto de ajustes sociais que são pré-jus-
pode argumentar que essas estruturas são, elas próprias, constituídas por leis. A tiça; não tem nem a posse nem a ausência de direitos.
União Européia é criação do direito. A resposta de Austin teria sido a de Hobbes: o
Ora, tendo em vista que o direito positivo não o impede de lidar, como melhor lhe
direito que constitui o soberano como uma instituição é, ele próprio, expressão de parecer, com todas as coisas dentro de seu território, podemos dizer ( ... ) que o Estado
uma tomada pré-jurídica do poder. O que cria a União Européia não é uma Cons- tem direito a tudo dentro desse território, ou que dele é, absolutamente ou sem ne-
tituição jurídica. A Constituição - o Tratado de Roma - pode representar seu "tex- nhuma restrição, o proprietário ( ... ). Estritamente falando, não tem direito legal a nada,
to fundador" e refletir seu "momento fundador", mas isso equivale a concentrar em ou não é o proprietário legal de coisa alguma (1873: 871).
um documento, ou em momento histórico, todo um processo político que envolve
um complexo conjunto de desejos ou intenções ainda por concretizar-se. A verda- O Estado é sujeito a uma indeterminação jurídica radical. Por um lado, o sobe-
deira fundação da União Européia é a "Europa", e a Europa não existe a não ser rano de Austin parece a personificação todo-poderosa dos desejos e esperanças das
como um complexo fenômeno de desejos, intenções e projetos.
37. Os Hamburgers sugerem outra consideração que levou Austin a fazer pouco da idéia das lii i
EMBORA O SOBERANO NÃO SEJA POLITICAMENTE LIMITÁVEL, constitucionais. "Uma vez que a ciência podia descobrir como aumentar a felicidade geral ( ...), a autoi i, l.'
DEVE RESPONDER POR SEUS ATOS PERANTE A MORAL POSITIVA E berana guiada por tal ciência não devia ver-se limitada por entraves constitucionais. Austin chamav ..
CRITICA (SOBRETUDO PERANTE O PRTNCfPIO DE UTILIDADE) traves de "moral positiva". Originavam-se da opinião, das crenças morais e da tradição; não tinhnu i hriie
rídico, e só eram compulsórios na medida em que a moral e a opinião fossem percebidas como ri ri 11 ,,
As limitações e normas constitucionais que Austin conhecia tiveram sua origem numa era pré-ei liii
O soberano não é juridicamente limitável, mas deve responder aos ditames da afirmava que seria indesejável permitir que tais normas obstruíssem as leis criadas à luz da Clír ii i 1
moral positiva e das leis de Deus do modo como se dão a conhecer através do prin- ção. Çontudo, ele se teria oposto às limitações constitucionais mesmo que sua origem estive .r ir. i i i .
cípio de utilidade. A preocupação fundamental de Austin era comum no contexto sitiva científica. Se eram justificadas pela mesma ciência da ética que também era a fonte iii 1
seria inútil fazer com que servissem de entraves a esse mesmo direito, pois o constitucional .r i ir,
do que hoje chamamos de pensadores políticos liberais da Inglaterra de primórdios tido quando invocava critérios independentes das leis que julgava e "superiores" a elas. 2k ri 1
do século XIX, a saber: o medo da dissolução da sociedade e a necessidade de um go- solidariedade coma idéia mesma dos limites constitucionais refletia, ao mesmo tempo, um
verno. forte. Ainda que tanto para Bentham quanto para Austin um governo refor- soberania e do Estado do modo como existiam e como poderiam existir em termos ideal 1
282 Filosofia do direito John Austin 283
elites que formam o Estado; por outro lado, o Estado se dilui numa rede de proce- moderno requer uma forma de sabedoria prática no exercício de seu poder discricio-
dimentos e convenções. O direito público - aquilo que, em outro contexto, chama- nário. A teoria jurídica não pode existir fora de uma parceria com os conhecimentos
mos de direito constitucional - pode ser definido ou como aspectos do "direito pro- positivos; fazê-lo é o mesmo que abrir mão do significado do direito em favor de sua
cessual geral", ou como formas "diversas e suplementares" do direito das pessoas. tênue positividade, ou despojar o entendimento do direito como fenômeno social
A distinção público-privado tampouco configura um absoluto: "qualquer parte do di- vivo, remetendo-o a um vazio conceitual.
reito é em certo sentido pública, e qualquer parte dele é em certo sentido igualmen-
te privada" (1873: 776). O direito civil exige a criação de uma sanção; o direito em
sua totalidade, da criação de contratos à execução dos testamentos, "destina-se, en- A QUESTÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
tre outras finalidades, à prevenção do crime" (1873: 774). Em última análise, o di-
reito civil se baseia numa dialética entre o poder do direito criminal e a aceitação das A partir da estrutura lógica da teoria de direito de Austin e de seu entendimen-
normas dos direitos e deveres estipulados pelo direito civil. Em última análise, o so- to da realidade sociológica, infere-se que a expressão "direito das nações" (ou o que
berano é constituído por conjuntos de ajustes dentro de um nebuloso domínio de hoje chamamos de "direito internacional") era uma denominação imprópria, re-
"opinião geral" e "máximas éticas observadas pelo soberano" (1873: 771). metendo ao que era na verdade uma forma de "moral internacional positiva". Sem
um soberano internacional não poderia haver nenhum corpo determinado para es-
Ainda que, com rigor lógico, boa parte do suposto direito relativo à soberania de- tabelecer o que seria exatamente o direito, ou para garantir que se impusessem san-
vesse ser banido do corpus juris, é preciso introduzi-lo neste por razões de conveniência ções quando este fosse infringido. Austin pedia por clareza de linguagem:
que são superiores à simetria lógica. Pois ainda que, estritamente falando, pertença à
moralidade positiva ou à ética, o conhecimento de tal direito é absolutamente neces- Grócio, Puffendorf e outros que escreveram sobre o chamado direito das nações fi-
sário ao conhecimento do direito positivo ao qual o corpus juris diz propriamente res- zeram uma confusão de idéias: confundiram a moral internacional positiva, ou as regras
peito (1873: 771-2). que efetivamente vigoram nas relações mútuas entre as nações civilizadas, com suas va-
gas concepções de como deveria ser a moral internacional, com aquele quê de indeter-
O emprego dos poderes soberanos tem por base a opinião e a aceitação da au- minação que, imaginam, ela deveria ser caso se ajustasse àquele quê de indeterminação
toridade. A opinião se baseia no estado de conhecimento do público e na raciona- que eles chamam de direito da natureza (1873: 222).
lidade do soberano. Muito embora a prisão configure o ápice do direito criminal
enquanto sanção externa suprema, a opinião racional é a sanção interna; uma popu- Austin seguia uma longa linhagem de céticos que começava com Hobbes e in-
lação educada é mais benéfica ao legislador esclarecido do que uma tropa de polí- cluía Kant e Rousseau.
cia. Além disso, "a diferença entre o governo pelo direito e o governo dos homens" Na ausência de um poder supremo que o declarasse e fizesse cumprir, afirma-
encontra-se na revogação, por parte das elites, de seu poder de tomar decisões ar- va Hobbes, o direito positivo não poderia ter sua existência asseverada. Sem dúvi-
bitrárias em favor de sua concordância ética em agir nos termos da lei". O governo da, os diferentes soberanos de nações específicas ver-se-iam sujeitos ao direito da
natureza - se analisassem racionalmente sua posição e seus objetivos como uma
totalidade -, mas, na ausência de um superior comum que interpretasse quais as ver-
38. A argumentação de Austin merece ser citada na íntegra, ainda que apenas para afastar a idéia de dadeiras convenções a propósito das quais os soberanos individuais haviam che.'»i
que ele não se preocupava com a imagem do "governo do direito, e não dos homens". "Quando falo do po- a um acordo, a confusão e a incerteza reinavam. Na análise de Hobbes, a incerl»
der discricionário do soberano ou do Estado, refiro-me ao poder do soberano ou do Estado exercido nos ter-
mos do direito. Assim procedo porque, através de um comando especial e arbitrário, o soberano pode privar
epistemológica quanto aos costumes e às convenções andava de mãos dadas
o prejudicado do direito que decorre do prejuízo, ou pode isentar o transgressor de sua responsabilidade ci- ausência de um poder que fizesse vigorar as regras. Do mesmo modo, Kant dv
vil. [Aqui se encontra a diferença entre governos de direito e governos de homens]. Em um ou dois dos maus go- rara ser inútil pretender que se pudesse discernir um direito das nações nos iIu
vernos ainda existentes na Europa, esse procedimento tolo e nocivo não é incomum. Por exemplo, cartas de proteção mes e convenções internacionais enquanto os Estados "não se submetessei i i 1
são concedidas pelo governo a devedores, e com elas os devedores ficam a salvo da perseguição dos credores. Em ca- coação externa comum" (Kant, Politiccil Writings [Escritos políticos], 1970: Iii
sos assim, porém, o soberano revoga em parte sua própria lei,.em atendimento a um propósito especial. Isso nunca é Rousseau deu continuidade ao tema de que as relações intemacionn 1, i 1) 11 11X
posto em prática por governantes sábios, quer monárquicos, quer de outra natureza. A despeito de seu temperamento
ditatorial e de seu apego ao poder, Frederico, o Grande, sempre ajustou sua conduta a suas próprias leis. estavam fragmentadas por contradições e incertezas que tornavam todo ) , ,
As cartas de proteção eram concedidos neste país pelo rei até o reinado de Guilherme III. Tais cartas devem ter
sido ilegais. Assim o afirmo porque, embora a Constituição conceda ao rei o poder de perseguir e perdoar criminosos
a seu bel-prazer, ele não é soberano. Não lhe compete desconsiderar a lei ao privar a parte prejudicada do direito à 39. Parece que a expressão "direito internacional" foi criada por Bentham em The InIu',lu,
ação civil" (1873: 519). Principles of Morals and Legislation.
Filosofia do direito John Austin 285
284
plos de direito das nações irremediavelmente ineficazes, não configurando, portanto, com poder delegado) quando adotava o costume ou criava o "direito juríspruden-
um direito real. O chamado direito público europeu estava "cheio de regras contra- cial"; Austin reconhece a "legislação judicial" como uma "fonte secundária" do di-
ditórias que nada, a não ser o direito dos mais fortes, podia restituir à ordem; de modo reito (grifos no original, 1873: 549).
que, na ausência de qualquer diretriz segura, em caso de dúvida a razão penderá Ainda que Austin não aceite a "aversão radical ao direito criado por juízes" (1873:
sempre para o lado do interesse pessoal ( ... )" (Complete Works [Obras completas], 3: 549) de Bentham, ele descreve como o judiciário freqüentemente oculta o fato de seu
568-9). Com as nações engajadas em relações internacionais e cooperação com base próprio ativismo. A criação judicial de direito ocorre na prática dos tribunais que li-
no interesse próprio, não havia condições de que se assemelhassem a uma socie- dam com litígios. Um caso deve ser decidido e uma questão jurídica decidida mesmo
dade civil, e nenhuma possibilidade de discernir uma vontade internacional geral. quando não parece possível encontrar nenhuma lei escrita que inclua a situação em
O que era necessário para se criar um direito das nações? Tanto o desejo ético de litígio. O objetivo do tribunal é fazer justiça e resolver o litígio, mas, ao fazê-lo, cria-
uma associação comum quanto um poder superior de coação que pudessem "con- se uma nova regra. Os juízes, porém, ocultam sua criatividade por trás de um discur-
ferir a seus interesses comuns e suas obrigações mútuas aquela estabilidade que so de interpretação e presunção, de encontrar o direito ou torná-lo manifesto:
elas jamais poderiam adquirir por si próprias" (ibid.: 569).
Embora esse caso específico seja decidido por uma nova regra, o objetivo precípuo
Os defensores do direito internacional argumentam que se a definição de di-
do juiz não é a introdução dessa regra, mas a decisão do caso específico ao qual a regra
reito remeter apenas às regras criadas e aplicadas por um poder soberano, então as se aplica, e portanto, falando em termos gerais, evita-se a evidência de criação do direi-
regras da prática costumeira e aquelas voluntariamente acordadas, sem nenhuma to. Em geral, a nova regra não é apresentada de modo ostensivo, mas o direito existen-
sanção vinculada, não podem ajustar-se a tal esquema; tais defensores também afir- te é ostensivamente afirmado por meio de interpretação ou presunção ( ... ), sendo em
mam que daí não se segue que não existam regras a reger a conduta dos Estados. seguida ostensivamente aplicado ao caso que aguarda uma decisão. Se a nova regra vi-
Austin concordaria: para ele, contudo, as regras são simplesmente "moral positiva". gorar como direito daí em diante, não o faz diretamente, mas porque a decisão conver-
Um Estado pode ter de arcar com muitas perdas e críticas ao infringir tais regras, te-se em precedente, ou seja: passa a ser vista como prova do estado anterior da lei; e
ainda que estas sejam, na prática, vagas e imprevisíveis; na ausência de um poder a nova regra, assim disfarçada sob a roupagem de uma regra antiga, aplica-se como di-
internacional comum, não faz sentido chamá-las de "direito". reito aos novos casos (1873: 548).
Austin dedica pouco tempo à separação dos poderes. Isso ocorre devido a sua
O PAPEL DA CRIAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO crença na unidade dos interesses da comunidade, da utilidade e do conhecimento
(de economia política etc.). Tal fato se mostra mais evidente em seu pronto repúdio
Uma vez que Austin descrevia o direito como um instrumento racional de go- a uma objeção à criação judicial do direito, ao afirmar que "quando juízes subordi-
verno, para ele era impossível percebê-lo como um sistema de legalidade fechado. nados têm o poder de criar direitos, a comunidade exerce pouco ou nenhum con-
O direito enquanto tal deve lutar pela certeza, e a qualquer momento os analistas trole sobre aqueles que criam o direito através dos quais sua conduta será regida".
jurídicos devem pôr em relevo as inter-relações e os significados dos conceitos ju- Austin interpreta isso como uma questão de responsabilidade; os juízes devem ser
rídicos, mas o direito era um fenômeno` ao mesmo tempo "vivo" e dinâmico; o de- responsáveis "perante a massa ou o conjunto da comunidade". Uma maneira de
senvolvimento vinha de fora dele. O poder governamental guiava o direito, e o po- fazê-lo consiste em aplicar o "direito positivo" quando este for claro; outra em asse-
der governamental devia ser guiado pela utilidade e pelo conhecimento positivo em gurar que sua nomeação se dê de modo que evite que fiquem exclusivamente à mer-
desenvolvimento. cê do rei, podendo servir ao soberano ou ao Estado propriamente dito: "que sua no-
Ao mesmo tempo, porém, "quer direta, quer remotamente, o soberano ou legis- meação os invista de autoridade em uma ou outra facção cujos interesses não en-
lador supremo é o autor de todo o direito, e todas as leis provêm da mesma fonte; trem em conflito com aqueles do conjunto da comunidade" (1873: 665).
contudo, imediata e diretamente, as leis têm diferentes autores" (1873: 526). A fon- Austin passa a combater a idéia de que "os juízes criam o direito arbitra,rh ii
te de direito mais imediata era a legislação; o judiciário era outra fonte (operando te". Isso teria como resultado um direito variável, incerto e incoerente. A t m
decisões arbitrária deve ser controlada (i) pela natureza hierárquica de ii i i i , ; i eo
jurídico em que os tribunais de apelação racionalizem as decisões tomada 1
40. Para o Austin de viés sociológico, é preciso distinguir entre "direito vivo e direito morto" (1873: bunais inferiores; (ii) por juízes que se deixam levar por sua concepção d q tu It
1040, também 1048), e entender o papel das autoridades jurídicas. Afinal, quando Austin tinha em mente o legislador soberano faria diretamente "caso se preocupasse o suficiente (001 i oh'
direito romano, enxergava para além dos Digesta; seu olhar alcançava "o direito romano vivo, ou o direito ro-
mano administrado e aplicado pelos tribunais" (1873: 604)
resses gerais", e (iii) pela censura dos organismos profissionais (isto é, i , 1i i ) i 'o
ç,
286 Filosofo do direito John Austin 287
dos Advogados) e pelas opiniões de outros advogados que preservam "os interes- vem ser redigidos criteriosamente, tanto com conhecimento histórico do direito
ses do ofício". A "relutância dos juízes em inovar" e não a criação do direito pelos juí- quanto com uma clara idéia dos objetivos a ser alcançados. Seu argumento final é
zes, tem sido o grande mal; "demasiado respeito por regras estabelecidas, e demasia- um floreio retórico que critica a advocacia, mas exprime a esperança em um avan-
da atenção às deduções e analogias, é o que em geral têm demonstrado os criadores do ço qualitativo da profissão desde que se consiga chegar a uma abordagem mais
direito judicial" (1873: 668); a equity* foi criada apesar da resistência dos juízes. científica do direito:
Os juízes não devem ter livre poder discricionário; é preciso impor vários pas-
sos ao caminho da tomada de decisões. Primeiro passo: o juiz deve empenhar-se Se o direito fosse mais simples e científico, atrairia as mentes mais qualificadas para
por identificar qual é a natureza do direito. Se esta for certa, deve aplicá-la. Contu- o exercício da profissão, e sua causa seria adotada por homens independentes que hoje
do, no caso de uma lei em que os termos podem ser claros mas pareçam em desa- se vêem impedidos de fazê-lo devido à repulsa que o direito lhes causa, uma vez que
cordo com o claro objetivo da lei, o juiz "pode distanciar-se do sentido claro da lei este é, de fato, repulsivo. Que pessoa com formação literária e intelecto superior é ca-
a fim de buscar atingir as finalidades da lei, a "Ratio Legis". Nesses casos, porém, paz de tolerar os absurdos contidos nos livros didáticos, por exemplo, além de muitas
ele não é um juiz interpretando devidamente o direito, mas sim um legislador su- outras partes do direito? Nada, a não ser uma forte necessidade ou a sólida determina-
ção de conhecer os fundamentos lógicos do direito para além da crosta que o reveste,
bordinado corrigindo seus erros e defeitos". Esse é um processo perigoso em que
poderia levar tal pessoa a demonstrar semelhante empenho. Contudo, se o direito fosse
o tribunal corre o risco de se transformar em um tribunal arbitrário. Acima de tudo, devidamente codificado, tais mentes se dedicariam ao seu estudo; e poderíamos então
o que impregna as lições de Austin é um apelo ao profissionalismo; a tarefa judi- esperar por uma legislação incomparavelmente melhor, e por uma melhor aplicação da
cial é importante e difícil. O progresso será assegurado pelo compromisso de se justiça do que a que hoje conhecemos. A profissão não seria meramente venal ou mer-
proceder a uma análise reflexiva e científica da natureza do empreendimento. Isso cantilista como é em nossos dias, mas, como na Roma antiga, tomar-se-ia um caminho
ajudará o juiz a conduzir cientificamente seu ofício. Observe-se a atmosfera das para a honra e a importância política. Sem dúvida, boa parte do trabalho baixo e servil
afirmações de Austin: da profissão continuaria a ser praticada pelos que só pensam nas recompensas finan-
ceiras, mas a moralidade predominante na profissão como um todo seria instituída, em
Os termos ou expressões empregados pelo juiz ao criar o direito são mais vagos in- grande parte, por esse seu segmento superior, que também abrangeria os legisladores
dícios, dos quais se pode inferir o princípio, do que um guia a ser inflexivelmente segui- práticos da comunidade (1873: 703-4).
do caso seu significado evidente seja perfeitamente claro (1873: 651).
O sistema jurídico tampouco é um universo coerente quando boa parte dele é III. CONCLUSÃO
necessariamente criada por juízes:
A NATUREZA SUFOCANTE DA INTERPRETAÇÃO TRADICIONAL
Todo o sistema jurídico, ou todo o coipus juris, é necessariamente um caos mons- DA FILOSOFIA DO DIREITO POSITIVA DE AUSTIN
truoso: formado em parte pela jurisprudência, introduzido aos poucos e impregnado de
um número incomensurável de decisões judiciais específicas, e em parte pelo direito le-
gislado, repleto de fragmentos de "direito judiciário" e imerso em um número inco- Em certo sentido, é fácil esquecer a síntese e só extrair, de Austin, a análise fria
mensurável de leis esparsas (1873: 682). e enfadonha; o resultado é a criação de uma prisão para a inteligência. No vasto cor-
pus de suas lições, Austin codifica interesses e psicologia em um todo auto-suficien-
Austin então conclui suas lições sobre as fontes do direito com uma defesa da te. Em linguagem detalhada que percorre as esferas do direito civil e criminal, 'l
codificação. Ele tinha consciência da fragilidade de um direito mal elaborado, e afir- combina psicologia e terminologia jurídica de forma unificada e supostamentr'
mava que uma lei estabelecida por precedente judicial podia ser mais rica em deta- rente. O direito pode controlar e dirigir nossos caóticos desejos subjetivos. O Ç 1 i 1
lhes e mais flexível do que uma lei escrita inadequadamente expressa; achava, po- to estabelece as condições nas quais uma pessoa pode usar sua vontade jn
rém, que a codificação, apesar de tarefa difícil e delicada, oferecia a possibilidade de trolar seus desejos. Enquanto o homem "não pode ser forçado a não Ch'jl
se criar uma afirmação de direito científica e baseada em princípios. Os códigos de- o desejo de evitar a sanção pode dominar ou prevalecer, mas não pode Iiin
um desejo que insiste em infringir um dever" (1873:462). Do mesmo ', imi
dança na mente pode ser operada ou impedida, dependendo de deseji ii 1 111H
A equity, literalmente "eqüidade", é uma espécie de direito anteriormente administrada por tribu- tal mudança" (1873: 469). O governo pela utilidade não tolera hes ia çc ', vc
nais especiais para fazer face ao caráter injusto de algumas normas da "common Iaw" (N do T.) por necessidade. 0 poder político e as paredes das prisões, escreve A 1 1 ii.
Filosofia do direito John Austin 289
288
bos contextos gerais de sofrimento dentro dos quais nos encontramos involunta- vel pela modernidade. E se o aprofundamento da análise das bases do direito só le-
riamente. A utilidade é "um critério absoluto do que é bom e verdadeiro" (comen- vasse a um projeto destrutivo, e não se mostrasse capaz de oferecer uma alternativa
tário de Campbell em 1873: 466); não é mais fácil evitar suas injunções do que uma cientificamente defensável?` O conhecimento positivo pode demonstrar nossa ne-
ordem de prisão. Contudo, essa própria convicção nos alerta para uma falha da pro- cessidade social do sentimento de unidade e de imagens que estimulem a atividade
posição de Austin. O pensamento de Bentham parecia lidar com a tensão entre de- coletiva - e pode indicar que tais sentimentos têm uma história real tanto quanto
mocracia política, com sua confiança na opinião popular, e a idéia de um governo ba- uma história hipotética mas não pode criar, racionalmente, um verdadeiro con-
seado no conhecimento racional, através de uma teoria da utilidade que apresen- ceito de unidade que fuja a qualquer crítica de sua natureza mitológica.
tava o bem comum como a soma total dos desejos. A utilidade de Austin era de um Se a reescrita de Austin não foi além de alguns pensamentos embrionários e
tipo mais qualitativo; com o tempo, deixou-se tomar por um crescente conservado- de um desejo, aqueles que aceitaram o desafio com fervor não chegaram a nenhu-
rismo. Depois de 1848, sua política - apesar de dominada pela preocupação com a ma resposta segura. A síntese austiniana de suas lições dependia de uma combina-
segurança, extraída de Hobbes, e pela importância fundamental da propriedade, ex- ção específica: aceitar os princípios da ciência como se fossem capazes de refletir as
traída de Locke - passou a defender elos invisíveis de tradição, de costume e de "sen- inquestionáveis verdades da condição social, e aceitar que as divergências sobre va-
timentos irracionais" - Hume e Burke se tornaram seus precursores intelectuais, lor e política podem ser resolvidas segundo critérios (observados) de verdade racio-
em detrimento da racionalidade de Hobbes e Locke. Quando instado a republicar nal; porém, essas dúvidas subseqüentes podem ter antecipado o caminho que a moL
dernidade viria a seguir. Em outras palavras, conquanto muitos sustentem que a
seu livro Province ofJurisprudence Determined, que estava fora de catálogo e vinha al-
cançando bons preços no mercado de segunda mão, Austin recusou-se a fazê-lo. De- adesão ao empreendimento científico é o único caminho para a busca do conheci-
clarou então que pretendia reescrever radicalmente e ampliar suas lições de modo mento, não podemos aceitar que controvérsias sobre valor e desejos possam ser re-
solvidas segundo critérios de verdade racional. O meio-termo liberal tem consistido
que produzisse um livro que teria por título The Principies and Relations ofJurispru-
em deixar a questão em aberto - tem favorecido a conclusão que seria dada por
dence and Ethics [Princípios e relações de filosofia do direito e ética], uma obra que
Stuart Mill; em especial, em deixar em aberto a questão do bem viver no contexto da
nunca foi além do estágio de vagas reflexões.
tolerância e da experimentação. Isso não satisfez a todos; na verdade, não precisa-
mos nem mesmo usar a experiência marxista como exemplo, pois estamos cercados
O PROBLEMA DA INCAPACIDADE DE AUSTIN por lembranças vivas de que milhões de pessoas encontram um vazio ético que sub-
PARA REESCREVER SUAS AULAS jaz à estrutura do liberalismo. Reformulando a questão em termos ligeiramente di-
versos, ao separar direito e moralidade Austin também separou "consciência de liber-
Por que Austin não revisou e ampliou suas lições como tantas vezes prometera dade" de direito positivo; para o direito, ficou demasiado fácil fundamentar-se ex-
fazer? Há duas respostas possíveis: (i) que se tratou de uma falha pessoal de cará- clusivamente na imagem de sua própria (e mera) positividade. Com que ficamos, en-
ter; (ii) que ele havia mudado muitas de suas concepções originais, ou que perde- tão? O direito pode muito bem definir os contornos de um jogo acentuadamente
ra a confiança na ligação entre os diferentes tipos de conhecimento. Esta segunda tardio de nossa modernidade: em nossa falta de compromisso com os objetivos da
possibilidade lança dúvidas sobre todo o empreendimento de unir o direito e a ética vida, estamos inconscientemente expressando aquele motivo sobre o qual Hobbes
positivos. falava no Leviatã: o "desejo de poder e mais poder, até à morte". A diferença é que
Sem dúvida, a primeira resposta tem defensores, e a combinação de uma per- hoje podemos expressá-lo sem nenhuma crença em que haja alguma coisa além
sonalidade depressiva com a falta de estímulo para escrever explica, até certo pon- desse jogo, e de nós, para colocar em cena.
to, a incapacidade de reescrever`. Contudo, há também a possibilidade de que a
resposta possa estar na crescente dúvida intelectual quanto a todo o edifício do uti-
litarismo. A norma austiniana de uma elite ilustrada e adepta do conhecimento de
base científica exigia uma confiança na conquista de clareza ética e coerência, mas
é exatamente esse o objetivo que se tem mostrado ilusório, para não dizer inatingí-
42. Um paralelo com John Stuart Mill que, na Lógica, afirmou que uma sociedade polítir 1 iii 1'
só funcionaria se nela houvesse um sentimento "de que existe, na constituição do Estado, iii
41. Para Rumbie, "Austin era o exemplo par exceilence de pessoa a quem faltava força de vontade... Se 11)i1
Austin tivesse sido mais enérgico, firme e persistente na busca de seus grandiosos objetivos, poderia ter con- estabelecida e permanente, e que não venha a ser questionada ( ...); algum ponto fixo; algu 1,
so, todas as pessoas considerem sagrado" (citado em Lotte e Joseph Hamburguei 1985: 181),
seguido mais do que, na verdade, conseguiu.
Capítulo 10
Karl Marx1 e a herança marxista para o
entendimento do direito e da sociedade
1. Marx (1818-1883) nasceu em Trier, no que é atualmente a Alemanha. Era o filho mais velho, de um
advogado judeu e descendia de uma longa linhagem de rabinos. Seu pai converteu-se ao protestantismo a
fim de não prejudicar seus negócios jurídicos, e Marx recebeu uma educação protestante. 'O rad,iiulismo, o
humanitarismo e a visão pragmática do mundo (e não o fundamentalismo religioso) foram as linhas mestras
de sua formação.
292 Filosofia do direito Karl Marx 293
fundamente incrustado em seu cerne2. Seja o que mais for, o marxismo é um pro- papel das organizações do Estado e supra-estatais nas diversas sociedades do uni-
duto radical da busca iluminista de resposta a problemas da condição humana por verso político. O marxismo se baseia nos escritos de Karl Marx (1818-83) em coope-
meio de uma análise cabal da sociedade humana, da história, dos fracassos e do po- ração com Friedrich Engels (1820-95); a maior contribuição posterior talvez tenha sido
der humanos nos limites deste mundo. Para o marxismo, nós somos deste mundo, e o dada porV. I. Lenin, líder da revolução bolchevique de 1917 na Rússia'. No século
mundo é uma unidade. Conseqüentemente, quaisquer divisões, quaisquer conflitos XX, porém, o marxismo foi uma doutrina política em que a interpretação do signifi-
que testemunhemos podem ser sanados, uma vez que, em última instância, nós e o cado da obra de Marx ficou freqüentemente subordinada às necessidades políticas em
mundo somos da mesma espécie. O segredo da religião é a humanidade, e não um vez de indicar o caminho para uma compreensão mais profunda da modernidade.
Deus transcendente; por esse motivo, devemos transformar as narrativas religiosas A injunção metodológica de prestar atenção aos dados empíricos é crucial para
em mensagens seculares. O ajuste marxista aproxima-se do desejo escatológico re- o marxismo; porém os dados são vistos como reflexos, ou exemplos, de estruturas
ferido na Bíblia: o Velho Testamento aludira a um tempo futuro em que Deus estabe- e processos sociais universais. O enfoque central é o da totalidade da existência hu-
leceria para sempre seu reino de justiça e paz (ver, por exemplo, Isaías 11, 1-9); o mana, e não das instituições sociais particulares. Por exemplo, nem Marx nem os
Novo Testamento afirma que Cristo representa a superação da morte e que os fiéis teóricos marxistas subseqüentes tomaram o Estado como uma unidade auto-sufi-
participam da promessa de vida eterna. Enquanto passam pelos sofrimentos desta ciente de análise'. Em resultado, não só o nacionalismo foi um dos pontos fracos da
vida, eles têm uma antevisão do tempo porvir (João 3, 36; 5, 24). Enquanto a filoso- análise marxista e um dos motivos do fracasso de sua capacidade preditiva, como
fia marxista da história deve sua forma à dialética de Hegel, seu conteúdo deve mui- também as forças de configuração do direito não foram vistas através das lentes da
to a uma secularização da escatologia cristã3. A filosofia marxista da história plena- nação-Estado; em vez disso, o Estado recebeu pouca autonomia enquanto locus de
mente desenvolvida, chamada em termos técnicos de "determinismo materialista", atividade. Além disso, ao contrário das análises funcionalistas da ordem social, que
oferece uma forma de providência pessoal; o povo escolhido é substituído pelo pro- enfatizaram a crescente multiplicidade das operações e da divisão do trabalho na
letariado, e a justiça do reino de Deus pela sociedade sem classes do comunismo'. modernidade, os marxistas enfatizaram as relações de classe, tanto no interior das so-
ciedades quanto internacionalmente. A classe, porém, não é um instrumento de aná-
lise que se explica por si mesmo, mas sim um conceito que só faz sentido dentro de
INIRODUÇÃO À TEORIA MARXISTA: A DIALÉTICA
DO UNIVERSAL E DO PARTICULAR uma estrutura mais ampla de análise teórica'. O marxismo não parte do conceito do
O marxismo é um vasto corpus de textos e doutrinas': não existe uma interpre- 6. Lênin foi líder político russo, teórico marxista e o mais explícito filósofo marxista depois de Marx. Ex-
tação marxista do papel de fenômenos sociais específicos como o(s) direito(s) ou o pulso da Universidade de Kazan devido a conflitos estudantis (1887), formou-se em direito (por correspon-
dência) na Universidade de São Petersburgo (1891). Foi preso em 1895 e condenado ao exílio na Sibéria em
1897; a não ser por um breve período, viveu no exterior de 1900 até a revolução, em 1917, quando voltou para
2."O comunismo, enquanto naturalismo plenamente desenvolvido, é humanismo, e, enquanto huma- liderar o partido comunista e chefiar aUnião Soviética até sua morte. Foi sucedido por Joseph Stalin.
nismo plenamente desenvolvido, é naturalismo. É a solução definitiva do antagonismo entre o homem e a 7."O capital vai além das fronteiras e dos preconceitos nacionais tanto quanto da adoração da nature-
natureza e entre o homem e o homem. É a verdadeira solução do conflito entre existência e essência, entre z das satisfações tradicionais, restritas, .complacentes e arraigadas, das necessidades atuais e das reprodu-
liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. É a solução do enigma da história, e sabe que traz em si ções de antigos estilos de vida. É destrutivo em relação a todas essas coisas e está sempre modificando-as ra-
essa solução" (Marx, Early Writings [Primeiros escritos], 1964: 155). dicalmente, rompendo todas as barreiras que constrangem o avanço das forças de produção, a expansão das
3. O marxismo afirmava ser o ponto alto da ciência empírica, ao mesmo tempo que criticava severa- necessidades, o desenvolvimento multilateral da produção e a exploração e a troca das forças naturais e men-
mente o atraso moral da sociedade capitalista. Prometia o advento de uma nova ordem mundial que seria tais" (Marx, Grundrisse: 410; citado em Seidman, 1983: 98).
totalmente livre, porém geradora de uma sociedade harmoniosa, incorrupta e incorruptível, na qual o homem 8. O conceito de classe é central aos escritos da maturidade de Marx, ainda que ele não tenha formu-
cumpriria seu destino enquanto espécie na medida em que viesse a consumar sua liberdade absoluta, po- lado uma clara definição deste. Todas as sociedades, com exceção da sociedade comunista (que nunca existiu
rém concreta. do modo como Marx a concebeu, e não deve ser confundida com os regimes praticados pela ex-URSS, pela
4. Marx toma o lugar dos profetas e afirma que o fim da história é, concretamente, um estado de coi- China, pelo Leste europeu etc), são sociedades de classes, Quando os homens lutam contra as contradições
sas humano. Enquanto os agentes e a burguesia anteriores não compreendem a importância de seus atos, o da estrutura econômica - às quais Marx se refere no Prefácio de 1859 -, eles o fazem dentro de classes e em
proletariado foi equipado, pelo marxismo, com uma visão científica das coisas que deixa clara a importância termos de interesses de classe.
de seus atos inovadores. Ma*rx parece ter pensado que, de tão óbvio, o conflito de classes não precisava de uma plena justificação
5. Para não mencionar a eficácia do marxismo em oferecer um estimulante político. Em certo período his- teórica. Somente quando ele se concentra nas classes da sociedade capitalista - onde duas d'lu;, a hiiruesiá
tórico. - até bem pouco tempo -, cerca de metade da população mundial vivia em sociedades cuja crença polí- (classe média) e o proletariado (classe trabalhadora), se acham em conflito direto, é que tal pu'stiio recebe uni
tica oficial era marxista. O marxismo também ofereceu um corpus substancial de escritos e conceitos que atuaram tratamento adequado. Ele as definiu em termos de sua situação nas relações de produção caria li'rliuicas do
como principal oposição intelectual ao eixo liberal-capitalista que constituía a base do pensamento ocidental. capitalismo. A burguesia é a classe capitalista que detém a posse dos meios de produção 0 proletariado é
294 Filosofia do direito Karl Marx 295
indivíduo como sua unidade básica - ao contrário do liberalismo filosófico -, mas capitalista de representar a si própria como forma natural das verdades imutáveis e
adota uma idéia vagamente expressa de totalidade social com o seu ponto de parti- eternas; se pudermos mostrar que o obstáculo à satisfação existencial é uma forma
da. O marxismo é freqüentemente visto como uma forma de análise social oposta histórica especifica de interação social, então nossas limitações não serão inevitáveis.
ao individualismo metodológico que Hobbes nos legou e é comumente chamado de Além do mais, se esses conhecimentos estiverem inseridos numa narrativa progres-
holístico9. A importância de qualquer entidade de estudo particular está no modo siva, isto é, numa filosofia da história, então nós próprios teremos a capacidade de
como ela se ajusta ao desenvolvimento do todo e o influencia. No caso do direito, as- agir com confiança. Marx dedica quantidades imensas de energia intelectual à tare-
sim como no de outros fenômenos sociais, é difícil isolar uma concepção marxista fa de descobrir'a natureza e as causas das limitações especificas do homem e da so-
da entidade particular e criar um modelo teórico independente, uma vez que isso iso- ciedade modernos. Esses estudos enfatizam a historicidade de nossas limitações e
la um aspecto particular do comportamento humano, apartando-o dos dogmas sub- trazem consigo a esperança de que seja possível superá-las; a esperança fritura é,
jacentes da análise social marxista. O marxismo fornece uma estrutura de entendi- portanto, definida pela negação das limitações do presente, e não por programas de
mento por meio da qual, afirma-se, pode-se explicar a sociedade do passado e a do ação utópicos específicos. Marx nunca criou um programa de ação para a organi-
presente e prever o desenvolvimento futuro da humanidade. O marxismo afirmou zação da sociedade comunista "pura".
ser a "superação" final ou a "extrapolação" da filosofia. Para Marx, a filosofia, em
particular a filosofia crítica, era essencial, mas sua crítica da filosofia, parte de uma O MARXISMO COMO PRÁXIS
crítica geral da ideologia, demonstrava a apreensão incompleta, pela filosofia, da
condição humana. A realidade só se pode tornar visível por meio de uma análise Os escritos de Marx não pretendiam ser uma forma de teorização especulativa;
social plenamente desenvolvida, e a ação concreta só pode ser bem-sucedida se seu objetivo era levar a transformações práticas - procuravam oferecer uma combi-
tomar essa análise por base. nação de "teoria e prática", ou práxis. A "sociologia" radical do Marx tardio, por exem-
plo, afirma epistemologicamente ser ciência plena ao mesmo tempo que oferece
predições de desenvolvimento social; expressa um desejo de proceder tanto a uma
UM DOS ATRATIVOS DA lEORIA MARXISTA análise intelectual de nossa separação do verdadeiro destino da raça humana quan-
ERA SUA NARRATIVA DA HISTÓRIA to uma imagem da unificação de nossa posição na natureza e o significado de nos-
sas lutas. O Marx da maturidade combina a análise com uma exortação à ação radi-
A criação de uma história ou narrativa adequada do passado, do presente e do cal especificamente um anseio pela revolução total; somos instados a completar a
futuro, é crucial para o auto-entendimento e a confiança das sociedades ocidentais modernidade. Marx acredita que o obstáculo à satisfação e à felicidade humanas é o
modernas, e boa parte do enfoque marxista está na criação de uma filosofia da his- espírito "desumanizador" da sociedade moderna. Isso se expressa particularmente,
tória. Esta é uma tarefa necessária para Marx, uma vez que, sem um conhecimento mas não inteiramente, nas relações (não-)sociais do capitalismo.
dos modos primitivos de atividade produtiva, o capitalismo e a estrutura burguesa
da vida, suas fonitas de liberdade individual e de interação social, pareceriam ser nos-
so modo de vida natural, e sua realidade desumana permaneceria sendo um misté- RESSALVAS PARA O ENFENDIMENTO DO PAPEL
rio. Precisamos usar a razão crítica para destruir a capacidade da economia política DE UMA FILOSOFIA DO DIREITO MARXISTA
uma "personalidade" coletiva independente. Contudo, enquanto "os homens são os agentes e autores de sua Muitos escritores são responsáveis pela criação de análises inarxisl ;; • 1)011
própria história", eles estão à mercê das forças e dos recursos que lhes são providos pela estrutura social e dem ou não à complexidade e sutileza das análises originais de lv1I.\ ji 11111 1 011
pelos processos sociais. tra questão.
296 Filosofia do direito Karl Marx 297
Os escritos e as preocupações de Marx abarcam muitos anos Duas questões preliminares: o direito deve ser visto em relação às forças que
de estudos intensos e produção intelectual constroem a modernidade (isto é, as formas e os esteios culturais das sociedades oci-
dentais modernas). Os procedimentos peristitidos nessa busca das forças reais e con-
A íntegra de seus primeiros escritos só se tornou disponível há relativamente cretas e das estruturas da modernidade são aquelas que são específicas da moderni-
pouco tempo; em decorrência disso, a interpretação predominante de Marx funda- dade. Uma importante questão a se interpretar consiste em saber até que ponto, na
mentou-se em seus escritos posteriores, friamente científicos dentre os quais o opinião de Marx, o direito era ativo ou constitutivo, e não meramente passivo ou re-
mais conhecido é o Capital. Com a íntegra de sua obra disponível, temos uma ima- flexivo, em face das relações sociais. Para responder a tal pergunta, a narrativa des-
gem mais evolutiva de Marx, e diferentes estágios de suas preocupações intelectuais te capítulo será a seguinte: (i) o jovem Marx acreditava no direito como um veículo
tornam-se evidentes. Alguns autores falam de uma ruptura epistemológica entre o progressivo de mudança; porém, (ii) os escritos do Marx tardio são muito mais com-
primeiro e o segundo Marx, outros falam de uma distinção entre o humanista e o cien- plexos e abertos a várias leituras. Talvez a leitura dominante tenha tendido a concen-
tista (ou entre o expressivo e o analista). Podemos distinguir vários temas ou "tipos trar-se na estrutura determinista, materialista e teórica que tem a conseqüência de
de Marx" em sua obra, a saber: relegar o direito a um papel menos importante, como parte de uma superestrutura
ideológica na qual tem por tarefa ajudar a manter as relações sociais que foram de-
(i) o humanista que escreve contra a exploração, que afirma que as condições da so- terminadas pelos fundamentos econômicos da sociedade (chamadas de "a base" em
ciedade moderna não avançam a ponto de libertar o homem, de servir aos "ver-
muitas análises). Será correta tal leitura? Ou será uma interpretação parcialmente
dadeiros" interesses humanos"";
correta, porém incompleta, do esquema de Marx? Sem dúvida, Marx passou a acre-
o cientista social, que proclama que suas teorias conclusivas incorporam "leis de ditar que o direito e a jurisprudência eram parte central da estrutura ideológica de
mudança social" e um "verdadeiro" retrato da condição humana, e que mais qualquer sociedade; não apenas sustentavam, em parte, aspectos do corpo social
tarde afirma ter descoberto a "essência" do capitalismo e da história social; vivo, como também ajudavam a apresentar uma ordem social não natural (no sentido
(iii) o retórico, que às vezes escreve rápida e livremente, empenhando-se em instigar de contrapor-se à "verdadeira natureza" do homem) como natural ou necessária`.
o leitor à ação e à revolução - "Trabalhadores do mundo, uni-vos!". Podemos
observar a rapidez com que certos textos-chave foram criados; O Manifesto Co-
12. O filósofo francês [Antoinel Destutt de Tracy empregou pela primeira vez o conceito de ideologia
munista (Marx e Engeis, 1848), por exemplo, foi escrito em poucos dias. ir seu livro Élénients d'idéologie [Elementos de ideologia], publicado no início do século XJ.X, no qual o termo
remetia a uma ciência das idéias, O termo passou a significar um sistema total de idéias, atitudes e emoções
uma perspectiva ou orientação abrangente do mundo -, mas desenvolveu um uso político específico que
10. Isso não quer dizer que sejam separados e distintos. Marx freqüentemente escreve de modo intensa-
umbinava suas aptidões descritivas com um aspecto emocional capaz de estimular a ação social. Os marxis-
mente retórico ao condenar as condições desumanizadoras, ao mesmo tempo que nos permite ver o proble-
tas em geral afirmam que a ideologia exprime idéias e crenças que representam ou ocultam interesses mate-
ma sob um novo prisma. Temos disso um exemplo na seguinte citação sobre o fetichismo da mercadoria: "A
riais, sobretudo interesses de classe. Conseqüentemente, o conceito incorpora a afirmação de que os sistemas
propriedade privada nos tomou tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando
L tdéias e crenças são formados pela pressão dos interesses materiais (i.e., econômicos).
existe para nós como capital, ou quando é ( ... ) utilizado de alguma maneira" (Marx, Early Writings, 1964: 159).
Em termos gerais, dois tipos de análise estão representados na obra de Marx e Engels:
11."O jovem Marx é herdeiro do Iluminismo radical, primeiro, em sua idéia de que o homem configu-
ra a natureza e, por fim, a sociedade, de modo que sirvam a seus objetivos. É seu herdeiro, em segundo lugar, (a) Em um dos tipos de análise, a ideologia é vista como algo estruturalmente determinado, isto é, como
em sua crítica da desumanidade da presente ordem. O Iluminismo fez surgir um novo tipo de protesto in- resultado do sistema socioeconômico que, ao mesmo tempo, oculta essa lógica da maior parte da-
dignado contra as injustiças do mundo. Tendo demolido as concepções mais antigas de ordem cósmica e queles que vivem sob tal sistema. Assim, em sua obra mais importante, O capital (1867, mais dois
apresentado-as, na melhor das hipóteses, como ilusões— e, talvez, até mesmo como imposturas -, deixava volumes póstumos), Marx descreve o modo como as relações sociais sob o capitalismo se tornam
todas as diferenciações da velha sociedade, todos os seus fardos e disciplinas, sem justificação possível. Uma relações entre coisas. Os indivíduos se relacionam basicamente como proprietários que vendem
coisa é suportar o próprio destino enquanto camponês se for este o espaço indicado na hierarquia das coisas suas mercadorias no mercado. Até mesmo os destituídos de propriedades vendem mercadorias! Os
ordenadas por Deus e pela natureza. Porém, se a própria idéia de sociedade enquanto incorporação de tal or- trabalhadores sem capital têm de vender sua própria força de trabalho aos empregadores, em troca
dem cósmica for abolida, se a sociedade for, antes, o instrumento comum de homens que devem viver sob o de salários. A maioria das relações fora da esfera familiar se transforma em relações "comerciais"
mesmo teto político para buscar a felicidade, então os fardos e privações dessa posição não passam de uma instrumentais de uma ou de outra forma. "Mercadorias" e "capital" assumem existência própria, deter-
selvagem imposição, contra a razão e a justiça, mantida apenas à custa de escravidão e mentiras. Eles clama- minando as relações entre os seres humanos. Na verdade, porém, essas "coisas" s5o apciiii ,, 1'rodu-
riam aos céus - se tal coisa existisse - por compensação, quando não por vingança. O Iluminismo gerou, as- tc do trabalho humano. Estranhamente, tudo foi virado ao contrário. O produto pus;cu a doi ninar
sim, uma nova consciência da desumanidade, do sofrimento gratuito e desnecessário, bem como uma urgen- o produtor. Estritamente falando, essa concepção ideológica da realidade que :o; p'5soe; .nlutarn sob
te determinação de combatê-los. Porque, se o homem é então apenas um sujeito de desejos que visam a sua o regime capitalista não é falsa. É o modo como as coisas realmente são; o modo corno fO, do. fato,
concretização (isto é, a felicidade), nada que exista no céu e na terra pode compensar a perda dessa felicida- vivenciadas. Ao mesmo tempo, tanto para o capitalista quanto para o trabaliulor, a realidade se
de. A privação impune é uma perda inconsolável, absoluta" (Charles Taylor, 1979: 141-2). apresenta de uma maneira que obscurece a verdadeira natureza do sistema socíoeconômíco.
298 Filosofia do direito Karl Marx 299
Além disso, porém, (iii) ao avançarmos para além das análises reducionistas de Marx Tradições interpretativas dominantes: instrumentalismo
podemos desenvolver idéias para uma teoria marxista constitutiva do direito, ou, dito de classe versus determinismo econômico
de outra forma, uma teoria marxista do direito como uma das técnicas sociais cruciais
para a constituição das relações sociais modernas e das identidades sociais. Ao desen- Coifins (1982) distingue duas maneiras de considerar as concepções sobre o di-
volver essa narrativa, devemos levar em consideração algumas questões adicionais: reito do Marx da maturidade:
(a) instrumentálismo de classe - aqui, o direito é visto como uma arma na luta de
Marx sempre vê o direito como um fenômeno expressivo classes. O direito é um instrumento para a opressão das classes sociais mais bai-
xas, e um modelo de conflito do desenvolvimento social é mais apropriado para
O primeiro Marx acredita que o direito é uma grande força progressiva. Sob in- explicar a mudança;
fluência de Hegel, os primeiros textos de Marx identificam o direito como símbolo do
pensamento de uma sociedade e implicam que o direito pode ser um instrumento (b) determinismo econômico - esta é uma concepção mais complexa, que vê o direi-
expressivo, permitindo que uma sociedade estabeleça valores centrais. Nesse perío- to não simplesmente como um instrumento de dominação de classe, um instru-
do, Marx adota uma abordagem próxima do direito natural; o critério do verdadei- mento da classe dominante, mas como um fenômeno produzido e reproduzido
ro direito está em permitir que a liberdade adentre a existência social do homem. pelas forças mais importantes que impulsionam as transformações sociopolíticas
Por contraste: e culturais numa sociedade (para Mar), o modo de produção econômica).
Cada uma das correntes acima é aberta a sérias dúvidas. Em primeiro lugar, as
Enquanto o Marx da maturidade parece rebaixar o papel do direito, análises do direito como um instrumento da repressão de classes podem ter pareci-
este continua a ser apresentado em termos expressivos do, aos observadores de primórdios do século XIX, um simples reflexo das práticas
por meio das quais uma classe privilegiada mantinha sua posição, pela força se ne-
Ao longo de sua obra Marx insinua que, ao interpretarmos a realidade social do cessário (e existe um grande volume tanto de argumentação teórica quanto de sus-
direito, podemos desvendar o jogo oculto das verdadeiras forças sociais. A "verda- tentação empírica; ver, por exemplo, Hay, 1975): em certas ocasiões, tanto Bentham
deira" operação do direito torna-se um espaço crucial em que as contradições, que quanto Austin afirmaram ver a ordem jurídica como arma de dominação, tema de-
são parte fundamental da vida social capitalista, podem ser expostas. senvolvido pela sociologia de Max Weber (ver capítulo 11 deste livro); afirmações cla-
ras a favor dessa leitura são feitas na tradição marxista, ver Lenin 1976, Pashukanis
'1978 - particularmente sobre o direito público - e criminologistas críticos como
(b) O outro tipo de análise é o que vê a ideologia como expressão direta dos interesses de classe. Desse Quinney, 1973), mas o percurso subseqüente do desenvolvimento social torna ex-
modo, as idéias que predominam numa sociedade tendem a ser as idéias das classes dominantes: tremamente difícil identificar nisso a essência do direito. Ficou claro que é difícil tan-
idéias que justificam e apresentam como natural a ordem social sob a qual os dirigentes dominam.
A ideologia, portanto, serve aos interesses de classe. Esse tipo de abordagem da análise ideológi-
to identificar uma classe coerente que controla o direito quanto ilustrar os mecanis-
ca naturalmente vê o conflito de ideologias como parte da luta de classes. Os marxistas modernos mos através dos quais tal classe converte, com êxito, sua vontade em um regime le-
têm dado considerável atenção à lutá ideológica. O pensador italiano Antonio Gramsci (escreven- gol que sirva a seus interesses (Cotterrell, 1984: 16 ss.). Todavia, porquanto a força
do na prisão entre 1929 e 1935) desenvolveu o conceito de "hegemonia" que se refere à domina- nio seja o segredo da dominação moderna, ela não desapareceu e continua sendo
ção do pensamento e da prática política numa sociedade através de um sistema de crenças e ati- om aspecto fundamental do poder de governo. Além disso, é verdade que a força do
tudes que mantêm um consenso geral em defesa da ordem estabelecida. O marxismo, portanto, não 1 eito é difundida de modo desigual; se as sociedades pós-modernas estão desen-
nega necessariamente a existência de um consenso efetivo de crenças entre os membros de uma
sociedade dividida por classes. Todavia, as origens e a natureza de tal consenso têm de ser explora- )vendo uma subclasse negligenciada ou "perdida", isso vai acarretar o impacto do
das. A luta ideológica é vista como parte dos meios pelos quais a classe dominante procura ga- liciamento repressivo. O lado coercivo do direito moderno pode convergir para
rantir seu poder e sua posição. O que o marxismo considera mais difícil é concordar com a natu- .;mentos particulares da população (Bauman, 1994, Morrison, 1995; 1 006).
reza das crenças e a perspectiva de uma classe trabalhadora revolucionária, ou um partido revolu- Em segundo lugar, as análises que viam o direito como um reflexo passivo da
cionário. Serão estes igualmente ideológicos - e, portanto, justificáveis apenas em termos de in- . , iC econômica reduzem o desenvolvimento social a um relato uni1alcrt1 do I'-
teresses de classe -, ou transcendem a ideologia de alguma forma, tornando-se objetivamente
"verdadeiros" ou científicos? Não surpreende que muitos marxistas tenham tentado defender esta ou reduzem a variação tanto nas formas quanto nos contetudus (l() tliOiIc),
última posição, mas até o momento não se encontrou nenhuma forma satisfatória de estabelecer ;\'l;umas modalidades de direito, em especial as preocupações centrais (10 diioil lx
uma clara distinção entre pensamento científico e ideológico nesse contexto. --por. exemplo, as proibições de se tirar deliberadamente a vida Itui 0IftI• •,
300 Filosofia do direito Karl Marx 301
cem transculturais, enquanto outros aspectos de seu conteúdo são extremamente fundação social. Numa das concepções, o direito aparece como se pudesse ser ex-
específicos do ponto de vista cultural. O escritor soviético Pashukanis (1978) pro- traído do contexto das relações operacionais que se dão nas formas sociais da socie-
curou contornar essa dificuldade ao argumentar que, nos países desenvolvidos, a dade e imposto a esta de modo que configure a interação social através da coerção. A
forma do direito reflete a "forma de produtos primários" das relações econômi- esta imagem, porém, vem opor-se uma outra na qual o direito infiltra-se e adquire
cas (o sujeito da relação jurídica é o portador social e individual de direitos, do mes- vida como expressão e reflexo de interações sociais que, de modo subjacente, ocor-
,i-no modo que o mercado trata o indivíduo como o possuidor econômico de unida- rem no cotidiano em menor escala. Uma teoria constitutiva do direito implica ver o
des de trabalho ou transações de mercado). direito num conjunto complexo de processos nos quais é tanto um reflexo como uma
Essas duas distinções não são suficientes para cobrir o amplo alcance das con- forma de imposição, tanto uma força produtiva que permite a existência de formas
cepções marxistas sobre o direito, e as análises modernas deram muita atenção ao sociais quanto um produto dessas mesmas formas.
efeito ideológico do direito e do pensamento jurídico (ver nossa nota 12). Hunt (1991,
1993: 249-50) apresenta uma síntese que consta de seis temas:
ESBOÇO DO DESENVOLVIMENTO DO
PENSAMENTO JURÍDICO DE MARX
(i) O direito é inevitavelmente político, ou o direito é uma forma de política.
(ii) O direito e o Estado são estreitamente ligados; o direito mostra uma relativa au- Em nenhuma época de sua vida Marx criou uma obra específica que se pudes-
tonomia em relação ao Estado. se chamar de sua "sociologia do direito", mas o direito (e a filosofia do direito) foram
sua primeira preocupação central. Depois de concluir o liceu em 1835, Marx matri-
(iii) O direito põe em vigor as relações econômicas predominantes, reflete-as ou ex-
prime-as de alguma outra forma; a forma jurídica reproduz as formas das rela- culou-se no curso de direito da Universidade de Bonn (para onde John Austin se
transferira oito anos antes, a fim de preparar suas aulas). Além de estudar direito, es-
ções econômicas. perava-se que Marx fizesse estudos teológicos, e ele matriculou-se num curso de mi-
(iv) O direito é sempre potencialmente coercitivo ou repressivo, e manifesta o mo- tologia clássica e história da arte. O que o estimulava, porém, eram a poesia e seus
nopólio estatal dos meios de coerção. excessos de juventude. No ano seguinte ele foi-para Berlim, onde mergulhou no es-
tudo do direito, das ciências e da arte, e apaixonou-se por uma jovem com a qual vi-
(v) O conteúdo e os procedimentos do direito manifestam, direta ou indiretamen-
ria mais tarde a casar-se. Escreveu a seu pai que havia chegado a um momento limí-
te, os interesses da(s) classe(s) dominante(s) ou do centro detentor do poder.
trofe de sua vida: aprendera na obra de Hegel (ver capítulo 7 deste livro) a tarefa
(vi) O direito é ideológico; tanto exemplifica quanto legitima os valores estabeleci- de "procurar a idéia [a totalidade da existência] na própria realidade. Se antes os deu-
dos da(s) classe(s) dominante(s). ses viviam acima da Terra, agora haviam se tornado seu centro" (carta de 10 de no-
vembro de 1837). Arte, ciência, poesia, filosofia especulativa, paixão romântica, reli-
Hunt enfatiza que esses temas estão presentes nos escritos marxistas de mui- gião... Tudo isso era agora visto pelo jovem Marx estudante como modos diferentes
tas maneiras diversas, com diferentes graus de sofisticação e complexidade. Alguns de se acercar da complexa unidade da existência histórica do homem neste mun-
dos temas são conflitantes, outros se reforçam mutuamente. Nenhum tema ofere- do. A intensidade com que Marx se dedicava agora à tarefa de compreender "a to-
ce a "correta" interpretação do marxismo. Conquanto admitamos que esses temas tIidade da realidade" levou-o à exaustão mental e ao colapso físico; durante o tem-
refletem tendências no vasto arsenal dos escritos de Marx, não faremos uma des- po em que se ausentou da Universidade para recuperar-se dos nervos, leu toda a obra
crição das idéias de outros autores; ao contrário, esboçaremos um conceito do pa- de Hegel. Havia um problema em Hegel: embora tivesse conseguido trazer a divin-
pel do direito na modernidade, papel este que chamaremos de "constitutivo". ide para a Terra, sua tese do idealismo conteria, de fato, uma resposta à pergunta s-
se a(s) força(s) motriz(es) do desenvolvimento histórico? O direito era, de fato, o
1strumento por meio do qual as crenças morais de uma sociedade se
expressavam
Sobre uma teoria marxista constitutiva do papel ;i liberdade humana se concretizava?
do direito na modernidade Alguns anos mais tarde, em 1859, Marx sintetizou o modelo de seu desenvolvi
ii ssito intelectual no famoso prefácio à Contribuição à crítica da ecotioriiia política.
Os capítulos anteriores, nos quais foram abordados autores tão diferentes quan- Mesmo levando em conta o fato de que as reflexões de um escritor sobre sua própria
to Santo Agostinho, Hobbes, Hume, Kant e Austin, enfatizaram a dualidade das pers- iv lução intelectual podem ser egocêntricos, podemos ainda assim seguir. a est nitu-
pectivas dos fundamentos do direito e sua capacidade de atuar como elemento de desse prefácio a fim de criar nosso próprio modelo do desenvolvimento de Marx.
Filosofia do direito Karl Marx 303
302
Marx começa por afirmar: "Embora eu tenha estudado filosofia do direito, estu- as normas gerais claras e positivas nas quais a liberdade adquiriu uma existência teó-
dei-a como assunto subordinado à filosofia e à história" (todas as referências ao pre- rica impessoal, independente da vontade arbitrária dos indivíduos. O livro de direi-
fácio são extraídas do texto traduzido em Karl Marx: Early Writings, Penguin Classics, to é a Bíblia da liberdade do povo"". Sem dúvida, poucas afirmações mais otimistas
1992). Seu desejo, desde os tempos de estudante, de tornar-se jurista acadêmico e românticas sobre o direito já foram feitas até hoje!
frustrou-se quando, depois de concluir sua tese de doutorado, vários acadêmicos Portanto, Marx podia comparar um direito com o qual estava de acordo, o di-
progressistas foram demitidos de seus cargos em 1841. Sua influência intelectual reito de imprensa (que possibilitava a ação penal contra os autores de material es-
mais importante foi o impacto causado pela leitura de A essência do cristianismo, de crito depois da publicação, caso ofendesse certas categorias) com um direito que
Feuerbach, que argumentava que a religião era uma resposta às condições materiais desaprovava, o direito de censura (que obrigava os escritores a submeter seu mate-
da vida. Feuerbach argumenta que a história é na verdade a narrativa do homem lu- rial escrito antes da publicação), explicitamente nos termos hegelianos de um direi-
tando por realizar suas possibilidades nas condições materiais concretas em que se to natural reformado.
encontra e que, enquanto o homem pode apelar a Deus, esse é um exercício em que
ele separa seus desejos existenciais de seu domínio terrreno, e equivale a um exer- O direito de imprensa pune os abusos de liberdade. O direito de censura pune a li-
cício de alienação. Na verdade, o centro da existência é o homem, e não Deus, e a his- berdade como um abuso. Trata a liberdade como crime, ou não se considera como puni-
ção degradante, em todas as esferas, o fato de estar sob supervisão policial? O direito de
tória (com a conseqüência, aparentemente, de que as atenções do homem deveriam imprensa é um verdadeiro direito.
voltar-se para o estudo da situação total da humanidade e de seu aperfeiçoamento)`. O direito de imprensa é um direito verdadeiro porque representa a existência posi-
Isso foi uma revelação para Marx, pois defendia a importância das condições mate- tiva da liberdade. Vê a liberdade como o estado normal da imprensa, e a imprensa como
riais da vida em contraste com a tensão que Hegel colocava sobre a criação de idéias. um modo de existência da liberdade; conseqüentemente, só entra em conflito com
Marx começou a escrever para um jornal - o Rheinische Zeitung - que representava uma transgressão praticada pela imprensa como uma exceção que infringe suas pró-
interesses industriais e liberais. Tornou-se seu editor, foi apresentado ao jovem indus- prias regras e, portanto, anula-se a si própria.
trial Engels durante uma visita a Colônia, e logo envolveu-se em polêmicas sobre a [Portanto] a censura não pode jamais, assim como a escravidão, tornar-se legitima,
natureza das mudanças jurídicas. O resultado disso foi que ficou desanimado quan- ainda que exista mil vezes em forma de direito. [Uma vez que] onde o direito é um ver-
to à capacidade de o direito servir como instrumento de transformações progressistas. dadeiro direito (...) encontra-se a verdadeira existência da liberdade humana (todas as ci-
tações extraídas de Phiffips, 1980: 7).
Primeiro, porém, cabe perguntar quais eram as concepções de Marx sobre o di-
reito enquanto editor do Rheinische Zeitung. Escrevendo em 1842, Marx definiu a hu-
manidade do homem em termos de uma capacidade de autodomínio que distingue 14. O Marx dos primeiros escritos manteve as distinções usadas pelos juristas jus-naturalistas - fazen-
os fins verdadeiramente humanos daqueles naturalmente condicionados: "A liberda- do alusão à concepção de uma forma verdadeira e natural do juízo e, desse modo, de uma forma verdadeira
o natural do direito, no cosmo, passível de ser usada para criticas aquilo que chamai-nos
de representa tanto a essência do homem que inclusive seus adversários a põem em vagamente de "di-
reito positivo". Os textos do Marx desse período eram cheios dd expectativas de mudanças progressivas que
prática mesmo quando combatendo sua realidade." A grande realização da moder- decorreriam da produção de idéias e debates a partir do interior das condições sociais existentes. Seus arti-
nidade está na descoberta da verdadeira humanidade do homem: "A Antiguidade gos sobre o direito de imprensa, por exemplo, podem - sem muito abuso teórico - ser caracterizados como
tinha suas raízes na natureza, no substantivo. Sua degradação e profanação signifi- textos sobre "direito natural" (com faz Paul Phillips, por exemplo, em Marx and Engels on Law and Laws [Marx
e Engels sobre o direito e os direitos], 1980: 6-23). O aspecto principal desse período é sua adesão ao idealis-
ca uma ruptura fundamental com a solidez da vida substantiva. O mundo moderno
mo hegeliano. Em poucas palavras, o idealismo sustenta que o elemento mais importante da constituição do
tem suas raízes no espírito, e pode ser livre." Nesse contexto idealista hegeliano, o mundo são as idéias ou o pensamento - através do pensamento, o mundo constitui-se a si próprio, e a razão
Marx dos Debates sobre a liberdade de imprensa percebe que "as normas jurídicas são do pensamento torna-se a razão do mundo. Contudo, a distinção entre direito natural / direito positivo de-
pende da liberdade de pensamento e da imaginação filosófica, quer arraigada na intuição do homem en-
quanto indivíduo, quer nas formulações sistemáticas do professor, para poder exprimir e reconhecer a verda-
13. Esse é um ponto crucial para o desenvolvimento do marxismo Anteriormente, Marx já fora buscar de Só podemos nos dar conta de que existe uma "outra" formulação jurídica, que contém a "verdadeira" es-
em Hegel a idéia de unidade do mundo - não há nenhuma divisão platônica da vida na caverna e de sua sência do "direito", através de uma experiência de pensamento ou da apreciação deste. Todavia, mesmo que
iSu pudesse ser feito, aumentaria o temor de que tudo que fizemos foi reconhecer
transcendência. Com o hegelianismo, o Marx aprendiz entendeu que (i) existe apenas uma realidade e que o incompleto e não-di-
esta pode ser compreendida como a expressão da racionalidade do mundo; (ii) a história é um processo te- reito apenas em "pensamento", e que nada mais fazemos a não ser reconciliai através do ato de contrapor
leológico de desenvolvimento e de mudança de formas menos perfeitas para formas mais perfeitas de toda a ao não-direito positivo a verdadeira essência do direito no pensamento - somente no pensamento, como na
realidade, aí incluídos a vida social política e o pensamento humano; (iii) os pensamentos e o comporta- filosofia do direito -, quando o que se deveria fazer seria uma consumação em termos práticos.
mento dos homens, em qualquer época dada, são o reflexo de alguns processos idênticos, especificamente as Para Marx, a idéia de um domínio abstrato de direito natural transformou-se, com o tempo, nos funda -
operações do espírito ou da mente (Geist). mentoseconômicos que lhe foram apresentados por sua "verdadeira ciência".
304 Filosofia do direito Karl Marx 305
Aqui, naslorigens do marxismo, observamos no espírito do direito natural urna poderiam obter a permissão de reabrir -, Marx se viu forçado a dedicar-se aos es-
predileção pelos humilhados e ofendidos, predileção que se expressa na luta pela tudos privados. Como diz ele: "O primeiro trabalho ao qual me dediquei para dissi-
dignidade humana e não permite que nenhuma autoridade recentemente expres- par as dúvidas que me assaltavam foi um reexame crítico da filosofia do direito
sa, como é o caso, aqui, do direito positivo, se torne urna resposta em si mesma. de Hegel" (Prefácio, 1992: 425). Em resultado desse trabalho - a Contribuição à
Quando Marx passou para os domínios da crítica socioeconômica, em seu arti- crítica da filosofia do direito de Hegel (1843) -, Marx mudou de opinião sobre a força
go sobre Os debates na Assembléia da Renânia sobre o direito no caso dos roubos de ma- motriz que fazia avançar a transformação social. Segundo as análises-padrão, ele
deira, sua explicação do que estava errado ou era injusto com as leis que legitimam afirmou ter descoberto o conhecimento "científico" exato da natureza da moder-
a privação econômica dos pobres e reforçam os privilégios habituais dos ricos foi nidade ao inverter o sistema filosófico idealista "abstrato" de Hegel. O sistema de
feita nesses mesmos termos hegelianos: Hegel sustentava que a sociedade avançava para a consumação das realizações
humana e a criação da verdadeira paz entre os homens através de um progressi-
O que se entende pelos chamados costumes dos privilegiados são costumes con- vo desdobramento do "espírito", ou Geist, do ser (ou da existência) por meio dos
trários ao direito. Suas origens estão no período em que a história humana ainda fazia
conflitos, ou da dialética, entre tendências antagônicas de realidades ou idéias.
parte da história natural e em que, de acordo com uma lenda egípcia, todos os deuses
se ocultavam em forma de animais. A humanidade parecia dividida em espécies defini- Essa progressão dialética leva, ao fim e ao cabo, à descoberta daquele perfeito es-
das de animais ligados entre si não pela igualdade, mas por uma desigualdade instituí- tado de ser do homem do qual o presente sempre nos permitiu entrever relances.
da pelas leis. A falta de liberdade que reinava no mundo exigia leis que expressassem tal Como resultado de seus estudos, por volta de 1859 Marx se sentiu capaz de "in-
falta porque, enquanto a lei dos homens é o modo de existência da liberdade, a lei dos verter" Hegel, substituindo "espírito" pela "base material" da existência social - o
animais é o modo de existência da falta de liberdade. Em seu sentido mais amplo, o feu- modo de produção econômica do sistema social`. Para o homem concretizar suas
dalismo é o reino espiritual animal, o mundo da humanidade dividida... Os direitos cos- possibilidades na história, ele precisaria transformar as condições materiais con-
tumeiros da aristocracia conflitam, por seu conteúdo, com a forma do direito universal. cretas de sua existência.
Não podem constituir o direito, pois são criações da ilegalidade. Portanto, Marx agora percebe a relação entre liberdade e direito de maneira
complexa e dialética. Ele reinterpreta o problema de Hegel não como o desdobra-
Nessa situação, "os interesses privados procuram degradar" a razão de Estado e
rnento progressivo do espírito de liberdade, mas como a necessidade de tornar a li-
seu direito. O Estado, como consumação da liberdade humana, deveria reconhecer:
berdade concreta e social. Como ele nos explica nesta famosa passagem.
(...) somente as forças espirituais. O Estado entrelaça toda a natureza com nervos espi-
rituais, e a cada instante deve parecer que é a forma, e não o material, que domina; a na- A crítica da religião terminou com a doutrina de que o homem é o ser superior para
tureza do Estado, não a natureza sem o Estado; o ser humano livre, não o objeto sem o homem e, portanto, com o imperativo categórico de eliminar todas as relações nas
liberdade (Citações extraídas de Phillips, 1980: 00). quais o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado e desprezado (Critique
ofHegels Phílosophy ofRigl'zts [184411992: 251).
A razão de Estado deve clamar em altos brados diante das tentativas de disfar-
çar o interesse privado em forma de direito: "Teus métodos não são os meus, tuas 15. Essa resposta também parece nos apresentar uma teoria dos fundamentos da existência humana. Es-
idéias não são as minhas!" pecificamente, enquanto outra noção-chave de Hegel é a de que existe alguma presença fundamental extrín-
Nessas obras, Marx argumenta que o objetivo da modernidade consiste em al- ic a todos os aspectos conflitarstes da vida cotidiana que confere sentido e unidade à existência - e, em Hegel,
vrnos isso no Geist, no desenvolvimento do Geist ao longo do avanço da história—, para Marx a base social cia
cançar a liberdade e a felicidade humanas, e que os obstáculos a tal objetivo podem
<t;rincia são, em última análise, as estruturas mutáveis das formações econômicas. Essa resposta nos permite
ser superados através da força progressiva da razão social e da comunicação de vi un vislumbre de uma pós-modernidade que irá superaras tensões e as forças desumanizadoras do muder-
idéias. Porém, enquanto a filosofia de Hegel parecia fornecer os instrumentos para tim outras palavras, uma vez superadas as estruturas econômicas que nos levam a competir no mercado,
ajustar a diversidade do mundo empírico, transformando-a numa narrativa de tota- kseparecerão as divisões entre o meu e o seu interesse, ou entre nossos interesses individuais e o interesse
lidade e progresso social, com o passar do tempo o fosso entre a "reconciliação teó- inial. Essa idéia sustentava o chamado à ação em nome de urna utopia comunista, e por fim tornou-se vi-
1 ima das amargas decepções que os marxistas sentiram diante da terrível história que
rica" e a "desarmonia prática" do mundo torna-se premente, tanto corno problema seus sistemas Coei claram
1 o século XX. 1ra muitos, hoje, a história parece mostrar que, embora seja possível mudar um grniole nfle-
teórico a ser analisado e compreendido quanto como projeto sociopolítico prático a O de condições sociais, é impossível livrar-se das divisões básicas entre razão e desejo, entre ncu mici
e
ser superado. 'seu, ou entre a posição individual e a sociedade. Pouco surpreende, portanto, que os aconte nentoe de 1989
Com o jornal forçado a fechar as portas e os proprietários à procura de um novo 'nham levado alguns escritores - como Francis Fukuyama (1989) -. a anunciar que a história havia chegado
O fim, mas que o liberalismo capitalista, e não o socialismo, era
editor - na esperança de que, se observassem a linha de pensamento do governo, o vitorioso.
306 Filosofia do direito Karl Marx 307
Isso praticamente substitui sua distinção anterior entre direitos genuínos e não- rídica e política e à qual correspondem formas de consciência social. O modo de pro-
genuínos por uma visão da contradição entre a universalidade formal das instituições dução da vida material condiciona os processos da vida social, política e intelectual em
jurídicas e políticas, e a particularidade real dos interesses e do comportamento hu- termos gerais. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo con-
manos. A contínua reforma do direito do Estado não superará os obstáculos à feli- trário, seu ser social que determina sua consciência. Em determinado estágio de seude-
cidade humana sem uma transformação dos fundamentos "práticos" do Estado. A senvolvimento, as forças materiais da sociedade entram em conflito com as relações de
"emancipação política" deve ser distinguida da "emancipação humana"; deixada a produção existentes, ou - o que não é senão a expressão jurídica da mesma coisa - com
si própria, a emancipação política cria apenas o indivíduo isolado e egoísta na esfe- as relações de propriedade em cujo contexto se desenvolveram até aquele momento.
De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformam em
ra de uma modernidade vazia da prática de interesses gerais liberados. O fracasso
seus obstáculos. Surge, então, uma época de revolução social. Com a mudança da base
da Revolução Francesa (sua degeneração em terror jacobino e na ditadura de Na- econômica, a imensa superestrutura se transforma mais ou menos rapidamente. Ao
poleão) muito deveu a uma concentração equivocada na idéia de vontade social e examinar essas transformações, deve-se sempre distinguir entre a transformação ma-
na idéia de usar a força e a lei para criar uma nova ordem social. Portanto, os jacobi- terial das condições econômicas de produção, que podem ser determinadas com a pre-
nos haviam pensado, equivocadamente, que cisão das ciências naturais, e as instâncias jurídicas, políticas, religiosas, estéticas ou filo-
sóficas - em suma, as formas ideológicas em que os homens se tornam conscientes
(...) o princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral e, portanto, mais rema- desse conflito e lutam por resolvê-lo. Assim como nossa opinião sobre um indivíduo
tada for a mente política, mais acreditará na onipotência da vontade, mais cega será aos não pode basear-se no que ele pensa de si mesmo, tampouco podemos julgar tal perío-
limites naturais e espirituais da vontade, e mais incapaz será, portanto, de descobrir a ori- do de transformações por sua própria consciência; ao contrário, é preciso explicar essa
gem dos males sociais (Collected Works,Vol. 3: 199). consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. Nenhuma ordem social desaparece antes
O enfoque de Marx era simples, porém fatal. O poder político só pode consu- do desenvolvimento de todas as forças produtivas para as quais há nela espaço; e rela-
mar possibilidades permitidas pelas tendências das condições socioculturais exis- ções de produção novas e mais altas jamais aparecem antes que as condições materiais
tentes. Por si mesma, a emancipação política não é capaz de tornar a humanidade para a sua existência amadureçam no seio da própria sociedade antiga (do Prefácio de
livre - a modernidade terá de se transformar numa forma que permita a concreti- 1859 a A Contribution to the Critique ofPolitical Economy, 1992: 425).
zação da liberdade do "ser-espécie" da humanidade. Não apenas nas imagens da
filosofia, mas "em sua vida empírica, em seu trabalho e em suas relações". Todas Escrevendo com Engels, ele apresentara anteriormente as condições para uma
as condições que não atendem a essa condição plenamente humana escravizam o verdadeira análise da condição humana:
homem e o tornam desprezível. A tarefa consiste em situar e analisar as verdadei-
ras condições que produziram o abismo entre a humanidade do homem e seu mun- Partimos de homens reais e ativos, e, com base em seu processo de vida real, de-
do. Com o tempo, Marx parece ter descoberto isso na teoria do "materialismo monstramos o desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos do processo de vida.
histórico". Os fantasmas criados no cérebro humano são também, necessariamente, idealizações
de seu processo de vida material, que é empiricamente verificável e ligado a premiss
materiais. Moralidade, religião, metafísica - toda a ideologia restante e suas form
A FORMULAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO CIENTÍFICA consciência correspondentes - deixam então de parecer independentes. Não têm 1
DO MARX DA MATURIDADE ria nem desenvolvimento; os homens, porém, ao desenvolverem sua produçio m 1 1
e suas relações materiais, alteram além disso sua existência real, seu pensari i e i 1
Dando seguimento à narrativa de sua transformação intelectual, Marx (1859) produtos de seu pensamento. A vida não é determinada pela consciência, i e
ciência pela vida (Marx e Engeis, 1846, The German Ideology: in The Marx-Eii,: 1 I.'
afirma sua idéia-guia definitiva: 1978: 154-5).
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez alcançado, serviu de fio condutor
aos meus estudos, pode ser assim resumido: na produção social de sua vida, os homens O direito e a filosofia do direito não se desenvolvem em resposta : ..
mantêm relações explícitas que são indispensáveis e independentes de sua vontade, re- coerência interna ou em virtude de seu próprio desenvolvimento:
lações de produção que correspondem a uma fase especifica do desenvolvimento de suas objetos determinados a partir do desenvolvimento das forças pro& Iii 11 v, 1 1, 1 1 ii •
forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estru- homens estão inseridos. Marx pode dirigir toda sua polêmica co i ii
tura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura ju- rídica liberal da época:
308 Filosofia do direito Karl Marx 309
Tuas próprias idéias não são senão a conseqüência das condições de tua produção argumentado que o direito era o instrumento do qual o poder de Estado se valia
e propriedade burguesas, assim como tua filosofia jurídica não é senão a vontade de para criar condições socialmente justas para a vida, para Marx e Engels, em The
tua classe transformada em lei para todos, vontade cuja natureza e direção são deter- German Ideology:
minadas pelas condições econômicas da existência de tua classe (Marx e Engels, The
Manifesto of the Communist Party, 1848, em The Marx-Engels Reader, 1978: 487)16. O justo, o direito, etc. são apenas o sintoma, a expressão de outras relações sobre
as quais repousa o poder de Estado (...).Essas relações efetivas não são, de modo algum,
O erro analítico que a economia e a filosofia do direito político-liberais (por criadas pelo poder de Estado; ao contrário, são o poder que o cria. Os indivíduos que
exemplo, na obra de Hume, Smith, Bentham e Austin) havia cometido consistia em governam em tais condições, além de terem de constituir seu poder na forma do Esta-
admitir o funcionamento do capitalismo como, até certo ponto, um reflexo de su- do, têm de dar à sua vontade, que é determinada por essas condições inelutáveis, uma
perfície das leis subjacentes e naturais de forma, utilidade e função. Em filosofia, expressão universal como a vontade do Estado, como direito ([184611968: 366).
"reinam, solitários, a liberdade, a propriedade, a igualdade e Bentham" (1867: 176),
mas essas coisas eram meras superficialidades; as verdadeiras "leis do movimento" Todavia, essa relação é, e deve ser, obscurecida pela filosofia jurídica liberal. Sob
transcendiam o capitalismo. Os liberais eram empiristas crassos que aceitavam a o capitalismo, o direito reflete a estrutura econômica de relações econômicas desi-
operação da propriedade privada e do contrato como um dado natural, e não como guais e expoliativas e traz inscrito em si o rótulo dos interesses da classe dominan-
algo a ser explicado`. te - um rótulo legitimado como representação da necessidade de o direito refletir
a economia política ou a busca por relações socialmente justas. Como Engels afir-
A economia política tem suas origens no fato da propriedade privada, porém não o mou em carta a C. Schmidt após a morte de Marx, se o direito fosse, de modo tão
explica. Apodera-se do processo material da propriedade privada, o processo ao qual se óbvio, um reflexo da estrutura econômica, perderia sua capacidade de ser visto como
submete, em fórmulas gerais e abstratas que então passa a considerar como leis. Não as- algo digno de respeito. Isso pode significar que certas modalidades de direito são
simila essas leis, isto é, não mostra como elas provêm da natureza da propriedade pri- de fato não um reflexo direto, mas sim indireto, das condições econômicas, ou uma
vada. A economia política é incapaz de explicar as razões da divisão entre trabalho e ca- adaptação à necessidade de demonstrar uma ideologia de justiça.
pital, entre capital e terra (...).Admite o que se pressupõe que explique (Collected Works,
vol. 3: 271). Num Estado moderno, o direito não deve apenas corresponder às condições eco-
nômicas gerais e ser sua expressão; deve ser também uma expressão interiormente coe-
A análise marxista se voltava para os processos estruturais mais profundos e sa que, devido a suas contradições internas, não se reduza a nada. E, para conseguir tal
para a busca da lógica evolutiva da transformação social. A filosofia jurídica burgue- objetivo, o reflexo fiel das condições econômicas passa por distorções crescentes - tanto
sa obscurecia a realidade do conflito de classes e empenhava-se em criar uma ima- mais quanto mais raramente se tem um código de leis como expressão cabal, consuma-
gem,a esfera jurídica como uma instância auto-suficiente, uma imagem da ordem da e pura da dominação de uma classe; considerado em si mesmo, tal fato seria-uma
jurídica como a expressão e a busca contínua da justiça. Enquanto Austin pode ter agressão à "concepção do justo" ([189011960: 504).
valente. Propriedade, porque cada um só dispõe daquilo que lhe pertence. E Bentham, porque cada um só os fatos econômicos se perde por completo. Tendo em vista que, em cada I:;o 1', 11
cuida de si próprio. A única força que os une e os faz estabelecer relações é a do egoísmo, a dos ganhos e dos lar, os fatos econômicos devem assumir a forma de motivos jurídicos 1 i i i ç 1'
interesses, privados de cada um." rem sanção legal; e, tendo em vista que, ao assim procederem, há. por cei I ii'
"A economia clássica sempre gostou muito de conceber o capital social como uma quantidade fixa de
um grau fixo de eficiência. Contudo, essa tendência foi estabelecida pela primeira vez pelo arquifilisteu Je-
em consideração a totalidade do sistema jurídico já em operaço, ii ti )Ii'i'1 liii til
remy Bentham, esse oráculo insípido, pedante efalastrão da inteligência burguesa medíocre do século xix" (Capi-
a forma jurídica passa a ser tudo, e o conteúdo econômico se reduz u ui,uiu M;-, Lii
tal: The World's Classics, Oxford University Press, 1995: 335). gels, Selected Writings, 1958: 396-7).
310 Filosofia do direito Karl Marx 311
O segredo da dominação através do direito consiste em ocultar a dominação. a fonte da transformação social, e têm sua atuação mais poderosa nos confrontos de
Como o pensador comunista italiano Gramsci observaria mais tarde, a hegemonia` classes. Através do confronto das contradições de classe uma modalidade histórica
— ou a situação em que os dominados percebem os instrumentos de dominação de sociedade se eleva a um estágio superior de desenvolvimento social: "a história de
como forças que zelam pelos seus principais interesses - é a forma mais eficaz de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes" (ibíd.: 39).
assegurar que os dominados se deixem guiar pelos desejos dos dominadores.
O ESTADO
ASPECTOS DA METODOLOGIA MARXISTA
O Estado é tanto uma organização política, algo funcionalmente determinado
Marx procurou criar um método de análise que explicasse a essência das forma- pelos processos sociais, quanto uma ilusão. Para funcionar, para assumir sua forma,
ções sociais e da transformação histórica. Em outras palavras, o marxismo era uma o Estado depende do direito e da ideologia. Os Estados nem sempre existiram (e
teoria social total cujo principal objeto de estudo era o capitalismo. Marx estava in- tampouco existirão no futuro, acreditava Marx); são organizações de poder histori-
trigado com a busca dos elementos-chave da estrutura da sociedade capitalista, o camente específicas. Que organização social existia antes do Estado? Engels argu-
modo como esta se desenvolvia, sua capacidade de reproduzir-se como sistema eco- mentava que a constituição política do Estado foi precedida por uma organização fa-
nômico e social e seu destino. Segundo Marx, as relações entre as pessoas e as for- miliar, uma comunidade em que indivíduos livres e iguais possuíam e controlavam
mas que institucionalizam essas relações dependem da "estrutura econômica da so- comunitariamente seus produtos. O Estado foi criado pelo desenvolvimento da di-
ciedade"; o modo como a produção se organiza. A humanidade passou por cinco visão do trabalho e pela correspondente ascensão das relações de classe. Instaurou-
estágios históricos — o do comunismo primitivo, o asiático, o da escravidão, o do an- se o conflito, e os indivíduos desenvolveram a idéia de propriedade privada para me-
ligo feudalismo e o capitalista — com uma estrutura socialista socialmente desenvol- diar o conflito entre si próprios e sua vida em grupo. A medida que indivíduos e fa-
vida ainda por vir. Cada um tem métodos de produção dominantes que levam a "uma mílias formaram grupos maiores, um Estado surgiu na esteira de um processo em
complexa organização da sociedade em diferentes ordens, uma múltipla gradação que se trocava liberdade individual por proteção social. O Estado nasceu dessas ope-
de classes sociais" (Marx e Engels, 1965: 40). Cada forma de sociedade contém divi- rações de troca.
sões conflitantes que ajudaram a transformar a natureza de tal sociedade: as contra-
dições de modo de produção enfatizam a ordem social existente, aprofundando a Para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos conflitantes,
linha divisória entre a base, ou o fundamento econômico da sociedade, e sua superes- não se consumam a si próprios nem à sociedade numa luta vã, um poder aparentemen-
trutura, ou suas instituições jurídicas, políticas e religiosas". Essas contradições são te acima da sociedade tornou-se necessário para moderar o conflito e mantê-lo dentro
dos limites da "ordem"; esse poder, nascido da sociedade mas colocado acima dela, e que
dela cada vez mais se aliena, é o Estado (Engels [188411973: 229).
18. Hegemonia denotava o processo criador do "consentimento espontâneo dado pela grande massa
da população à direção geral imposta à vida social pelo grupo dominante principal (isto é, a classe dorninan- Qual é a essência dessas relações de poder que estão na base do Estado moder-
te)" (Gramsci, 1971:12, citado em Hunt, 1993: 20). no? No Manifesto comunista, Marx e Engels usaram de uma retórica sucinta: "O poder
19. Alguns comentaristas referem-se à relação entre base e superestrutura como uma metáfora. A ima-
gem é do direito, da política, religião, arte etc., tudo repousando sobre uma base de atividades e relações eco- político, assim chamado com propriedade, nada mais é que o poder organizado de
nômicas (o alicerce que sustenta a construção). A estrutura da construção é, assim, determinada pelo que está uma classe para a opressão de outra" (TT7e Manifesto of the Communist Party: 490).
por baixo. Conquanto atraente em sua simplicidade, a metáfora apresenta inúmeros problemas. Por exemplo, Engels foi claro:
os críticos observam que as relações econômicas são em si mesmas definidas pelo direito (que faz parte da
superestrutura). Isso significa que, na verdade, a base é parcialmente construída sobre a superestrutura!?
O Estado antigo era ( ... ) o Estado dos proprietários de escravos, tendo elo v
Marxistas contemporâneos argumentam que o essencial é reconhecer que, de algum modo, a economia deter-
mina o destino da sociedade "em última instância". Por exemplo, Louis Althusser, influente filósofo francês
exploração dos escravos, assim como o Estado feudal era o órgão da nobreza 1'In ex
na década de 1970, afirmou que, na verdade, os níveis político, ideológico e econômico da sociedade influen- ploração dos servos e camponeses, e o Estado representativo moderno é um in;11111 1
ciam-se todos entre si, e todos têm uma considerável dependência mútua. Só em última análise a economia da exploração do trabalho assalariado pelo capital (1973: 231).
determina o movimento geral da sociedade. Muitos marxistas empregam o conceito da "relativa autonomia"
que o Estado, o direito, a ideologia etc. têm diante da economia. Assim eles assinalam, para além do nível Para Marx e Engels, a posição de classe constituía uma unidade de aIiiIia' ce n
econômico, um amplo espaço para a independência por "níveis" de sociedade (ou para a ação em "níveis"
tral. A partir do século XVIII, a luta de classes deu-se basicamente 'i itrv
de sociedade). O determinismo econômico - a idéia de que os aspectos econômicos da sociedade terminam
por determinar todos os outros aspectos - é, portanto, fundamental para o pensamento marxista, mas ao iitailsta (a burguesia) e a classe trabalhadora (o proletariado). Na 1 isfoi1 i wçi O
mesmo tempo é uma idéia complexa que se pode interpretar de muitas maneiras diversas. eles previram, da sociedade capitalista para o comunismo, passai i , lo à iii (0 O 0-
Filosofia do direito Karl Marx 313
312
cialismo, a superestrutura da sociedade burguesa - religião, direito e teoria jurídica, tamente à condição de homem autêntico por meio de seu trabalho produtivo. Por
divisões nacionais, instituições políticas burguesas, o Estado - seria eliminada e, no esse motivo, as diferentes fases da história também mostram diferentes fases de au-
famoso dizer de Engels, o governo de "pessoas" seria substituído pela administra- tenticidade, e essas fases, diz Marx, são determinadas pela situação do homem na
ção de "coisas". O Estado seria relegado à condição de museu da história, junta- realidade material dos meios de produção.
mente com a roda de fiar e o machado de bronze. A natureza dos meios de produção também determina a natureza das relações
Para Marx, estava claro que os Estados europeus de seu próprio tempo permi- de produção. O fato de uma sociedade usar um tipo particular de recursos produti-
tiam que a classe dominante oprimisse a classe trabalhadora através de agentes do vos tem como conseqüência o fato de que os indivíduos produtivos estabelecem re-
Estado como o Judiciário, a polícia, o exército e a Igreja. O que isso implica para o es- lações mútuas de maneira especifica. Nos lugares em que a lã é produzida na roda de
tilo e o conteúdo da legislação, do novo direito moderno? Marx é um expressionis- fiar as pessoas não se relacionam do mesmo modo que o fazem nas tecelagens mo-
ta. O direito moderno exprime desejo, o direito envolve a vontade, esta exprime a dernas. Em termos jurídicos, as relações de produção são chamadas de relações de
transformação da vontade humana em uma legislação criadora de uma estrutura de propriedade.
regras e mecanismos reguladores, ou um anúncio autoritário, da parte de um juiz, da Marx parece sugerir que as formas primitivas de vida social eram comunistas
posição do direito no caso que estiver sendo julgado, mas estaremos adentrando o nas relações de meios de produção e mão-de-obra: "Propriedade ( ... ) significa per-
terreno da mistificação se acreditarmos que o objetivo de tal vontade é apenas um tencer a uma tribo (comunidade)" (1858: 416); porém, numa fase subseqüente de
instrumento de progresso ou uma expressão da consciência social progressiva. Não desenvolvimento econômico, os meios de produção modernos tornam sem valor to-
devemos ficar cegos à realidade de dominação inerente ao direito. Os interesses de das as formas primitivas de produção econômica. Esses meios de produção moder-
classe devem ser um poderoso componente do poder legal. As atividades externas nos serão - pelo menos de início - objeto de propriedade privada. Existe aí uma con-
do Estado são também claramente influenciadas por sua natureza de classe. Segun- tradição inerente, uma vez que, como diz Marx, esses meios de produção são sociais
do a análise marxista, a burguesia nacional da Inglaterra, França e Alemanha, bem por sua própria natureza. Como os meios primitivos perderam seu valor econômico,
como a de outros Estados europeus, empreendeu uma expansão imperialista em os que deles extraíam seu sustento dependem agora de alugar seu trabalho aos do-
busca de maiores lucros. Contra isso, os marxistas argumentavam que relações trans~ nos dos meios de produção modernos. Assim, a posse privada desses meios dá ao
nacionais de um tipo mais significativo podiam ser criadas pelo comércio, pelo mo- proprietário um poder absoluto sobre os que nada têm; ele se torna um explorador,
vimento do capital e pelo crescente contato e solidariedade entre o proletariado de e os desvalidos são suas vítimas.
diversas nações. Marx entendia o capitalismo como um fenômeno global e, portan- A ordem jurídica, diz Marx, deve ser entendida com base nas relações de pro-
to, via como veículos de uma transformação possível tanto as relações transnacio- priedade concretamente existentes. A expressão coerciva de um Estado constituído
nais de classe quanto as tensões entre diferentes Estados`. por tal condição - comandos, regras, injunções, decretos administrativos - não pode
ser outra além da vontade da classe dominante elevada à condição de direito, mes-
mo que seu conteúdo consista em preservar as condições de funcionamento em vi-
MARX SOBRE A ORDEM JUFIDICA EMPÍRICA E A JUSTIÇA (SOCIAL)
gência no sistema econômico. O conteúdo dessa vontade está implícito nas condi-
ções materiais de vida da classe dominante, que não pode deixar de interpretar o bem
De acordo com Marx, o caráter dos meios de produção indica claramente o ní-
comum em termos da preservação da estrutura social que dela faz uma elite e lhe
vel alcançado por uma determinada fase da história`. O homem deve ascender len-
permite aperceber-se das exigências das leis da economia política.
O direito, porém, não é uma simples arma da classe dominante, nem um p ot I
20. Neste contexto, vale observar que as organizações internacionais com que Marx e Engeis tiveram
gio sem limites a ser usado e abusado à vontade pelas elites. Nasce decondiçtu;
experiência direta foram a Primeira Internacional e, para Engeis, a Segunda Internacional, ambas as quais estruturas sociais, e torna possíveis outras condições sociais e interações p ii i ii
tentaram organizar os representantes da classe trabalhadora em muitos países.
21. As idéias das relações de produção e das forças produtivas eram conceitos centrais:
(i) Relações de produção - trata-se das especificações de trabalho em duplo sentido - servem como des-
crições daquilo que uma pessoa faz no desempenho de sua atividade, mas são também quase jurí- A diferença entre os custos de produção e o valor de mercado do que é produzido onuiiiw v0101
dicas, uma vez que indicam aquilo a que uma pessoa tem direito ou em que medida ela é capaz de cedente. Esse é o elemento-chave da produção da exploração. Quem possui esse valor exehitI eh li
participar dos aspectos de consumo e produção da estrutura econômica. quem possui os meios de produção. No regime capitalista, quem possui os meios de o Li ,, 1 O1i ivt
lucros é o dono da fábrica (o industrial etc.). O trabalhador vende sua mão-de-obrn
(ii) Forças produtivas - tecnologia mais recursos (humanos e materiais) necessários à produção. Marx
emprega a expressão "meios de produção" para referir-se especificamente aos instrumentos e ma- - ao capitalista. Em troca, recebe um salário. Essa situação constitui as releçe:. 1
u: caracterizam o capitalismo (ainda que não outros sistemas socioeconômicos).
teriais; que as pessoas utifizam a fim de produzir.
314 Filosofia do direito Karl Marx 315
res. Historicamente, quando a sociedade alcança um certo nível de desenvolvimen- partes envolvidas não podem, tendo em vista que se trata de meras formas, determi-
to, surge a necessidade de estabelecer, no cotidiano, uma regulamentação comum nar esse conteúdo. Elas simplesmente o exprimem. Esse conteúdo será justo onde quer
para as ações recorrentes de produção, distribuição e troca, a fim de impedir que que corresponda ( ... ) ao modo de produção, e injusto sempre que estiver em contradi-
ção com este modo (Capital, vol. 3: 339-40).
cada indivíduo lide a seu próprio modo com o sistema. E a essa regulamentação que
se dá o nome de "direito". A medida que o desenvolvimento da sociedade se inten-
sifica, o direito se torna mais ou menos elaborado, e lentamente o homem se esque- O Estado e seu poder mantêm o direito. Ainda que, da perspectiva de uma aná-
ce de que essas leis são urna expressão das condições de vida econômicas. O direi- lise de classes;o Estado seja em grande parte o poder organizado da classe dominan-
to termina por parecer autônomo; como se pudéssemos ver sua origem exclusiva- te - latifundiários e capitalistas - em atuação sobre a classe explorada - lavradores
e operários —, enquanto forma organizacional é-lhe necessário criar uma ligação ilu-
mente na expressão da vontade do soberano. Na discussão filosófica, o discurso do
sória de auto-interesse entre dominadores e dominados. Contudo, qualquer teoria
direito denota idéias de universalidade e necessidade, mas a contraposição dessa
de harmonia orgânica, como o idealismo inclusivo de Hegel, é uma "identidade exter-
universalidade à eficácia social demonstra que a idéia do direito é limitada na filo- na, forçada, capciosa" (Mar)ç Critique os Hegel's Doctrine ofthe State [Crítica da dou-
sofia; por exemplo, a realidade social do funcionamento da proibição do roubo e as trina do Estado em Hegel], 1992: 60). Enquanto a sociedade for formada por clas-
leis sobre a propriedade significam que se deve permitir que os proprietários - os ex-
ses, a política será uma relação de dominação, e a classe dominante usará de todos
ploradores dos que não têm propriedades - devem impor seus pontos de vista. Con- os meios para oprimir a classe explorada, tendo em vista a manutenção de seu domí-
tudo, o discurso jurídico delimita o âmbito de suas preocupações e evita a consciên- nio. O Estado vê a si próprio como representante de toda a sociedade, mas, quando
cia desse contraste; a ordem jurídica, então, começa a ter uma espécie de existência submetido à análise de classe, representa com extrema clareza os interesses econômi-
independente. Essa independência dá origem a juristas profissionais e, ao mesmo cos da classe dominante.
tempo, à ciência do direito que tende a se esquecer da realidade social do direito à Classe e dominação estruturam a realidade subjacente da orientação do corpo
medida que o assimila e visualiza em termos de sua própria auto-reflexão. Os ju- social pelo Estado. O Estado institui um poder público, mas esse poder não é o po-
ristas profissionais comparam os sistemas jurídicos de povos diferentes não como ex- der armado do povo organizado, pois o povo é dividido em classes. O poder de Es-
pressões de condições econômicas com efeitos bastante particulares, mas como tado deve representar a si próprio como um poder público, ainda que não consiga
sistemas independentes e auto-suficientes. Essa comparação mostra que existem tornar-se um verdadeiro instrumento do conjunto da sociedade. Ora, em compara-
certas semelhanças às quais os juristas chamam de "direito natural" ou "objeto de ção com os sistemas sociais anteriores, baseados na escravidão, a sociedade moder-
justiça", ou, com John Austin, de fenômeno de uma "teoria jurídica geral" em opo- na parece ser progressista e conceder liberdade; na verdade, a exploração encontra-
sição à "teoria jurídica específica". Ainda que, pessoalmente, possam ser motivados se simplesmente mais escondida. A escravidão era um fenômeno ao mesmo tempo
por desejos de mudanças progressivas ou da obtenção de uma sociedade justa, uma pessoal e de Estado; os escravos pertenciam ao povo de um Estado, mas eram man-
vez que os juristas tenham chegado a esse ponto não podem fugir aos limites de uma tidos em submissão pelo poder público do Estado. Sob o capitalismo, a (in)justiça da
ideologia; mesmo que o desenvolvimento do direito consista, para eles, no empenho escravidão torna-se evidente, mas a justiça será sempre justiça de classe. A justiça
em levar as relações entre os homens para mais perto da "justiça eterna", essa supos- burguesa oculta seu efeito de classe; todavia, a despeito de toda sua mistificação
ta "justiça eterna" não é, na verdade, nada mais que a expressão ideológica, "celestial", ideológica, o Estado e o poder público são reflexos de interesses econômicos.
das relações econômicas. É em vão que eles criam teorias que se pretendem funda-
das em "teses a priori" que transcendem suas condições contemporâneas; na verda-
de, trabalham com reflexos discursivos e ideológicos de condições econômicas. Por- O LEGADO DE MARX NOS CONDENA A ANÁLISES PESSIMISTAS
tanto, é impossível encontrar uma verdadeira teoria do direito natural incorporada a DA ORDEM JURÍDICA EM QUE ENTIDADES COMO OS
um Estado "justo", uma vez que todos os padrões mentais dos juristas modernos es- DIREITOS SÃO MERAS EXPRESSÕES DE PODER?
truturam-se em termos de propriedade, permuta e contrato. O jurista está, portanto,
simplesmente reproduzindo as relações de troca que exprimem certos poderes à es- Na sociedade liberal capitalista, os indivíduos possuem direitos que lhes sSo -
preita por dentro e por trás das formas jurídicas da estrutura capitalista. Na verdade, segurdos pela ordem jurídica. Esses direitos permitem que eles alcancem 't is
tivos e ajustem o espaço social que os cerca a seus projetos pessoais. Como
a justiça das transações entre os agentes de produção se baseia no fato de estas se qüência, a própria idéia de espaço público torna-se problemátic niÍicn 11) 11,
manifestarem como conseqüências naturais das relações e produção. As formas jurídi- aquele espaço em que os indivíduos interagem e intervêm conforine 111 e diin i
cas em que essas transações econômicas se manifestam como atos intencionais das interesses privados. Na verdade, o espaço público se transforma nuii i içt (i
316 Filosofia do direito Karl Marx 317
público; é comercializado nas esferas de produção (fábricas, locais de trabalho), de de e possibilita essa estrutura econômica. É a imaginação jurídica que estabelece as
troca (centros de negócios varejistas e de lazer) e de consumo (moradias, clubes). normas pré-contratuais em cuja esfera o contrato deve operar, e a estrutura toda da
Além disso, esses direitos constituem, em essência, uma liberdade negativa - a li- subjetividade individual.
berdade da interferência dos outros -, e não uma liberdade de concretizar objetivos O direito constitui o sujeito moderno, e o faz de duas maneiras: uma, destruti-
sociais. Conquanto o regime de direito pareça assegurar a todos o direito de dispor va, e a outra construtiva.
do que possuem a preços de mercado livremente contratados, essa liberdade de dis-
por de pessoa e propriedade tem pouco valor positivo para as massas que têm mui- 1. A maneira destrutiva. A harmonia social pré-moderna e sua integração numa uni-
to pouco, ou nada além de seus corpos emaciados. Portanto, o regime do princípio dade social devem ser destruídas. Os historiadores burgueses descreveram tal fato
geral de direito e toda a conversa sobre direitos tornam obscura essa realidade so- como a história do indivíduo que se torna livre, bem como da progressiva supe-
cial; por baixo, o que se tem é a fria realidade das posições e relações de classe. ração das amarras e dos vínculos sociais que forçavam a pessoa à ignorância so-
cial22. Isso, porém, implica apartar o ser humano de suas ligações com a terra e as
Se o poder for tomado como base do direito, como fazem Hobbes e outros, então condições de harmonia primitiva; uma forma de alienação ocorre, e a força é cen-
o justo e o direito são apenas o sintoma, a expressão das outras relações nas quais se as- tral. No Capital, Marx descreve como o direito é a arma, o meio usado para disper-
senta o poder de Estado. A vida material dos indivíduos, que de modo algum depende sar os agrupamentos feudais, a expulsão dos ocupantes costumeiros para trans-
meramente de sua "vontade", é a verdadeira base do Estado, e assim permanece em
formar a terra em pastagens, a espoliação das propriedades da Igreja, as leis de
todas as etapas em que a divisão do trabalho e a propriedade privada ainda são neces- cercamento* e a desocupação de propriedades rurais. A violência jurídica está no
sárias, muito independentemente da vontade dos indivíduos (Marx e Engeis, The German
Ideology, 1846: 106).
cerne do nascimento histórico do capital. O capitalismo nasce "vertendo sangue
e imundícies por todos os poros, da cabeça aos pés" (ibid.: 760); o acúmulo de
O que é liberdade no sentido de "liberal"? "Por liberdade se entende o comér- capital ocorre por meio de "conquista, escravização, roubo, assassinato; numa
cio livre, a liberdade de vender e comprar" (C.M.: 486). A liberdade formal não con- palavra, pela força" (ibid.: 714); e tudo isso é conquistado e legitimado através da
segue disfarçar a dominação social. A violenta expulsão dos camponeses do cam- promulgação de leis. Como resultado, cria-se um novo ser humano; uma nova
po para as cidades criou a horrível liberdade do "trabalhador livre". Ele é, de fato, formação que consiste "daquelas aptidões físicas e mentais existentes num ser hu-
"livre da antiga relação de clientela, da condição de servo feudal ou de serviço, mas mano, e que ele exerce sempre que produz um valor de uso" (ibid.: 167).
também é livre de todas as posses, de toda forma real e objetiva de existência, de Na Inglaterra, o direito era "o instrumento do roubo das terras do povo";
toda propriedade" (Pré-capitalista 00: 111). Uma vez que é livre de todos os meios "a legislação sanguinária contra os expropriados" havia penalizado o nomadis-
de sustento, o trabalhador é forçado a vender sua força de trabalho para poder so- mo, forçando os depossuídos a lançar-se "no estreito caminho do mercado de
breviver; o capitalista é livre para explorar a força de trabalho do operário ao extrair trabalho" (ibid.: 724, cap. 28). As leis aumentavam as horas do dia de trabalho,
valor excedente. O chamado contrato livre de trabalho não consegue ocultar o fato regulamentavam as condições do trabalho e determinavam os salários apropria-
de que "o capital obtém esse trabalho excedente sem um equivalente, e em essência dos, estruturavam a mobilidade da mão-de-obra e criminalizavam as associações
nunca deixa de ser trabalho forçado - não importa o quanto pareça resultar de um de trabalhadores. No cenário mundial, o poder de Estado pretendia civilizar o
acordo contratual livre" (Capital, vol. 3: 819). "Todo o sistema de produção capita- mundo não-moderno. A administração colonial, juntamente com as estruturas
lista se baseia no fato de que o trabalhador vende sua força de trabalho como uma do direito, a regulamentação contratual e a liberdade de operações, permitiam
mercadoria" (1867: 571). que a matéria-prima fosse levada para a Europa por meio de "pilhagem explícitA,
escravização e assassinato"23. O poder de Estado era empregado para transior-
O DIREITO COMO REGRA CONSTITUTIVA
22. Marx concordava com a avaliação de falta de liberdade nas relações sociais pré-modero.. N1 11 1 1, LI
O capitalismo moderno se baseia "no fato de que o trabalhador vende sua for- igo para o New YorkDaily Tribuna, em 1853, ele demonstra uma profunda aversão às coricliço: II
ça de trabalho como uma mercadoria" (1867: 571); essa relação "não tem base na- uglês, bem como às condições da vida dos povoados indianos. Para Marx, "por mais repnlItaIlI
ser à sensibilidade humana", a exploração dos ingleses continha elementos de progresso ii ii ii.
tural, nem sua base histórica é comum a todos os períodos históricos" (ibid.: 169). * No original, enclosure (ato de cercar terras comuns para uso individual). (N. do 1'.)
Desse modo, enquanto o capitalismo tem por base formas específicas de relações de 23. "O róseo alvorecer da produção capitalista [envolveu] a descoberta de ouro e 1m.iIL 11,1 \LiL ia, a
classe, requer o contrato e uma subjetividade em que a pessoa é vista como um indi- destruição, escravização e soterramento da população aborígine em minas, o cormç Ia &,iu1111.lI tI,t p1
víduo, e não como uma unidade do todo social. O direito constitui essa subjetivida- lhagem das Índias Ocidentais e a transformação da África num celeiro para a ca 1 LI '. 1
318 Filosofia do direito Karl Marx 319
mar o modo de produção feudal no modo de produção capitalista O chamado di- nomia política para negociar conceitos abstraídos da realidade social; o resultado é
reito internacional resulta de tratados impostos pelos poderosos; o resultado é o a reificação. O indivíduo livre e soberano do capitalismo é uma criação ideal; na so-
capitalismo internacional. ciedade, as pessoas diferem quanto à posição de classe e à quantidade de capital que
O direito conduziu os seres humanos ao mercado e então estipulou as con- possuem. Os direitos jurídicos, que parecem tão perfeitos na filosofia e são apregoa-
dições para que ali operassem; destruiu o antigo espaço social e a antiga organi- dos como prova de emancipação, são em grande parte quiméricos, uma vez que se
zação humana, mas ao fazê-lo criou ferramentas para a criação de um novo es- trata de direitos jurídico-formais, e não sociais. Direitos sociais verdadeiros diriam
paço e uma nova organização. respeito à "produção de vida". O indivíduo abstrato que reivindica direitos políticos
2. A maneira construtiva. A decomposição das estruturas sociais tradicionais criou o e jurídicos é uma representação, um sujeito cuja existência é ideal, portanto ilusó-
"indivíduo isolado"; ao mesmo tempo trabalhador e consumidor. As unidades ria, mas que ainda assim constitui o sujeito "ideal" de todos os discursos políticos,
humanas do capitalismo são "homens novos ( ... ), invenções dos tempos moder- jurídicos e éticos da burguesia. Além disso, a manifestação empírica desses sujeitos,
nos tanto quanto as próprias máquinas" (1856: 656). O indivíduo solitário é vi- isto é, as pessoas realmente vivas do capitalismo, são cegas pelas satisfações ilusó-
sualizado através das lentes da filosofia burguesa e imortalizado nos direitos do rias da ordem burguesa. Como pode Marx acabar com essa ilusão? Somente por
homem. O ser humano é uma "pessoa jurídica". Esta é uma transformação ne- meio de uma fé "positivista" no papel emancipador do "verdadeiro" conhecimento.
cessária para que o próprio "ato de troca" possa ocorrer; a troca requer "sujeitos Os conhecimentos possibilitados pelo desenvolvimento das ciências "pesadas" da
como seus agentes". Para Marx, os atributos da pessoa jurídica são exatamente humanidade, e não as idéias românticas, vão tornar o destino da humanidade visí-
aqueles do indivíduo engajado na relação de troca. A subjetividade da unidade bá- vel. Já de início, por exemplo, em sua crítica de Feuerbach, Marx expressou sua con-
sica exigida pelo capitalismo é criada pelas leis que tanto refletem as relações ca- vicção de que o amor não é importante. Censurou Feuerbach por este abolir a re-
pitalistas quanto as tornam possíveis. ligião, por um lado, e por outro introduzir uma nova religião: a do amor do homem
por seu semelhante. Marx argumenta que, se Feuerbach tivesse se mostrado sensí-
Não precisamos ser marxistas para apreciar a força da análise sociológica que vel à importância da práxis, teria percebido que não é o amor, mas o trabalho, com suas
Marx faz do desenvolvimento da subjetividade moderna. Nossa narrativa vem argu- estruturas sociológicas, que unifica os homens e os mantém unidos. Feuerbach, po-
mentando que a subjetividade moderna é, em grande parte, uma subjetividade ju- rém, substituiu essa unidade pela unidade da espécie humana, "a universalidade in-
rídica. Enquanto a subjetividade do grego clássico é sua relação natural com o con- terna e silenciosa que une os indivíduos de modo natural". Essa unidade é uma "abs-
texto da pólis, e a do medieval é sua relação com Deus e o cosmo criado, a subjeti- tração". A verdadeira unidade entre os homens se dá através da vida social e da par-
vidade do homem moderno é a relação do eu com o eu e os eus dos outros, relação ticipação no trabalho; a continuidade da história é assegurada pela continuidade dos
mediada pelo direito. Podemos chamar o homem moderno de uma criação especi- meios de produção, e não por todos os tipos de "absurdos" políticos e religiosos.
ficamente privilegiada ("privilégio" vem do latim privilegium, formado de privus, a, Marx reivindica a força de uma ciência positivista pura para suas idéias, mas isso
um ("considerado isoladamente", "singular") e lex, legis ("lei"), significando, portan- iião se sustenta; em última análise, o que ele oferece é uma interpretação crítica da
to, "direito privado"). A legalidade, o princípio geral de direito, a criação de um espa- condição humana: Como em nossa discussão do positivismo no capítulo anterior,
ço social demarcado de direitos e deveres, a criação de regimes reguladores que tor- Marx precisa de um critério de justiça que motive sua teoria. Em que bases, porém,
nam possível a existência da burocracia, resultam, por sua vez, na criação de um espa- pode ele chamar a ordem jurídica capitalista de injusta e a ordem comunista de jus-
ço epistemológico dentro do qual a ontologia da modernidade adquire substância. ta? Se uma ordem jurídica não é nada além da imagem especular de condições e re-
lações concretas, ninguém pode jamais afirmar que qualquer ordem, seja ela qual for,
é justa ou injusta. Na realidade, Marx só chama a ordem liberal-capitalista de injusta
A BUSCA MARXISTA DE JUSTIÇA É UMA LUTA CONTRA porque a vê como urna violação da subjetividade humana ideal de seu semelhante.
A DESUMANIDADE E A EXPLORAÇÃO
Segundo a interpretação marxista, o sofrimento humano na sociedade capita- QUAL A RELEVÂNCIA DO LEGADO DE MARX
lista corporifica-se na existência desumanizada do proletariado; uma existência pos- DEPOIS DO COLAPSO DO MARXISMO?
sibilitada pela relação entre o direito de propriedade e o direito de contrato, corrobo-
rada pela filosofia jurídica do liberalismo e obscurecida pela igualdade ilusória que o Este texto está sendo escrito em meados da década de .1990. O comunismo des-
sistema jurídico apregoa. 0 direito e a filosofia jurídica burgueses juntam-se à eco- moronou na Europa depois da queda do Muro de Berlim. Os anos.de.1989..e.1990tes-
Filosofia do direito Karl Marx 321
320
temunharam uma revolução contra o comunismo, e o período histórico iniciado em o fato de que, enquanto a experiência soviética sob Lenin e Stalin26 se tornava cada
1917 chegou ao fim. A combinação de marxismo-leninismo24 é um projeto político vez mais um pálido arremedo das esperanças de Marx, países ocidentais passavam
fracassado que tem sua história reescrita como um horrível malogro - como um pro- por um processo de humanização. Os textos marxista-leninistas desenvolveram ar-
jeto desumano que, além do mais, cobrou um terrível preço do meio ambiente. Tor- gumentos destinados a sustentar a legitimidade do Estado soviético diante das pre-
nou-se um eufemismo clássico dizer que "as coisas não funcionaram do modo como visões de Marx sobre o declínio do Estado27, porém expurgos e sistemas administra-
Marx previu!". Não apenas a revolução comunista ocorreu nos países menos apro- tivos profundamente desumanos foram necessários para a modernização da socieda-
priados, de acordo com a análise marxista da história, para vivenciar tais revoluções de. Uma justificação teórica que os escritores marxistas que defendiam a ex-União
(uma vez que eram muito subdesenvolvidos - isto é, o capitalismo ainda não se im- das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) adotaram consistia em levar a questão
pusera e as divisões de classe ainda não haviam chegado a um ponto de tensão in- da exploração capitalista para o nível internacional e enfatizar a necessidade de que
controlável), como também o capitalismo mudou e fortaleceu-se em países nos quais a URSS fizesse frente ao imperialismo capitalista28. Um dos resultados foi que o Es-
Marx havia previsto uma revolução. Este texto não tem por objetivo fazer a narrati- tado adquiriu um significado que diferia radicalmente daquele que existia na época
va histórica das lutas do século XX; contudo, basta dizer que, na era do capitalismo de Marx. Isso significa que ler Marx não faz mais sentido? Absolutamente não. Marx
liberal de laissez-faire, era quase impossível apresentar uma defesa teórica contra a é tanto um comentarista essencial da modernidade quanto responsável pela criação
identificação marxista da ordem jurídica e da injustiça, nem argumentar contra a de- de um imenso corpus de pensamento social que abarca muitas das esperanças e dos
finição de justiça social progressista como a disposição de derrubar essa ordem jurí- temores da humanidade moderna. Além de propiciar o entendimento de seus es~
dica e esse Estado em nome da criação de uma ordem social mais humana. E possí-
vel que a força da crítica socialista tenha ajudado os países do Ocidente a introduzir
revisões fundamentais em sua ordem jurídica. O Manifesto comunista de Marx enu- 26. Na condição de líder do Partido Comunista Soviético (e, na verdade, da União Soviética) de 1924 a
merava dez itens de um programa de reforma social a ser colocado em prática ime- 1953, Stalin deu pouca contribuição pessoal ao pensamento marxista. Enquanto líder soviético, porém, teve
diatamente após a revolução. Contudo, tiveram um grande efeito no Ocidente sem de responder pelo fracasso do resto do mundo em seguir o exemplo russo da adoção do comunismo. Dian-
te do "cerco capitalista", ele adotou uma política desumana de "socialismo em um país" (a criação de um Es-
a revolução desejada por Marx. Enquanto Lenin podia caracterizar essas reformas tado socialista na União Soviética) e modernização. Os detalhes não são unia leitura agradável.
como subornos da classe trabalhadora de países capitalistas contra os quais se pre- 27. Em Estado e Revolução (Petrogrado, 1918), Lenin desenvolveu a idéia marxista do Estado como ins-
cisava lutar em nível internacional25, com o tempo quase não mais havia como ocultar trumento de domínio de classe e argumentou que os instrumentos de tal domínio não estavam em declínio
em parte alguma. A ditadura do proletariado que existiu na URSS a partir de 1917 viu-se ameaçada pela bur-
guesia interna e pelo imperialismo externo. Lenin enfatizou a necessidade de destruir a máquina de Estado
burguesa e fez uma distinção entre um estágio inferior do comunismo, em que a recompensa é proporcional
24. Convém chamar a filosofia que sustentou a extinta URSS de "marxismo-leninísmo" devido à gran-
de influência deVladirnir llitch Ulianov, dito Lenin (1870-1924). Lenin deu ao marxismo sua práxis política ao trabalho e o Estado ainda se faz necessário, e uma fase superior em que a recompensa é proporcional à
através de sua defesa do papel fundamental a ser desempenhado pelo Partido Comunista como vanguarda necessidade e o Estado vai entrar em declínio. O Estado soviético era visto por Lenin como um Estado da
do proletariado em sua luta contra as forças do capitalismo. Seus primeiros escritos concentravam-se na ne- classe proletária que se empenhava em reprimir a burguesia russa e expulsar os invasores externos, bem
cessidade de desenvolver um partido bem-sucedido (enfatizando o partiinost, ou "espírito de partido"). Ne- como em assumir as funções administrativas e de proselitismo. Os bolcheviques também tinham o dever de
les, expunha as idéias de materialismo dialético, a concepção materialista da história e a necessidade de com- estimular a revolução socialista em outros países além da Rússia - era essa a tarefa da Internacional Comu-
binar atividade revolucionária com conhecimento teórico. Lenin se opunha ao fatalismo que a imagem de- nista estabelecida em 1919, quando Lenin considerava a revolução mundial iminente. Nos dois anos seguin-
terminista da história dava a muitos teóricos marxistas e argumentava ser necessário aproveitar o momento tes, quando o fervor na Europa diminuiu ou foi neutralizado, Lenin escreveu sobre a demora da revolução
histórico através da organização revolucionária deliberada. Ele também desenvolveu a idéia da dialética, fora da Rússia e voltou seu pensamento para a questão das relações com os Estados capitalistas: "Entramos
transformando-a na característica interna da substância de todos os fenômenos. O princípio de oposição não numa nova fase na qual, fundamentalmente, conquistamos o direito a nossa existência internacional na rede
dos Estados capitalistas" (Lenin 1970: 264).
era meramente um choque de forças ou entidades antagônicas no mundo, mas sim um traço intrínseco à
28. Em seus textos sobre o imperialismo, Lenin, a exemplo de Engels e Marx, enfatizava o caráter de ex-
composição de todas as entidades. Toda entidade é composta de oposições de forças contrárias.
ploração de classes do imperialismo, e não qualquer política formal de colonização dos Estados euIul'Ls;. A
25. Em Imperialismo: etapa superior do capitalismo (Petrogrado, (19161 1966), Lenin argumenta que o ca-
pitalismo havia chegado a uma etapa de seu desenvolvimento em que o predomínio dos monopólios e do exploração não estava ligada a uma fórmula simples que pudesse concretizar o diversificado poits liii 1 de lec)
capital financeiro se estabelecera e em que a exportação de capital adquirira grande importância; em que a rização por parte dos neomarxistas que mais tarde se debruçassem sobre as relações entre os paíres j Iic
divisão de todos os territórios do globo entre as maiores potências capitalistas já se consumara (Lenin 1966: lizados e em desenvolvimento e as instituições envolvidas. Lenin enfatizava o potencial para a lj,l,n liii
82-3). Lenin pensava que os lucros obtidos pelos imperialistas seriam usados como subornos para segmen- entre os oprimidos pela dominação capitalista mundial. A ênfase incidia sobre as relaçô tralu.l I(,I1.ii,
tos da classe trabalhadora européia - os "oportunistas". Contudo, o estrago seria feito: o desdobramento do assuntos internacionais - relações entre o proletariado de todos os países. Quanto à teuri;' jui ii i
capitalismo para o resto do mundo, a fim de prolongar sua existência, criaria vínculos entre os povos oprimi- res Soviéticos se viram, em grande parte, forçados a não ultrapassar as diretrizes imposto; '1 1'.1111(1, o11111
dos das áreas exploradas e o proletariado dos países desenvolvidos. Devido ao desenvolvimento desigual do nista da União Soviética. Sem dúvida, houve algumas divergências. Depois da moi 1c de Li ititi. o,ai
vléticos enfatizaram o isolamento da União Soviética no contexto de um mundo duii,iiI' ii'I,
capitalismo, o triunfo do socialismo não seria simultâneo, porém gradual.
322 Filosofia do direito Karl Marx 323
critos, o exame do que aconteceu com a aplicação de suas idéias oferece um soberbo Para Drucker, vivemos numa sociedade pós-capitalista em que o recurso econômico
estudo de caso sobre o destino da abordagem científica quando esta se propõe a ex- básico - os "meios de produção" - não é mais o capital, nem os recursos naturais
plicar a humanidade e as condições históricas humanas. ou o trabalho; é, e continuará sendo, o conhecimento. Junto com o desenvolvimen-
Ficou claro que, em termos gerais, o Ocidente capitalista permitiu que uma sé- to da sociedade de informação ou conhecimento vem The End of Work [O fim do
rie de liberdades econômicas, sociais e políticas ocorresse de modo mais eficaz e trabalho] (Rifkin, 1995), Uma sociedade pós-capitalista pode ser uma sociedade em
abrangente do que nos países nos quais o marxismo teve a oportunidade de fazê-lo. que a pessoa muito bem informada reine, suprema, sobre uma nova era de recur-
Os Estados comunistas foram sobrecarregados por uma burocracia e uma regula- sos que poupam trabalho e deixe, portanto, de ser explorada; ou pode tornar-se um
mentação sufocantes; a bandeira da igualdade significava padronização em vez de inferno no qual a grande maioria da população - os que antes eram chamados
igual dignidade; desfrutarda liberdade significava tornar-se membro do partido. En- de "trabalhadores" - não seja mais necessária. O que acontece com o "trabalhador"
quanto o trabalho era um direito social, suas recompensas eram limitadas. O Ociden- na pós-modernidade? As mudanças de classe social parecem dramáticas nas últi-
te simplesmente teve um desempenho superior ao dos países socialista-comunistas, mas décadas. O "proletário" de Marx, alienado e explorado, tornou-se membro da
e o gigantesco gasto armamentista exigido pela guerra fria deixou, por fim, de ser eco- "classe trabalhadora afluente", ou foi inserido na nova classe média (em decorrên-
nomicamente viável para a extinta URSS. Contudo, se a remuneração do trabalho era cia da revolução de produtividade do século XX, junto com a estrutura jurídica do
superior no Ocidente, como o pós-industrialismo mostrou, uma tensão básica relati- Estado assistencial), ou se tornou excedente, criando uma nova subclasse. Todavia,
vamente ao trabalho tornou-se cada vez mais evidente. Para o esquema marxista, o até mesmo a classe média passou por novos problemas com o desenvolvimento
trabalho é central: o homem simplesmente desapareceria se não trabalhasse, mas o que das revoluções na administração e na informação de fins da década de 1960 (quan-
acontece num mundo pós-industrial em que simplesmente não há trabalho para to- do o número de operários de produção (blue-collar workers) começou a decair em
número e status, prevendo-se, inclusive, que logo após o ano 2000 não haverá mais
dos? Será inevitável uma nova forma de alienação e exploração?. Que conceitos e ins-
trumentos de análise intelectual se fazem necessários sob as novas condições? países desenvolvidos em que os trabalhadores tradicionais, aqueles que produzem
e promovem a venda de bens, respondam por mais que uma pequena proporção
Muitos dos insights de Marx que tiveram impacto para além de seus seguidores
políticos imediatos foram absorvidos pelas conversações críticas que energizaram o da força de trabalho). A globalização e a rapidez das mudanças tecnológicas amea-
pensamento social-democrático e liberal. Dentre estas podemos incluir uma imagem çam transformar rapidamente as oportunidades de vida de vastos segmentos da
população mundial.
excepcionalmente poderosa da energia global e da expansibilidade inexorável do ca-
pitalismo, um enfoque inesquécível das relações de autoridade na indústria moder- Se assim for, estamos de fato numa situação radicalmente diversa daquela que
na e uma dramatização do antagonismo estrutural gerado por seus processos de caracterizou boa parte da modernidade. De que modo serão mantidas a ordem e a
produção. A força de imaginação com que Marx iluminou a atordoante volatilida- vida social humanas? Além do mais, em escala mundial o abismo entre os ricos e os
de da vida econômica e social moderna forneceu algumas das premissas básicas do pobres do mundo nunca foi tão grande; formas desumanas de exploração do traba-
modernismo, tanto para a literatura e as artes quanto para a política. No nível mais lho, endividamento e intimidação estão ainda por combater". Novos conflitos eclo-
geral, a obra de Marx passou a fazer parte de nossa linguagem, transformando nos- dem, antigos conflitos permanecem. A necessidade da teoria e da análise críticas sub-
siste, o sujeito de análise é cada vez mais a dialética entre um meio ambiente global
sos questionamentos do mundo. Contudo, a organização das idéias de Marx naqui- uma situação local.
lo que se passou a chamar de "marxismo" foi uma questão bem diversa. Marx foi
muito mais bem-sucedido em evocar a força latente do capitalismo do que em de-
monstrar, de qualquer modo conclusivo, por que este tinha de ter um fim. Sua cren-
ça numa sociedade futura com base numa idéia de liberdade superior equivaleu a
um desejo de transcender os aspectos desumanizadores da modernidade, mas sua
ciência de predições era um falso historicismo.
A ORDEM PÓS-CAPITALISTA?
29. Um exemplo é o acidente ocorrido em Bopal no começo da década de 1980, quI
iuiftinacional ignorou claramente os requisitos de segurança em sua busca egoísta de lu , .i lii
Alguns comentaristas atuais (como Peter Drucker, 1993) se perguntam o que envenenamento de milhares de trabalhadores (Pearce e Tombs, 1989, "Realism and orpi ii iii a . ii 1
Marx escreveria hoje, e sua resposta não é Sobre o capital, mas Sobre o conhecimento. sues in Realist Criminolog).
Capítulo 11
Weber, Nietzsche e o Holocausto:
rumo ao desencanto com a modernidade
A RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO
1 O teórico social alemão Max Weber testemunhou a unificação da Alemanha sol s o i i li i klv
nurck e a emergência do moderno Estado alemão, criado, ao menos em parte, com ii.
pi ussiana. Em sua maturidade, presenciou o fantástico desenvolvimento da industrial i,
326 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 327
Em sua análise crítica do capitalismo, Marx olhava para o futuro da emancipação Tampouco a política estava isenta. A racionalização impregnou a política, geran-
do homem: "a livre associação de seres humanos livres". Weber, ao contrário, pa- do um modo de constituição e desenvolvimento do Estado moderno e criando um
recia não ver saída para as profundas contradições da vida moderna. Seus textos estilo de govemabilidade no qual a razão, e não o poder discricionário arbitrário, era
apresentam a modernidade como uma época social de imensa complexidade que tido como motor da tomada de decisões.
produz vastos avanços de poder, mas na qual também se torna cada vez mais difí- A racionalização tornava-se onipresente; enquanto ela se liga ao desenvolvi-
cil viver como um ser humano pleno. Talvez possamos ver, em Weber, o precursor mento do capitalismo, não é uma subdivisão deste'. A racionalização dava poderes à
da autodúvida que veio a caracterizar a era pós-moderna. Sem dúvida, ao analisar tecnologia e enfraquecia o espírito humano, dissociando a humanidade dos fluxos e
a modernidade Max Weber já falava a língua da pós-modernidade. O que impreg- ritmos naturais da vida pré-moderna. O processo foi insinuado por Hegel e Marx em
na sua obra não é apenas sua batalha implícita contra o niilismo, nem seu uso dos seu medo da alienação como conseqüência da modernização. Apartado da existên-
conceitos le transitoire, le fugitif e le contingent, mas também a consciência de uma cia estável nas rotinas da vida pré-industrial, o indivíduo moderno corria o risco de
perda irreparável. dissociar-se dos mistérios da vida, reconstituído em forma de uma máquina racional.
Weber teorizou como um pensador moderno; escreveu em fins do século XIX, Se o racionalismo obtivesse êxito, nenhuma crença num outro domínio seria capaz
quando já era tempo de inventariar e analisar os processos e as estruturas que ha- de manter nosso embate com as estruturas desta vida; estas precisariam tornar-se
viam transformado as sociedades do passado e constituído a situação atual da hu- independentes - capazes de criar suas próprias estruturas de significado internas -
manidade, bem como de perguntar em que tipo de situação se encontrava o novo su- ou pareceriam carentes de sentido.
jeito da história - o homem civilizado moderno. A racionalidade foi a chave encon-
trada por Weber. Na narrativa do ILuminismo, a modernidade travava uma guerra OS ELEMENTOS DA RACIONALIZAÇÃO
com a tradição e o costume em favor da razão, do progresso e da liberdade. Sua cria-
ção - o homem civilizado, racional'— receberia as chaves do conhecimento e, em de- A racionalização dominaria por meio de três procedimentos:
corrência do fato de conhecer a estrutura das coisas, ver-se-ia livre do domínio da
ideologia e da falsidade da traição e do costume', Weber, porém, se deu conta de ou- (i) o controle do mundo através do cálculo e a coleta e o registro de informações (atra-
tra tendência. O homem racional estaria comprometido com a tarefa de visualizar a vés do incremento da atitude tecnológica, o mundo se transforma num local de
estrutura do cosmo, mas, como preço a pagar pelo uso da razão, estaria condenado a problemas a ser resolvidos com a tecnologia apropriada)';
desempenhar apenas a tarefa racional e obedecer ao resultado de cálculos formais.
Em conseqüência disso, a mágica da vida desaparece no irracional. Por conhecer a (ii) a sistematização do signijlcado e do valor em forma de um esquema geral e coerente;
força da estrutura social, o homem não mais lutaria contra o insuperável; em vez dis- (iii) a existência cotidiana metodológica, de acordo com regras. Racionalidade signi-
so, render-se-ia ao destino que a razão lhe traçou. fica seguir uma regra ou um princípio moral abstrato, em vez de agir segundo os
Qual era a essência da modernidade? Contra Marx, Weber argumentava que uma impulsos, o acaso ou a emotividade. Racionalidade significa a criação de um pa-
crescente racionalização do mundo social, e não o capitalismo per se, constituía a for- drão de coerência lógica que ligue nossos pensamentos e emoções, e que seja
ça motriz da modernidade. O capitalismo é apenas um teatro, entre outros, nos quais seguido até o fim. Significa compromisso com a coerência ao ligar nossos pen-
o racionalismo sai vencedor; a racionalização, porém, era imanente às idéias de admi- samentos e ações, nossos objetivos e atividades afins; implica a criação de um
nistração emergentes que, simultaneamente, desafiavam a ideologia do estado de di- ordenamento eficiente que leve dos meios aos fins.
reito e com ela conviviam, ao mesmo tempo que estabeleciam as condições sob as
quais se exercia o poder discricionário no governo dos homens. Como conseqüência, deparamos com uma inevitável sistematização da cren-
ça, a eliminação das incoerências lógicas, a desmobilização do mágico e do místico e
Todo esse processo de racionalização, na fábrica e em outros lugares, e em especial um movimento que se afasta dos padrões de pensamento particulares ou locais, em
na máquina burocrática do Estado, corresponde à centralização dos implementos mate-
riais de organização no poder discricionário do suserano (1968: 39).
3. O Estado moderno nasce "da expropriação dos portadores autônomos e privados de poder execi 11 iv&
(...) quê, por direito próprio, possuem os meios de administração, operações militares e organização fina
a tentativa fracassada de criar um império alemão e a culminação da grande rivalidade de poder na calás- (...) O processo é extremamente semelhante ao desenvolvimento do capitalismo através da expropriaçi
trofe da Primeira Guerra Mundial. dual dos produtores independentes" (1968: 29).
2. Desta vez, a especificação de gênero é deliberada - a modernidade foi, em grande parte, uma ordem 4. "A administração do escritório moderno baseia-se em documentos escritos (os'arquivos) que
imaginada e concebida por homens para homens... e mulheres, em seus devidos papéis. servados [lidos e anotados por] um corpo de funcionários subalternos e todos os tipos de escrivães" (19/i
328 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e Holocausto 329
busca de formas mais abstratas ou universais. Isso implicava a redução de todas as resultado de processos críticos céticos conduzidos por Hume e Kant, entre outros,
instâncias individuais de experiência e pensamento, qualquer que fosse sua diversi- argumentam que tudo tem de se submeter ao crivo da razão cética, e se alguma coi-
dade, à condição de classes gerais. Além disso, a racionalização exigia que eliminás- sa não sobreviver ao teste de racionalidade, rejeitamos tais crenças e nos compro-
semos de nosso modo de agir e pensar as foisitas que não pudessem ser justificadas metemos com a metodologia da razão em si. A racionalidade passa a ser algo que
com base em suas conseqüências previstas, elas próprias racionalmente justifi- domina a vida; precisamos calcular, analisar, reduzir.
cadas por fins mais universalmente definidos e tornadas previsíveis por meio de
leis empíricas genericamente válidas. A racionalização significava a sistematização
da crença e da ação, mas também implicava a destruição e o sufocamento de par- ESTADO-NAÇÃO, LEGALIDADE E ASCENSÃO DO CAPITALISMO
te substancial da riqueza da vida humana. Nossas vidas dividem-se radicalmente
nas esferas pública e privada: "A repartição pública (bureau) é, em princípio, sepa- A emergência da racionalidade moderna está estreitamente ligada ao desenvol-
rada do domicilio privado do funcionário, e, em geral, a burocracia segrega a ati- vimento do capitalismo enquanto modo de vida econômica e social, bem como ao
vidade oficial como alguma coisa distinta da esfera da vida privada." O pessoal não desenvolvimento do Estado-nação. "E o Estado nacional fechado que deu ao capi-
se confunde com o oficial: "O dinheiro e o aparelhamento públicos são distintos da talismo sua oportunidade de desenvolvimento ( ... ) enquanto o Estado nacional não
propriedade privada do funcionário", e "o escritório do executivo é separado do lar, dá lugar a um império mundial que o capitalismo irá também tolerar" (Weber, 1966:
a correspondência comercial distinta da pessoal, e os patrimônios comerciais não 249). Em sua famosa conferência A política como vocação — em que Weber exige que
se confundem com as fortunas privadas" (1970: 197). Essa separação é uma caracte- olhemos para o mundo em termos rigorosamente realistas e assumamos a respon-
rística básica sem a qual, ao lado do desenvolvimento da escrituração contábil', o sabilidade por todos os efeitos de nossos atos —, ele coloca a pergunta: "Mas o que
capitalismo moderno não teria sido possível'. uma associação política de um ponto de vista sociológico?" Sua resposta:
Nessa "completa despersonalização do controle administrativo pela burocracia",
é como se o compromisso com a metodologia pura adquirisse existência indepen- Em última análise, só podemos definir sociologicamente o Estádo moderno em
dente, a despeito de qualquer visão específica de mundo - Weber chama de "raciona- Lermos dos meios específicos que lhe são peculiares, bem como a toda associação po-
lidade formal" esse compromisso com a calculabilidade e a administração técnica. A lítica, isto é, o uso da força física. Todo Estado se baseia na força, afirmou Trotski. E ele
racionalidade calculadora enfatiza a racionalidade do próprio pensamento e negli- estava certo. Se não existisse nenhuma instituição social que conhecesse o uso da vio-
gencia a natureza da conduta ou da moralidade dos fins a ser alcançados - importa lência, o conceito de Estado seria eliminado e se instauraria uma condição que pode-
apenas que se aja de acordo com o devido "encadeamento lógico do raciocínio". ríamos descrever como anarquia no sentido específico do termo. Sem dúvida, a força
Ao contrário disso, o pré-moderno fundamentava-se em modos de vida e visões de não é o instrumento normal do Estado, nem o único - ninguém diz isso -, mas é um
instrumento específico do Estado. Hoje, a relação entre Estado e violência é especial-
mundo que não lhe permitiam alcançar o grau de distância independente necessá- mente íntima. No passado, as mais diferentes instituições conheceram o uso da força
rio à instauração da racionalidade formal. O indivíduo tribal que acreditava em deu- física como algo bastante normal. Hoje, porém, temos de dizer que um Estado é uma
ses e demônios e seguia costumes e tradições pode ter sido coerente em suas idéias, comunidade humana que reivindica (com êxito) o monopólio do uso legitimo da força
ações e crenças. Subjetivamente posicionado no padrão e nas estruturas de suas física dentro de determinado território. Observe-se que "território" é uma das caracterís-
crenças, ele se comporta de modo racional e coerente; Weber chama essa racionali- ticas do Estado. Especificamente, no presente, o direito de usar a força física só é atribuí-
dade de substantiva. Sob a racionalidade substantiva há certas posições ideológicas, do a outras instituições ou indivíduos na medida em que o Estado assim o permita. O Es-
coisas e valores que são simplesmente aceitos como verdadeiros e se harmonizam tado é tido como a única fonte do "direito" de recorrer à violência. Conseqüentemente,
com uma imagem do cosmo (mundo) assim concebido. Os "modernos", porém, em "política" significa, para nós, a luta por compartilhar poder ou influenciar na disi ribui.
çào de poder, seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado (1984: 32-3).
5.Weber atribui isso ao sistema de fazer balanços patrimoniais, inventado pelo holandês Simon Stevin O Estado moderno se baseia numa forma específica de dominação, mas ;
em 1698 (Weber, 1966: 207). e por que os homens obedecem, e em que justificativas internas e meios e';1 'i i i e;
6. O capitalismo é uma forma de racionalização: não apenas provê um sistema social integral, mas tam-
bém um sistema em que as regras calculáveis são do conhecimento de todos. "A economia capitalista de nos- fundamenta tal dominação?'
sos dias é um imenso cosmo no qual nasce o indivíduo. ( ... ) [O capitalismo] força o indivíduo, na medida em
que este se deixa envolver pelo sistema de relações de mercado, a submeter-se às regras de ação capitalistas.
O fabricante que, a longo prazo, contrariar essas normas, será inevitavelmente eliminado do cenário econô- A"justificação interna" do Estado moderno é "a crença na validade do estatuto j 1
mico, assim como o trabalhador que não puder ou quiser adaptar-se a elas será posto na rua, sem emprego" 11 incionalcom base em regras racionalmente criadas" (Weber, 1970: 78-9). Ibdavia, o o ,h'i
(1974: 54-0. urna associação compulsória que organiza a dominação" (Weber, 1970: 82,
330 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 331
FORMAS DE DOMINAÇÃO LEGÍTIMA reito daqueles aos quais se delegou a autoridade de emitir comandos sob tal
sistema de regras. Essa forma estava começando a predominar entre as socie-
Para Weber, a coerção é fundamental ao poder de Estado, mas não há garantia dades ocidentais modernas10.
de que o poder seja estável ou efetivo quando se basear exclusivamente na coer-
ção. Weber criou o conceito de Herrschaft, às vezes traduzido como "controle impe- A modernidade presenciou o desenvolvimento da autoridade jurídico-racional.
rativo", mas para o qual "dominação" talvez seja a tradução ideal, e para ele a idéia Enquanto, durante a maior parte da existência humana, a legitimidade dos sistemas
particular de Herrschaft legítima implica a legitimidade de comando ou de autorida- sociais se fundara sobre elementos tradicionais, mágicos ou religiosos, a sociedade
de. Para manter a autoridade política, o poder baseado exclusivamente na força físi- moderna parecia fundar-se sobre uma autoridade que havia, ela própria, se tornado
ca é tanto instável quanto ineficaz. E importante obter a dominação legítima, "isto é, racional; em outras palavras, era entendida como uma forma confiável de estrutura-
a probabilidade de que um comando com determinado conteúdo específico seja obe-
ção social que permitia a integridade funcional de uma sociedade ou organização
decido por determinado grupo de pessoas". Weber enfatiza o fato de que a mera sub- social. Por sua vez, para Weber, isso depende de certos fatores:
missão a um comando pode dever-se (i) ao hábitos, ou (ii) à crença na legitimidade
do comando; ou (iii) a considerações de conveniência. No Estado moderno, os co-
mandos da elite política se baseiam não apenas na disposição dos sujeitos em sub- 1. Um código jurídico constituído por normas jurídicas estabelecidas por consenso
meter-se a eles, mas no reforço, por um corpo de assistentes, que assegure a confor- ou por imposição, mas que são aceitas por razões de conveniência ou valores ra-
midade com os comandos e em relação aos quais esse próprio corpo possa agir com cionais, ou ambos. Esse código chama a si o direito à obediência, pelo menos, dos
base (i) no hábito, (ii) na legitimidade ou (iii) no interesse próprio. Assim, sociologi- membros cruciais do corpo coletivo, e em geral à obediência de todos os membros
da sociedade ou organização.
camente falando, "uma Herrschaft é uma estrutura de superordenação e subordina-
ção, de líderes e liderados, governantes e governados; baseia-se numa variedade de Um sistema logicamente coerente de regras abstratas que se aplicam a casos par-
motivos e meios de imposição" (Notas dos Editores, ES, 1: 62). Mesmo a dominação ticulares. Portanto, a ordem social existe dentro de limites estabelecidos por pre-
legítima tem dois lados: implica tanto a legitimidade (autoridade) quanto a força (coerção). ceitos legais e segue princípios que são capazes de formulação generalizada.
Weber propõe um modelo de três "tipos ideais" de autoridade:
O protótipo do indivíduo que detém a autoridade é aquele que exerce uma fun-
(i) Autoridade tradicional— que tem por base uma sólida crença na santidade de tra- ção pública, o que define suas responsabilidades. Tal pessoa, que é um funcioná-
dições imemoriais e na legitimidade do status dos que exercem a autoridade rio público ou mesmo o presidente eleito do país, submete-se também à regula-
nesse contexto. Essa forma de autoridade sempre foi a mais difundida na his- mentação impessoal da lei.
tória do mundo. A pessoa que obedece à autoridade só o faz em virtude de ser membro do grupo
(ii) Autoridade carismática - que tem por base a devoção à santidade e ao heroís- (isto é, não devido a nenhuma razão pessoal), e aquilo a que obedece é a lei (e
mo específicos e excepcionais de um indivíduo, ou a seu caráter exemplar, e dos não a pessoa que detém a autoridade).
padrões normativos ou da ordem revelada ou estatuída por ele". Essa forma
mostrou-se sempre instável e imprevisível. A obediência não é devida aos titulares dos cargos públicos enquanto indivíduos,
mas à ordem impessoal por eles representada. Um corpo administrativo de fun-
(iii) Autoridade jurídico-racional - que tem por base uma afirmação de bases racio- cionários (ou seja, uma burocracia) é formalmente encarregado de cuidar dos in-
nais, uma crença na "legalidade" dos padrões de preceitos normativos e no di-
teresses da pessoa jurídica dentro dos limites da lei. O poder dos funcioná rios do
listado não reside neles pessoalmente, mas nas funções jurídicas que lhes cabeui
por direito11.
8. Uma consideração importante para a análise weberiana da dominação era a disciplina. A disciplina
era "a probabilidade de que, em virtude do hábito, um comando seja pronta e automaticamente obedecido
de forma estereotipada, por parte de determinado grupo de pessoas". Weber especifica que a disciplina "in-
clui o hábito característico da obediência acrítica e submissa" (Weber, Economy and Society, 1978,1: 53). Outras IVeber contrastava "direito racional" com a "Kadi-Justb" ("Justiça Kadi"), ou a justiça ti,' i i i
referências a esse texto assim anotadas: (ES, número do volume: número de página). ad hoc dos méritos inferidos de um caso individual. "Todas as formas não-burnitíji,; 1h
'miii.
9. O termo "carisma" será aplicado a uma certa qualidade da personalidade de um indivíduo em virtude " implicavam elementos de "tradicionalismo estrito" com uma "esfera de livre arbitra iii li li' . :i ,. Ilvi
da qual ele é tido como extraordinário e tratado como alguém dotado de poderes ou qualidades sobrenatu- '0970: 217). O direito racionalizado caracteriza-se pelo "domínio de normas gerais .1
rais, sobre-humanas ou, no mínimo, especificamente excepcionais. Esses atributos não são acessíveis à pessoa ii. "É decisivo, para a natureza específica da lealdade moderna a uma função iihlh,,,
comum; são tidos como de origem divina ou exemplares e, com base neles, o indivíduo em questão é tratado Io não seja prestada a uma pessoa, como afé do vassalo ou do discípulo nas relaç; o HI Iii.,.
como 'líder'" (ES, 1: 241). patrimoniais. A lealdade moderna é dedicada afins impessoais e funcionais" ('A','I 'i 1 r/u. 'li>
Weber, Nietzsche e o Holocausto 333
332 Filosofia do direito
O destino dos seres humanos não é igual. Os homens diferem em suas condições
O direito provê uma estrutura formal que faz exigências bastante precisas e, se de riqueza, status social etc. ( ... ) O mais favorecido sente uma necessidade permanente
administrada racionalmente, assegura que possamos prever o resultado de nossa de considerar sua posição como algo de certo modo "legítimo", suas vantagens como
obediência ou desobediência a tais exigências. Assim, essa estrutura jurídico-racio- "merecidas", e as desvantagens dos outros como provocadas por sua própria "culpa". O
nal sanciona o elemento de cálculo na autoridade jurídico -racional12 . A coerência fato de que as causas meramente acidentais da diferença possam ser tão óbvias não faz
na tomada de decisões é crucial. Comparado a um direito substantivo baseado em diferença alguma (ES, II: 953).
"princípios materiais", e a uma justiça que seria substancial e, desse modo, ad hoc,
"o direito formalista é previsível" (Weber, 1966: 252). O direito, por sua vez, neces- O que pode justificar a violenta desigualdade que é tão óbvia na modernida-
sita do Estado burocrático moderno para prestar a "garantia formal confiável de to- le? O recurso histórico à "natureza", bem como a posição habitual de considerar a
dos os contratos pela autoridade política" (1966: 249)13. vida como um fluxo ininterrupto que vem do passado, tornaram-se hoje de uma ob-
Weber acreditava que o surgimento das formas ocidentais de capitalismo dera 'edade exagerada, contingente, fortuita. Em termos sociológicos, a desigualdade
um enorme estímulo à autoridade jurídico-racional e à atitude calculadora. A pre- 'cial moderna liga-se claramente à posição de classe` e ao acesso ao poder politi-
visibilidade das relações e dos resultados exigidos pela interação capitalista era pos- 'o e ao status social`, enquanto a razão por exemplo, a filosofia e a teoria jurídica
-
sibilitada pela estrutura formalmente racional da dominação jurídica na qual emer- -;ubverte e tenta substituir a legitimidade do passado. A legitimidade é uma ques-
gem os discursos "especificamente modernos" sobre o cálculo racional dos interes- 1(1 ao mesmo tempo intelectual e prática: (i) é a estrutura subjacente da análise das
ses de Estado. Isso não quer dizer que os interesses de classe não eram ao mesmo rcunstâncias hoje existentes nas quais a dominação e a obediência são criadas em
tempo específicos e diferencialmente posicionados em face do direito. "Idéias como oações históricas concretas a análise sociológica da ordem social; e (ii) a neces-
-
'Estado', 'Igreja', 'comunidade', 'partido' ou 'empresa', cuja concretização se imagi- idade de legitimidade requer a produção de discursos de legitimidade que se vêem
na ocorrer 'numa comunidade', na verdade ofereciam uma 'aura ideológica para o ob a injunção de justificar a ordem social existente, ou a reformulação dessa or-
senhor', sendo'ersatz" (1970: 199). Em particular, "as massas sem propriedades são em em moldes específicos.
especialmente não servidas por uma'igualdade [formal] diante da lei' e por uma pres- Enquanto o direito, racional-formal moderno precisa ser compreendido em seu
tação jurisdicional e uma administração 'previsíveis', conforme o exigem os interes- 'ontexto histórico, também é crucial reconhecer o caráter singular da legalidade mo-
ses 'burgueses". As classes inferiores exigem uma "justiça substantiva voltada para orna. A legalidade permite um tipo especial de dominação em que esta é exercida
alguma instância e pessoa concretas" (1970: 220-1), enquanto o modo burocrático mo se os próprios dominados desejassem tal conduta. Quando "o comando é acei-
de regulamentação cria um interesse em nome da burocracia em si, para a manuten- o como uma'norma válida', está em jogo uma forma especial de dominação, mais
ção de seu poder através da "canonização da idéia abstrata e 'objetiva' das 'razões ;pecificamente "a situação em que a vontade manifesta (o comando) do(s) gover-
de Estado" (1970: 220). Um processo semelhante tomou de assalto o discurso geral ante (s) pretende influenciar a conduta de uma pessoa ou de outras mais (os go-
do direito, que se tornou subordinado às exigências dos profissionais de direito. \'('rnados), e na verdade a influencia de tal modo que sua conduta, no que esta tem
Ic socialmente relevante, ocorre como se os governados tivessem feito do conteúdo
A RAZÃO o comando a máxima de sua conduta, tendo em vista o seu próprio bem" (ES, II:
O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE NA MODERNIDADE -
DE SER DA FILOSOFIA DO DIREITO? 16). A alegação da legitimidade de uma ordem é indicada pela obrigatoriedade de
trias atividades sociais. Enquanto o costume, a convenção e o uso geral, bem como
ii razões de interesse pessoal, podem produzir padrões de comportamento regula.
Todas as organizações sociais precisam de legitimidade. A modernidade é um
t'5, estes devem ser diferenciados do caráter obrigatório das ações em conformidade
período histórico que enfatiza a racionalidade e o conhecimento, e que por isso mes-
mo faz uma exigência de legitimidade maior do que o faziam a ação e a autoridade om as normas de uma ordem estabelecida.
tradicionais.
14. Classe denotava "a típica probabilidade de desfrutar de vantagens materiais e soci -ii,, c1 i 1
controle dos bens e das aptidões e, portanto, de beneficiar-se do fato de que essas coisn; 'III
12. "O princípio característico da burocracia é a regularidade abstrata da implementação da autoridade, para gerar uma renda dentro de uma ordem econômica dada" (ES, 1: 312). Classe 1'F,I
que resulta da exigência de "igualdade perante a lei" em sentido pessoal e funcional e, portanto, do horror
-
'oição no mercado" que determinava aquilo que hoje se costuma chamar de "oporiiril.iI-. 1
ao "privilégio" e da rejeição, baseada em princípios, à prática das negociações "caso a caso" (Weber, 1970: 224).
15.Para Weber, além da determinação econômica das oportunidades de vida exi ~; wa de in ww si si
13. Embora Weber argumentasse que a burocracia era a forma mais eficiente de administração jamais hsI, que se refere à determinação social das oportunidade devida baseadas no t' II, ClI' IrlislIlçisi
concebida ("de um ponto de vista exclusivamente técnico ( ... ) o mais racional dentre os meios conhecidos de 'ii igio social ("honra estamental").
se exercer a autoridade"), ele também a associava à "servidão".
334 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 335
A validade de determinada ordem significa mais do que a mera existência de uma uma mensagem antipositivista: o significado da ação nunca é evidente por si mesmo
uniformidade de ação social determinada pelo costume ou interesse próprio. Se as em- - não existem fatos evidentes dos quais disponhamos exclusivamente para descre-
presas que fazem transporte de mudanças fizerem publicidade regularmente, ao mesmo vê-los. Toda ação exige interpretação. Interpretamos quase o tempo todo sem que
tempo que muitas locações expiram, essa uniformidade será determinada pelo interes- disso nos demos conta, confiantes que somos na posição que ocupamos dentro de
se pessoal ( ... ). Contudo, quando um funcionário público se apresenta todos os dias em uma tradição interpretativa. Contudo, as ciências humanas são inevitavelmente in-
seu escritório, à mesma hora, ele não age apenas com base no costume ou no interesse terpretativas, e em sua base o que temos são seres humanos compreendendo a po-
pessoal, os quais poderia desconsiderar se assim o desejasse; em geral, suas ações são
também determinadas pela validade de uma ordem (isto é, as regras do funcionalismo sição subjetiva de (outros) agentes humanos. Todas as ações têm a particularidade
público) que ele cumpre em parte porque a desobediência lhe seria desvantajosa, mas do agente - que podemos compreender através do uso de nossa capacidade de em-
também porque sua violação seria abominável a seu senso do dever ( ... ). O conteúdo patia - e a universalidade do conceito. Todas as ações humanas são eventos particu-
de uma relação social [pode] ser chamado de ordem se a conduta for, aproximadamente lares, mas elas também podem ser convertidas em modelos que nos permitam inves-
ou em geral, voltada para "máximas" determináveis. Uma ordem só pode ser chamada tigar a probabilidade de ocorrência regular. Na ciência, estamos à procura de cadeias
de "válida" quando se direcionar para essas máximas, entre outras razões porque, de de eventos previsíveis e, como amparo, usamos três tipos de significado: (i) o signi-
modo relativamente mensurável, ela é vista pelo agente como algo até certo ponto obri- ficado realmente pretendido da ação individual concreta; (ii) no exame dos fenôme-
gatório ou exemplar para ele (ES, 1: 31). nos sociológicos de massa, podemos elaborar o tem to médio dos significados, ou uma
aproximação do significado pretendido; (iii) o significado apropriado a um tipo puro
Para compreender sociologicamente o direito, argumenta Weber, precisamos obser- (um tipo ideal) e cientificamente formulado de fenômeno comum. Contudo, seria
var um padrão de ação e avaliar o significado subjetivo dos atores envolvidos na ação. esse conhecimento capaz de nos conduzir a um mundo mais rico? A resposta de
Precisamos, ao mesmo tempo, de uma perspectiva externa e interna. Assim, Weber re- Weber é desconcertante: a modernidade chegaria ao desencanto exatamente através
toma a interpretação hegeliana de que as relações sociais de determinada era dessa busca de conhecimento.
fornecem critérios internos aos imperativos morais nela vigentes, assim como o
argumento de que o "conteúdo" de qualquer juízo moral só se revela plenamente
no entendimento do contexto da rede social e das determinações da situação his- O DESENCANTO É O DESTINO DE UMA MODERNIDADE
tórico-social concreta. Portanto, nosso conhecimento terá de examinar uma dua- COMPROMETIDA COM A LIBERDADE GUIADA PELO CONHECIMENTO
lidade: a interioridade da ação e a situação desta dentro do vasto quadro de desen-
volvimento social. No Iluminismo, o apelo à razão - à racionalidade - ocorria em nome do desejo
de ser livre. Liberta do cativeiro das falsas crenças e das hierarquias da sociedade feu-
dal, a humanidade entraria numa nova era de razão esclarecida. A modernidade de-
A METODOLOGIA DO ENTENDIMENTO SOCIOLÓGICO veria trazer a liberdade - a libertação dos entraves da racionalidade substantiva, da
necessidade de acreditar em X porque era nisso que o seu grupo social, ou a sua so-
O objetivo da indagação intelectual é o entendimento do mundo, mas, como ciedade, levavam-no a acreditar. Livres da ilusão, podemos escolher nossos valores
pertencemos a este mundo, não há como fugir a um certo "ponto de neutralidade" o desenvolver outros na interação com novas culturas, novos indivíduos e estilos de
na visão que dele temos. Faz-se necessária, portanto, uma sociologia que seja "uma vida. Essa liberdade de cultura poderia significar o potencial para um mundo mais
ciência preocupada com o entendimento interpretativo da ação social e, desse modo, variado e instigante do que qualquer outro já existente ao longo da história, mas
com uma explicação causal de seu curso de ação e suas conseqüências". O que tor- Weber era pessimista; enquanto os trabalhadores assalariados - que, juntamente
na a ação humana social? Uma ação humana envolve "um agente individual que is dependentes, formavam a massa da classe trabalhadora - poderiam est
atribui um significado subjetivo a seu comportamento", e a ação será social "na me- i o cípio, livres para dispor de seu trabalho no mercado aberto, eles na venk RI
dida em que seu significado subjetivo levar em conta o comportamento dos outros e inseridos numa rede de compulsão, e não podem evitar os obstácu] o; de tim,i
tiver, desse modo, um objetivo traçado para sua trajetória" (ES, 1: 4). rotura social que situa suas experiências de vida em espaços entre os Ii
O tema da sociologia é a ação humana, e Weber enfatiza duas características belecimentos fabris que os transformam em marionetes do modo lio lo 1
abordadas na citação acima: a ação social (i) implica, no que diz respeito aos outros, ml ação. Os desejos do protestante, cujos padrões de subjetividade — Corri) ir
o relacionamento, a troca e o interesse, e (ii) o comportamento é orientado em sua \'!eber - haviam dado um enorme estímulo ao desenvolvimento (Id i io),lii i i 1, 1
trajetória, isto é, tem significado. Como vamos compreender isso? Weber enfatizava a pitalista, teriam sentido em sua existência, mas, para o. operdi i i ii 1 1 .1
336 Filosofia do direito
Weber, Nietzsche e o Holocausto 337
moderna, seu trabalho e suas rotinas de vida são determinados pelas máquinas que
constituem parte tão significativa do complexo industria 116. que deles se extraem, razão pela qual se considera que as proposições gerais sobre as re-
Numa das frases mais memoráveis em que se descreve a vida moderna, Weber gularidades das ocorrências factuais e das normas gerais de conduta coincidem. O co-
afirmou que o homem moderno ficaria preso numa jaula cercada por barras de fer- nhecimento obtido pela "razão" humana é tido como idêntico à "natureza das coisas"
ou, como alguém poderia dizer hoje, à "lógica das coisas". O "deve" é idêntico ao "é",
ro de racionalidade. Havia três fatores cruciais: (i) é impossível demonstrar qual- ou seja, ao que existe na média universal (ES, II: 869).
quer significado substantivo no discurso do direito natural; (ii) uma força disciplinar
se impunha cada vez mais ao cotidiano da humanidade, criando rotinas determina- Estava claro, para Weber, que a separação dos tipos de conhecimento um pro- -
das pelas exigências estruturais de papel e função; e (iii) nossa busca de conhecimen- cesso iluminado por Hume e Kant, entre outros tornava racionalmente impossível
-
to não nos pode salvar; ao contrário, nos moveremos cada vez mais numa espiral de acreditar em alguma coincidência necessária entre "um curso da história" e um con-
atividade- reflexão- conhecimento-tecnologia-reação-reflexão. O homem está conde- junto de valores normativos. Podemos aprender com a história, mas as narrativas que
nado a tornar-se vitima de cálculos sobre cálculos, apanhado na armadilha da neces- a história apresenta sobre o "é" de nosso passado não constituem prova alguma
sidade racional`. Quisemos que a razão nos libertasse, mas nos tornamos seus ser- de nenhum "deve". Assim, argumentava Weber, não havia nenhum significado, ne-
vos, condenados a suas visões e aos resultados que lhe parecem lógicos`. nhum objetivo ou telos que pudessem ser objetivamente encontrados na história.
hra esse o "destino" de "uma época que comeu da árvore do conhecimento" (Weber:
WEBER SOBRE O DESTINO DA IDEOLOGIA DO DIREITO NATURAL [190411949: 57). Da mesma maneira, nada poderia ser dito pelos cientistas sobre
05 fundamentos dos juízos de valor (1904; 1917)19.
Valor (significado) era algo que im-
"Natureza" e "razão" são os critérios substantivos do que é legítimo do ponto de vis- pomos ao mundo; não podia ser objeto de verificação científica. Diante desse rela-
ta do direito natural. Ambos são vistos como iguais, e o mesmo acontece com as regras tivismo e dessa subjetividade, vemos mais claramente que o direito é uma técnica
específica de dominação humana:
ro refere-se apenas a um estágio específico do capitalismo industrial; em nossos dias, com uma semana de tra-
balho menor, com o aumento do lazer e a diminuição da ênfase no pensamento cartesiano, habitamos uma jau- reitos e deveres, responsabilidades e soluções jurídicas, a legalidade é a técnica mais
la de borracha. Santos responde: "A jaula de borracha continua sendo urna jaula" (1991: 102). Claus Offe (1987: ipropriada ao poder moderno. O direito pode criar seu próprio universo de sentido
8) define um aspecto importante da condição pós-moderna como a consciência simultânea da contingência e i
necessidade. Desse modo, traz consigo um grande potencial de libertação e capa-
da escolha, enquanto as condições estruturais da macroescala parecem ainda mais distantes do controle hu-
'Ração; porém, em sua ligação com a administração racional, pode oferecer uma pe
mano: "Por um lado, quase todos os fatores da vida social, econômica e política são contingentes, eletivos e con-
trolados pela mudança; por outro, as premissas institucionais e estruturais sobre as quais se organiza tal con- igosa combinação: estimula a desobediência. Weber adverte:
tingência são simultaneamente retiradas do horizonte de escolha política na verdade, de escolha intelectual."
-
18. A tendência pessimista da análise de Weber é retomada pelo escritor francês Michel Foucault, que 19.Sem dúvida, Weber admite que os cientistas poderiam dizer que a razão (por eles propn;I.
mistura Nietzsche e Weber para nos oferecer uma imagem de nossa humanidade sendo arrancada de nós sob )j" L 1.11
o pretexto do conhecimento e do domínio da "especialização". O filósofo norte-americano contemporâneo usava decerto modo craY; os cientistas sociais podem e devem registrar o que indivíduo;
ii,
Richard Rorty (1983: 164) comenta: "Sem dúvida, Foucault está certo em afirmar que as ciências sociais em- mas não podem afirmar que isto ou aquilo tem valor intrínseco e, portanto, deve scr
1
botaram a fibra moral de nossos governantes. Algo acontece com políticos que se vêem expostos a infinitas lorizado. Isso não significa que Weber argumentava que os valores eram desimpori. i
tabulações de níveis de renda, índices de reincidência, eficácia de custo de armas de fogo para a artilharia e texto clássico, TheMeaning of ValueFreedom ia Socíolo,gy and £conomics [O Sl1'iiiii;i,I,' 1,
11,11 nas ciências sociológicas e econômicas] (1917: 1-47), Weber afirmou categoricarrici i
coisas do gênero mais ou menos o que acontece com os guardas dos campos de concentração... Os gover-
-
~ iv wlatar o que se observou (os "fatos" da interpretação) e a avaliação deve ser Hii,iii i'ui
nantes das democracias liberais passam a crer que nada importa além do que é mostrado pelas previsões dos
do alguém exprime um juízo de valor, não pode afirmar que se trata de ciência,
especialistas. Eles param de ver seus concidadãos como seus concidadãos." pui.; a. Ii
iniciação política ou coisa do gênero, de uma afirmação humana.
338 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 339
Todavia, essa eliminação das implicações metajurídicas do direito é um daqueles ra para o conjunto da sociedade. O exército era o foco original da disciplina social se-
avanços ideológicos que, ao mesmo tempo que aumentam o ceticismo quanto à digni- cular que moldava vastos contingentes humanos, transformando-os numa unidade
dade das regras particulares de uma ordem jurídica concreta, também promovem eficien- disciplinada pelo hábito pessoal e pelos sistemas de exigências burocráticas`. Weber
temente uma obediência genuína ao poder, agora visto exclusivamente de um ponto de advertiu que nossa individualidade estava se tornando cada vez mais apartada de nós
vista instrumental, das autoridades que afirmam possuir legitimidade no momento. à medida que nos disciplinávamos, passando a constituir uma sociedade caracteriza-
Entre os profissionais de direito, essa atitude tem se mostrado particularmente acentua- da pelo conformismo generalizado.
da (ES, II: 875).
demo encontra-se a vontade humana23. Talvez a melhor interpretação da sociolo- A ABERTURA DA VERDADE DO DIREITO
gia do direito de Weber tenha sido feita por Kronman (1983). Em sua leitura de We- E DA CRIATIVIDADE DO DIREITO
ber, a análise deste é precedida por dois pressupostos: (i) as ações humanas são in-
formadas pelos objetivos e intenções dos agentes; (ii) os fins perseguidos pelos O direito moderno é paradoxal porque permite a abertura" - autorizando, des-
agentes não são de modo algum ditados a eles pela natureza - na verdade, são es- se modo, a ação - ao mesmo tempo que é, decididamente, uma técnica de coibi-
colhidos ou desejados pelos agentes. São, em essência, produtos "irracionais" da ção. O paradigma do direito criminal - no sentido de que todo e qualquer compor-
vontade. Em decorrência disso, a análise jurídica diz respeito a um material que tamento poderia ser criminalizado ou descriniinalizado, penali7ado ou despenaliza-
tem significado legal identificável através da "análise lógica do significado", ou da do - meramente exprime, ainda que em termos precisos, a idéia de demarcação de
"interpretação abstrata do significado". Somente a análise de um sistema jurídico limites e de transgressão que se encontra na raiz da legalidade. Os processos de for-
primitivo - que, por definição, só envolve um grupo limitado de possibilidades so- malização e racionalização inerentes ao direito moderno tornam-no totalmente apro-
ciais - poderia usar um "critério externo" baseado em "elementos extrínsecos" ou priado à ordenação dos procedimentos de representação e classificação, demarcação
"características de dados dos sentidos". Com um sistema jurídico avançado, a aná- de limites e avaliação social. A técnica de classificação impõe certos fenômenos -
lise exigiria que considerássemos todas as circunstâncias que envolvem o ato (juridi- possivelmente por herança de ordem política - através da criação de conceitos ju-
camente relevante), bem como as conseqüências que dele decorrem e determinam rídicos que representam certos aspectos do mundo. O processo de classificação não
sua relevância legal; em suma, a análise jurídica moderna leva em consideração os apenas reflete e nomeia entidades do mundo, mas representa-as em nome de uma
objetivos e as intenções do agente. Sem dúvida, o agente situa-se numa estrutura. (nova) racionalidade, apresenta alguma coisa que não se afigura naturalmente as-
A natureza e a estrutura do pensamento jurídico moderno tendem à formalização; em sim a nossas sensibilidades, atribuindo-lhe uma ou outra forma que somos levados
outras palavras, revelam uma preocupação com a classificação e a representação, com i aceitar como seu modo de ser. O processo de classificação pode, por exemplo, im-
a demarcação de limites e a redução dos fenômenos sociais a conceitos jurídicos ao plicar a escolha de um grupo específico da comunidade e sua sujeição a um regime
longo de um processo que pretende criar uma realidade (jurídica) ao mesmo tem- specífico de significado jurídico e social. A classificação institui limites, apresenta
po inteligível e controlável24 . (alguns) fenômenos do mundo como coisas diferentes, outras como semelhantes
E o que dizer sobre o destino do direito? Haverá um "desenvolvimento contí- (da mesma classe), permitindo assim a diferença e a igualdade. Ao mesmo tempo, o
nuo dos elementos técnicos do direito e, conseqüentemente, de sua natureza de es- processo de formalização pode ser redutivo; torna a abertura da realidade social in-
fera de ação própria do especialista". Ficará cada vez mais evidente que "o direito Leigível e controlável ao reduzir a realidade a uma ou a poucas qualidades decisivas.
é um aparato extremamente técnico, continuamente transformável à luz de consi- Através dessas técnicas, o direito moderno pode constituir sua própria verdade e aju-
derações de conveniência e vazio de toda sacralidade de conteúdo" (ES, II: 895). Iar a criar uma nova "verdade" social.
Pelo contrário, o direito também torna-se flexível. Em princípio, nada está para além
de seus procedimentos e estruturas. Molde que não tem necessidade ideológica de II. FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900): MODERNO RADICAL
associação a uma realidade natural verificável, o direito pode criar sua própria rea- OU PROFETA DO PÓS-MODERNO?
lidade ou atribuir um novo status de realidade a idéias anteriormente aceitas de
realidade natural (como conceder direitos de participação a mulheres e membros E sabeis o que é "o mundo" para mim? Deverei mostrá-lo a vós em meu espe-
de minorias étnicas). lho? Este mundo: um monstro de energia, sem começo ou fim; uma enormidade imó-
vel e impudente de energia, que não aumenta nem diminui, que não se consome, mas
apenas se transforma ( ... ), envolto pelo "nada" como se fosse este uma fronteira (.),
23.Na tradição alemã, a partir de Schopenhauer, a criação de bondade é um ato de vontade. como energia do princípio ao fim, como um jogo de energias e ondas de energia, ao n
24."Um conjunto de regras e decisões concretas, não importa quão numerosas, não pode nunca produ- mo tempo um e múltiplo, acumulando-se aqui ao mesmo tempo que se reduz ali,; i ' ii
zir um sistema jurídico abrangente. Para chegar à abrangência, é preciso empregar princípios com alto grau de
generalidade: somente assim uma ordem jurídica pode adquirir o alcance necessário para abarcar, sem deixar
vazio algum, todas as situações imagináveis. Esses princípios gerais são, eles próprios, produto de um proces- 25.Um enfoque central é a crítica da tradição no sentido de que a idéia de revogabilidadr. 1
so de abstração ou "redução", como Weber o chama; chega-se a eles reduzindo-se "as razões relevantes à de- 'e iingência legal, é fundamental para o funcionamento do positivismo jurídico. O processo cl j
cisão de casos individuais concretos a um ou mais "princípios", isto é, a proposições legais". Conseqüentemen- e tal que, na medida em que a "lei" tenha passado pelo correto processo de criação, pode iii
te, se um tipo de pensamento jurídico desestimula a imaginação, deve também obstruir a formulação daque- oi)Lrúdo; assim, o conteúdo pode ser modificado amanhã. Não há sacralidade alguma na subri 1.1
les princípios gerais que um verdadeiro sistema jurídico exige para sua construção" (Kronman, 1983: 90). wito (jurídico-positivista).
Weber, Nietzsche e o Holocausto 345
344 Filosofia do direito
Contudo, ao mesmo tempo que profetizava que o niilismo podia tomar de as-
mar de energias que fluem e se precipitam juntas, transformando-se eternamente num
eterno vai-e-vem, com infindáveis anos de retorno, com um fluxo e refluxo de suas for- salto a modernidade, Nietzsche exigia que reconsiderássemos as bases de nossos
valores e desenvolvêssemos um novo imaginário social. Em seus primeiros textos,
mas; da forma mais simples para a mais complexa, da mais calma, da mais rígida e da
mais fria para a mais turbulenta, mais autocontradítória, e depois, dessa abundância re- Nietzsche mergulhava nas profundezas da tragédia grega e nas idéias de Schopen-
tornando ao simples, do jogo de contradições retornando à alegria do consenso, ainda hauer (um pessimista que enfatizava o poder da vontade humana e argumentava
assim afirmando-se nessa uniformidade de seus cursos e seus anos, glorificando-se que uma universalidade da vontade fundamentava os diferentes fenômenos que ob-
como aquilo que deve retornar eternamente, como um vir-a-ser que desconhece a re- servamos) e do compositor Richard Wagner. Contra suas visões trágicas, Nietzsche
pleção, a saciedade e a saturação -- este meu mundo dionisíaco do eternamente autocria- passou a pregar que a vida devia ser afirmada; os homens precisavam ter a coragem
dor, do eternamente autodestrutivo, este misterioso mundo das volúpias ambíguas, este de encarar as coisas do modo como elas realmente eram, em vez de negar ou rejei-
meu "para além do bem e do mal", sem propósito, sem vontade, a menos que uma vol- tar aspectos da realidade. Sua exortação pode ser mal interpretada, e é verdade que
ta sinta boa vontade para consigo mesma — quereis um nome para este mundo? Uma so- Nietzsche transformou a idéia central da tradição filosófica alemã - a idéia da von-
lução para todos os vossos enigmas? Uma luz para vós também, homens dissimulados, tade - na exigência de um impulso (que ele passou a chamar de vontade de potência)
mais fortes, menos amedrontados, homens sobretudo da meia-noite? Este mundo é a voltado para a busca incansável da grandeza, que os nazistas tomaram por diretriz.
vontade de potência - e nada mais! E vós sois também essa vontade de potência - e nada Nietzsche, porém, era um adversário implacável da psicologia de massas usada pe-
além disso! (dos cadernos de notas de A vontade de potência, 1884-86). los nazistas e da estrutura utilitária que serviu de base à "solução final" do "proble-
ma judeu"; ele teria criticado severamente o movimento todo como "moral e men-
talidade de rebanho". Isso não quer dizer, em absoluto, que Nietzsche tenha assen-
INI'RODUÇÃO A FRIEDRICH NIETZSCHE: to garantido na tradição liberal-humanista. Ele era favorável a uma modernização
O FILÓSOFO DA CONDIÇÃO PÓS-MODERNA radical, e há passagens assustadoras em seus livros. Nietzsche argumentava que to-
das as entidades do mundo requeriam interpretação - não havia nada que se pu-
Friedrich Nietzsche tornou-se o mais polêmico escritor/filósofo do século XX`. desse chamar de fatos simples -, e suas idéias são inquietantes, perturbadoras, obs-
Até recentemente, no mundo anglo-americano seus escritos eram tratados como li- curas, abertas a múltiplas interpretações e contraditórias". Entre suas idéias que
teratura abstrata, e ele era visto como o paladino daqueles que anunciavam a "morte provocaram as reações mais extremas podemos citar: a vontade de potência como
de Deus" ou o advento do niilismo, além de reconhecido como o filósofo adotado pela impulso básico da humanidade; a impossibilidade de chegar à verdade; a afirma-
Alemanha nazista: "um anti-semita e pró-ariano irracional, delirante e bombástico"27. ção de que no mundo não existem fatos simples ou afirmações ou entidades não
interpretativas; a morte de Deus; a religião como meio de alguns indivíduos domi-
narem outros e como uma lente ideológica através da qual as pessoas evitam sub-
26. Friedrich Nietzsche nasceu na Saxônia em 1844 e teve uma breve carreira de grande brilhantis- meter o mundo real à interrogação radical; a idéia do super-homem (um indivíduo
mo corno erudito clássico, tornando-se professor antes de completar trinta anos. Desistiu da carreira uni-
radical que se sujeita à auto-análise e ao autocontrole rigorosos); a necessidade de
versitária devido à pouca saúde e à recepção dos colegas a seus escritos, Tornou-se um escritor solitário
que freqüentemente residia em hospedarias nas montanhas suíças. Escreveu muito nos dezesseis anos
gerar um novo indivíduo para as condições modernas; textos ambíguos sobre a guer-
subseqüentes, quase sempre livros pequenos ou livros de ensaios e aforismos: O nascimento da tragédia, ra; a concepção da moralidade como meio pelo qual os oprimidos generalizam seu
Humano, demasiado humano, Gaia ciência, Além do bem e do mal, A genealogia da moral e sua obra mais popu- ressentimento, e muitas outras.
lar, Assim falou Zaratustra. Foi amigo do compositor alemão Richard Wagner durante algum tempo, mas
afastou-se dele por acreditar que o poderoso romantismo da música wagneriana era um perigoso estímulo
a valores anti-humanos. 28. Nietzsche freqüentemente escrevia aforismos que pareciam propor posições diferentes. Ele se
Nietzsche convenceu-se da necessidade de destruir sistemas de valores antigos, e é muito conhecido cita de que seus escritos quase sempre defendiam posições contraditórias, mas afirmava que um i'iu
por haver decretado a "morte de Deus", o que para ele significava que as bases de nossos antigos sistemas ao "grandioso" quanto ele próprio podia conviver com suas contradições! Outros comentarist; v't'ti 1 111,
intelectuais e morais haviam sido destruidos, conquanto ainda vivêssemos corno se o mundo fizesse sentido.
uma prova de incoerência ou, como no caso de Walter Kaufmann, como indício de um estilo expei i,•iil., 1
Vinha trabalhando desesperadamente numa "transposição de todos os antigos valores", mas sua saúde pio- y.crita: "Nietzsche não é um pensador sistemático, mas um pensador problemático. ( ... ) [Adota) o i'.', i ' ii
ra e, em 1899, deteriora-se também sua saúde mental, provavelmente devido à sífilis terciária que pode ter
Iismo, predisposição de aceitar novas evidências e, se necessário, abandonar posições anterior'" 1 titim,11m.
apanhado nas poucas ocasiões em que esteve com prostitutas no breve período em que prestou serviço mi- 1974: 86). Kaufmann, que foi o primeiro a "reabilitar" Nietzsche para o mundo anglo-ain'ii.i
litar em sua juventude. Permaneceu insano até a morte, em 1900. Nietzsche advertiu sobre o niilismo que se
Nietzsche indevidamente, tentando encontrar em seu princípio de "experimentalismo" um i ' i ii
instalada na Europa, e tornou-se o filósofo da condição pós-moderna. jue possamos usar para compreendê-lo. Nietzsche acreditava que o mundo não podia ci!'i . 1,1'
27. Para citarmos Alexander Nehamas (1985: vii) sobre a imagem que tinha de Nietzsche antes de lê-lo 'elação alguma; da mesma forma, não existe uma interpretação única de seus próprios livI
a sério.
346 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 347
Os textos de Nietzsche evocam uma grande variedade de disposições de espí- mente enfatizadas, transpostas e enfeitadas, e que, depois de muito usadas, parecem a
rito e impressões. Weber o havia lido e, em boa parte, respirado o mesmo ar inte- um povo sólidas, canônicas e obrigatórias. As verdades são ilusões que deixamos de ver
lectual. Porém, enquanto Weber previa um desencanto do mundo à medida que este como tais; são metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que per-
deram sua efígie e agora são vistas apenas como metal, não mais como moedas (On Truth
se secularizava, e via os indivíduos como seres presos na armadilha da jaula de fer- and Lies in a Non-Moral Sense [Sobre verdade e mentira no sentido extramoral], 1873).
ro da racionalidade, Nietzsche enfatizava a necessidade de ir além dessas reflexões
e recriar. A modernidade precisava, ainda, tornar-se verdadeiramente moderna; a fi- Um dos, argumentos mais perturbadores de Nietzsche talvez seja seu ostensivo
losofia social e a ética ainda não se haviam tornado plenamente reflexivas. A moder- pragmatismo no que diz respeito à verdade. "Verdade" é uma função dos processos
nidade havia "matado Deus", mas a humanidade não se secularizara por intei- por meio dos quais se chega a uma resposta; é uma unidade de representação de um
ro; os europeus ainda viviam em meio a produtos de sistemas de pensamento an- mundo formado por muitos fluxos de energia diferentes e conflitantes, sempre fugin-
teriores - sistemas que se fundavam em tradições religiosas que continham idéias a nossas tentativas de obter uma "visão clara". Todas as "verdades" são parciais,
de alguma autoridade transcendental -, ao mesmo tempo que a racionalidade mo- u'oduto de uma metodologia, mas têm efeitos pragmáticos; podem servir a um ou
derna subvertia as crenças subjacentes a tais valores. Nietzsche representava o cos- Iro fim, ter este ou aquele efeito. Devemos buscar a verdade, mas as conseqüên-
mo não como uma estrutura racional e coerente em última instância, mas como i podem ser perturbadoras - a verdade é perigosa. A verdade de hoje prova que
um enorme fluxo de poder(es) em meio ao qual éramos almas perdidas. Tudo que verdade de ontem estava errada, e da mesma forma a verdade que criaremos ou
tínhamos era nossa vontade de potência; nós éramos nossa vontade de potência. icontraremos amanhã irá "provar" o erro de nossa "verdade" atual. Uma socieda-
Ao descrever a modernidade como mistura tumultuada de uma multiplicidade de só pode ter tanta verdade quanto possa suportar. Se as "massas" conhecessem a
de forças na qual se misturavam desconstrução e construção, liberdade e discipli- verdade da "verdade", seriam capazes de suportá-la?
na, autonomia e controle, Nietzsche celebrava as possibilidades em aberto. A natu-
reza não continha conjuntos de valores a nos serem impostos, razão pela qual o
mundo todo - inclusive os projetos humanos - nada mais era que um jogo de for- SOBRE O PERSPECTIVISMO
ças. A vida era reformulada em termos de uma vasta aventura cósmica; o roteiro
não estava escrito, mas devia ser feito e refeito ao longo da viagem. Na prisão - meus olhos, por mais fortes ou fracos que sejam, não enxergam para
Nietzsche tornou-se um filósofo muito em voga quando a modernidade passou além de uma curta distância, e é no espaço compreendido por essa distância que vivo
para o período da modernidade tardia, ou da pós-modernidade. Duas características e me movimento; a linha do horizonte constitui meu destino imediato, nas coisas gran-
de sua importância para a filosofia do direito são evidentes: (i) seu perspectivismo e des e nas pequenas, ao qual não posso fugir. Ao redor de cada ser, ali, descreve-se um
círculo concêntrico semelhante, que tem um ponto central e lhe é peculiar. Nossos ou-
sua insistência na interpretação constituem uma fecunda fonte de idéias para os ar- vidos nos envolvem em um círculo comparável, e o mesmo acontece com nosso sen-
gumentos interpretativos contemporâneos da teoria jurídico-crítica - enquanto em- tido do tato. Ora, é através desses horizontes, dentro dos quais cada um de nós encerra
preendimento, o direito se fundamenta numa série de textos`; (ii) sua radicalização seus sentidos como se estivesse por trás dos muros de uma prisão, que avaliamos o
da imaginação institucional da modernidade coloca um grande número de questões mundo, dizemos que isto fica perto e aquilo longe, que isto é duro e aquilo macio: a tal
e problemas. avaliação damos o nome de sensação - e tudo isso não passa de um erro! De acordo
Nietzsche não é um autor fácil de resumir, e há muitos temas em seus textos. com a quantidade média de experiências e estímulos possíveis a nós, a cada ponto es-
Até certo ponto, é melhor deixar que seu estilo inconfundível fale por si mesmo. pecífico do tempo, avaliamos nossa vida e dizemos ser ela breve ou longa, pobre ou
rica, plena ou vazia; e, de acordo com a vida humana média, avaliamos a vida de todas
as outras criaturas - o que não passa de um erro! Se nossos olhos fossem cem vezes
PROBLEMATIZANDO A VERDADE mais penetrantes, o homem nos pareceria tremendamente alto; é possível, na verdnc,
imaginar órgãos em virtude dos quais ele seria percebido como incomensur v 1.
O que é, pois, a verdade? Uma legião móvel de metáforas, metonímias e antropo- outro lado, a constituição dos órgãos poderia ser tal que sistemas solares intciu . 1 111
morfismos: em resumo, uma soma de relações humanas, que foram poética e retorica- vistos como contraídos e compactos, como uma única célula; e, a seres de outi'i .i
tuição, uma célula do corpo humano poderia apresentar-se, em movimento, co i i ; 1
e harmonia, como todo um sistema solar. Os hábitos de nossos sentidos ii e i i 1ii
11
29. Portanto, podemos aprender ao tratarmos o direito como literatura; na verdade, um escritor (Dwor- em mentiras e sensações enganosas: estas configuram, uma vez mais, c l;c d de
kin, 1986) chega a sugerir que o desenvolvimento do common law deve ser visto como um folhetim. nossos julgamentos e de nosso "conhecimento" —não há nenhuma possibtlid ti 1
348 Filosofia do direito
Weber, Nietzsche e o Holocausto 349
nenhum caminho de volta ou atalho para o mundo real! Permanecemos em nossa teia
SOBRE O INCONSCIENTE E A NECESSIDADE DE PROCEDER
- nós, aranhas - e, de tudo que poderíamos nela apanhar, não apanhamos nada a não A UMA GENEALOGIA DA MORAL3°
ser aquilo que se permite ser apanhado (Aurora, 1881).
Pelo menos entre nós, imoralistas, começa-se hoje a desconfiar que o valor decisivo
Nossa imagem da realidade é conseqüência do material que usamos para vê-la. de um ato encontra-se exatamente naquilo que nele há de não intencional; que toda sua
Perspectivísmo é o argumento de Nietzsche segundo o qual toda visão é uma entre intencionalidade, tudo que pode ser visto e conhecido, tudo que ele tem de consciente,
muitas interpretações possíveis. Este é, sem dúvida, um tema relativo ao paradoxo pertence apenas a sua superfície, a sua epiderme que, como toda epiderme, revela algu-
da reflexividade: especificamente, é uma interpretação, motivo pelo qual a idéia de mas coisas, mas dissimula muito mais! Em suma, acreditamos que a intenção é apenas
que toda visão é apenas uma entre muitas outras interpretações possíveis é, ela pró- um signo e um sintoma que precisa ser interpretado; além disso, que se trata de um sím-
pria, uma entre muitas interpretações possíveis. Essa dificuldade é mais lógica do bolo que, por ter um excesso de significações, significa pouco ou nada; que a moral no
que real, no sentido de que o perspectivismo é tanto uma interpretação quanto um sentido antigo, isto é, a moral das intenções, era um preconceito, uma coisa prematura,
entendimento da natureza do contexto geral. Aos que se opõem a Nietzsche, isso talvez provisória; uma coisa da ordem da astrologia ou da alquimia, mas de qualquer
parece o caminho para o nada, ou ao niilismo. Mas o nietzschianismo denota, ao maneira uma coisa a ser superada. (..) Isso poderia ser o nome daquele longo trabalho
secreto que se reserva às consciências mais sutis, mais probas e mais malévolas de nos-
contrário, interpretação autoconsciente e criatividade. O perspectivismo tem conse- so tempo. São as referências vivas da alma! (Beyond Good and Evil [Para além do bem
qüências para todas as narrativas de conhecimento, mas há aplicações evidentes ao e do mal], 1886, seção 32).
entendimento dos textos e materiais jurídicos (decisões, relações profissionais). O
perspectivismo sustenta que não existem fatos independentes (no sentido de fatos Às vezes se pensa que Freud descobriu o inconsciente; contudo, a idéia já era
que prescindem de interpretação) com os quais as diferentes interpretações possam ]ativamente comum entre os intelectuais do século XIX, e Freud certamente tinha
ser comparadas de modo que possamos escolher a interpretação "correta". Nesse na com Nietzsche uma dívida maior do que jamais chegou a admitir. Nietzsche
caso, a tarefa de conferir sentido a processos ou conjuntos de instituições, como o 1 nua que não nos devemos deixar enganar pelas pretensões à racionalidade; por
sistema jurídico, ou de interpretar textos, como os textos jurídicos, pode ser uma 1 i ixo da racionalidade aparente encontra-se a irracionalidade. Por trás da razão do
questão de obedecer a certas regras metodológicas e/ou impor ordem entre mui- Jncito encontra-se o irracional. Sob a superfície da civilização encontraremos uma
tos objetivos e interpretações possíveis. 1 nassa de emoções e desejos conflitantes. A razão impõe a ordem, mas a especifici-
do-se a nós; trata-se, antes, de um modo de poder no qual impomos ordem à mul-
tiplicidade do eu e do mundo, tornando-os controláveis e compreensíveis. O co-
nhecimento é um instrumento de vida. 30. Genealogia é uma forma de explicação histórica ou psicológica de práticas morais p li
nilos suas origens e conseqüências práticas.
:',i. Demonstrar compaixão honesta é uma virtude do superhomem, mas a compab d-
, jimm io é verdadeira, e não produto de socialização ou prática comunitária.
350 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 351
apelos a valores gerais são eliminados por Nietzsche como apelos a valores comuns, "coisa", de um órgão, de um costume, pode ser, dessa forma, uma cadeia contínua de
à redução dos valores ao mais baixo denominador comum. Em vez disso, a socieda- signos de interpretações e adaptações sempre novas, cujas causas nem mesmo preci-
de devia atuar no sentido de fazer florescer a grandeza de cada indivíduo. Ao voltar sam estar ligadas entre si, mas, ao contrário, em alguns casos, se sucedem e revezam
os olhos para a Grécia pré-clássica, Nietzsche ali via uma era de ouro plena de vita- de modo meramente aleatório. A "evolução" de uma coisa, de um uso ou de um órgão,
lidade, força, tragédia e beleza, um mundo de espontaneidade e boa vontade que não é de modo algum seu progresso em direção a um alvo, menos ainda um progres-
transigiu devido à exigência socrática do uso da razão e da comunicação. Desde en- so lógico e rápido que se obtém com um dispêndio mínimo de força trata-se, antes,
-
tão, ensinam-nos que nossas instituições devem legitimar-se por sua capacidade de de uma sucessão de processos de subjugação mais ou menos profundos, mais ou me-
nos independentes um do outro, mais as resistências com que se deparam, as tentati-
incorporar a razão; Nietzsche acreditava que sua única e verdadeira defesa deveria
vas de transformação para fins de defesa e reação e os resultados de ações reativas
ser a capacidade de afirmar a vida. Para ele, se submetêssemos nossas instituições bem-sucedidas. A forma é fluida, mas o "sentido" é mais ainda (On lhe Genealogy of
a uma genealogia dos interesses, observaríamos os verdadeiros processos em atua- Morais [Para a genealogia da moral], 1887, seção 12).
ção, subjacentes a alegações "morais", Friamente, Nietzsche afirma que boa parte
do discurso moral havia sido influenciada pelo ressentimento dos fracos: fora criada
As instituições sociais são espaços sobredeterminados; há múltiplos processos
pelos perdedores na vida, a fim de impor limites aos fortes e vitoriosos, que deve-
in ação.
riam rejeitar a moralidade tradicional e favorecer a criação de novos valores para si
próprios.
SOBRE A NECESSIDADE DE MUDAR O DESTINO
E O TIPO DO HUMANO
SOBRE A DIFICULDADE DE DAR UMA DEFINIÇÃO OU
EXPLICAÇÃO SIMPLES DAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS
O problema que então coloco não diz respeito ao que se seguirá à humanidade na
Uma palavra ainda sobre origem e finalidade do castigo dois problemas que são
-
cqüência dos seres vivos (o homem é o fim), mas ao tipo de homem que será gerado,
distintos, ou deveriam sê-lo; infelizmente costumam ser confundidos. Como os genea- que será desejado, para que tenha um valor superior, que seja mais digno da vida e
logistas da moral se dedicaram, até agora, à solução desses problemas? Ingenuamen- mais convencido de um futuro. Mesmo no passado, esse tipo superior surgia freqüen-
te, como sempre fizeram; procuram alguma "finalidade" no castigo, por exemplo a vin- temente mas como um feliz acaso, como uma exceção, não como algo desejado (O An-
-
gança ou a intimidação, e em seguida, às cegas, põem essa finalidade no início, como ticristo, 1888).
causa fiendi do castigo e pronto. A "finalidade do direito", porém, é a última coisa a
-
A existência humana e o mundo só se justificam eternamente como fenômeno es-
ser empregada na história da origem do direito; em vez disso, para toda espécie de his- tético (The Birth ofTragedy [O nascimento da tragédia], 1872).
toriografia não há nenhuma proposição mais importante do que aquela que foi tão di-
fícil de estabelecer, mas que realmente deveria ser estabelecida agora: a causa da ori- Qual o significado disso? Examinemos uma afirmação de Hart (1961) em 17w
gem de uma coisa e sua utilidade final, seu emprego efetivo e seu lugar num sistema oncept of Law, criticando Austin: " (...) sob muitos aspectos, o funcionamento de uma
de fins estão separados por abismos; que o que existe, que de algum modo veio a ser, m essa é um modelo muito melhor do que o das inflexíveis exortações ao en-
é sempre reinterpretado para novos propósitos, retomado, transformado e redireciona- 1 li tnento ( ... ) das características do direito". Nietzsche perguntaria, simplesmente:
do por algum poder que lhe é superior; que todo evento no mundo orgânico é um sub-
ic onde vem a capacidade de fazer promessas?"
jugar, um tornar-se senhor, e que todo subjugar e tornar-se senhor implica uma nova
interpretação, uma adaptação através da qual o "sentido" e o "fim" anteriores são neces-
sariamente obscurecidos, ou mesmo obliterados. Por melhor que se tenha compreen- Criar um animal com o direito de fazer promessas — não é esta a tarefa pai i r1
dido a utilidade de algum órgão fisiológico (ou de uma instituição legal, de um costume que a natureza se atribuiu no caso do homem? Não é este o verdadeiro probi'i
social, de um uso político, de uma forma de arte ou de um culto religioso), isso nada sig- que diz respeito ao homem?
nifica no tocante a sua origem; por mais incômodo e desagradável que isso possa soar Quantas coisas, porém, isso pressupõe! Para poder assim determinar o
a ouvidos mais velhos pois desde sempre se acreditou que compreender o fim demons-
-
antecedência, o homem deve, primeiro, ter aprendido a distinguir entre os &'v • ii .
trável, a utilidade de uma coisa, de uma forma ou de uma instituição, significava tam- cessários e os casuais, a pensar em termos causais, a perceber e prever ev'llru.ltiJ.l ii,
bém compreender o porquê de sua origem o olho sendo feito para ver, a mão sendo
- distantes como se pertencessem ao presente, a decidir, com certeza, qual 1
feita para pegar. quais os meios para alcançá-lo e, em termos gerais, a calcular e computar. A ii»; I
Assim, imaginou-se também que o castigo fora criado para castigar. Mas os fins e nada, o homem deve ter-se tomado calculável, regular, necessário, mesmo 1 m ii im~,1 (111 c
as utilidades são apenas sinais de que uma vontade de potência se tornou senhora de faz de si mesmo, se pretende permanecer seguro de seu próprio futuro, qi. 1 II
algo menos poderoso e lhe impôs o sentido de uma função; e a história inteira de uma aquele que promete!
Weber, Nietzsche e o Holocausto 353
352 Filosofia do direito
:, adverte Nietzsche, o preço a pagar será terrível se não confrontarmos a rea-
Esta é, exatamente, a longa história de como se originou a responsabilidade. A lO mundo, de sangue e vontade de potência, ou se não desenvolvermos o au-
tarefa de criar um animal com direito a fazer promessas evidentemente abarca e pres-
1 role e a autodireção, alcançando valores que derivam não da fraqueza, mas da
supõe, como tarefa preparatória, que primeiro se torne o homem, até certo ponto, ne-
cessário, uniforme, igual entre iguais, regular e, conseqüentemente, calculável (ambas i pessoal. Se não adotarmos a ética da autodeterminação radical, seremos mais
as citações de On the Genealogy of Morais [Sobre a genealogia da moral], 1887, "Second idade do rebanho. Por prever uma sociedade de obediência servil, Nietz-
Essay: Guilt, Bad Conscience and the Like" ["Segunda dissertação: culpa, má consciên- o' exigía uma sociedade de individualismo radical. Os nazistas apropriaram-se
cia e congêneres"]). 'ino seu filósofo oficial, mas na verdade Nietzsche advertiu o mundo de seu
(I) l0.
Se, por um lado, os homens mais elevados foram aqueles que obedeceram a in-
junções que seu próprio ser lhes ditou, por outro, a massa dos homens transformou-
se em egos controlados e disciplinados para uma sociedade de consumo de massa III. O HOLOCAUSTO: UM EXEMPLO DA MODERNIDADE
e padronização absoluta. Em que contexto se deu esse processo? LEVADA AO EXTREMO E DO EXTREMO DESENCANTO
COM A MODERNIDADE
masiado tênues (17w Gay Science [A gaia ciência], 1887, n? 377). lilUitai que assim aconteceu:
ln&)mendo-vos estas palavras. (Primo Levi, If Tl'zis Is a Man, [Se isto é um homem], 1947).
A modernidade não é uma nau kantiana estável, cujo piloto conhece perfeita-
Transporte de Berlim: Chegada 5.3.43. Carga Total: 1.128 judeus. Registrados para
mente bem seu rumo. Estamos num mar desconhecido, e muitos de nós estão en- 1nbalhar: 389 homens e 96 mulheres. Tratamento especial [isto é, envio para as câmaras
joados. As massas anseiam por simplicidade e certezas; o verdadeiro intelectual está l7]: 151 homens e 492 mulheres e crianças. Transporte de Breslau: Chegada 5.3.43.
absolutamente só. Tudo ao seu redor é mediocridade e imediatismo32. As massas larga total: 1.405 judeus. Registrados para trabalhar: 406 homens e 190 mulheres. Trata-
desejam o escapismo romântico, como aquele que a música de Wagner lhes oferece`. moto especial: 125 homens e 684 mulheres e crianças. Transporte de Berlim: Chegada
/3,43. Carga total, incluindo 25 com prisão preventiva: 690. Registrados para trabalhar:
homens, 25 com prisão preventiva 'e 65 mulheres. Tratamento especial: 30 homens e
32. Nietzsche criou seu próprio imperativo categórico - o do eterno retorno - em contraposição a isso, 1 7 o i ulheres e crianças`.
Deveríamos viver e tomar decisões com as quais pudéssemos viver para sempre, como se estivéssemos con-
denados a repetir, o tempo todo, exatamente o mesmo curso de ação e decisão.
33. Wagner passou a representar o anseio pela afinidade romântica, pela perda do próprio espírito na es-
trutura de uma totalidade que arrebata o indivíduo e o leva consigo juntamente com suas formas e seus ritmos. 1. 1 issas citações apresentam dois aspectos contrastantes de Auschwitz, talvez o mais famoso dos cam-
"E caro o preço a pagar por ser discípulo de Wagner. Avaliemos o que significa tal discipulado mediante o exa- oncentração. Primo Levi, jovem químico judeu-italiano, foi preso como membro da resistência e de-
me de seus efeitos culturais. ( ...) Compreendeis isso: que a saúde e o esplendor tenham o efeito de uma som- 1' para Auschwitz em fevereiro de 1944. Levi descreve o processo de desumanização e nos pede que não
bra? Quase de uma objeção? A tal ponto nos tornamos tolos consumados - nunca houve maior mestre em ar) noçamos da desumanidade dos fatos. A segunda citação é um fragmento de registros de campos do
mas sombrios e hieráticos - nunca houve um homem igualmente conhecedor de pequenas infinidades, tudo O ( II ".0 otado em Krausnick et alii, 1968) no qual se detalha anormalidade rotineira de Auschwitz (a
N
que tremula e é efusivo, todos os feminismos do idioticon da felicidade ( ...). Em parte alguma encontrarei,,; oo-de-obra escrava e a prática de destruição humana), oferecendo assim um exemplo do "c'i iii
mais agradável meio de enervar vosso espírito, de esquecer vossa virilidade sob uma roseira. ( ...) Assim cli' ou, burocrático e regulador do Holocausto nazista, bem como de sua ambição prometéica" (tvl.
declara guerra a nós, a nós, os espíritos livres! Como ele se abandona a todas as covardias da alma moderi i 0!), o que assegurava que os trens nunca deixassem de correr para Auschwitz, mesmo em detioi'io'
com os tons de virgens mágicas! - Nunca antes houve ódio tão terrível à busca do conhecimento! - É precli. s objetivos de guerra.
ser cínico para não se deixar seduzir aqui; há que saber morder para não venerar aqui" (O caso Wagner, 1880).
354 Filosofia do direito Weber, Njetzsche e o Holocausto 355
pública de Weimar mostrara-se incapaz de suportar as inúmeras pressões às quais ica humana", o Holocausto pode "desconcertar e aterrorizar a humanidade;
uma frágil Alemanha vinha sendo submetida; as elites dominantes foram incapazes .) um imenso e sinistro mistério da degeneração do espírito humano" (citação ex-
de entender a necessidade de modernização e se fecharam em concepções tradicio- iída de Marrus, 1989: 8-9). Porém, ainda que se possa afirmar que o Holocausto
nais, enquanto se deparavam com a massa crescente e difusa de uma população único, o argumento de que se trata de um mistério é um equívoco; o Holocaus-
consciente dos novos desafios, mas carente de recursos intelectuais que lhe permi- um paradigma do desencanto com a modernidade não por representar a so-
tisse articular suas preocupações em forma de um discurso moderno. Muitos dos wevivência de paixões e emoções pré-modernas no meio da modernidade, mas
partidos políticos se voltavam para programas e propostas ideológicas do período m por ser um reflexo das grandes narrativas de premeditação, domínio e higiene.
anterior à guerra, e formaram-se vá-rios grupos independentes que se tornariam solo 1 nquanto alguns críticos tentam isolar o Holocausto, situando-o apenas no discurso
fértil quando os nazistas invocaram o romantismo do Reich e uma mentalidade de lo autoritarismo ou definindo-o como resultado de uma patologia — da perversi-
estatismo contra a Constituição de Weimar. Em resultado, o nacional-socialismo sob lade específica de Hitler ou dos nazistas —, alguns críticos sofisticados, como Bau-
Adolf Hitler subiu ao poder no começo da década de 1930, proclamando o início do an (1989, Modernity and the Holocaust), vêem-no como parte central do processo
"Reich de Mil Anos", que refletiria sua representação ideológica dos "mil anos" de l e modernidade38. O Holocausto não foi um recuo para um estado de natureza
história alemã "pura" que fora destruída pela Primeira Guerra Mundial; seu gover- II obbesiano, mas sim um exemplo da jaula racional que, para Weber, representava
no provocaria a Segunda Guerra Mundial, que terminou por ver sua derrocada". Um civilização moderna.
de seus legados foi o Holocausto, que para muitos assinala o fim da confiança no
processo de civilização`. Seria possível acreditar no progresso inevitável, ou man-
ter o compromisso com um processo de racionalidade crescente, se no fim desses RESUMO DOS PRINCIPAIS MODOS DE VER O HOLOCAUSTO
processos estava o Holocausto?
Como vamos entender esse acontecimento? A singularidade do Holocausto en- O Holocausto tem sido visto: como produto de ideologias alemãs, particular-
contra-se nem tanto no número de assassinatos (que deve ser colocado no contexto II wnte de uma tradição de anti-semitismo aliada ao autoritarismo; como produto de
da guerra— em que houve um total de 55 milhões de mortos, aí incluídos 20 milhões III clivíduos patológicos que ascenderam ao poder em circunstâncias únicas (os na-
Se, no início e durante a guerra, alguém tivesse lançado gás venenoso sobre não bora o escritor favorito de Nietzsche, Goethe (juntamente com Schiller) houvesse
mais que 12 ou 15 mil desses inimigos do povo, os judeus — como aconteceu no campo de pedido que o nacionalismo fosse substituído pelo humanismo universal —. "são vãs,
batalha com centenas de milhares de nossos melhores trabalhadores dos mais variados Alemanha, tuas esperanças de te transformares numa nação; transforma-te, em vez
tipos e vocações —, então o sacrifício de milhões no front não teria sido em vão. disso, como certamente o podes fazer, mais livremente em seres humanos" —' his-
(oricamente foi o nacionalismo que se saiu vencedor. Citando Grillparzer, a verda-
Contudo, o carisma de Hitler não teria funcionado se não tivesse existido todo deira trajetória se deu "da humanidade à bestialidade, passando pela nacionalidade".
um conjunto de narrativas sociais e condições estruturais. Bauman (1989: 12) argu- Não foi coincidência que, depois de 1933, o nacional-socialismo foi alardeado como
menta que o Holocausto foi "um texto raro, ainda que significativo e confiável, sobre
"a vontade biológica do povo alemão", ou como "biologia política". Nas palavras
as possibilidades ocultas da sociedade moderna". Ele sugere que
do historiador alemão Hans Buchheim,
O Holocausto resultou de um encontro único entre fatores que, em si mesmos, eram
extremamente comuns e banais. Em grande medida, pode-se atribuir a possibilidade de Os nacional-socialistas consideravam que seu próprio povo e, durante a Segunda
tal encontro à emancipação do Estado político, com seu monopólio dos meios de violên- Guerra Mundial, o povo europeu, haviam desperdiçado sua força; viam-nos como uma
cia e a audaciosa engenharia de suas ambições de ter sob si o controle social — seguindo plantação cheia de erva daninha que se precisava remover a qualquer custo, isolando
o desmonte gradual de todas as fontes de poder não-político e de todas as instituições de os "incorrigíveis", extirpando o "câncer da decadência", propagando os elementos me-
autodomínio social (ibid.: xiii). ritórios e deixando fenecer os de menos valor, esterilizando os doentes e transplantan-
do ou eliminando as variedades instáveis. O produto final de tal política seria uma nova
O Holocausto é tanto um reflexo de tendências da modernidade quanto um comunidade européia, biologicamente sensível e bem-ordenada. ( ... ) Esse programa se-
evento ímpar. Enquanto fenômeno único, não poderia ter ocorrido sem condições ria realizado por meio da eutanásia, da deportação, da germanização e, por último po-
sociológicas específicas nas quais as modernas técnicas e tecnologias de adminis- rém não menos importante, da "extirpação de todas as classes de pessoas consideradas
tração racional fossem auxiliadas por um imaginário institucional político e juris- imprestáveis ou perigosas" (citado de Krausnick et alii, 1968: 15).
prudencial especifico. Em parte, esse imaginário institucional foi fornecido por nar-
rativas de construção social, auxiliadas por teses de teoria jurídica específicas sobre Seguindo os passos das teorias sociais darwinianas, o conceito de utilidade à so-
liderança, democracia e crise do liberalismo. edade (ao Estado, em última análise) servia de critério para a determinação do va-
h q humano; em nome do progresso, as pessoas deviam ficar irrestritamente à dispo-
Narrativas de construção e a racionalidade societária çiio do Estado, que receberia plenos poderes de controle`. A política populacional
da "jardinagem" e da engenharia social los nazistas era dominada por uma suposta "campanha de eutanásia" que envolvia
ir, grande número de médicos dedicados à tarefa de criar uma nova raça. A con-
Em segundo plano, havia questões de ambivalência, identidade e construção ío biomédica nazista baseava-se em idéias eugênicas comuns em boa parte do
social. Nietzsche havia afirmado, em tom de zombaria, que "o que caracteriza os ale- 1111 ido ocidental na década de 1920, e representava toda a nação alemã como um or-
mães é que, para eles, a pergunta'o que é um alemão?' nunca desaparece". Depois ';ino ameaçado por uma espécie de doença coletiva, uma ameaça potencialmen-
das guerras de libertação, Ernst Moritz Arndt havia oferecido uma definição ambí-
gua: "Onde quer que se ouça a língua alemã, onde quer que Deus entoe [canções]
11. Como dizia um manual de treinamento dos SS: "Chega-se a uma posição insustentável sempre
em alemão, será a isso, valoroso povo germânico, que chamarás de teu." A luz do [ado, a relação entre o eficiente e o ineficiente assume uma forma doentia. A nação precisa gastar
desenvolvimento político da Suíça e da Holanda, isso já era anacrônico por volta de ncrgia e dinheiro para lidar com os deficientes, os criminosos e os anti-sociais. Se esses exemplos de
1913, mas a imagem da libertação da pátria era fundamental ao apelo nazista`. Em- I:Iriedade deficiente fossem eliminados, grandes somas de dinheiro seriam poupadas e poderiam ser-
SI] fins mais produtivos. Um Estado responsável deve dedicar toda sua atenção aos projetos de man-
prosperar os que têm boas origens. Nas sociedades primitivas, a comunidade se livra dos débeis e
41. Os membros da Juventude Hitierista eram disciplinados por meio do uso de uniformes, do hastes- 1 ilss. F\Ls chamadas nações civilizadas, uma falsa atitude de amor fraternal, que a Igreja tem sido espe-
mento de bandeiras, da participação em comemorações em homenagem a heróis e do canto. Uma canção tí- ,.elosa em estimular entre as grandes massas, funciona em direta oposição ao processo seletivo."
pica da época traz os seguintes versos: tulio trecho esclarece bem a aplicação prática das teorias aceitas:
Pátria sagrada em perigo, Duas coisas são essenciais à criação e manutenção de uma raça saudável. Não apenas o fator da heredil.
Teus filhos cerram fileiras ao teu redor. e deve ser incansavelmente defendido; é preciso, também, criar um meio ambiente favorável a essa "raçe" '''1
Antes que forasteiros roubem tuas glórias, 1 slc.snçado se a comunidade toda se alinhar conscientemente a esse princípio (o princípio da reprc IIçuL.
Alemanha, morreremos todos por ti. til is .de seus membros conduzir sua vida de acordo com tal perspectiva (citado deKrausnick r1 viti,
360 Filosofia do direito
Weber, Nietzsche e o Holocausto 361
te fatal a uma sociedade que fora saudável no passado. A tarefa nazista consistia em juestão de raça, não de religião. ( ... ) Um anti-semitismo razoável (..) deve levai a uma
fortalecer o povo alemão ao eliminar todas as fontes de corrupção - que era associa- campanha sistemática e legitima que vise à eliminação dos privilégios dos quais os ju-
da sobretudo aos judeus, mas evidentemente também aos deficientes mentais, aos deus desfrutam - ao contrário de outros estrangeiros que vivem entre nós, que se sub-
doentes incuráveis e aos loucos. As teorias nazistas cunharam o termo "biocracia" mctcin às leis aplicadas aos estrangeiros. O objetivo final desse anti-semitismo deve ser,
para denotar um modelo semelhante à teocracia, um Estado comprometido com a 11 cTur'sIionavelmente, a expulsão dos judeus.
purificação e a revitalização, seguro como se uma força divina dirigisse seus atos.
Começando com as crianças, os nazistas estimularam e dirigiram um programa No rn a nifesto do partido nazista de 24 de fevereiro de 1920, o objetivo de Hitler
de assassinato sistemático das que apresentassem deficiências físicas ou mentais, ter- mu citado tornou-se a posição oficial, como o especificam os pontos 4 e 5:
minando por usar câmaras de gás para livrar o Reich das que fossem consideradas
"indignas de viver". Os cálculos aproximados do número de mortos são incertos - Ponto 4: A cidadania de Estado só pode ser reivindicada pelos nativos, e somente
em parte devido ao fato de que muitos médicos eram autorizados a prosseguir com aqueles de sangue alemão, a despeito de crença religiosa, são considerados nativos. Por-
o sistema depois que a campanha foi oficialmente interrompida -, mas em geral se tanto, nenhum judeu pode ser nativo.
admite que o total de mortos ficou entre 80 e 100 mil. Essa técnica foi precursora 1 'unto 5: Os que não têm cidadania de Estado só podem viver na Alemanha como
da "solução final"; instituiu o assassinato organizado das pessoas como parte de visitantes, e devem submeter-se às leis que se aplicam aos estrangeiros (citado de Kraus-
suas operações, concentrando-se sobretudo nos judeus, e desenvolveu métodos tick ei alii, 1968: 21).
de matar e treinar pessoal que terminariam por organizar muitos dos campos de con-
centração do Ocidente europeu. Tinto o direito positivo quanto a regulamentação governamental tornaram-se
Ainda que as idéias sociais darwinistas tenham servido para intensificar as con- .1 i u irientos
dessa política.
cepções anti-semíticas, é preciso lembrar que o anti-semitismo organizado deu sinais
de enfraquecimento no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. A partir
de 1916, o anti-semitismo se tomou mais intenso à medida que a situação militar e O USO DO DIREITO PARA TRANSFORMAR OS JUDEUS
econômica se deteriorava, particularmente depois do colapso militar de 1918.Vastos EM MATERIAL SUBUMANO
segmentos da população alemã acreditavam, erradamente, que tudo ia bem com o es-
forço de guerra até o colapso final, o que levou a uma busca de algum fator oculto 1) uso do direito fazia parte do que Goldhagen chama de tríplice ataque à exis-
que servisse de causa. A derrota militar, a queda da monarquia, a depressão econô- social dos judeus, envolvendo a propaganda anti-semítica, os maus-tratos fi-
mica, os julgamentos da política interna e externa numa democracia "importada", a a separação legal. O objetivo consistia em transformar os judeus em "seres so-
relutância de muitas pessoas em tentar entender os avanços mais recentes e acei- ldIn te mortos, seres perante os quais os alemães tinham poucos deveres morais,
tá-los - tudo isso foi um solo fértil para a mensagem de Hitler. lhum, e que eram tidos em conta de pessoas totalmente desprezíveis, na ver-
A retórica do Führer enfatizava o perigo coletivo e a necessidade de distinguir os incapazes de qualquer honra" (Goldhagen, 1996: discussão 137 ss.).
amigos dos inimigos`. Hitler já havia esclarecido a "base intelectual-racional" de seu ma das estratégias era uma campanha publicitária sobre os judeus cujo tema
anti-semitismo, e de que modo pretendia alcançar seu objetivo, numa carta de 16 de 1 tprescntação destes como criaturas subumanas que eram a fonte do mal. Essa
setembro de 1919:
linda verbal contra os judeus" ajudou a transformá-los em seres de menor im-
i 11 cia social, preparando os alemães para medidas de eliminação ainda mais
O anti-semitismo como movimento político não pode nem deve basear-se em
emoções fugidias, mas sim na aceitação de um fato - e esse fato é que o judaísmo é uma ca e, ao induzir os judeus a emigrar, a reduzir sua influência.
ma segunda estratégia era a agressão física concreta aos judeus. O regime per
va, estimulava ou tolerava a violência contra eles (desde ataques físicos i q
43. Como ele declarou expressamente num discurso de 13 de agosto de 1920, dominado pela "questão nomento e degradação ritualística, por parte de funcionários locais, ati, u má1
judaica": "Estamos convencidos de que nosso guia deve ser o anti-semitismo, que reconhece claramente o
terrível perigo que a raça representa para nosso povo; as grandes massas, que irão sempre reagir emocional-
asos, campanhas de violência e terror organizadas pelo governo r, 1
mente, devem ser inicialmente conscientizadas sobre o judeu como a pessoa que, na vida cotidiana, está i reeramento nos campos de concentração). Essas demonstraçn vam
sempre e por toda parte abrindo caminho à força -. nossa tarefa deve consistir em despertar o instinto das j u 1 'os não eram membros da comunidade moral, •e que i- iiiis ,, iiç , iii devia ter
massas contra os judeus, incitá-lo e mantê-lo em ebulição até que se decida a apoiar o movimento que está om clos os sentimentos normais de solidariedade e conipiixo.As agressões
pronto para assumir as conseqüências" (citado em Krausnick et alii, 1968).
l'm .Ileriam o horrível destino que talvez aguardasse o judous.
362 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 363
Por trás desse pano de fundo, estava em pleno andamento uma separação social nários públicos, inclusive as autoridades judiciais? Os nazistas promulgaram uma lei
cada vez maior, jurídica e administrativamente aprovada, entre judeus e alemães. para os funcionários públicos que prescrevia claramente a lealdade de todos eles.
Goldhagen refere-se a esse fato como Junto com os decretos subseqüentes, as leis de Nuremberg definiram o que era
um judeu e estabeleceram um claro entendimento nacional sobre quais pessoas de-
( ... ) O equivalente não-verbal que mais se aproximava da violência física; ao contrá- viam submeter-se aos decretos e leis que regulamentavam a vida dos judeus. Os cri-
rio da maioria das medidas contra os judeus que vieram a adotar, os alemães puseram térios de definição baseavam-se essencialmente no sangue, não na identidade reli-
isso em prática quase a partir do momento em que os nazistas chegaram ao poder, e giosa. A legalidade alemã (nazista) considerava como judias as pessoas que (devido
nunca aplacaram esse programa, que na verdade intensificaram ao longo das décadas às conversões de seus pais) eram cristãs se uma parte indispensável de seus ancestrais
de 1930 e 40. O progresso da exclusão gradual e sistemática dos judeus de todas as es- fosse judaica - pouco importando se não tivessem nenhuma identificação psicológi-
feras da sociedade - política, social, econômica e cultural - era tão doloroso quanto era ca, ou de outra natureza social, com coisas judaicas. As leis de Nuremberg também
punitiva a opressão em que os mergulhava (ibid.: 139). privavam os judeus de cidadania e proibiam novos casamentos e relações sexuais ex-
traconjugais entre judeus e não-judeus. A lei era ao mesmo tempo instrumental e
Goldhagen relata que os alemães começaram a excluir os judeus das ativida- expressiva; suas classificações simbolizavam e expressavam a tese da diferença e da
des governamentais uma semana depois do boicote de 1? de abril de 1933, por meio inferioridade. As leis, os regulamentos e as medidas da década de 30 roubaram aos
da Lei de Restauração do Funcionalismo Público de 7 de abril, e eles também foram judeus seus meios de subsistência, empobreceram-nos e desmoralizaram-nos, iso-
afastados de muitas profissões nas semanas que se seguiram. A exclusão dos judeus lando-os do conjunto da sociedade em cujo âmbito moviam-se livremente até bem
da economia prosseguiu nos primeiros anos do regime, do modo como a saúde fi- poucos anos. Tornaram os judeus socialmente mortos, transformando-os num ma-
nanceira do regime o permitia, e intensificou-se em 1938. Em 22 de setembro de terial subumano, ervas daninhas que precisavam ser arrancadas do jardim.
1933, os alemães afastaram os judeus das esferas culturais e da imprensa, que mui-
tos consideravam especialmente envenenadas por eles. Em seguida, a administra-
ção nazista proscreveu praticamente todos os aspectos das relações gerais entre ju- O PAPEL DA TEORIA JURÍDICA NA CRIAÇÃO DO IMAGINÁRIO
deus e alemães, assim como importantes práticas religiosas judaicas, publicando um INSTITUCIONAL DA ERA NAZISTA: O EXEMPLO DE CARL SCHMIFI
dilúvio de leis restritivas que determinavam o que os judeus podiam ou não fazer.
Essas leis proibiram o abate ritual logo depois de iniciada a era nazista em 22 de abril A legalidade do governo do Terceiro Reich decorria do sistema institucional da
de 1933, algo que, por se tratar de uma prática definidora do povo judaico, só podia República de Weímar que o precedeu. Hitler foi eleito Reichskanzler [chanceler do
ser entendido como uma declaração de que a condição judaica era uma violação da Reich] em 1933, de acordo com a Constituição de Weimar, e depois de uma série de
ordem e das normas morais da sociedade. Quase 2 mil leis e normas administrativas incidentes dramáticos (provavelmente instigados pelos nazistas, culminando no in-
foram criadas para degradar e tomar ainda mais miseráveis os judeus alemães. cêndio do edifício do Reichstag [Parlamento] em fevereiro de 1933), o já idoso presi-
O historiador Michael Marrus (1989: 27) argumenta que a resposta legal mediou dente von Hindenburg - colocado sob extrema pressão - concordou que o momento
tendências contrastantes para com os judeus por parte dos nazistas, logo depois de era de emergência nacional e atribuiu a Hitler, na condição de Reichskanzler, poderes
estes terem chegado ao poder. Por um lado, membros de tropas de assalto em uni- pata governar por decretos de emergência. Esses poderes foram confirmados e con-
forme pardo e ativistas do partido engajaram-se em agressões físicas aos judeus; por lidados por uma votação no Reichstag no dia 24 de março, e desde então foram re-
outro, conquanto quisessem ver os judeus excluídos da sociedade alemã, elementos novados a cada quatro anos pelo Reichstag nazista.
mais conservadores do movimento nazista preocupavam-se com possíveis danos à O nacional-socialismo alemão tinha um forte núcleo ideológico que enfatizava
economia e à reputação internacional da Alemanha. O direito fornecia os mecanis- destino histórico e a necessidade de uma liderança forte. Sejamos claros: o Estado
azista opunha-se expressamente à tradição de liberalismo enquanto tema
mos para se direcionar a perseguição "a partir do centro", com as leis de Nuremberg tador de discursos constitutivos da modernidade. O liberalismo parece nega ra 1 1
de setembro de 1935 estabelecendo a estrutura jurídica para que uma campanha de cssidade de unidade expressiva e a identificação entre povo e Estado (a Coin;lii 11 ,1
"arianização" organizasse o confisco das propriedades judaicas. A "legalidade" das çio legal)`; ao contrário, o corpo social é cada vez mais representado com i i
medidas assegurava que os setores da população que se opunham aos nazistas po-
diam sentir-se confortáveis diante as campanhas. O historiador alemão Christof
Dipper conclui que entre a maioria dos adversários conservadores dos nazistas "a 44. Ainda que, como neste livro se discute a propósito de John Stuart Mill e em[ ih
privação burocrática e pseudojurídica que se praticou contra os judeus até 1938 era lil , eralismo se fundamente numa identificação tácita com o povoe possa ser reformulado
tida como aceitável" (citado de Marrus, 1989: 91). De que modo reagiriam os funcio- isto é, como uma tese sobre o bem-viver.
II
to número de esferas econômicas, políticas, científicas, éticas, religiosas e culturais minação da heterogeneidade. Sua afirmação é simples: para que as democracias exis-
relatamente autônomas, diferenciando-se mutuamente e capazes de autodireção se Iam, devem excluir tudo que ameace sua homogeneidade. Por outro lado, o libera-
deixadas em mãos da "livre" interação dos indivíduos que delas participam. Para a lismo oferece a idéia da igualdade de todas as pessoas enquanto pessoas, mas
narrativa liberal da modernidade, a liberdade (social) encontra-se na própria dife- chmitt acredita que esse princípio não passa de uma ética humanitária individua-
renciação dessas esferas, e o Estado não deve tentar submetê-las a formas de do- lista, não tendo força suficiente para servir de base à organização política. Uma vez
minação ou governo corporativo (como no fascismo e no marxismo). Ao contrário jue se defina a democracia desse modo, segue-se que procurar uma democracia de
disso, o nazismo concebia o Estado como um corpo coletivo com uma hierarquia de ;eres humanos equivaleria a impor uma igualdade absoluta às pessoas - uma pa-
estruturas autoritárias administradas por membros do partido, com um líder forte à dronização -, o que as privaria da diferença e da individualidade, destruindo sua cria-
frente. A idéia tinha por alvo o "domínio racional" do destino da nação e do povo, o ividade. O sufrágio universal e igual só é possível numa sociedade de iguais, uma vez
princípio político fundamental era o da liderança, e cabia ao líder levar a nação a seu IUC é somente quando essa homogeneidade natural fornece as bases que os direitos
destino. Em essência, enquanto o liberalismo implicava que a questão mesma era iguais fazem sentido. Desse modo, Schmitt racionaliza a oposição inclusão/exclusão,
perigosamente mal interpretada, o nacional-socialismo pretendia responder à per- no central às "democracias" dos primórdios da modernidade. Schmitt explicou
gunta "Como proceder a uma determinação coletiva dos objetivos do empenho hu- na prática, uma filosofia da igualdade humana universal legalista, juntamente
mano?" ao encarnar e reduzir a vontade geral do povo à vontade do partido e, em com sua teoria jurídica dos direitos iguais, depende da exclusão daqueles que não
última instância, à vontade do líder. A vontade deste é, portanto, a fonte original de 1 )ertenciam ao Estado.
legitimidade para a ordenação (para o direito). O princípio de liderança, ou Führer- Schmitt, portanto, concebe a democracia como um meio de responder a quês-
prinzip, determinava que cada nível da hierarquia era subordinado ao próximo, aci- Iões de legitimação e governo. A modernidade envolve o processo por meio do
ma, com Hitler no ápice. A vontade do líder não pode sujeitar-se a nenhuma limita- qual a humanidade assume o controle do mundo, submete-o à análise e, de modo
ção constitucional, uma vez que é, em última análise, a base dessas práticas formais, construtivo, cria uma nova ordem mundial. Até que ponto a nova ordem (ordena-
e o governo por meio do direito positivo (conforme determinado pelo Legislativo de ção) precisa de justificação? Estão em jogo apenas aqueles aspectos da ordem so-
Estado) era apenas um dentre vários expedientes de regulamentação que podiam ex- cial diretamente atribuíveis à construção e constituição através de normas delibe-
pressar a vontade do líder e do partido. radamente instituídas?` Neste caso negamos que os resultados das "ordenações
cccultas", como o mercado, precisem de legitimação (por serem vistas, de certo modo,
A crítica de Cari Schmitt da democracia parlamentar como "naturais"), enquanto o direito fica exposto a uma pesadíssima exigência de
da república da década de 1920 1 egitimação? Quanto controle é desejável? Ou viável? Schmitt - por força de sua
metafísica católica, com sua ideologia implícita de um cosmo sujeito, em última
Cari Schmitt` , o teórico católico (e posteriormente nazista) do direito, foi um crí- istância, ao controle de Deus e do homem em seus domínios respectivos - não
tico implacável das primeiras tentativas modernas de criar a democracia liberal. Seu 1ode oferecer a abertura do liberalismo como resposta. Em vez disso, a democracia
C vista como o movimento que assegura o controle do corpo social deve ser exerci-
famoso livro The Crisis of Parliamentary Democracy (1923), cujos temas foram retoma-
cIO pelo povo, e esse controle deve ser abrangente. Porém, como pode esse contro-
dos de outra obra sua, Political Romanticism (1919), baseava-se em sua teoria de uma
oposição entre liberalismo e democracia. A natureza contraditória da moderna de- 1 e ser funcional, e como pode a democracia ser possível se não existe um conjun-
mocracia de massas devia-se à oposição entre certas implicações inerentes à natu- 1 c) comum de valores políticos em suas bases? Numa leitura limitada dessa ques-
reza prática da democracia e aquelas do liberalismo. 1 3o, Schmitt argumenta que a moderna democracia de massas confunde o dejn
Schmitt define a democracia como o princípio de que os iguais devem ser tra- liberal de igualdade humana e a exigência nuclear da forma política democnulkn
tados igualmente, o que, em sua opinião, implica necessariamente que os desiguais ue nos permita identificar, em conjunto, governados e governantes. Assim, Ç 1 i i.
não devam ser tratados com igualdade. Como, então, pode haver coerência numa so- Ç' [e, havia encontrado a razão pela qual a democracia liberal na Alemanhi c,Im\•'
ciedade formada por uma pluralidade de grupos e interesses? A resposta de Schmitt m crise; em parte, isso se devia a uma confusão entre análise política e fil c c c li 1
é desagradável: a democracia requer homogeneidade, o que só existe a partir da eh- cdica, por um lado, e desejo social e páthos humano por outro. Enquan mmliv
cl ualismo liberal é, em essência, um desejo moral, a tarefa de governar i 1 li'
45. Cari Schmitt era um ano mais velho que Hitler, mas sobreviveu a ele, tendo falecido em 1986 aos
97 anos de idade. Seus escritos provocativos constituíram uma divisão intelectual básica para a reflexão inte- 46. O direito positivo, definido como ordens do centro político na opinião de AustIn; ni II cii ccl
lectual alemã. ii o i ruas jurídicas segundo Weber e Kelsen.
366 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 367
- inclusive uma democracia - exige sentimentos ditados fundamentalmente por sociedade em face das múltiplas pressões da média modernidade. Com o desapa-
ideais políticos e guiados por uma rigorosa análise filosófica. recimento das antigas certezas, era preciso reconstruir tudo de novo através da or-
Schmitt afirma que a luta do século XIX contra o absolutismo real e o objetivo de ganização, mas isso não seria feito dentro do padrão liberal (ideal) das práticas au-
criar uma identidade nacional haviam impedido que a contradição entre liberalismo todeterminadas ligadas apenas pela interação funcional e pela livre comunicação;
e democracia se revelasse abertamente. Contudo, a crise que a república alemã vinha ao contrário, estava em jogo um processo de tomada central de decisões e de co-
enfrentando era, em sua base, a inevitável contradição dos desejos de individualismo municação a partir do centro (a propaganda). Para usarmos as palavras de Wagner
liberal e da necessidade de homogeneidade democrática. (1994: 69), essa forma de organização significava hierarquização, e esta significava
A democracia parlamentar continha objetivos irrealizáveis, e os regimes que fo- exclusão. Aqueles que se encontrassem no fundo ou às margens do domínio das prá-
ram estabelecidos em seu nome eram uniões instáveis entre dois princípios políticos ticas organizadas freqüentemente sofriam mais do que antes. Para pôr esse processo
completamente heterogêneos. Um desses princípios era a identidade entre povo e em prática, os recursos tecnológicos estavam à mão.
Estado inerente à forma democrática de governo; outro era o modo absolutista de re-
presentação específico da monarquia. Schmitt desancava a República de Weimar [Auschwitz] era também uma extensão rotineira do sistema fabril moderno. Em vez
como um frágil sistema híbrido produzido pelo meio-termo que a burguesia liberal de produzir bens, a matéria-prima eram seres humanos e o produto final era a morte; o
conseguiu estabelecer entre a tradição histórica de monarquia absoluta e a luta pela número de unidades diárias era cuidadosamente registrado nos gráficos de produção.
democracia proletária a fim de aglutinar dois princípios opostos de governo em for- As chaminés, símbolos do sistema fabril moderno, lançavam urna fumaça acre produzi-
ma de um edifício impotente`. Enquanto democracia, a democracia de massas dos da por carne humana queimada. A perfeita organização da moderna rede ferroviária eu-
primórdios do século XX tenta concretizar uma identidade de governados e gover- ropéia levava um novo tipo de matéria-prima para as fábricas. E o fazia como se trans-
nantes, e desse modo coloca como anacrônica a instituição do Parlamento represen- portasse qualquer outro tipo de carga. Nas câmaras de gás, as vitimas inalavam um gás
tativo. Se a identidade democrática for levada a sério, numa emergência nenhuma venenoso que em geral provinha de cápsulas de ácido cianídrico produzidas pela indús-
outra instituição constitucional pode satisfazer o critério único da vontade do povo, tria química alemã avançada. Engenheiros projetaram os crematórios; administradores
seja qual for sua forma de expressão. Particularmente, em tempos de crise, o Estado conceberam o sistema burocrático que funcionava com um dinamismo e uma eficiência
deve ser capaz de agir rápida e decisivamente; o poder deve incorporar-se à pessoa que deixariam com inveja as nações mais atrasadas. O próprio plano geral era um refle-
xo do moderno espírito científico às avessas. O que ali se via era nada menos que um gi-
do líder". Somente assim o amigo de uma nação pode ser claramente diferenciado do gantesco esquema de engenharia social... (Feingold, citado em Bauman, 1989: 8).
inimigo, para que se possa tomar o devido curso de ação.
Bauman vai direto ao ponto:
O HOLOCAUSTO COMO PARIE DA RACIONALIZAÇÃO
GERAL DA MODERNIDADE A verdade é que cada ingrediente do Holocausto - todas as muitas coisas que o tor-
naram possível - era normal; normal não no sentido do conhecido, de mais um espéci-
Social e politicamente, portanto, o Holocausto fez parte de um processo no qual me numa grande classe de fenômenos há muito tempo descritos em todos os seus as-
pectos, explicados e conciliados (ao contrário, a experiência do Holocausto era nova
um corpo coletivo (o Estado nazista) dedicou-se ao problema de construir uma nova e desconhecida), mas no sentido de estar em conformidade com tudo que sabemos so-
bre nossa civilização, seu espírito condutor, suas prioridades, sua visão de mundo ima-
nente - e de observar as maneiras ideais de buscar a felicidade humana juntamente com
47. Entre os países industrializados, a Alemanha tinha uma constituição política única. Na Inglaterra, uma sociedade perfeita (1989: 8).
na França e nos Estados Unidos, urna classe média política e economicamente poderosa (e quase sempre li-
beral) havia levado a uma combinação entre unidade nacional e liberdades civis, mas a Alemanha se funda-
ra sobre os fragmentos que a Guerra dos Trinta Anos e a paz de Westfália haviam deixado para trás do "Sa-
cro Império Romano da Nação Alemã". Não admira que Hegel tenha celebrado o advento de Napoleão, uma O DISCIPLINAMENTO DOS GUARDAS DOS CAMPOS
vez que este permitiu o primeiro desenvolvimento do império originário da Idade Média, no sentido da so- E DOS HOMENS DAS SS
berania do Estado. O Estado alemão, porém, era constituído por uma multiplicidade de Estados de porte mé-
dio, o que dificultava a prática de uma ação coesa. O Holocausto não poderia ter ocorrido sem a destruição das qualidades de so-
48.Se os preconceitos históricos da classe média alemã (a Bürgertum) foram formados por alguma ex-
periência, esta foi sem dúvida a tradição, no século XIX, de configurar o nacionalismo alemão "a partir de idariedade e empatia que Hume e outros entendiam como bases da vída moral. Pro-
cima", particularmente através do princípio do "primado da política externa", que em última instância assu- uganda, direito e prática de desumanização - tudo tinha um papel.) desempenhar.
miu a forma de guerra, ou de "sangue e ferro". 1 iu primeiro plano - nas pessoas (isto é, nas mentes e nos corpos) daqueles que ad-
368 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 369
ministravam os campos de morte e participavam dos fuzilamentos -, a disciplina do ambos freqüentemente aplicados a casos idênticos; regulamentos normais e apa-
predominante passava do exército para o corpo social, como indicara Weber. Admi- rentemente oficiais eram emitidos por razões técnicas, organizacionais ou discipli-.
nistrar os campos, tão decisivos para a "solução final", era privilégio das SS. E o ho- nares, ou para conferir substância ao sonho da ordem da cavalaria; por outro lado,
mem das SS não era uma excrescência patológica; era um sujeito disciplinado de uma Objetivos políticos compatíveis com regras não-normais foram estabelecidos e al-
modernidade parcial. Para chegar a esse indivíduo disciplinado, o treinamento mi- ançados, trazendo consigo a necessidade de passar por cima de todas as regulamen-
1 ações normais que se apresentam. Em muitos casos, porém, fez-se uma tentativa
litar baseado na "dureza" degenerou num sistema desumano de humilhação de uma
pessoa`. As humilhações às-quais o recruta das SS era submetido eram semelhantes de dar às medidas extraconstitucionais alguma forma de camuflagem jurídica; por
àquelas impostas aos reclusos de um campo de concentração (exemplos apresentados li rn, tornou-se prática corrente dar às autoridades das SS os direitos e prerrogativas
Ias instituições oficiais do Estado, a fim de ajudá-las a alcançar algum objetivo não-
e discutidos em Krausnick et alíi, 1968: 340-1).A disciplina levava à obediência atra-
vés da brutalidade. A solução final permitia pouca iniciativa ou compaixão pessoal". Oficial. Em 1937, por exemplo, na condição de inspetor dos campos de concentra-
a'), Eicke proibiu que os prisioneiros fossem maltratados pelos guardas, afirmando:
O sucesso da solução final exigia o dísciplinamento de seus operadores; para os casos
de indisciplina, de rompimento das normas assim criadas, havia o direito nazista`.
Ainda que, como nacional~ socialista, eu me solidarize naturalmente com esse tipo
Com o passar dos anos, desenvolveu-se nas SS uma inextricável confusão de de ação, não posso e não devo tolerar tal comportamento; de outro modo, estaremos cor-
regras e regulamentos "normais" ou "oficiais", e "não-normais" ou "não-oficiais", sen- rendo o risco de ser acusados, pelo Ministério do Interior do Reich, de incapazes para li-
dar com prisioneiros (citado em Krausnick et alii, 1968: 353).
49.Os campos de concentração e o tratamento dispensado a seus prisioneiros começaram como uma A cada três meses, os membros das unidades de guarda tinham de assinar uma
forma de militarismo - pelo menos até 1942, quando os campos se tornaram definitivamente instituições de
leclaração de que estavam cientes de que não deviam maltratar os prisioneiros; to-
trabalho forçado. Antes disso, o objetivo aparente desses campos era a reeducação dos adversários políticos
do nazismo, e os homens das AS (tropas de choque) e.das SS (tropas de elite) que os dirigiam praticavam avia, as ações arbitrárias e a crueldade eram práticas comuns e sistemáticas. Os
treinamento militar com os prisioneiros. Impos de concentração criavam um terreno em que ação e comportamento regula-
50. Outro exemplo da centralidade da disciplina racional é uma ordem emitida por Himmler em 16 de ii /iI(lr e não-regulamentar se sobrepunham. Pertenciam ao âmbito da autoridade es-
agosto de 1935, proibindo atos individuais independentes contra os judeus: "1. Qualquer ato individual in- 1 sial; não obstante, todos os tipos de regras aparentemente normais eram neles im-
dependente contra os judeus por qualquer membro das SS é expressamente proibido. 2. A solução do pro-
las, sem que também se criassem salvaguardas que protegessem os reclusos. Os
blema judaico, bem como de quaisquer outros problemas, diz respeito ao Führer, e não a indivíduos isolados. .1 oneiros mais importantes eram até certo ponto protegidos contra atos arbitrá-
3. Qualquer contravenção desta ordem, inclusive a menor delas, será punida com a expulsão das SS"
51. Em 9 de junho de 1943, as SS e o Tribunal de Polícia julgou um SS-Untersturmfiihrer que, em cir- praticados pelos guardas, mas a qualquer momento uma pessoa poderia ver-se
cunstâncias atrozes, assassinara centenas de judeus com as próprias mãos. Eis os termos do julgamento: "O i( vida para a massa sem rosto dos prisioneiros que não contavam com proteção
acusado não deve ser punido por suas ações contra os judeus enquanto tais. Os judeus devem ser extermina- ia (ver relato de Primo Levi [1987] em If Thís Is a Man e The Truce [A trégua]).
dos, e não é preciso derramar lágrimas por nenhum dos que foram mortos pelo acusado. Embora o acusado
devesse ter conhecimento de que a aniquilação dos judeus é trabalho de comandos especialmente formado
para este fim, conta a seu favor o fato de ter se sentido competente para participar da aniquilação dos judeu
O motivo principal que levou o acusado a agir desse modo foi o ódio genuíno que ele sente pelos judeus. Nã
A FILOSOFIA DO DIREITO E A REAÇÃO AO
obstante, em Alexandria ele cedeu à tentação de praticar atrocidades indignas de um alemão ou de um co REGIME NAZISTA E AO HOLOCAUSTO
mandante das SS. Tais excessos não podem ser justificados pela afirmação, como a que fez o acusado, de qil
elas são uma recompensa justa pelos prejuízos que os judeus causaram ao povo alemão. Por mais necessál L.I 1 d ticil compreender o choque existencial ocasionado pela derrocada dos Mil
que seja a aniquilação do maior inimigo de nosso povo, não é costume dos alemães recorrer a métodos boi de Reich e pela conseqüente descoberta das atrocidades praticadas em seu
chevistas para levá-la a cabo. E os métodos adotados pelo acusado se assemelham muito aos do bolchevi
mo. O acusado permitiu que seus homens se brutalizassem a tal ponto que, seguindo seu exemplo, agirli
'.Como diz Wallershoff (1985: 340), para a juventude alemã que acorrera aos
como uma horda de bárbaros. O comportamento do acusado constitui o mais grave dos riscos imagináv j os de batalha por acreditar que o momento lhes oferecia uma oportu i ida de
que a disciplina pode correr. Ainda que, em outras circunstâncias, o acusado possa ter cuidado de seus bili ilica de grandeza e pureza, só restaram o choque e o pesar: "Todos os sacrilíci
mens, seu comportamento constitui um abandono grosseiro de seu dever enquanto líder, parte do qual, li irnentos dessa guerra não tinham sido apenas em vão, mas igualineritt lilailir
olhos das SS, consiste em preservar o padrão moral de seus homens. Por essa razão, portanto, o acusado H falsos. Não havíamos apenas perdido, mas também lutado por u rua ci i;; vil."
nou-se passível de punição nos termos do parágrafo 147 do Código de Direito Ivlilitar. A sentença máaii
Nia esfera da filosofia do direito, o choque dizia respeito à relal ivi da (11' t 1> dli>
prevista por tal parágrafo, contudo, é de 15 anos de prisão; tendo em vista que tamanha infração da dis
na pede uma sentença mais severa, deve-se aplicar o parágrafo 5A do Código Especial de Punição em liii los conceitos jurídicos. O direito positivo foi exposto como oinslruuenln iuiih>
po de Guerra" (extraído de Bachheim, "Command and Compliance", em Krausnick ci alii, 1968: 251-2), Io uma justificativa para legislar que obtivera poder ideológico. lIra Iit il li
370 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 371
ao fato de que, de uma perspectiva jurídico-positiva, os decretos promulgados pe- jurídicas do que determiná-la de modo justo e expediente" (ibid.: 108). Após o colap-
los nazistas configuravam um direito válido. Mesmo o Holocausto tornou-se uma o do Terceiro Reich, Radbruch passou a argumentar que o positivismo jurídico dei-
possibilidade jurídica amparada pelo fato de ter sido praticado em nome do bem ura os juristas alemães indefesos contra os nazistas, e que o direito devia atender a
(nazista). Revendo a experiência do Holocausto, a escritora judia Hannah Arendt ei- los postulados absolutos a fim de tornar-se direito no sentido pleno do teimo. Em
(1963) cunhou a expressão "a banalidade do mal", com o que pretendia dizer que o particular, o direito exige algum reconhecimento da liberdade individual, e uma or-
regime nazista fora produto de modernas estruturas e constelações políticas que ri jurídica que negasse totalmente os direitos individuais seria "um direito abso-
usando todos os recursos do Estado moderno se mostraram capazes de justificar
- n mente falso" (1947: 27). Todavia, a nova fórmula de Radbruch para chegar a um
a escravidão e a opressão em nome do que seria, supostamente, um bem comum. A II líbrio entre justiça, expediência e certeza jurídica nada mais era que uma revisão
imagem legal do positivismo jurídico havia ajudado a fazer da perversidade do re- derada52. O direito natural era apenas um recurso para emergências.
gime nazista uma banalidade paulatinamente aceitável? Num exercício de meditação
pessoal, o teórico alemão Gustav Radbruch aparentemente pensava assim (cf dis-
cussão em Pock, 1962). A legitimação dos julgamentos de Nuremberg
Radbruch adotara o positivismo jurídico em grande parte por acreditar jun- -
tamente com a maioria dos teóricos alemães, como Kelsen (ver discussão nos ca- Que respostas dariam os Aliados vitoriosos? Que políticas iriam implantar? Em-
pítulos 12 e 14 deste livro) na relatividade dos valores reivindicados em nome da
-
ia as medidas tomadas para processar os líderes alemães por crimes de guerra de-
justiça. Num artigo publicado depois da guerra, Radbruch explicou sua posição do i da Primeira Guerra Mundial tivessem se mostrado ineficazes ou contraprodu-
modo como a apresentamos a seguir. O direito é um conjunto de regras gerais que mm Les53, decidiu-se criar um foro legal para haver-se com os nazistas que haviam sido
se ocupam da vida de todos os homens, e que tem por objetivo geral a busca dajus- mm ;os. Porém, enquanto o discurso dominante para consumo público remetia à ideo-
tiça; ocorre, porém, que a justiça é um conceito indeterminado. A justiça exige que mm ia do estado de direito, os objetivos dos julgamentos de Nuremberg não se limi-
os iguais sejam tratados igualmente e que os diferentes sejam tratados diferente- mrimn-i a simplesmente punir a liderança nazista. Havia outros interesses em pauta:
mente, mas isso, por sua vez, (i) requer um padrão que nos permita avaliar o que é
igualdade e diferença, e (ii) a justiça nada diz sobre o tipo de tratamento prático a ser li) A criação de um precedente que estabelecesse a "guerra de agressão" como
dispensado aos indivíduos. Portanto, é preciso complementá-la com outros conc& -
crime internacional;
tos essenciais, e Radbruch propõe dois: expediência e certeza legal. o0 a criação de um registro abrangente das atrocidades da Alemanha nazista;
Para legitimar um sistema jurídico flexível, precisamos levar em consideração a
expediência (ou a promoção de um objetivo concreto). Que tipo de objetivos ele con- 1H) um meio de restabelecer o princípio geral de direito na Alemanha através do
sidera? Radbruch propõe o objetivo de criar condições que aumentem a possibili- uso do processo judicial. (Memorando do juiz Jackson, em Harris, 1988: 867).
dade do desenvolvimento da personalidade humana individual (individualismo), a
busca do poder e da glória nacionais (supra-individualismo) ou a promoção da civi- Entre os aliados, porém, não havia uma posição consensual.
lização e das obras culturais (transpersonalização). A escolha era questão de prefe-
rência. Todavia, para impedir que a ordem jurídica se tornasse ineficiente devido ao
52."Deve-se privilegiar o domínio do direito positivo, sustentado como este é pela justa elaboração das
conflito de opiniões sociais e políticas, o certo e o errado devem ser determinados pelo poder do Estado, mesmo quando esse domínio for injusto e contrário ao bem-estar geral, a me-
com autoridade, e desse modo a justiça e a expediência precisam ser complementa- ue a violação da justiça se torne tão intolerável que as regras se tornem, de fato, um "direito sem lei" e
das pela idéia de certeza jurídica. Tal certeza requer a elaboração e a manutenção, .rn, portanto, capitular diante da justiça" (Rechtsphilosophie, 4 ed., 1950: 353).
pelo Estado, de uma ordem jurídico-positiva obrigatória; e isso deve ser feito por uma 53.Nos termos do tratado de paz de Versalhes de 1919, acordou-se que o Kaiser Guilherme II seria jul-
'r um tribunal internacional especialmente constituído, e que a Alemanha aceitava o direito dos Aba-
instância capaz de levar a cabo aquilo que determina" (1950: 108).
1—, ~ 1c Icvar a julgamento, perante tribunais militares nacionais ou internacionais, pessoas acusadas de ter
Cada elemento é exigido pela ordem jurídica, mas cada um leva para direções atos em violação do direito ou dos costumes de guerra, bem como um compromisso do governo
opostas. A certeza jurídica, por exemplo, requer leis fixas e estáveis, enquanto a jus- rie entregar tais pessoas a julgamento. O ex-Kaiser tinha fugido para os Países Baixos, que se recusa-
tiça e a expediência exigem que o sistema se adapte facilmente a novas circuns- mi i Depois que o governo alemão interrompeu a publicidade dos nomes dos indivíduos
tâncias sociais e econômicas. Não existe uma fórmula absoluta por meio da qual si los de crimes de guerra, os Aliados concordaram em permitir que os casos fossem julgados pela LIpre-
lute de Leipzig, mas os julgamentos eram ineficazes. Houve muitas absolvições de c1111u(los evidentes,
possa chegar ao devido equilíbrio. Antes da Segunda Guerra Mundial, Radbruch fa- denações dos que foram considerados culpados eram leves. Além disso, a imprensa e o público pa-
vorecia a certeza jurídica: "E mais importante pôr fim à discussão sobre concepções ver os condenados como heróis, e vários deles foram ajudados a fugir da prisão.
372 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 373
Colocavam-se duas questões jurídicas de extrema importância: a criação do Ao mesmo tempo que a questão era prática, no sentido de responder a atos es-
Tribunal e a legalidade dos atos nazistas. Os nazistas haviam infringido o direito exis- pecíficos, tentava preencher o vazio de sentido deixado pelo advento da ascensão e
tente? Que dizer dos nazistas que haviam praticado atrocidades porque estavam tieda dos Mil anos de Reích. Para Wellershoff, os alemães se viram sem nenhum
cumprindo ordens? A necessidade de dar uma resposta aos fatos se sobrepunha às os suportes que os nazistas haviam feito parecer tão razoáveis, tão inebriantes e...
considerações de legalidade, no sentido de somente punir se um direito determiná- l'clutores:
vel tivesse sido infringido? Que direito era esse?
Além do mais, de início parecia difícil evitar as acusações de que o Tribunal equi- [Agora nos damos conta de que] fomos, sem dúvida, os maiores idiotas - por con-
valia a impor a justiça dos vitoriosos a derrotados impotentes, ou refutar a acusação fiam tos tolamente numa necessidade comunitária e pela tentativa de conferir à vida um
de que os julgamentos eram ex post facto, no sentido de que puniam, com conheci- sentido que transcendia a existência cotidiana e atribuía a todos um lugar na totalidade
mento de causa, indivíduos cujos atos não haviam sido criminosos quando pratica- mais ampla. Que outras possibilidades de autodefinição havia? Famílias pequeno-bur-
dos. As acusações de crimes contra a paz e algumas das acusações abrangidas pela guesas, escolas, escritórios, fábricas - era isso a vida, era isso a identidade que se tinha?
expressão "crimes contra a humanidade" dificilmente podiam ser legitimadas pelo Isso não era modelo algum, projeto algum, tudo isso era imensamente limitado. A lin-
direito positivo. O Tribunal foi criado por uma Carta que oferecia legitimação, mas guagem de tambores e estandartes nos levou para longe do tédio - para uma transcen-
aos cínicos a estrutura toda equivalia a criar um novo direito em várias áreas e então, dência sanguinária. O sentido é o mais forte dos narcóticos; em seu nome, milhões per-
retroativamente, aplicá-lo". Um austiníano admitiria que, por um breve período, uma deram a vida (1986: 341-2).
forma de soberania internacional estava em operação - os Aliados tinham o poder e
a vontade política de criar as bases para a reinterpretação criativa do direito consue- A Alemanha não tinha a capacidade intelectual de conferir sentido, de encon-
tudinário internacional, de modo que criasse uma nova forma de direito positivo in- 1 , ii m pensamento jurídico que preenchesse o vazio do nazismo: "ao contrário, a
ternacional. Mas isso não implicaria que o Tribunal estivesse, portanto, criando um acidade de conferir sentido das potências vitoriosas não se havia exaurido". Po-
novo direito ao reunir-se? Contra esse ponto de vista, se se admitisse a legalidade LI s e, ser inglês ou norte-americano "sem culpa ou vergonha".
básica da iniciativa a jurisdição do Tribunal tornava-se facilmente defensável55. A le- lidavia, não foi como exercício social e político do poder conferido pela vitória
gitimidade dos procedimentos envolvia o fato de que a aplicação das "leis" que con- 1 i se moldar o sentido e o destino da imaginação constitucional da sociedade do
feriam uma estrutura substantiva às atividades do Tribunal dependia da validade, a .-guerra que o Tribunal de Nuremberg legitimou publicamente seus alicerces. Ao
fortiori, das leis concretamente aplicadas. irário, a imagem que se oferecia era a de que o legalismo se auto ~reproduzia, ou
Que tipo de concepção se deve ter da localização e dos procedimentos? Quais 1 simplesmente o reconhecimento do direito internacional consuetudinário56 .
são os contornos da teoria jurídica que deveríamos utilizar? A vitória poderia sig- É comum afirmar que a situação do pós-guerra provocou um renascimento do
nificar que a teoria jurídica dos vitoriosos pudesse apelar a Deus? A derrocada do i 'ito natural, mas isso não forneceu as bases para os julgamentos de Nuremberg
Reich havia provado que Deus não caminhara junto com o Reich - como o havia in- 1,— winpenharia um papel importante nos julgamentos dos criminosos de guerra ja-
dicado a expressão "Deus está conosco", gravada nas fivelas dos alemães -, mas sim 'li ieses em Tóquio, provocando o voto dissidente do juiz R. Pal, da índia, que acusa-
com os Aliados? John R. Roth coloca sucintamente a questão do poder histórico: direito natural de especificidade cultural [ver Shklar, 1964: 179-90]). Os atos do
er-
me nazista haviam certamente ofendido os valores éticos, mas a ideologia do di-
Tivesse prevalecido o poder nazista, a autoridade para determinar como devem sel
as coisas teria considerado que nenhuma lei foi infringida e nenhum crime contra a hu ii o natural parecia a muitos - como o juiz Pal argumentou especificamente - cl
manidade foi cometido no Holocausto. Contudo, permaneceria a questão de saber se as ilado subjetiva para fornecer as bases de um tribunal internacional. O senso
operações de trabalho escravo deviam ou não continuar, expandir-se ou ser interrompi
das. Essas decisões teriam sido tomadas em bases racionais (citado de Bauman, 1989: 7),
1 sgundo a história oficial, antes de os nazistas levarem acabo suas diferentes ações, uma séri. -i 1
e tratados internacionais, culminando no pacto de Paris de 1928 (ratificado pela Alri, i,ii i 1 i .
54. O Tribunal foi criado pelo Agreement for the Prosecution and Punishment of the Major War Crimin h ,dos os outros Estados) havia estabelecido uma norma de direito consuetudinário iriterrl 1 1 1
of the European Áxis, Charter of the Intemational Militaiy Tribunal, 8 de agosto de 1945, artigo 3,82 LJNTS 2'), 1 a guerra de agressão e considerava um crime individual a deflagração ou manutenç. ii
reimpresso em 39 AJIL 257 (1945). Essa convenção "reconhecia" certos direitos, e portanto crimes, que erin oo conhecimento de seu caráter e dispondo de liberdade de escolha. Sem dúvida, h iv''-. 1'
considerados como parte do direito consuetudinário. Por exemplo: o tribunal admitia que os crimes de gni mulgação de tal direito consuetudinário; a Convenção de Haia de 1907 forneceu tiii,'1'»''-
ra conforme os definia o artigo 6(b) da Carta de Nuremberg já eram reconhecidos como crimes de guerra ii básico. Porém, as acusações de crimes contra a humanidade, que incluíam o o''
o direito internacional (protegido pelas normas de Haia). onetidos contra populações civis, deportação, escravidão e crimes contra a paz cii»j,im 1
55. Por exemplo, por lorde Wright*, "War Crimes Under Intemational Law", 62 LQR 1946, p. 141, indamento para se considerar muitos dos eventos/ações como "crimes coIdi ii li,o 'o o'
'Robert Alderson Wright. (N. do T.) ii] cimento como agressões de acordo como direito criminal de todas as naçi 'o 'li/li
374 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 375
injustiça e horror fora despertado17: talvez o momento não fosse de reflexão filosófi- O legalismo, diz Shklar, é uma opção política; além disso, a pergunta "o que é
ca, mas de ação; uma estrutura política fora "liberada" do domínio nazista, era hora de o direito?" não é uma pergunta à qual os juristas possam responder, exatamente
introduzir a consciência ocidental de liberdade, responsabilidade e autodeterminação. por tratar-se de uma questão profundamente política.
Embora o direito natural parecesse muito vago enquanto base, poucos defendiam As duas definições de legalismo seguem direções opostas. Se o legalismo é ape-
uma fundamentação que viesse do realismo do positivismo jurídico austiniano. Vá- uma de uma série de técnicas sociais possíveis de se ordenar a sociedade, o que
rios advogados de defesa tentaram argumentar, inter alia, que seus clientes estavam o direito o "direito" de dominar métodos alternativos de ordenação? Além dis-
sendo julgados por um "direito sobre o assassinato ex post facto" (Gluek, 1946), mas ideologia da legalidade parecia oferecer-nos urna certeza moral completa em si
esse argumento não foi aceito. Poucos desejavam que o público compreendesse que i'ina. Quando Shklar afirma que o legalismo é uma opção política, ela parece es-
o Tribunal fora instituído sob nova autoridade, e que efetivamente criava uma nova juerendo dizer que é possível sacrificá-lo aos objetivos políticos antagônicos de
jurisprudência ao "reconhecer" o direito consuetudinário. A legalidade viu-se bastan- processar ou não os réus quando os desejos políticos das nações poderosas assim
te legitimada em termos de princípios jurídicos preexistentes, que eram inerentes aos 1 ('(enninam.
costumes de guerra e estavam simplesmente sendo mais bem articulados. Contudo, A conseqüência lógica da análise de Shklar - a de que, por ser o legalismo uma
não somente a existência concreta do Tribunal foi, em grande parte, obra de um só çdo política, é possível sacrificá-lo em nome de objetivos mais importantes - não
1 mensagem que Shklar nos está passando. Ela afirma que existem boas e más po-
homem - o juiz Jackson, que veio a ser juiz da Suprema Corte norte-americana -,
mas a operação toda do Acordo de Londres equivalia a uma legislação judicial.
1 1 , e bons e maus julgamentos políticos; Nuremberg foi um bom julgamento,
11) oferecido plena proteção legal aos réus`. Poucos argumentariam que Nurem-
iio foi um bom julgamento, porém quais são os critérios para distinguir os bons
A política e a imaginação da legalidade naus critérios? Shklar argumenta que a legalidade não tem critérios auto-refe-
11 e que o legalismo deve ser totalmente reduzido à política? Toda a base da
Em seu livro Legalism, Judith Shklar (1964, 2a ed., 1986) argumenta que os jul- .11 l ição nazista da democracia e do legalismo (liberal) na Alemanha do pré-guer-
gamentos demonstram a natureza política do legalismo liberal. Shklar distingue dois ii Forme explicou Goering (ver Neave, 1982), foi o fato de a legalidade ter deixa-
tipos de legalismo. O primeiro é uma atitude mental dos profissionais do direito e 1' ser necessária e de as políticas da democracia liberal serem menos importan-
dos filósofos do direito que introduzem uma separação entre legalidade e processos
l i os objetivos ultranacionalistas do nacional-socialismo. Para Shklar, se os Alia-
io tivessem utilizado os princípios clássicos do legalismo, teriam então perdido
sociais, e que resultou numa disposição mental em que a existência do direito e do
legalismo é dada por certa, definida e analisada como se isso pudesse ser feito em
III centrais da cultura que os diferenciava dos nazistas. Além disso, protagonis-
1 ive - de feitio kantiano -procuravam uma nova extensão do direito criminal
seus próprios termos.
11111 1 jurisdição internacional. Sem dúvida, Jackson percebeu a importância mais
Esse procedimento serviu para separar totalmente o direito do contexto social em iii mia do "crime de guerra de agressão" para a criação de um conceito e uma ca-
1 1.1 de direito que seria capaz de dar uma grande contribuição ao desenvolvimen-
que existe. O direito é dotado de sua própria história específica, integral de sua própria
"ciência" e seus próprios valores, que são tratados corno um único "bloco" e isolado; li o das relações internacionais e do direito. Shklar exige que compreendamos
da história social geral, da política e da moral... Esse hábito mental ( ... ) visa a preseiv III crio política e os objetivos políticos a ser alcançados como um aspecto ineren-
o direito de considerações irrelevantes, mas terminou por isolar o pensamento jurídin .1 1 ',nI;dade do processo. Havia necessidade de reafirmar o estado de direito de-
de todo contato com o resto do pensamento e experiência históricos (1964: 2-3). golpes que a idéia recebera dos nazistas; além do mais, o julgamento fun-
II ccmo um mecanismo comunicativo e lição histórica para o público norte-
O segundo é urna técnica social, "a atitude ética que sustenta que a conduin 11110, demonstrando que havia uma necessidade de que seu país interviesse
moral diz respeito à obediência às regras" (ibid.: 1). untos internacionais. Os trâmites legais e as provas testemunhais dos julga-
1111 1 odiam funcionar não apenas como um foro de verdade e princípios, mas
57. Para lorde Wright (1946), o desafio do Tribunal de Nuremberg consistia em responder ao horroi
contrado pelos vitoriosos: "Isso é chamado de 'direito natural' há muitíssimo tempo; em nossos dias, ti [\' iii dos ataques aos julgamentos de Nuremberg colocava-os como exercícios de justiça parcial,
seja mais fácil mencioná-lo como decorrência do senso instintivo de certo e errado que todos os homei 11111111), no sentido de que os vencidos estavam sendo julgados nos tribunais dos vencedores, ii
centes possuem, ou descrevê-lo como algo que deriva dos princípios comuns a todas as nações civilb,l'L. 1 1 pie não receberiam um tratamento justo e objetivo. Todavia, à medida que os julgamei ii
Constitui, ou deveria constituir, o fundamento básico de todo o direito." Wright estava mais enredanti» procedimentos e a qualidade dos argumentos e deliberações demonstraram sua obj 1 vi, Li,
em retórica do que especificando a base exata desses sentidos "instintivos" de certo e errado. Ii, Ii, le,
376 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 377
também neutralizar tendências da cultura política norte-americana, tradicionalmen- Os pontos conflitantes entre Hart e Fuiler tinham por base um breve relato que
te isolacionista; não intervir poderia então ser apresentado como fechar os olhos às implicava, de modo equivocado, que o tribunal do pós-guerra decidira que as leis em
atrocidades. questão eram formalmente inválidas devido a sua substância imoral. O argumento
A argumentação de Shklar está em desacordo com o aparente raciocínio lega- Hart (1958) era relativamente simples: cada sociedade tem uma prática socioló-
lista do próprio Tribunal e de muitos analistas do pós-guerra. Faz eco a uma linha de nica particular por meio da qual "reconhece o direito", e as leis criadas na Alemanha
realismo semelhante ao de Austin, e serve de contradiscurso ao forte positivismo i iizista, a despeito de sua natureza opressiva ou imoral, foram criadas metodologi-
jurídico da época em que ela escreveu. camente de acordo com o que Hart mais tarde veio a chamar de regra de reconheci-
inento operante; portanto, devemos reconhecê-las como pertencentes a um direito
válido. Isso não resolvia o problema da punição, e Hart insinua que, para os tribunais,
O questionamento do positivismo jurídico e o debate sobre a obediência essa era uma questão existencial: "Devemos punir aqueles que praticaram atos vis
ao direito nazista: o caso do informante ressentido
quando estes foram permitidos por leis perversas então vigentes?" (1961: 211). Para
Hart, porém, tratava-se de uma questão de "escolha entre [dois] males, o que, em
Em 1945 e 1950, os tribunais da Alemanha Ocidental tiveram de examinar al-
circunstâncias extremas, às vezes precisa ser feito", isto é: (i) decidir não castigar se-
guns casos de informantes ressentidos, e uma exposição um tanto breve e engano-
sa de sua decisão (1950 1) 64 Harvard Law Review 1005) provocou um debate entre ria fechar os olhos ao mal, o que seria um mal em si mesmo"; (ii) porém, o princí-
o positivista H. L. A. Hart e o jusnaturalista Lon Fuiler, (ver capítulo 14). Uma expo- pio de nuila poena sine lege exigia que os tribunais não punissem por algo que não
estivesse sujeito à lei na época em que o ato foi praticado. Introduzir atalhos nesse
sição do caso é apresentada em H.O. Pappe, "On theValidity of Judicial Decisions in
the Nazi Era" (1960) 23 MLR 60. Os casos de informantes ressentidos diziam res- princípio era um mal. Contudo, Hart concluiu que seria melhor, nas circunstâncias
peito a pessoas que, vivendo sob jurisdição nazista, haviam se utilizado de leis e pro- específicas, criar expressamente uma legislação penal retroativa que confiar no efei-
cessos opressivos para resolver ressentimentos ou ambições pessoais. to de invalidação da imoralidade; todavia, "não se deveria fazer com que um caso de
punição retroativa parecesse um caso comum de punição por um ato considerado
Em um dos casos, a ré havia decidido livrar-se de seu marido - na época solda-
do alemão - e, em 1944, denunciou às autoridades observações críticas que ele ha- ilegal na época em que foi praticado" (The Concept of Law: 212). Fuiler (1958), por sua
via feito sobre Hitler num período em que esteve em licença. Ele foi acusado nos vez, argumentava que a concepção formalista do dever de obedecer ao direito, in-
termos de leis de 20 de dezembro de 1934 e 17 de agosto de 1938 por haver critica- corporado nas tentativas positivistas de isolar a obrigação legal de todas as outras
do o Reich, o que tornou muito difícil sua defesa. Considerado culpado e condenado formas de obrigação, não era sustentável. De acordo com Fuller, no contexto pós-na-
à morte, sua sentença foi revogada e ele foi enviado para prestar serviços no front zista os juízes não tinham escolha, a não ser considerar as questões morais em sua
oriental. Ele sobreviveu à guerra, e por fim sua esposa e o juiz que julgara seu caso tentativa de reconstruir uma ordem jurídica viável, e deviam fazer afirmações ente-
foram levados a julgamento por acusações nos termos do Código Criminal Alemão ii )sas sobre a validade e a coerência moral do modo nazista de regulamentação. Ful-
de 1871, parágrafo 239, que diz respeito à privação ilegal de liberdade. O tribunal introduz o conceito de "fidelidade ao direito", que depende da "capacidade de
da Alemanha Ocidental isentou o juiz de culpa, considerando que seu julgamento rnando" do sistema jurídico. Um sistema jurídico requer uma "quantidade míni-
fora feito sob uma lei então em vigor, independentemente do que se pudesse pen-
sar sobre seu status moral. A situação da esposa recebeu outro tipo de tratamento,
tos fundamentalmente significativos. Primeiro, se os procedimentos eram impróprios, então o juiz
pois suas ações haviam sido motivadas por intenção criminosa contrária à consciên- 111. .ït no caso era tão culpado quanto o informante que os havia iniciado. Segundo, não havia necessi
cia, e ela agira de um modo que foi considerado imoral na época. O tribunal negou &onsiderar a validade das leis nazistas em questão, uma vez que mesmo à primeira vista se constato'; ti
expressamente que a questão do status moral das leis sob as quais a vítima fora con- haviam sido corretamente aplicadas. A lei dizia respeito a afirmações públicas e, se isso queria di,,i
denada em 1944 fosse relevante; sua decisão baseou-se em sua interpretação da rea- coisa, devia implicar uma distinção das afirmações privadas que certamente incluiriam as liv
lve os cônjuges em questão. Em terceiro lugar, mesmo que esse aspecto não fosse bem considii
lidade do direito existente, e não se aceitou nenhum argumento para considerar o di-
1 , 1111 ri tinha ampla discrição para julgar, e aplicar a pena de morte (posteriormente comutada) flui i i .
reito nazista inválido por razões morais`. li po equivalia a uma censurável abdicação da responsabilidade.
Portanto, os trâmites legais do período de guerra haviam sido inadequados em seus prt
11111 a ré quanto o juiz tinham que apresentar justificativas. A ré tinha, através de um uso dol
59. Em outra decisão de pós-guerra sobre fatos muito parecidos (reportados em H. O. Pappe, "On the nodo que incorporasse afigura do dano, o rnensrea do crime que encontrou seu actus reta; ii,; 11,1111
Validity of Judicial Decisions in the Nazi Era" (1960) 23 MLR 260), a ré foi acusada de privação ilegal de liber- lijuados dos quais ela era um acessório. Essa linha de argumentação é certamente eIolI,ívl 1 , I
dade e tentativa de homicídio. Inicialmente absolvida, a Suprema Corte Federal da Alemanha Ocidental re- tu r-se nos abusos processuais em sua busca de solução para a questão formal, e não é n. i
vogou a decisão em recurso de apelação, remetendo-a ao tribunal inferior. A Suprema Corte levantou três ii ncontrar tais abusos na jurisprudência nazista.
378 Filosofia do direito Weber, Nietzsche e o Holocausto 379
ma de moralidade para sobreviver"; se o "nível" de moralidade cair abaixo de um cer- Em resposta à formulação anterior de Hart, Fuller repudiou essa concepção por
to ponto, pode-se dizer que o sistema deixou de funcionar, uma vez que se tornou onsiderá-la "irrealista e perigosa". E irrealista no sentido de que o positivismo ju-
incapaz de pretender a obediência de seus cidadãos. Portanto, sem um conteúdo mo- ídico pressupõe que possa existir ordem num sistema jurídico carente de qualquer
ral mínimo, um sistema jurídico deixa de existir enquanto tal. onteúdo moral; é irrealista por colocar sobre o homem comum um ônus excessiva-
Vamos, aqui, parafrasear Fulier a respeito do empreendimento positivista. O ob- nente pesado. Enquanto o positivismo jurídico admite que a moralidade pode ser
jetivo básico do positivismo consiste em demarcar a legalidade, diferenciando-a de knvinculada da tarefa de identificar o direito, nas sociedades existentes o processo
outras formas de ordenação social. A tese da separação e a ascensão do pensamen- 1 rrtum de tal identificação a regra de reconhecimento, para recorrermos a Hart
- -
to utilitarista faziam parte da ambiciosa tarefa de "distinguir" entre "ordem" e "boa (:ha-se impregnado de considerações morais. Reconhecer alguma coisa como direi~
ordem". Contudo, ainda que se trate de um objetivo louvável, ao insistir na tese da lo sem imaginar uma "aura" ao redor de tal coisa, ou sem sentir o ímpeto da obriga-
separação os positivistas não alcançaram seu objetivo de promover e proteger a fi- ço, talvez seja um procedimento aberto apenas aos cínicos`. Os nazistas jogavam
delidade ao direito. A regra de reconhecimento de Hart leva-o a concluir que "sob C om o fato de haver muito cinismo na República de Weimar; o cínico normalmente
os nazistas existia o direito, ainda que um direito de má qualidade. A posição de 1 stá à procura do significado (perdido). O que há de problemático na afirmação de
Hart sobre a obrigação moral é simples (e, talvez, perigosamente otimista; ver co- 1 Lart é que, nas condições intensamente mediadas e burocráticas da vida moderna,
mentários posteriores): um direito assim imoral cria uma obrigação de resistir. Uma realidade da ação está no fato de as condições estruturais da tomada de decisões
vez que a moralidade é separada da definição analítica do direito, toma-se um com- ornar a reflexão moral e as questões de expediência extremamente difíceis. Muitos
ponente importante da crítica do direito e um instrumento em prol da reforma. 1 larticiparam dos jogos cujas regras estavam sendo criadas pelos nazistas. Repetindo
Hart não nos diz em que bases espera que o sujeito de um sistema ideologicamen- iracterísticas da argumentação: Hart desejaria que todos os membros daqueles con-
te dominante como o nazista denuncie a iniqüidade moral.
- -
ulhos judaicos que colaboraram com o arrebanhamento de judeus para os campos
Um princípio central do positivismo jurídico é a separação entre lei e moralida- ssem julgados por assassinato se tivessem sobrevivido? Como foi possível que tan-
de. Isso implica duas idéias distinguíveis: (i) os positivistas alegam que podemos )s judeus colaborassem com a destruição de judeus? Em sua análise do Holocaus-
identificar o que é o direito existente sem emitir nenhum juízo moral. Se uma re- o, Bauman (1989: 26) argumenta que seu sucesso técnico-administrativo se deveu
gra é ou não uma regra jurídica vai depender de ter sido estabelecida por fonte vá- tli n parte à hábil utilização de "soníferos morais" que se tornaram possíveis graças
lida, como uma lei escrita ou um precedente judicial. Se se constatar que tem uma o desempenho da burocracia e da tecnologia modernas. A. maioria das ações é se-
fonte válida, será uma regra jurídica válida a despeito do fato de ser boa ou má, ju- II liencial, isto é, as implicações totais não são evidentes de início e, uma vez em mo-
ta ou injusta. Da mesma forma, o simples fato de uma regra ser justa e razoável não vimento, uma cadeia de envolvimentos é difícil de interromper em geral, o sujeito -
a torna parte do direito se não estiver fundamentada em alguma fonte reconheci- I'm mais a perder se parar do que se der mais um passo. Além do mais, em geral
da de direito; (ii) os positivistas afirmam que as proposições de lei nas quais afir- io apenas é impossível apreender a totalidade do empreendimento, como a pessoa
mamos a existência de direitos e deveres legais não são juízos morais. Os adversários llrnbém pode fechar os olhos a tudo que não seja a pequena cena que observa ou
do positivismo poderiam argumentar que não podemos dizer que uma lei impõe de- qual participa.
veres e confere direitos a menos que a considerarmos moralmente obrigatória. Os
positivistas respondem que esse argumento joga com dois sentidos diferentes das
palavras "dever" e "direito". Talvez uma lei não possa conferir direitos morais e impor 'ftas. Uma vez que o direito preexistente não oferece resposta, o juiz deve decidir o caso com base em
direitos legais a menos que seja moralmente obrigatória, mas podemos tratá-la como nsiderações extrajurídicas. Ao fazê-lo, estabelecerá uma nova regra. Contudo, o que faz de uma regra uma
se conferisse direitos legais e impusesse deveres legais, quer a vejamos, quer não, jurídica é o fato de ter sido formulada pelo juiz, e não o fato de basear-se em considerações moral'. Os
ai livistas não negam que possa haver uma obrigação moral de obedecer ao direito. Argumentam, sir
como moralmente obrigatória. Assim, os positivistas sustentam que os direitos legais
lv, que a questão de saber o que é o direito, e a questão de saber se este deve ou não ser obedeci
não são uma variedade de direito ou dever moral, mas coisas bem diferentes. A argu- 11 do questões distintas. Na verdade, positivistas como Bentham, Kelsen e Hart argumentam que n ,H 1
mentação de Hart (desenvolvida no capítulo 9 de The Concept ofLaw) pode ser cha- 11~,xões morais sobre o alcance da obrigação de obedecer ao direito se esclarecem ao adotarmos uma
mada de "teste de cidadania moral"". o positivista do direito. Para Austin enquanto regra utilitarista consumada o ideal seria seguir
- -
1'» i1 da qpal se discordasse, uma vez que as conseqüências de se estabelecer uma prática de irfraç;
118 seria pior do que a inconveniência ou o mal causado pela obediência a uma regra que exigisscL
60. .0 positivista não nega que os juizes às vezes decidam casos por alusão a valores morais ou consi- cumprimento de uma tarefa desagradável.
derações político-sociais. O que eles negam é que os juízes tenham de emitir juízos morais ou sociais no pro- 61. Mesmo em relatos contemporâneos "irreais" do direito, como a LA Law, que apresentl 1 . L
cesso de descobrir qual é o direito existente. Tendo estabelecido quais são as regras relevantes, porém, um 1 reito como uma burocracia glamourosa, ser advogado é também adentrar um campo moi. Ji i ww
juiz pode descobrir que as regras jurídicas relevantes não oferecem uma resposta no caso com o qual ele está regado no qual a essência do direito é o certo do ponto de vista moral.
380 Filosofia do direito
Para complementar e fazer uma avaliação realista do teste crítico de cidadania apítulo 12
de Hart, precisamos refletir sobre a obediência e a resistência nas condições das so- /1 Teoria Pura de Hans Kelsen
ciedades modernas. O conhecimento que disso temos até o momento não nos per-
mite uma interpretação otimista; os cidadãos obedecem com demasiada facilidade
às figuras nas quais se encarna a autoridade. Os indícios das experiências de Milgram
sobre a obediência (1963; 1974) parecem devastadores. Em condições nas quais uma
pessoa supostamente investida de autoridade ordena a outras que pratiquem atos
moralmente questionáveis, muitas delas obedecem prontamente. Milgram especi-
fica que uma pluralidade de fontes de poder e de valores éticos ajuda a evitar a obe-
diência cega. "E somente quando temos ( ... ) uma autoridade que ( ... ) atua em campo
livre, sem pressões adversas a não ser os protestos da vítima, que obtemos a mais Quando compreendermos a unidade do Estado e do direito, quando nos dermos
pura reação (de obediência) à autoridade" (citado de Bauman, 1989: 165); para uma conta de que o direito, o direito positivo (não a justiça) é precisamente aquela ordem com-
discussão geral da questão da obediência na sociedade moderna,ver Mixon, 1989). pulsiva que é o Estado, teremos adquirido uma visão realista, não-personificativa, não-an-
tropomórfica, que demonstrará claramente a impossibilidade de justificar o Estado pelo
A resposta do positivismo jurídico pode consistir no argumento de que as an-
direito, assim como é impossível justificar o direito pelo direito, a menos que o termo seja
gústias sobre o poder arbitrário (expressas por teóricos do direito como Fulier ou usado ora em seu sentido positivo, ora no sentido de direito correto, justiça. A tentativa
Dworkin) não podem ser controladas mudando-se a interioridade de alguns critérios de justificar o Estado através do direito é vã, uma vez que todo Estado é necessariamente
de reconhecimento do direito, mas sim recorrendo-se a meios distintos, ou seja, pro- um Estado de direito. O direito, diz o positivismo, nada mais é que uma ordem de com-
curando-se entender claramente as relações entre direito, autoridade e obediência, pulsão humana. Quanto à justiça ou moralidade dessa ordem, o próprio positivismo nada
isto é, os processos sociais. Tal resposta só pode ser mantida se o positivista jurídico tem a dizer, O Estado não é nem mais nem menos que o direito, um objeto de conheci-
situar sua imagem da ciência jurídica como parte de um empreendimento interdisci- mento normativo e jurídico em seu aspecto ideal, como um sistema de idéias, o tema da
plinar. Enquanto alguns estudiosos - por exemplo Kelsen (ver capítulo 12) - endos- psicologia social ou da sociologia em seu aspecto material, isto é, como um ato físico (uma
sam claramente tal posição, muitos pareceram cegos a suas implicações. Todavia, a força física) motivado/a e motivador/a (Kelsen, 1935: 535).
implicação dessa área não deixa margem a dúvidas: a modernidade precisa ser en- Na ciência social e, especialmente, na ciência jurídica, ainda não há influência para
tendida através de uma multiplicidade de lentes, e é somente através do diálogo in- Se contrapor ao interesse esmagador que os detentores do poder sentem por uma teoria
terdisciplinar crítico que qualquer disciplina pode extrapolar seus próprios limites. iue satisfaça seus desejos, isto é, por uma ideologia política. ( ... ) Não obstante, se o au-
lor se aventura a publicar essa teoria geral do direito e do Estado, ele o faz com a convic-
ção de que, no mundo anglo-americano, onde a liberdade da ciência continua a ser res-
peitada e onde o poder político é mais estável do que em qualquer outra parte, as idéias
io mais apreciadas do que o poder; e também com a esperança de que mesmo no con-
nente europeu, depois de sua libertação da tirania política, a geração mais jovem será
conquistada para o ideal de uma ciência do direito independente; porque o fruto de tal
1 ência nunca pode perder-se (Kelsen, 1945: Prefácio a General Theory of Law and State
Prefácio à teoria geral do direito e do Estado]).
()austríaco Hans Kelsen (1881_1973)1 é tido por muitos como o criador da 'or-
iais radical do positivismo jurídico com sua autoproclamada teoria "pura" do
IllIN).A teoria de Kelsen é "pura" em dois sentidos:
1 Hans Kelsen era filho de judeus vienenses de classe média que se mudaram para \iie ii
ii nascimento em Praga, em 1881. Ele se tornaria o mais importante teórico do direito d' Ii
382 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 383
(i) afirma-se livre de quaisquer considerações ideológicas, não se emitem juízos de )dológicas quanto políticas. O entendimento desse contexto irá, esperamos, fazer
valor sobre qualquer sistema jurídico, e a análise da "norma jurídica" não é afetada iva nçar nossa apreciação do significado da Teoria Pura e situá-la adequadamente nas
por nenhuma concepção da natureza do direito justo; Indências da modernidade.
(ii) o estudo sociológico da prática do direito e o estudo das influências políticas, eco-
nômicas ou históricas sobre o desenvolvimento do direito ficam além da esfera
de ação da teoria pura. A AGENDA SOCIAL E POLÍTICA DE KELSEN
Kelsen argumentava que tais estudos pressupunham uma investigação a prio- Kelsen escreveu em defesa de uma concepção humanista do homem contra a
ri da natureza do direito, ao modo da teoria pura. Em outras palavras, ele afirma que ncia reducionista da imaginação científica e o poder ábusivo da burocracia. A
a teoria pura antecede qualquer outra investigação em direito; porque os estudiosos 1 e preservar uma esfera de liberdade para o humanismo, Kelsen se voltou para
que adotam uma perspectiva "externa" do direito com a finalidade de investigar a rea- nights de Kant, Weber e Nietzsche. Para nos poupar do reducionismo científi-
lidade do direito e dos sistemas jurídicos devem pressupor que a entidade a ser ob- or meio da simples aplicação do positivismo, ao modo das ciências naturais, a
servada é, na verdade, o direito. A obra de Kelsen foi publicada em inglês pela pri- ;as idéias de atuação humana, Kelsen se voltou para a epistemologia de Kant 2.
meira vez em 1934, e num de seus textos se lia: npedir que caíssemos na armadilha das grades de ferro de um racionalismo bu-
itco apresentado sob o disfarce da mistificação do Estado e da história, ele se
A teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo. Enquanto teoria, preocu- )U para o etos desmistificador de Nietzsche. Em última instância, seguindo We-
pa-se exclusivamente com a definição precisa de seu tema. Tenta responder à pergunta
li Kelsen argumenta que a burocracia é essencial ao Estado moderno, mas que de-
"o que é o direito?", e não "o que deve ser o direito?" Trata-se de uma ciência, e não
de uma política do direito (1934: 477). ) vê-la como ela é, uma estrutura de necessidade vazia, e despojar a forma or-
zacional do Estado de qualquer significado místico ou alegação de destino his-
Os críticos se encantaram com o rigor da teoria, mas viram em sua pureza um o. Nas mãos de Kelsen, o Estado se converte numa ordem jurídica, mas, assim
o) não se trata de uma ordem jurídica que desempenha automaticamente algu-
exemplo de formalismo desmedido. Em resultado, a teoria é freqüentemente estuda-
da como ilustração de um fetiche europeu com rigor conceitual. A teoria trata o di- uncionalidade determinada pela ordem natural das coisas, tampouco se pressu-
reito exclusivamente em termos de estrutura formal, deixando todas as questões de iue incorpore nossos anseios e esperanças. Para compreender o direito em sua
propósito ou conteúdo para além dos interesses dos cientistas jurídicos, tendo su li i'lura pura, devemos despojá-lo de seus disfarces expressivos; o direito é uma es-
"pureza" qualificada como um estreitamento do papel da teoria jurídica na teoriza t'a simples de coerção, um sistema hierarquicamente organizado de normas
ção sobre o mundo social. Portanto, a teoria de Kelsen pode ser acusada de enfraque morais) que determinam as condições através das quais os agentes do Estado
cer a imaginação da filosofia jurídica em face do poder social; transforma o jurista o wbilitados (autorizados) a impor sanções. E sejamos claros: Kelsen constrói esse
o advogado no dócil servo de qualquer ideologia política dominante (Schmitt, [19221 ma não para tirar a humanidade desse empreendimento jurídico - como preten.-
1985: 45; Bloch, 1985: 146-9). Paradoxalmente, foram exatamente essas preocupo interpretação mais comum de sua obra -, mas para nos levar a entender que o
ções que inspiraram Kelsen, e ele via as acusações de formalismo como a mais estt l,IO não tem nada que o faça avançar a não ser os projetos humanos'.
De que
pida das críticas a sua teoria. De que modo, então, iremos abordar a teoria de Kelsen? o Kelsen tenta salvar o humanismo em face das pressões dos primórdios do
A Teoria Pura só pode ser plenamente compreendida tendo por pano de fundo ''ki XX?
preocupação de seu criador com a ideologia política e social, e com sua concepç2
pluralista do conhecimento; sua busca da pureza decorre tanto de preocupações mo
\ teoria pura do direito não se baseia na filosofia do direito de Kant, mas em sua teoria ri
(Kelsen, 1945: 444).
do século )O(. Professor de direito constitucional na Universidade de Viena de 1911 a 1930, Kelsen testen [sen enfatiza que as normas do sistema jurídico não nos são impostas por algum "C;j 'li e
nhou o colapso do Império Austro-Húngaro e o complicado nascimento de novos países na esteira da lt aI, e que o cientista jurídico, ao analisara estrutura objetiva de uma ordem juríli;i, li,, ,,
meira Guerra Mundial. Preparou o projeto do "Tribunal Constitucional" da Áustria - cujo modelo foi a So alguma estrutura naturalmente criada, como que formada por uma máquina
prema Corte dos Estados Unidos -, que vigorou de 1921 a 1930, e foi ele também o principal autor da Con.sti lo afirma que "da afirmação de que uma norma'existe' não se segue que exi e
çâo de 1919 da república austríaca. Defendeu a democracia e o pluralismo em face do totalitarismo, e fuui deva estar inserida em alguma realidade [não-humana].A afirmação signiíio.i Ii.. pie oisi
do nazismo para os Estados Unidos, onde tornou-se professor de ciências políticas na Universidade da ( vIida efoi criada por um ato humano, e isso significa que uma norma é o signilio,il' .u.
lifómia, em Berkeley. (1957:179-80).
384 Filosofia do direito A Teoria Pura de 1-tons Kelsen 385
Primeiro passo: reconhecer a liberdade essencial do homem. O homem deve ser re- sen sugere que, tradicionalmente, o mistério da existência social se expressou em
conhecido como algo mais do que aquilo a que as ciências empíricas positivistas pa- rorma da estrutura de um embate religioso; qual era a base dessa experiência? Os ho-
recem reduzi-lo. Kelsen afirma que no passado as ciências sociais tiveram por tema 1 'is primitivos se viam diante de um mundo misterioso, um mundo em que eram
uma imagem jurídica ou livre do homem, mas que uma metodologia um tanto de- 1 1 ivamente impotentes; para torná-lo compreensível, eles invocavam falsos ídolos
terminista e reducionista foi importada das ciências naturais à medida que o positi- ii ;vestiam-nos dos poderes do cosmo. Para manter a comunidade, o ser humano
vismo se desenvolvia. O resultado foi um enfraquecimento de nossa capacidade de iriu ídolos dotados de significação; ao fazê-lo, constituiu centros de autoridade. A
compreender a condição humana'. Kelsen se empenha em preservar o status espe- lecessidade de vivenciar a unidade ajudou a evocar um corpo supremo que repre-
cial da existência humana, argumentando que devemos demarcar rigorosamente os nta a unidade subjacente ao mesmo tempo que oferece uma fonte inconteste de
espaços da natureza e da sociedade. Tampouco podemos fugir à sociedade - a expe- autoridade. A experiência social gira em torno desses pólos de autoridade e comu-
riência social é inevitável no sentido de que a vida de um indivíduo se liga forçosa- idade; todavia, argumenta Kelsen, autoridade e comunidade "não são dois objetos
mente à de outros seres; o indivíduo sente-se apanhado numa armadilha, preso 1 iintos, mas apenas duas etapas diferentes da progressão mental que não são su-
num emaranhado de laços que o limitam mesmo quando lhe oferecem consolo nos s]vas em um único sentido" ([1922] 1973: 62).
perigos da vida. Sonhamos com a transcendência em busca de uma autoconsciên- A sociedade é distinta da natureza. Seu verdadeiro objeto é a humanidade, não
cia plena, mas somos sempre enganados. Queremos olhar para a realidade e para .1 natureza; daí não podermos meramente aplicar os mesmos processos para estu-
nós mesmos em todos os quadrantes de nosso ser, mas não conseguimos ver a to- lnr o homem, que nas ciências naturais. O caráter distintivo da humanidade está em
talidade. Assim, deparamos com o mistério e o relativismo; historicamente, não te- tia capacidade especial de emitir normas e viver de acordo com elas; o elemento nor-
mos sido capazes de tolerar esse estado de coisas. Em vez disso, temos acreditado 'õativo dá à humanidade sua capacidade de transcender a natureza. O direito é uma
no "absolutismo moral" e na verdade de uma certa realidade objetiva que, por exis- 1 knica especifica de estruturação normativa das relações humanas; é o artifício consti-
tir independentemente da cognição humana, nos permite usar o conhecimento 1 iltivo da sociedade humana em sua forma avançada. O direito - a legalidade - fome-
que dela temos para tentar corrigir seus erros e permite aos especialistas (aqueles o mecanismo através do qual a sociedade humana pode criar redes de estruturação
que já perscrutaram o "espelho da natureza") a nos dizer o que devemos fazer'. dl; o estudo da teoria jurídica, o estudo daquilo que no passado muitos autores
hamavam de "ciência civil", fornece o caminho para a única técnica constitutiva que
1 sociedade possui: "somente na medida em que a consideração voltada para o social
4. "Originariamente, o problema da sociedade como objeto de conhecimento humano era o problema ia ntém como um ponto de vista ética ou juridicamente normativo que a socieda-
de se determinar uma ordem justa das relações humanas. A sociologia surgiu como ética, política e teoria ju- II
rídica, tanto independentemente quanto como parte sistemática da teologia. Em cada caso, tratava-se de Ide se constituir como um objeto distinto da natureza" (ibid.: 64). Assim, a aná-
uma ciência normativa, uma doutrina de valores. Somente no início do século XIX surge a tendência de em- de Kelsen começa com uma descrição, mas trata-se de uma descrição particular;
pregar um método causal no tratamento de problemas de teoria social. Essa tendência não mais promove «ma descrição fenomenológica que pretende trazer à luz o que há de essencialmen-
uma indagação da justiça, mas sim da necessidade causal na conduta efetiva dos homens; não é um estudo humano na ordem jurídica - o aspecto interior ou normativo.
que procura determinar como os homens devem agir, mas como eles de fato agem, e devem agir, de acordo
com as leis de causa e efeito. Segundo passo: despojar o direito dos perigos da tradição expressiva. Já abordamos
A mudança total da teoria social, que passa de uma indagação normativa a uma indagação causal, sig-
,ldcirnento da tradição expressiva em Rousseau e Hegel; para Kelsen, porém, a
nificou uma desnaturação de seu objeto de conhecimento. A circunstância de as ciências naturais forçarem as ei 'rpretação expressiva ligava-se a uma ideologia do destino histórico e do expri
ciências sociais a converter-se em algo não diferente de um ato de autodestruição não pode ser totalmente
'11 itmo histórico. Devido ao fato de nos ter dado uma idéia do direito como p
explicado pelo fato de que o sucesso da ciência natural nos séculos XIX e XX recomendava seu método como ri
modelo. Essa transformação da ciência das relações sociais, que passa de uma ciência ética a uma sociologe Ia deliberação ou do poder humano, o positivismo jurídico poderia ser iritm»
e
causal que explica a realidade da conduta efetiva e se mostra, portanto, indiferente aos valores, está plena- iI o rio sentido de implicar que o direito deve identificar-se com a ordem
juri la;,
mente concluída hoje. Significa, fundamentalmente, um recuo da teoria social diante de um objeto que ela to é, com as regras estipuladas pelas leis, pelos costumes e pela jurisprudi ei.
perdeu toda esperança de dominar, uma admissão involuntária, por parte de uma ciência milenar, de que, ao ei
menos temporariamente, abandonou seu problema essencial por considerá-lo insolúvel" (Kelsen, 1945: 391)
irno com as instituições estabelecidas ao longo da história. Kelsen é claro: dh , V 1 1
5. Kelsen compara o "absolutismo moral", que em sua opinião leva a um governo antidemocrático e au-
toritário, com o "relativismo filosófico" que, conquanto leve a argumentos céticos, liga-se à política pluralista
e democrática. O relativismo filosófico faz da totalidade da existência um mistério. "O absolutismo filosófico riade a doutrina empírica de que a realidade só existe dentro do conhecimento humari»
'II
é a concepção metafísica de que existe uma realidade absoluta, isto é, uma realidade que existe independen- 1,1rio de cogníção, a realidade é relativa ao sujeito conhecedor. O absoluto, a coisa Ci
temente do conhecimento humano. Portanto, sua existência é objetiva e ilimitada no espaço e no tempo (ou lii além da experiência humana; são inacessíveis ao conhecimento humano e, portanto,
para além destes), instâncias às quais se restringe a cognição humana. Por outro lado, o relativismo filosófi- li7: 1989.
386 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 387
fazer uma escolha; conquanto seja existencialmente reconfortante admitir que nos- '.1 m. A ideologia que subjaz à obra parecia ser uma crença em que a história produz
sa ordem jurídica particular exprime nossos princípios e crenças sociais e políticos, certo e o verdadeiro, e que o direito pertence àqueles que vencem a batalha da his-
e que estes resultam dos movimentos do destino histórico, tal fato contribui para o ria. O juiz tem o dever profissional de fazer com que a vontade do direito de ter va-
enfraquecimento de nossa subjetividade crítica. Mergulhamos numa rede de confi- hiade se torne validade de facto. O juiz só precisa perguntar-se o que, legalmente,
gurações ideológicas, e somente uma abordagem científica rigorosa será capaz de in- love ser feito e deixar de lado quaisquer considerações subjetivas sobre o que, mo-
terromper essa corrente'. Imente, deve ser feito ou o que é justo ou injusto. O juiz deve reconhecer a objetivi-
Kelsen acredita que devemos nos empenhar em criar uma ordem humana dig- Ide do domínio do direito, confiante no funcionamento do destino histórico do que
na de respeito; uma ordem que seja dotada de legitimação e autoridade. Contudo, justo, e não em seu próprio senso de justiça. Um juiz não deve ser influenciado por
se por um lado devemos apreciar o fato de estabelecer uma vida social digna e o pa- u senso de justiça subjetivo, não-jurídico. Desse modo, o positivismo jurídico pare-
pel da ordem jurídica na humanização das relações sociais, por outro continua sen- ja instruir os juízes no sentido de que eles não poderiam se opor aos comandos da
do essencial manter uma distância crítica desse processo. Em outras palavras: a bus- idem jurídica uma vez que a autoridade governamental tivesse o poder válido de
ca histórica de justiça social é impossível sem o estabelecimento de uma estrutura \ecutar estas ordens. Quando o Terceiro Reich foi derrotado, Radbruch afirmou que
concreta de ordenação jurídica que torne possível uma interação humana mais com- atitude por ele defendida anteriormente demonstrava a impotência ética do posi-
plexa, que lhe permita assumir formas particulares. Essa ordem jurídica, porém, não 11 jurídico e apontava para a necessidade de retomar alguma forma de reflexão
deve ser explicada como aspecto e incorporação essenciais, e tampouco suficientes, bre o direito natural. Assim ele escreveu, em 1947, que o cientista jurídico deveria
do direito e da justiça na sociedade humana. No contexto imediato de Kelsen, hou- na vez mais retornar à sabedoria clássica que diz que há um direito superior à lei,
ve muitos que caíram nessa armadilha. Depois da Segunda Guerra Mundial, muitos o direito natural, um direito divino, um direito da razão, e que a injustiça continua
intelectuais acreditavam que na Alemanha e na Áustria a imaginação institucional ndo injustiça quando mensurada por esse critério, ainda que a tal injustiça se dê a
sancionada pelo positivismo jurídico havia degradado a ética do direito e refletido, de rrna do direito. Quem identifica direito com ordem jurídica comete um erro, assim
modo acrítico, a crença no poder do Estado de criar justiça (Recht). O regime de re- mo o faz quem identifica o direito com o poder. O positivismo jurídico foi conside-
gulamentação jurídica — a distribuição de direitos e deveres legais — era interpretado do como uma forma empobrecida de imaginação jurídica. Na década de 1920, o ju-
como a incorporação concreta do processo por meio do qual "os direitos desejam vir aa católico (e posteriormente nazista) Carl Schmitt chegou a ponto de afirmar que
a ser", desejam exprimir-se no progresso histórico das coisas materiais, "concretizar- 'li'oria Pura de Kelsen sustentava essa identificação entre poder e legalidade verda-
se", "corporificar-se no tempo". O direito (Recht) ali está, tem uma realidade (Wir- lira; para Schmitt, tratava-se da tese do burocrata puro ([192211985: 45)7.
klichkeit) através da necessidade de processo natural - uma objetividade da "práxis" Contudo, era exatamente essa ligação entre o direito e a ideologia da vantagem
11 stórica que Kelsen procurara romper. Para ele, a teoria pura era uma teoria radical-
natural em que a natureza encontrou para nós o verdadeiro caminho para o "regi-
me de paz humana". Segundo essa linha de pensamento, as regras jurídicas não são ente realista do direito. Acima de tudo, tal teoria preconizava que as regras jurídi-
exatamente criadas contingencialmente pelos humanos; são descobertas ao longo de .s foram criadas por seres humanos, e que são criadas, e não descobertas por al-
i i estrutura racional que tenha por base o destino histórico. A humanidade cria
um desenvolvimento histórico progressivo. A ordem jurídica confunde-se com a or-
dem da justiça; o poder jurídico confunde-se com o direito.Vale a pena repetir a po- sas leis, essas estruturas de poder coercivo, essas alocações de direitos e deveres,
ndo em vista objetivos sociais, para que haja justiça no mundo; mas sua existên-
sição do jurista alemão Radbruch, que em 1932, na terceira edição de Rechtsphilo-
.i não é garantia alguma de que alguma ordem jurídica seja justa. Precisamos fazer
sophie, parecia ter se deixado arrebatar pela imagem romântica alemã de destino his- na clara distinção entre o procedimento e a necessidade da forma estrutural que o
tórico ao argumentar que os que haviam obtido o poder de impor normas jurídicas 1 ocedimento assuma, por um lado, e por outro os argumentos sobre os objetivos
mostravam, desse modo, que uma injunção histórica os havia exortado a proceder as~ Li vida social; analisar a estrutura do poder coercivo é diferente de discutir a questão
Ii justiça e do progresso social. Para analisar a primeira, procedemos como ckntjs-
6. "A Teoria Pura deseja apresentar o direito como ele é, não como deve ser ( ...), isto é, uma teoria de 3 jurídicos; para compreender a segunda, procedemos como filósofos, sociólogos,
positivismo jurídico. A teoria pura considera-se obrigada a não fazer mais do que apreender a essência do di-
reito positivo e, mediante uma análise de sua estrutura, compreendê-lo. Especificamente, a teoria pura recu-
sa-se a servir a quaisquer interesses políticos ao fornecer-lhes uma'ideologia' por meio da qual a ordem social 7. "[Podemos ver] a teoria jurídica de Kelsen como a ideologia do advogado-burocrata qui, ;iii ia viii
1 iiistânciaspolíticas instáveis e que, sob as formas mais diversas de autoridade e com relativa si ipei id.
existente seja justificada ou desqualificada. ( ...) Assim, a teoria pura coloca-se em agudo contraste com a fi-
losofia jurídica tradicional que, conscientemente ou não, às vezes mais, outras vezes menos, tem um caráti ate da autoridade política do momento, procura ordenar sistematicamente as ordens e rej,,tilamei 1, ç
'ideológico" (Kelsen, em Weinberger, 1973: 246-7). 'dtivas que lhe são legadas."
388 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 389
como seres humanos envolvidos no processo, mas estamos diante de projetos dife- xo de causa e efeito. Como pode o homem ser salvo da extinção nas mãos da ciên-
rentes. Restringimos nossas aptidões intelectuais não para diminuir nossa humani- e naturalista e, ainda assim, tornar-se possível uma ciência do direito?
dade, mas para compreender os limites de nosso conhecimento e nos poupar do en-
tusiasmo dos tiranetes que gostariam de nos convencer de que a justiça da história,
ou de Deus, está com eles. A TEORIA PURA DE KELSEN COMO RESPOSTA FORMALISTA
E preciso perguntar constantemente: "Quem somos?", "Qual é o sentido da AO PROBLEMA DA CRIAÇÃO DE UMA ES IRUTURA SOCIAL
NUMA REALIDADE PLURALISTA
vida?" Intencionalmente, Kelsen nos lembra da resposta dos estóicos: a vida é um
vasto drama cósmico com uma trama e um roteiro. Porém, enquanto os estóicos ar- A solução de Kelsen para os dilemas por ele expostos consiste em adotar uma
gumentavam que devíamos aceitar nossa ignorância do roteiro, por sua vez a reli- dstemologia pragmática neokantiana. Não poderemos nunca alcançar a realidade
gião organizada dava ao roteiro um autor, à variação um planejador, à causa e efeito Holutamente "verdadeira", mas estaremos sempre atuando dentro de um esquema
uma causa primeira, e terminava por nos apresentar um Deus que era o centro de sonceitual; a questão passa a ser qual desses esquemas é apropriado ao material a ser
todo o poder e diante do qual devíamos nos prostrar em oração. Eramos tomados por ;u bmetido a exame.
um sentimento de reverência.., e então Hobbes lutou contra parte desse poder, apo- Essa questão é de importância crucial para o estudo do direito em dois sentidos:
derou-se do mana e deu-o ao Estado, investiu o Leviatã dos temores e esperanças (i) SC pretendemos conhecer a unicidade do fenômeno do direito, necessitamos de
de nosso progresso. Para quê? Escrevendo em primórdios do século XX, Kelsen via me ciência que seja fiel ao fenômeno; (ii) o próprio direito precisa haver-se com o
o crescente domínio de um Estado autoritário como algo amparado pelas ideologias eJativismo epistemológico que caracteriza o mundo se tivermos de conviver com a
do destino histórico secular que se apoderou da reverência dedicada a Deus e apos- usência de Deus, o que significa, epistemologicamente, que é impossível encontrar
sou-se do sujeito jurídico dentro da máquina político-partidária e da disciplina bu- juaiquer outro roteiro-chave que possa conciliar toda a variação da existência. Isso
rocrática do aparato estatal. A individualidade, que no passado se vira como tema provoca um impacto sobre o uso político do direito porque, se o que caracteriza o
emergente da modernidade, vinha sendo reduzida a nada. Nietzsche havia expos- inundo é o relativismo epistemológico, não podemos aceitar um roteiro-chave para
to a psicologia das massas que subjaz a essa reverência; por que, perguntava Kelsen, íi ns de regulamentação jurídica. A imagem de Austin, na qual o direito deve ser o ins-
a modernidade não tivera a coragem de viver sem Deus? 11 umento racional da regra utilitarista, guiado pela verdade das ciências da economia
mlítica e da ética, deve figurar apenas como sugestão. De que modo, então, podere-
Se pegarmos os atores que participam do drama religioso ou social no palco polí- i nos estabelecer, para o direito, uma legitimidade que assegure que nossa imagina~
tico e retirarmos as máscaras de seus rostos, não mais teremos Deus recompensando e ç5o jurisprudencial não extrapole suas aptidões e crie novas ilusões?
castigando, nem o Estado condenando e fazendo a guerra, mas apenas homens repri- A solução de Kelsen para essas questões consiste em adotar um procedimento
mindo outros homens, seja o sr. X triunfando sobre o sr.Y ou um animal selvagem sa- 1ormalista8. Para resolver a incerteza epistemológica, para enfrentar o problema do
ciando sua renovada sede de sangue ([192211973: 67). "erro no sistema da verdade", a resposta é o procedimento. Na democracia política,
o debate e o voto oferecem um método para se chegar a um consenso político, en-
Uma vez caídas as máscaras, a peça perde sua capacidade de nos manter sob o puanto o sistema jurídico pode criar uma verdade interna à legalidade.
encantamento de um sentido predeterminado; abrimo-nos a um conjunto diferente
de significados. De que modo, porém, veremos a "verdadeira" realidade? Não tere- De acordo com o conteúdo de uma declaração do direito, um ato coercivo deve ser
mos simplesmente de adotar uma nova perspectiva que substitua as ilusões da que imposto sob condições específicas, e apenas sob essas condições; todavia, num caso con-
foi abandonada? Se adotarmos, por exemplo, uma perspectiva científica rigorosa- creto em que o ato coercivo, por exemplo a punição, tenha sido imposto, pode ser duvi
mente naturalista, não faremos caso das máscaras, mas voltaremos nosso olhar para
"os movimentos puros, naturalmente necessários e causalmente determinados de 8. "A'pureza' de uma teoria do direito que visa à análise estrutural das ordens jurídicas positivas consis
almas e corpos". Desse modo, utilizando os instrumentos de uma psicologia ou bio- e penas em eliminar de sua esfera problemas que requerem um método diferente daquele apropriado a seu
logia de enfoque empírico e rigor reducionista, desconstruiremos o poder da reli- eohlema específico. O postulado de pureza é uma exigência indispensável para se evitar o sinutismn dos
gião, da nação e do Estado, transformando-os em ficções ideológicas, mas então só iodos,(...) A eliminação de um problema da esfera da Teoria Pura do direito não implica, por certo, a
çie da legitimidade desse problema ou da ciência que com ele lida. O direito pode ser objeto declêru;
veremos a vida em termos de "atos físicos e mentais" e, ao perguntarmos "por suas versas; a Teoria Pura nunca pretendeu ser a única ciência possível ou legitima do direito. A socioIa,pe t Ijrej-
L1
causas e efeitos, veremos somente a natureza e nada mais" ([1922] 1973: 67). O ho- o e a história do direito são necessárias a uma compreensão plena do fenômeno complexo do direito" ([19481
mem, como criatura humana, um agente moral e político, dissolve-se num mero con- 1957: 294).
390 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 391
doso saber se a condição prevista na declaração de direito, por exemplo o crime, esteve conotação expressiva, perderíamos faculdades intelectuais importantes enquanto su-
de fato presente, ou se uma pessoa inocente não terá sido injustamente condenada pelo jeitos jurídicos? Provavelmente, mas conservaríamos nossa liberdade enquanto se-
Estado. A ordem jurídica provê uma série de verificações dos julgamentos por tribunais res humanos.
superiores, mas, compreensivelmente, impõe um limite a tal série. O julgamento final Que dizer do positivismo jurídico?
termina em validade jurídica e não pode mais ser alterado. Na verdade, portanto, não se
deveria considerar que a declaração do direito tenha força legal: se uma pessoa rouba, as-
sassina etc., deve ser punida - pois como se vai determinar a verdade absoluta sobre o A RACIONALIZAÇÃO INCOMPLETA DO POSITIVISMO JURÍDICO
fato de alguém ter feito alguma coisa? Deveria ser assim: se, à luz de um procedimento
especifico, presume-se em última instância que alguém tenha roubado, assassinado etc.,
tal pessoa deve então ser punida. E, no que diz respeito a essa declaração, não se verifi- O positivismo jurídico não conseguiu libertar-se da tendência do direito natu-
ca nenhum erro judicial, nenhuma ilegalidade por parte do Estado (ibid.: 79). ral de oferecer justificações à ordem contingente da sociedade. O positivismo jurídi-
co de Austin, conquanto pretendesse separar a ciência do direito de todo conteúdo
A verdade, portanto, é intrínseca ao conjunto de procedimentos que a determi- moral, na verdade terminou sendo uma defesa da economia política; uma defesa da
nam. A culpa ou a inocência legal, a validade da imputação de culpa ou inocência, propriedade privada. Uma ciência jurídica pura não deve justificar nada.
encontram-se no procedimento correto que se tenha adotado. O objetivo do pro-
cedimento é estabelecer a verdade, mas nunca se pode chegar à verdade absoluta. Ao rejeitar uma justificação do Estado pelo direito, a Teoria Pura do direito não im-
Existe sempre a possibilidade de alguma outra perspectiva, de algum outro passo a plica a impossibilidade de qualquer justificação desse tipo. Apenas nega que a ciência ju-
rídica possa desempenhar tal função. Na verdade, nega que a tarefa da ciência jurídica
ser dado. A investigação, porém, deve cessar em algum momento. consista em justificar o que quer que seja. A justificação implica um juízo de valor, e o juí-
Qual é o objeto da teoria jurídica? O direito, e o direito é uma criação humana. zo de valor é questão da ética e da política, mas não do conhecimento puro; a ciência ju-
Qual é a "presença específica" para o direito? A "pessoa" humana não reduzida a um rídica se dedica a servir a esse conhecimento (Kelsen, 1935: 535).
objeto das ciências empíricas, mas vista como pessoa dotada de uma alma que for-
nece o material da teologia; uma pessoa com capacidade jurídica, o sujeito jurídi-
co'. Como a crença na existência da alma é necessária à religião, também a crença A ESTRUTURA DA TEORIA PURA
na existência do sujeito jurídico livre é necessária à teoria jurídica; porém, a crença na
alma é tomada pela teologia para determinar a existência de Deus, e estabelece-se Kelsen parecia aceitar a imagem weberiana da autoridade jurídica, e analisa sua
uma relação entre Deus e o sujeito cujo objetivo consiste em determinar uma uni- estrutura formal. Ele introduz certos pressupostos sobre a natureza do sistema jurí-
dade. O sujeito que crê é absorvido em seu amor a Deus e no amor de Deus a ele. dico para criar sua Teoria Pura; em particular, presume que um sistema jurídico seja
Quando essa "unidade" é transferida para o sujeito jurídico, o Estado absorve o su- autônomo, completamente auto-suficiente e interligado de maneira lógica e sistemá-
jeito numa unidade orgânica. Contudo, quando analisamos a história do pensamen- tica. Os sistemas jurídicos são hierárquicos em sua estrutura (Stufen bau) . A maior par-
to humano nos damos conta de que Deus não pode existir senão como encarnação te do que ele escreveu sobre a Teoria Pura diz respeito ao detalhamento das relações
da cristalização psicológica do homem - cristalização de seu temor reverencial dian- das normas com um sistema, a possibilidade de conflitos ou contradições entre as
te do mistério da existência. Deus e o Estado só existem se, e na medida em que, ne- normas e a natureza da interpretação e da legislação.
les se acredite, e todo o seu imenso poder, que impregna a história do mundo, entra O ponto de partida é a distinção que Kelsen faz entre o "ser" e o "dever-ser"
em colapso se a alma humana conseguir abandonar essa crença (ibid.: 80). Precisa- do direito; ele se propõe a oferecer uma teoria "pura" que seja descritiva da estrutu-
mos destruir Deus a fim de nos tornarmos plenamente humanos; porém, ao elimi- ra jurídica existente. Todavia, o objeto da ciência jurídica é o material normativo da
narmos nossa crença em Deus, corremos o risco de perder nossa capacidade de nos ordem jurídica; o "ser" da concepção kelseniana da ciência jurídica consiste numa
atribuir uma alma. Da mesma maneira, se despojássemos a idéia de Estado de toda descrição de proposições de "dever-ser" (jurídicas, não morais). A ordem jurídica
consiste num sistema de proposições de dever-ser.
Kelsen interpreta Austin como um empirista relativamente simples,. o que sig-
9. "Assim como o homem, criado à imagem de Deus, um ser espiritual, aparece no sistema teológico nifica que Austin interrompeu sua análise num nível descritivo geral, sem proceder
não propriamente como um organismo físico (isto é, animal), mas como alma, a teoria jurídica deve enfati- aos atos interpretativos necessários à contemplação da natureza especificamente
zar categoricamente que o homem entra em suas considerações não como uma unidade biológico-psicoló-
gica, mas como uma 'pessoa', uma entidade especificamente jurídica e, desse modo, ela cria seu homem à jurídica da atividade social observada. Em essência, Kelsen acusa Austin de não ter
imagem do Estado, uma pessoa jurídica" (Kelsen, [1922] 1973: 79-80). compreendido a estrutura normativa da legalidade, e argumenta que, no fim, a teo-
/ i/Ii )/jif ,I Jii,j liii. /Jhw,.J\rI.ii 393
É.aausth-dana pretendeu extrair umas' eríèi de proposições "dv U" 1' j*Õposiçõei di:urn dever-ser moral? A:existência mesma de um
JI' (/('(ll'!':í'/'> hill ui'
"ser" (Kelsen, 1973: 271-287), As unidades estruturais básicas da teoria de Ati:l i 11111W iii idico iloplicd que lhe devemos prestar obediência moral? Não. Trata-se
eram observações de fatos sociais, a redução da idéia de regras e obrigações aos co m l/I'I'et jurídico, jnão moral. A descrição da ordem jurídica como um
mandos de um soberano e a aplicação desses comandos; à procura de dados empí wM11) d i 10 )posições de dever-ser é muito diferente de se dizer o que o direito deve
ricos para criar uma ciência do direjto, o observador se dava conta das regularidade (n's(.- icvertdo-se um conteúdo substantivo) ou de afirmá-lo digno de respeito
de um soberano que costumava ser obedecido e não obedecia a ninguém, e que co
mandava sujeitos que habitualmente obedeciam. Kelsen, porém, perguntou: "De que
modo isso descreve o processo por meio do qual alguém 'deve' obedecer ao direito?" A3 normas jurídicas podem ter qualquer tipo de conteúdo. Não existe nenhum tipo
Para Kelsen, as regras eram as características observáveis (na escrita etc.) de um lo comportamento humano que, devido a sua natureza, não se pudesse transformar
sistema normativo. As regras eram, portanto, as características de superfície do di- nuiii dever legal correspondente a um direito legal (1945: 113).
reito, e as normas sua essência interior; conquanto elas possam ter dado origem aos
atos de "vontade" de um Parlamento, ou à adoção de um costume por um juiz, uma As normas jurídicas são um subgrupo específico de normas. Sua especificidade
vez aceitas como direito adquirem existência independente; sua validade não de- orre do fato de que (i) uma norma é, em essência, uma diretriz para as ações -
pende da vontade de um mandatário: "Uma norma é uma regra que afirma que um rinlo impor um dever, mas também equivaler a uma permissão; e (ii) enquanto as
indivíduo deve comportar-se de determinada maneira sem afirmar, porém, que tal 1 umas morais são meras proposições que descrevem nossas preferências
comportamento seja a vontade específica de alguém" (1973: 273). Num sistema ju- i,micritais subjetivas - sendo, portanto, impossível demonstrar objetivamente a exis-
rídico, existem coisas que podemos observar empiricamente - regras e comporta- 11 , 11 cia do direito natural -, as normas jurídicas são institucionalizadas, o que signi-
mentos - e coisas que não podemos observar - as normas - darem sentido aos 1),, 1 que são dotadas de caráter subjetivo e objetivo.
eventos empíricos. As normas são o aspecto inteligível não-observável, a essência Nota: para Kelsen, os juízos morais são essencialmente irracionais, no sentido de
da ordem jurídica. E nossa análise tem de permanecer fiel à natureza das normas. têm origem na expressão de nossos sentimentos ou intuições. O relativismo mo-
Uma vez que a ordem jurídica nos impõe obrigações, essas obrigações - essas "pro- I, ou a situação em que nenhuma verdade moral absolutamente válida pode ser de~
posições de dever-ser" - não podem provir de alguma ordem natural, mas apenas 111 instrada, é o destino da modernidade. E o aspecto procedural da ordem jurídica
originar-se de um ato de vontade humano`. Os seres humanos criam normas me- 1' u' confere às normas jurídicas sua validade objetiva. Dispomos da conclusão opos-
diante um ato de vontade humano que estipula que alguma coisa deve ser feita ou iquilo que motivou o projeto final de Austin, que ficou incompleto. Ele tinha espe-
deixada de fazer. Uma vez estabelecidas, contudo, as normas podem assumir uma ça de presenciar a união do direito e da ética - uma ciência conjunta de ambos
existência independente ao longo da duração da ordem jurídica". O que é, porém, s Kelsen, sem jamais insinuar que a razão de Austin ter deixado seu projeto in-
ocluso tivesse sido sua incapacidade de levar a cabo tal tarefa, argumenta que o
,icionalismo de valor (a impossibilidade de comprovar cientificamente uma estru-
10."Enquanto sistema de fatos ligados entre si segundo.a lei de causalidade, a natureza não tem von- i coerente que aglutinasse todas as posições de valor) implica que o direito não
tade e, portanto, não pode prescrever um comportamento explícito para o homem. A partir de fatos, quer di- de ser uma extensão natural da verdade da ética, uma vez que esta está condena-
zer, daquilo que existe ou é concretamente feito, não se pode inferir aquilo que deve existir ou ser feito. Na li i ao pluralismo`. Em sua pureza, o sistema jurídico é uma estrutura de ordem; sua
medida em que a doutrina do direito natural tenta inferir, da natureza, normas de comportamento humano,
ela tem por base uma falácia lógica. i tolidade é não-jurídica; o sujeito de outras ciências sociais.
O mesmo se pode dizer a propósito da razão humana. As normas que prescrevem o comportamento hu-
mano só podem emanar da vontade humana, e não da razão humana; portanto, a afirmação de que o homem
deve comportar-se de determinada maneira só pode ser tocada pela razão humana sob a condição de que, por
vontade humana, instituiu-se uma norma que prescreva esse comportamento; a razão humana pode com- 12.Assim, Lee argumenta que Kelsen nos oferece "uma concepção do positivismo jurídico como filo-
preender e descrever tal comportamento, mas não pode prescrevê-lo. Descobrir normas de comportamento hu- LI da ordem, mas não da reforma. Conceitualmente, a noção de boa ordem foi considerada vazia, trivial e
mano na razão humana é a mesma ilusão que inferi-Ias da natureza" (Kelsen, em What is Justice, 1957: 20-21). .ílj,ificante. Se assim for, o direito só pode, de fato, reforçar a ordem". Isso só é correto em parte, uma vez
11. Não vejo motivo para afirmar que Kelsen estivesse envolvido com qualquer versão de algum ideal Kelsen acredita que o direito, enquanto técnica social específica, pode ser usado para um grande niime-
platônico ou de essência das normas. Sua teoria da justiça não é nossa busca humana da estrutura ideal das du fins. Além disso, Lee afirma que Kelsen não pode ter uma teoria da justiça, e que seu positivismo jurí-
normas ou de qualquer coisa do gênero; os seres humanos criam normas, mas uma vez criadas elas ganham icu equivale à preservação da ordem legal. Isso é um erro. Kelsen exime a ciência jurídica. da responsabili-
existência própria. Vejo mais semelhanças com a idéia dos "três mundos", de Karl Popper, do que com qual- Lidu de construir a "boa" ordem, n,as nos deixa à vontade para argumentarmos como economistas, cientis-
quer vertente do pensamento platônico. li; políticos, pessoas em busca da justiça.
394 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 395
A NATUREZA ESPECfFICA DA NORMA JURÍDICA direito, veremos que o sistema jurídico não afirma que "ninguém roubará"; em vez
disso, tem uma Lei Sobre o Roubo que estipula as condições que configuram esse
"O direito é uma ordem para o comportamento humano" (1945: 3) criada pelo tipo de crime, e então estipula certas sanções que serão aplicadas a quem o tiver
método jurídico, que "designa uma técnica específica de organização social" (ibid.: 5). praticado. Em parte alguma o sistema jurídico diz "ninguém roubará"; ao contrá-
Essa técnica é essencialmente: (i) uma metodologia coerciva que opera através do uso rio, e de modo objetivo, diz que "se alguém roubar, será punido".
sistemático de sanções; e (ii) aplicada por agentes ou funcionários autorizados pela Kelsen afirma que as normas sociais específicas, como "não se deve roubar", são
ordem jurídica a aplicar sanções. Essas duas condições assinalam o que há de único normas subjetivas que podem ou não ser compartilhadas por mais pessoas além das
no direito e o que há de comum.a todos os usos da palavra "direito", permitindo que que constituem o corpo soberano que interpreta a ordem jurídica. A vontade subje-
a apliquemos "como se fosse a expressão de um conceito dotado de um significado tiva ou a proposição prescritiva que a norma coerciva ou jurídica particular enuncia
extremamente importante do ponto de vista social" (íbid.: 19). Esse conceito é, po- fica por trás apenas da objetividade da ordem jurídica. Esta, contudo, pode impor
rém, verdadeiro no que diz respeito à verdade histórica; historicamente, o direito tem uma objetividade jurídica ao relativismo moral; está aí sua grande vantagem. Numa
sido uma prática associada à coerção". democracia, a norma moral-social que sustenta a norma jurídica ou coerciva pode
Enquanto desenvolve ou interpreta um elemento normativo das "regras", Kelsen ser compartilhada por muitos; num regime totalitário, pode ser compartilhada por
parte do realismo de Austin para enfatizar a realidade da coerção e o papel das au- apenas um pequeno grupo; a ordem jurídica contém uma norma jurídica objetiva em
toridades: uma norma jurídica é uma proposição de dever-ser que tem em tais autori- ambas as circunstâncias. Kelsen chama a primeira norma social ou moral de "norma
dades seu destinatário, permitindo que apliquem uma sanção em determinadas secundária", e a norma jurídica genuína de "norma primária". Observe-se: somente
circunstâncias. Em geral, o direito consiste em diretrizes para que as autoridades a norma primária é vista como uma norma jurídica verdadeira. No esquema de Kel-
apliquem sanções no caso de ocorrer algum comportamento contrário ao que exi- sen, argumentar que ambas as normas fazem parte de um sistema jurídico seria cair
ge a ordem jurídica. O direito, porém, não é simplesmente proibitório; pode permi- na armadilha do pensamento do direito natural, em que uma visão de mundo fun-
tir que as pessoas estabeleçam relações sólidas e reformulem transações, como, por damentalmente subjetiva (não importa quão amplamente compartilhada) é consi-
exemplo, na feitura de um testamento. O direito é uma forma de controle social que derada como a ordem natural das coisas, exigindo que o direito assuma uma cer-
atua ou mediante a imposição de deveres ou da concessão de poderes às autorida- ta forma substantiva`. O direito é puro, e pode adequar-se ao topo de qualquer es-
des, para que elas apliquem sanções. A ciência jurídica observa a subjetividade das trutura social ou moral que se desejar; até mesmo o evento que constitui um crime
normas por trás das normas jurídicas, como "os ladrões devem ser punidos", e a não é, estritamente falando, uma contradição da ordem jurídica; ao contrário, é o
transpõe para a objetividade da ordem jurídica, como "se alguém roubar, então as evento (que Kelsen chama de "delito") que põe em ação a norma jurídica e a aplica-
autoridades legalmente constituídas devem aplicar a devida sanção". ção da sanção.
Estritamente falando, um cidadão não tem, de modo algum, uma norma jurí-
dica que a ele se dirija. Se um cidadão faz alguma coisa que deflagra as circunstân- O direito é a norma básica que estipula a sanção, e essa norma não é contestada pelo
cias nas quais uma autoridade deve aplicar uma sanção, esse cidadão não fez nada delito do sujeito que, ao contrário, constitui a condição específica da sanção (1945: 61).
de contrário à norma jurídica; na verdade, ele praticou aquilo que Kelsen chama de
"delito". Se nós, como cientistas do direito, procurarmos compreender de que modo À sua busca da essência do sistema jurídico, Kelsen combina uma observação po-
a política de proteger a propriedade ou impedir o roubo funciona no contexto do sitivista do papel das autoridades com as instituições jurídicas. As instituições apli-
13. "Se a teoria pura do direito pressupõe que a coerção é um elemento essencial do direito, assim o faz 14. "Para a opinião corrente, existem dois deveres ou normas jurídicos especificamente ligados entre si:
porque um exame criterioso das ordens sociais chamadas de 'direito' na história da humanidade apresenta (1) você deve comportar-se de determinada maneira; (2) se você ( ... ) infringir o dever e/ou norma designa-
um elemento comum, um elemento de grande importância na vida social: todas elas prescrevem atos coer- dos em (1), será alvo de um ato coercivo. Mas isso não será suficiente, pois não corresponde à estrutura do
civos em forma de sanções. Ao definir o conceito de direito como uma ordem coerciva, isto é, como uma or- direito positivo, que se apresenta fundamentalmente como urna ordem de coerção. Toda essa distinção vi Ce
dem que prescreve atos coercivos em forma de sanções, a Teoria Pura do direito simplesmente admite o sen- uma norma primária e uma declaração de direito secundária que, no caso de violação da prinu'ira uurlu,i
tido que o termo 'direito' tem assumido na história da humanidade. Ao definir o direito como uma ordem mencionada, determina um ato de coerção, não é apenas supérflua, mas também enganadora, porque a um-
coerciva, a Teoria Pura do direito concebe o direito como uma técnica social específica. Essa técnica se carac- çâo de obrigar a uma ( ...) declaração de direito que determina um ato de coerção introduzido em (2) e, rio
teriza pelo fato de que a ordem social, chamada de 'direito', tenta extrair um certo comportamento dos ho- sistema de direito positivo, considerado como urna ordem essencialmente coerciva, apenas por Isso (...) todo
mens, tido como desejável pelos legisladores, ao aplicar atos coercivos em forma de sanções nos casos de .se dualismo de uma primeira norma e uma segunda, que ameaça a violação da primeira com o ato de coer-
comportamento divergente" (Kelsen, 1957: 289). provém claramente do raciocínio do direito natural" (Kelsen, em Weinberger, 1973: 53-4).
396 Filosofia do direito. A Teoria Pura de Hans Kelsen 397
cam o procedimento da verdade do direito a técnicas probatórias de aplicar procedi e rpretação jurídica. Especificamente, a existência de um conjunto jurídico de leis,
mentos de verificação a fatos questionados, para verificar se ocorreu algum delito: 1,()i exemplo, as que dizem respeito ao assassinato de outros seres humanos deter~
isso é um processo jurídico, e em seguida aplica-se a norma jurídica; às vezes, a ver- teiMam que o ato de matar é um assassinato.
dade jurídica contradiz a norma jurídica - como no caso de uma convicção falsa
mas ainda assim é esse o funcionamento do direito`. Ao associar uma análise das re- [Identificar] um ato corno a execução da pena de morte, e não como um assassina-
gras do direito à ação do direito, Kelsen está à procura da estrutura subjacente à apa- o (...) resulta de um processo mental: da confrontação desse ato com o código penal e o
rência deste. Ao fazê-lo, ele acredita ser necessário pressupor que uma estrutura código de processo penal (1967: 4).
profunda uniforme esteja na base de todo o direito, e representa isso como um con-
junto de normas que assume a forma de (diferentes) instruções às autoridades, di- O MAIERIAL PARA A IN I'ERPRETAÇÃO SE ENCONTRA NA
zendo-lhes que apliquem sanções em determinadas circunstâncias. Ao fazer distin- IDÉIA DE VALIDADE JURÍDICA DO SIS lEMA JURÍDICO
ção entre o que chama de "regras de direito em sentido descritivo" e normas jurídi-
cas, Kelsen pede que a ciência jurídica se abstenha da mera análise doutrinária. Urne Ao argumentar que as coletâneas jurídicas, de leis ou precedentes judiciais, fun-
abordagem doutrinária identificaria o direito como "regras de direito em sentido e nem como um esquema de interpretação, Kelsen situa as normas jurídicas no con-
descritivo", como, por exemplo, os diversos parágrafos da Lei de Direito de Pro- lo de uma teoria da validade jurídica que é uma teoria hierárquica, ou de busca das
priedade de 1925, ou as diferentes regras provenientes da jurisprudência. Porém, ifliqens. As normas jurídicas recebem sua validade de normas mais elevadas e gerais,
diz ele, essas regras só descrevem parcialmente o que são as leis verdadeiras, que são que se chega a um ponto em que nos detemos: nesse ponto nos deparamos com
as noui tas jurídicas ou proposições de dever-ser dirigidas às autoridades. Ao contrário LI e Kelsen chama de norma básica, ou Grundnorm, que confere validade a toda a
disso, compete à ciência jurídica transcrever toda a matéria-prima de nossa ciência II Ç lern jurídica. Dada a forma particular da norma jurídica - a saber, a aplicação sis-
produzida pelas autoridades jurídicas em forma de afirmações que descrevem o que 'Inética de sanções pelas autoridades, de modo que as leis sejam, em essência, di-
são as normas jurídicas. Em outras palavras, uma boa descrição do direito exige que '1 e zes para que essas autoridades apliquem sanções em determinadas circunstân-
tudo que identificarmos como direito deve ser convertido em enunciados do tipo: 11,1 e -, a hierarquia das normas deve ser vista como uma hierarquia de diretrizes cuja
"se uma pessoa faz X, uma autoridade deve aplicar uma sanção Z". Uma das ta- 1111 1ÇO consiste em permitir que as autoridades apliquem sanções. Estas vão, como
refas dos cientistas jurídicos consiste em produzir as normas jurídicas inerentes âe ta Kelsen, desde a "sanção concreta", que assume a forma de uma diretriz espe-
1111 i i -
regras do sistema. 'HaLl para que uma pessoa específica aplique uma sanção específica, como um juiz
II Ver a um oficial de justiça que aplique uma isenção aos bens de alguém depois que
11111 a ordem de execução foi emitida, até a forma mais geral, nos moldes da norma
AS FACULDADES INTERPRETATIVAS DO CIENTISTA JURÍDICO
c;ea que diz: "as leis coercivas devem ser aplicadas de acordo com a (historicamen-
') irimeira Constituição". Kelsen descreve como isso funciona num famoso exem-
Em termos neokantianos, decompomos nossas faculdades de observação. Sr, 1) em que compara as exigências de um gângster que quer dinheiro com as de um
simplesmente observarmos eventos que ocorrem no mundo espaço-temporal - o
letor de impostos:
mundo dos eventos factuais simples -, não teremos como identificar o que é signi
ficativo a propósito desses eventos; eventos ou "fatos" isolados não podem ter im A ordem de um gângster para que lhe passem uma certa quantia de dinheiro tem o
portância em si mesmos. Para dar sentido ao mundo, contamos com as narrativa mesmo significado objetivo que a ordem de um coletor de impostos; em outras palavras,
da vida cotidiana, nossa memória e, em termos kantianos, com nossas categoria o indivíduo a quem a ordem se dirige deve pagar alguma coisa. Contudo, somente a e
de entendimento. Desse modo, o significado jurídico de um ato não é alguma coital dem do coletor, e não a do gângster, tem o significado de urna norma válida que ob ri
que os sentidos percebam facilmente; a importância jurídica de um ato ou evento e legalmente o indivíduo ao qual se dirige. Somente a primeira ordem, e não a seHiiIeIa.
determinada ao se interpretá-lo por meio dos materiais que a memória nos oferece é um ato que impõe uma norma [que deve ser obedecida], porque o ato do colei II II
as narrativas da vida social e, para o cientista jurídico, os instrumentos específicos d torizado por uma lei de impostos, enquanto o do gângster não tem por base is'i 1 ii I i ii.
oorma semelhante que o autorize. O ato legislativo [isto é, a criação ou posluleçu ti
ceito tributário] que tem, subjetivamente, o sentido de um dever-ser, tem 1 i ti i i ' e
15. Como afirmou Kelsen em 1928: "Se alguém estiver validamente condenado por um roubo que, lido objetivo - isto é, o sentido de uma norma válida—, pois a constituiçi> e 1 '1 111 O
verdade, nunca cometeu, a norma geral do direito positivo, para a qual 'quem quer que roube será punid eentido objetivo ao ato legislativo [a Constituição determinou a metod Hiqi. i u i, i ti Mi
certamente não se concretiza, mas ainda assim 'o direito foi aplicado" (Kelsen, em Weinberger, 1973: 48). çao de leis válidas]. O ato cujo sentido está na Constituição não tem i tle'n
398 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 399
subjetivo, mas também o sentido objetivo de um dever-ser, ou seja, o caráter de uma nor- do qual não há como prosseguir: em outras palavras, estaremos diante do fato de
ma obrigatória, se - caso se trate de uma (historicamente) primeira Constituição - pre- ue a lei municipal foi, em última análise, legitimada pelo Parlamento. Se nos per-
sumirmos, em nosso pensamento jurídico, que devemos nos comportar nos tejinos untarmos qual a razão da validade das leis do Parlamento, a resposta será o con-
previstos pela Constituição (1970: 8). unto de postulados que formam a Constituição. Se perguntarmos por que a Cons-
Ii tuição confere validade ao processo autorizado pela Constituição, a resposta será:
Vemos, aqui, a cadeia de autorização e função essencial da norma básica, ou isso, exatamente, o que pressupomos.
Grundnorm. Uma vez que somente as normas podem validar outras normas, a vali-
dade de uma norma é estabelecida quando a situamos no contexto de uma hierar- A norma que representa a razão da validade de outra norma é chamada de norma
quia de normas. Uma vez que aceitemos essa imagem, toda a questão do funciona- "superior". Porém, a busca da razão da validade de uma norma não pode prosseguir in-
mento da ordem jurídica pode se resumir a essa classificação interpretativa; por definidamente. Deve terminar em uma norma cuja existência (...) se presume. Deve ser
exemplo, a validade jurídica do ato oficial da imposição de uma multa. Como evento presumida porque não pode ser "postulada", isto é: criada por uma autoridade cuja com-
factual, uma pessoa deixa seu carro em determinado lugar e, algumas semanas depois, petência teria de basear-se em uma norma mais superior ainda (...). Essa norma que se
recebe uma multa. Em si mesmos, os eventos factuais não nos dizem nada; preci- pressupõe mais elevada é (...) a norma básica. Todas as normas cuja validade pode re-
sam ser interpretados por meio das leis aplicáveis para que possamos identificar a montar a uma e à mesma norma básica constituem um sistema de normas, uma ordem
importância jurídica dos atos factuais. Examinamos a decisão e constatamos que a normativa. A norma básica é a origem comum da validade de todas as normas que per-
pessoa foi multada de acordo com uma lei orgânica da cidade, e que esta foi aplica- tencem à mesma ordem - é a razão da validade delas (1970: 194-5).
da nos termos de uma lei municipal. Examinamos esta última e descobrimos que foi
promulgada de acordo com o procedimento que a torna válida conforme Lei do Par- Para dar sentido a uma norma jurídica, devemos pressupor que toda ordem ju-
lamento. Em cada etapa desse processo, em nossa busca da busca das origens es- rídica tem uma norma básica. No caso de algumas ordens jurídicas, podemos fazer
tamos procurando uma norma mais geral que incorpore a mais específica. Há, por- nossa cadeia remontar a uma Constituição e descobrir que esta foi criada de acor-
tanto, uma relação de vinculação lógica entre as normas mais gerais e as mais es- [o com uma Constituição anterior, e até mesmo que talvez pudéssemos descobrir que
pecíficas. Todas as leis do Parlamento são válidas. A Lei de Testamentos é uma lei ssa Constituição foi, por sua vez, criada de acordo com uma Constituição ainda
do Parlamento. Portanto, trata-se de uma lei válida. Todos os documentos redigidos de riais remota no tempo. Em última análise, porém, haverá um ponto para além do qual
acordo com a Lei de Testamentos são válidos. Portanto, este documento redigido não poderemos prosseguir:
de acordo com a Lei de Testamentos é válido, e assim por diante. Haverá um ponto fi-
nal necessário? Subir pela cadeia de validade ou hierarquia do direito a fim de en- Ao fim e ao cabo, chegamos a uma Constituição que é historicamente a primeira, e
contrar o fundamento de sua juridicidade deverá, necessariamente, implicar que se que foi formulada por um usurpador individual ou por algum tipo de assembléia. A va-
chegue a um ponto final que configure a base de todo o processo? lidade dessa primeira Constituição é último pressuposto, o derradeiro postulado do qual
Kelsen argumenta que devemos extrair um sistema lógico do material de ordem depende a validade de todas as normas de nossa ordem jurídica. Nela se determina que
jurídica. Além disso, ele parece argumentar que é somente ao presumir esse ponto fi- devemos nos comportar conforme determinou/determinaram aquele/s que a formu-
nal que podemos conferir sentido às atividades concretas das autoridades jurídicas lou/formularam (1945: 15).
e dos juristas do círculo acadêmico. Se fôssemos dar continuidade ao processo, não
conseguiríamos nunca estabelecer a validade de qualquer norma, pois teríamos de Não é a primeira Constituição que funciona como base de convalidação, mas
chegar ao infinito. Contudo, uma vez que podemos estabelecer a validade das nor- 1 ma norma mais básica: "A norma básica é a de que os atos devem ser praticados nos
mas jurídicas, deveremos ser capazes de remontar a alguma norma fundamental que rmos da (historicamente) primeira Constituição, e não a da primeira Constituição."
confira validade a todas as outras normas. A Constituição em si não pode ser a norma básica, uma vez que se trata de um
locumento factual ou de uma série de postulados, e não de uma norma. A contrírio,
1 norma básica prescreve que "os atos devem ser praticados nos termos da Coristilu!-
A GRLINDNORM, OU NORMA BÁSICA, É UM PRESSUPOSTO ção". Não há, porém, nenhuma autoridade para determinar que assim seja ou fa
DO PENSAMENTO, E NÃO UM FATO OU UMA ENTIDADE EMpíRICA er cumprir o que aí se determina; trata-se de algo que devemos pressupor 6. Nos sis
Chegamos à norma básica quando não podemos, em princípio, dar mais um
único passo atrás em nossa cadeia de validade. E assim descobrimos, ao buscar fun- 16. Kelsen gostava de ilustrar isso com o exemplo de um pai que conversa com o filho sobre sua ordem
damento do título jurídico de uma lei municipal, que chegamos ao ponto para além que este vá para a escola (exemplo seguinte, 1986: 112). 0 filho pergunta: "Por que devo ir à escola?", :e
400 Filosofia do direito
A Teoria Pura de Hans Kelsen 401
temas jurídicos que não têm Constituição escrita, a Constituição decorre do costume. mos ainda perguntar por que essa "lei" representa urna norma, por que razão é objeti-
A norma básica desses sistemas jurídicos assume a seguinte forma: "Os atos coerci- vamente válida. Prima facie, a "lei" é mera questão factual, isto é, o fato de diversas pes-
vos devem ser aplicados de acordo com o modo costumeiro de se praticar o direi- soas terem expresso sua vontade de que outras devem, a partir de então, agir de deter-
to em cada país." Uma vez que o Reino Unido e a Nova Zelândia, por exemplo, não minada maneira. Por que, porém, deve a vontade expressa por essas pessoas, nestas
têm Constituição escrita, temos de pressupor que a norma básica dessas sociedades circunstâncias particulares, significar uma "lei" enquanto, se outros em outras circuns-
é costumeira. Uma norma básica ainda assim estrutura o processo de validação, e é Tâncias a expressassem, não teriam de modo algum o mesmo significado? Aqui, deve-
possível que uma das normas constitucionais básicas autorizadas ou legitimadas por mos responder: O evento que interpretamos como criador de uma lei está em confor-
essa norma básica seja: "As leis coercivas devem ser aplicadas de acordo com o que midade com uma norma ainda mais elevada, a Constituição, porque essas pessoas fo-
for aprovado no Parlamento." Outra norma constitucional "básica" seria: "Os atos ram dotadas, pela Constituição, do poder de criar leis. Essa "Constituição" nada mais é,
coercivos devem ser aplicados de acordo com as decisões tomadas pelos tribunais do por sua vez, do que um evento factual prima facie cujo significado normativo só pode
common law." Como tudo isso se harmoniza entre si, e qual a função exata da norma ser encontrado se recorrermos à Constituição anterior, de acordo com as regras com as
básica? Talvez seja melhor deixar que as palavras de Kelsen falem por si mesmas: quais foi criada. Esse recurso deve, em última análise, terminar na Constituição origi-
nal, que não mais se pode derivar de uma Constituição mais anterior ainda. O jurista
positivista, que não pode ir além dos fatos fundamentais, pressupõe que esse fato his-
A norma básica estabelece a validade do direito positivo e exprime o caráter hipo-
tórico original tem o significado de "Constituição", que a decisão de uma assembléia de
tético/relativo de um sistema de normas revestido apenas da validade do direito posi-
homens ou a ordem de um usurpador tem o significado normativo de uma lei funda-
tivo. Não se trata apenas da hipótese de uma teoria especial do direito. Trata-se da mera
mental. Somente ao fazer tal pressuposto pode ele demonstrar o significado noutiati-
formulação de um pressuposto necessário a qualquer compreensão positivista de ma-
vo de todos os outros atos que entende como atos legais simplesmente porque, em úl-
térias jurídicas. Simplesmente traz à consciência o que todos os juristas fazem quando,
tima análise, ele os faz remontar à Constituição original. A norma básica hipotética que
mesmo inconscientemente, no entendimento da questão de que se ocupam, rejeitam o
estabelece o legislador original expressa esse pressuposto; formula-o conscientemen-
direito natural (isto é, limitam-se ao direito positivo) e, ainda assim, consideram os da-
te, nada mais. Isso significa que o positivismo jurídico não vai além dessa Constituição
dos de seu conhecimento não como meros fatos de poder, mas como direito, como nor-
original para produzir uma justificação material e absoluta da ordem jurídica. Pára nes-
mas. Em geral, eles entendem as relações legais com as quais estão envolvidos não como
se ponto. A norma básica é um pressuposto indispensável porque, sem ela, não se po-
a relação natural de causa e efeito, mas como as relações normativas de obrigações e di-
deria estabelecer o caráter normativo do evento histórico básico. Esse ato fundamental
reitos. Todavia, por que motivo um ato humano, que ocorre no tempo e no espaço e é
a que o jurista positivista recorre, e para além do qual vê seu caminho obstruído, é in-
apreensível pelos sentidos, é interpretado como um ato jurídico (uma transação legal ou
terpretado como um ato de criação de direito do modo como vem expresso na norma
uma decisão jurídica) intrínseco ao significado de qualquer direito positivo (alemão, fran-
básica, que por sua vez não é justificada por uma norma superior e portanto transmi-
cês ou inglês)? Por que se deve considerar tal ato como uma norma, e não apenas como
te, ela própria, nada além de uma validade hipotética (The Basic Norm of Positive Law
mero evento na realidade? Por que se deve, também, conferir um significado objetivo ao
A norma básica do direito positivo], pp. 395-6).
significado subjetivo desse ato? Em outras palavras, por que não se diz, apenas, que de-
terminado indivíduo exige que outro aja de determinada maneira, mas na verdade argu-
menta que um tem o direito de determinar, e que o outro é obrigado a agir de acordo Em resumo, este é um processo de busca da fundamentação da juridicidade
com o que foi determinado? Por que pressupomos que aquilo que o ato em questão co- - o qual: (i) a norma jurídica não é um fenômeno empírico (não é alguma coisa
munica, subjetivamente, deve ser objetivamente aplicado pelo direito? Eis a resposta do scrita, por exemplo); ao contrário, é um fenômeno inteligível imputado à estru-
jurista positivista: porque esse ato individual se baseia em uma noiiia, uma regra geral, ura empírica da ordem jurídica, e dá uma diretriz que inclui a permissão para, que
uma lei, porque a lei prescreve que um indivíduo deve agir como as partes assim o de- uma autoridade aplique uma sanção em determinadas circunstâncias; (ii) a
terminaram em sua negociação legal, ou como o juiz ordenou em sua sentença. Pode- oridades do sistema constituem o sujeito principal das normas jurídicas; (iii)
atividades empíricas dos cidadãos que fazem funcionar o sistema jurídica i ii
dade não infringem as normas jurídicas; em vez disso, praticam dcliio,;,
o pai responde: "Porque Deus determinou que os pais sejam obedecidos - isto é, autorizou os pais a dar or- íctuais que atendem às condições que dão origem à aplicação oficial di' iliçi:
dens aos filhos." O filho, porém, pode replicar: "E por que deveria alguém obedecer às determinações de
Deus?" O mero fato de que Deus existe, e até mesmo a crença em que ele é o todo-poderoso criador do cos- (ix) as normas jurídicas só podem ser validadas por outras normi
mo, não oferece uma resposta à pergunta "Por que suas ordens devem ser obedecidas?". Em última análise, ibrangência mais geral. Esse processo leva, potencialmente, aokdHiI
a razão é a seguinte: "Porque, na condição de crente, uma pessoa pressupõe que se deva obedecer às deter- ierrompê-lo, devemos postular a existência de (v) uma norma liiuI u'
minações de Deus. Isto é, a afirmação da validade de uma norma deve ser pressuposta no ponto de vista de não dependa de outra norma para ser válida. Isso organiza o "à:It-111, 1 v
um crente de que é preciso estabelecer a validade das normas de uma moral religiosa."
unidade à ordem jurídica.
402 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 403
Até 1963, Kelsen descrevia a norma básica em termos de um postulado ou pres- supõe consciente ou inconscientemente uma norma básica que atribua validade a to-
suposto teórico. Uma vez que sua função consiste apenas em deixar claro o que que- das as leis, não aceita, necessariamente que a lei seja moralmente válida; segundo,
remos dizer, essa norma tem apenas uma função cognitiva ou epistemológica17. não é necessário que ninguém pressuponha a validade de uma ordem jurídica`. Este
segundo ponto é crucial: poderíamos não querer tratar a ordem jurídica como uma
Ao contrário do que ocorre com uma norma jurídica positiva, a norma básica não instância sistemática, caso em que não precisamos pressupor uma Grundnorm. Sem
é válida por ter sido criada de determinada maneira por um ato legal, mas é válida dúvida, porém, o resultado será que não conseguiremos praticar uma ciência jurídi-
porque se pressupõe que assim o seja, porque sem esse pressuposto nenhum ato huma- ca positivista`.
no poderia ser interpretado como um ato jurídico (1945: 116).
Mas quem, exatamente, pressupõe a norma básica? Kelsen às vezes parece in- A RELAÇÃO ENTRE VALIDADE E EFICÁCIA
sinuar que é qualquer pessoa que exista como cidadão de um sistema jurídico e fale
sobre a validade de determinada lei, porque o que confere sentido a tais afirmações É condição necessária do pressuposto ou da hipótese da norma básica que o sis-
lema de normas ao qual ela remete e, portanto, convalida, seja eficaz em deterrni-
é a norma básica. Portanto:
nada esfera. É vital observar que esta é apenas uma condição necessária, e não uma
A norma básica é apenas o pressuposto necessário a qualquer interpretação posi- condição suficiente.
tivista do material jurídico (1945.: 116).
A eficácia de toda a ordem jurídica é uma condição necessária à validade de cada
norma da ordem, uma condição sine qua nau, mas não uma condição per qúam. A eficá-
Todavia, ele também se refere ao fato de a norma ser um pressuposto dos "ju- cia da ordem jurídica como um todo é uma condição, e não a razão da validade de suas
ristas": normas constituintes (1945: 119).
Ao formular a norma básica (..) nós apenas explicitamos aquilo que todos os juris-
tas, em geral de modo inconsciente, pressupõem quando consideram o direito positivo 18.Ver, de Kelsen, "Professor Stone and the Pure Theoiy of Law" (1965), 17 Stcin LR 1128,1143: "Um
como um sistema de normas válidas, e não como um complexo de fatos (1945: 116). aspecto essencial de minha teoria da norma básica é que não é necessário pressupor a norma básica ( ... ). Um
comunista pode, na verdade, não reconhecer que haja uma diferença essencial entre uma organização de
gângsteres e uma ordem jurídica capitalista (...). Ele não pressupõe - como o fazem aqueles que interpretam
Em outro texto (The Pure Theory, 1970: 204-5), ele a menciona como uma regra a ordem coerciva como uma ordem normativa objetivamente válida - a existência da norma básica."
pressuposta pelo que chama de "cientista jurídico"; trata-se do postulado necessá- Ao explicar como o cientista jurídico encontra valores no sistema, Kelsen argumenta (1971: 226-27):
rio a que o cientista jurídico possa desincumbir-se da tarefa de analisar o sistema ju- "Dando por certa a existência da norma básica, podemos submeter os juízos de valor jurídicos baseados na
pretensa norma básica a um teste objetivo. Contudo, não há necessidade de pressupor a norma básica. Fb-
rídico. Devemos assinalar, porém, que duas coisas são afirmadas: a primeira é que
demos nos abster de interpretar o comportamento humano de acordo com as normas jurídicas, isto é, de
qualquer pessoa que interprete a lei como válida, e portanto, segundo Kelsen, pres- acordo com o significado implícito em certos atos humanos. O sistema de normas que chamamos de 'ordem
jurídica' é um esquema possível, porém não necessário, de interpretação. Um anarquista se recusará a falar
em comportamento 'legítimo' e 'ilegítimo de 'deveres legais' e 'direitos legais ou de 'delitos'. Ele entende
17. Como Beyleveld e Brownsword afirmam em sua discussão da norma básica (Law as Moral Judgment 'á o comportamento humano meramente como um processo por meio do qual um força o outro a compor-
[0 direito como juízo moral], 1985: 239), a chave para o entendimento de Kelsen está no entendimento de ar-se em conformidade com seus desejos ou interesses. O anarquista rejeitará a teoria normativa de valor, e
sua epistemologia: LL':tará apenas a teoria do interesse. Em suma, ele se recusará a presumir a norma básica que prescreve que
preciso comportar-se de acordo com o significado implícito em certos atos humanos."
(i) a norma básica desempenha apenas uma função epistemológica, e não uma função ética ou política;
19. O erro em que incorrem muitos comentaristas consiste em pressupor que, para Kelsen, tal sistema
(ii) o pressuposto da norma básica não implica uma atitude de aprovação do sistema de normas que lesse modo, logicamente "justo". Vejamos o que diz Raz, por exemplo: "Para um indivíduo, pressupor a
ela convalida; liulma básica equivale a interpretar o sistema jurídico como normativo, isto é, justo" (1979: 138). O erro de
talvez decorra do fato de ele encontrar, inconscientemente, uma concepção organicista no sistema
(iii) nem a norma básica, nem as normas por ela validadas têm algum conteúdo necessário. Porquan-
K'Isen. Por exemplo, Raz afirma: "Para Kelsen, todos os valores endossados por um indivíduo, todas as
to sejam normas morais, são apenas formalmente morais. Não são substancialmente (material-
)imoes morais, formam necessariamente um sistema normativo baseado em uma norma básica." KeIa'i
mente) morais;
lL)rém, tem uma imagem mecanicista do sistema, e não uma imagem organicista, como o demonstrai'n .,, i r.
(iv) uma ordem positiva, efetiva e coerciva não pode nunca ser descrita como legalmente inválida, ain- mentários dirigidos a Durkheim. A imagem organicista nos estimula a pensar o sistema como se
da que, pela impossibilidade de referir-se a ela em termos de uma norma básica, pode-se descre- vida, ou como se fosse mais do que sua mera fachada. Kelsen vê o sistema jurídico como uma
vê-la em termos não-jurídicos. II i a ura que não tem vida própria; a vida lhe é insuflada por processos sociais e políticos.
404 Filosofia do direito 405
A Teoria Pura de Hans Kelsen
Que significa isso? Primeiro, o mero fato de que existe um conjunto efetivo de Se duas normas parecem contradizer-se entre si, então uma delas deve ser in-
normas em operação numa sociedade específica - isto é, um conjunto de diretrizes válida, e podemos adotar o princípio de que a lei posterior no tempo é válida, e que
para que as autoridades apliquem sanções em determinadas circunstâncias - não i primeira perde sua validade. Isso acontece de acordo com o princípio de derro-
assegura que haja um conjunto de leis válidas nessa sociedade (e, portanto, não de- gação, ou lex posterior derogat priori. Esse princípio também explica a operação de
termina para o cientista social que haja um sistema jurídico em operação em tal es- revogação das leis.
fera). O simples fato de que podemos observar a eficácia - relações de causa e efei-
to entre a aplicação de sanções pelas autoridades e o comportamento não delitual Quando as normas cujo conteúdo se contradiz mutuamente são separadas pelo
dos cidadãos - não nos confere o conhecimento de um conjunto válido de normas. tempo de sua origem ( ... ) aplica-se o princípio de lex posterior derogat priori. Esse prin-
Em outras palavras, os fatos de eficácia não significam validade; esta requer o pres- cípio, conquanto não seja normalmente enunciado como um princípio geral de direito
suposto de que as normas do sistema sejam válidas. positivo, é dado por certo sempre que uma Constituição oferece a possibilidade de mu-
Em segundo lugar, uma vez que Kelsen afirma que a eficácia é uma condição dança legislativa (1945: 412).
necessária à validade de uma ordem jurídica, isso significa que só podemos pressu-
por ordens efetivas de normas como ordens válidas, e disso se segue que, tão logo Nos casos em que a mesma lei remete a normas jurídicas contraditórias, de
um sistema jurídico perca sua eficácia, por mais que queiramos pressupor sua vali- modo que não estão separadas no tempo, Kelsen diz tratar-se apenas de uma ques-
dade não teremos como fazê-lo. tão de interpretação da lei; portanto, uma delas é válida, ou talvez nenhuma o seja
Para que uma norma jurídica perca sua validade, toda a ordem jurídica à qual (1.945: 404; ver também Guest (1980)).
pertence deve perder sua eficácia. Como podemos julgar? Kelsen apresenta uma in-
teressante proposição: quando não mais fizer sentido, para um jurista do meio aca- A NATUREZA FICCIONAL OU HIPO ÉTICA DA NORMA BÁSICA
dêmico, dedicar-se à análise das leis de um regime anterior. DESTRÓI A PUREZA DA IbORIA DE KELSEN?
Em suma: não se pode ter validade sem eficácia, mas é possível ter eficácia sem
validade. Portanto, a eficácia não é uma condição suficiente para a validade de uma Na maior parte de seus escritos, a norma básica teve apenas uma função epis-
ordem jurídica, mas é uma condição necessária. temológica; assemelhava-se a uma categoria de pensamento kantiana. Em outras pa-
lavras, é fundamental dar sentido à matéria que o cientista deseja analisar. Depois
de 1963, porém, Kelsen muda de perspectiva; a norma básica deixa de ser um pres-
A SINGULARIDADE DA NORMA BÁSICA
suposto de pensamento e passa a ser o produto fictício de uma vontade fictícia.
Como a citação abaixo deixa claro, Kelsen parece ter se dado conta de que essa re-
Existe apenas uma, uma única norma básica para cada sistema jurídico, e é ela
que confere ao sistema sua unidade: presentação da Grundnorm como um ato fictício de uma vontade fictícia poderá ser
vista como uma exigência lógica se ele for, de fato, coerente com sua idéia de que as
O fato de uma norma pertencer a um certo sistema de normas, a uma certa ordem normas são criações humanas da vontade humana.
normativa, só pode ser verificado ao se determinar que ela extrai sua validade da norma
básica que constitui a ordem (1945: 111). Ao pressuposto de uma norma não postulada por um ato efetivo de vontade, mas
apenas presumida pelo pensamento jurídico, pode-se perfeitamente objetar que uma
norma só pode ser o significado de um ato de vontade, não de um ato de pensamonto;
A norma básica assegura que todas as normas por ela validadas não se contra- que existe uma correlação essencial entre "dever-ser" e "desejar que seja". A un iça ma-
dizem entre si. A norma básica unifica e dá "sentido" a um conjunto de normas neira de refutar essa objeção é admitir que, juntamente com a norma básica, prcssL
não-contraditórias. ta no pensamento, também é preciso pensar numa autoridade imaginária cujo a
tício) de vontade tem a norma básica por significado (1986: 116-7).
( ... ) o princípio de não-contradição deve ser pressuposto na idéia do direito, uma vez que
sem ele a noção de legalidade seria destruída. Esse pressuposto por si só, que é contido Se a validade de um sistema jurídico deve ser demonstrada por um. pïi .
na norma básica, permite que o conhecimento jurídico ofereça uma interpretação signi- .)usca do fundamento da juridicidade, então a Grundnorm deve ser uma noinm vr
ficativa do material jurídico (1945: 406). dadeira, um ato de vontade, e não um pressuposto do pensamento. I(.'k&'i i,
admite que isso não é apenas uma ficção, que é também contraditório:'. i ionna IiS
406 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 407
sica torna-se uma ficção genuína no sentido da filosofia do 'como se' de Vaihinger. ind Politics" [1948] 1957: 198-208). Para Kelsen, devemos viver sem a necessidade de
Nesse sentido, uma ficção se caracteriza pelo fato de não apenas contradizer a rea- um abonador transcendental por trás do direito. A argumentação de Stewart também
lidade, mas de também conter contradições em si própria". A norma básica se pro- parece forçar Kelsen a acreditar que a ordem jurídica era, "naturalmente", uma estru-
põe a interromper a possibilidade de regressão infinita; contudo, tendo em vista que ura coerente, em vez de entender tal hipótese - como deve logicamente inferir-se
a única maneira de se criar logicamente uma unidade para as normas está na inter- partir da estrutura de Kelsen - apenas como o pressuposto necessário à prática
ferência de uma autoridade, e que o papel dessa autoridade deve ficar além de toda te uma teoria jurídica analítica positivista. Na obra de Kelsen, a tensão encontra-se,
autoridade, chegamos à contradição. Portanto, só poderemos manter a contradição intes, na especificidade da Teoria Pura e na indeterminação do campo social em que
e o abismo afastados se não perdermos de vista o fato de que nossa ciência tem por ;e inserem as ordens jurídicas.
base uma ficção.
ridade jurídica deve levar seu papel a sério. O funcionamento de uma estrutura der discutir tal questão. O que podemos procurar que nos sirva de princípio condu-
normativa depende de uma série de normas; onde se vai traçar o limite entre as tor? Podemos confiar numa tese da unidade da natureza e em sua possibilidade de
normas a ser consideradas como parte do sistema e aquelas que são, na verdade, dar-se a conhecer? Diversamente de muitas das interpretações de Kelsen, parece
o material de outros tipos de análise, como, por exemplo, o sociólogo e o psicó- que não`. Embora Kelsen apresente a Teoria Pura como se houvesse coerência e uniforrni-
logo? Em que bases se traçar tal linha divisória? dade racional entre ela e o mundo, trata-se apenas de uma realização metodológica, e de-
vemos ter em mente as condições em que foi criada. O perspectivismo nietzschiano de
3. A diversidade de funções do sistema. Kelsen argumenta que vemos a ordem ju- Kelsen extrapola o niilismo da desconstrução cética. Em certo sentido, Kelsen está
rídica como uma técnica social específica. Em alguns de seus livros, ele escreve argumentando que é demasiado fácil simplesmente negar ao mundo uma realidade
como se só existisse uma técnica para se identificar o direito20 mas em outros tex- unitária; precisamos da construção autoconsciente para ultrapassar o vazio. Kelsen
1
tos faz menção às técnicas penal, civil (compensatória) e administrativa (1941: é bem-sucedido ao fazê-lo? Vejamos o exemplo do Estado.
89-93, 96-7). Os comentaristas que se inspiraram em Kelsen sugerem várias ou- Kelsen empenha-se em criticar a "psicologia de massas" do Estado, que per-
tras ainda. Summers (1971: 751), por exemplo, sugere o acréscimo das técnicas mitiu a dominação.
regulatórias e de ordenação privada. O estudo jurídico então se assemelha, des-
sa perspectiva neokantiana, ao estudo da metodologia do direito, explicando "não A afirmação de que o Estado não é meramente uma entidade jurídica, mas também
de quais funções sociais o direito se desincumbe, mas de que modo o direito pode sociológica, uma realidade social que existe independentemente de sua ordem jurídica,
desincumbir-se de funções sociais. Descrevem os métodos jurídicos básicos que só pode ser fundamentada se demonstramos que os indivíduos pertencentes ao mesmo
uma sociedade poderia possivelmente usar, mas não descrevem necessariamente Estado constituem uma unidade, e que essa unidade não é constituída pela ordem jurí-
os métodos usados, de fato, por alguma sociedade específica". Todavia, quando se dica, mas por um elemento que nada tem a ver com o direito. Todavia, é impossível en-
contrar esse elemento que constitui o "um nos muitos" (1945: 183).
permite que assim seja,a idéia de um sistema jurídico em si vê-se ameaçada. O al-
cance das funções sociais que o direito é instado a desempenhar logo subverte a
tendência reducionista a construir o sistema; além do mais, essa consciência nos Não podemos encontrar uma unidade fundadora. Tampouco, afirmava Kelsen
levaria necessariamente a uma análise da metodologia do direito que deve ser 'ni comentário contra o sociólogo francês Emile Durkheim, pode a sociologia nos dar
conduzida de modo empírico. Em outras palavras, a idéia da ordem jurídica como ina. A sociologia meramente nos apresenta uma "sociedade"; mas esta ou se recu-
a reconhecer a distinção kantiana entre nossas consciências e nossa sensibilidade,
um sistema normativo coerente vê-se ameaçada, e a única maneira de obter in-
Huzindo a complexidade da existência a uma fórmula sem sentido, ou seculariza a
formações teria de passar pela pésquisa empírica. A Teoria Pura não consegue fe- viti i lade de Deus na forma de um certo "pensamento do grupo". Só o Estado pode
char sua estrutura às indagações (sociológicas) do realismo jurídico, e converte-se
manter unidos na relação de cidadania. Mas não devemos romantizar ou mitifi-
numa perspectiva que sugere importantes tópicos para a pesquisa empírica. o Estado; o que vai, então, prover a unidade? Em lugar do misticismo do Estado,
!'.t'ken nada tem a oferecera. Não há nenhum "Deus do direito". Em ultima instância,
TENDO DESPOJADO O ESTADO DE TODA IMPORTÂNCIA en talvez nunca tenha ido além de uma imagem do poder: assim, por trás do direi-
MÍSTICA, PODE KELSEN OFERECER ALGUMA COISA 1 positivo não há "nem a verdade absoluta da metafísica, nem a verdade absoluta do direito
QUE PROPORCIONE UNIDADE SOCIAL? ONDE DEVEM tu ii trai. Quem erguer o véu, se não fechar os olhos, irá deparar com o poder da cabeça das
SITUAR-SE AS GARANTIAS METAFÍSICAS? ;tí,gonas/* (Kelsen: citado por, Tur, 1986: 177, ele próprio citando Ebenstein). Somos
Ii vtidos de volta à estreita ligação entre positivismo jurídico e poder.
Tendo limitado seu papel enquanto cientista jurídico à análise da estrutura da
ordem jurídica sob os princípios metodológicos da Teoria Pura, Kelsen fala como uma
21. Schmitt ([1922] 1985: 5) afirmava que "na base da identificação [de Kelsen] do Estadt'
pessoa diferente quando se refere à justiça. O cientista jurídico, o positivista jurídico, ii tio
iihca encontra-se urna metafísica que identifica a legitimidade da natureza e a legitimidedi ii o,,Iiv,i
não conhece nada sobre a justiça; terá de entrar em diálogo com outros a fim de po- tipo de pensamento é característico das ciências naturais. Baseia-se na rejeição de toda 'az til iii'.
a banir toda exceção do domínio da mente humana".
22."A teoria exclusivamente jurídica do Estado, que abandona a idéia de que o Estado 1 ii
20. "A técnica social que chamamos de 'direito' consiste em induzir o indivíduo, por meio de algum é uma teoria'sem Estado' do Estado" (Kelsen, [192211973: 81).
procedimento específico, a abster-se de urna interferência considerável nas esferas de interesse dos outros; * Na mitologia grega, as Górgonas (Esteno, Auríale e Medusa) viviam no extremo' t Ii l'i II
no caso de ocorrer tal interferência, a comunidade jurídica reage com uma interferência semelhante nas es- Infernos. Seu aspecto era monstruoso: tinham a cabeça cercada de serpentes,
Çr#ct dP interesse do indivíduo responsável pela primeira interferência" (Kelsen, 1941: 81).
li te e asas de ouro. (N. do T.)
410 Filosofo do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 411
DE QUE MODO A TEORIA PURA DE KELSEN ILUMINA orno uma ordem racional sistemática era apenas um mito reconfortante para uma
O DESTINO DO POSITIVISMO JURÍDICO? iumanidade que ainda estava por modernizar-se. Estabelece-se, assim, uma estra-
i iha dialética que atinge seu ponto culminante em Kelsen. O positivismo jurídico
O uso de rótulos tende a obscurecer os detalhes, mas Kelsen é conhecido como dentifica o direito moderno com o poder humano - o direito como estrutura de p0-
o clássico positivista jurídico moderno. O positivismo jurídico foi aqui definido (ver (ler implica coerção e violência, mas sua imposição cria uma estrutura (social) que
capítulo 1) por meio da referência a três de suas características, a saber: (i) o argu- tem por objetivo a sobrevivência, a condição básica da vida social. Além do mais, o
mento de que o direito é urna criação humana; (ii) a afirmação de que nossa aná- poder deve ser direcionado pela entidade que funda o sistema. Hobbes - que dá iní-
use do direito acompanharia as metodologias bem-sucedidas nas ciências naturais, io à dialética - confere poder à vontade do soberano; Bentham oferece o poder como
especificamente que seriam isentas de valores, e que a busca da filosofia jurídica é servo da utilidade (a verdade dos processos da natureza); Austin dá poder aos diri-
uma busca da verdade "realista"; e (iii) que o conceito de direito não implica nenhu-
gentes políticos para que eles o utilizem sob orientação das "verdades" emergen-
ma afirmação moral substantiva; em outras palavras, que empiricamente o direito
pode apresentar/representar qualquer posição ideológica ou moral. O positivismo ju- es (da utilidade, da economia política etc.); Kelsen, porém, recusa-se a entregar o
rídico pode ser reformulado em termos de sonhos teóricos; especificamente, (i) o etos poder do direito a qualquer senhor.
de distância; (ii) o etos de transparência; (iii) o etos de controle. A Teoria Pura de Kel- Kelsen segue a tradição do positivismo jurídico ao procurar compreender sua
sen é um caso bastante especial dos sonhos do positivismo jurídico. realidade (jurídica) através do uso de uma análise magistral em que apresenta o pri-
Primeiro, o etos de distância. O positivismo jurídico - em Hobbes, Bentham, meiro princípio sobre o qual se assenta a ordem jurídica. Ao fazê-lo, aparentemente
Austin e Kelsen - enfatiza a problemática de se construir um propósito comum e es- rios fornece a chave de seu controle (nosso terceiro etos) -, uma vez que se acredita
tabilizar a interação social em face da sociedade (moderna) do desejo subjetivo inde- lue a combinação de distanciamento crítico e transparência transfojina o direito em
pendente (ou, pelo menos, diante da possibilidade de um aumento deste). O positi- uma ferramenta para nosso uso. A análise de Kelsen, porém, demonstra como isso
vismo jurídico é uma filosofia jurídica que concorda com a necessidade de impor um não demora a tomar-se uma garantia vazia. Kelsen não vai incorporar o poder à pes-
ponto (e um processo) unificador a nossa representação intelectual da ordem jurídi- soa do príncipe (Maquiavel), do soberano (Hobbes, Bentham e Austin); ao Estado,
ca e, desse modo, ao construcionismo social na modernidade. Ao mesmo tempo, o enquanto senhor do direito, atribui-se apenas uma existência conceitual. Nas mãos
positivismo jurídico se esforça por manter uma distância entre o sujeito e a ordem de Kelsen, o locus do poder - o direito - torna-se apenas um recipiente formal; tra-
jurídica; coloca - como problemas distintos - questões de validade, legitimidade e tse de um espaço vazio.
obediência. O positivismo jurídico cria e celebra o distanciamento do direito, da mo- A Teoria Pura fala a uma modernidade que está lidando com a democracia, o
ralidade, do objetivo social e da subjetividade legal. Um dos objetivos consiste em )erspectivismo e a indeterminação do objetivo social. Kelsen identifica claramente
permitir que o sujeito se liberte da ideologia e orientá-lo "racionalmente" para o di- sua Teoria Pura como um projeto de direito antinatural. Se o objetivo geral da ética
reito e suas exigências. cristã, tanto da clássica quanto da tradicional, consistia em permitir que o homem
Segundo, o etos de transparência. A modernidade segue a narrativa da eman- avançasse de seu estado presente para seus verdadeiros fins, a eliminação da idéia
cipação através do conhecimento. Ligado ao etos de distância, isso pode ser formu- de uma natureza humana essencial e de qualquer idéia de télos priva a estrutura mo-
lado da seguinte maneira: o sujeito moderno torna-se livre onde alcança um estado ral de qualquer conteúdo substantivo. A sociedade moderna pode conhecer muitos
de autoconsciência lúcida baseado no conhecimento da natureza do contexto em senhores, é um espaço social-temporal em que o direito, o poder e o conhecimento
que vive e do modo como as coisas funcionam. A idéia é saber onde se está e conhe- estão abertos à indeterminação; como disse Nietzsche, é um mar aberto no qual nos
cer o modo de operação das coisas; o sujeito pode então relacionar-se com as coisas tornamos sem lar e nos lançamos à grande aventura de criar uma morada moderna.
e calcular racionalmente, alcançando os fins que se propôs alcançar através de sua Uma vez que suas bases não são "naturais", suas instituições não são nunca plena-
auto-afirmação. No pensamento jurídico, essa máxima exige uma transparência to- mente estabelecidas; o conhecido está sempre prestes a ser destruído pelo desco-
tal relativamente à natureza do direito; o positivismo jurídico desempenhará seu pa- n li ecido (ou pelo ainda por conhecer); e os contornos do presente são definidos por
pel na tarefa da emancipação através do conhecimento. Todavia, nas narrativas tra- urna multiplicidade de narrativas. Kelsen não oferece nenhuma garantia final; não
dicionais - de Platão em diante -, a liberdade está profundamente ligada à obten- oferece nenhuma fonte de legitimação empírica, e desse modo não dá à sociedade
ção do conhecimento perfeito das estruturas necessárias da realidade, bem como uenhuma substância fundamental definível e cognoscível. Empiricamente, asocie-
ao ajustamento a elas. Essa máxima flui como um fio condutor através de Hobbes, dade não tem estruturas claramente definidas ou determinações individuais; é um
Bentham, Austin e Kelsen; Nietzsche, porém, mostrou como a imagem da realidade complexo que foge à representação a partir de um ponto de vista único ouuniversa1.
412 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen 413
Diante desse colapso dos modelos tradicionais de certeza, Kelsen oferece a distância, 1i inando outros mas ele não pode incluir isso em sua ciência neokantiana do dever-
-
a transparência e o controle da Teoria Pura. uma vez que se trata de uma compreensão factual. O que pode, então, assegurar
A Teoria Pura parece um paradoxo no sentido de que Kelsen a elabora em meio ir ri idade? Somente um pressuposto no sentido de uma categoria de pensamento
à diversidade. Ao anunciar seu próprio vazio, ele se dirige à desorientação do sujeito l.intiana. Em última análise, porém, Kelsen se dá conta de que essa é uma função do
social moderno; essa desorientação só pode ser enfrentada pelo diálogo interdiscipli- pensamento, e que não pode, portanto, fundamentar uma "norma básica" que tenha
nar, pela comunicação. A autotransparência do pensamento jurídico torna-se possí-
e suportar todo o peso da criação de todo um sistema de relações logicamente in-
vel graças a uma metodologia puramente técnica ou formal. A natureza do material ridas de proposições de dever. Somente um ato de uma vontade onipresente pode
- a ordem jurídica é mostrada como um ideal de dominação, e não como eman-
-
riar um sistema de deveres. Kelsen se refere a isso como uma ficção necessária
cipação em si mesma. A rejeição, por Kelsen, da ordem jurídica como a expressão -
de destino histórico ou a vocação do partido político também rejeita o direito en- levemos usá-la ao mesmo tempo que não podemos nos esquecer de que não é
quanto fonte autorizada da liberdade do povo. Na melhor das hipóteses, a ordem v'rdadeira na realidade. Seguindo Kant, Kelsen filosofa sobre o direito como se
jurídica de Kelsen não passa de uma forma estrutural; os críticos argumentam que houvesse, para todas as coisas que se encontram nos extensos limites de um "sis-
Ir ma jurídico", uma única fundamentação necessária para o propósito exclusivo de
uma teoria jurídica apropriada deveria ter-lhe dado conteúdo, mas aprendemos com
co nferir unidade sistêmica ao conhecimento jurídico". Por que se deve ver como fa-
Kelsen sobre o erro de equiparar uma existência conceitual digamos, o princípio
-
11 la o fato de a Grundnorm
geral de direito ou a democracia liberal com "sistemas jurídicos concretamente
-
ser vazia e formal? Talvez qualquer outro resultado fosse,
existentes" ou "capitalismo democrático liberal concretamente existente". A dis- lira uma reivindicação, uma verdade que Kelsen no espírito liberal "verdadeiro"
-
tância crítica que Kelsen oferece é a capacidade de dizer que o que observamos não desejasse oferecer. Para ele, o fato de ter conferido substância à Grundnorm te-
i ii invalidado não apenas sua epistemologia, mas também sua imagem do empreen-
empiricamente a prática "corrupta"— não é legalidade pura. A fragilidade desse
-
distanciamento está no fato de nos esquecermos da natureza conceitual dessa le- li nnento humano. O direito não é, naturalmente, um sistema; enquanto o cientista
galidade e tratá-la como resposta à nossa busca de sabedoria. 11 nídico positivista deve agir como se o direito devesse construir uma doutrina jurídi-
i coerente, na verdade as coisas só podem funcionar assim através da criação de
ria comunidade de vontade humana e atos humanos ao mesmo tempo que se
CONCLUSÃO (vlta a armadilha da criação de uma autoridade totalitária.
E existem outras lições a ser extraídas desse encontro com a teoria de Kelsen,
Este capítulo procurou fazer duas coisas: (i) apresentar um esboço da Teoria Pura lições que se vão refletir no procedimento analítico. Como no caso de Austin, a
de Kelsen e (ii) apresentá-la ao lado de outros escritos de Kelsen, de modo que ofe- m etodologia analítica provém não de um retraimento da complexidade do mun-
recesse uma idéia de sua concepção da natureza da ciência social e do papel da teo- i] o social, mas sim de uma compreensão abrangente do empreendimento huma-
ria jurídica diante dos dilemas da modernidade no século XX. A argumentação é a de no por parte de seu formulador. Qualquer compreensão desse tipo é ao mesmo
que Kelsen não tem sido tratado com o devido apreço. Sua Teoria Pura é reducionis- 1 npo exclusiva da pessoa e influenciada por temas comuns. A função analítica con-
ta diante do direito, mas trata-se de um reducionismo que não nega a complexidade lte em transformar partes dessa compreensão "semelhante a um sonho" num
do tema; ao contrário, surge devido à complexidade do tema. Em última instância,
Modelo inflexível que possa ser discutido e compreendido pelas outras pessoas.
para muitos críticos famosos, a Teoria Pura não consegue transmitir a verdade do di- Ii )ntudo, essa função analítica começa como parte de um projeto mais amplo e,
reito o destino da norma básica (a Grundnorm) é tido como confirmação disso
-
-,
uma base categórica; desse modo, reverte-se ao raciocínio do direito natural e invoca-se 4 i i i 1 i i i
significa que Kelsen considera que o Estado é simplesmente um grupo de homens do p,c ulativa e ilusória."
414 Filosofia do direito A Teoria Pura de Hans Kelsen
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quema conceitual do formulador sem fazer reviver os problemas da condição hu- ções com as quais se vêem confrontados. Aperceber-se de quando alguém está
mana que lhe deu origem. )gando com a convenção ou indo além dela, extrapolando-a em sua busca da ver-
Há uma falácia no fundamento da teoria jurídica analítica, isto é, a idéia de lade, é algo que faz parte da função de compreender. Ao nos lembrarmos disso,
que a análise de alguma forma elimina a admiração original contida na pergunta devemos respeitar o desejo de Kelsen de impedir que o jogo lingüístico do jurista
"o que é a essência [do direito]?" A análise é a busca da essência do ser, da estrutu- oja sugado pela ideologia; é uma tarefa que permanece crucial. Há um projeto
ra de base que confere unidade ao ser. Quando analisamos, somos conduzidos pela iumano na ciência social. A Teoria Pura só é compreensível enquanto metodologia
lógica da análise, isto é, pretendemos reduzir sistematicamente a questão da on- lpaz de iluminar aspectos da ferramenta; a ferramenta que é o direito na tarefa
tologia a um ponto em que a estrutura do ser se torna visível. Nesse sentido, a aná- e viver e criar sociedades plenamente humanas. Na modernidade, não há nem
use é platônica. Kelsen, porém, era antiplatônico - não existe nenhum domínio do 1 esposta a essa busca nem garantias metafísicas; todavia, o fato de não podermos
absoluto no qual a verdade não-humana e as idéias puras residem, e que tenha- 'tegar a uma autoconsciência plena dessa tarefa não é motivo para abrirmos mão
mos por destino encontrar. Nosso destino é apenas construir e desconstruir: nos- e sua busca racional.
sos ídolos devem ser desconstruídos assim que aqueles dentre nós que apodera-
ram do poder os tiverem construído.
Devemos lembrar, também, que a teoria de Kelsen não autoriza uma discipli-
na a dizer a "verdade" do direito, a não ser como produto interno de suas metodo-
logias; ao contrário, leva a uma divisão do trabalho. Cada um, porém, deve ater-se
a suas regras metodológicas. Talvez queiramos pôr em dúvida se uma distinção as-
sim clara dos papéis e metodologias pode ser alcançada. Além do mais, não se sabe
ao certo se o tema - o direito - é verdadeiramente apreensível na idéia de normas.
Estas, porém, enfatizam um aspecto extremamente significativo. Uma coisa é clara:
a teoria jurídica precisa de uma autoconsciência para lidar com suas metodologias
e insights relativos aos contextos e características em cujo âmbito pretende enun-
ciar a verdade do direito. A teoria jurídica torna-se fedutiva quando procura ser uma
analise positivista do "direito", em vez de buscar adquirir sabedoria sobre o direito
e o "empreendimento jurídico". O direito não existe à margem do(s) empreendimen-
to(s) humano(s). Conquanto Kelsen se desse conta disso, a solução que propunha era
uma rigorosa demarcação de temas e funções.
Nossa crítica do modo habitual de considerar a obra de Kelsen é a de que tal
abordagem subestima a extensão de sua crença na complexidade do mundo so-
cial - e no mistério que está na raiz da condição humana. Podemos oferecer umn
mensagem: entender o mundo é ver a estrutura do mundo; mas o mundo e, por-
tanto, sua estrutura, é mais complexo do que qualquer perspectiva que possa
apreendê-lo. Uma perspectiva é verdadeira quando abandona a compreensão ori-
ginal do todo, que se assemelha ao sonho, e constrói ou reduz mediante um pro-
cesso lógico, buscando pureza e força, mas não pode fazer mais do que somar -
incapaz de apreender o todo. Pode, porém, mostrar-nos elementos que não havía
mos visto antes; pode criar novos modos de articulação que, transcendendo a meia
descrição, ajudam a criar os fenômenos aos quais se ligam. A incapacidade de a
metodologia analítica apreender a estrutura do todo dá munição àqueles que de-
sejam rejeitar a tentativa de compreender plenamente o mundo, ou que têm
pretensão de compreendê-lo quando, na verdade, apenas jogam com as conven
i npítulo 13
O ponto alto do positivismo jurídico:
II. L. A. HART1 e a teoria do direito como
um sistema auto-referencial de regras
A qualquer momento, a vida de qualquer sociedade que se rege por regras, jurídi-
cas ou não, tende a consistir numa tensão entre aqueles que, por um lado, aceitam e
voluntariamente cooperam com a manutenção das regras, e aqueles que, por outro lado,
rejeitam-nas e só as observam do ponto de vista externo, como um signo do castigo pos-
sível. Uma das dificuldades com que se depara qualquer teoria jurídica que busque res-
peitar a complexidade dos fatos consiste em ter em mente a presença desses dois pon-
tos de vista e não eliminar nenhum deles. Talvez todas as nossas críticas da teoria predi-
tiva da obrigação possam ser mais bem resumidas como a acusação de que é isso o que
ela faz ao aspecto interno das regras obrigatórias ( ... ).
( ... ) ainda que tal sociedade possa ostentar a tensão, já descrita, entre aqueles que acei-
tam as regras e aqueles que as rejeitam, a não ser quando o medo da pressão social os
induz à conformidade, é evidente que estes últimos não podem ser mais que uma mino-
ria, se uma sociedade tão vagamente organizada, aproximadamente igual em força física,
pretende durar: porque, do contrário, aqueles que rejeitam as regras teriam muito pou-
co a temer das pressões sociais (The Concept ofLaw [O conceito de direito], 1961: 88-9).
1. H. L. A. Hart atuou como advogado na Alta Corte de Justiça inglesa, foi professor de filosofia e, li
foi visto como unia opção algo insólita para a cadeira de Filosofia do Direito em Oxford, em meadi'; di
—da de 1950.A partir de sua aula inaugural (1954), ficou claro que ele procurava aplicar o estilo de,
te em Oxford na época, a análise da linguagem ordinária (ou análise lingüística) ao cai po.dc &Jji•i'jl'. 1)111'
Ia de 1950 até a de 1980, Hart foi visto como "o mais importante representante contem1urànu, L ii.aliç.iu da
i-ria jurídica analítica inglesa, e um dos porta-vozes mais influentes do liberalismo inglv' ((.',li 'i, '1,1: 418).
2. Num texto recente extremamente inspirado, Peter Wagner (A Sociology ai Mul,'rnilv: I.ilnr!y nnd Dia-
1/filie, 1994) enfatiza a relação entre as ciências sociais como "representações da modvrnidde" e o período
O ponto alto do positivismo jurídico 419
418 Filosofia do Direito
Como a pergunta inicial indica, Hart tinha plena consciência de que o conflito
1 1c que transpira racionalidade e bom senso. É de leitura fácil, e não exige que se
e a coerção faziam parte do universo social do direito, mas a vertente principal do rapole o texto em busca das narrativas mais amplas dos medos e esperanças que
ivolvem o direito na modernidade. Hart apresenta poucas notas de rodapé ou refe-
Conceito de direito minimizava a importância dos elementos de coerção, comando e
obediência habitual no direito, substituindo as imagens de poder e violência no pen- ricias às tradições anteriores que informam sua obra, mas oferece uma imagem ins-
i 11 que ao mesmo tempo descreve e justifica elementos-chave do período da
samento jurídico pela concepção do direito como um sistema de regras sobre regras,
de práticas sociais informadas por seus próprios critérios de validade e obrigação nor- )dernidade organizada. Um período de história social que, apesar de próximo, é
mativa. Hart apresentou a face benigna e funcionalista da legalidade liberal, transfor- 1 1 talmente distante de nosso contexto atual; seus escritos pressupõem a eficiência
mando o antigo tema positivista dá uma coerção externa que faz cumprir o direito e natureza progressiva das instituições sociais, refletindo um período de tempo em
leva o sujeito a sentir-se "obrigado", pela ameaça de violência, a manter-se nos limites jl ic, a ordem e a paz sociais pareciam garantidas pelas instituições modernas, e em que
1,118 instituições pareciam destinadas a permitir que concretizássemos nossos dese-
da lei — a ameaça de sanções - numa imagem da obrigação normativa de o sujeito
agir de acordo com as regras jurídicas. O argumento de Hart era simples: o positi- pessoais e sociais; um período em que o direito parecia nos oferecer possibilida-
li de realização, em vez de ameaças de coerção, e em que se podia perdoar alguém
vismo anterior compreendera mal a natureza obrigatória do direito, vendo a lega-
lidade como algo politicamente imposto a uma ordem social, que assim não fosse li i O acreditasse que o estado de direito havia substituído aquele princípio de domí-
III) pelo homem que é tão óbvio em Austin, Marx e Weber 4. Isso não quer dizer que
seria caótica, a fim de estruturá-la, enquanto a legalidade era algo que se desenvol-
via de modo evolutivo, através de um complexo - e cada vez maior - sistema de di- 1 Iirt afirme que sua obra seja uma defesa da legalidade liberal ou da ideologia do
ferentes tipos de regras. Partindo do reconhecimento fundamental de que o direito lado de direito. Longe disso. Ele não fez nenhuma discussão explícita da moral e
implica obrigação', Hart desenvolveu uma teoria do direito que considera a origem Li filosofia política do estado de direito; em vez disso, oferece-nos uma destruição
II tica de um modelo da teoria imperativa do direito, discussões incessantes de prá-
dessa obrigação como um efeito interno da estrutura de um sistema jurídico moder-
no, e em vez de enfatizar a dominação, referiu-se à "aceitação comum das regras" li is sociais que envolvem o direito, a relação entre direito e moral, o desenvolvimen-.
(CD: 98). Parecia que o direito pertencia a todos nós; as regras jurídicas não deviam do direito internacional e uma representação consistente da prestação jurisdicio-
ser vistas como forças externas agindo sobre nós, mas como nossos recursos. i, 11 como algo que vacilava entre dois extremos, o do formalismo (a imagem em
Em resumo, Hart domesticou e atenuou a violência que sempre fizera parte do J(l e tudo é determinado pelas regras) e o do ceticismo quanto às regras (a imagem
pensamento institucional dá legalidade liberal. O conceito de direito é um texto ele- li , que nada é determinado por regras previamente existentes). Hart não vê nenhu-
li necessidade de basear (abertamente) seu texto nas tradições de filosofia jurídica
111
política; ao contrário, apresenta sua obra na linguagem da descrição sociológica ou
histórico específico no qual se insere a escrita. Wagner (1994: 118-9) vê o período em torno da década d Ii análise de nosso uso contemporâneo, ou cotidiano, de termos juridicamente afins'.
1960 no Ocidente europeu como a culminação da "modernidade organizada" que "desenvolveu um tipo par-
ticular de auto-entendimento reflexivo parecido com o das ciências sociais ( ... ). A modernidade organizada
caracterizava-se pela integração de todos os indivíduos, dentro de certos limites, em práticas extremamente
4. Como observa um -comentarista contemporâneo (Cotterrell, 1989: 99), a obra de Hart tem profundas
organizadas Não se atribuía ao indivíduo nenhum lugar definido, na sociedade, segundo critérios predeter
leklades com a idéia de princípio geral de direito: "A teoria jurídica de Hart representa o direito como um
rninados.A mobilidade social existia, e fazia parte das liberdades oferecidas por essa sociedade. Todavia, o que
Ima auto-regulador de regras. A regra de reconhecimento e as outras regras secundárias são vistas como
dava a essa configuração social os recursos capazes de explicar sua estabilidade e seu "sucesso" relativos, em e ','ntes de todo o processo de produção, interpretação, aplicação, retificação e revogação de regras dentro
termos do consentimento (pelo menos tácito) da maioria de seus membros, era a ligação de tais liberdade
'.lsiema jurídico. Ao contrário da imagem austiniana de uma ordem jurídica como expressão e instrumen-
com a organização das práticas. "Organização" significava que a cada indivíduo se "oferecia" um lugar ma
xi um poder político demasiado humano (o poder do soberano e de seus representantes), a imagem do
terialmente seguro ( ... ); significava também que os seres humanos tentavam estruturar seus campos de aç{i
leito de Hart é a de um Sistema em que as regras governam os detentores do poder; em que as regras, e
de tal modo - por meio da formalização, da convencionalização e da rotinização, ou seja, do pressuposto tK
as pessoas, governam. Implícito aqui encontra-se, na verdade, um aspecto de um símbolo político pro-
"acordos" prévios sobre as possíveis vias de ação - que seu alcance poderia ser bastante ampliado (..). e e lamente eloqüente cuja ausência é tão evidente na jurisprudência de Austin - o símbolo do princípio
3. "Em todos os tempos e lugares, a característica mais proeminente do direito está no fato de sua exi ge-
lo direito, urn'governo de direito, não de homens'."
tência significar que certos tipos de conduta humana não são mais opcionais, mas obrigatórias em certo $eu
S. A idéia de estado de direito tem uma longa história intelectual que denota um compromisso com o
tido" (Hart, CD: 6). Hart também diz que há vários sentidos nos quais se pode tornar a conduta obrigatória,
v'rno por meio de regras gerais aplicadas com coerência e eqüidade. O estado de direito requer (i) nina
um dos quais é a presença de ameaças externas; outro, porém, é a imposição de obrigações por parte das o'
litura de regras; (ii) autoridades que as apliquem; e (iii) novas normas ou modos de operação n'lalivi; à
gras morais e jurídicas. Segundo Schauer (1991), talvez seja mais apropriado descrever a proposição de 1-mil
lemação, ao reconhecimento e o julgamento do significado dessas normas. O estado de limito implik3
como uma tese que se preocupa com as regras prescritivas por oposição às regras descritivas, que simplu
uevitos operativos de imparcialidade, neutralidade, objetividade e universalidade, todos via
mente enunciam regularidades ou generalizações empíricas (por exemplo, "Em geral, não chove em Londu
Ililidadeliberal. Os ataques à"realidade" desses conceitos partiram de uma série defoni'a que 'iil,iIj,.;u
em novembro"). As regras prescritivas têm um conteúdo normativo e são usadas para guiar, controlar ou me
o direito tem envolvimentos com diferentes forças e efeitos sociais que a ideologia do dual II' çiii,,ito
dar o comportamento de agentes dotados do poder de tomar decisões.
Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 421
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Desse modo, ele nega que sua teoria tenha quaisquer objetivos "justificatórios" (ale- 'dia ser lida de duas maneiras: (i) como "um ensaio de sociologia descritiva" (CD:
gação repetida no pós-escrito à segunda edição de 1994); Hart, porém, justifica por vi ) no qual reconhecemos, a partir de uma análise da linguagem da vida cotidiana,
decorrência. Sem situar claramente seu texto, ele mistura o positivismo jurídico com t'entralidade das regras, e compreendemos melhor a natureza das práticas asso-
correntes mais amplas da literatura social - correntes que apresentavam nossas ins- idas a regras'. Essa análise do uso lingüístico cotidiano encontra-se, por sua vez,
i i;erida numa narrativa analítica do desenvolvimento do direito moderno a partir de
tituições sociais como se estas incluíssem conjuntos de regras e de recursos sociais
relativamente duráveis (como o poder discricionário das autoridades ou sua aptidão tias origens pré-jurídicas; (ii) como um ensaio de teoria jurídica analítica que preten-
para interpretar textos escritos como, por exemplo, precedentes judiciais ou legais), revelar ou esclarecer as características centrais do direito. A concretização desse
il jetivo implica trabalhar com a idéia de que o direito é uma realidade social "com-
que ao mesmo tempo contêm e sancionam a vida social. Longe de limitar as escolhas
humanas e os projetos de vida, as instituições modernas eram apresentadas como kxa", constituída por muitos elementos ou facetas, alguns dos quais são mais im-
se fossem a chave para a concretização dos desejos humanos, o pré-requisito essen- rtantes do que outros, e fazer distinção entre os aspectos contingentes da vida do
cial à boa sociedade. E, com a abertura do pensamento liberal moderno - um pensa- reito e os elementos centrais do conceito de direito. Assim, muitas das preocupa-
mento relativo aos objetivos da vida social que se recusavam a aceitar qualquer con- 'os do realista jurídico - que procurava observar o direito através de lentes prediti-
cepção específica do bem-viver como definitiva -, as instituições modernas foram ig que vêem apenas o comportamento das pessoas nas instituições sociais - eram
cada vez mais apresentadas como se fossem apenas o resultado do desenvolvimen- tostões de prática do direito, e não da essência deste, secundárias no sentido de que
to funcional e pudessem ser descritas em termos de suas características e aptidões "ssência do direito não seria significativamente afetada se viessem a ser alteradas.
funcional-estruturais, e não em termos de seu caráter expressivo ou moral'.
AS CRITICAS DE UM MODELO DA TEORIA IMPERATIVA COM BASE
A ES fKUTURA DE O CONCEITO. DE DIREITO NA LEITURA DE JOHN AUSTIN POR HART
Uma característica importante de O conceito de direito, de Hart, e um dos moti- lIart inicia O conceito de direito com uma crítica sistemática de um modelo da
11) ordagem positiva baseada em sua leitura da obra de Austin, que ele chama de "a
vos de sua sedução e influência é que esse livro tem uma organização aparentemen-
te simples e uma estrutura particular de desenvolvimento e exposição. No prefácio, iiiis clara e mais abrangente tentativa de analisar o conceito do direito em termos
Hart afirma que seu objetivo consistia em "fomentar o entendimento do direito, da is elementos aparentemente simples de comandos e hábitos". Assim, Hart afirma
coerção e da moral como fenômenos sociais diferentes, porém afins", e que a obr Itramente que Austin estava engajado no mesmo projeto, a saber, o de "analisar o
nceito do direito"; como vimos, Austin estava envolvido num projeto muito maior,
iii qual o esclarecimento da terminologia jurídica era apenas uma parte'. Hart diz es~
não é capaz de comportar. A estratégia de Hart consiste em postular que tais preocupações têm alguma vi 1, o criando um modelo analítico baseado na teoria de Austin "que é, em essência,
lidade, .e que suas críticas especificas são bem-vindas, como as do "cético diante de regras", "no limite". Ha ml à doutrina de Austin, mas que provavelmente dela diverge em certos aspectos,
porém, pressiona o cético ao argumentar que reconhecemos que o sistema jurídico se sustenta, em granJ ) de modo que não hesitamos, quando a teoria de Austin era dúbia ou quando suas
medida, "pelo prestígio granjeado pelos tribunais em suas operações, inquestionavelmente regidas por e
aras, em vastas áreas centrais do direito" (CD, 2? ed,: 154).
1 ias pareciam inconsistentes, em ignorar esses fatos e em colocar uma posição da-
6. No meio; dessas tendências, cada texto é uma criação específica. Em O conceito de direito, de Ha, 1 e consistente" (CD: 18). Na verdade, Hart toma apenas um modelo simplificado
pode-se quase aspirar.oaroma do campo inglês do pós-guerra. Críquete, xadrez, conformidade... Uma refle 'Ii s aspectos da complexa síntese de Austin e ignora as ligações que este faz entre
xão sobre um país extremamente em paz consigo mesmo, onde os conflitos de classe foram institúdonaliz,i 11 os de direito (lembremo-nos de que Austin estava basicamente preocupado com
dos através das lutas legítimas e regidas por regras de partidos políticos e sindicatos ativistas; um país em que lireito positivo - definido como uma forma de poder político), ética, psicologia, eco-
o Estado assistencial emergente oferecia a possibilidade de pensões, educação e assistência médica para to
dos; um país confiante no valor de suas instituições e no poder discricionário exercido por suas autoridade;,
voltado para um futuro de pleno emprego e êxito contínuo tanto da família nuclear quanto de seus limes &'
7. Como Hart esclarece em sua discussão da questão da distinção entre "ser obrigado" e"estar soba
portivos. O problema sociológico dominante parecia ser a determinação da exata função de tudo e a.anális'
, btigação de": "( ... ) enquanto sua diferença não for compreendida, não podemos entender bem todo o esti-
de onde as partes específicas se ajustavam ao todo social como se o fizessem no interior de uma enorme mi
listintivo do pensamento, da fala e da ação humanos que estão envolvidos na existência de regras e
quina progressista. Sem dúvida, havia problemas... Os sociólogos se perguntavam por que motivo todos
ij li em a estrutura normativa da sociedade" (CD: 86).
ajustavam tanto. Por que todos pareciam seguir as regras? Quais eram os processos de socialização que li
8.A propósito do qual, acreditava Austin, a maioria das pessoas, inclusive advogados, fazia ron i iisáo
ziam o comportamento de obediência às regras parecer tão natural? Contudo, Hart parecia à margem de
Austin nunca teria partido da análise da linguagem ordinária, uma vez que isso só teria piorado ,i:; uso a-
preocupações: ele simplesmente pressupunha a naturalidade do comportamento de obediência às regi
5 já existentes.
ou, talvez, para sermos mais exatos, talvez tivesse por certo o sucesso das práticas de socialização.
422 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 423
nomia política e idéias de progresso social. A despeito do que se possa pensar sobre 1 numa adequação ao direito penal, a Teoria Imperativa não pode, segundo Hart,
os pressupostos levantados por Austin sobre esses diversos itens, ele acreditava ialisar a classe de leis que são sancionadoras, e não punitivas: leis que permitem
numa teoria jurídica que se empenhava em compreender certos aspectos de um con- i te os indivíduos façam testamentos, negócios e contratos, e que desenvolvam uma
junto interligado de projetos. Hart volta seu olhar apenas para as especificidades de 1rie de projetos sociais que são corroborados pelo direito". Austin dizia sobre os
nossa aceitação comum do direito; para ele, a filosofia política começa no e como contratos que, se não fossem formulados da maneira correta, não se criaria contrato
o discurso da fala ordinária; pressupõe a racionalidade de nosso uso lingüístico con- 1 gum e essa nulidade seria, na verdade, uma sanção. Para Hart, trata-se de uma con-
temporâneo e, portanto, de nossas práticas. Quais são os pontos fracos que Hart ipção irreal; ao contrário, somos instados a perceber a funcionalidade do direito: o
afirma encontrar na teoria imperativa? Ou, mais apropriadamente, em sua versão li reito contratual é um expediente para se fazerem acordos. Ao celebrar um contra-
da teoria imperativa? o, isto é, em sua apreciação e uso do direito, as partes não estão pensando na san-
Em primeiro lugar, ele afirma que Austin foi incapaz de entender a complexi- ço de nulidade; em vez disso, o direito está atuando de modo que facilite as coisas.
dade da legalidade porque a imagem austiniana do direito é a imagem de uma pes-
Hart também não explica por que, num sistema democrático moderno, presu-
soa ou grupo impondo sua vontade a outro (por meio de comandos e sanções). Para 111 imos que todos se submetem ao mesmo direito. As autoridades do Estado a ele se
exemplificar, Hart (CD: 18-22) elabora uma discussão baseada na famosa distinção
de Kelsen entre a ordem de um gângster, que exige que um bancário lhe passe o di- ubmetem, inclusive os juízes. A teoria austiniana de soberania legalmente ilimitável
nheiro do caixa ("passe-me o dinheiro ou atiro ( ... ); se o assaltante for bem-sucedi- ;ugere a Hart uma divisão total, bem como o fato de que o soberano não pode estar
do, nós o descreveríamos como alguém que foi capaz de coagir o bancário") e as reso às mesmas leis que regem a vida de seus súditos.
exigências de um coletor de impostos a quem o cidadão de um país tem de pagar o A teoria de Austin também não explica o modo como se origina o direito. Hart
dinheiro do tributo devido. O que há de errado em ver a ordem do gângster, susten- ii Lerpreta Austin corretamente, vendo em sua obra uma especificação do direito de
tada por suas ameaças de violência, como semelhante àquela do comando de uma ina para baixo e, ainda que isso seja de menor importância para o mundo moder-
1
instância do governo? Hart estabelece uma distinção crucial: 1 io, Hart argumenta que o costume - o exemplo fundamental de um tipo de direito
lo baixo para cima, não tem como se ajustar à sua teoria. Algumas leis se asseme-
Comandar significa, caracteristicamente, exercer autoridade sobre os homens, em 1 am claramente aos comandos de um soberano (a legislação, por exemplo), mas o
vez de ter o poder de infligir danos; e, ainda que possa estar vinculado a ameaças de da- Ii reito criado pelos juízes também é difícil de ajustar-se ao modelo. Enquanto Aus-
nos, um comando é basicamente um apelo a não se temer, mas a se respeitar a autori- 1 in diz que os juízes agem como delegados do soberano, e que suas decisões são co-
dade (CD: 20).
i nandos tácitos deste, Hart afirma que nos tempos modernos observamos que o di-
O enfoque de Hart diz respeito à autoridade e à generalidade9; as exigências fei- mito é criado por uma variedade de instâncias, nem todas elas organizadas em for-
tas ao bancário se dirigem a ele pessoalmente, enquanto o direito em geral sé dirige na de uma estrutura hierárquica. O simples fato de o Parlamento poder revogar o
a uma classe de pessoas", e muito embora o bancário possa ser coagido a entregar o (feito de decisões da Câmara dos Lordes não significa que esta seja um delegado da-
dinheiro e sentir-se obrigado a fazê-lo, ele não está sob nenhuma obrigação de fazer &ue1e - em resumo, não é esse nosso modo de pensar.
o que lhe ordenam que faça. O bancário passa por uma experiência de medo, mas Para Hart, a Teoria Imperativa tampouco explica por que as leis continuam a ser
não de respeito. Hart faz uma clara distinção entre o significado inerente às expres- válidas depois que o soberano que as criou perde o poder. As leis são persistentes, o
sões "ter uma obrigação" e "ser obrigado"; a primeira remete à autoridade, a segunda Jue sugere que sua origem não está simplesmente num comando emitido em deter-
não o faz. Somente ao fazermos uma clara distinção entre os conjuntos de significa- minada época por uma pessoa ou um grupo que, mais tarde, será substituído por
dos sociais envolvidos em "ter uma obrigação" e "ser obrigado" é que podemos com- outra pessoa ou outro grupo". Hart introduz uma idéia sobre a qual Austin não se
preender "características comuns do direito local num Estado moderno" (CD: 77).
Além disso, especifica Hart, o modelo de Austin fazia pouco da "variedade do
direito" (título dado por Hart ao capítulo 3 de The Concept of Law). Ainda que tenha 11."Há outras variedades de direito, em especial aquelas que conferem poderes legais para juii»
]gislar, ou para criar ou alterar relações jurídicas, que não podem, sem incorrer no absurdo, ser •intci 'ri
do como, ordens sustentadas por ameaças" (CD: 77).
9."Ainda que se possa compará-lo a ameaças de danos, um comando é basicamente um apelo não oo 12.Hart interpreta equivocadamente o soberano de Austin como se este fosse, necessnr1i 1111
medo, mas ao respeito à autoridade" (CD: 20). Losoa ou um grupo. Depois de negar a interpretação corporativista pretendida por Austi,, 11; 111 11 i i ii, i i o
10."( ...) nesse fato da obediência geral encontra-se uma distinção crucial entre as leis e o caso simplc i'ste último "não foi capaz de explicar a continuidade da autoridade legislativa que é característi 1
da ordem de um pistoleiro" (CD: 24). lima jurídico moderno" (CD: 77).
424 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 425
manifestou em detalhe, isto é, a noção de que as leis são regras e que um sistemi Os enxadristas não têm apenas hábitos semelhantes de mover a Rainha de um
jurídico é um conjunto complexo de regras. Hart afirma que a chave para a teoria ju modo que possa ser registrado por um observador externo que nada sabe sobre a atitu-
rídica moderna está em compreender o que envolve a noção de uma regra, e che de deles a respeito dos movimentos que fazem. Além disso, vêem-na como um padrão
ga a identificar o sistema jurídico moderno como uma união daquilo que cham para todos os praticantes desse jogo. Cada um deles não apenas move a Rainha de modo
de regras primárias e secundárias. A idéia de uma regra substitui o conceito de orden particular, como tem também "concepções" sobre a conveniência de todos moverem a
Rainha desse modo. Essas concepções se manifestam na crítica dos outros e nas exigên-
do soberano como o ponto central do positivismo jurídico, e Hart afirma que, pai
cias de conformidade feitas aos outros quando o desvio é real ou uma ameaça, bem como
se entender a legalidade, é preciso entender plenamente a natureza das regras c no reconhecimento da legitimidade de tal crítica e tais exigências quando recebidas de
do comportamento associado às regras`. A saber: (i) devemos distinguir uma regra outros. Para a expressão de tais críticas, exigências e confirmações, emprega-se uma vas-
de um mero hábito. Enquanto as pessoas fazem muitas coisas habitualmente, os há ta gama de linguagem "normativa". "Eu (você) não deveria ter movido a Rainha desse
bitos não têm, necessariamente, sanções por trás deles. A violação de um hábito nãc jeito", "Eu (você) devo/deve proceder assim", "Está certo", "Está.enad.o" (CD: 56-7).
se depara necessariamente com um ato hostil, enquanto para as regras (em parti
cular para certos tipos) a violação provoca uma postura crítica. (ii) No caso de desvio A citação acima realça a metodologia de Hart e sua abordagem funcionalista do
das regras, o desvio geralmente é, em si mesmo, uma boa razão para se criticar a vio lesenvolvimento jurídico. Hart afirma que, para praticar esse jogo, é preciso ter uma
lação. As pessoas emitem juízos sobre as regras e a observação destas; (iii) as regrLl ncepção interna do que está acontecendo. Trata-se de uma atitude crítica reflexiva
têm um aspecto interno. Do ponto de vista de Hart, Austin adotou a metodologi 1 lC o jogador tem a propósito de sua própria conduta e da conduta das outras par-
de um observador imparcial por considerar-se comprometido com uma abordagen 1 li. Implica um julgamento sobre um certo padrão de envolvimento de todos aque-
científica. Austin procurava por regularidades observáveis, com o resultado de qu que jogam xadrez. A visão externa do jogo é irreal e, na verdade, incapaz de trans-
somente via as pessoas sendo exortadas a fazer isso ou aquilo, com os comandos sus ti ilir qualquer idéia do significado dos movimentos. Se você desconhecesse o xadrez
tentados por punições. Isso se assemelha à imagem de uma praça de armas. Pari ti então, seria impossível entender o que se estaria passando à sua frente. Que tipo
Hart, as regras não são absolutamente assim. O observador externo não será Ii informação poderia um observador obter se não conhecesse as regras? Poderia
paz de chegar a uma compreensão plena da prática de observar as regras simplen r as peças movendo-se de determinada maneira e, ao observar o jogo durante ai-
mente ao ver o processo em funcionamento (CD: 55-6,87-9). Se examinarmos uni ITt tempo, talvez pudesse prever o modo como são, de fato, movidas, mas não se-
jogo, o xadrez por exemplo, veremos que entendê-lo implica o conhecimento di i capaz de perceber que os jogadores estavam seguindo as regras por um simples
regras e a capacidade de adotar um ponto de vista interno. Entender o jogo impi cesso de observação.
,In] Assim com os jogos - uma forma específica de prática baseada em regras -, as-
ca mais do que apenas observar os movimentos. Por referência às regras e ao modi
lambém com o comportamento legalmente regulamentado. O direito torna as
como os jogadores operam, pode-se emitir juízos sobre a qualidade dos movimeii
1 d icas sociais possíveis e, para entendê-lo, é preciso adotar uma concepção inter-
tos. A aquisição de um ponto de vista interno é a única maneira de emitir juízos so
do direito. Tal concepção é aquela de um cidadão que vive sob um sistema e com-
bre os níveis de aptidão dos jogadores e de saber se seus movimentos são certos ui i
a finalidade das leis. A primeira vista, esta é uma concepção reconfortante
errados. Vejamos, por exemplo, o movimento da Rainha:
li i ireito, uma vez que todos os cidadãos conhecem o bastante para poderem emi-
ii ízos legais de certo ou de errado, com base numa interpretação das regras jurí-
13. A idéia de obediência às regras. O direito é um caso especial de regras sociais. Não se trata de regi.. Ii s. Assim, Hart afirma que Austin não leva em conta os processos mentais de um
privadas. As regras sociais consistem num padrão de comportamento regular em que os desvios são tratado, lidiio que vive dentro de um sistema jurídico estável. As pessoas não pensam ape~
com hostilidade crítica e em que, em termos ideais, a pessoa que diverge aceita que a crítica se justifica. 1 Li
ii,i,, cru ordens e punições, mas raciocinam com regras, interpretam-nas e emitem
três elementos: (1) comportamento regular; (2) os desvios são tratados com hostilidade crítica; (3) essa rui
ção hostil tem por base a norma de comportamento que dá origem a um padrão regular. A distinção eni tetos sobre suas ações e as ações alheias.
ponto de vista interno e o ponto de vista externo está em que, a fim de entender bem a regra, uma pc A esta altura, podemos parar para perguntar se esta é uma metodologia capaz
deve compreendê-la a partir de seu ponto de vista interno, bem como de seu ponto de vista externo. O p lios fornecer qualquer apreciação, total ou crítica, do que acontece em nome do
de vista interno é o ponto de vista de uma pessoa que admite que essa lei ou esse padrão de comportam 1. tua jurídico. A abordagem de Hart pode servir para iluminar muitos aspectos de
to justifica a reação hostil ou a crítica quando ocorre uma infração à regra. Quando falamos sobre obecliê
às regras, não estamos apenas descrevendo a regularidade de comportamento, nem falando sobre ações ii
liii sistema estável e pôr em relevo o significado de conceitos no uso cotidiano; con-
tintivas como as dos animais, por exemplo. A idéia de obediência às regras implica a prática regular de cui Iii (1, será que nos diz alguma coisa sobre o significado do sistema? Além disso, ha-
que seguem um padrão, o que significa que você pode desviar-se desse padrão por uma questão de escol 1 1i ialguma maneira em que Hart possa introduzir um critério no qual possamos
de outro modo, a crítica não teria sentido. A crítica tem por finalidade torná-lo uma pessoa ajustada. iinguir ocasiões em que não seria desejável chegar a uma atitude crítico-reflexiva?
426 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 427
A crítica de Austin, por Hart, representou um avanço teórico? nio significa que não esteja presente como pressão psicológica; na verdade, para
ll'ntham, o sucesso das sanções se daria quando estivessem tão presentes nos pen-
Com a publicação de O conceito de direito em 1961 surgiu a tendência de só ler mentos racionais de um infrator potencial que nunca precisariam ser exercidas na
Austin através das críticas apresentadas por Hart nos quatro primeiros capítulos. 'ática! Ignorando isso, a crítica de Hart ao papel oculto das sanções, destacado por
Como afirmei no capítulo 9 deste livro, é fácil resvalar para uma depreciação de Aus- \ ustin, equivale a uma dissociação entre liberalismo e a coerção. E uma deturpação
tin e ignorar a complexidade de sua síntese. Hart substitui a idéia central do sobe- i ndamental da história do liberalismo filosófico e de suas ligações com a coerção.
rano, assim como o pensamento legislativo deste, ao esboçar uma estrutura de regras ()que pode explicar essa deturpação?
jurídicas que impõem deveres e indicam sanções pelo não-cumprimento dos deve- Talvez uma parte da resposta esteja na metodologia do positivismo analítico,
res, e o faz com uma idéia mais vaga de um sistema de regras que são, elas próprias, o é, na separação entre legalidade e política: a criação de um modelo que é abstraí-
reconhecidas, aplicadas e compreendidas por referência a outras regras "sociais". A I o da tradição intelectual e da realidade social. Todavia, enquanto esse pode ser um
primeira vista, a idéia de regras com a idéia afim de obrigação parece ajustar-se ao or que explique o modo quase ingênuo com que Hart pressupõe a naturalidade
modo como normalmente percebemos o que a lei impõe, isto é, a obrigação. Nas lis atividades ligadas às regras em nosso cotidiano, outra explicação pode estar nos
condições contemporâneas, todos os cidadãos têm a obrigação de fazer sua decla- 1 idrões cambiáveis de socialização que têm sido vivenciados pelos sujeitos jurídi-
ração de imposto de renda e pagar o imposto devido. Em termos de compatibilida- 's. Em termos mais simples, podemos dizer que Hart está descrevendo um perío-
de, o ganho para nossas práticas é obtido à custa do distanciamento crítico; aceita lo da modernidade em que padrões bem-sucedidos de socialização preparam os jo-
o sistema na medida em que este parece funcionar. A análise de Hart, em parte, ns para exercerem seus papéis numa estrutura social em grande parte constituída
pode ser lida como uma interpretação pouco sofisticada da idéia weberiana de au- r práticas vinculadas a regras`. Explicar isso, porém, nos levaria aos domínios da
toridade jurídico-racional. Contudo, a análise de Hart não parece exigir nenhum 1 stória social e das discussões sociológicas que Hart ou pressupõe ou ignora". O que
reconhecimento do vasto número de teorias sociais que ofereceria modos de inter-
importante observar, contudo, é que para os padrões de comportamento conforme
pretação das práticas por ele pressupostas. Não apenas ele se recusa a reconstruir
regras continuarem a existir deve haver uma atitude da parte dos participantes -
a posição histórica dos escritos de Austin - que podem ser classificados como uma
concepção da racionalidade legislativa14 —, como também despreza um enfoque fun- )de-se dar a isso o nome de ideologia da observação das regras ou de socialização
damental de Austin: o da interligação de todo o direito. Para Austin, por trás do fun- lis normas da prática - que torne apropriado, para eles, seu desempenho conforme
cionamento cotidiano do direito civil encontra-se a ameaça (potencial, ao menos) do Jetenninam as regras. A "alegria" com que o universo da teoria jurídica anglo-ame-
direito penal. Não ocorria apenas que a nulidade pudesse ser vista como uma for-
ma de sanção, mas que, em última instância, o direito penal garantia as regras bási-
17.Nos Estados Unidos, por exemplo, nas décadas de 1950 e 1960, o mais famoso escritor no campo
cas do jogo (com sanções por fraude, intimidação, roubo etc.). O "lado de fora" da teo- teoria social, Talcott Parsons, desenvolveu o que veio a ser chamado de "idéia estrutural-funcional da so-
ria jurídica civil sempre foi o direito penal e as sanções políticas`. Como afirmou Idade". A solução de Parsons para a questão da ordem social consistia em postular que a dinâmica social
Henry Maine, quando a sociedade passa do pré-moderno para o moderno - traje- Wi dia ao equilíbrio, e em rejeitar a idéia tradicional (hobbesiana e dê outros) de que o contrato social legiti-
tória que ele chama de "movimento do status para o contrato" - o direito (tanto civil va a imposição da ordem pelo Estado (1970: 69). Ao contrário, ele sugeria que a socialização criava uma
quanto penal) perde sua inserção no costume social e torna demasiado óbvia sua li- écie de "internalização" das normas de um contrato social vivo.. O contrato social não funciona como um
Itivo consciente, mas como um conjunto internalizado de critérios instilados, por meio da socialização, nas
gação com a coerção como pano de fundo". Hart parece negligenciar o fato de que, mas e rios conjuntos de práticas das sociedades.
simplesmente por não ser a coerção uma característica comum quanto a seu uso, isso 18.Uma discussão contemporânea implicaria, de início, a obra de Norbert Elias (1982) sobre a civiliza-
da conduta humana, e de Michel Foucault (1977) sobre o disciplinamento do eu moderno. Em muitas de
j,is obras, Elias analisou o modo como a violência apartou-se da experiência comum ao longo do processo
14.Hart não discute o utilitarismo de Austin nem dá atenção às freqüentes menções deste à necessi vIizador. Ele se refere ao processo de civilização (courtisation) da sociedade, ou ao processo por meio do
dade de o direito oferecer "diretrizes" ou uma orientação "inteligente" il as maneiras e o autocontrole da sociedade cortesã foram impostos às classes mais baixas, bem como à
15.Como afirma Hume no Tratado, "sem a sanção específica do governo [as promessas contratuais] se- i odução de um valor ético no abrandamento da agressão social. Além disso, os desejos "iridomador.' oii
1 acionais" sublimaram-se em nosso subconsciente, ou foram relegados à fantasia. "No meio de uma ;. i i
riam de pouca eficácia em sociedades grandes e sofisticadas" (Tratado).
16.Na modernidade, o direito civil não tem "a ajuda da superstição, provavelmente nem a da opinião, irea habitada que, de modo geral, livrou-se da violência física, forma-se uma 'boa sociedade'. lbdavh. m 1 I.
certamente nem a do impulso espontâneo. A força por trás do direito vem a ser, portanto, uma força pura o uso da violência física tenha se apartado do convívio humano, ainda que o duelo seja atualr 1 II
mente coerciva, de intensidade quase desconhecida às sociedades de tipo mais primitivo" (Early History o) , ido, hoje as pessoas exercem pressões e recorrem mutuamente à força de muitas e diferentes o
l i ii, Power and Civility, 1982: 270-1).
Institutions; 392-3).
428 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 429
ricano recebeu a descoberta, por Hart, de uma organização normativa comum corro Digressão sobre a obra de Ludwig Wittgenstein
base da legalidade cotidiana, não teve por contraparte nenhuma necessidade de ar
lisar o conjunto de processos históricos subjacentes. Em sua análise macrossoci lia da maturidade do filósofo austríaco Wittgenstein exerceu forte influên-
Elias colocou a obtenção de um monopólio da violência por parte do Estado como o Iart. Em suas primeiras obras, Wittgenstein (1921) acreditava que a função
pré-requisito fundamental. A imagem oferecida por Elias (influenciado por Weber) Livras consistia em aludira alguma coisa, servir de ponto de referência de coi-
um cenário em que a normalidade da vida cotidiana para a modernidade organiza lo mundo. Quando empregávamos uma palavra como faca, por exemplo,
da é resultado de dois monopólios de poder que o Estado detém sobre a violência m 1 em mente uma imagem intuitiva de uma faca essencial, e aplicávamos a
/la1.i a objetos dependendo do fato de eles se aproximarem ou não dessa no-
corpo (que se converte na ameaça de sanção contra os cidadãos pela inobservânci)
de leis legítimas, ou na possibilidade de ação militar contra os inimigos do Estado) e mia faca ideal. Em suas discussões e seus ensinamentos posteriores, Witt-
1 1 (publicações de 1958, 1969) alterou radicalmente sua concepção da lingua-
a violência relativa às posses (a capacidade de tributar, tomar terras etc., por meio da
1 vez de ser controlada pela realidade, Wittgenstein passou a crer que, na
arrecadação compulsória). Devido a esses monopólios, a violência legítima não pa
rece uma ameaça (como ocorre emAustin), mas um elemento tranqüilizador — unli 1 le, d linguagem construía a realidade social. Portanto, era importante exami-
parte da segurança do Estado`. .1W,nificado-em-uso das palavras`. Como poderíamos fazer isso? Precisamos
1,1 as práticas sociais verdadeiras, e estas nos mostram que as palavras só têm
ii , iiilícados que exibem porque estão inseridas nessas práticas sociais. Ele usou
ATÉ QUE PONTO O ENSAIO DE SOCIOLOGIA DESCRITIVA iI vio jogos de linguagem para descrever isso. Na metodologia da análise da lin-
DE HART REALMENTE CONSTITUI UMA NARRATIVA m ordinária, a análise do significado de um conceito, "faca", por exemplo, vai do
DA FUNCIONALIDADE DO DIREITO? 11111 m ao surpreendente, daquilo que simplesmente presumimos sem nunca ques-
nosso uso para a descoberta de novas coisas sobre nossos conceitos e nossas
Em O conceito de direito, Hart deparou com tensões inextricáveis em seus obj ii uras de pensamento em geral. Ter um conceito é - pelo menos em parte — ser
tivos e metodologias analíticos. Ele negava explicitamente qualquer necessidade ii., de usar certas palavras corretamente, empregar exemplos daquilo a que a pa-
de falar em termos dos objetivos do sistema jurídico, a menos que fosse para pos ii 'e refere e fazer certos tipos apropriados de julgamentos e discriminações. Em-
tular um objetivo básico de sobrevivência. Sua metodologia fundamental consisti 1 u nunca possa tê-lo percebido conscientemente, Wittgenstein acredita que
em adotar a filosofia lingüística, na época comum no departamento de filosofia dv 1mio uma pessoa me pede para levar-lhe uma faca à mesa, para que possa tomar
Oxford, que provinha da obra de J. L. Austin (não confundir com John Austin, o j11 1 II feição, minha capacidade de pegar tal faca não se deve a nenhuma correspon-
rista do século XIX) e de L. Wittgenstein. O ponto de partida do uso da filosofia li11 11 t i, i mágica entre a palavrafaca e alguma forma essencial de faca, mas sim a nos -
güística (também chamada de análise da linguagem ordinária) por esses autor jalização comum das práticas lingüísticas. Na prática social do comer, por
era o de que, ao analisar as distinções em nosso uso comum da linguagem (coro vimiplo, que varia conforme as culturas, criamos um instrumento que a nossa lín-
a distinção entre "ser obrigado" e "estar sob a obrigação de"), poderíamos chegai
um conhecimento mais profundo das práticas sociais às quais nos sujeitamos e
significado das regras sociais que regem nossas vidas. O problema dessa metodi 1. Wittgenstein inicia sua mais conhecida obra da maturidade, Investigações filosóficas (1958), com um
teoria designativa da linguagem. Ele cita um parágrafo de Santo Agostinho sobre o proôesso de
logia estava no fato de não nos dizer, claramente, nada sobre as grandes preocup 11 /.agem de uma língua como um exemplo de aprendizagem que depende da teoria do significado ba-
ções da vida. A análise da linguagem ordinária não é uma "grande teorização", nem imagem. Na concepção agostiniana, "a essência da linguagem humana ( ... ) individualmente, numa
seus praticantes alguma vez declararam que o fosse. O que uma metodologia as mS palavras nomeiam objetos - as frases são combinações de tais nomes - nessa imagem da lingl1I1'I1
sim limitada teria a oferecer ao pensamento institucional do direito? lImos as raízes da seguinte idéia: cada palavra possui um significado. Esse objeto é corrclativ o
o objeto do qual a palavra é um sucedâneo". Para o Wittgenstein da maturidade, essa concej
ara o único livro que publicara em vida, o Tractatus (1921), tem o grave defeito de ignorar o
livilades em que as palavras estão inseridas. Ele agora sustenta que as palavras não têm um
19. A ameça de violência "não é mais uma insegurança permanente que o Estado introduz na vida d nte separado da atividade, e a combinação de atividade e linguagem é por ele chamadidr liii
indivíduos, mas sim uma forma particular de segurança ( ...). Uma pressão contínua e uniforme é exercida so 1' Na verdade, é a operação do jogo de linguagem que fornece a base, ou os lirnilt., 1 o'j. 1 ir
a vida individual pela violência física acumulada por trás das cenas da vida cotidiana; uma pressão totainool \ idéia de um significado essencial das "palavras" é substituída pela idéia de "signa ii
familiar e dificilmente percebida conduz e impulsiona a economia, tendo-se ajustado desde os seus primónli Ignificado-em-uso" -ou essa prática de reconhecimento do uso correto -que serve Ir Ir.'. i oi ia
a essa estrutura social" (Elias, The CivilísingProcess: State Formation and Civilisation, [193311982: 328-9). 'içio, do mesmo modo que a prática social ou a regra de reconhecimento o fora para Hart.
430 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 431
gua chama de faca - um instrumento que tem certas características. Por exemplo, Aquilo que chamamos de "obedecer a uma regra" será algo que somente um ho-
capacidade de cortar (uma imitação de borracha usada num filme, e que não corta, mem poderia fazer, e mesmo assim somente uma vez em sua vida? (..) Não é possível
será normalmente rejeitada). Uma faca de plástico ou uma faca muito velha, que j; iue só tenha havido uma ocasião em que um relato foi feito, uma ordem foi dada ou
não corta, continuará sendo uma faca? Em geral, não haverá uma resposta absolu- compreendida; e assim por diante - obedecer a uma regra, fazer um relato, dar uma or-
dem e jogar xadrez são costumes (usos, instituições).
ta. Em alguns contextos, para certos usos, podemos dizer uma coisa e, em outros, ou
Entender uma frase significa entender uma linguagem. Entender uma linguagem
tra, e as respostas vão depender da importânia que a capacidade de cortar tem na- significa ter o domínio de uma técnica (Philosophi cal Investigations [Investigações filosó-
quela situação. Todavia, normalmente admitiríamos que a capacidade de cortar faz ficas], seção 199).
parte do devido reconhecimento de uma faca. As facas são artefatos que servem 1 (..) Obedecer a uma regra é uma prática. E pensar que se está obedecendo a uma
determinados fins, razão pela qual cortar bem não é simplesmente um critério de regra não significa obedecer a uma regra. Portanto, não é possível obedecer uma a regra
uma faca em certas circunstâncias, mas das facas em geral. privadamente"; de outro modo, pensar que se está obedecendo a uma regra seria a
A aplicação ao estudo do direito parece agora evidente. A teoria jurídica an- mesma coisa que obedecê-Ia (ibid.: 202).
terior esteve dominada por uma falsa concepção da linguagem em vez de procurai
aquela essência ou entidade pura à qual a palavra "direito" deve remeter; a teoriz \Vittgenstein recorreu a analogias com jogos comuns e cunhou a expressão
do Wittgenstein da maturidade argumenta que devemos atentar para nosso uso pos de linguagem" para referir-se a práticas e modos de vida. Quando se joga
da linguagem. Em sua aula inaugural em 1954, Definition and Theory in jurispru- ipoete, é imprescindível a adesão a um conjunto de regras públicas; o jogo se tor-
dence, Hart parece afirmar que as tentativas anteriores de definir o significado do ii i i i praticável se cada um dos participantes resolver seguir seu conjunto particular
direito foram equivocadas. Elas ignoravam as importantes maneiras em que o ver- egras. As autoridades tampouco podem mudar as regras repentinamente, sem
dadeiro significado de termos ligados ao direito, ou o modo como uma expressão multa. As regras públicas de práticas sociais permitem que as práticas continuem
jurídica é efetivamente usada, são inerentes a nosso uso cotidiano da linguagem. i existir. Como resultado, nossa busca de entendimento deve levar em consideração
Por não darmos a devida atenção a nosso uso da linguagem, a especulação ante- origens sociais do pensamento e da experiência; em grande parte, somos o que
rior sobre o direito era inadequada. Para Hart, ao examinarmos os modos como
, i )mos em decorrência das práticas e instituições que regem nossas vidas. Nosso
usamos termos relativos ao direito direitos, deveres etc. - podemos intuir seu ver-
1
)flhecimento de nós mesmos e de nossa sociedade não pode provir da experiên-
dadeiro significado. atomizada de indivíduos, mas é, em si, produto de atividades dirigidas por re-
1rns que devem ser públicas e sociais. Um jogo de críquete não pode ser compreen-
Wittgenstein direcionou a ênfase para a natureza, que caracteriza nossas prá-
do em termos das intenções privadas de jogadores individuais; o que eles fazem
ticas, de serem governados por regras. Não podemos entender o comportamento
slquire sentido a partir das regras do jogo do qual estão participando.
humano como as ações isoladas de indivíduos, uma vez que todas as ações só sig-
Todavia, de onde vêm as regras, e o que determina sua alteração? Aqui, começa-
nificam alguma coisa no contexto de uma estrutura mais ampla. As palavras têm o ii a entrar em terreno muito problemático, ou em algo que podemos chamar de
significado que têm devido ao contexto em que são usadas; um observador quc limites metodológicos". As regras achamse inseridas numa prática; na verdade,
nada soubesse sobre o contexto não seria capaz de entender as palavras (teria, pri- Ias constituem a prática ou a instituição. Portanto, temos uma interação constituti-
meiro, de aprender a língua) e, no caso das práticas, o observador teria de aprendei entre as regras e a sociedade — as regras ajudam a constituir a sociedade, mas a so-
as regras da prática para entender seu significado. Tampouco pode o sentido das edade cria as regras. Por definição, regras e instituições diferentes produzirão regras
práticas sociais ser conferido privadamente, e a averiguação do significado das coisas li ferentes de seus jogos sociais. Como podemos saber que práticas são melhores, e
não deve ser comparada ao recebimento de algum conjunto natural de impressões orno saber quais são morais ou imorais? Em outras palavras, como podemos saber
t ,
dos sentidos. Wittgenstein apresentou argumentos famosos contra a possibilidade uais são certas e quais são erradas?
de uma "linguagem privada". Entendemos todas as nossas sensações - como o en- Ora, para a tradição de raciocínio deontológico baseado em Kant (ver capítulo 6
tendimento da dor - mediante o uso dos recursos fornecidos por uma linguagem P?Ste livro), o certo tem uma natureza independente, as coisas são certas em si mes-
pública. O significado de nossas "sensações privadas" encontra-se numa lingua- 5 ias, a base dessa imputação transcende nossas confusas práticas de vida cotidianas.
gem pública com verificações públicas de seu uso correto. Os "critérios de uso cor A deontologia kantiana depende de se fragmentar a existência nos domínios do em-
reto" só se tornam possíveis através da realidade do uso social; não se pode ter cri pírico edo transcendentalmente ideal, e muitos não aceitam a metafísica kantiana. Con-
térios privados para o uso de uma palavra, uma vez que nesse caso não haveria dis- Ii a Hume e Kant, Wittgenstein adotou o pragmatismo epistemológico e não espc-
tinção entre meu apego a uma regra e minha idéia de que estava aderindo à regra iva encontrar ali uma justificação racional para cada nível de conhecimento -•• nn
quando na verdade não o estava fazendo. xplicações" absolutas que possam ser dadas para as características do que o 5151
432 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 433
na base de nosso entendimento; podemos apenas oferecer "descrições". Além disso, 1 um outro conjunto de práticas sociais contingentes. Em vez disso, devemos vol-
essas descrições não provêm de fora dos jogos de linguagem, mas são, elas próprias, 1, 1 ns olhos para a substância de nossos jogos de linguagem enquanto formadores
feitas a partir do interior de um ou outro desses jogos. Não é possível ficar em deter- expressão material de nossas vidas e tentar compreender as tradições racionais
minada posição fora dos jogos de linguagem e julgar as relações entre palavras, con- l i 1H nelas existem; alternativamente, não devemos nunca deixar de colocar a questão
juntos, proposições e a realidade "objetiva", e desse modo avaliar se a linguagem está liansformação - só procuramos nos preocupar com nossa "série de lembranças"
descrevendo corretamente a realidade, se é correlativa a ela ou se a representa. Es- 1 ,() i-que são elas que oferecem alguma esperança concreta de soluções para se lidar
tamos permanentemente dentro de um ou outro jogo de linguagem, e não pode ha- Til os "problemas" concretos da humanidade em suas diferentes posições sociais,
ver nenhuma apreciação transcendental da adequação dos jogos de linguagem. Para Mnômicas e políticas.
o Wittgenstein da maturidade, o pensamento provém de contextos de vida; isso não O pressuposto de que podemos encontrar algum item totalmente indepen-
equivale a um irracionalismo arbitrário, ou a um vazio (como Hume temia), mas à ate dos jogos de linguagem já existentes no qual seja possível basear a constru-
verdadeira racionalidade humana de nossas próprias formas de vida: a de um novo sistema é um equívoco - em vez de nos preocuparmos com a noção
alguma base fundamental nos níveis profundos dos jogos de linguagem, deve-
Toda testagem, toda confirmação e desconfirmação de uma hipótese já ocorrem
mos prosseguir com a tarefa de identificar o modo como realmente usamos aque-
dentro de um sistema. E esse sistema não é um ponto de partida mais ou menos arbi-
trário e duvidoso para todos os nossos argumentos; não, ele pertence à essência do que
1'; de que dispomos, e nos quais vivemos, e tentar conhecer as implicações de seu
a para a vida social. Nossa necessidade geral de firmar nossos atos sobre alguma
chamamos de argumento. O sistema é menos o ponto de partida do que o elemento
em que os argumentos têm sua vida (On Certainty [Sobre a certeza]: n 204). 'ise não está inscrita nem em um esquema universal de razão pura, nem nas limi-
.;oes de uma estrutura empírica profunda que condicione nossa existência ou no
Quando nos referimos aos objetos do mundo e sugerimos correlações etc., es- sejo arbitrário, mas sim nas formas de funcionamento que determinam nosso
iaado de vida.
tamos operando dentro de um jogo de linguagem, e o modo como o mundo se divi-
de para nós é condicionado pela estrutura desse jogo de linguagem.
Como sou capaz de obedecer a uma regra? - se esta não é uma pergunta sobre as
A tarefa do pesquisador consiste em extrair os complexos funcionamentos dos causas, então diz respeito à justificação de meu modo de seguir a regra. Se já esgotei as
diversos jogos de linguagem - da racionalidade de nossos estilos de vida. Através justificações é porque cheguei à base rochosa, e minha pá está em repouso. Inclino-me,
desse procedimento, empenhamo-nos conscientemente em frustrar nosso desejo então, a dizer: "Isto é, simplesmente, o que faço" (Philosophical Investigations n? 217).
de um ponto de vista transcendental que crie um reducionismo "falso" ao negar a
necessidade de "explicar" o procedimento da "fundamentação" - em vez disso, ten- O que nos dá a garantia da verdade? Somente as formas da vida humana:
tamos demonstrar os processos nos quais os limites do pensamento efetivo e da
"realidade" vivida se tornam evidentes, ou confirmados, a partir de dentro das es- "Estais então dizendo que é o consenso humano que decide o que é verdadeiro e
truturas vivas dos jogos de linguagem21. o que é falso? - E o que os seres humanos dizem, que é verdadeiro e falso; e eles con
A filosofia teria um uso prático no processo de criação de projetos, objetivos e cordam na linguagem que usam. Isso não é consenso de opiniões, mas de forma de
vida (ibid.: n? 241).
formas de vida das pessoas; dizer que sempre operamos dentro de um jogo de lin-
guagem equivale a admitir uma compreensão radical da contingência das práticas
sociais como instâncias definidoras do que somos, e de nossas inter-relações huma- O pensamento pragmático volta nossa atenção para a conduta de vida e as for,
nas como formadoras do social. Todavia, dizer que são contingentes não significa di- ações que a sociabilidade humana desenvolve. Especificamente, Wittgenstein i
zer que são arbitrárias, se isso significa que temos plena liberdade de abandonar to- ('\orta a investigar a operação dos "jogos de linguagem", as palavras e os ah
1' ais eles se acham interligados "na prática do uso", como quando "uma dat; ii.
talmente uma situação histórica e simplesmente optar por criar outra posição em a as palavras e a outra age em conformidade com elas" (ibid.). Aprender i i , es, . 1 ii,
agem significa aprender a existir dentro de diferentes jogos de linguageni Ir
21. Wittgenstein chamava sua abordagem de terapêutica e afirmava estar propondo alguma coisa bem
palavras são usadas de maneiras diversas.
diversa da abordagem explicativa tradicional. Sua versão da filosofia era aberta, e não autoritária: "A filosofi Como conseqüência disso, parece que o filósofo - e, em decorr' a Li
simplesmente põe tudo à nossa frente, e nem explica nem infere nada - Uma vez que tudo está exposto a e já leu seu Wittgenstein - deve simplesmente esclarecer as obsci ia Li
olhar, não há nada a explicar. Porque o que está oculto, por exemplo, não é de grande interesse pata nós." 1 linguagem (sobre o direito, por exemplo) e deixar as investigaçõ 1 ' i
No mesmo parágrafo, porém, ele afirma: "O trabalho do filósofo consiste em reunir lembranças tendo e]ii go do sociólogo. De que modo, porém, poderá o sociólogo ofeni e i i i i
vista uma finalidade específica." li 1 iguagem superior?
434 Filosofia do direito 0 ponto alto do positivismo jurídico 435
O paradoxo é simples: se as atividades dos indivíduos só adquirem sentido demos sair, simplesmente nos detemos em algum ponto; repetindo parte de uma
através da participação em práticas sociais, então temos de passar a vê-las como fon- ci [ação anterior:
tes de nossas explicações e contextualizar, continuamente, tanto o que estamos in-
vestigando quanto a nossa própria posição. Porém, nossa metodologia do entendi- Se já esgotei as justificações é porque cheguei à base rochosa, e minha pá está em
mento será ela mesma uma prática, e precisará, ela também, de entendimento. As- repouso. Inclino-me, então, a dizer: "Isto é, simplesmente, o que faço" (Philosophical
sim, precisaremos entender a prática social da sociologia antes de podermos aceitar Investigations: n 217).
o seu discurso - e isso, por sua vez, constituirá outro jogo de linguagem, outra prá-
tica que, por sua vez..., e assim por diante. Para Hart, portanto, fica em aberto a afirmação de que sua regra de reconheci-
A afirmação de que as regras (como o direito) só podem ser entendidas median- i n ento é simplesmente aquilo que ele usará como base de sua descrição do sistema
te sua inserção na sociedade - como afirma Hart, seguindo Wittgenstein - não nos jurídico; mas ele deve então admitir que isso deixa em aberto e por responder o que
oferece uma resposta sobre suas origens. Essa descoberta deixa lacunas terríveis na é que constitui a verdadeira natureza da regra de reconhecimento.
teoria de Hart. Ele tenta impedir essa possibilidade de retrocesso infinito median- Portanto, sociedades diferentes podem ter diferentes regras de reconhecimento;
te o recurso a uma prática social básica de reconhecimento do direito que chama de o problema, então, é que uma expressão como "regra de reconhecimento" precisa
regra de reconhecimento. Todavia, não sabe nos dizer como encontrar a regra que nos que lhe sejam impostas algumas limitações, pois do contrário não estará à altura do
papel que pretende desempenhar na teoria de Hart.
permita reconhecer a regra de reconhecimento; em vez disso, deixa-a como uma prá-
tica social presumida. Hart também quer manter uma definição jurídico-positiva do A segunda resposta que Wittgenstein oferece está fundamentalmente em de-
direito que preserve nossa capacidade de análise moral. Portanto, o simples fato de sacordo com o relativismo:
concordarmos que essas regras, que são aceitas pela regra de reconhecimento do di- Seguir uma regra é análogo a obedecer a uma ordem. Somos treinados para fazê-lo;
reito de uma sociedade especifica, devem ser aceitas como um direito válido, não res- reagimos a uma ordem de um modo particular. Todavia, e se uma pessoa reagir de um
ponde à questão de saber se elas determinam ou não a nossa obediência moral. Con- modo, e outra de outro modo, diante da ordem e do treinamento? Qual delas está certa?
tudo, Hart (ao contrário de liberais kantianos inveterados, como Ronald Dworkin) Suponhamos que você chegou na qualidade de explorador a uma terra desconhe-
não oferece nenhum critério que nos permita avaliar o valor moral das exigências cida onde se fala uma língua que lhe é muito estranha. Em que circunstâncias você diria
de obediência legal. Uma vez que Hart insiste em que só está comprometido com que as pessoas desse lugar davam ordens, compreendiam-nas, obedeciam-nas, rebela-
a análise descritiva, sem nenhum objetivo justificatório, ele logo parece estar - contra vam-se contra elas, e assim por diante?
todas as suas melhores intenções estimulando o niilismo jurídico; não se nos ofe- O comportamento comum da humanidade é o sistema de referência por meio do
rece critério algum para julgarmos a legalidade. qual interpretamos uma língua desconhecida (Philosophícal Investigations: 206).
Alguns críticos (por exemplo, Rosen, 1969) acreditam que a análise da linguagem
ordinária é, per se, niilista. Sem dúvida, a acusação de relativismo foi freqüentemente Wittgenstein parece sugerir que poderíamos estabelecer um contexto funda-
imputada a Wittgenstein. Se as regras só podem ser justificadas no contexto de uma mental, isto é, o "comportamento comum da humanidade". Em outras seções, ele
sociedade particular, de que forma podemos tomar quaisquer decisões relativas a sa- fala sobre "a correspondência entre conceitos e fatos muito gerais da natureza", o
que implica que poderíamos remontar a razões subjacentes para as características
ber se sociedades inteiras - como a Alemanha nazista ou a África do Sul sob o apar-
dos modos de agir humanos diante dos fatos mais gerais sobre a natureza humana
theíd - podem ser "corretamente" consideradas certas ou erradas, moralmente acei-
O problema é que cada solução aponta para direções opostas. Quando Witt-
táveis ou indefensáveis? Se tudo é contextual, não será tudo relativo (ao contexto)?
genstein diz que o que tem de ser aceito como simplesmente dado são as forma
Wittgenstein - e Hart - têm duas linhas de resposta. A primeira consiste em ne-
vida, ele está nos condenando ao relativismo, ou pelo menos a uma pluralididv
gar que precisemos de fundamentos. Essa antifundamentação tornou-se muito sa-
jogos de linguagem; quando fala sobre a "história natural dos seres humanos" (Iii ii
tisfatória para certos escritores pós-modernos`, e Wittgenstein simplesmente afirma
:ophi cal Investigations: 415), parece estar ressuscitando a história natural d( , 1 1
que devemos sempre estar usando um ou outro sistema de valores`. Como não po-
stígatíons, parágrafo 124). O dilema diz respeito, de fato, aos fundamentos, porque \Mtti ii
22.Um dos mais conhecidos é Richard Rorty (1979). tinua o parágrafo: "Porque também não podemos lhe dar fundamento algum." A filosofia ,1,
23.Isso parece condenar Wittgenstein à posição de que, como filósofo, nada pode dizer sobre o valor co não pode dar-lhe um fundamento porque não existe nenhum plano universal di.....
de certos modos de vida. Essa implicação parece decorrer de máximas como "A filosofia não pode absoluta- ática deve ser compreendida em seus próprios termos, de onde se segue que a fi1o. li: 1. ou
mente interferir no uso concreto da linguagem; ao fim e ao cabo, pode apenas descrevê-lo" (Philosophical In- amentos deve "deixar tudo como está".
436 Filosofia do direito 437
O ponto alto do positivismo jurídico
A SOLUÇÃO INSATISFATÓRIA DE HART PARA 1 -lart arrola as seguintes regras mínimas: (1) regras que restringem o recurso à
O LEGADO DE WIFIGENSTEIN ncia; (2) regras que exigem honestidade e veracidade; (3) regras que restringem
v
«Lruição de coisas tangíveis; (4) regras que proíbem o assalto dos objetos alheios.
Hart resolveu esse dilema ao acrescentar a seu uso muito legítimo da análise or-
cis regras são condições mínimas para a persistência de grupos sociais, isto é,
dinária da linguagem - uma análise que nos mostra o quanto, em termos da ativida-
1 certas regras não existissem, o grupo social não "sobreviveria". O "princípio de
de cotidiana inserida nas práticas em relação às quais podemos recorrer ao direito,
pode ser visto como uma questão de observância das regras - uma síntese narrativa revivência" é o princípio básico que Hart propõe por trás da interação social, e
do desenvolvimento do direito, que passa de um pretenso estado "pré-jurídico" a ubrevivência" é o fato irredutível da vida individual: "A maioria dos homens, na
um estado em que se converte num sistema jurídico moderno. Muitos críticos (por HHor parte do tempo, deseja continuar a existir" (CD: 187). Sem restrições à vio-
exemplo, Fitzpatrick, 1992) consideram ser esta a parte mais fraca da obra de Hart, cicia, algumas exigências de veracidade no trato com os outros e assim por dian-
e vêem a afirmação deste - a de estar simplesmente fazendo uma análise descriti- i vida social tornar-se-ia impossível. Portanto, ele conclui, todas as sociedades
va - como algo que na verdade equivale a apresentar uma teoria que justifica os pro- devem ter essas regras mínimas.
cedimentos do sistema jurídico contemporâneo mediante uma afirmação implíci- As "regras mínimas" particulares podem ser inferidas de um certo número de
ta de que surgiram como a evolução funcional de uma estrutura social que pudes- 1ruísmos elementares" sobre a natureza humana. Hart relaciona-os da seguinte ma-
se conciliar a crescente complexidade da vida social`. neira: vulnerabilidade humana, igualdade aproximada, altruísmo limitado, recursos
Como se dá, em Hart, a narrativa da existência do direito? Seu pressuposto é o iimitados, compreensão limitada (ver CD: 189-94). Sua concepção da natureza hu-
de que toda a vida social implica uma regulamentação normativa (a existência de na erige-se sobre as idéias de Thomas Hobbes e David Hume (ver capítulos 4 e 5
normas sociais, expectativas, sanções para violações e/ou recompensas). Hart nos ccte livro). Hart atenua Hobbes quando insiste em que as regras sociais que restrin-
convida a "imaginar uma sociedade sem um legislativo, tribunais ou autoridades de 'cm a busca do interesse pessoal "são, de qualquer modo, menos desagradáveis,
qualquer tipo"; esta é uma estrutura social "de regras primárias de obrigação". Nes- iccnos brutais e menos bruscas do que a agressão irrestrita" (CD: 191)26.
se estágio "primitivo" ou "simples" de desenvolvimento social, essas normas são de No texto de Hart, o caminho do desenvolvimento histórico avança para o está-
natureza simples ("Exige-se que os seres humanos pratiquem certos atos ou se abste- em que se torna possível identificar a existência de um "direito" ou "sistema ju-
nham de praticá-los", CD: 78); elas impõem deveres e têm características de regras`. Jico"27. Hart postula um estágio ou ponto crítico. Isso implica o surgimento de
Nesse estágio inicial não há, necessariamente, instituições específicas que criem ou i segundo e diferente tipo de regra que ele chama de "regra secundária". As regras
apliquem as normas (por exemplo, não há tribunais ou juízes), nem tipos diferentes ccundárias são aquelas que
de normas idênticas). Hart explica que, muito embora vá existir uma enorme varie-
dade nas normas básicas entre as diferentes sociedades, deve haver um núcleo co-
mum de "regras obviamente necessárias à vida social" (CD: 167). Essas regras en- 26.A imagem fundamental da idéia de Hart acerca da "natureza humana" é aquela do indivíduo que,
contram-se na base empírica da preocupação comum ao longo das eras menciona- apesar de isolado e comprometido com a sobrevivência individual, tem ainda assim de aceitar com relutân-
das no discurso do "direito natural". Os teóricos do direito natural confundiram a cia uma certa restriçãó à busca irrestrita do interesse pessoal, a fim de que tal sobrevivência (tanto individual
necessidade de uma estrutura de regulamentação que provém de alguns truísmos quanto social) possá se tornar possível. Hart tenta atenuar o dramático rigor da concepção hobbesiana da na-
tureza humana, mas em momento algum apresenta sua teoria como se esta tivesse bases políticas. (Para a
básicos da natureza humana com sistemas complexos de moralidade.
crítica de Hobbes ver, em particular, C. B. Macpherson, lhe Política! Theory of Possessive Individualism, 1962,
capítulo 2) A objeção básica a Hobbes e a Hart é que seu modelo de seres humanos agressivos isolados é to-
talmente anistórica; nada se ganha ao se colocar seres humanos isolados (motivados pelo interesse pessoal
24. Sabe-se que John Austin também se baseava pesadamente na distinção entre :o estado primitivo, e pela sobrevivência) reunidos para formar a "vida social" e ter de abrir mão de seu egoísmo. A vida huma-
não-jurídico, da sociedade natural, e a regulamentação jurídica de urna sociedade política. Como assinala Pe- na é inevitavelmente "social" já em sua origem. Os indícios disponíveis sobre as sociedades mais primitivas
ter Fitzpatrick (1992, cap. 6), Hart:se baseia numa tradição particular de contar histórias ou criar narrativas so- ou simples não corroboram os pressupostos do selvagem agressivo. Conquanto devamos evitar o erro opos-
bre os fundamentos do direito, bem como de fazer um uso implícito da retórica parã afirmar sua necessidade. to de pressupor alguma "idade de ouro", os pressupostos de Hobbes eHart aproximam-se mais da im
25."Se uma sociedade deve viver apenas de acordo com regras tão primárias (...), as regras devem con- da vida na época de Hobbes e da realidade da vida humana nas sociedades capitalistas competiliv.is 3
ter, de alguma forma, restrições ao livre uso da violência, do roubo e da fraude aos quais os seres humanos pressupostos sobre a natureza humana certamente não são "truísmos", como Hart afirma; são extremamen-
são tentados, mas que devem em geral reprimir se pretendem coexistir em estreita proximidade uns dos ou- te questionáveis.
tros. De fato, essas regras são sempre encontradas nas sociedades primitivas das quais temos conhecimento,
27. Hart não se preocupa muito com a apresentação de provas, nem do primeiro estágio, nem i N , pro-
juntamente com uma diversidade de outras que impõem aos indivíduos diversos deveres positivos de pres- cesso imediato. Ele não recorre ao considerável conjunto de informações existentes; por exemplo, aos 'siu
tar serviços ou fazer contribuições à vida comum" (CD: 88).
antropológicos do direito nas sociedades simples.
438 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 439
( ...) estipulam que os seres humanos podem, ao fazerem ou dizerem certas coisas, intro- Ii das demais de três maneiras (CD: 84-5): (i) elas têm uma seriedade de pressão
duzir novas regras de tipo primário, extinguir ou modificar regras antigas ou, de diversas til, ou seja, tendem a ser regras em que a exigência de conformidade é forte, e
maneiras, determinar sua incidência ou controlar seu funcionamento (...). Elas confe- r ' uma forte pressão social para se evitar a divergência; (ii) tende-se a consi-
rem poderes, públicos e privados (CD: 79). Ias como necessárias à manutenção da normalidade da vida social; (iii) tende~
considerá-las como regras que implicam a exigência de algum sacrifício para
Elas introduzem "um passo que leva do mundo pré-jurídico ao mundo jurí- (tecê-las.
dico" (CD: 91).
A idéia de regras enfatiza a necessidade particular de um elemento mental para
que estamos vivenciando uma atividade presa a regras, e que algumas regras
A EXIS lÊNCIA FORMAL DO SIS lEMA JURÍDICO mais importantes do que outras. Podemos reconhecer as regras vinculadas com
ações como regras jurídicas. Portanto, a estrutura jurídica é um sistema que se-
O funcionamento das regras secundárias fornece a base para a existência do essa abordagem. A sociedade tem uma série de regras "de tipo Austin", isto é, re-
sistema jurídico que se diferencia de uma mera coletânea de regras primárias". Hart i 1; que impõem deveres e que previnem a violência, a fraude etc., e Hart chama-
é relativamente obscuro quanto ao modo como essas regras surgiram, ou quanto à e regras primárias (que impõem obrigações). Para uma sociedade existir apenas
sua natureza precisa. Ele parece ligar duas espécies diferentes de regras: (i) regras que mi eiise tipo de regras, seria preciso que uma maioria da população adotasse a
conferem a cidadãos/pessoas jurídicas poderes para alterar suas relações legais. Um ((opção interna das regras primárias. Isso não significa que teriam, necessaria-
elemento importante de sua crítica a Austin é a incapacidade de a "teoria do coman- m(mrmle, de estar de acordo com elas, mas que deveriam torná-las por guia. Numa
do" das regras incorporar, por exemplo, a capacidade ou o poder de fazer um testa- 1 odade desenvolvida, precisamos mais do que essa abordagem porque esta estru-
mento ou celebrar um contrato. Esses tipos de regras jurídicas parecem ser incluídas mm das regras não constituiria um sistema; faltar-lhe-ia coerência, e a razão estaria
como regras que conferem um poder privado; (ii) regras voltadas para autoridades ju- mi o tato de não haver modo algum de decidir os limites da regra e a relação entre as
rídicas, em particular para os "juízes", sobre o modo como eles devem identificar as r,ls. Isso levaria: (i) ao problema da incerteza social quanto à posição relativa da re-
regras válidas, mudá-las e interpretá-las. A parte mais substancial de sua discussão e à força da obrigação imposta; (ii) significaria que não existem meios de mo-
das regras secundárias gira em torno desse tipo de regra (ver, mais adiante, os tipos 'tmHcar as regras primárias em tal sociedade, Tudo que se teria seria uma simples re-
de regras secundárias). Existem as regras que conferem poderes "públicos" às quais id o de regras que impõem obrigações, O sistema seria estático e, portanto, incapaz
ele alude em sua definição inicial das regras secundárias. O problema é saber se esses o ofrentar, em igualdade de condições, qualquer mudança em seu meio ambien-
dois tipos diferentes de regras secundárias são ou não suficientemente parecidos para (iii) não haveria como determinar, finalmente, quando uma violação das regras
ser incluídos dentro do mesmo conceito. O fato de que as regras são dirigidas a duas im ocorrido. Sem alguma forma de processo de julgamento reconhecido, os litígios
categorias distintas de pessoas, isto é, "cidadãos", por um lado, e "juízes", por outro, mm Linuariam a existir, quer as regras tivessem sido infringidas, quer não. Isso leva-
sugere uma resposta negativa". i i uma ineficiência geral do sistema.
Depois de sermos levados a considerar o direito como uma forma especial de re- Hart procura remediar essas deficiências ao especificar três tipos diferentes de
gras, vemo-nos agora diante de um conceito análogo, isto é, o de obrigação. Nem to- gras secundárias:
das as regras impõem obrigações. As que o fazem podem normalmente ser diferen-
A regra de reconhecimento - Hart apresenta-a como solução jurídica para a incer-
teza. Determina o que é ou não uma regra primária válida para a sociedade. A
28. Como os críticos assinalam prontamente, Hart diz muito pouco sobre as condições nas quais as re-
gras secundárias passam a existir. Que mudanças cruciais ou críticas estão envolvidas? Estarão diretamente
regra de reconhecimento serve ao soberano de Austin (ou ocupa seu lugar) por-
ligadas ao surgimento de instituições especificamente jurídicas? Serão dependentes do desenvolvimento de que podemos ver que ela se situa na parte superior de um sistema jurídico. É uma
uma função específica que designamos como "judicial"? regra que determina o que vale como direito; determina, por exemplo, as 1in a-
29. Alguns autores sugerem que há uma única solução para esse problema. Esta consiste em lidar com ções processuais para a criação de uma regra por deliberação do Parlamento. 1 1
as regras privadas que conferem poder dentro da categoria hartiana de "regras primárias de obrigação", e em
deixar as regras secundárias exclusivamente voltadas para as autoridades. Todavia, há alguma razão para se
essência de uma prática social que declara o que será reconhecido como clhrei Iu
pensar que Hart não pretendia chegar a tal solução, que não via com agrado. Ele faz duras críticas à tentati- válido.
va kelsiana de definir todas as regras como se estas levassem as autoridades (os juízes) a aplicar certas San-
ções em circunstâncias específicas (CD: 35 ss.). Essa solução está, sem dúvida, em desacordo com a própria Regras de alteração - Estas indicam como as regras primárias devem ser cri (
definição hartiana de regras secundárias. ou como as existentes devem ser alteradas.
440 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 441
3. Regras de julgamento ou de prestação jurisdicional - Estas especificam os meios pe- A idéia das regras
los quais devem-se tomar decisões relativas a saber se uma regra primária foi ou
não infringida. A característica central ou essencial do complexo conceito de direito encontra-se
)nceito de "regras", "a idéia ( ... ) sem a qual não podemos esperar elucidar as for-
Num sistema jurídico moderno, isto é, sob condições de vida civil, a situação -nais elementares do direito" (CD: 78). John Austin mencionava freqüentemen-
normal seria que os cidadãos geralmente obedecessem às regras primárias, e quc :egras, mas não desenvolveu uma concepção específica do tipo de atividade
as autoridades que fazem funcionar o sistema jurídico reconhecessem as regras se- 1 que elas implicam; Hart, porém, baseia-se em Kelsen (Hart não parece ter lido
cundárias a partir de um ponto de vista interno. Elas refletem criticamente sua e boa parte do Conceito de direito é tanto mais pobre por ele ter negligen-
própria conduta e a conduta de outras autoridades no que diz respeito ao desempe- esse autor).Wittgenstein havia arguméntado que as regras são sociais por sua
nho de seus papéis e a sua relação com sua tarefa. ria natureza; o conceito de "regra" implica, necessariamente, que se pressupo-
dia uma relação entre certos tipos de agentes sociais: o autor/criador de regras, o
Seria necessário que houvesse uma atitude crítico-reflexiva quanto a certos padrões lestinatário ou sujeito da regra e uma noção da autoridade que a aplica e julga.
de comportamento enquanto padrão comum, e que isso se mostrasse em forma de cri-
ticas (inclusive de autocrítica), de exigências de conformidade e do reconhecimento de
que tais críticas e exigências se justificam - tudo isso encontra sua expressão caracterís- A idéia de um sistema jurídico
tica na terminologia normativa de (...) ". certo" é "errado" (CD: 56).
O direito só existe na medida em que suas regras constituem um sistema; por-
doto, o conceito de "direito" envolve e requer o conceito de um "sistema jurídico" que
O ASPECTO INrtiRNO DAS REGRAS E A QUESTÃO DA OBEDIÊNCIA contenha.
Embora Hart afirme não seguir a idéia austiniana de obediência e comando ha-
bituais, a imagem da sociedade que ele sugere é um cenário em que a maioria das Condições para a existência de um sistema jurídico
pessoas obedece. Hart se baseia fortemente numa idéia de internalização na qual o
agente tem um ponto de vista interno a respeito de uma regra e trata a existência des- Há duas condições mínimas, e ambas são analíticas e empíricas: (i) as regras vá-
ta como crucial à questão do que deve ser feito. A existência da regra é um motivo Udas "devem ser obedecidas em termos gerais"; esta condição implica o comporta-
para a ação. Hart não discute de que modo essa atitude se consuma. Na verdade, ao istema"de-
nento dos cidadãos/sujeitos jurídicos. (ii) As regras secundárias de um sistema" de-
prosseguir em sua análise ele admite que a maioria não precisa compartilhar plena- 'em ser efetivamente aceitas pelas autoridades como padrões públicos comuns de
vem
mente uma concepção interior do direito; mesmo que muitos simplesmente obede- omportamento oficial" (CD: 113); esta condição diz respeito, especificamente,
çam às regras primárias por hábito, continuamos tendo um sistema jurídico que fun- o comportamento das autoridades. Uma vez esclarecidos os critérios mensuráveis
ciona integralmente. As autoridades, porém, devem ter uma concepção mais comple- lo "obedecido em termos gerais" e do "efetivamente aceito", podemos aplicá-los a
xa, e precisam compartilhar uma concepção interior das regras secundárias. Como se ircunstâncias históricas específicas`.
observa mais adiante, enquanto Hart enfatiza os estados mentais da população, no
fim das contas o que realmente conta para a existência de uni sistema jurídico é a
concepção das autoridades. Por outro lado, Hart espera que num sistema democrá- A idéia do direito como união das regras primárias e secundárias
tico a maioria dos cidadãos assuma uma concepção interior; eles serão participantes
integrais do sistema. Esta idéia nos oferece a mais importante e singular das proposições de-
saber: "o direito é a união das regras primárias e secundárias". A operação
"união" revela o caráter essencial ou fundamental do direito; distingue o pré-jurí- (i) O aspecto externo. Para "existir", uma regra deve ter conseqüências para o com-
dico do jurídico, os atos de simples coerção disfarçada em lei da verdadeira lei. E o portamento dos que a ela se submetem; isso implica algum padrão de conduta
tema central da crítica de Hart a Austin e à teoria do comando do direito, e escla- regular da maioria, isto é, um certo grau de conformidade entre a exigência de
rece o "significado" do conceito de direito. uma regra e o comportamento das pessoas; não implica nenhumà referência à
opinião, sobre a regra, daqueles que a ela se submetem`.
A maior parte das características do direito que se mostraram mais desconcertantes
(ii) O aspecto interno. O que distingue as "regras jurídicas" dos costumes, hábitos,
(...) pode tornar-se mais clara se esses dois tipos de regra e a interação entre eles for
compreendida (CD: 79). convenções etc. (mas não da moral) é o fato de implicarem uma certa atitude dis-
tintiva ou resposta subjetiva. Isso envolve mais do que apenas "o sentimento de
A proposição, portanto, pretende ser explanatória e não apenas uma questão estar obrigado" ou "ter uma obrigação": "é preciso haver uma atitude crítico-re-
flexiva diante de certos tipos de comportamento como padrão comum" (CD: 56).
de definição.
Hart postula a transformação da sociedade primitiva em sociedade civil avança- Essa "atitude crítico-reflexiva" se expressa no uso de uma linguagem normativa,
por exemplo "deve", "deveria", "certo", "errado" etc.
da com a criação de regras secundárias de alteração, adjudicação e reconhecimento
- quando então surgem as instituições de julgamento. Ora o direito primitivo, que
Fica claro que, em sua discussão geral, Hart sugere que essa atitude interna deve
não conhecia a si próprio enquanto direito, é julgado: a regra de reconhecimento. Ora
ccc bastantedifundida entre a população (ver nossa citação inicial, CD: 893). Ao de-
os deveres do homem, que parecem naturais e não socialmente impostos, são julga-
tienvolver sua distinção entre regras primárias e secundárias, ele tende a introduzir
dos: a regra de julgamento. Ora as regras são despojadas de sua simplicidade e levadas
uma mudança de ênfase; cada vez mais, menciona a exigência de que cabe às au-
a parecerem contingentes: a regra de alteração. Essa alteração é o advento de uma exi-
toridades ostentar essa atitude especial, que parece equivaler a um compromisso
gência existencial: o mundo deve ser governado por (apelos à) justiça. A justiça deno-
consciente e explicito com a observação das regras enquanto característica central da
ta uma preocupação com atributos de igualdade e com os cânones de julgamento.
iNlude oficial de tais autoridades em sua condição de "juízes" etc.
Desse modo surge o Estado, mas surge para fazer política, a política do julgamento
e a constitucionalidade da terceira instituição: o juiz que decide e reconhece minha O postulado da existência de um sistema jurídico é, portanto, uma afirmação de
posição e a dos outros em face do direito. Esse juiz deve manter-se distante das par- duas faces cujo olhar se volta, ao mesmo tempo, para a obediência dos cidadãos comuns
tes; deve cercar-se de objetividade. As próprias regras secundárias precisam de "cri- e para a aceitação, por parte das autoridades, das regras secundárias enquanto padrões
térios objetivos" de interesses e vantagens. críticos comuns de comportamento oficial.
A diferença entre Hart e Austin estreitou-se até chegar ao ponto de fuga: numa
O aspecto "externo" e "interno" do direito cociedade ideal, as pessoas devem ser esclarecidas e aceitar a racionalidade das re-
as (Austin); numa sociedade saudável, as pessoas aceitariam as regras como pa-
Muito próxima da distinção estabelecida por Hart entre regras primárias e se- 1 rões comuns de comportamento e reconheceriam uma obrigação de obedecer a elas
cundárias encontra-se a importância por ele atribuída à dupla exigência da existên- II Iatt). Além disso, Hart reconhece que não há razão para negar, a uma sociedade em
cia de um "aspecto" (ou uma atitude) externo e interno por parte dos que se sub- ia um grupo de autoridades exerce o poder e mantém coerência interna em sua
metem a uma regra'. co logia, o status de vigência de um sistema jurídico atuante.
31. Ao afirmar que a idéia de direito é uma questão de regras, Hart nos chama atenção para a idéia de Num caso extremo, o ponto de vista interno, com seu característico uso normativo
que o direito tem a ver com as obrigações fundamentais. O direito é uma parte do julgamento social do da linguagem jurídica ("Esta é uma regra válida") poderia ser confinado ao mundo ofi-
comportamento das pessoas. Segundo Hart, as regras têm a ver, fundamentalmente, com padrões de com- cial. Nesse sistema mais complexo, somente as autoridades poderiam aceitar e usar os
portamento. Compreendemos os padrões que temos ao exibirmos reações hostis. Portanto, o comporta-
mento vinculado a regras contrasta com o comportamento habitual, que consiste na mera regularidade. Há
uma diferença fundamental entre uma regra levar a praticar certos atos e ter o mero hábito de agir dess 32. Hart não se mostra muito preocupado em explorar esse aspecto "externo", pois sua atenção está
modo. Talvez você possa dizer que "Em geral, vou ao cinema às segundas-feiras à noite", o que descreve ]t,cia para o aspecto "interno". Todavia, a formulação um tanto vaga está cheia de problemas: não.esclare-
sua prática regular. Ninguém irá criticá-lo se deixar de ir numa segunda-feira. Contudo, isso é muito dife- arau de conformidade comportamental exigido, nem se uma regra que é desconhecida ou sistematica-
rente de haver uma regra social que determine que você vá ao cinema nas noites de segunda. o' infringida deve continuar a ser vista como uma regra jurídica.
444 Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 445
critérios de validade jurídica do sistema. Em tal sistema, a sociedade poderia ser deplo da hierarquia das regras: por exemplo, se as regras específicas extraem sua
ravelmente mansa e servil, e os cordeiros poderiam terminar no matadouro. Contudo, ide de uma lei, o que toma válida uma lei? Não há nenhuma regra que ofereça
não há razão para se pensar que ela não poderia existir, nem para negar-lhe o título d 1 rios para a validade jurídica da lei. No ápice encontra-se a "regra suprema", a
sistema jurídico (CD: 114). tio reconhecimento.
1 issa regra é diferente de todas as outras regras, e não extrai sua validade de ne-
Não é fácil acabar com o realismo austiniano! ia outra. Até esse ponto, a validade de uma regra é interna, ou seja, é gerada no
1 ,1 or do sistema de regras. Porém, a regra de reconhecimento "não pode ser vá-
Ii uem inválida" (CD: 105). Ao contrário, a existência dessa regra suprema é uma
A validade do direito tão de fato ("uma afirmação externa de fato"); o "fato" crucial encontra-se na
ica, por parte dos tribunais, das autoridades e das pessoas que não ocupam fun-
Uma característica comum do positivismo jurídico é a preocupação de identi- ública, de identificar a lei por alusão a ela". A importância da afirmação de que
ficar o que é que toma uma regra válida. A questão da validade é importante porque, lra de reconhecimento é uma questão de fato, ou uma "prática social", está no
uma vez identificada como "válida", uma regra implica conseqüências. Dentro d lo permitir que a cadeia de validade não seja, para Hart, um mero construto ana-
um sistema de regras atuante, uma regra válida é aquela que os juízes irão aplicar, , e que ele possa vê-Ia como algo que tem por base uma prática social coerente.
e devem aplicar nos casos apropriados; e, no que diz respeito ao sujeito jurídico, essa Hart também acredita que sua posição a respeito da cadeia de validade é mais
regra cria uma presunção de que deve ser obedecida. (Uma presunção a favor da iii i, nte do que a solução equivalente de Kelsen, que postula uma Grundnorm, ou
obediência não categórica nem inquestionável; desse modo, a crítica moral, como a ma básica", como um construto (um "pressuposto" ou uma "hipótese") teórico.
iniqüidade ou a injustiça de uma lei, pode fornecer as bases para a desobediência d II i defende a posição aparentemente menos problemática de insistir na existência
uma lei específica (CD: cap. 9). Para Hart, uma regra é válida quando satisfaz aos cri- i~ 1 11 ai ou empírica da "regra de reconhecimento suprema", que ele pressupõe supe-
térios especificados pela regra de reconhecimento. Sem dúvida, o fato de admitir qu i dificuldade. Hart procura tornar factual ou empírica a pergunta "O que é a regra
uma regra é válida dentro de algum sistema não diz nada sobre a validade do siste- 1 i 'conhecimento?". Depois de submetê-la a um exame, porém, constatamos que é
ma em si. O problema da validação aparece na análise de Hart como uma questão nosa. Hart passa então a falar sobre a "aceitação" das autoridades, como se esta
intrínseca a um sistema. 1 1 icesse necessariamente as bases factuais por ele desejadas. De novo, podemos
Se a regra de reconhecimento determina que os juízes devem reconhecer as lei; 'stionar a metodologia é preciso ver com cautela o fato de que a regra que as
-
como direito, e a regra em questão está contida numa lei, então ela é válida. Na aná- as dizem aceitar e aplicar não é, necessariamente, aquilo que de fato explica sua
lise de Hart, a regra de reconhecimento é mais importante do que as outras regra 11 (luta (isto é, o que elas dizem aceitar pode explicar o que fazem, mas não nos dá
secundárias. E uma "regra essencial" que tem "supremacia" sobre as demais; além uma garantia). O ceticismo dos realistas jurídicos norte-americanos levou-os a
disso, é o processo fundador de um sistema jurídico; não existem outras regras qu uestionar a explicação dada pelos próprios juízes sobre sua conduta, e a sugerir que
determinem os critérios de reconhecimento`. ']es podem, ainda que inconscientemente, ser motivados por um conjunto comple-
o de valores e preconceitos. Não é preciso concordar com a análise do comporta-
tento feita pelos realistas jurídicos para concluir que é arriscado, de nossa parte,
A abertura fundamental da cadeia de validade de Hart :eitar o relato dos próprios juízes sobre qual norma básica aplicam como indício
guro e inequívoco da "prática social" que constitui a regra de reconhecimento su-
Hart afirma a existência de uma "cadeia de validade"; um regulamento, pot ema. A melhor ilustração prática dessas dificuldades se revela quando examina-
exemplo, será válido se estiver de acordo com uma ordem legal, que por sua vez ex- ii a atividade judicial da interpretação das leis na qual, ao afirmarem sua adesão
trai sua validade de uma lei. Podemos imaginar as regras jurídicas como instâncias regra básica de intenção, os juízes têm às vezes posto em prática o que podemos
formadoras de uma hierarquia. A questão crítica que tem preocupado todos os posi- Jcscrever melhor como o princípio da aplicação daquilo que, na opinião dos juízes,
tivistas, Hart inclusive, é o que acontece, seguindo nossa metáfora, no "topo" ou no Parlamento "deve" ter pretendido.
A regra de reconhecimento é um aspecto vital da obra de Hart, mas é também
locus em que qualquer idéia da existência de um sistema jurídico independente, se
33. A regra de reconhecimento "fornece critérios para a determinação da validade de outras regras; mas
é também diferente delas no sentido de que não existe regra alguma que forneça os critérios para a determi ragmenta. Hart deixa claro que "as bases de um sistema jurídico consistem (...).numa
nação de sua própria validade jurídica" (CD: 104). 1 egra de reconhecimento suprema que oferece critérios legítimos para a identifica-
446 Filosofia do direito
O ponto alto do positivismo jurídico 447
ção das regras válidas do sistema ( ... ).A questão de saber se uma regra de reconhe--- juo funcione, não precise de legitimação — o desempenho reduz a necessidade
cimento existe, e qual é seu conteúdo, ou seja, quais são os critérios de validade em 11 j'Jtimação.
qualquer sistema jurídico dado, é (...) uma questão de fato empírica, ainda que com ('orno Hart termina por afirmar,
piexa ( ... )" (CD: 245, nota 97).
O que é, porém, a regra de reconhecimento suprema? Hart oferece como exem- A verdade talvez seja que, quando os tribunais decidem questões não considera-
plo a fórmula simples "Tudo que for aprovado no Parlamento será lei", apresentando-a as anteriormente sobre as regras constitucionais mais fundamentais, eles passam a ter
como a expressão adequada da regra no que diz respeito à competência jurídica d autoridade de considerá-las aceitas depois que as questões foram colocadas, e depois
Parlamento; se aceita como critério supremo para a identificação do direito, trata- ue a decisão foi tomada. Tudo que se passa, aqui, é bem-sucedido (CD: 149).
se em geral de uma regra que serve para identificar "o direito", Contudo, pode Hart
simplesmente fazer referência ao "direito" quando se sabe que ele tentou, a duras
penas, reduzir o direito a diferentes regras? Ele parece estar invocando alguma pre- HART E O CONTEÚDO MÍNIMO DO DIREITO NATURAL
sença essencial - o ser do direito - que, como sua teoria tentou afirmar, não deve-
Em O conceito de direito, Hart sugeriu que existe um "núcleo de verdade inques-
ria fazer parte de nosso imaginário jurídico. Hart admite que, na verdade, isso não
identifica a verdadeira regra; ao contrário, chama nossa atenção para a prática de s nas doutrinas do direito natural. De novo, sua tática remonta a Hobbes e
ft afirma estar meramente usando a razão para identificar os tipos mínimos de re-
reconhecer uma lei depois da qual outro conjunto de práticas, aquelas da interpre-
s exigidas pelos elementos básicos da condição humana. Cinco "truísmos" sobre
tação das leis, identifica a regra aplicável. Isso apenas faz com que a questão volte a
humanidade permitem postular um "conteúdo mínimo" das regras sociais:
se colocar, dessa vez de forma mais específica: haverá uma maneira identificável de
interpretar as leis que nos oferecesse "critérios convalidados para a identificação 1 Vulnerabilidade humana
das regras válidas do sistema"? Hart rejeita essa pergunta por considerá-la "um mero
Igualdade aproximada
caso de incerteza ou textura em aberto de uma lei específica, sem colocar nenhuma Recursos limitados
questão fundamental" (CD: 144). 1 Altruísmo limitado
E interessante observar que Hart revela suas intenções em seu próprio prejuí- Entendimento limitado e a força de vontade
zo na citação abaixo (versões semelhantes são reproduzidas em outras partes do li-
vro), que pertence a uma narrativa em que os tribunais são exortados a julgar no nú- Vulnerabilidade humana. Por vulnerabilidade humana, Hart deseja chamar a aten-
cleo e nas adjacências da "regra" em que os tribunais conferem sentido à doutri-
ção para o fato de que, em face das circunstâncias naturais em que nos encon-
na inglesa da soberania parlamentar. Hart considera paradoxal, à primeira vista, esse tramos, vivemos em situação de extremo risco. Estamos em risco devido ao meio
processo em que "os tribunais terão feito determinar, a essa altura, a regra supre- ambiente, e também devido aos que nos cercam, que podem pretender nos pre-
ma por meio da qual se pode identificar as leis válidas"; contudo, judicar. Em termos gerais, não somos totalmente protegidos contra nosso meio
ambiente, tanto social quanto naturalmente. Precisamos nos proteger, e o siste-
( ... ) o paradoxo desaparece se nos lembrarmos de que, embora toda regra possa parecer
na jurídico é um dos mecanismos aos quais recorremos em busca de proteção.
duvidosa em alguns aspectos, é, de fato, urna condição necessária de um sistema jurídi-
co existente que nem toda regra suscite dúvidas em todos os seus aspectos. A possibi- Igualdade aproximada. Os seres humanos são aproximadamente iguais. Em outras
lidade de que os tribunais tenham autoridade, a qualquer momento, de decidir essa palavras, ainda que algumas pessoas sejam mais dotadas do que outras, ainda que
questões delimitadoras sobre os critérios de validade fundamentais, vai depender do fato haja, por assim dizer, um espectro de relações humanas, este é relativamente es-
de que, no momento em questão, a aplicação desses critérios a um vasto campo do di- treito e então, em termos gerais, estamos igual e mutuamente em risco. Se assim
reito, aí incluídas as regras que conferem tal autoridade, não levante dúvida alguma, aia não fosse, haveria uma série de grandes diferenças no modo como organizamos
da que seu objetivo e sua esfera de ação o façam (CD: 148-9).
nossas vidas. Teríamos de pensar em nós próprios de um modo diferente daque-
le como nos percebemos. Se houvesse diferenças muito mais fortes entre os se-
Assim, o sistema funciona na medida em que suas partes abertas a questiona- res humanos, se pessoas muito fortes fossem ainda mais fortes, e pessoas muito
mento a qualquer momento dado abranjam apenas uma pequena parte do todo. fracas ainda mais fracas, então poderíamos ter achado difícil justificar os tipos
O sistema jurídico pode, então, ser um conjunto de práticas, ideologias, rituais elementos de controle que têm sido usados na sociedade a fim de ap1ain
e mitos diversos. Suas bases implicam poder e rotina; é possível que, na medida sas diferenças. Ao fim e ao cabo, poderíamos achar difícil persuadir os que
O ponto alto do 'positivismo jurídico 449
448 Filosofia do direito
cessivamente fortes a aceitar as limitações que os sistemas jurídicos resolveriam ei mínimo de proteção de nossas necessidades físicas e psicológicas seria rara-
impor a suas aptidões... Não obstante, precisamos ter consciência do fato de qu e nte identificável como um sistema jurídico. Para Hart, o assunto parece ser uma
l i w~1 io de realidade prática de eficiência. Nenhuma das características externas da
elas podem ser inadequadas.
i;l'ncia de um sistema jurídico sobre o qual ele fala parece ser relevante à ope-
3. Recursos limitados. Não há recursos suficientes para todos. Esse é mais um pro nterna de um sistema jurídico. Para Hart, não se pode utilizar o fracasso sis-
biema de escassez absoluta e de distribuição; existe um número limitado de rc ihco de um determinado sistema jurídico em proteger uma pessoa (ou classe
cursos de um tipo particular, e competimos por eles; portanto, precisamos de me pessoas) pãrticularmente vulnerável, ou manter um determinado recurso escas-
canismos que assegurem que a concorrência não provoque reações que resultei como critério de aferição da legalidade de tal sistema. O míximo que se pode fa-
em caos social. Na verdade, Hart está chamando nossa atenção para o fato d é criticar esse sistema jurídico pela incapacidade de satisfazer aos padrões con-
que precisamos de algum mecanismo especificamente devido a um fato natura usuais necessários. O sistema jurídico que não consegue oferecer a mais básica
sobre o mundo natural: o fato de que não temos livre acesso a tudo de que n teção aos interesses humanos pode não ser um sistema muito bom e, portanto,
cessitamos porque os recursos são limitados. Segue-se daí que, em épocas e lu Te levar uma pessoa a acatá-lo ou rejeitá-lo, mas os graus de excelência ou imper-
gares nos quais determinados recursos não forem escassos, podemos esperEH iio de um sistema jurídico não podem, para Hart, ser relevantes para a questão
que uma análise diferente se aplique. málise da validade. Entendido no contexto das abordagens tradicionais do direi-
atura1, o conteúdo mínimo do direito natural de Hart é uma estrutura defensi-
4. Altruísmo limitado. Há, aqui, dois aspectos: (i) os seres humanos são, de fato, ai
Hart, de modo verdadeiramente liberal, não se sente capaz de dizer-nos qual é o
truístas. Em determinados lugares e ocasiões, eles tencionam agir mais no mb
pi 1 pósito da vida social; pode apenas reformular a injunção hobbesiana de evitar a
resse dos outros do que no de si próprios. Precisamos levar isso em conta em d
rie. Porém, perguntam críticos como Lon Fuiler, que tipo de conclusão é esse que
ferentes esquemas de administração, mas (ii) também ter em mente o fato de qu e
nsiste em dizer que todo esse discurso sobre o direito natural equivale à percep-
muito embora os seres humanos sejam altruístas, eles assim se comportam d
de que, se os seres humanos devem "sobreviver" (o que é apresentado como o
modo muito irregular. Não podemos contar com pessoas que agem o tempo to(]( ,
ictivo fundamental), então o direito deve oferecer uma proteção mínima às pes-
em função do bem-estar de seu semelhante. Mais importante ainda, não pod 8; propriedade e compromissos? Uma crítica que se impõe de imediato, aqui, é
mos nos esquecer de que o motivo de elas agirem de modo altruísta encontrn
le que esses truísmos nada mais são do que aquilo que é evidente em certas ima-
se muitas vezes no fato de esperarem que, se agirem bem com os outros, estc
s do homem não há, neste caso, nenhum "direito superior". Não é isso, por cer-
-
irão retribuir com a mesma moeda. Assim, embora pudéssemos ter alguma ex
o que Hart estava tentando estabelecer; ele admite, em seguida, que mesmo esse
pectativa de que os seres humanos se comportem bem entre si, precisamos levm 1)1 teúdo mínimo não poderá assegurar a justiça em comunidade alguma. Não exis-
em consideração a aplicação irregular desse truísmo.
inda um método infalível de se identificar "casos semelhantes", e a igualdade
5. Limite de entendimento eforça de vontade. Isso significa, na verdade, que nem sem ve ser sempre um juízo de valor; desse modo, mesmo a imparcialidade é "compa-
pre sabemos o que é bom para nós. Em outras palavras, nem sempre sabemos vi com uma grande iniqüidade".
que devemos fazer em atendimento aos nossos próprios interesses. Além do ma í, ,, Ao elaborar seu argumento de um "conteúdo mínimo do direito natural" Hart
mesmo quando compreendemos nossos melhores interesses, podemos não e ue uma tática comum para a criação das teorias modernas: especificamente,
tar em condições de fazer o que é preciso. pojar a humanidade de todo aparato "particularista" e reduzi-la à pretensa es-
ucia humana básica o ser independente, autônomo e, portanto, fundamental-
-
Em certo nível, esses cinco fatores são simplesmente modos de se levar vanfu tte incapaz de interação social. Privado de todas as características de contexto his-
gem sobre a exigência tradicional, por parte do jusnaturalismo tradicional, de ui 11 CO, ou de inserção concreta, isso nos situa, porém nos confunde com essa pura
critério moral para o poder do direito" , e de se transformar isso em nosso reconhed ncia; espera-se que o que é comum ao homem enquanto tal, comum a toda hu-
mento de problemas que nos dão uma necessidade básica de certos tipos de regra 1 'tidade, torne-se visível. A partir de Hobbes e Locke, as instituições sociais emer-
e sistemas normativos legais e/ou morais. Um sistema jurídico que não ofereça u ii pari preservar, proteger, conservar e defender os interesses pessoais básicos
indivíduos. Enquanto extensão do eu, o "outro" é relegado ao não-dito; o pró-
uno é apresentado como um estranho, e o amigo apenas como uma ameaça. Os
34. Como Hart resume o fundamento tradicional do direito naturál: "Que existem certos princípios linentos essenciais são a universalidade, as implicações intencionais e os muni
conduta humana à espera de serem descobertos pela razão humana, aos, quais o direito criado pelo hom em 1i ]os substantivos.
deve ajustar-se se pretende ser válido" (CD: 186).
Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 451
450
1 rnbigüidade de se atribuir valor moral a esse direito válido: "aquela idéia de que
Primeiro, Hart oferece a universalidade:
e alguma coisa fora do sistema oficial em referência à qual, em última instân-
A reflexão sobre algumas generalizações muito óbvias - na verdade, truísmos —I
o indivíduo deve resolver os problemas de obediência ( ... )".
respeito da natureza humana e do mundo em que vivem os homens mostra que, mi Qual é, porém, a natureza desse "outro", desse ponto de referência ou dessa
medida em que estas se mantêm válidas, há certas regras de conduta que qualquer or, rtação à moral? As tradições do direito natural estão divididas entre transcendên-
ganização social deve observar se pretende ser viável ( ... ); esses princípios de conduta n racionalização; entre o mistério e a proposta de uma narrativa em que perce-
universalmente reconhecidos, que têm base nas verdades elementares relativas aos se- limos - ao menos em termos gerais - as razões pelas quais devemos ser morais.
res humanos, seu meio ambiente natural e seus objetivos, podem ser tidos como o con- 1 tudo, reduzir a moralidade a uma questão de regras racionais, cuja obediência
teúdo mínimo do direito natural ( ... ) (CD: 193). riposta pela necessidade humana - pela sobrevivência - é algo que ignora ova-
II existencial que se encontra na base da exigência moral.
Em segundo lugar, a estrutura de seus argumentos é de natureza intencional Em última análise, portanto, a tese de Hart do conteúdo mínimo do direito na-
os truísmos "oferecem uma razão pela qual, dada a sobrevivência como um objeti i1 só pode funcionar como uma base narrativa para a ordem jurídica, não para a
vo, o direito e a moral devem incluir um conteúdo específico". A criação das regra' li alidade. A base da moralidade é alguma outra coisa; não é a autoconservação
mínimas é, portanto, uma criação racional dotada de intenção, e esta é, no çaso, iw - ; entido da mera segurança pessoal; porque ser moral, como já demonstrou An-
autoconservação - a sobrevivência do individual e do coletivo. Assim, Hart retorn lI, cm, pode significar a opção pela morte. Como afirmou Bartoszewski sobre a res-
à base em que Hobbes oferece o liberalismo; novamente, porém,flart se empenhI sabilidade moral daqueles que sobreviveram aos horrores do Holocausto: "Só
em distinguir sua abordagem daquela da tradição do comando. ue morreram ajudando podem dizer que fizeram o suficiente" (citado em Bau-
Para reforçar a regra, as sanções são "necessárias, não como o motivo normal pai 11111, 1993: 80). Nenhuma lei pode esgotar o dever moral, pois a moralidade não
a obediência, mas como uma garantia de que os que obedeceriam voluntariamei de ser uma questão de convenção. Ou pode? Reduzir a moralidade a conven~
te não serão sacrificados aos que não o fariam. Obedecer sem isso seria o mesni M1,11 pode parecer reducionista a alguns, enquanto para outros se trata apenas de
que arriscar-se a ir para o paredão". As sanções protegem a operação cotidiana da O! realista. O que está em jogo é a transcendência; a exigência de pensar em uma es-
dem jurídica, ou aquilo que Hart chama de "sistema de indulgências mútuas", SI iria da existência humana que se recuse a ser apreendida em termos friamente
mente nos extremos; no nível da sucessão dos dias, é como se tivéssemos uma coa níficos. O medo também faz parte disso porque, se a imoralidade for meramen-
preensão operacional da racionalidade da observação da regra. 11 nvencional, será também relativa, e pareceremos ter perdido nossas esperanças
A moralidade, porém, distingue-se do que Hart chama de "moral". Trata-se mii ii iangularidade do ser humano. Sem dúvida, é também mais fácil - se a moralida-
exatamente daquilo que é deixado de lado e não poderá nunca ser apreendido pci 1 II or convencional, então a socialização substituirá a responsabilidade moral pela
um código de ética. Como diz Bauman (1993: 34): IIi
igação de obedecer às normas procedimentais. A sociedade complexa é impos-
sem instituições uniformes e profundas de socialização; contudo, o excesso de
Somente as regras podem ser universais. Podem-se legislar para vincular com 1 1 aialização voltado para a obediência pode produzir alguns dos grandes excessos
gras, deveres universais, mas a responsabilidade moral existe exclusivamente ao se in li 1 nodernidade, os crimes de obediência. A criação de um povo moral é um proces-
rir o indivíduo e deixar-se levar individualmente. ( ... ) Portanto, a moralidade do sujciH 1 ambíguo, pois a estrutura é sustentada pela socialização, a estrutura social são os
moral não ( ... ) tem a natureza de uma regra. Pode-se dizer que a moral é o que resisil
codificação, à socialização e à universalização. ii is reiterados das pessoas; sem estrutura social não pode haver nem vida colidia-
ii nem história social. A socialização, porém, também pode representar o despoja-
IR to do eu, do potencial para a individualidade moral. A humanidade requer tan-
Não é a ambigüidade que incomoda em Hart; é, na verdade, o fosso entre o
III a socialização quanto a sociabilidade contra-estrutural - ou o distanciamento
nimo que ele explicita e o excepcional que ele exige (por exemplo, no caso da reii
4) 11 co. A sociedade humana requer ambas as coisas, mas não se trata de uma com-
tência às leis nazistas). Uma vez mais, o discurso das regras de Hart implica padri -
a i ação simples. A socialização pode desarmar a moralidade crítica, enquanto a so-
de convenção, e não uma ordem social habitada por pessoas dotadas de convicçõ -
O conteúdo mínimo do direito natural é a imagem das normas, convenções e rer,!. abllidade contra-estrutural pode sobrecarregar o sujeito com a dúvida moral e a
a cssao existencial.
sociais que permitem a segurança - todos devem fazer seu mínimo. Contudo, 11,111
chama a atenção para algo mais; suas seis categorias dos diferentes domínios dc) (11
reito e da moralidade servem para distinguir a tarefa de reconhecimento da valici
O ponto alto do positivismo jurídico 453
452 Filosofia do direito
Os casos úteis e necessários são proporcionalmente muito inferiores, em número,
HART E A TEORIA DO RACIOCÍNIO JURÍDICO: UM MEIO-TERMO diante de todos os que foram relatados. A grande maioria é inútil, mais do que inútil,
ENtRE FORMALISMO E CETICISMO ACERCA DAS REGRAS? a qualquer objetivo de estudo sistemático (Langdell, 1871, prefácio a Cases on Contra cts,
citado em Gilmore, 1977:47),
O formalismo e o ceticismo diante das regras são o Cila e Caribde da teoria juríl
ca; são grandes exageros, salutares quando se corrigem mutuamente, e a verdade encoi
tra-se entre eles (CD: 144). A ordemjurídica consistia em um certo número de "doutrinas jurídicas funda-
o wi e o jurista deveria ordenar e enxugar as variações "para que a doutrina pu-
No capítulo 9 de O conceito de direito, Hart tenta fazer uma análise do raciou ser classificada e organizada de tal modo que a cada uma se atribuísse o de-
nio jurídico a meio caminho entre as tradições do formalismo jurídico e a corrente i lugar". O pressuposto dessa imagem da ordem jurídica era o de que existia um
realismo jurídico que postulava o ceticismo diante das regras. inverso racional de doutrinas jurídicas que se podia revelar, e que reduzia a aparen-
Em primeiro lugar, qual é a tradição do formalismo? Austin legou à posterid iversidade (empírica) do direito a uma unidade subjacente. Na análise um tanto
de a exigência de que o estudo e a compreensão do direito se convertessem nun ii II ,mática de Gilmore (1977), Holmes fomentou esse processo ao propor que
ciência. Para ele, havia duas correntes: (i) a análise lógica dos conceitos jurídicos e ii
sua inter-relação; (ii) a condução do direito por meio da razão legislativa - especi ( ... ) era possível, num discurso intelectual de alto nível, reduzir [diferentes princípios de
ficamente, o deixar-se guiar pelo princípio de utilidade. Formalismo é o nome dado qualquer campo específico do direito] a urna série única e filosoficamente contínua, e
a uma tendência (uma tradição) que se apoderou da idéia do direito como ciênciu, criar uma teoria unitária que pudesse explicar todos os exemplos imagináveis e, desse
modo, fazer com que se tornasse desnecessário examinar em detalhes o que sé estava
mas subtraiu da imagem a preocupação com a razão legislativa. Em vez disso, o d passando concretamente no mundo real (Gilmore, 1977: 56).
reito era representado como algo que se desenvolvia a si próprio. O gradualismo ir ,,
rente da metafísica da tradição do common law - as bases que subjazem ao imagini
Essa tradição do direito como ciência tornou-se a corrente ideológica dominan-
rio humiano - pareciam postular um domínio do direito que se desenvolvia a
1 ia teoria jurídica norte-americana. A partir da década de 1920, foi atacada pelos
próprio e era relativamente autônomo; o raciocínio e a exposição jurídicos podia] 11
n'ilistas jurídicos, que desejavam introduzir o elemento humano na evolução jurídi-
ser abrangidos por cânones particulares à esfera do empenho, e tal empenho cons
1 m vez de enfatizar a coerência doutrinária e concentrar-se nas regras menciona-
tia em desenvolver o direito de maneira científica, de acordo com sua racionalidadl
em decisões como material de análise, os realistas afirmavam que a verdade das
inerente. Nos Estados Unidos, a pessoa mais comumente associada ao desenvohi
li ,cisões jurídicas estava nas filosofias sociais, nas motivações e na atitude mental dos
mento do formalismo jurídico foi Christopher Columbus Langdell - a partir de 18711
1H iïvs. Estes, parecia, não podiam se mostrar cegos à realidade social do direito - mês-
o primeiro reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Langdell ad
rio quando, em seus julgamentos, não se referiam especificamente a sua considera-
ditava profundamente que o direito era uma ciência, e que
i dos efeitos sociais de suas decisões.
( ... ) todos os materiais disponíveis dessa ciência estão impressos em livros [relatos tIo Para Hart, a questão é relativamente simples: seja qual for a extensão do regime
casos, leis, comentários sobre jurisprudência...]. Para nós, a biblioteca é ( ... ) tudo qi 1 regras, ou de um corpo de regras sociais, as regras criadas pela jurisprudência, as
os laboratórios das universidades são para os químicos e físicos, tudo que o mus o 1k ou outros mecanismos reguladores criados sem experiência normativa anterior,
de história natural é para os zoólogos, tudo que o jardim botânico é para os botând nii estão jamais totalmente livres e imunes à indeterminação e às interpretações
(Langdell, 1886, discurso de saudação à Faculdade de Direito de Harvard, citado ir roflitantes. E impossível, para o direito, deixar de ter uma textura até certo ponto
Gilmore, 1977:42). iL'rta36. O uso específico da textura aberta, por Hart, enfatiza nossa "relativa igno-
incia dos fatos" e a "relativa indeterminação dos objetivos":
O objetivo da ciência jurídica era o de criar um perfeito corpo unitário de regi
que pudessem abranger todas as situações. A metodologia deveria aproveitar, de 11
tre o grande número de casos, aqueles que "aplicassem bem o direito", e descarL com o material os resultados de que dispõe, e procura a verdade; essas afirmações científicas, con-
'ão serão a história definitiva, uma vez que sempre será possível introduzir aperfeiçoamentos; assim, as
os que assim não o fizessem`. iio científicas devem estar abertas à verificação, às tentativas de provar sua fragilidade, à refutação.
36. Hart adapta a noção de textura aberta desenvolvida por FriedrichWaismann (1951). Segundo Weis-
FIO, a textura aberta é a possibilidade de que até mesmo o termo menos vago e mais preciso acabe por
35. Nota: o modelo de verdade usado no século XIX para a ciência era o da verificação - acreditavi
orar-se vago em decorrência de nosso conhecimento imperfeito do mundo e de nossa incapaci&,le lo
que a verdade científica era definitiva, absoluta, e que a tarefa humana consistia em descobri-Ia e enuncii
1 evrr o futuro. Portanto, a despeito de quão preciso o termo pareça ser quando empregado, exkt'
Popper (1959, 1969) inverteu drasticamente esse critério de verificação com seus escritos a partir de 1934, o
iiIdrrde de ocorrências não previstas que o tomam vago quando se pergunta se ele cobre todo o
quais argumentava que o critério deveria ser de refutação. Depois de Popper, a ciência atua fazendo o mel!
Filosofia do direito O ponto alto do positivismo jurídico 455
Se o mundo em que vivemos tivesse apenas um número finito de característici i esses termos são empregados (ponto de vista muito aceito atualmente; ver
ulus, juntamente com todos seus modos possíveis de combinação, se dessem a co lotes Boyle, 1985: 70843; Drucilia Corneli, 1988: 1.137-8; Robert Moles, 1987:
flIli'cCr a nós, poderíamos prever toda e qualquer possibilidade. Poderíamos criar regra
U(,-206). O exemplo dado por Fuiler, o de uma estátua que incluía um veículo cuja
cuja aplicação a casos específicos não exigiria nunca uma nova escolha. Tudo seria pas lusão do parque parece incompatível com qualquer objetivo sensato por trás da
sível de conhecimento, e para qualquer coisa - uma vez tudo seria conhecido - algo p
«pra, não é particularmente bom - uma estátua dificilmente será um veículo. A
deria ser feito e antecipadamente especificado por uma regra. Este seria um mun
apropriado à teoria jurídica "mecanicista" (CD: 125). i'stão pode não ser resolvida mesmo se admitirmos a necessidade de interpretar
ermos de uma lei à luz do objetivo dessa mesma lei, uma vez que é possível ha-
Para Hart, ao contrário, a textura aberta das leis significa que a regulamentaçi (i diferentes estratos de objetivos.
A terminologia e o tom de Hart são reconfortantes; o sistema funciona, no
das áreas de conduta "deve ficar a cargo de tribunais e autoridades, aos quais com
pete chegar a um equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre os interesses conflitantes e do, com problemas mínimos. Inversamente, para ele, o cético é um racionalista
que variam de caso para caso" (CD: 132). Isso, porém, não causa muita dificulad ti estrado que, ao descobrir "que as regras não são tudo o que seriam no paraíso do
Como diz Hart: ernalista, passa para o extremo oposto, argumentando que as regras "não ofere-
'o nada que circunscreva a esfera da textura aberta".
No limite ( ... ) das coisas muito fundamentais, devemos dar as boas-vindas ao L, preciso haver moderação". O fato de que as regras têm "exceções que não po-
tico diante de regras, desde que ele não se esqueça de que é no limite que assim o aco ti ser exaustivamente formuladas" não significa que elas não tenham capacidade
m
lhemos; e não devemos ser cegos ao fato de que o que torna possível ( ... ) os grandes puma de ser obrigatórias do ponto de vista legal ou moral. A ênfase excessiva na
avanços, pelos tribunais, das regras mais fundamentais, é em grande parte o prestígio ob
11
penumbra" foi, em si mesma, uma importante fonte de "confusão na tradição nor-
tido por eles devido a suas operações, inquestionavelmente regidas por regras, em vr li americana" (Hart, 1958:593, 615).
tas e cruciais esferas do direito (CD: 150). Contudo, o discurso da moderação e o disfarce da coerção não põem fim ao pro-
1 Perna do direito. Apesar de toda sua clareza, Hart constantemente retoma dilemas
Uma dificuldade é inerente à linguagem: Hart insiste em que, embora a maio Li aspectos torturantes da teoria clássica, submetendo-os ao questionamento da
ria dos termos tenha um significado central ou fixo que confere clareza e facilidad nuulise sociológica. Aqui, no coração de sua análise - onde há um vazio ou onde as
a seu uso geral, eles têm uma penumbra, ou uma região obscura, na qual em muitos egras se esgotam -, há um recurso ao não-direito. A própria clareza da separação
casos é impossível dizer, com certeza, se um termo é ou não aplicável. Na periferia positivista entre direito e moral implica que, sem regras, predomina o não-direito.
- mas somente ali -, exige-se o poder discricionário. Seu mais famoso exemplo era: Nesse vazio, o que assume o comando? Hart deu fim ao soberano de Hobbes e de
"Proibida a entrada de veículos no parque" (1958: 607; CD: 123-7). Austin, bem como a sua razão legislativa. O poder discricionário destrói aos poucos
Ao formular o problema, porém, Hart parece reduzi-lo a uma mera questão de : ideologia do estado de direito e permite que a política entre em cena, mas desta vez
linguagem: se trata de uma política para além dos limites do pensamento jurídico. Portanto, a
obra clássica da filosofia jurídica moderna aponta, inequivocamente, para além da
Há um limite inerente à natureza da linguagem, à orientação que a linguagem ge- Íitosofia jurídica, para sua "verdade".
ral pode oferecer (CD: 123).
Kelsen sugere que a base de nossas lutas para alcançar uma sociedade justa é
csejo de ser feliz. A sociedade justa seria aquela em que os seres humanos se-
1)11 felizes'.
A fórmula é enganadoramente simples; contudo, coloca novas questões que
1 caçam transformar o problema num emaranhado de diferentes perspectivas. Dá
im a outra questão, a saber, "O que é felicidade?" (Kelsen, 1957: 2).
Kelsen pressupõe um conceito qualitativo de felicidade social e humana; uma
i, in social justa deve implicar "felicidade num sentido objetivo-coletivo, ou seja,
lelicidade devemos entender a satisfação de certas necessidades tidas ( ... ) como
csídades dignas de ser satisfeitas" (ibid.: 3). A justiça ao mesmo tempo estrutura
medeia uma forma de existência social em que o desejo individual de felicidade deve
1 i ontar-se com sua inevitável existência social.
Como podemos classificar os interesses humanos? Os filósofos têm não apenas
1 vi rgido sobre a essência da natureza humana, como também discordado em sua
1.. A filosofia do direito não pode deixar de levar em conta a justiça, pois a justiça é - em termos ideais
rça maior do direito. Contudo, e se não tivermos como conhecer a justiça? A justiça parece ser uma
'ri Sobrecarregada. As vezes é reduzida a uma questão de técnica: colocam-na, assim, como o problema de
1 ri 1) que vai orientar as técnicas de construção da ordem social. Em outros momentos, surge como um
—Herna de legitimidade ou, dito de outra forma, como uma resposta à questão de saber o que poderá for-
.,, , i Lima estrutura racional para se julgar a adequação da regulamentação das relações humanas.
458 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 459
interpretação da virtude e do vício, das fontes da moralidade e dos respectivos papé !\ resposta é relativa; em determinadas condições, uma solução é justa; em outras é
da razão e da emoção. Desde os tempos em que Aristóteles tentava estabelecer a dis neciso buscar uma outra.
tinção entre a vida moral e aquela do sucesso nas técnicas de produção, temos teste (2)A idéia de viver num estado de amor com Deus forneceu uma segunda con-
munhado - ainda que em inúmeras variações - a recusa em reduzir a questão da vidi pção de justiça e felicidade verdadeiras. Esta apela a nosso desejo de transcendên-
venturosa a questões de utilidade, conveniência, instrumentalismo ou interesse pes- i, a nossa vontade de fugir à vilania e ao sofrimento de nossa existência empírica,
soal calculista. Essa preocupação - mais existencial - procura a justiça como meio dc nossa solidão. Essa resposta, porém, fundamenta-se na fé:
lidar com o medo e a esperança, o desejo e a aversão, a transcendência e a lealdade;
acima de tudo, procura a justiça afim de poder viver da maneira apropriada. Porém, re A sabedoria de Deus - que implica a sua justiça - é um mistério; e a fé, nada além
petindo o que já dissemos, isso não responde à nossa pergunta, pois como podemo; da fé, permite que possamos desfrutar dessa justiça (ibid.: 80).
nós, modernos - nós, criaturas de múltiplas perspectivas e transformações radicais -,
admitir que qualquer forma específica de estruturação social é a maneira apropriadí A cristandade não oferece resposta à busca moderna de justiça, uma vez que não
de organizar as relações sociais? hi nenhum critério de vida neste mundo que se possa manter sem o recurso a ima-
A idéia de alcançar a sociedade justa é profundamente problemática para a mo- ris do outro reino. Tampouco a busca do amor, conforme o indica o ensinamento
dernidade. Por um lado, hoje nos damos conta de que nossa existência social é umn Jesus, pode resolver o problema, uma vez que a promessa do amor, assim como a
criação humana e, por decorrência, que devemos ser capazes de criar uma estrutu omessa do marxismo, é a de que podemos alcançar um estado que nos colocará
ra social sensível a nossos desejos e necessidades. Por outro lado, enquanto moder, m além da justiça, para além de qualquer ideal racional.
nos conscientes da inevitabilidade da contingência, percebemos que qualquer forni
particular de estrutura social poderia ter sido uma outra coisa, e pode transforma; O ensinamento de Jesus não é a solução do problema de justiça enquanto proble-
se em algo mais. ma de uma técnica social para a regulamentação das relações humanas; trata-se, antes,
Em termos nietzschianos, uma concepção estabelecida de justiça é difícil para da dissolução do problema, uma vez que implica o requisito de abandonar o desejo de
homem moderno porque ele "sabe" demais e - em decorrência disso -, em sua bus- justiça da maneira como o homem o concebe (ibid.: 45).
ca da verdade, se vê às voltas com o pluralismo e o perspectivismo ou, numa só pa
lavra, com o pragmatismo. Vivemos numa época histórica que conhece a inevitabi (3)Uma terceira concepção é alcançável, porém pouco inspiradora; trata-se sim-
lidade da mudança sobre a estabilidade. Sejam quais forem suas teorias de justiça, 1lesmente de viver de acordo com as leis da sociedade. Kelsen sugere que o prin-
modernidade tardia está condenada a ter uma justiça dinâmica, e não estática. pio "comporta-te em conformidade com as normas gerais da ordem social", e o
incípio semelhante ao imperativo categórico kantiano (Age sempre segundo uma
óxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que ela possa tornar-se uma lei uni~
KELSEN E A DEFESA DA JUSTIÇA DINÂMICA EM OPOSIÇÃO n(TsaI) são, em última análise, fórmulas vazias. Eles não têm conteúdo social e, por-
ÀS TRADIÇÕES DE JUSTIÇA ESTÁTICA 'ito, não oferecem nenhuma resposta à questão da natureza dos princípios que de-
Jaríamos que fossem obrigatórios a toda a humanidade. Contudo, é exatamente
Kelsen (1957: cap. 1) percebeu que o compromisso com a ciência significava qu se vazio que os torna ideologicamente úteis, e Kelsen sugere que freqüentemente
tínhamos de rejeitar as concepções estáticas de justiça que até então haviam vigorado. ainda que de forma equivocadá - serão aceitos como respostas satisfatórias ao
(1) A primeira delas foi o entendimento de que a justiça consistia em viver do oblema da justiça.
acordo com a verdadeira estrutura do modo de ser natural do mundo. Com o adven Em última análise, sugere Kelsen, jamais chegaremos a uma posição consensual
to da modernidade, percebemos que não havia um único modo de vida. Que foi bre um conceito de justiça, e menos ainda sobre a estrutura da sociedade justa. Em
feito da idéia da sociedade perfeitamente justa? Kelsen foi contundente: 1 ore Theory ofLaw (capítulo 12 deste livro), Kelsen desenvolve uma ciência formal-
cional do direito em sentido neoweberiano; todavia, não se pode lidar desse modo
A justiça absoluta é um ideal irracional ou, o que vem a dar no mesmo, uma iii'
são - uma das eternas ilusões da humanidade.
rn o conceito de justiça. Não pode haver uma ciência formal da justiça, uma voz
'te, se uma teoria da justiça fosse logicamente criada, teria por base premissas e' io
Não há consenso natural quanto aos bens da vida humana: ficamos à mercê d nais. Não é possível identificar, de maneira científica, os valores supremos ue
interesses humanos e, portanto, de conflitos de interesses. A solução desses conflitos
deve envolver ou a satisfação de um à custa de outro, ou a solução conciliatória. N 2 Kelsen afirma que o conteúdo da justiça não é susceptível de determinação racional. Cor
é possível provar que somente uma ou outra solução da ordenação humana é justa. apresenta o seguinte cenário. Certas convicções éticas sustentam que a vida humana é o va api
460 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 461
uma ordem justa da vida social deveria tentar promover (1960: 5-6). Uma pessoa pod (1,) de propósito consciente. Fuller acusava o positivismo jurídico de vários defei-
ver o avanço da autonomia individual como o objetivo mais importante da ordena e; mais especificamente, seus adeptos
ção jurídica; outra pode argumentar que os legisladores devem promover o objetivo
da igualdade; outra, ainda, pode afirmar que a segurança é o interesse fundamer não conseguiam explicar o modo como estruturavam questões importantes e não
tal e mostrar-se disposta a sacrificar a igualdade e a liberdade pela realização plen refletiam sobre suas próprias posições',-
osições3;
desse valor.
Verno-nos, portanto, diante de um pluralismo insolúvel de ideologias. Se a es- li)
li) tentavam freqüentemente dar respostas jurídicas concisas a questões que eram,
trutura do legalismo incorporar um conjunto de ideologias dominantes, vai parec:i essencialmente, questões de fato sociológicas',
injusto quando visto a partir de outra perspectiva. Para ser justa, a estrutura do lega «ii) entendiam, equivocadamente, que o estudo do direito implicava, em primeiro
lismo precisa acomodar o perspectivismo e admitir que a existência social moderni lugar, a descrição de um "fato manifesto a ser estudado pelo que é e faz, e não
implica a convivência de diferentes posições emotivas e narrativas. A solução dadi pelo que está tentando fazer ou tornar-se"; em segundo lugar, perdiam-se em
por Kelsen a esse dilema consiste em afirmar que o legalismo é uma técnica socii! evasivas conceituais, cada vez mais distantes da realidade social, ou colocavam
que precisamos compreender e despojar de seu misticismo. Se o mundo é incognos
como enfoque principal um método de esclarecimento da fala e da escrita (espe-
cível - e assim o é em última instância -, os métodos através dos quais construím(
cificamente, a análise lingüística do modo como a temos, por exemplo, em 77w
pragmaticamente nossa existência social não devem sê-lo. Porém, enquanto Kelsi Concept of Law, de H. L. A. Hart) que "devia ser visto [apenas] como um comple-
compartilhava o pessimismo de Weber quanto à defesa racional de questões subs
inento útil do pensamento filosófico"; e, acima de tudo,
tantivas, outros buscaram casar o direito com uma concepção relativamente dinâ
mica de justiça. (e1) recusavam-se a atribuir ao direito qualquer objetivo, por mais modesto e restri-
to. Por estarem exclusivamente preocupados em descrever o direito como este era,
acreditavam que nada podiam dizer, em termos científicos, sobre como deveria
II. LON FULLER (1902-1978) E A IDÉIA DE UMA ser o direito'.
JUSTA METODOLOGIA DO LEGALISMO
O direito é um empreendimento que tem propósito consciente e depende 3. Em seu pós-escrito (1969: 242), Fuller afirma que a filosofia da ciência passara por. unia reórientação
para seu sucesso, da energia, intuição, inteligência e consciência daqueles que o con eu da por uma mudança de. interesse que a afastou da conceitualização e da análise lógica da verificação
wiiiiii ca e a aproximou do estudo dos processos reais que levam às descobertas científicas. Com o tempo,
duzem, e condenado, devido a essa dependência, a estar sempre um pouco aquém i,tivm., os filósofos do direito deixem de se ocupar da criação de "modelos conceitueis" que representem os
da plena concretização de seus objetivos (Lon Fuller, 1969: 145). te nos legais, desistam de seus intermináveis debates sobre as definições e se voltem, em vez disso,
uma análise dos processos sociais que constituem a realidade do direito".
1 Como Fuller comentou (1969: 141) a propósito da discussão de Hart sobre a regra de reconhecimen-
FULLER E A TENTATIVA DE FAZER UMA EXPOSIÇÃO o O conceito de direito, "[Hart] está o tempo todo tentando, com a ajuda dessa regra, dar respostas jurí-
FINALÍSTICA DA LEGALIDADE Paras a questões que são, essencialmente, questões de fato sociológicas".
5, Em me Law in Quest ofltself(1940: 5), Fuller define o positivismo jurídico Como uma concepção ex-
e mente limitada do legalismo: "Em geral se verá que sua base não declarada repousa sobre a convicção
Escrevendo entre 1940 (com a publicação de The Law in Quest ofltseij) e 198 te embora se possa descrever de modo significativo o direito que é, nada que transcenda a predileção pes-
ano da publicação póstuma de Die Principies of Social Order, Lon Fuller criou uma foi pt.tde ser dito sobre o direito que deveria ser." Em parte, Fuller exagera na descrição do caso. Como vimos,
ma secular de direito natural que definia o direito como uma atividade humana do os primeiros positivistas Bentham e Austin, o direito devia ser um instrumento de governo racional. To-
() positivismo jurídico vê o próprio direito como um recipiente vazio que é provido - pela política, pela
iliclade - de um conteúdo substantivo conquanto não tenha, em sua forma pura, nenhuma substância
segundo tal concepção, portanto, é proibido matar um ser humano inclusive no contexto da guerra, ou co a ou moral necessária. Fuller afirmava que a teoria de Kelsen apresentava o direito como algo "profun-
medida para se reparar uma grave agressão. Há, porém, uma concepção oposta que afirma que o valor te11 1 e tisdiferente à ética", e 'o cientista jurídico como alguém proibido de discutir o conteúdo do direito
premo é o interesse e a honra de uma nação, e que todos são obrigados a sacrificar sua própria vida e mais IS 91). Para Fuller, o direito é uma atividade social moral. Ele tenta redefinir as verdadeiras origens do po-
outros seres humanos em tempo de guerra; essa concepção também justifica, em nome do interesse colei sino jurídico; assim, Hobbes usou certos princípios normativos do "direito natural" e especificou ti
vo, que se aplique a pena de morte como sanção a certos tipos de conduta criminosa. Para Kelsen, é Impir, Se de um mínimo de paz e ordem como o objetivo fundamental da ordem jurídica. Fuller 11 i 11. iv.
sível decidir esse conflito - o da justiça de se matar outros seres humanos - de maneira científica. Em últii i ir adição do positivismo jurídico terminou por esquecer a justificação finalística dó direito ir' ç 'ii»
análise, o que vai levar a uma decisão são nossos sentimentos, nossas emoções e nossa vontade. .ttiit civil de Hobbes.
462 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 463
Para Fuiler, o direito é um método ético de se criar e assegurar uma forma para sal: "Podemos saber o que é claramente injusto mesmo que não tenhamos con-
as relações sociais. As regras jurídicas são expressivas: cada regra contém um obje- lições de declarar, de modo cabal, como seria a justiça perfeita" (ibid.: 12).
tivo voltado para a concretização de algum valor da ordem jurídica, e desse modo Não há, porém, respostas simples. A excelência é instrumental, normativa ou ex-
uma regra é "ao mesmo tempo um fato e um critério para a avaliação dos fatos" ii essiva? Fulier parece dizer que pode ser as três coisas, ainda que com diferentes
(1954: 470). Poderá Fulier propor uma concepção do objetivo geral da vida social? aus de intensidade. Além do mais, uma parte da luta pela excelência consiste em
Como liberal, ele não pode buscar, no passado, ideologias de direito natural que ofe- iperar a alienação, fazer de nossas práticas uma reflexão expressiva sobre nossa
reçam um télos estável à vida humana segundo a tradição platônica ou aristotélica; imanidade. Assim com o progresso social, assim também com a legalidade: Fulier
como se poderá, então, oferecer um critério que nos guie na criação de nossa vida so- ii nceitua uma "versão processual do direito natural" que chama de "moralidade in-
cial? Em resposta, Fuiler adota uma concepção de potencialidade dinâmica enquan- Irna do direito", ou uma teoria da Eunômia (Fuller, 1954: 477-8, já havia definido
to transpõe a idéia de objetivo para um alto nível de generalidade. Em The Morality se termo como "a teoria ou o estudo da ordem e das disposições exeqüíveis"). Para
ofLaw (1969), a distinção crucial se dá entre as moralidades do dever e da aspiração. mpreender a legalidade, precisamos "discernir e articular as leis naturais de um tipo
A moralidade da aspiração, ou "a moralidade do bem-viver, da excelência, da mais pecífico de realização humana (...),'a operação de submeter a conduta humana ao
plena realização das potencialidades humanas", fala a uma sociedade em que os governo das regras". O direito natural tradicional não pode ser aceito pelos moder-
seres humanos lutam por atuar da melhor maneira possível. Todavia, enquanto a is )S, pois em vez de pensar em termos de fins ou télos fundamentais para a vida lu-
moralidade da aspiração nos alerta para as possibilidades de realização humana, sana (que foi concebida e então imposta através da proposta de uma organização
a moralidade do dever nos guia no que temos de mais básico: cial que seria criada e mantida pelo direito), a teoria jurídica/eunômia deveria exa-
i nar e determinar um entendimento dos meios aos quais a ordem jurídica deve re-
Estipula as regras básicas sem as quais uma sociedade organizada é impossível, ou rrer para permitir a ocorrência de um certo tipo de florescimento humano'. Como
sem as quais uma sociedade organizada e voltada para certos fins específicos deve errs )ssa preocupação se volta para o funcionamento e a estrutura internos do processo
o alvo ( ... ). Não condena os homens por perderem as oportunidades da mais plena rer 1 gal, as leis naturais da legalidade não são as velhas leis naturais de Deus e do ho-
lização de seu potencial. Em vez disso, condena-os por não respeitarem as exigência em - na verdade, assemelham-se mais às "leis naturais da carpintaria, ou pelo me-
fundamentais da vida social (1969: 5-6). sus às leis respeitadas por um carpinteiro que deseja que a casa por ele construída
sio desmorone e sirva aos objetivos dos que nela vivem" (1969: 96).
A natureza não nos predispõe a um destino específico; oferece, ao contrário, um Numa série de artigos ("The Forms and Limits ofAdjudication", 1961; "The Ad-
número infinito de jogos nos quais predomina o acaso; o sistema jurídico é um com v( , rsary System", 1961; "Coliective Bargaining and the Arbitrator", 1963; "Media-
plexo de regras criadas para resgatar os seres humanos da contingência e colocá-1o, ii n - Its Fornis and Functions", 1971), Fulier distinguiu entre legalidade e formas
com segurança, no caminho da atividade intencional e criadora. Não podemos, po- 1 tomada de decisão essencialmente administrativas ou burocráticas. A legalidade é
rém, obrigar um homem a levar uma vida de razão e valor. i ria forma de tomada de decisões por referência a regras e princípios estabelecidos;
irn disso, ao voltar os olhos para o common law clássico, Fuiler identifica a posição
Podemos apenas procurar excluir de sua vida as manifestações mais grosseiras atrai da integridade. A legalidade não é simples questão de técnica; o direito não
e óbvias do acaso e da irracionalidade. Podemos criar as condições essenciais a uma conquista instrumental de certos fins, mas sim um fenômeno expressivo. A inte-
existência humana racional. São estas as condições necessárias, mas não suficientes, 1ridade garante os processos empregados pelo direito para assumir forma e caráter'.
realização de tal fim (ibid.: 9).
Em busca de excelência, empenhamo-nos em criar condições de progresso socis 6. Em The Problems of jurisprudence (1949), uma coletânea de textos sobre filosofia do direito publicada
que possam superar a mera adesão ao dever e ascender às alturas das aspirações hu 1 Fuiler, ele argumenta que a legitimidade da prestação jurisdicional provinha da força moral específica
rente às decisões de um tribunal imparcial. Certas condições eram necessárias: por exemplo, o juiz não
manas. O direito é um instrumento que vem em nosso auxílio, mas não sabemos,
lia agir por iniciativa própria, mas por solicitação de um dos litigantes, ou de ambos; o juiz devia decidir o
nem podemos saber com exatidão, para onde nossa jornada está nos levando, ou 150 exclusivamente com base nos indícios e argumentos que as partes lhe apresentassem; cada parte em um
que formas assumiria a sociedade que lutamos por criar. Conquanto possamos em lii ;io deveria ter ampla oportunidade de apresentar suas alegações. Essas exigências constituem uma mora-
tir juízos durante o caminho, oferecer sonhos e infinitas formas de articulação de i lide intbrna dos julgamentos.
7. Fuiler especifica que, com o emprego do termo "processual", "estamos preocupados não com os ob-
nossos desejos e esperanças, não podemos ter uma idéia consumada do resultado
vos substantivos das regras jurídicas, mas com o modo como um sistema de regras destinadas a reger a
final. Porém, argumenta Fulier, a aceitação de que não podemos ter conhecimento iJuta humana deve ser criado e administrado caso se pretenda que seja eficaz e, ao mesmo tempo, conti-
da totalidade não nos condena à incoerência ou a uma postura meramente emo me sendo o que se propõe a ser" (1969: 97).
464 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da. sociedade justa na modernidade tardia 465
A MORALIDADE INTERNA ËSPECÍFICA DO DIREITO L Devem ser abrangentes. Em outras palavras, devem ser apresentadas de modo
que permitam que aqueles aos quais se dirigem tenham a oportunidade de com~
No capítulo 2 de The Morality of Law [A moralidade que torna o direito possí ueender o que é que não devem fazer.
vel], Fuller conta a história de um rei inepto que aplica as leis de diferentes maneira,
cada qual com um efeito desastroso. A moral da história é que um legislador dev Não devem contradizer-se mutuamente.
se ater a certas "excelências" processuais: cada vez que ele deixa de fazê-lo, prejudi- 1 (-ve ser possível cumprir as regras. Estas não devem ser formuladas de modo que
ca a eficácia do direito. Essa "moralidade de regras" é uma "moralidade interna" em contradigam mutuamente, criando uma situação em que o sujeito não possa
contraste com uma "moralidade externa" alcançada nas leis substantivas. E um deixar de infringir a regra, e tampouco devem exigir que as pessoas façam coisas
moralidade de "aspiração", não de dever. impossíveis.
A legisferação é um processo interativo, e a incapacidade de o legislador chegai
a uma moralidade processual vai resultar em que o sistema deixará de operar d 1 )cvem ter uma certa permanência. Não devem mudar tão rapidamente que seja
acordo com os preceitos da legalidade. Fuller relaciona diversas "excelências" des- impossível coordenar um modo de conduta que permita a alguém agir de acor-
tinadas a ajustar-se a esse direito natural da legalidade'. As leis devem ser: do com a norma jurídica.
1)cvem ser aplicadas com coerência e correção. Não basta ter uma estrutura lógi-
1. suficientemente gerais; cn de regras se, na prática, os processos de julgamento ou interpretação forem in-
2. publicamente elaboradas; iuinpreensíveis, ou tão difíceis de seguir que a criação das regras não resulte em
3. prospectivas; vantagem alguma; as regras também não devem ser ignoradas na prática. Deve-
4. compreensíveis; i ïios reduzir o abismo entre lei declarada e lei efetivamente administrada.
5. não contraditórias;
6. razoavelmente constantes;
Uma vez que Fuller definiu o direito como o empreendimento mediante o qual
7, possíveis quanto ao desempenho; e
1 criportamento
humano se sujeita ao domínio das regras, fica claro que as leis cria-
8. administradas por autoridades de acordo com seu conteúdo, e deve haver con
1 em conformidade com todos esses princípios não precisam ter nenhum conteú-
gruência entre ação oficial e regra declarada.
lii moral substantivo. Em sua resenha de The Morality of Law, H. L. A. Hart Harvard
Quais as implicações dessas exigências? ow Review, 1965) afirmou que remeter à moralidade como parte desse processo era
1 undir moralidade com atividade finalística. Conquanto aceitasse os oito princí-
1. Primeiro, deve haver regras. Um observador deve ser capaz de identificar urnn 'ii - e neles encontrasse o reflexo de uma "louvável arte", Hart considerava-os desti-
certa regularidade de comportamento dentro do processo legal e de presumir qu ii los de valor intrínseco; não passavam de princípios que enfatizavam a eficiência
essas regularidades não se devem meramente ao acaso, mas têm a ver com refle 1 liidireito enquanto empreendimento dotado de um propósito, e não forneciam fun-
xões, por parte dos participantes do processo, sobre o que deve ser feito. lii entos que assegurassem a possibilidade de se chegar a sentenças terminativas
nopósito de atividades e intenções. Os princípios de Fuller eram neutros porque,
2. Segundo, essas regras não devem ser operacionalmente retroativas. Devem estai jilie os "objetivos substantivos bons e nocivos" do direito, não garantiam o progres-
sempre disponíveis ao público, para orientar suas ações, e as pessoas não deve] i ii das finalidades de "justiça e bem-estar humanos"; nem mesmo estabelediam
ser pegas de surpresa pelas exigências de uma regra formulada depois do everi 1 iii ohuma incompatibilidade necessária entre governar de acordo com princípios de
a ser julgado. Ii lidade e objetivos iníquos". Numa famosa analogia, Hart afirmou que se aplica ,
3. Terceiro, devem ser do conhecimento público. Essas regras precisam ser dadas nu igualmente bem ao envenenamento: "O envenenamento é uma arte, Lnn
conhecer de um modo e dentro de um período de tempo que permitam que Iii i tem um objetivo, mas não se pode considerá-lo moral."
pessoas conheçam sua existência e possam ajustar sua conduta às determinaçõi Fuller considerava os comentários de Hart praticamente incompreen'J' i 1 iii
vigentes. iii opinião, Hart se mostrava cego à luta existencial dos profissionais do .l itt ii. \
indo os olhos para o passado, para o desenvolvimento e operação do cwiiiini Iiw
8. Fuller não afirma ter chegado a esses oito princípios orgânicos a partir de algum ponto de referêji
ii nlo- americano, Fuller afirmava que os advogados compreendiam a rliLi i lii'
seguro; eles procedem, antes, da prática judicial regular ou de disposições explícitas contidas em fontes u'i iikgridade no direito; em seu trabalho, eles conferem significado nivitI1,1
vencionais de direito. li, luiler reconhece que Hart talvez estivesse argumentando que ui.n ;i,Iti
466 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 467
dico poderia ter uma existência bastante eficaz sem as "excelências"',- e, conquan- Ia des que não estão de acordo com as devidas aspirações da justiça. O critério har-
to admitisse esse ponto, em certa medida ele contra-argumentava ao afirmar que, lano da necessidade de sobrevivência como o fundamento ao redor do qual se ergue
embora um sistema jurídico que fizesse pouco de todas essas "excelências" pudessç o conteúdo mínimo do direito natural (1961: capítulo ix), por exemplo, destrói-se a si
continuar existindo por algum tempo, não poderia durar eternamente. Na verdade, próprio ao se colocarem certas questões: Por que fazer qualquer coisa? Por que cor-
Fuller acredita que o mal e as más instituições são intrinsecamente menos coerente. er qualquer risco? Fuller abomina essa imagem limitada da vida social; em vez dis-
do que o bem e as boas instituições. Sua teoria enfatiza a importância da institri o, volta-se para uma concepção liberal moderna - aquela da comunicação em si:
cionalização; a institucionalização coerente e baseada em princípios da legalidade,
A comunicação é algo além de um meio de permanecer vivo. É um modo de per-
Em termos gerais, o que falta nessas exposições [críticas à posição de Fuller] é o re manecer vivo. E através da comunicação que herdamos as conquistas de todo o empe -
conhecimento do papel que as regras jurídicas desempenham ao possibilitarem uma cori nho humano do passado. A possibilidade de comunicação pode nos reconciliar com a
sumação efetiva da moralidade no real comportamento dos seres humanos. Os princ idéia da morte ao nos assegurar que nossas conquistas vão enriquecer a vida dos que
pios morais não podem funcionar num vácuo social, nem numa guerra de todos cont i ainda estão por vir. O como e o quando estabelecemos comunicação entre nós podem
todos.Viver bem requer algo além de boas intenções, mesmo quando compartilhadft expandir ou contrair as fronteiras da própria vida. Nas palavras de Wittgensein: "Os
por todos; requer o apoio de sólidas linhas básicas de interação humana, algo que - p& limites de minha linguagem são os limites de meu mundo."
menos na sociedade moderna - só pode ser oferecido por um sistema jurídico bem fur
dado (1969: 205). A proposta de Fuller de um núcleo de direito natural substantivo equivale a uma
iiiiiinção:
Para Joseph Raz (1970), filósofo do direito de Oxford, o valor da teoria restringia
se à tarefa negativa de evitar males que, de qualquer maneira, só poderiam ter sido Abrir, manter e preservar a integridade dos canais de comunicação por meio dos
quais os homens transmitem uns aos outros aquilo que percebem, sentem e desejam
causados pelas leis. Porém, nem Raz nem Hart compartilham os pressupostos de
(ambas as citações de 1969: 186).
Hart. Os críticos querem, de Fuller, uma clara e categórica afirmação da relação entre
o direito e as finalidades substantivas da moralidade e do florescimento humano'. O direito era um meio expressivo que não tinha por tarefa básica assegurar a es-
Ilhilidade, a ordem e o dever, mas sim a criação de uma ordem social em que a co~
A COMUNICAÇÃO COMO PRINCÍPIO-CHAVE A SER ASSEGURADO nicação e a livre interação social pudessem ocorrer. Fuller continuou convencido
PELA LEGALIDADE LIBERAL v q ue uma ordem jurídica que estivesse à altura de sua moralidade interna do direi-
seria, em termos gerais, essencialmente íntegra e justa em seu conteúdo substan-
Na verdade, Fuller desenvolveu uma síntese liberal de direito e progresso sociu 11 VI). Para seus críticos, isso era exageradamente otimista e, tendo em vista a falta de
11 i mação das finalidades substantivas do florescimento humano, era também in-
que adota uma abordagem agnóstica da questão de quais são os fins do homem; en
)Inpleto°. Contudo, se Fuller deixou em aberto o significado substantivo da justiça,
quanto prosseguimos em nossa viagem da modernidade, não temos como conhecei
ustões políticas muito práticas da modernidade tardia - enfatizadas pelas exigên-
o último capítulo. O objetivo é a excelência, nossas iniciativas lutam por obtê-la, mas
is concretas de justiça social por parte de legiões de pessoas depois de duas guerras
o que isso contém em termos gerais está além de nosso conhecimento. Ao contrui
ridiais - viriam a empurrar a teoria jurídica para muito perto dos debates sobre
rio, devemos deixar abertos os canais de "comunicação". Nossa tarefa não consisto
Mil a filosofia política (re)distributiva.
em alinhar o direito a alguma uniformidade natural que se perceba na humanidade,
mas sim em alinhá-la à busca contínua de aperfeiçoamento social. O positivismo
causa seu próprio fracasso, uma vez que, conquanto possa recusar-se a atribuir ao d
reito como um todo qualquer fim social, em nossas vidas estamos constantemente ID. Para Finnis (1980), Fuller não apresenta critérios não-processuais para se avaliar os obhl v . Ii
os que poderiam conferir uma sólida legitimidade ao estado de direito. Finnis concordo 10 11111
atribuindo significados ao direito. Se o pensamento jurídico recusar-se a dar uma li
LVI' ser visto como uma atividade finalística, mas também afirma que, para compreender E- Ir;
nalidade ao direito e à legalidade, ideologias e grupos poderosos encontrarão fina samos criar uma teoria naturalista damoral que especifique os bens e valores humanos 5111 .11 1111111
Vidos pelo estado de direito. Portanto, diz Finnis, a tarefa que FulIer identifica plenamt-i Ilt'.. nix II 1
Ililte, consiste em inscrever os princípios da moralidade interna do direito em algum, iii,.
9. Uma crítica ao jusriaturalismo processual de Fuller foi colocada em forma de pergunta: "Quantas u m,nie coerente com uma concepção ética e plenamente desenvolvida da natureza human e 1
celências um sistema jurídico precisa ignorar para que tal'sistema' deixe de ser um sistema?" VJ lhes essenciais.
468 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 469
III. JOHN RAWLS E UMA TEORIA DA JUSTIÇA1' A metodologia de Rawls é simples. Ele (i) afirma a primazia da justiça na ordem
qocia113; (ii) aponta os dados que comprovam a existência de um certo grau de inte-
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sis- iesse pessoal comum entre as pessoas que constituem uma sociedade (sobrevivên-
temas de pensamento. Por mais elegante e econômica que possa ser, uma teoria deve ser il, bem como de conflitos de interesses; assim, para permitir a ocorrência de uma
rejeitada ou revista se for falsa; da mesma forma, por mais eficientes e bem-ordenadas idem social estável, (iii) requer-se um conjunto de princípios que nos permita es-
que sejam as leis e instituições, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas. ( ... ) li ler entre as diferentes disposições sociais e subscrever qualquer disposição ten-
A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; em vista a distribuição dos bens sociais; portanto,
analogamente, uma injustiça só será tolerável quando for necessário evitar urna injusti-
ça ainda maior. Por serem virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a jus- uma sociedade é bem-ordenada quando não se destina apenas a promover o bem
tiça são intransigentes (1971: 3-4).
de seus membros, mas também é efetivamente regulada por uma concepção pública
de justiça. Em outras palavras, uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que
os outros aceitam os mesmos princípios de justiça e (2) na qual as instituições sociais
RAWLS COLOCA A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE NO básicas geralmente satisfazem e são geralmente conhecidas por satisfazerem esses prin-
PRIMEIRO PLANO DA VIDA SOCIAL MODERNA cípios. Nesse caso, embora os homens possam impor exigências excessivas uns aos ou-
tros, eles não obstante reconhecem um ponto de vista comum a partir do qual suas
O teórico político norte-americano John Rawls inicia sua obra extremamente in- reivindicações podem ser julgadas (ibid.: 4-5).
fluente, A Theory ofJustice [Uma teoria da justiça] (1971) com o argumento de que as
disposições sociais da modernidade exigem a legitimidade. Ainda que as disposições Embora haja uma multiplicidade de percepções e teorias da justiça, Rawls acre-
de uma sociedade sejam eficientes e perfeitamente lógicas do ponto de vista de sua IJtu (seguindo a distinção proposta por Hart em O conceito de direito, 1961: 155-9,
sistematização, tal sociedade não expressa satisfatoriamente as aspirações humanas, i 1re conceitos particulares de justiça e o conceito de justiça`) que o fato mesmo
a menos que possamos defender a justiça inerente a suas instituições. Além disso, divergências e dos argumentos sobre a justiça apontam para o compromisso da
"o indivíduo só é completo na união social". Uma existência plenamente satisfatória LI manidade com a busca de justiça. Alguma escolha "política" - como Rawls (1992)
requer justiça`. Coloca-se, porém, um problema óbvio: como poderemos saber se vi ria mais tarde a defini-Ia - deve ser feita. Rawls; coloca ojusto acima do bem - Kant
as disposições de qualquer ordenação social específica são justas ou injustas? Os an- vence Bentham:
tecessores intelectuais de Rawls são Kant (que introduz, entre outras coisas, a idéia
da primazia do justo (right) sobre o bem (goocl) e a idéia reguladora do contrato social) Toda pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-
e John Stuart Mili (que introduz o espírito de tolerância). estar da sociedade como um todo pode anular. A justiça nega que, para alguns, a perda
da liberdade se torne justa devido a um maior bem compartilhado pelos outros ( ... );
numa sociedade justa, as liberdades da igual cidadania são consideradas firmes; os direi-
11.John Rawls nasceu em 1921 em Baltimore, Estados Unidos*, e ensinou filosofia na Universidade de tos assegurados pela justiça não são sujeitos a barganhas políticas nem ao cálculo dos
Harvard por mais de trinta anos. Nos últimos tempos, causou enorme impacto sobre o pensamento político interesses sociais (1971:,4).
e jurídico através de uma série de artigos e, érn particular, de A Theory of Justice (Rawls, 1971). Esse livro foi
rapidamente aclamado como obra magistral que desenvolvia "um novo paradigma liberal". Esse paradigma Rawls não é um neokantista dogmático; seu objetivo é o de oferecer uma Iii
"deontológico" ou "baseado nos direitos" enfraquece a ascendência do utilitarismo nas teorias anglo-saxô- e razoável que contenha um conjunto básico de princípios com os quais pos 1 i i
nicas, e em geral se aceita que a crítica do liberalismo — tanto do direito libertário e anarquista quanto dos co-
munitaristas - deve passar por Rawls.
12."É um traço da sociabilidade humana que somos sós, porém partes do que poderíamos ser. Deve-
mos contar com os outros para obter as excelências que precisamos deixar de lado ou deixar totalmente de 13. Os pressupostos não podem ser evitados, e o principal pressuposto de Rawls é o de
ter. A atividade coletiva da sociedade, as muitas associações e a vida pública da comunidade mais ampla que ii iu teoria da justiça baseada em direitos, que respeite nossos desejos de igual respeito e recorri iii ir ri
as regula sustentam nossos esforços e suscitam nossa contribuição. Ainda assim, o bem extraído da cultura ioual, harmoniza-se, com nossas concepções liberais. Além disso, Rawls admite • (1971: 561) ' ir
comum excede em muito nosso trabalho, no sentido de que deixamos de ser meros fragmentos: aquela par- eepção da "unidade essencial do eu já é Um dado presente no. conceito de direito". O pressi 1 'r .i ' 1ow 1
te de nós mesmos que percebemos, inequivocamente, estar ligada a uma disposição mais ampla e justa cujos racional e unificado constitui, portanto, a base metodológica.
objetivos afirmamos" (1971: 529). 14. Outro modo de reformular essa idéia é dizer que a justiça é um conceito intrinsellHiIr
iie, incorporada ao conceito de justiça, encontra-se a impossibilidade de qualquer conccit uJ' rir. rir,
Rawls faleceu em 24 de novembro de 2002. (N. do T.) discussão relativa ao significado da justiça.
470 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 3
obter consenso no debate sobre a justiça`. Esses princípios levam em consideraçã Ninguém está de posse dos fatos que poderiam informá-lo sobre o modo COW
algumas desigualdades e mudanças no equilíbrio razoável entre igualdade e eficiên mi vida seria afetada pelos princípios de justiça e pelos processos de tomada tli'
cia. Rawls busca a imparcialidade, mas sua busca não se volta para um ponto arqu i ões pelos quais optou. Se as pessoas tivessem conhecimento sobre essas coi
mediano intelectualizado que transcenda a caverna de nossa vida cotidiana; ao con posição, provavelmente desenvolveriam princípios que lhes trariam vantag' 111,
trário, depende da aceitação por nossas intuições usuais". 1 1 i ivia, a metodologia de Rawls concede apenas um conhecimento geral da huma
1,3 de; todos sabem que a realidade social conterá contingências particulares, mas
.1> sabem que contingências específicas irão afetá-los18. O que, então, irá motivar
COMO BASE DA CONCORDÂNCIA COM OS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA, ;as escolhas por trás do véu de ignorância? Rawls afirma que a escolha decorre-
RAWLS SUBSTITUI O MODELO UTILITARISTA DO ESPECTADOR IDEAL IIobviamente do interesse pessoal, mas, dado o desconhecimento geral que as pes-
PELA IDÉIA DE CONCORDÂNCIA EM SUJEITAR-SE A DECISÕES i1, têm sobre si mesmas, o interesse pessoal se converte no interesse de qualquer
TOMADAS POR TRÁS DE UM VÉU DE IGNORÂNCIA 1 ii. A conseqüência é que os princípios resultantes serão aqueles sobre os quais
prefiram. Eles escolheriam o segundo princípio porque atuariam com base nuni línima é preferível à igualdade absoluta, uma vez que, se permitirmos alguma de-
"princípio mínimax* por meio do qual prefeririam a opção menos pior caso vies- igualdade, pode dar-se o caso de que a pessoa na pior situação, ainda que num pa-
sem a encontrar-se no nível mais baixo da sociedade. Por não saberem onde en- i5o de distribuição desigual, possa na verdade estar em melhor situação do que es-
tram na distribuição dos bens sociais, eles serão pessimistas racionais. iria se todas estivessem numa situação de total igualdade. No padrão de distribui-
Rawls faz uma analogia com as melhores maneiras de se cortar um bolo. Uni o "B", a pessoa com a porção mínima tem cinco unidades, e não quatro, como no
bolo vai ser compartilhado por várias pessoas, e uma delas será encarregada de cor l ,adrão "A", enquanto a unidade geral para distribuição é mais de um terço maior
tá-lo. Como o fará? Suponhamos que a pessoa que corta o bolo sabe que ficará con 1 io padrão "B" do que no padrão "A". Alguma desigualdade é aceitável porque a
a última fatia; se for egoísta, motivada pelo interesse pessoal (presumimos qu 1 tisca dogmática de igualdade pode mostrar-se restritiva para os interesses dos me-
adore bolo), cortará as fatias de modo que - conquanto os demais possam recebi 1 los favorecidos.
fatias iguais - a última seja a maior. Contudo, se tal pessoa souber que não ficara Rawls está tentando equilibrar a necessidade de crescimento de riqueza, com
com a última fatia, mas com uma das primeiras, é mais do que provável que a últi respeito aos menos favorecidos na sociedade. Embora o objetivo geral da justiça
ma fatia venha a ser a menor. Se nosso cortador for altruísta, ou se realmente não 'fflitarista consista em maximizar a riqueza social, Rawls considera seus princípios
gostar de bolo e souber que vai ficar com o último pedaço, então o mais provável ( Iac;icos de justiça, baseados também num respeito deontológico pela autonomia,
que a última fatia seja a menor de todas. Como podemos assegurar que cada fati uiOO conforme, à maximização. Mesmo que se crie uma maior riqueza social, um
tenha exatamente o mesmo tamanho? Rawls sugere que a resposta está no fato d Isiema de desigualdade pode ser demasiado extremo para que se possa defendê-
o cortador do bolo não ter conhecimento de qual pedaço lhe vai caber; nesse caso, li como socialmente justo. E se o padrão de distribuição fosse, na verdade, 5, 600,
tanto o cortador de bolo totalmente altruísta quanto o cortador de bolo totalmen 00, 800? Em que ponto dizemos que não podemos mais aceitar a posição do 5 em
egoísta irão assegurar que todas as fatias sejam iguais. aos bens consideravelmente maiores dos outros? Será no 20, 100 ou 1000?
Examinemos, por um momento, o que está se passando aqui. Rawls apreseni cria dar-se o caso de que uma pessoa preferisse viver no padrão em que somen-
um procedimento de escolha racional para a tomada de decisões no qual o conheci Jcsirutasse dos benefícios de 4, uma vez que aí desfrutaria de igualdade, ao pas-
mento envolvido é crucial para o resultado da decisão. Entretanto, o exemplo refle 1 que no outro padrão, ainda que se beneficiasse de um 5, a comparação com os
uma situação estática: havia apenas um bolo, e de tamanho fixo. Numa sociedad', li detêm as maiores porções pudesse tornar-se intolerável; os sentimentos de in-
há diferenças óbvias entre a distribuição de justiça e de um bolo de tamanho fixo. Iiliça podem nos tornar infelizes.
Além do mais, a idéia do bolo carece do grau de complexidade que os bens neceH
sários à vida envolvem; esses bens envolvem questões de status, poder, direitos, pro
priedade etc. Como iremos distribuir tudo isso? Como iremos deteuninar o valor d RAWLS E A IDÉIA DE CRESCIMENTO RAZOÁVEL: O EQUILÍBRIO
que está sendo distribuído? Embora o consumo do bolo possa oferecer um praz, ENTRE DESENVOLVIMENTO E RESPEITO MORAL
temporário, o consumo de muitos dos bens da vida (o acesso à educação superi(i
por exemplo) pode levar ao consumo de toda uma série de outros bens da vida (if Na analogia do bolo proposta por Rawls, os que ajudam a assar o bolo podem
é, bens disponibilizados por uma profissão de alto nível). Portanto, concentrar- ilher entre ficar com tempo livre (liberdade) ou trabalhar no preparo do bolo. O
apenas em bens primários (como os bolos) resulta numa noção muito frágil de igur l vai variar de tamanho e qualidade de acordo com a quantidade de ingredientes
dade no contexto de uma sociedade; a flexibilidade deve ser introduzida em tal teorL 1 cc los e a habilidade e empenho que forem empregados em seu preparo. E preciso,
A título de ilustração, tomemos dois padrões de distribuição: "A", compreend'n ii m, incentivar as pessoas a contribuir com ingredientes e trabalhar com afinco e
do quatro porções iguais dos valores 4, 4, 4,4, e "E", compreendendo quatro porçõ 1111 ii tidade; a qualidade e o tamanho do bolo, portanto, vão variar conforme o nível
desiguais com os valores de 5,6,7,8. Que considerações de justiça dinâmica são acci ii icentivos. Vemos, assim, que o grau de desigualdade permitido num padrão de
táveis para se julgar a legitimidade desses padrões de distribuição, e de que modo 1111 ibuição pode afetar a quantidade e a qualidade dos itens para a distribuição;
chegou a eles? Rawls afirma que um princípio que serve para maximizar a porça 1 \v Is, contudo, acredita estar oferecendo princípios para um padrão de crescimen-
li nâmico e socialmente justo ao dar prioridade absoluta à liberdade. Nenhuma
coa sensata vai arriscar sua liberdade em nome de uma prosperidade da qual só
* A solução minimax é fundamental para a teoria dos jogos, a abordagem matemática moderna Litros possam desfrutar.
conflitos de jnteresse.. Em resumo, repousa sobre quatro questões biisicas: (1) Qual o mínimo que estou li..
posto a aceitar? (2) Qual o máximo que posso esperar? 3) Qual o mínimo que posso conceder?
Por outro lado, pode haver espaço para algum ceticismo. Embora a maior parte
Qiul
máximo que posso oferecer em troca? (N. do T.) 11
11; críticos comunitaristas tenham enfocado as concepções de Rawls sobre a uni-
474 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 475
dade do eu, sobre a primazia do justo sobre o bem e o fato de que isso implica a re- o 5 "direitos"do cidadão. Em grande parte, o libertarismo tem por base uma inter-
jeição de qualquer tese do bem comum na tradição de Aristóteles, outros autore, ação do teórico do contrato social clássico, John Locke, que é visto como defensor
estes voltados para o direito, afirmam que um utilitarismo latente se insinua na teo ma tese central de que, no estado de natureza, a humanidade tem direitos indivi-
ria de Rawls em seu sutil movimento rumo à maximização; ou tem mostrado qu ii is invioláveis e o supremo direito de apropriar-se de quaisquer bens que outros
existe mais do que um procedimento possível para se chegar à decisão. Os realista, , possuam. Uma vez de posse desses bens, estes se tornam propriedade sua. O pa-
sociais têm afirmado que os únicos tipos de acordos que devem nos preocupar dizem 1 do governo consiste em proteger esses direitos — em particular, os direitos à vida
respeito às lutas históricas reais que têm sido travadas; ainda que num acordo sociil propriedade —' e a administração social só se legitima na medida em que reforça e
verdadeiro os indivíduos possam muito bem sentir-se legal ou moralmente obriga liege esses direitas, nao lhe cabendo nuncaiitimidade .ara suprimi-1q,A socie-
dos, Rawls nos faz entrar num acordo hipotético. Todavia, que tipo de direitos hipo so é concebida como o espaço em que os indivíduos perseguem seus projetos,
téticos a sociedade faz cumprir? Pode haver vários deles". Além do mais, é possív H os de interferência e respeitando os direitos dos outros. A teoria jurídica política de
conceber experimentos mentais alternativos que levem a concepções radícalmenh 1 hert Nozick, exposta em seu livro Anarchy, State and Utopia [Anarquia, Estado e uto-
diferentes do papel do governo numa "sociedade justa". Há também o fato de qu (1974), é a mais famosa das teorias libertaristas da justiça20. Nozick parte da dupla
Rawls oferece os princípios de justiça do pessimista racional, mas que dizer daquele-, russa de que todas as pessoas são naturalmente indivíduos dotados de direitos`,
do jogador? Por que motivo alguém que esteja por trás do véu de ignorância não po e todos os governos e todas as organizações sociais precisam de justificação:
deria dizer, simplesmente: "Voto por uma sociedade com grandes desigualdades poi
que acredito ter uma boa chance de ser um dos vencedores"? a questão fundamental da filosofia política, que precede as questões sobre como se
deve organizar o Estado, consiste em saber se deve existir alguma forma de Estado. Por
que não a anarquia? (1974: 4).
IV. ROBERT NOZICK E A FILOSOFIA RADICAL
DO MERCADO LIVRE Partir dessa premissa básica soa estranho ao leitor europeu, mas no contexto
ole-americano representa um começo compreensível, ainda que talvez radical. En-
1 iito os textos europeus são incapazes de encontrar no passado qualquer história
NOZICK COMO EXEMPLO DE LIBERTARISMO FILOSÓFICO
cretamente sua que se assemelhe à narrativa lockiana, a fundação e o desenvol-
1111 dos Estados Unidos são freqüentemente interpretados como a incorpora-
Enquanto a teoria de Rawls pode justificar a redistribuição social (equivale a ur
defesa do moderno Estado liberal-democrático de bem-estar social), para outro gru- viva de tal narrativa22.
po de liberais — que podemos chamar de libertários — o biggovernment* é incompn
tível com a liberdade. Os libertários compartilham uma profunda aversão a todas 20. Seu ensaio foi descrito como "um elogio das virtudes do individualismo do século XVIII e do capi-
teorias que promovem qualquer idéia de bem social que legitime a administração so 01110 de laissez-faire do século XIX" G. Paul, org., ReadingNozick, 1981: 1), um "texto original, admirável e ex-
cial centralizada — mesmo que esta seja a concepção bastante individualista do utfli línariarnente inteligente" (ibid.: 28); para Lloyd e Freeman, trata-sede "uni dos mais instigantes ensaios
taxismo clássico—, e seu objetivo é abolir toda interferência governamental nas vidi li Isofia política que surgiram nos últimos tempos" (6 ed., 1995: 367). Em termos mais moderados, foi vis-
iro um texto "profundamente teórico, com as virtudes de elegância formal em oposição às do realismo
icto" (Paul, org., 1981: 35).
21."Os indivíduos têm direitos, e existem coisas que nenhuma pessoa e nenhum grupo pode fazer-lhes
19. Para Ronald Dworkin (1977), a posição original só deu origem a decisões hipotéticas, e é ilógi 1 1 violar seus direitos)" (1974: ix). Nozick não oferece nenhuma explicação sociológica ou de outro tipo so-
conceber uma teoria da justiça que pretende legitimar decisões reais com base em tal procedimento. Em vei modo como surgiu a ênfase no individualismo ou nos direitos; ao contrário, seu argumento principal
de perguntar o que é racional fazer ou deixar de fazer na situação hipotética, precisamos interpretar os coo ii,i,,,te apenas em apelar a nossas intuições quanto a tratar as pessoas como "fins em si mesmas" e "tratar
tratos sociais verdadeiros com os quais estamos comprometidos - por exemplo, a Constituição norte-amei mesmos com respeito ao respeitarmos nossos direitos" (ibid.: 334).
cana. Rawls diria que, ao examinar exemplos racionais como o do cortador do bolo, por exemplo, podem 22. Como Stephen Newman (1948:16) afirma num livro apropriadamente intitulado Liberalism at Wits'
entender a força moral da igual distribuição. As pessoas podem entender essa decisão sem que precisem Í,i 1 ei lhe Libertaijan RevoltAgainst the Medem State [Liberalismo à deriva: a revolta libertária contra o Estado
zer um bolo e compartilhá-lo. O fato de o argumento ser de natureza hipotética não destrói sua força e, mo]: "Os Estados Unidos são a primeira forma de governo lockiano. Sua fundação consistiu pratica-
sim como o exemplo do bolo pode funcionar como um argumento moral, também o pode a idéia da poJ lia numa aplicação prática dos princípios do Segundo tratado sobre o governo, de Locke, e por quase cem
original hipotética. o país parecia um modelo quase perfeito do que Locke entendia por sociedade civil. O governo foi ins
* Governo em que predominam os dispêndios de caráter produtivo, a geração de infra-estrutura, o Ii II) para proteger a vida e a propriedade. A autoridade foi intencionalmente limitada e submetida a miii-
to fiscal anticíclico, a preocupação com o desemprego etc. (N. do T.) restrições a fim de garantir a liberdade do povo. Circunstâncias materiais auspiciosas,, em especial a
476 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 477
Os escritos de Nozick desenvolvem uma teoria da justiça que reforça uma abor icisamos, de fato, inventar um Estado? Precisaríamos de muito boas razões para
dagem de livre-mercado radical e se ajusta ao chamado Estado mínimo ou Estadi l ij, , 1 ii
cá-lo. Nozick elabora um argumento teórico em várias etapas.
gendarme. Não surpreende que ele assim conclua:
Primeira etapa: Os indivíduos são colocados num estado de natureza, mas - como
O Estado mínimo é o Estado mais extenso que pode ser justificado. Qualquer E üntece na narrativa lock.iana - esses indivíduos são possuidores de direitos. Nozick
tado mais extenso viola os direitos das pessoas (1974: 149). umenta que existem duas maneiras de pensar os direitos. Numa das concepções,
itamos que os direitos vão entrar em conflito, ou que precisamos equilibrar os di-
itoS com outros objetivos sociais Em última instância, sugere Nozick, isso leva a um
O QUE É A IDÉIA DE ESTADO MÍNIMO DE NOZICK E POR QUE ELE III li tatismo relativo aos direitos; começamos a cogitar de sacrificar ou diminuir direi-
AFIRMA TRATAR-SE DO ÚNICO ESTADO QUE SE PODE JUSTIFICAR?
ou, ao contrário, protegê-los ainda mais. Como diz Nozick: "( ...) suponhamos
e algumas condições para a minimização da quantidade total (ponderada) de vio-
Nozick define sua referência ao Estado mínimo como "o Estado do guardi li, õcs de direitos sejam criadas no Estado final que se deseja alcançar. Teríamos, en-
noturno da teoria liberal clássica, limitado às funções de proteger todos os seus L 1, algo como um'utilitarismo' de direitos; as violações de direitos (a ser minimi-
dadãos contra a violência, o furto, a fraude, o não-cumprimento dos contratos etc." las) simplesmente substituiriam a felicidade total enquanto Estado final relevan-
(ibid.: 26-7). De que modo ele explica isso como o único nível de organização so na estrutura utilitarista". Mesmo que nosso objetivo for a mínima violação dós
cial defensável? l:i oitos, ainda assim, sob certas condições, estaríamos dispostos a sacrificar um in-
Anarquia, Estado e utopia é subdividido em três partes. Sua estrutura já leva ao hvíduo em nome do bem comum. Na segunda concepção de direitos, predomina
favorecimento do minimalismo. A Primeira Parte se propõe a confrontar o anarquis iiina visão de "limitações do aspecto moral" (ibid.: 28-35). Não devemos nunca vio-
ta que nega a legitimidade de qualquer forma de Estado, afirmando que qualqu'i iu esses direitos". Para Nozick, numa sociedade não é nunca permissível atropelar
Estado é "intrinsecamente imoral" (ibid.: 51). Em resposta a esse "desafio", Nozick Interesses do indivíduo em nome de outros`. Na experiência mental, os indiví-
leva a cabo uma "experiência mental" de rastreamento de uma evolução detalhada ii ios possuem esses direitos num estado de natureza, mas somos instados a ima-
do Estado mínimo na qual nem seu surgimento, nem sua existência contínua infri 1 ior que havia anarquia natural. Isso nos leva à segunda etapa.
gem os direitos. A Segunda Parte examina a concepção de Estado mínimo e espei, 1 Segunda etapa: Esses indivíduos com direitos formam associações voluntárias
fica que um Estado mais extenso violará os direitos e será, portanto, injustificadi ira defender seus direitos. Essas associações - "instrumentos de proteção mútua"-
Nozick desenvolve uma teoria do justo título por meio da qual os bens econômicos totalmente voluntárias. Os que a elas se juntam recebem proteção, o que não
surgem na sociedade onerados por reivindicações legítimas de sua propriedade, )n tece com os demais. Até o momento, ainda não se formou Estado algum; não há
que por sua vez desacredita as formas "padronizadas" de distribuição (ibid.: 155-6 nHguém que tenha legitimidade para usar a força em toda a área. Originalmente,
Na Terceira Parte, Nozick apresenta sua utopia, o que lhe permite argumentar q ii ria nto, a associação só tem os direitos que lhe são assegurados por outros indiví-
o Estado mínimo merece ser defendido. Isos. Trata-se apenas de um grupo de indivíduos em associação.
O primeiro capítulo da Primeira Parte tem por título Por que teoria do estado
natureza, e contém o esboço de uma experiência mental que começa por imaginc 23. "Restrições secundárias. à ação refletem o princípio kantiano subjacente, de que os indivíduos são
vida sem um Estado. Ao contrário de Hobbes, porém, Nozick não nos põe diante, e não simplesmente meios .(...)..As restrições secundárias exprimem a inviolabilidade das outras pes-
um horrível estado de natureza, uma vez que, sem dúvida alguma, se concebess - " (1974: 30. Uma vez mais, afirma Nozick, a fundamentação disso é a percepção que temos de nossas
estado de natureza como algo tão ruim quanto Hobbes o fez, o mais provável é -u: "As restrições morais secundárias ao que podemos fazer, afirmo, refletem o fato de nossas existências
lo tas. Refletem o fato de que nenhum ato de equilíbrio moral pode ocorrer entre nós; nenhuma vida pode
aceitaríamos qualquer Estado como solução do problema. Em vez disso, Nozick 1 um peso moral maior que outra a fim de levar a um maior bem-estar-social geral. Não se justifica o sacri-
gumenta que devemos imaginar um estado de natureza benigno; sua figura pai Ji :lguns de nós pelos outros" (ibid.: 33).
na é Locke, não Hobbes. Em tal situação, porém, pode insinuar-se a seguinte quesi 1. Freqüentemente se diz que um dos possíveis problemas do véu de ignorância de Rawis é o do jogo
i iclivíduo pode preferir arriscar-se a ser um dos que se beneficiaram, e não um dos poucos perdedores).
yjs não parece capaz de lidar com o fato de que, muito embora o jogo seja irracional, também faz parte da
dição humana. Talvez no exemplo do paciente do quarto 306 (cf. capítulo 6 deste livro) optássemos pela
abundância de terras desocupadas, permitiram a criação de oportunidades iguais e de uma autonomia utilitarista, considerando que o mais provável é que estivéssemos entre os cinco, e não que nos cou-
va a (quase) todos (menos, sem dúvida, a negros, índios e mulheres). Mantido pelo Estado, o capitaliri 1 sorte do que morre para doar seus órgãos aos demais. Somente uma teoria da incondicionalidade dos
livre-mercado servia aos interesses de ricos e pobres por igual, deixando em aberto o caminho do suce como a de Nozick,garantiria o salvamento do paciente do quarto 306, ainda que- as demais pudes-
que tivessem ambições e talento." Pelo menos é esta a análise política acalentada pelos libertários modi Ir salvo os outros cinco.
478 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 479
Terceira etapa: As associações voluntárias organizam-se territorialmente. Un ARGUMENTOS COM BASE NA JUSTA AQUISIÇÃO
"associação de proteção dominante" se desenvolve em cada área. Essa é uma co)
seqüência inevitável da economia da proteção, e resulta numa exigência lógica de si Na Segunda Parte, Nozick usa outro conjunto de argumentos - que ele chama
viços de proteção como os tribunais e a polícia, entre outros, que devem funcioi Ir llo ria do justo título - para concluir que a única forma de Estado que se justifica é
dentro de um certo território. Io Estado mínimo. Trata-se de uma série de argumentos especificamente voltados
Quarta etapa: Na terceira etapa, ainda restam alguns independentes que não li a redistribuição da riqueza. A teoria do justo título defende a idéia de que um
juntaram a nenhuma das associações; portanto, os independentes têm os mesn; II víduo tem um direito intrínseco a tudo que possui, desde que se justifique o modo
direitos à proteção que as associações. A quarta etapa consiste na junção ou incorp rio ele passou a ter cada parte de sua propriedade. Há três maneiras de uma pes-
ração desses independentes; chegamos, assim, a um Estado mínimo, um corpo ri ler direito a ser dona legítima de suas posses: a justiça da aquisição - o que sig-
paz de exercer o monopólio do uso da força dentro de um território particular e 1 'a que, quando adquirida, a propriedade não era propriedade de outra pessoa (um
estender a proteção a todos os seus cidadãos (ibíd.: 113). O Estado mínimo é li; 1 rso natural, por exemplo); a justiça da transferência - que ocorre quando a pro-
tado em sua legitimação da força com vistas à proteção de certos direitos básico
l» ri Ide é transferida ao dono atual por meios válidos. Estes incluem a doação, a
o Estado gendarme do liberalismo clássico. Sob o utilitarismo, ou a teoria do Raw 11 (l,i, a herança - tendo por única condição que não haja fraude ou furto envolvi-
da maturidade, podíamos ter políticas de redistribuição; no Estado mínimo, 111
Quando o dono atual da propriedade deixou de observar um dos métodos de
nenhuma redistribuição tem legitimidade. Tudo que é pago seria um serviço bási' ri isição de título acima descritos, a injustiça deve ser reparada, e A deve devolver
de proteção. Na teoria de Nozick não existe Estado de bem-estar social ou coisa
gênero. Alguns podem dar a isso o nome de capitalismo clássico. Nozick tamh 'iopriedade a B. A isso se dá o nome de justiça de reparação.
afirma que o desenvolvimento do Estado mínimo é espontâneo, não planejado e i Portanto, o argumento de Nozick é quase histórico: "Uma distribuição será
voluntário. E apresentado como o resultado da história natural: "um processo qti i-Iase resultar de uma justa distribuição anterior por meios legítimos" (ibid.: 151).
dá através de uma mão invisível e de meios moralmente permissíveis, sem que p' •jck então desfia uma série de argumentos que atacam as propostas rivais, como
soa alguma tenha seus direitos violados" (ibid.: 119). ue subjazem às estruturas de distribuição que são informadas por argumentos
teorias utilitaristas (como a maximização do bem-estar social), ou as que enfati-
Como avançamos da terceira para a quarta etapa? Parece impossível25, porq 'ir conveniência da igualdade. Nozick argumenta que as concepções subjacentes
pressuposto mais básico é o de que os direitos individuais são tão fortes que colo Ir' ustiça (re)distributiva são conjuntos de princípios que conflitam com o prima-
a questão do que um Estado poderia fazer, se é que poderia fazer alguma coisa;] Ir Ii , ila liberdade e de um absoluto respeito pelos direitos.
ticularmente, se nunca violar direitos. A quarta etapa implicará, sem dúvida, a 'vi' 1.' Urna famosa ilustração de Nozick é o argumento de Wilt Chamberlaín. Ele nos
ção do direitos de alguns membros? Pagar por proteção deve implicar alguma rc' Ii k, rara imaginar um conjunto estável de distribuições que consideramos justas.
tribuição de recursos". A etapa também parece envolver alguma violação de dii e 11
dos independentes, uma vez que agora existe uma autoridade que tem, sobre ri
um poder com o qual eles não concordaram. Os direitos cruciais que se perderai 1 ser esse um procedimento implausível, ele precisaria de uma narrativa mais realista para que sua
aqueles do esforço pessoal e os de interpretar e ser o árbitro decisivo sempre qur i,liasse credibilidade. Nozick propõe dois problemas a seu próprio esquema: (i) parece que os mem-
direitos pessoais forem violados (o direito de tomar a lei nas próprias mãos e dvç l rsociações permitem uma redistribuição limitada aos independentes, e (li) por que, afinal, os ide-
se associam? Nozick responde que só aparentemente se trata de redistribuição. Por exemplo, se A
quando já se fez justiça). O Estado agora se torna o árbitro decisivo dos morn ri i rirriro a B e B rouba alguns bens da casa de A, tal procedimento poderia ser chamado de reparação,
em que se deve recorrer à violência. Só o Estado sanciona o uso legítimo da for lo. Poderia dar a impressão de ser as duas coisas; temos de examinar as razões, não apenas as apa
Nsick argumenta que é uma questão de reparação. O Estado mínimo incorpora os independentes,
deve algo porque eles perderam seu direito ao espírito de iniciativa. Deve-lhes serviços de proteção
25. Muitos críticos consideram-na apenas "uma narrativa hipotética ( ...), um desvio bizarro .i'. Podemos então passar para a quarta etapa. Nozick pensa que as pessoas podem, ativa e volun-
bom senso" (Bernard Williams, citado em Paul, 1981: 5). c. concordar com qualquer coisa desde que não haja violação dos direitos dos outros. Portanto, po-
26. Como podemos julgar? Quais os critérios possíveis? Nozick não oferece nenhum. Robert 1 ir:ordar em abrir mão de direitos. Alguém poderia vender-se como escravo; portanto, podemos con-
volta os argumentos de Nozick contra ele próprio, afirmando que, como não se oferece nenhum cr.r l sO um Estado. Contudo, o argumento da reparação não é simples consentimento, e devemos per-
dependente para se avaliar os processos de aplicação da lei pelas associações protetoras dominantes,.' ue é uma justa reparação?" Ele discute a reparação sob vários aspectos, um dos quais:por meio de
pação de todos os poderes de julgamento e aplicação da lei não podem ser justificados" (em Paul, L diferença, mas Nozick pensa que podemos usar esse argumento para obter um Estado mínimo. De
27.E por este motivo que, à primeira vista, a mudança de associações protetoras para um EstrE' críticos não se deixam convencer: Robert Paul Wolff (em Paul, 1981: 7) argumenta que um cálculo
mo parece demasiado ampla. Hipoteticamente, uma vez que se trata de uma experiência mental, N .1 los danos sofridos na violação dos direitos não é possível devido à "fluidez e falta de estrutura" do
deria ter solucionado o problema simplesmente ao dizer que todos se associariam ao Estado mínin ri atrireza.
Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 481
480 Filosofia do direito
Chamaremos essa distribuição de Dl. Talvez todos tenham uma parte igual, talvty. o estilo de argumentação marxista de que as pessoas são obrigadas a traba-
as pessoas tenham uma parte de acordo com uma curva de distribuição específica; ara poderem sobreviver. Nozick começa por concordar com que "os atos de ou-
os aspectos específicos não importam; o que importa é que não nos opomos a essa 1 essoas impõem limites às oportunidades disponíveis", mas em seguida afirma
curva particular de distribuição. Imaginemos que nessa sociedade haja um brilhaii se isso torna ou não a ação resultante não-voluntária é algo que vai depen-
li do conhecimento de que esses outros tinham o direito de agir do modo como
te jogador de basquete de 2,15 metros, WIlt Chamberlain, extremamente procurado
pelos times de basquete e com um imenso carisma entre os fãs; as pessoas adoram
tH
cm ( ... )". Ele propõe um exemplo em que figura uma ilha deserta: há 26 mulhe-
vê-lo jogar e se predispõem a pagar mais quando ele joga. Suponhamos que sou (AZ) e 26 homens (Al-Zi), e todos pretendem casar-se. Nessa sociedade rela-
contrato estipule que, para cada jogo, 25 centavos de dólar do preço de cada bilho i o ente simples, não há divergência quanto à relativa atração que tais pessoas sen-
te vão diretamente para Wilt, ou que, durante a temporada de partidas em sua pró entre si. A ordem da atratividade vai de A a Z, em ordem preferencial decrescen-
pria cidade, cada espectador coloque a mesma quantia numa caixa separada, com o A e Ai decidem voluntariamente casar-se, e um prefere o outro a qualquer outro
nome de Chamberlain inscrito. Estão todos muito excitados por vê-lo jogar, e acham oiro. Porém, embora B tivesse preferido casar-se com Ai, e Bi preferisse casar-se
que trocam valor por dinheiro. Nozick nos pede para imaginar que, em um ano, m A, as ações de A e Ai eliminaram essa opção. Uma vez que B e Bi também que-
1 m casar, eles então escolhem um ao outro como a mais preferível dentre as opções
1 milhão de pessoas paguem para vê-lo em atuação; Wilt recebe S250.000,00 mais dt
que os outros jogadores do time, e certamente essa soma é muito superior à rendi i ie lhes restaram. Mas, embora as opções de B e Bi tenham diminuído, A e Ai, no
média da sociedade. Terá Wilt direito a essa renda? No fim do ano, temos uma novi ercício de sua própria liberdade, não interferiram nos direitos de B e Bi; estes, por-
distribuição D2, e Wilt terá muito mais recursos do que qualquer outra pessoa. Ser o1o, não foram coagidos em sua escolha. Sem dúvida, as opções vão ficando cada
injusta essa distribuição? Se for, por quê? A título de resposta, Nozick nos pede pari z mais restritas com o passar do tempo; porém, diz Nozick, mesmo quando se che-
examinar como Dl se converteu em D2. Sem dúvida, isso foi conseguido por pessoa: a X eY e se admite isso quando se chega a e Zi, e só lhes resta a opção de es-
exercendo seus direitos nos termos da Dl. Os indivíduos usaram sua liberdade e de lher um ao outro, não está em jogo coerção alguma. Tanto Z quanto Zi admitem
ram dinheiro para comprar o que desejavam; optaram livremente por transferir unia e, se desejam casar-se, devem fazê-lo com a pessoa menos atraente do grupo opos-
parte de seu dinheiro para Wilt, a fim de vê-lo exibindo seus talentos. Nozick rii A questão fundamental é: eles terão sido coagidos se casarem um com o outro em
afirma que Di é melhor que D2, mas apenas que D2 é tão justa quanto 132. D2 é sim e de casar-se com ninguém?
plesmente uma posição que surge em resultado de indivíduos que exerceram os d Nozick diz que considerações semelhantes se aplicam às trocas de mercado en-
reitos que possuíam de acordo com Dl, sem prejuízo de ninguém. Portanto, D2 é tão Ii os trabalhadores e os detentores do capital. Se alguém dissesse que os emprega-
justa quanto Dl; sendo assim, porém, violou-se o padrão de distribuição aceito. A s estavam classificados de A aZ, e os empregadores de Ai a Zi, poderíamos con-
operação de liberdade subverteu o padrão estabelecido. erar voluntária a combinação Z-Zi? Haverá razões legítimas para que Z ou Zi
Nozick sugere que será esse o destino de todos os sistemas estruturados em ter VI riham a queixar-se? Talvez Z se veja diante da escolha de trabalhar para Zi ou mor-
mos de políticas e padrões; essas concepções de justiça estão condenadas a ser im ti de fome; e, como a escolha é resultado das ações de todos os outros, que não dei-
praticáveis. Em vez disso, somos instados a concordar com um sistema dinâmico que 1i nenhuma opção a Z, será possível dizer que este último opta voluntariamente
coloca a primazia nos direitos que não devem ser violados. Para Nozick, o princípio i , i)r trabalhar? Para Nozick, "Z realmente faz uma opção voluntária se os outros in-
fundamental dessa "teoria do justo título" é que "é justa qualquer coisa decorreu 1 li víduos A-Y tiverem agido voluntariamente e dentro de seus direitos".
de uma situação justa que tenha procedido por etapas justas" (1974: 151). Tanto o exemplo do casamento quanto o do justo título da propriedade podem
Que dizer, porém, da coerção? Até mesmo o legítimo exercício dos direitos po,.
assim resumidos: "de cada um, conforme sua escolha, a cada um, conforme for
de fato, levar a resultados e situações muito coercivos. Além disso, o argumento W1 1
colhido"; não é algo em que a política de redistribuição deva interferir.
Chamberlain é um argumento muito particular; na verdade, o mercado nem sernje
Contudo, se no exemplo do emprego as pessoas optassem livre e voluntaria-
funciona desse modo. Hoje, o mercado é um ambiente que a tudo abarca, e em
ii i ente, estaríamos diante de uma questão mais complexa; o exemplo do casamento
ral as pessoas vivenciam as situações de mercado de forma muito diversa daqui 110 constitui uma situação exatamente análoga. Alguns poderiam argumentar qu .w
contida nos argumentos de Nozick; elas não podem simplesmente pegar ou lar, ,, 11
1 'ssoas têm um direito social ao trabalho, ainda que, talvez, não tenham um direito
quando recebem uma proposta de emprego, e há a questão da confiança em cert
cia[ específico ao casamento. Isso torna coerciva a situação de Z?
bens. Em vez de maximizar a riqueza, o mercado pode ser coercitivo.
Nozick (1974: 262-5) oferece outro exemplo daquilo que vê como maximizaça
da liberdade. Nesse exemplo, ele responde especificamente à idéia do mercado cot
482 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 483
PROBLEMAS CONTRADITÓRIOS COM O PRINCÍPIO DE RETIFICAÇÃO Assim, apesar de verdadeira nos termos de sua estrutura lógica, a argumenta-
o de Nozick de que qualquer Estado maior que um Estado mínimo deve deve -
No esquema de Nozick, a reivindicação de uma justa distribuição depende d ,lsolutamente —violar os direitos das pessoas, segue-se também que, no esquema
os indivíduos terem direitos sólidos ao domínio de sua propriedade, mas como po- 1 roposto por Nozick, é impossível determinar quais são os direitos de qualquer in-
demos estar convencidos da validade histórica de suas reivindicações? Nozick re- Ii víduo no que diz respeito à propriedade. A teoria apela a nossas intuições indivi-
conhece que a questão de injustiças passadas coloca problemas difíceis: Ii talistas, mas não tem como se proteger contra suas próprias tentativas de ser uma
'scrição histórica ou sociologicamente verdadeira da primazia do Estado mínimo
Se a injustiça passada configurou a posse atual de diversas maneiras, algumas identi - do livre -mercado".
ficáveis, outras não, o que se pode fazer agora, se é que existe algo a fazer, para reparar es
sas injustiças? Como mudam as coisas se os beneficiários e os que foram prejudicados nL
são partes diretas no ato de injustiça, mas sim, por exemplo, seus descendentes? Até ond A FRAGILIDADE DA POSIÇÃO LIBERTÁRIA
se deve retroceder para se poder limpar o quadro histórico das injustiças?
A fragilidade da argumentação filosófica abstrata que não
Colocada a questão, Nozick pode apenas concluir: "Desconheço qualquer tra
leva em conta a história social ou a realidade social
tamento perfeito, ou teoricamente sofisticado, de tais questões." Ironicamente, com
assinala Bernard Williams, a teoria de Nozick pode colocar um desafio substancipi Os libertários retomam os escritos de Locke e seguem-no na construção de um
ao capitalismo contemporâneo, uma vez que odeio do estado de natureza para encontrar um mecanismo de julgamento que
o ssa legitimar a justiça das organizações sociais ao mesmo tempo que se preser-
A teoria da derivação de Nozick não implica que os atuais títulos de propriedade st
jam justos; ao contrário (embora se trate de uma questão de fato removível), há uma pro o primado da liberdade. Os textos de Locke permitem que eles se apropriem de
babilidade de 99% de que quase todos eles não o sejam. (Nozick pode achar que boa pa i na tradição narrativa da história natural em que existe uma psicologia para a qual
te dos Estados Unidos pertence por direito aos índios) (em Paul, 1981: 27). motivos econômicos são fundamentais (a idéia do individualismo possessivo).
'irtanto, a narrativa histórica é vista como atemporal, e a psicologia como natural.
Portanto, como pode a titularidade ser historicamente assegurada? Dadas as in tíém, Locke escreveu uma "história natural narrativa" na qual havia indivíduos
-
finitas possibilidades de que as injustiças tenham ocorrido no plano histórico, e ie possuíam direitos naturais invioláveis para fugir a uma história real em que a
-
impossibilidade teórica e prática de se identificá-las e corrigi-Ias, qualquer tentativ nioria não tinha direitos. Locke defendia a causa dos direitos naturais para repudiar
de pôr a teoria de Nozick em prática para justificar patrimônios atuais que estejan;
a salvo de interferências será ou historicamente arbitrária ou autocontraditória25.
padrões de apropriação, ao optar por aquela variedade específica quando uma outra poderia ter deixado
los em melhor situação.
Kymlicka argumenta que a teoria de Nozick não pode justificar a propriedade atual do patrimônio, uma
28. Esta conclusão resulta da honestidade da posição de Nozick, que se baseia no princípio lockiano que, historicamente, a força foi empregada em quase toda apropriação inicial, motivo pelo qual todos os
legítima aquisição inicial, isto é, de que não se deve deixar os outros em pior situação ao se adquirir algum 111 ikis atuais são ilegítimos. Não há razões morais para que o governo não possa torná-las e distribuí-Ias, tal-
bem supérfluo ou recursos naturais e reivindicar propriedade. Kymlicka (1990) resume Nozick, que em ccc,; corrigir injustiças passadas. .Nozick quase aceita isso, chegando mesmo a sugerir que uma redistri-
opinião.propõe uma teoria por etapas de aquisição de propriedade: ;o; não repetida, de acordo com o princípio de diferença de Rawls, pode apagar o passado antes que sua
1.as pessoas se possuem a si próprias; iria do justo título seja colocada em prática.
2. em sua maior parte, o mundo não tem dono; 29. Outros libertários, como Rothbard (1982), não são tão abertos quanto Nozick. Rothbard se opõ ao
3.pode-se adquirir direitos de propriedade absolutos sobre uma parte desproporcional do mundo desde que nib pimento da aquisição injusta ao afirmar que, se forem conhecidos, os proprietários criminosos devei cci
piorem as condições dos outros; pojados,• e suas posses devem voltar a seus proprietários legítimos. Se estes não puderem ser eno si
4. é relativamente fácil adquirir direitos absolutos sobre uma parte desproporcional do mundo; portanto, hans se tornam simplesmente sem dono, e a primeira pessoa a apropriarse deles e utilizá-los ii I,1ui
S. uma vez que alguém se tenha apropriado de propriedade privada, um mercado livre de capital e trabalho torro los de propriedade. Se os proprietários atuais não forem criminosos, não há motivo para se
uma exigência moral. c Lens, e mesmo que estes tivessem sido originalmente adquiridos por roubo ou por força — im , na
ç ~~
Kymlicka afirma que o item 3 é demasiado fraco para dar origem ao item 4. Ao se apropriar de um das situações coloniais o dono atual pode manter a propriedade, uma vez que é improv. vi
-, ii ii
daço de terra, é inevitável que uma pessoa piore a situação das outras sob certos aspectos: ao negar-lhes u 11 co dono ainda exista. Tendo em vista que praticamente todos os proprietários originais já mo i ci 1 ii há
parte ou o direito de opinar sobre o uso dessa terra, ou, com o tempo, no caso dos outros espoliados, ao ditai o diu, quase todos os proprietários de títulos atuais são possuidores legítimos dos bens, a não ser quando a
lhes os termos nos quais devem trabalhar a terra; além do mais, uma vez que existe uma grande varied pricdade tiver sido roubada pelos que no momento detêm sua posse.
484 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 485
a realidade do feudalismo; enquanto postulava o primado dos motivos econômico)!, a cívico-republicana no período revolucionário. Foi somente com o advento da
a fim de combater todos os outros motivos da paixão humana (em certo sentida, tituição federal que a idéia de virtude pública e de bem comum perdeu seu pa-
para afirmar que a motivação econômica atenua e racionaliza a instabilidade das pa il 'ntral para um novo conceito da opinião pública`. O governo tornou-se um
xões humanas, expressa nas religiões e no preconceito históricos). Locke situa-se termo entre interesses cuja existência era externa à ação política em si.
ao lado de Hobbes, Hume e Adam Smith - nas origens do período moderno que vil 1 1 Imbora essa nova concepção "liberal" tenha se tomado dominante durante o
a disseminação do mercado pelo mundo. Como os libertários gostam muito de en ula XIX, a concepção republicana nunca desapareceu por completo. Pocock afir-
fatizar, o mercado é o único mecanismo que não leva em conta sua cor de pele, reli pie ela se tomou de alguma forma subterrânea, operando através da defesa de
gião ou preferências estéticas, a não ser enquanto características que aumentem a ii dos pré-modernos e antiindustriais na cultura norte-americana. Muitos auto-
oportunidades de venda. As ironias sociais das medidas que eles defendem - pnr 1 ie criticam o individualismo liberal apelam para essa tradição, afirmando que
exemplo, que o Estado, ao agir com imparcialidade para garantir os direitos indivi ;u til influência do republicanismo cívico permitiu que os norte-americanos
duais, termina por servir aos interesses das classes específicas que ocupam uma pu rvassem um certo senso comunitário e colocou-se como resistência inerente
sição dominante no mercado - se perdem porque os libertários têm um senso mci leitos corrosivos do individualismo. Esses autores vêem a solução da crise pela
piente da realidade política. Sua realidade política é, antes, uma realidade filosófic i sociedade norte-americana vem passando em nossos dias - crise que con-
que se assemelha a um ou outro estado mítico de natureza. Os liberais filosóficos pa II, ;egundo eles, na destruição dos vínculos sociais devido à promoção liberal de
recem ingênuos aos críticos que adotam uma perspectiva de extração mais socioló uIitdtios egocêntricos (que só sabem cuidar de suas preocupações imediatas e re-
gica, e que parecem ver tanto nossas intuições contemporâneas e nossas instituiçõe, ii 1 i ii as obrigações que interpõem obstáculos a sua liberdade) - na revitalização
sociais como resultado de um complexo conjunto de processos históricos, político!, 1 tradição de republicanismo cívico. Enquanto os neoconservadores vêem na
e sociológicos. Em última análise, a filosofia voltada para o direito é chamada a de lii democrática a origem das dificuldades da democracia liberal - em outras pa-
frontar-se com outro problema sem resposta: os direitos humanos e os supostos "di 1: 1 , no big government -, os "comunitaristas" localizam o verdadeiro problema
reitos naturais" não serão naturais somente na medida em que usamos a palavra "na II um desaparecimento da virtude cívica e a negação da necessidade de a popu-
tural" para descrever os processos sociais que permitiram que os direitos fossem cria L 1 identificar-se com uma comunidade política que reconheça que a cidadania
dos e deitassem raízes nas estruturas sociais? Os direitos são socialmente criado , , unplica apenas direitos, mas também deveres e interdependência social.
e não descobertos na história, como se, de algum modo, existissem em alguma () predomínio dos direitos sobre a participação coletiva também é enfatizado
fera atemporal (de essências naturais platônicas); eles foram criados na história, 1 'rocessos recentes de privatização crescente da vida social e pelo desapareci-
sim como o indivíduo`. 11H11) do espaço público; para os comunitaristas, isso só pode ser remediado pela
'1 oração da participação política. A seus olhos, a ilusão liberal de que a harmo-
1 lede surgir do livre jogo dos interesses privados, e a sociedade moderna não
As narrativas libertárias evitam o político e ignoram as alternativas li' 1 precisa da virtude cívica, mostrou-se finalmente perigosa; questiona a própria
das verdadeiras tradições de nossas sociedades i'ncia do processo democrático, bem como o significado da sociedade. Disso
II II anrõe-se a necessidade de uma cultura política que se reconecte à tradição de
A interpretação libertária da origem dos Estados Unidos como uma legitimaç
1 1111: i nismo cívico e recupere a dignidade da política.
da defesa lockiana racionalista do individualismo e dos direitos naturais à proprie 1
de tem sido questionada por muitos estudos recentes que identificam uma forte t
1 letoriadores como Bailyn (1967) e Wood (1969) mostraram que a revolução norte-americana ha-
1 fundamente influenciada pela cultura do humanismo cívico neo-harringtoniano. A análise cio
30. Como argumenta Charles Taylor (1985: 309) a propósito de qualquer teoria que assuma o poni
vista atomístico do indivíduo isolado como sua unidade básica: "O erro básico do atomismo, em todi juifletos do período revolucionário concentra-se em parte no lugar central da idéia de "corrilIo,;
suas formas, está em sua incapacidade de levar em conta em que medida o indivíduo livre, com seus objc Li . 1 )Iít1ca dos patriotas norte-americanos. A concepção clássica de política, na qual os in 1 •i
-1,m1 1 iv1lmente da república, só mais tarde foi substituída por um novo paradigma de deronli, ii
e suas aspirações pessoais, cujas justas recompensas tenta proteger, só tema si próprio enquanto possib]I
lIVL. Na análise de GordonWood (1969), o fim da política clássica chegou coma oflS1iIII1,0'
de num certo tipo de civilização; está também no fato de que foi preciso um longo desenvolvimento de
ii não se considerava mais que as pessoas eram ligadas por uma identidal' 1'
tas práticas e instituições, do estado de direito, das regras de igual respeito, das práticas de deliberação cor ii
da associação comum, do desenvolvimento cultural, e assim por diante, para que se chegasse a produzir ';cm que formavam "um aglomerado de indivíduos hostis, agrupadosemprold
divíduo moderno." II nsLrução de uma sociedade".
486 Filosofia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 487
V. EXEMPLOS DA CRÍTICA COMUNITÁRIA ínwlsiana do sujeito sem inserções, definido antes dos fins que escolhe. Sandel
DAS TEORIAS LIBERAIS DE JUSTIÇA32 111 rma que a teoria de Rawls tem uma contradição interna: "Não podemos ser pes-
IS para as quais a justiça é fundamental e também pessoas para as quais o princí-
de diferença é um princípio de justiça."
A ANÁLISE CR!TICA DE MICHAEL SANDEL A análise de Sandel é dirigida ao texto original da Teoria da justiça, em que Rawls
: recia estar à procura de algum ponto de referência absolutamente seguro; em ou-
Michael Sandel (1982, Liberalism and the Limits ofJustice) afirma que Rawls pro lu 9 palavras, de que sua posição original fosse inatacável do ponto de vista racional.
põe um tratamento inconsistente do eu. Embora Rawis admita a intersubjetivida J'sse caso, Sandel parece estar correto ao argumentar que Rawls não foi capaz de
de do eu, ele carece da concepção de um eu racional e unificado que fundamente su 1 5lIantir que sua teoria fosse racionalmente segura; mas isso não quer dizer que de-
tese da prioridade do direito sobre o bem. Além disso, o liberalismo deontológico d mos negar que a teoria de Rawls seja racionalmente atraente, nem as políticas li-
Rawls requer uma concepção de justiça que não pressuponha nenhuma concepçâ mis que se acham por trás dela33. Talvez Sandel esteja exortando o liberalismo a per-
particular do bem, para servir de estrutura no interior da qual diferentes concepçõ( 1 'r sua fragilidade sociológica e a não perder de vista tanto o fato de sua criação his-
do bem se tornem possíveis. O primado da justiça é ao mesmo tempo uma priorida- II ica quanto a necessidade de lutar por seu aperfeiçoamento".
de moral e uma forma privilegiada de justificação. O justo é visto como anterior a
bem não só porque suas exigências têm precedência natural, mas também porqu
seus princípios são produzidos de modo não ~conseqüente, como se racionalment CHARLES TAYLOR E A ACUSAÇÃO DO ATOMISMO
derivados das condições da posição original. Contudo, para que realmente admita
mos que podemos aceitar o resultado, isto é, os princípios de justiça derivados das Rira Charles Taylor (1985: vol. 2, cap. 7), a concepção liberal do sujeito é "atomis-
estimativas da posição original, é necessário aceitar que o sujeito (o eu racional qu 1" porque aflui ta a natureza auto-suficiente do indivíduo. Em contraste com a con-
toma decisões) existe independentemente de suas intenções e seus fins. Rawls exi 'pção aristotélica do homem como animal essencialmente político, que só pode
ge a aceitação de um sujeito que possa ter uma identidade definida antes dos valo Ilizar sua natureza humana no seio de uma sociedade, a concepção liberal empo-
res que ele possa escolher. Na verdade, o que define tal sujeito é a capacidade de es tce a idéia que fazemos de nós mesmos e ajuda na destruição da vida pública atra-
colha, não as escolhas feitas. Esse sujeito nunca pode ter fins que sejam constitutivc1 «t do desenvolvimento do individualismo burocrático. Segundo Taylor, é só por meio
de sua identidade, e a ele se nega a possibilidade de participação numa comunidad participação numa comunidade de linguagem e discurso mútuos sobre o justo e
na qual o que está em jogo é a definição mesma de quem ele é. 1 ijusto, o bem e o mal, que se pode desenvolver uma racionalidade coerente capaz
Segundo Sandel, na problemática de Rawls um tipo "constitutivo" ou express permitir que o homem atue como sujeito moral capaz de descobrir o bem; por-
vo de uma comunidade como essa é impensável; mas isso significa que Rawls está li
mitado a uma ideologia da "comunidade" enquanto cooperação entre indivíduo:
cujos interesses já são conhecidos, e que se unem a fim de defendê-los e fomenté 33. Sandel quer passar da demonstração de uma contradição interna na teoria de Rawls - dada a inter-
los. Porém, enquanto essa livre concepção de um sujeito incapaz de engajamento: ação racional mais forte - para a conclusão de que devemos então aceitar a superioridade de uma política
1 bem comum sobre uma política de defesa dos direitos. O fato de que a argumentação de Rawis apresenta
constitutivos e expressivos parece, dentro desse contexto, necessária para que o jus
tradições internas, ou antinomias, não implica que seu objetivo geral deva ser rejeitado.
to tenha prioridade sobre o bem, ainda assim parece estar em contradição com o 34. Em seu último parágrafo, Sandel (1982: 183) afirma que a justiça liberal é necessária a uma sociedade
princípios de justiça que Rawls procura justificar. Uma vez que princípio de díferen 'estranhos, às vezes benevolentes" que "não podem se conhecer uns aos outros, ou os nossos objetivos,
ça tem a natureza de um princípio de participação, pressupõe ao mesmo tempo n t'mente bem para governar apenas com base no bem comum". O objetivo fundamental consiste em
existência de um vínculo moral entre aqueles que vão distribuir os bens sociais, lI H:Iftu1ar as condições da existência social de modo que a justiça liberal seja substituída pela comunidade,
E rma o agente humano num artigo de fé, e não num objeto de atenção e preocupação contínuas, mais
1v missa política do que sua mais precária realização. Isso faz com que se perca o páthos da política, bem
32 Para uma análise muito mais abrangente, ver Stephen Mulhali &r Adam Smith (1992,2? ed., 1995) io suas mais inspiradoras possibilidades. Negligencia o risco de que, quando a política vai mal, o resu 1
Liberais & Communitarians - fundamentalmente," um livro sobre Rawls e seus críticos que aborda interp ii não apenas a decepção, como também o desvio. E se esquece da possibilidade de que, quando a poJ ii.
tações antagônicas da justiça. em, podemos experimentar um bem comum que somos incapazes de obter sozinhos.
488 Filosofia do direito
Liberalismo e a idéia dá sôciedadé justa na modernidade tardia 489
tanto, não pode haver uma prioridade do justo sobre o bem. Referindo-se particul 1 1 ejo subjetivo. Isso ocorreu, em parte, porque as teorias modernas só conse-
mente a Nozick, ele mostra o absurdo de se partir da prioridade dos direitos natur conceber a sociedade com se esta fosse formada por indivíduos cujos inte-
'e
com a finalidade de inferir a inteireza db contexto social: Nozick "não admite i 1 11, - ão definidos antes, e independentemente, da construção de qualquer vínculo
a afirmação dos direitos em si implica o reconhecimento de uma obrigação de pari lI
1 1 ou social entre eles. Inversamente, os gregos antigos enfatizavam muito a no-
pação" (1985: vol. 2,200). Com efeito, esse indivíduo moderno, com seus direitos, é i
II virtude e o caráter da pessoa, mas a virtude só faz sentido no contexto de
sultado de um longo e complexo desenvolvimento histórico, e é somente num cerh
comunidade cujo vínculo original é um entendimento comum tanto do bem
tipo de sociedade que se torna possível a existência de tal indivíduo livre, capaz
1 1 nem quanto do bem da comunidade, e onde os indivíduos reconhecem seus
escolher seus próprios objetivos. Para Taylor, precisamos compreender nossa existí'n
lia 1 Hses fundamentais com referência a esses bens. Contudo, a tradição filosófi-
cia comunitária, porque a essência do problema do ser humano não é a questão
llclinante da modernidade - o liberalismo — rejeita todas as idéias de bem co-
sobrevivência material, "desejo-satisfação, e liberdade e dor", mas sim a luta por 1,)1
1111 (iue não sejam a mera agregação dos desejos dos indivíduos que se imagina
nar-se um ser humano desenvolvido em sua plenitude; algo que nossas palavras 1
ii i luírem a (não-)sociedade. Esse individualismo - sintetizado pela subjetivi-
vez não consigam articular plenamente, mas que nossos sonhos pressagiam (íbíI,
II adical de Nietzsche - deve ser visto como a fonte do niilismo que lentamen-
201-2). De novo, a acusação central à filosofia liberal - exemplificada por Nozick
'um destruindo nossas sociedades.
é de ignorância da verdadeira história e da realização social, o hábito de tratar comi
11-1 After Virtue, Maclntyre (1984) identifica as virtudes por alusão a seu papel
natural aquilo que é, na verdade, uma tênue criação social-humana e, conseqüente
áticas, e não ao método escolástico histórico que procurava a correspondên-
mente, enfraquecer o imperativo político de participar da criação da modernidade:
ii tre o ato e os requisitos substantivos da natureza dos seres humanos. Ele tenta
à ética aristotélica que tinha por base a virtude, mas sem aceitar a "biologia
Devemos nossa identidade de homens livres a nossa civilização ( ... ). O ponto crucial
é este: uma vez que o indivíduo livre só pode manter sua identidade dentro de uma so Íísica" de Aristóteles nem concordar com nenhuma teoria substantiva da natu-
ciedade/cultura de algum tipo, ele tem de preocupar-se com a forma dessa sociedade/cul humana (ontologia). Não aceita nem recusa a filosofia aristotélica da natureza.
tura como um todo. Ele não pode ( ... ) preocupar-se exclusivamente com suas escolha, vez disso, define a virtude de maneira relativamente formal:
individuais e com as associações formadas a partir de tal escolha, em detrimento da ma
triz em que tais escolhas podem ser abertas ou fechadas, ricas ou pobres. Para ele, é mi Uma virtude é uma qualidade humana adquirida cuja posse e exercício tendem a
portante que certas atividades e instituições floresçam na sociedade. Ele deve inclusivi' mirnitir que alcancemos aqueles bens que são intrínsecos às práticas, e cuja falta real-
saber qual é o padrão moral do conjunto da sociedade ( ... ), porque a liberdade e a divci mente oimpede de obter tais bens (1984: 193-4).
sidade individuais só podem florescer numa sociedade em que haja um reconhecime 11
to geral de seu valor (ibid.: 207). Além disso, ele vê as práticas como fenômenos relativamente dinâmicos que não
ti o objetivos fixos para todas as ocasiões. As práticas são mantidas por atividades
w tivamente específicas (metodologias), mas os objetivos buscados por essas ati-
ALASDAIR MACINTYRE E A TENTATIVA DE REDESCOBRIR A VIRTUDE ledes mudam ao longo da história, como podem também mudar os critérios para
avaliar a qualidade da prática. Tanto as aptidões técnicas quanto os contextos
Para Alasdair Maclntyre (Afler Virtue [Depois da virtude], 1981, 2 ed. 1984); Whv
io,1itucionais podem moldar a historicidade das práticas. Mas isso quer dizer que p0-
se Justice, Whích Ratíonality? [Justiça de quem? Qual racionalidade?], 1988), tanto mos ser virtuosos simplesmente ao nos tornarmos bons conforme o determinam
Rawls quanto Nozick ignoram o que deveria ser fundamental para a justiça: a idéia exigências intrínsecas de qualquer prática? Maclntyre afirma que antes de poder-
de virtude. Maclntyre argumenta que a modernidade deslocou a linguagem da mo
1111 s chamar uma atividade de virtuosa ela deve também estar de acordo com "um
ralidade; na verdade, estamos cercados por discursos de moralidade, mas todo sen
OS que transcende os bens limitados das práticas, constituindo o bem de toda uma
so de coerência esvaiu-se na medida em que a busca de um quadro mais amplo foi a humana". Precisamos de um entendimento geral da condição humana, uma vez
abandonado em favor da análise. Maclntyre opõe a modernidade, sob o disfarce de e, na medida em que as excelências interiores às práticas são consideradas isola-
individualismo e subjetividade como a mostrou Nietzsche, a sua releitura da tra
II mente, uma descrição das virtudes poderia, necessariamente, ser ou socialmente
dição clássica de Aristóteles. Para ele, a linguagem moral só faz sentido no contexto
II titrária ou interior a uma prática que consideramos abominável.
de uma descrição sistemática da totalidade das preocupações humanas. Nossa mo-
O problema da análise comunitária de Maclntyre é que ela parece ser .cfrm lar.
ralidade moderna tornou-se mera emotividade, nada além de expressões de pre
\; qualidades morais são definidas por sua capacidade de servir às práticas;. es 1H, i
ferências subjetivas. As teorias morais tornaram-se apologias do individualismo e
ia vez, servem aos objetivos institucionais, que por sua vez podem servir de. uiudo
490 Filosofia do direito Liberalismo e a idéida sociedade justa na modernidade tardia 491.
arbitrário às necessidades de uma sociedade. Precisamos de um padrão distinto (1, de um fim unificado. Qual é o exato "bem" que sustenta a pesquisa que nos
organizações sociais da comunidade que permita avaliara qualidade das necess 1. iiii te julgar a qualidade de Hitler ou de Stalin, por exemplo? Não podemos acei-
des. Haverá algum modo de julgar o valor específico de práticas diferentes? MacIo 1 ii 1 e a pesquisa conclua por termos de uma constância com atributos de virtude
re recorre à idéia de tradições. As virtudes devem ser integradas aos padrões g ii I ni formidade de propósitos, uma vez que, na história, todos os tipos de pes-
de uma tradição informada pela busca do bem e do melhor. Portanto, a virtude i jue geralmente consideramos maus revelam essa qualidade. Maclntyre fun-
é apenas um problema para o indivíduo; a concepção de virtude requer uma trad,. 1.111) enta seus conceitos na idéia de tradição, mas não existe um padrão seguro para
que tenha acumulado alguma experiência sobre os bens intrínsecos às práticas. valiar se os recursos da tradição levam a um verdadeiro conhecimento dos bens
Que tipos de disposições e atividades humanas e, correlativamente, de insti 1 11 1 l\'nntes. Enquanto Maclntyre pergunta Justiça de quem? Qual racionalidade?, Ge-
ções e aptidões, condizem com a natureza humana? Para Maclntyre, são aquelas (l i i, ii lii pergunta:
condizem com o télos ou com a busca, e que são compatíveis com a tradição das
soas que fazem tal indagação. Nós nos poupamos dos horrores da indeterminí Qual comunidade, porém? A comunidade perfeita de Aristóteles exigia a escraviza-
(do de agricultores e mecânicos; a comunidade nazista exigia o assassinato dos judeus e
moral e do niilismo ao nos posicionarmos dentro de uma tradição. A tradição cl)]
dc outros; a comunidade africâner contemporânea exige a subjugação, tanto econômi-
fere um sentido de participação existencial e permite que levemos uma vida mo ] ,
de julgar entre tradições que apresentam análises substantivas opostas das lIlrico e cultural dos argumentos sobre esses princípios—, fica-se com a impres-
virtuosas. Onde Maclntyre pode encontrar um lugar seguro para situar-se se e!» i te que o vencedor ali é Nietzsche, não Aristóteles. No final do texto, tudo que
jeita a metafísica da natureza que sustentava Aristóteles? Uma vez que avaliar ,1 \L !l i Hntyre pode nos exortar a fazer é buscar refúgio nas comunidades enquanto a
tude por seu papel nas práticas só nos dá idéias da coerência interna, Maclntyre 1 km social desmorona ao nosso redor — uma antevisão de Blade Runner?
passar para a segunda etapa da idéia que propõe, isto é, para a idéia de télos ou 1 LI
ca da humanidade, mas, novamente, poderíamos postular qualquer número de 1111
O DESLOCAMENTO COMUNITÁRIO DO DEBATE SOBRE
A RESPECTIVA PRIORIDADE DO JUSTO E DO BEM
35. Gewirth (1985) anseia por identificar-se com uma tradição mais deontológica do que ari»»»
que procura criar um direito dos direitos individuais a serem publicamente reconhecidos e utilizados Como observou Sandel, para liberais de extração kantiana como Rawis a r
na política e jurídica. II te do justo sobre o bem significa não somente que não se podem sacrifli
36. "Quando o critério para uma qualidade, ser uma virtude, não inclui a exigência de que a viri ii 1
1 tos individuais em nome do bem geral, mas também que os princípios d v ti
fita ou se ajuste às regras morais, não há garantia de que a virtude alegada seja moralmente certa »'
da" (Gewirth, 1985: 752). iiio podem ser extraídos de uma concepção específica do bem-viver. Esse ~Í W11
492 Filosõfia do direito Liberalismo e a idéia da sociedade justa na modernidade tardia 493
princípio cardinal do liberalismo segundo o qual não pode haver uma única conci 'mii questão privada para os liberais, e cada pessoa deve ser capaz de organizar sua
ção de eudaemonia, de felicidade, que se possa impor a todos, mas que cada pes Ii como acha melhor. Trata-se de uma valiosa concepção dos aspectos do bem-es-
deve ter a possibilidade de descobrir a felicidade do modo como a entende, p a fraqueza do liberalismo nessa área decorre de sua aparente posição de que a
estabelecer para si mesma seus próprios objetivos e tentar concretizá-los como ii ortância dos direitos e os indiscutíveis princípios de justiça não devem ser usa-
lhe aprouver. para privilegiar uma concepção específica de bem-estar. Todavia, é evidente que
Os comunitaristas afirmam que não se pode definir o direito antes do bem, um,; prioridade do justo sobre o bem só é possível em certo tipo de sociedade onde
vez que é só por meio de nossa participação numa comunidade que define o belo tem determinadas instituições, e não pode haver uma prioridade absoluta do jus-
que podemos ter uma concepção do que é justo e chegar a uma concepção de jii ;obre o bem, uma vez que - como afirmam sensatamente os comunitaristas - é
tiça. Fora da comunidade o bem e o justo não existem. Esse é um argumento extti' 'ente dentro de uma comunidade específica, que se define pelo bem que postu-
mamente convincente que parece incontestável a partir de qualquer perspectiva (j í li lue pode existir um indivíduo com seus direitos. Aos liberais parece necessário
não seja aquela que conserva a idéia de um significante transcendental (um Deus, ,,cificar que a busca de justiça é em parte uma questão de trabalhar ativamente
uma metafísica da essência absoluta da humanidade). Contudo, aceitar esse argi; defesa de imagens específicas de comunidades políticas e de defendê-las inte-
mento não implica que devamos rejeitar a prioridade da justiça como virtude pri ii iiialmente. Como já se argumentou aqui (ver conclusão de nossa discussão de
cipal das instituições sociais, assim como a defesa dos direitos individuais, ou rei lii; Stuart Mill), ainda que um regime democrático liberal deva ser agnóstico em
mar uma política baseada numa ordem moral comum. Nossa base pode ser aii 'iiiios de moralidade pessoal e estimular o pluralismo e a tolerância, isso não equi-
pragmática, ou política, e é exatamente para essa posição que Rawls tentou mui ii a ser agnóstico relativamente ao bem político. Isso não apenas afirma os princí-
políticos de liberdade e igualdade; trata-se também de uma argumentação em
lIsa de uma certa forma de sobrevivência existencial. E somente dentro de um re-
PODERÁ RAWLS RESPONDER À CRÍTICA COMUNITÁRIA? ,yiiie que valoriza os direitos, a diversidade e a realização pessoal que se torna pos-
1 priorizar os direitos no que diz respeito às diferentes concepções da virtude
Rawls não é um alvo tão fácil quanto acreditam os comunitaristas. Rawls ( ii iiFa. A justiça não é uma concepção filosófica, mas sim um objetivo existencial.
1993) desenvolveu as bases de sua posição de modo bastante substancial desde a 0-0
blicação de Uma teoria da justiça. Originalmente, seu neokantismo implicava qu
estava à procura de um algoritmo para a escolha racional, um ponto arquime cli
que assegurasse o caráter universal de sua teoria da eqüidade. Seu problema i
sistia em determinar quais princípios de justiça seriam escolhidos por pessoas v
e racionais a fim de definir os termos fundamentais de sua associação. Posterior'
te, declarou que queria apenas elaborar uma concepção de justiça para as soc i
des democráticas modernas a partir das intuições comuns dos membros dessi
ciedades37. Seu objetivo era articular e explicitar as idéias e os princípios latentv';
nosso senso comum; desse modo, ele não alegaria ter formulado uma concepç
justiça historicamente verdadeira; antes, proporia os princípios que eram válido
nós como uma função de nossa história, nossas tradições e aspirações, e o
como concebemos nossa identidade.
Portanto, precisamos de melhores métodos para articular as conexões ei i
pensamento jurídico relativo à justiça e as conseqüências políticas. Rawls desej
fender o pluralismo liberal que requer uma concepção de bem-estar e um projH
vida particular que não sejam impostos aos indivíduos. A moralidade indivi 1
W. Portanto, se por um lado Sandel pode, por exemplo, criticar a formulação rawlsi,,n,, ".j'. il . 1
37. Fra "introduzir uma divergência fundamental a propósito da justa formadas instituições s princípios políticos liberais, por outro ele estimula perigosas conseqüências ,' .1111 111.t
contexto de uma sociedade democrática, nas condições modernas" ("O construtivismo kantiano vmgc o abandono do pluralismo liberal e de uma política baseada nos direitos, 11111,1 VI 1H
1 xa Lamente o que caracteriza um regime democrático liberal e permite a existói i,
moral", Journal of Phílosophy, vol. 77, n? 9, setembro de 1985: 225).
apítulo 15
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto:
u o direito na ética interpretativa da filosofia do direito liberal
O cidadão tem compromisso com o direito, não com nenhuma concepção particular
que alguém tenha da natureza do direito (Dworkin, Taking Rights Seriously [Levando os
direitos a sério], 1977: 214).
[Somente] uma comunidade de princípios fiel a essa promessa pode reivindicar a
autoridade de urna verdadeira comunidade associativa, podendo, portanto, reivindicar a au-
toridade moral - suas decisões coletivas são questões de obrigação, não apenas de p0-
der (Dworkin, Law's Empíre [O império do direito], 1986: 214).
Os tribunais são as capitais do império do direito, e os juízes são seus príncipes
(ibid.: 273).
IN IRODUÇÃO
1. I)workin substituiu Hart como titular de filosofia do direito em Oxford, que ele combina com compro-
acadêmicos nos Estados Unidos. Suas idéias são objeto de críticas extremamente favoráveis (ver, por
Cuest, 1992) e desfavoráveis. Ao comentar seus primeiros escritos, Hart (1977) descreveu Dworkin
im "nobre sonhador", um tema retomado por muitos comentaristas subseqüentes. Fitzpatrick (1992)
de "criadora de mitos" a estratégia dworkiniana de conferir unidade sistemática ao sistema e à prática ju -
"mito" é uma forma que unifica sem (aparentemente) totalizar, urna forma que mantém a unidade em
icia aparente, e a presença na ausência aparente". As raízes intelectuais de Dworkin encontram-se
im , lição política e jurídica do liberalismo norte-americano, e sua retórica é wn estímulo a se dar continuida-
'-na tradição em face das fortes tendências conservadoras que surgiram nos Estados Unidos a partir da
ti de 1970, bem como a se evitaras tentações do radicalismo. Com coerência, sua obra tem se ocupado
rezada interpretação judicial do direito e o papel do judiciário, e ele escreve expressamente contra a
't;cm cética, preferindo criar uma auto-imagem progressista para o judiciário - uma postura que consis-
tr forma a sua inevitável contribuição humana ao desenvolvimento jurídico e que está ligada a uma teo-
nrslidde política que delimita o desenvolvimento do direito tanto no nível social quanto no individual.
1 vi n rim, o sistema jurídico é urna vasta estrutura intelectual e prática - não tem, necessariamente, coe-
pode conter muitos princípios conflitantes e implicações de princípios, de regras, princípios e di-
é uma expressão dos valores políticos que predominam na sociedade. Os princípios jurídicos ex-
icípios políticos e morais; assim, um juiz, ao extrair os princípios envolvidos numa linha de pre-
496 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 497
desenvolve uma metodologia interpretativa dotada de um programa político claro DIGRESSÃO: O DESTINO DA SOCIEDADE TRANSPARENTE?
a defesa das idéias de eqüidade, do processo legal justo e dos direitos individu
como aspectos fundamentais da legalidade. A modernidade foi fundada pelo Iluminismo; um dos objetivos do Iluminismo
O projeto de Dworkin é em parte defensivo - uma tentativa de revitalizar a istia em permitir que os seres humanos pudessem ver as coisas como elas real-
galidade liberal em face dos desafios que se abateram sobre as sociedades ocideniu te são. Alcançar um estado de transparência permite que confiemos em nossas
partir da década de 1970 - e em parte inspirador - uma tentativa de oferecer u;n u-;Luções sociais; tornamo-nos plenamente conscientes.
"moralidade de aspiração". A natureza defensiva decorre do fato de Dworkin havi A postura epistemológica dominante na filosofia jurídica da modernidade tem
escrito, a partir dos anos 70, no contexto de uma crise de confiança que assolou li) o positivismo. Enquanto epistemologia, o positivismo enfatizava um exame crí-
mundo ocidental à medida que suas metanarrativas e suas instituições passaram o ou uma análise "livre de valores"; pressupunha um objeto de análise indepen-
ser questionadas. Nos Estados Unidos, a guerra doVietnã e o caso Watergate leva 1 e que uma metodologia apropriada poderia revelar.
ram muitas pessoas a perder a confiança na conduta dos governos; a má-fé e hip Num sentido forte, o positivismo jurídico é uma filosofia de transparência e con-
crisia pareciam estar, de modo ostensivamente claro, acometendo as "democracia O social. Quer na tentativa de fazer do direito uma ciência pura (Kelsen), quer nos
-11 OS das versões de Austin e Hart, os adeptos do positivismo jurídico enfatizavam
baseadas em princípios`. Por inúmeras razões, a política tornou-se populista e o'
governos da Inglaterra e dos Estados Unidos tornaram-se conservadores, enquan distinção entre identificar a natureza do direito (às vezes especificamente defi-
to na academia as tendências "progressistas" se dividiram. A teoria jurídica 0a , como na cuidadosa demarcação austiniana do campo de sua análise como "di-
mais podia ser pensada simplesmente como "filosofia jurídica", e várias correu li positivo", mas com freqüência pensado simplesmente como direito) e a tarefa
1i ilira de fazer avaliações morais do direito. Trata-se de uma distinção entre descri-
tes de pensamento implicavam que o direito devia ser colocado no contexto social
para ser devidamente compreendido, ou que a política subjacente do direito dcvii
II - vista como uma tarefa fácil - e avaliação - vista como uma tarefa mais difícil,
tomar-se visível; o Movimento de Direito e Economia parecia estar propondo qi 'e li II tanto pode ser subjetiva quanto exigir que cheguemos a um consenso sobre um
as idéias tradicionais de felicidade, eqüidade e justiça fossem substituídas por cá]ci; cípio dominante de justiça (como no caso da utilidade ou de esquemas como o
Ii 1 corja da justiça de Rawls).
los de maximização da riqueza; os Estudos Jurídicos Críticos vinham substituindo
Resumindo a narrativa deste livro, os autores do início da modernidade - por
a tradição do realismo jurídico, e o feminismo começava a fazer ouvir sua voz. A idtii
riplo, Hegel, Marx, Bentham ou John Austin - acreditavam na possibilidade de
liberal do estado de direito precisava de maior clareza e reformulação para mali
IIi , o conhecimento revelasse ao homem a verdade sobre a condição humana. Na
sua credibilidade intelectual. Um problema metodológico central remetia à qucHi lese ética de John Austin, economia política, direito positivo e crença no progres-
da objetividade: como a autoridade da filosofia jurídica podia ser (r-)estabeleL 1 cial estavam interligados. Esse sonho de transparência acha-se agora compro-
diante do declínio do objetivismo que o positivismo parecera oferecer? Se a II i do. O impulso para o conhecimento criou uma multiplicidade de perspectivas,
sofia jurídica de Hart nos levara inquestionavelmente a um projeto empírico I i ii 1 legações de conhecimento, cada qual com seus pressupostos e suas técnicas de
ele não pôde perseguir, de que modo se poderia criar uma metodologia que pu II rvação. A proliferação de imagens da realidade implica que perdemos, pelo me-
se defender a idéia do direito como um sistema sem cair no relativismo cone 1 1 u cm parte, nosso "sentido de realidade". A resposta do positivismo maduro - H.
que, por exemplo, fora aceito por Kelsen, ou sobreviver ao desafio cético colo 1 A Hart - consistiu em recuar para a análise da linguagem comum e criar uma his-
pelos Estudos Jurídicos Críticos? A filosofia jurídica liberal poderia ser reformul A 1 li i social mítica (que ele chama de "analítica") a fim de propor uma discussão de
ou só manteria sua coerência se simplesmente ignorasse todos os questiona 1 i i , i los (na época) conjuntos contemporâneos de uso lingüístico cotidiano a propó-
tos? Antes de examinar o projeto de Dworkin, convém dar ao leitor uma idéin ia obrigação normativa. Assim, o positivismo jurídico precisou desprender-se da
problemas e das preocupações envolvidos. li II use social realista para manter sua coerência (interna); pressupunha a nature-
Ficou evidente que a ciência social não é uma questão de mera descrição; é pi i acional; a administração se concretizava (pelo menos assim se pressupunha)
fundamente interpretativa. Talvez a mudança mais fundamental nas metodo1ogii' 1 meio da razão e do conhecimento, e não da escolha política sem orientação se~
das ciências sociais a partir da década de 1960 tenha sido a conscientização de tp o cci, c O positivismo jurídico parecia fazer com que o instrumento (o direito positivo)
a interpretação - a hermenêutica - é inevitável. O mundo não nos revela suas esti mstrasse claro e preciso; se o conhecimento é reflexo de uma entidade objetiva,
turas, sua natureza, simplesmente para que nossas teorias as reproduzam ou "repo cl se então de um reflexo que pode ser verdadeiro ou falso, e a afirmação de que
sentem"; a verdade de nossas teorias não era um reflexo das entidades objetivas é "o direito" pode ser verdadeira ou falsa, motivo pelo qual aquele que a faz
realidade do mundo', mas sim o resultado de um ato interativo de nossas faculd.i lõrá estar reivindicando para alguma coisa o status de direito quando, na verda-
des interpretativas enquanto nos dedicávamos à atividade prática de viver no m u lio que tem diante de si é não-direito.
do e pertencer ao mundo. A interpretação tornou-se a nova metodologia da modrii A moderna hermenêutica rejeita a metafísica de um observador externo inde-
nidade tardia (um avanço profundamente influenciado pela obra de Hans-Gri o 1 cc(!nte que procura a objetividade (tão fundamental à busca da verdade desde o
Gadamer, 1979); a interpretação ocorre dentro de uma comunidade - uma tradc: cdrc da caverna de Platão), em favor da metafísica de um cientista comprometido
- e se move num processo circular de procurar compreender o todo em termos li' pertence a uma tradição e trabalha com os recursos intelectuais dessa tradição.
suas partes, e as partes em termos de sua contribuição ao todo'. é o status da verdade na metodologia hermenêutica? Não é a reivindicação de
O que acontece com a questão da objetividade? A interpretação coloca flO\ i sparência que se pretende que o observador externo traga de volta aos habitan-
mente a questão do posicionamento moral e político do intérprete. O positivism ia caverna onde há vida sem reflexão, mas sim a articulação - ou interpretação
ou o paradigma naturalista - podia pressupor o caráter excedente das estruturas ri 1 c ação e do significado intrínsecos a uma tradição à qual pertencem tal ação e tal
rais para a ciência jurídica pura quando a prática da ciência do direito era mais 1111 ,iiíicado.
questão de despojar-se da moralidade a fim de alcançar a objetividade. As iro i)
rezas não devem ser admitidas ao processo de visualização, pois caso contráh o
reflexão se vê desfigurada. Qual era o lugar da política no espaço positivamente ori QUAL É, PARA DWORKIN, O OBJETIVO DE SUA METODOLOGIA
tado da modernidade organizada? Faziam-na ''parecer a mera administração do si INTERPRETATIVA DA FILOSOFIA DO DIREITO? TORNAR COERENTE
JM CONJUNTO DE PRÁTICAS INTENCIONAIS OU CRIAR UMA NOVA
cial" (Wagner, 1994: 191). O positivismo parecia harmonizar-se com as idéias de ne METANARBATIVA PARA OS TEMPOS PÓS-MODERNOS?
tralidade, objetividade e certeza que a ideologia do estado de direito exigia, 1ww
como com as idéias de um instrumento racional de governo que a concepção de , \ guinada interpretativa talvez pareça convidar ao niilismo, a que se responda,
zão legislativa requeria. Para esta última, o direito era uma técnica de administic, o. (irmações do escritor, que "afinal, toda a sua argumentação consiste apenas em
para os centros de poder de um corpo social cujos saberes em desenvolvimento s interpretação, e por esse motivo sinto-me à vontade para apresentar a minha in-
zem visíveis a si próprios ou, em outras palavras, fazia do exercício do poder um lil rotação também, e você não pode afirmar que a sua é melhor do que a minha!";
que isso significa que os conceitos de neutralidade, objetividade, universalida-
3. Para uma crítica extremamente influente da teoria reflexiva ou especular da ciência social coe
(, imparcialidade são redundantes, ou que simplesmente obscurecem o problema
numa descrição do mundo objetivo, ver Richard Rorty (1979), Phiiosopiy and lhe Mirror ofNature. co clamental, isto é, que o conhecimento é uma questão de poder e política?
4. A hennenêutica é uma filosofia prática; é uma filosofia diirigida por uma inclinação para a éti O outro lado do niilismo (nietzschianismo) é o desencanto (Weber). Como já se
horizonte é o da ética considerada como etos, costume, cultura comum a uma época e sociedade, aqui! h.uliu aqui (capítulo 11), o desencanto ocorre quando o homem se dá conta de
em última instància, "desfigura" o cientificismo e constitui redução expressa da verdade a afirmações
liw o mundo não tem um "sentido objetivo" e compreende que lhe compete criar
mentalmente confirmadas através da metodologia das ciências matemáticas e naturais (Vatimo, 1992
Vivemos interpretativamente. A interpretação entende que não podemos fugir da caverna de nossas im "objetividade para o sentido"; além disso, a interligação entre sentido e "reali-
sões cotidianas para algum lugar puro onde poderemos ver as entidades objetivas do mundo. Ao coo o " é também responsabilidade sua. O desencanto convida a dois resultados: ou
com o critério interpretativo nós situamos a verdade da ciência dentro de um horizonte histórico-riu! o mos mão da ciência e passamos a admitir que todas as afirmações de que o co-
voltado para uma missão. Mas como podemos estar convencidos da natureza da missão se rios tornu lo cimento nos traz a "verdade" são fraudulentas, e que a vida é em si mesma "ai -
t1
plenamente modernos? Isto é, se levarmos totalmente em conta a consciência de que não há objetivo
ci La" (niilismo negativo), ou aceitamos o desafio e passamos a encarar a ci ncili
inscrito na história? Estaremos, portanto, condenados ao niilismo? Ou, nos termos de uma discussT
(Wagner, 1994: cap. 11), estaremos condenados a ser egos confusos cercados por práticas incoerentes? Ia] como um projeto humano. O primeiro caminho estimula a passividado (0 i ;i
jeto de Dworkin consiste, em parte, numa metanarrativa de prática(s) jurídica(s), impondo ordem e li dência; o segundo, a responsabilidade humana. O segundo — embo
truturando sua diversidade. 101 regue essa terminologia (na verdade, ele parece negar essa interpretaç do 1
1
500 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 501
metodologia5) - é o projeto de Dworkin;, ele procura uma nova objetividade paru i participantes. Ao longo de sua obra, Dworkin substitui o positivismo pela abor-
discurso jurídico e um novo sentido para a prática jurídica. Uma prática que ele it : m interpretativa, mas parece conservar algo do legado positivista. Tem declara-
vigora com um compromisso ético particular; o liberalismo jurídico. 11,i i1 úmeras vezes que sua teoria não é apenas uma interpretação, mas que é fiel ao
Nos últimos anos, Dworkin definiu modestamente seu projeto como teoria j iterial - diz a "verdade" do direito. Que sentido podemos encontrar aí?
rídica interpretativa; em suas próprias palavras, ele a define como, em parte, unil Dworkin e um kantiano (ver discussão no capitulo 6 deste texto) Também pa-
resposta às perguntas: "Qual é a finalidade de todos esses livros que chamamos ser nietzschiano (sem que se dê conta disso) no sentido de acreditar que a força
livros didáticos de direito ou de teoria jurídica?" e "Qual é a questão à qual esses li u'gumentação jurídica e política deve ser vista como algo distinto da demonstra-
vros (isto é, de história da teoria jurídica ou da legislação) remetem?"' Para DworkiIl, de suas bases (Law's Empire, 1986:100-112)". Sua metodologia, porém - embo-
o próprio ato de interpretar (isto é, de conferir sentido a uma atividade) pressupl le como analise interpretativa moderna—, tem por base a aceitação kantiana de que
que a atividade a ser interpretada cumpre uma finalidade e tem um objetivo; não p sas praticas correntes (ou, mais corretamente, a representação dworkiruana de
demos nos engajar na interpretação sem esse pressuposto. sas práticas correntes) têm uma racionalidade inerente que sua metodologia termi-
A influência jurídica mais facilmente determinável em Dworkin é Lon FuIki, por mostrar. Como afirma Guest (1992: 1): "A teoria do direito de Dworkin é a
que anteriormente já chamara atenção para a diferença fundamental entre as ciêi ue a natureza da argumentação jurídica se encontra na melhor interpretação
cias sociais (que lidam com o comportamento humano e com as instituições huni nitial das práticas sociais existentes." A teoria de Dworkin será, então, simplesmen-
nas) e as ciências naturais - a atividade social só pode ser compreendida através 4ua interpretação e, desse modo, prescritiva? Será que todo o seu projeto consiste
sua interpretação à luz dos significados que ela tem para os participantes'. Dwork i impor sua versão do liberalismo ao campo cada vez mais diversificado da teo-
pergunta a propósito da prática jurídica em seu sentido mais amplo: "O que há ii la jurídica?
fundamental em toda essa prática? Qual é seu objetivo? De que modo deveríam Contra tal crítica, Dworkin alega estar apresentando uma "verdade" inerente ao
entender o direito se fôssemos responder à pergunta: que razões temos para ter o Ç Ii lI i.rial.,Em sua obra mais elaborada (O império do direito, 1986, a partir daqui cita-
reito? Por que o queremos, e de que modo devemos orientar e moldar nossa prâ 1 11 como ID), Dworkin afirma estar trabalhando com a concepção de direito de um
ca de forma que a ajuste a esse objetivo?"' Portanto, sua teoria interpretativa fornl nsder e se diz preocupado em manter a "fidelidade" ao material; sua interpretação
ce um propósito à atividade, mas ele o vê como se já estivesse latente nas atividadi fiel ao empreendimento do direito e não irá despojá-lo de seu significado ia-
e; ao recusar-se a discutir a natureza do direito com observadores externos, sua
%rpretação vai ignorar os comentários céticos e articular melhor a ambição do di-
S. Para eliminar possíveis equívocos quanto ao tom ou objetivo desse capítulo, Dworkin não fala de ' ôpara nós, de modo que possamos unir nossos esforços. Para o crítico, a ques-
projeto nos termos pragmáticos aqui usados; na verdade, ele parece inseguro quanto ao exato estatuto i 1 é simples: essa é a ambição do direito ou a ambição que Dworkin pretende que
"verdade" a reivindicar para seu projeto. Às vezes, reivindica uma "verdade interpretativa", embora Lambi
i é i reito tenha? Além disso, é possível imaginar que o direito tenha um objetivo
pareça reivindicar uma verdade muito racionalista, afirmando que sua teoria é "verdadeira" para com as %w
bições do direito", ou que conta a história do direito para além do direito. Em sua defesa do liberalismo jui 1 (utninante? Numa época em que a terminologia do pluralismo jurídico tornou-se lu-
dico, o projeto de Dworkin é extremamente meritório; seus argumentos de que o direito ocidental deve comum (pelo menos para os estudiosos do direito que se recusam a lidar exclu-
capaz de justificação política e crítica segue a tradição kantiana de ver a modernidade como uma época t,iii flmente com a teoria jurídica normativa), haverá algum sentido em que se pos-
que as instituições sociais devem sobreviver à análise crítica. O objetivo da criação de uma teoria jurídit (alar sobre um conjunto diversificado de práticas que abrangem o direito moder-
de uma prática com base em princípios é digno de louvor. lrém, seu isolamento metodológico, uma vez (li ií
seu projeto se afasta do diálogo e da interação interdisciplinares com outras perspectivas, e suas caracteri,,
(ver Cotterrell, The Sociology of Law, 2 ed., 1992), como se existisse uma corrente
ções simplistas de outros autores debilitam seu projeto e o levam, às vezes, ao limiar da banalidade. Sua ii lllQquívoca de idéias comuns? Uma vez mais, Nietzsche é estimulante. Sua argu-
paração entre teoria jurídica e sociologia corre o risco de tornar-se socialmente irresponsável e politicaniti méritação era simples: as instituições e práticas modernas têm histórias; não há
te ingênua. II 1a perspectiva dominante. Inversamente, a tradição kantiana implica que deve-
6. Conferência, University College London, 1995. s tratá-las como se houvesse uma racionalidade coesa subjacente. Kant - como
7.Todas as características e imagens edificantes que Dworkin nos apresenta, afirma ele, já estão "lalen
tes no direito atual".
gel (ver capítulo 8), depois dele, colocou tão sucintamente em sua afirmação de
8."Portanto, é exatamente por ser um projeto dotado de finalidade que o direito revela regularkliules /q que é real é racional" - exortou o estudioso moderno a procurar as bases ra-
estruturais que seus teóricos podem descobrir e tratar como regularidade dentro dos dados factuais. Se rlo#
se dessem conta das bases sobre as quais elaboram suas teorias, poderiam sentir-se menos inclinado a lei-
de se considerarem como cientistas que descobrem uma conformidade de padrões de natureza inaniinai Ii' 10.Essa distinção é a base da obra mais solidária a Dworkin, a de Stephen Guest (1992), que usa cons-
(Fuiler, 1969: 151). emente o critério de comparar as afirmações de Dworkin com nossas intuições morais contemporâneas
9. Conferência, University Coilege London, 1995. o direito. 0 critério de Guest é uma questão de atração intuitiva, de "adequação" a nossas sensibilidades.
502 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 503
cionais da prática cotidiana; tratar a diversidade como variações (e falhas, errl pio de vizinhança, negligência, mens rea e congêneres. A legalidade, portanto,
exceções) de um mesmo tema; e tratar o tema como racional. A estrutura raci um terreno de idéias que incorpora intuições relativas ao alcance dos direitos
do todo social será encontrada em suas estruturas operativas de reconhecimc 1 11 »i e da legítima coerção —intuições que uma estratégia válida de coerência in-
mútuo; os agentes individuais só alcançam a autoconsciência através do recor 1 li Li va precisa esclarecer e desenvolver na forma de um todo substantivo. O
cimento mútuo de cada um deles e do valor racional da prática de cada um, n 1 .0 1 sto de que existe um sentido e um objetivo dominantes para a prática pare-
isso exige padrões e mecanismos de visão por meio dos quais se pode media lii 1i!car-se quando o intérprete acredita constantemente que os participantes ou
reconhecimento. Dworkin nos oferece essa análise e essa estrutura para a obseiv E es anunciam que aspiram à unidade e à, coerência sistemáticas`.
ção da moderna legalidade. A prática do direito implica reflexões, reflexividade, elucidação teórica e crítica,
Há validade epistêmica nesse projeto: as práticas humanas são estruturas 111 liição de litígios e argumentações, a obtenção de respostas, a"descoberta do di-
tencionais que exprimem as idéias dos participantes e consistem em muitas r(- e a "discussão dos precedentes judiciais"; em suma, itens de prática interpre-
soas tentando concretizar diferentes projetos. As práticas humanas não preci» E .i são apresentados como uma atividade já submetida à reflexão, unificada e au-
de um filósofo que diga aos participantes do que elas se tratam; os agentes E ica. Assim, o projeto interpretativo passa a refletir a certeza de que poderá pro-
suas próprias interpretações. Os que estão comprometidos com a prática/projeto um verdadeiro entendimento do direito se apresentar uma descrição integrada
aqui Dworkin se diferencia de Hart ao afirmar que está basicamente falando idéias do direito. Ainda que a integração possa alterar o material originalmente
bre agentes dotados de integridade e convicção (que crêem no projeto), em ,ti ii ao pensamento como uma disposição de regras e princípios, essa alte-
sição a agentes que somente atuam por hábito ou convenção - tentam intuir não se apresenta como refração ou distorção, pois é exatamente a realização
característica central, purificar seus elementos não essenciais e desenvolver a pr Ii 1 i'áprio trabalho do direito.
ca até o limite do possível. Portanto, Dworkin pode procurar a interpretação cor
ao acreditar que está trazendo à luz um atributo e um objetivo da prática que os
ticipantes já compreendem, ainda que um tanto confusamente, e ele pode o[-, i, ,, A CRÍTICA DO POSITIVISMO JURÍDICO E A TEORIA
uma unificação teórica - uma representação holística - que já é em parte presurn í HARTIANA DO RACIOCÍNIO JURÍDICO
pelos diferentes atores engajados na prática. O direito parece justificar essa confiin
ça; ou, talvez colocando melhor as coisas, existem maneiras de interpretar o din Os textos de Dworkin se iniciam em fins dos anos 60 com sua crítica do Con-
que fornecem as bases para tal pressuposto. A ideologia do estado de direito é 'I/ de direito de Hart (1967, 1975; reproduzido em Levando os direitos a sério, 1977;
derosa, e a imagem com que Dworkin inicia seu livro mais conhecido - O império vis referências a esses artigos provêm do texto de 1977). Hart havia caracterizado
direito (ver citação no capítulo 1 deste texto) - é a do direito a nos falar; ele nos e li obra como uma resposta à velha pergunta "O que é o direito?" (1961: 1) e enfa-
ta a tratar o direito como se escrito pela comunidade personificada. A legalidad ion'a que a pergunta era uma questão que exigia uma análise dos fatos (ibid.: 245).
representada como não apenas mais um projeto humano dentre muitos outros, ni 1 )workin define a tese positivista como uma concepção de direito como "simples
como o projeto dominante, como um projeto que foi bem-sucedido; em sua retóif o-, tão de fato" (capítulo 1 de ID) e argumenta que tanto o positivismo jurídico
e estrutura, O império do direito é puro expressionismo. O direito encarna comph Iimito as teorias de direito natural estão, na verdade, em busca de uma resposta à
misso, convicção, integridade e a busca da verdade (devemos acreditar na possibi li ',unta "o que é o direito?" ao se defrontarem com um certo conjunto de fatos sim-
dade, quando não na alcançabiidade imediata, de uma resposta certa aos probleii 1; que dão uma resposta já pronta e de fácil entendimento. De maneira instigan-
jurídicos e morais), nada é irreconciliável; inerente é o conflito, não a contradição; I.)workin pergunta se essa é uma imagem adequada ou realista do direito`. Em
advogados fazem juramentos éticos de serem servos da lei, autoridades no triburi
O direito parece ser uma prática humana complexa, em grande parte constituída 1
11.Dworkin fará referência à ambição do direito e voltará a apresentar metáforas como a "Nau dos Ar-
Ias ações interpretativas dos agentes que se orientam - pelo menos "idealmente" li tas", de Hale, que permanece idêntica ao longo de transformações sucessivas, a descrição, por lorde
por meio de uma idéia de transparência, a idéia do estado de direito, ou do Império ii 1' cl d, do cornrnon law como um direito que "se purifica", e máximas do tipo "casos semelhantes devem
do Direito. n'lelhantemente tratados" e "onde cessa a razão do direito, cessa também o direito". Contra essa con-
Além disso, pelo menos em sua apresentação acadêmica, o direito não é uni çn, Charles Sampford (The Disorder of Law, 1989) argumenta que o direito não é um sistema coerente,
massa de regras e decisões desconexas, mas sim uma estrutura organizada de acor és sim um "melê legal" que só tem aparência de sistema graças à obra normativa dos filósofos do direito.
12. Críticos de Dworkin (por exemplo, Moles, 1992) assinalam que seu tratamento. das. posições ante-
do com categorias gerais como propriedade, contrato e crime, e ainda mais organi Ores é extremamente superficial e não tenta oferecer uma leitura construtiva nem de Austin nem. dos teóri-
zada, dentro dessas categorias, em torno de conceitos como posse, consideração, '')8 jusnaturalistas, que ele só menciona de passagem.
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 505
504 Filosofia do direito
seguida nos leva a outra questão, esta mais profissional, à qual se chega através ti Contudo, esse poder discricionário é extrínseco ao direito e - além de Austin
pergunta "de que modo, nos tribunais, os advogados argumentam com os juízes, sitivismo jurídico diz muito pouco sobre esse processo.
de que modo um juiz 'descobre o direito'?" Dworkin afirma que, em particular n a o positivista jurídico, a mudança jurídica - quer na legislação, quer no
"casos difíceis", juízes e advogados on law é um processo político". Além disso, a afirmação de certeza jurídica é
ometida na situação em que uma regra não foi elaborada, ou em que há uma
( ... ) utilizam critérios que não funcionam como regras, mas operam diferentemenIi no domínio das regras jurídicas".
como princípios, políticas e outros tipos de critérios (1977: 22).
A teoria das regras abrange o desenvolvimento do common law através do piv UMA RESPOSTA CERTA INERENTE À "GRAMÁTICA"
DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA?
cedente? Ela explica adequadamente, por exemplo, a criação do princípio de vizi
nhança na responsabilidade civil extracontratual, que teve sua origem no caso Do Talvez a mais controvertida das idéias associadas à obra inicial de Dworkin es-
noghue vs. Stevenson?'3 Ou o discurso de lorde Atkin terá sido apenas um exercício dt
em sua afirmação de que a pratica jurídica envolve, necessariamente, a aceita-
criatividade judicial? Sem dúvida, lorde Atkin apresenta sua decisão em termo
da ideia de haver sempre uma resposta certa aos dilemas jurídicos e morais
de seu desenvolvimento construtivo de um princípio que podia ser vagamente iden
orkin apresenta duas maneiras de se chegar a essa conclusão: (i) uma envolve
tificado em casos anteriores. Se assim for, então o papel criativo de lorde Atkin esta
rmação relativamente fraca de que, como a natureza do direito implica o envol-
em ter dado uma interpretação construtiva a casos anteriores e em articular e foi
ento em litígios e sua solução, faz parte do raciocínio prático do direito o fato de
mular melhor os princípios ali latentes, criando desse modo um "caso que firma ju
e a resposta a um litígio deve ser clara - se disséssemos o tempo todo "está em-
risprudência" a ser aplicado em situações futuras. Para Dworkin, a análise positivis lado", a natureza prática das soluções jurídicas não teria sentido algum (ver
ta de Hart implica que, para além de um certo ponto onde a regra se esgota, não h ,orkin, 1977; e "A Reply by Ronald Dworkin" em Cohen, org., 1984); (ii) a outra
fatores jurídicos que sujeitem os juízes; quando eles estão trabalhando numa área nsiste em procurar os pressupostos racionais envolvidos no próprio processo e
obscura e periférica (por oposição à área central) do direito, eles têm um poder dis
8 próprias práticas de argumentação jurídica e política16 . Dworkin quer que con-
cricionário não-jurídico. Os "casos difíceis" criam um novo direito. O positivismo ju
çleremos em profundidade o que os advogados estão realmente fazendo em termos
rídico nos apresenta um conjunto radicalmente divergente de expectativas sobre a
prática jurídica nos casos difíceis, e nos pede para usar seu próprio discurso como
função judicial (ver Guest, 1992, capítulos 7 e 8): (i) uma concepção estática, que é o
modelo de regras do fato simples, que abrange a situação e que pode ser aplica
do pela "teoria jurídica mecânica"; ou (ii) uma concepção dinâmica na qual o direito 14.Como já discutimos aqui (ver capítulo 9), enquanto Bentham se opunha à criação judicial do direi-
é um processo e se pressupõe que, ao entender esse processo, é preciso entender Austin a discutiu extensamente em duas conferências. A ciência austiniana do direito positivo era somente
como as regras interagem com influências não-jurídicas. Essa concepção positivista e de uma síntese; a outra parte era a ciência da legislação regida pela utilidade ou pela prática de legislar
pode ser expressa como uma equação: regras mais poder discricionário igual a novas re- do em vista o interesse comum. Austin parece ter poucas dúvidas de que a qualidade da tomada de deci-
s judiciais precisava ser aperfeiçoada, e pretendia aperfeiçoá-la deixando claro que o juiz não podia igno-
t as considerações de benefício social (a opinião pública, o bem comum) devido ao fato de considerar-se
13. [1932] AC 562. O caso envolvia um conflito de precedentes e o judiciário se viu diante da tentação oralmente preso a alguns padrões jurídicos obscuros que nada tinham a ver com regras (Jurisprudence, de
de tomar uma decisão política a favor dos fabricantes de um novo produto em detrimento dos interesses do ustin, 1873: Conferências XXXVII e )0O(VlII).
consumidor final. Na verdade, o julgamento de lorde Atkin considerou a existência de uma relação jurídica 15.Tomando, por exemplo, o regulamento que proíbe a circulação de veículos em parques, vemos que
esfera dos tribunais ainda não se tomou decisão alguma quanto à proibição abranger também as pranchas
independente de contrato entre o fabricante de um produto e o consumidor final. Lorde Atkin chamou a
atenção para a tendência dos juízes anteriores a redigir muito concisamente seus julgamentos, dificultando assim skate. A questão jurídica concreta tende a concentrar-se na linguagem: "uma prancha de skate é um veícu-
o entendimento de sua linha de princípio, e afirmou expressamente que apresentaria sua decisão de modo que - para o regulamento que proíbe a circulação de veículos em Hyde Frk?". Uma vez que se trata de questão
a tomasse extremamente benéfica aos futuros juízes. Comentou a relação entre direito e crenças morais e de- Ao decidida, a regra não parece abranger a questão do skate. Há, portanto, uma lacuna no direito. Não se
senvolveu sua sentença em termos da tradução do dilema moral ou político em dilema jurídico (1932: 580): ode simplesmente dizer que, como não há menção aos skates, eles são permitidos. Nenhuma das partes pode
tar uma jurisprudência favorável, mas ambas podem, em sã consciência, acreditar que estão certas. O réu
"A regra [moral] de que deveis amar vosso semelhante se transforma, no direito, em 'não deveis prejudicar
vosso semelhante'; a pergunta do advogado, 'Quem é meu semelhante?', recebe uma resposta limitada. De- oderia argumentar que, como o skate não foi proibido (afinal, nenhuma decisão nos diz que tal proibição
veis ter o cuidado de evitar atos ou omissões que, como bem se pode prever, prejudicariam vosso semelhante. xiste), está portanto permitido. O promotor público poderia dizer que está incluído nos danos causados pelo
No direito, então, quem é meu semelhante? A resposta parece ser: pessoas tão intensa e diretamente afeta- to, e que não consta em parte alguma da lei como exceção, sendo portanto proibido.
das por meus atos que não devo perder de vista o fato de que são desse modo afetadas quando volto meu 16.Dworkin desenvolveu explicitamente esse tema numa conferência (inédita) de 1995, proferida no
pensamento para os atos ou omissões que são questionados." JALS de Londres, cujo título é 'Are there right answers to legal and moral problems?".
506 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 507
ponto de partida. O direito parece incerto; não parece haver nenhuma resposta ju- internamente ao direito, e como algo que um discurso jurídico apropriado deve
rídica óbvia. Qual é, porém, a racionalidade dos diferentes aspectos das práticas so- tornar compreensível;
ciais em questão? Vejamos um caso comum. As partes instruíram os advogados e
talvez, depois de várias trocas de cartas, alegações e alegações em contrário, os dois ) se Hart estivesse certo, não poderíamos prever o resultado dos casos difíceis, mas
conseguimos prevê-los. Embora possamos ser surpreendidos pelas decisões dos
lados decidem resolver a questão em juízo. Se os dois conjuntos de advogados esti-
verem agindo como agentes jurídicos sérios (isto é, se não estiverem às voltas com tribunais de apelação, ainda assim conseguimos fazer, e fazemos, previsões bem
fundadas sobre as decisões;
atos desnecessários), ambas as partes acreditam que estão certas em sua interpreta-
ção e sua crença de que o direito está do seu lado. Na verdade, ambas acreditam que v) se a tomada de decisões judiciais equivalesse a um poder discricionário sem res-
há uma resposta a ser encontrada, e que se trata de uma resposta jurídica. Por que ir trições, teríamos de ver os juízes como meras autoridades político-administra-
ao tribunal se você não acredita que seu lado é o certo? Isto é, que seus argumentos tivas; todavia, consideramos os juízes diferentes dos políticos e administrado-
podem convencer o juiz a decidir que o direito é aquilo que você reivindica`. res, e os vemos como pessoas cujo papel e habilidade especiais não exigem que
Dworlin argumenta que o modelo de regras não pode competir em igualdade de sejam democraticamente eleitos. Dworkin (1977:140-3) afirma que cada país
condições com a natureza argumentativa da prática jurídica. Não somente cria lacu- desenvolveu uma prática constitucional e uma teoria sobre o papel do judiciá-
nas na idéia do estado de direito, como também - parafraseando Dworkin - é falso rio. Nos Estados Unidos é o constitucionalismo (a teoria de que a maioria deve
para com a natureza social da argumentação jurídica no sentido mais amplo de in- ser forçada a proteger os direitos individuais). Constitucionalmente, para que os
cluir outras pessoas (acadêmicos, o público) como membros de uma "comunidade juízes fossem criadores de direito com total independência, teriam de ser demo-
jurídico-interpretativa". Podemos arrolar diversos ternas: craticamente eleitos; os juízes não são eleitos e, portanto, não devem engajar-se
na produção de um direito novo; devem aplicar os padrões inerentes ao direito
(i) o modelo de regras entende mal a natureza do poder discricionário. O poder existente;
discricionário não é independente, mas sim parte de um processo:
') se dizemos que os juízes criam o direito através do exercício do poder discricio-
Assim como o orifício da rosca, o poder discricionário só existe como um espaço dei-
nário, devemos então dizer que cada vez que assim procedem eles cometem
xado em aberto por uma zona de restrição circundante. Trata-se, portanto, de um con-
ceito relativo. Sempre faz sentido perguntar: "Poder discricionário sob quais critérios?", uma fraude contra os litigantes. As partes vão ao tribunal e argumentam sobre
ou "Poder discricionário segundo que autoridade?" (1977: 31). o direito, e o juiz decide; contudo, se em recurso de apelação os juízes exerces-
sem o poder discricionário e criassem novas regras, estariam mudando as re-
(ii) se Hart estava certo, boa parte do debate jurídico seria irrelevante; os juízes não gras do jogo, algo que dificilmente se pode defender. Os juízes normalmente
estariam sujeitos a críticas jurídicas sobre o poder discricionário legal, mas na falam e agem de tal modo que apresentam suas decisões como se fossem exi-
verdade eles estão. Os advogados falam sobre decisões judiciais em casos difí- gidas pela adesão aos princípios do direito, e eles freqüentemente se referem a
ceis e sobre a habilidade ou a imperícia judicial. Fazemos constantes avaliações ocasiões em que tais princípios são "imanentes ao direito" ou se acham implí-
jurídicas arrazoadas sobre se os tribunais desenvolveram ou não um direito le- citos na "estrutura geral do direito"; os juízes passam a impressão de que se
galmente aceitável, e Dworkin argumenta que os juizes devem considerar aque- sentem coagidos por critérios jurídicos que só podem ser avaliados por uma in-
las decisões anteriores que são "muito deploradas" pelos juristas acadêmicos terpretação holística do direito estabelecido.
como um direito fraco e passível de ser declarado direito de má qualidade (1977:
122); além disso, aceitamos algumas decisões como "erros" (ibid.: 105). Isso indi- Essas questões resultam da interpretação de aspectos práticos. Agora temos uma
ca que na verdade aceitamos o poder discricionário como algo que funciona lha. Podemos dizer que todas essas observações podem muito bem estar cor-
';, mas elas não constituem uma prática coerente; na verdade, são fragmentos de
17. O contra-argumento evidente é: E se as partes estiverem jogando? E se acreditarem piamente qu ência dentro de um melê incoerente que desafia as tentativas de totalização. Ou
não há resposta certa, mas adotarem a opinião de que o peso da "responsabilidade judicial" e estrutura prá- krnosdizer que, devidamente entendidos, percebemos, na "gramática" desses frag-
tica dos tribunais significam que haverá uma decisão e que, dependendo da qualidade dos argumentos, ele ii tos de prática, indícios da presença de uma resposta certa e de um fechamento
vencerão? Há uma resposta - uma resposta que poderia, a partir da perspectiva jurídico-realista, ser (razoa-
iniverso jurídico; o direito já dispõe dos recursos que lhe permitem dar uma
velmente) previsível. A previsão decorre de seu entendimento "prático" da natureza da prática jurídica. A res-
posta de Dworkin é igualmente simples: poderia tratar-se muito bem de prática, mas não do tipo de prática, osta a todos os problemas jurídicos.
que faz do direito o melhor exemplo do tipo de prática que ele é em termos ideais.
508 Filosofia do direito Ronald Dworkin.e a luta contra o desencanto 509
A TEORIA INICIAL DE DWORKIN SOBRE A PRÁTICA JUDICIAL VOLTADJ\ Leoria política para a Constituição como um todo. A teoria bem-sucedida irá
PARA A COERÊNCIA COM BASE EM PRINCÍPIOS 11I1.,;1ar-se a todas as regras da Constituição, ou à maioria delas, de modo que as
1 esente como um conjunto unificado e coeso de prescrições e regras que abran-
O primeiro passo de Dworkin consiste em distinguir entre poder discricioná yIn o comportamento cívico`.
forte e fraco. O forte ocorre quando as autoridades não estão presas a padrões prev
O mesmo processo se dá na aplicação das leis escritas e do common law. Hércu-
xistentes que tenham sido estabelecidos por uma outra autoridade; o fraco ocorti
kve "criar um esquema de princípios abstratos e concretos que forneçam uma
quando o padrão não pode ser aplicado de modo mecânico —há uma necessidade à,
exame e avaliação do que o padrão significa em um novo caso. Por implicação, no s' ficação coerente de todos os precedentes do common law e, na medida em que
gundo caso não há lacunas na lei; o poder discricionário fraco é necessariamente pai devam ser justificados por princípio, também dos dispositivos constitucionais
te do papel judicial, e é aceitável. E um poder discricionário interno que é limita( u iituídos" (1977:116-7). Os juízes reais devem imitar o comportamento de Hér-
1 es tanto quanto possível; Hércules, além do mais, é um reflexo do juiz que aceita e
pelo direito e, em particular, pelo fato de que todo caso difícil tem uma resposta jui
dicamente correta. Donoghue vs. Stevenson tinha, de fato, uma resposta correta pai ii plifica a doutrina de responsabilidade política que é inerente ao sistema nor-
a nnericano'9. Essa doutrina requer que o juiz (i) tome decisões que apliquem o
caso. A resposta certa ali estava para ser encontrada nos argumentos controver:
apresentados pelos advogados e nos princípios contidos nos precedentes. Dwoi H II 1 Lo já existente, porém (ii) o faça de modo que represente o direito como expres-
parece distinguir as regras e os princípios de duas maneiras bem claras: le uma teoria política dotada de coerência interna. Será que todos os juízes ade-
1 ii a esse processo? Dworkin é claro: nem todos, inclusive nem aqueles que tentam-
(i) as regras operam como um tudo-nada. A regra aplica-se ou não; ao decidir, o J tii wi aplicar a teoria de constitucionalismo coerente à qual Hércules che-
examina primeiro o contexto factual, depois o alcance da regra. Os princípios, 1 ii. A teoria de Hércules "seria mais ou menos diferente da teoria que outro desen-
rém, não operam desse modo "sim ou não". Os princípios têm uma dimensão Iveria, porque uma teoria constitucional exige julgamentos sobre as complexas
peso. Podem aplicar-se em maior ou menor grau; ii a tões de adequação institucional, além de julgamentos sobre filosofia política e
li ti" (íbid.: 117). No que diz respeito a essa questão complexa, cada juiz tem suas
as regras nunca podem entrar em conflito; se isso acontecer, uma regra será
1 1 pções pessoais e segue teorias institucionais diferentes, mas Dworkin também
rada ou inválida. Os princípios podem entrar em conflito e de fato o fazem; eh
ii re que algumas dessas teorias e preferências serão superiores, vão ajustar-se me-
apontam para considerações diferentes, e a relação entre princípios conflitante,;
vai depender das circunstâncias do caso específico. Dworkin, por exemplo, ruo coerência geral dó desenvolvimento moral e político da sociedade; contudo,
nheceria as máximas eqüitativas como princípios de direito que podem entrar ri'
conflito. A avaliação dos princípios é tarefa que compete à habilidade jurídica, ii lá. De fato, Dworkin está procurando encontrara consideração de segundo planci que estrutura a ope-
utilização que der ao efeito sobre o sistema subjacente e o caso em questão. ideal da regra de reconhecimento e da regra de prestação jurisdicional de:Hart. Dworkir usa como
lo um jogo de xadrez como um caso difícil. Ele pergunta: a tática usada por um dos enxadristas, sorrir
ritemente para seu adversário, é. uma tática válida ou contraria as regras e, desse modo, permite que
Resolvendo os casos difíceis Iversário vença por forfait no jogo? A situação não é abrangida pelas regras; de que modo, então, se po-
legar a uma decisão? Dworkin sugere que o jogo de xadrez tem uma natureza que o árbitro deve res-
porém como um árbitro sabe que o xadrez é um jogo intelectual, .enão um jogo de azar ou
Em seu clássico ensaio sobre os casos difíceis (Hard Cases), Dworkin afirma '<ibição de balé digital? O árbitro empenha-se em.vários cálculos, decisães"conscientes" que remetem
os juízes devem aplicar um princípio de "consistência articulada" ao determinar de o juiz'interpretar continuamente sua posição e o significado das práticas nas quais está envolvido.
aplicabilidade de leis e precedentes aos casos polêmicos. Dworkin cria um juiz ideal 1-i desse modo, seus cálculos oscilam entre a filosofia da mente e os fatos da instituição cuja natureza
Hércules, "um advogado de habilidade, sabedoria, paciência e perspicácia sobri ve elucidar. ( ...) O caso difícil coloca. (...) uma questão de teoria política. Pergunta o que é justo supor
humanas" (1977: 105) que tem plena consciência de suas responsabilidades co Jogador fez ao concordar com a regra deforfait" (1977:104-5).
9. "Como todas as autoridades políticas, os juízes são sujeitos à doutrina de responsabilidade polfti-
titucionais. Diante de um caso difícil (por exemplo, de um caso constitucional), 1 doutrina determina, em sua forma mais geral, que as autoridades políticas só tomem as decisões po
cules elabora algumas teorias políticas que poderiam servir como justificaçõe 'e possam justificar segundo uma teoria política que também justifique as outras decisões que elas se
conjunto de regras constitucionais que são expressamente relevantes ao probirir. II a tomar. A doutrina parece inócua nessa forma geral; porém, mesmo nessa forma, ela condena um
1í, idministração política que se poderia chamar, segundo Rawls, de intuicionista. Condena a prá lira
Se duas ou mais teorias parecerem ajustar-se igualmente bem - e, desse modi, li
I[)),11 decisões que isoladamente parecem certas, mas que não podem ser incluídas numa teoria abre n
apontar para resultados contrastantes para o caso —' Hércules deve se voltar para
le princípios e políticas gerais que seja compatível com outras decisões igualmente consideradas cor-
conjunto remanescente de regras, práticas e princípios constitucionais para ciiii 87).
510 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 511
como podemos ter certeza disso? Dworkin faz algumas afirmações, mas seus d lfm suma, a "tese dos direitos" dworkiniana abrange as oito proposições se-
pontos cruciais são (i) o papel fundamental que os direitos desempenham no diivii ;u;utes:
moderno e (ii) a idéia de desenvolvimento jurídico como um projeto inacabado
moldar a interação social em forma de uma comunidade de princípios. '1 do sistema jurídico estável exprime uma filosofia política dominante, e é isso que
confere coerência e unidade ao sistema jurídico.
esa filosofia se exprime nos valores e tradições do direito e é utilizada diariamen-
DWORKIN E O DESENVOLVIMENTO DA IDÉIA DOS DIREITOS
eno trabalho de desenvolver o direito e decidir os casos - não se trata de uma fi-
Em contraste com o positivismo jurídico clássico (ver Bentham, capítulo 8, e A )sofia puramente acadêmica, mas de uma questão de compromisso (ou integri-
ad e) profissional.
tin, capítulo 9), Dworkin faz a afie inação geral de que, dentro da prática jurídica, a p
teção dos direitos com base em princípios é mais fundamental do que as consiIv .) sistema político também é formado por princípios jurídicos, e estes exprimem os
rações políticas ou uma adesão literal a regras aparentemente óbvias. As regras e valores políticos dominantes do sistema. Dworkin reconhece que o desenvolvi-
princípios jurídicos exprimem e protegem direitos na ordem jurídica, permitindo di o ereto do direito é influenciado pela política, mas esta é uma força externa que
se modo que os indivíduos desfrutem de um espaço social seguro e que as mino' 1 L liLia através da legislação.
não sejam joguetes de cálculos utilitaristas. Os juízes precisam de uma teoria jurfi
As regras diferem dos princípios em três aspectos:
ca que lhes permita distinguir claramente entre argumentos baseados na adesão
gras, avaliando princípios, descobrindo direitos e seguindo argumentos políticos ci ii (i) Enquanto as regras são criadas ou destruídas pela legislação ou por criação ju-
trastantes20. Os direitos são trunfos diante das afirmações de que os tribunais devi dicial, os princípios emergem lentamente, às vezes imperceptivelmente, e tam-
fundamentar suas decisões em diretrizes políticas (ver Taking Rights Seriously, 19/ bém declinam imperceptivelmente (por exemplo, o caso Donoghue vs. Steven-
particularmente capítulos 6, 7,12 e 13). Esta é uma afirmação normativa: ao deci son - Dworkin diria que o princípio adjacente emergiu de forma gradual, que
rem seus casos, os juízes devem demonstrar integridade moral; devem empenha não foi criado ali, na ocasião). Os princípios são ampliados, apurados, desenvol-
em ser justos com as partes, e isso significa ser fiéis aos direitos legais das parti vidos, aperfeiçoados ou reduzidos em julgamentos posteriores.
O raciocínio jurídico é uma forma específica de tomada de decisões em que 1 (ii) Os princípios têm uma dimensão de ponderação, de modo que podem ser
princípios` são mais importantes do que as regras (uma vez que envolvem a esi mais ou menos influentes em qualquer caso dado, enquanto as regras são
tura das regras) ou as políticas (ou os objetivos coletivos da sociedade) que devi aplicadas como se fossem um tudo-nada.
ser fomentadas pelo Poder Legislativo democraticamente eleito; os princípios`
(iii) As regras não podem entrar em conflito; se houver um conflito evidente de re-
internos ao direito e desenvolvidos pelo Judiciário. O direito deve ser tratado coo
gras, uma delas está errada e deve recuar, ou uma regra é uma exceção e sur-
urna rede inconsútil - os princípios dão à rede uma estrutura que tem a protei,11 ,
ge uma nova regra. Ao contrário, os princípios podem entrar em conflito e dar
aos direitos como sua racionalidade moral fundamental23.
uma orientação contrária. Esse problema é uma questão de habilidade judi-
cial; o juiz deve avaliar sua importância relativa e tentar descobrir qual princí-
20.Dworkin (1977:82) distingue-os da seguinte maneira: "Os argumentos políticos justificam uma pio é mais importante no caso em questão.
são política ao mostrarem que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade corno
todo. O argumento a favor de uma subvenção a fabricantes de aviões - que a subvenção vai protegera d1I Os juízes não exercem, nem podem de boa-fé exercer, um poder discricionário
nacional - é um argumento político. Os argumentos de princípios justificam uma decisão política mos 1, 11, descontrolado ao decidirem qualquer caso, mesmo quando aparentemente não
que a decisão respeita ou garante algum direito individual ou de grupo. O argumento a favor de leis are houver regras jurídicas para o juiz aplicar. A tarefa de um juiz num caso difícil
criminatórias - que uma minoria tem direito a igual respeito e interesse - é um argumento de princípio 1
21. "Chamo de 'princípio' um padrão que deve ser observado não porque vai fomentar ou asse;
consiste em decidir o caso à luz da moralidade política mais ampla do sistema
uma situação econômica, política ou social que se considera desejável, mas porque é uma exigência de 1 1 irídico; no direito norte-americano, isso significará proteger os valores jurídicos
ça ou eqüidade, ou de alguma outra dimensão da moralidade" (1977: 22). fundamentais do sistema.
22."Princípios são proposições que descrevem direitos; políticas são proposições que descrevem
tivos" (1977: 22).
23. Os direitos são mais importantes porque se desenvolvem no sistema jurídico através do furte ii ar qualquer problema ou julgamento particular, levaríamos em conta toda a história política que se
mento da moralidade política. Nos Estados Unidos, os direitos derivam da Constituição, mas a Constiti ii Hiftra na base do sistema jurídico que produziu idéias sobre os direitos básicos, por exemplo, os direitos
se diz uma expressão dos direitos que já existiam antes da elaboração da Constituição. Dworkin diz 1)1 licos, de propriedade etc. Estes são expressos em forma de regras e princípios, e os pomos em pratica
mesmo se aplica ao Reino Unido, mesmo que não exista Constituição escrita. Se tivéssemos tempo 0 11 modo argumentamos sobre o direito.
Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto
512
rIn certa é transposta para uma preocupação com a metodologia certa da to
6. Nos casos difíceis há sempre uma resposta jurídica "certa" a ser encontrada. Por
difícil que seja essa busca em termos jurídicos, a estrutura do processo argumen 1, 1 a de decisões. Essa estratégia reflete movimentos mais amplos dentro da me-
1- logia das ciências sociais, e é semelhante aos movimentos de pensadores ti-
vo implica a existência de uma resposta. A tarefa de encontrá-la consiste em co'
derar as regras e o princípio em interação e mediante ouso da habilidade judiil ''orno pós-modernos, como Lyotard, que substitui a busca modernista de justi-
Uma resposta jurídica certa seria aquela que afimtasse e protegesse direitos qu )r uma preocupação pós-moderna com o "justo agir" (ver Just Gaming, 1985).
vi rkin, porém, não abandona suas bases kantianas; sua incorporação de movia
explícitos ou implícitos nos valores fundamentais do sistema jurídico. (Pergunl
direitos ocorreram antes do sistema jurídico? Se assim foi, então os direitos sol l.os epistemológicos pragmáticos parece pouco entusiástica. Ele se concentra
pujam as regras e podem invalidá-las; por sua vez, isso pode nos fazer remon 1 ii natureza da argumentação jurídica e da prática jurídica, optando por quatro ca-
referenciais: três norte-americanos - o famoso Riggs vs. Palmer, do século XIX,
alguma noção de direitos originais que já existiam antes da Constituição?)` I// Darter, de 1973, e o caso Brown,
de segregação racial - e um inglês, o caso
7. Julgar não é fácil, e em geral os juízes não deixam de cometer erros. O único ji / nughlin. Em todos, Dworkin argumenta que os juízes que foram fiéis à "verda-
não cometê-los seria aquele dotado de sabedoria infinita, que conhecesse toda a li lo direito rejeitaram quaisquer sugestões de considerações políticas e, ao con-
tória das decisões e tivesse um conhecimento onisciente dos valores políticos d ', empenharam-se em resolver a questão por meio da determinação do que era
sistema: em outras palavras, Hércules. Hércules, porém, é apenas um modélo: o 1
dadeiro direito. Embora houvesse divergências em cada caso, para Dworkin os
zes reais cometem erros, e Dworkin afirma categoricamente que Hércules é ri ,, 111 lii 'inentos remetiam à busca do direito; não apenas uma busca da resposta certa,
no sentido de que constitui a melhor interpretação do verdadeiro raciocínio jurid da resposta jurídica certa.
um Riggs vs. Palmer (discussão em ID: 15-20), pediu-se ao Tribunal de Recursos
8. Ainda que somente Hércules possa sempre obter a resposta certa, todo jui.I. NovaYork (1889) que determinasse se o fato de Elmer Palmer ter assassinado o
obrigação de pretender obtê-la - os advogados são parte desse mesmo prij 1 ik
or envenenamento significava que ele não tinha direito à herança de seu avô25.
Portanto, os advogados podem criticar os juízes por entenderem mal os
- que fizera um testamento favorável a Elmer —casara-se de novo havia pou-
pios, valores e tradições do sistema jurídico. Todavia, apenas os juízes e advi
npo, e Elmer temia que ele alterasse o testamento em favor da esposa, deixan-
dos acham-se envolvidos: os cidadãos comuns também têm voz aqui, com n Ii
«sem nada. Decidido a impedir que isso acontecesse, ele envenenou o avô e foi
particularmente claro na discussão que Dworkin faz do caso da desobediCn
condenado a dez anos de prisão. Poderia ser o legatário? Não havia nada na lei
civil (ver Levando os direitos a sério, capítulo 8) e do direito a desobedecer à li'í l i W xplicitamente impedisse que os assassinos fossem herdeiros daqueles a quem
vii rn assassinado. A maioria do tribunal achava que as regras ordinárias, aquelas
O DIREITO COMO PRÁTICA ABERTA DA INTEGRIDADE: ;e aplicariam numa interpretação "literal" da lei, não deviam aplicar-se naque-
OS SONHOS DE O IMPÉRIO DO DIREITO - que é notável tanto pelo tempo gasto em discutir-se a interpretação quan-
li t p) i* seu resultado concreto. O juiz Earl, que estabeleceu a decisão majoritária, foi
1-1lo cm sua afirmação de que "literalmente interpretadas, e se sua força e seu efeito
Em seu texto principal, que ele define como uma reformulação de sua oJi
ral, a afirmação metodológica de Dworkin consiste em "adotar o ponto de Vll uderem, de modo algum e em nenhuma circunstância, ser controlados ou mo-
II as leis e as regras relativas aos efeitos dos testamentos "dão a proprieda-
participante interno" (ID: 14). Ele fundamenta sua teoria jurídica madura nun '
tica do positivismo jurídico (com, ou assim ele o diz, sua idéia simplista dos fali assassino". Contudo, o juiz Earl decidiu, nos termos de uma teoria de
dentes) e sua substituição por uma teoria da interpretação; mas também se oI,ição racional" ou "interpretação eqüitativa", que a consideração importante
insatisfeito com as análises teórico-sociais do direito que chama de análises " l i estar não nas palavras, mas nas intenções dos legisladores: "eles jamais po-
nas". Sua análise será interna, e nela ele tenta apresentar uma interpretação li ciin ter tido a intenção de que um legatário que assassinou o testador a fim de
tica jurídica centrada nos tribunais e na idéia do direito como argumentaçã vigorar o testamento pudesse beneficiar-se deste". Portanto, argumentava Earl,
ii precisamos ( ... ) nos preocupar muito com a linguagem contida nas leis; em
Nessa obra, Dworkin concebe o direito como um fenômeno muito ma 11 1
e aberto do que o fizera anteriormente. Sua preocupação com o conceito de ui i ii 1 isso, os juízes deviam empregar 'máximas fundamentais do cornmon law', que
náximas "ditadas pela política pública, têm suas bases no direito universal apli-
24. Guest (1992: 7) resolve essa busca de fundamentação relatando como, quando estudani 113, 1igs vs.•Palmer, 115 NY506,
ford, no primeiro seminário do qual participou, Dworkin simplesmente afirmou: "Como vocês vera' 22 ME 188 (1889); discutido em Dworkin, Law's Empire 15-21):
rofundada pode ser encontrada em Kim Lane Schepple (1991: 42-77).
to na existência de direitos jurídicos naturais."
Filosofia do direito
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 515
514
cado em todos os países civilizados e não foram, em parte alguma, superadas pé], Pio de uma realidade mais profunda do que a lei empírica das páginas e das pa-
ii is. Dworkin afirma ter chegado a essa distinção através da opinião do juiz Earl,
escrita". A máxima aplicável era clara: "A ninguém se permitirá ( ... ) beneficiar-si
seu próprio erro." Assim, Elmer foi impedido de receber a herança. parecia distinguir entre o texto, ou a "letra" da lei, e a "lei" em si.
Em voto dissidente, o juiz Gray sustentou uma concepção diferente de sua O caso constitui um texto fundamental para a concepção dworkiniana da práti-
sição constitucional. A lei era clara: "nenhum testamento escrito, exceto nos casos ídica. Uma vez que o voto vencedor foi o de que "como o direito, em outras par-
i, l cspeita o princípio de que ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro, deve-
qui por diante mencionados, nem nenhuma parte daquele, será de outro modo 1
o iender que a lei sucessória nega o direito de herança a alguém que matou para
vogado ou alterado" (citado no julgamento de Gray, 517). Desse modo, ele sustei la" (ibid.: 20), parece que a maioria do tribunal lidou com as regras colocan-
que um juiz não podia interpretar um significado em desacordo com regras cL is no contexto de princípios mais amplos do common law, que têm maior "peso"
mente enunciadas: 'ii constituem um direito mais forte do que as regras. Contudo, também podemos
, ti itntrar nessa situação o princípio de que, ordinariamente, a obediência às regras
Se eu acreditasse que a decisão ( ... ) pudesse ser afetada por considerações de n 11 1 1 ir conferem uma disposição válida significa que o testamento deve ter seu cum-
reza eqüitativa, não hesitaria em afirmar as concepções que se recomendam à canson 11
cia. A questão, porém, não pertence ao domínio da consciência. Somos presos a r'pi.' 11111cuto detem tinado pelos tribunais - tia verdade, um dos juízes que divergiram da
t , CISLIO majoritária agiu desse modo, argumentando que se sentia obrigado por tal
jurídicas rigorosas (ibid.: 515). ti icípio a fazer cumprir o testamento28. Dworkin só se refere de passagem a princí-
ti ti conflitantes, mas poderia simplesmente afirmar que os princípios freqüentemen-
Dworkin diz, simplesmente: "Os pontos de vista do juiz Earl prevaleceram. Ou li
quatro juizes acompanharam-no em sua decisão, enquanto o juiz Gray só consci 111 iiitam em conflito, e que a maioria do tribunal achava que um princípio tinha
ti or peso que o outro. Assim, encontramos um princípio fortemente arraigado de
encontrar um aliado" (ID: 20). Devemos notar, porém, que muito embora Dworkin i tJitJ/lofl law em conflito com o princípio de que as regras das leis escritas sejam pos-
mencione o fato, uma forte linha subseqüente de opiniões emitidas por especiaL
': cm execução. De novo, a questão deve ser resolvida pelos critérios de "ajustamen-
sustentou que o juiz Gray estava certo, e que o juiz Earl se havia engajado numa li substância", ou "peso", no contexto da mais ampla concepção de direito que
terpretação espúria" que configurava um caso de criação de direito não autorizadi Iricu[és elabora`.
Tratar-se-ia de criação de direito judicial? Dworkin é claro: "todos os juízes LI No caso Snail Darter, a Suprema Corte (1978) ordenou a interrupção das obras
cordavam que suas decisões deveriam ser tomadas de acordo com o direito. Nenh i ii
uma barragem quase pronta, que já consumira cerca de 100 milhões de dólares,
deles negava que se a lei sucessória, devidamente interpretada, desse a herança
mer, eles deveriam ordenar ao inventariante do espólio que assim procedesse".
juízes divergiram quanto ao sentido da lei; estavam preocupados com uma coro 1 25. Quando Benjamin Cardozo discutiu o caso, ele declarou: "Havia o princípio da força obrigatória de
ção profunda do direito. Divergiram quanto "à verdadeira natureza do direito, lo Lamento ao dispor do patrimônio de um testador em conformidade com a lei. Esse princípio, levado
lo que determina a legislação quando devidamente interpretada" (ID: 16). 'liriiites de sua lógica, parecia defender o direito do assassino. Havia o princípio segundo o qual os tribu-
evidente, porém, que é fácil interpretar a lei? O juiz Gray não teve problema aT,i III vis podem aumentar os castigos e penalidades de crimes. Isso, levado aos limites de sua lógica, pa-
Ir, riu novo, defender o direito dele. Mas havia um outro princípio em oposição a esse, princípio de maior
Dworkin faz uma distinção crucial entre a lei - enquanto papel e tinta que deno i ir iii ilrdade, com raízes profundamente firmadas em sentimentos universais de justiça, o princípio de que
palavras - e a "verdadeira lei"". A verdadeira lei é um construto idealista, uma Ir II
111111111 homem deve beneficiar-se de sua própria iniqüidade ou tirar vantagem do próprio delito. A lógica
ti e princípio prevaleceu sobre a lógica dos demais" (The Nature ofthe Judicial Process [A natureza do pro-
judicial], 1921: 41; citado em Scheppele, 1991: 48). Qual é, porém, esse mecanismo para se decidir
26. Roscoe Pound (em "Spuríous Interpretation", 1907, citação e discussão em Scheppele, 1991: '1' im,deveria prevalecer? ara Cardozo, assim o era "porque o interesse social atendido ao não se permitir
1 1111 , ri criminoso se beneficie de seu crime é maior do que aquele atendido pela preservação e aplicação dos
afirma que a opinião majoritária era "especulação judicial" a propósito da qual o juiz "coloca um signili
'ii rr1I legais de propriedade". Mas isso não responde à pergr.inta, uma vez que agora precisamos de um cri-
no texto, do mesmo modo que um prestidigitador coloca moedas, ou o que quer que seja, nos cabelos
tolo, para depois retirá-las com ares de quem as estivesse descobrindo ali pela primeira vez. E um p , - pura entender a hierarquia dos interesses sociais. por isso que o contínuo movimento para fora na
holística de Dworkin atrai tanto interesse. Em termos ideais, o juiz dworkiniano pode explicara base
essencialmente legislativo, e não judicial". Para Pound, o tribunal deve interpretar as leis como elas Tr
O ri Lada por princípios de sua hierarquia.
perar que o Legislativo altere o direito.
27."(...) os juízes que têm diante de si uma lei devem interpretar a'verdadeira' lei - uma afirn)r 29. Segundo outra interpretação, o Judiciário simplesmente não quer que uma pessoa se beneficie de seu
il , iirr delito e usará qualquer tática que lhe esteja ao alcance para impedir que isso aconteça. Antes de Rir:u.
que a lei estabelece diferenças para os diréitos de diferentes pessoas - a partir do texto do Diário Ofi, r ri
!iilrrier, a doutrinada perda de direitos civis teria abrangido a questão. Riggs osPalrnersó foi que.th'ri.iil
sim como os críticos literários precisam de urna teoria operacional, ou pelo menos de um estilo de ir 1
ri ias depois de decidido, e dessa vez a ficção de um fideicomisso presumido foi usada para ''1 i iii,
tação, para interpretar o poema por trás do texto, os juizes também precisam de algo como uma teor O
urino fosse o herdeiro. Com o tempo, a lei foi especificamente emendada para impedir que . r ] rr O
gislação para fazer valer o mesmo com relação às leis" (ID: 17). Contudo, o uso da crítica literária po:r'
ir r ture,Ver discussão em Scheppele (1991).
kin é muito limitado; a crítica marxista ou a desconstrução passa ao largo de seus poemas.
516 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 517
em favor da proteção legal ao snail darter - "um peixe de 7,5 cm, sem nenhuma )epois de determinar que o direito é constituído por diferentes padrões, polí-
leza, interesse biológico ou importância ecológica especiais" (ID: 21) - nos termos a e, egras e princípios, como saber de que modo estes se relacionam entre si? Esta
Lei das Espécies Ameaçadas, de 1973. Dworkin encontra aí mais um caso de "fida 11 11,1 questão dos valores políticos de uma determinada sociedade, e o modo dife-
lidade" à lei, um exemplo de juízes empenhados em "decidir que lei é criada por 1 1 ele de um juiz postulá-los depende da filosofia política por ele adotada.
determinado texto promulgado ( ... ) quando [os congressistas] tinham as mesn I)workin é claro quanto aos valores políticos com os quais está comprometido.
crenças e intenções" que os juízes admitiam que eles tinham. Nesse caso, a maioria iii ilosofia prefere a abordagem com base em direitos a uma abordagem que privi-
adotou uma teoria de interpretação das leis por meio da qual os juízes, ao interprl' os cálculos utilitaristas. Dado o fato de que uma sociedade comprometida com
tarem uma lei, devem respeitar as intenções dos legisladores; a política de protcai Ii tatismo (ou com a maximização da riqueza) poderia sacrificar as minorias se o
OPYH geral de bem-estar fosse maior, ou acabar com os interesses individuais em
as espécies ameaçadas era a consideração de fundo que estruturava a intenção
proteger o snaíl darter 30. Ç1
de objetivos comunitários, Dworkin impõe restrições ao utilitarismo através
Ji ia dos direitos como trunfos (explicada, por exemplo, em 1977: xv). A posse de
O caso Brown dizia respeito ao efeito substantivo da expressão "igual proteç
II 1[ os permite que as pessoas sejam tratadas como iguais`. A proteção dos direi-
a questão consistia em saber se tal expressão permitia que nas escolas houvesse Sai Ii iidividuais é um papel fundamental do Judiciário.
viços e instalações iguais, porém separados, para os norte-americanos negros. No
caso Brown, os juízes foram instados a considerar a tradição de interpretar a Consi
tuição e as teorias de igualdade racial. Dworkin coloca a questão jurídica como u ii FILOSOFIA DO DIREITO E ATITUDE JUDICIAL
questão política: qual teoria de igualdade racial era endossada pela Constituição?
juízes examinaram o antigo caso de Plessy vs. Ferguson à luz de testemunhos soc P l-hr sua condição de profissional do direito, um advogado ou juiz converte-se nu-
gicos concretos a propósito da igualdade do tratamento na prática. a Lividade moral. A natureza argumentativa do direito e a natureza inconclusa do
O caso de McLoughlin oferece um exemplo das possibilidades de diversas iii 1 e da atuação jurídica determinam que os advogados ejuízes são parte de um
pretações, assim como um exemplo da rejeição, pela Câmara dos Lordes, da esl ii a asso ininterrupto; o modo como abordam suas tarefas é crucial. Para Dworkin,
tégia do Tribunal de Recursos que havia decidido expressamente distinguir entri
precedentes relevantes que envolviam a questão em bases "políticas". Embora] Os juízes geralmente admitem o dever de observar, em vez de descartar, a prática
dos os juízes da Câmara dos Lordes concordassem com um novo julgamento, pela qual optaram. Portanto, desenvolvem, em resposta a seus próprios instintos e con-
julgamentos ofereciam diferentes razões; mas Dworkin afirma que dois juízes a vicções, teorias funcionais sobre a melhor interpretação de suas responsabilidades em
lace de tal prática (ID: 87).
mentavam que os argumentos políticos do Tribunal de Recursos configuravam
errados de raciocínio`. Dworkin coloca seus argumentos da seguinte maneira: Isso significa que sua teoria do direito e seu acervo de entendimentos da natu-
do direito e da prática jurídica são de importância crucial, pois é isso que vai lhes
Os precedentes devem ser vistos como diferenciáveis somente se, por algum Li as idéias e os recursos necessários para levarem a cabo sua tarefa.
zão, os princípios morais admitidos nos casos anteriores não se aplicassem da Me-
maneira ao pleiteante (ID: 28).
O DIREITO COMO PROJETO INCONCLUSO: O PAPEL JUDICIAL
E A ESCRITA DE UM ROMANCE EM CADEIA
30. Quase no final do livro, Dworkin (ID: 338-9) apresenta sua interpretação do que a integridad
ge nessas situações: "A integridade exige que ele elabore, pala cada lei que lhe pedem que aplique, 3 LI
justificativa que se ajuste a essa lei e a penetre, e que seja, se possível, coerente com o conjunto da legi I Em O império do direito, Dworkin desenvolveu suas idéias sobre a interpretação,
em vigor. Isso significa que ele deve perguntàr-se sobre qual combinação, de quais princípios e políticli, hlnção judicial e a natureza complexa do projeto jurídico na sociedade moderna.
quais imputações de importância relativa quando estes competem entre si, pode proporcionar O
exemplo para aquilo que os termos claros da lei claramente requerem. Uma vez que Hércules está agi II.
tificando uma lei, e não um conjunto de precedentes do corninon law,.a restrição particular que identifi,ILLI 2. Atenção: isso é diferente da adesão comunista ao princípio de tratar as pessoas coma i i ia .. ii 11, 11
tem nossa discussão anterior do cornmon lawj não mais se mantém: ele deve levar em consideração boi Cesoas como iguais pode significar a alocação, a cada uma delas, de uma porção similar 1 v i 111n. .. Ii,'
justificativas políticas quanto as de princípio e, em alguns casos, poderia ser problemático decidir qual 1 ei .,s pessoas como iguais significa que elas têm direitos iguais ao amor-próprio, à integiiilak• Jii.I.II, .1
de justificativa seria mais apropriada." $Ø à educação e demais coisas do gênero. É mais uma questão de trataras pessoas coliu'
iii livi li . 1
31. De novo, o crítico diria que Dworkin está interpretando seletivamente seu caso. Somenti ivI rkin, os indivíduos têm direitos, e esses direitos não devem ser atropelados em non a ii'.
Scarman fazia lembrar um dworkiniano. hft, 305 quais devem servir.
518 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 519
Ele agora argumenta que "os enunciados jurídicos são juíos interpretativos e, p01 um qualquer etapa existem dilemas - exige-se equilíbrio. Pode-se dar muito cré-
tanto, combinam elementos que parecem mover-se para trás e para diante; interpi 1 io passado, ou avançar rápido demais na busca de algum objetivo comunitário,
tam a prática jurídica contemporânea como uma narrativa em processo de desci jijadicando, desse modo, o que já foi construído. Existem duas tentações:
volvimento" (ID: 225). O que surpreende é a ligação entre o projeto de Dworki
a noção implícita de modernidade enquanto projeto". Dworkin reinterpreta o p (onvencioncilismo (ID: cap. 4). O direito pode ser descoberto por meio da apli-
cesso como um trabalho de individuação, direitos e criação de uma "comunidade cação de textos convencionalmente estabelecidos (em essência, a abordagem ju-
princípios" liberal. Os modernos cidadãos do Estado não são meros sujeitos, massi 11 1 idico-positivista de encontrar o direito através de uma regra de reconhecimento).
cidadãos portadores de direitos; o sistema jurídico os envolve, atua como intermed 1 1 nquanto, por um lado, o convencionalismo faz justiça a decisões políticas do
rio e firma sua posição no corpo social. Sem uma imagem de integridade, tende] i assado e garante a previsibilidade, por outro erra muito em favor do aspecto de
a nos desviar de nosso caminho - e a modernidade irá ver-se trôpega no procesi;i continuidade; não há movimento para diante.
Portanto, Dworkin pode argumentar que seu juiz-modelo, Hércules, pode ir
pretar a obra dos marxistas ou dos proponentes dos Estudos Jurídicos Críticos ( Iragmatismo (ID: cap. 5)34. O direito é descoberto ao se encontrar o que é justo
vai buscar partes específicas do direito ou da doutrina jurídica nos interesses e id ara o caso em mãos, levado por objetivos comunitários: "As pessoas nunca têm
logias que originalmente introduziu cada um deles no direito, ou que os moldavn lireito a nada, a não ser a decisão judicial, que é tudo somado, melhor para a co-
conservava) para lembrar-se de que, na natureza empírica do processo legal, não 11, j nunidade como um todo, sem se considerar nenhuma decisão política do passa-
nada de inerente que determine o sucesso. Talvez Dworkin esteja compartilha n, lo." O juiz, conquanto aprecie as diretrizes políticas, é transformado num legis-
a concepção pós-moderna de que não existe nenhum grande fluxo fundamental ador. O que é o "justo"? A justiça parece arbitrária, produto do mais recente mo-
jacente que estruture o empenho humano, nenhum "direito natural" a ser encon dismo das ciências sociais. De novo, Dworkin argumenta que o pragmatismo
1 ião se amolda exatamente à realidade da prática jurídica`. Embora o pragmatis-
do. Ao contrário, a tarefa de Hércules é diferente: ele deve impor ordem à doi 111 1
na - deve dar sentido ao passado de modo que o projeto possa ser reinterpr€ no ofereça flexibilidade, não mantém seu compromisso com o núcleo essencial
e revitalizado para o futuro. da legalidade na proteção aos direitos.
O desenvolvimento jurídico só é compreendido por meio da narrativa. Pai a
cilitar nosso entendimento da interpretação jurídica ou judicial, podemos usar 11111 O pragmatismo não exclui nenhuma teoria sobre o que torna uma comunidade me-
1 1or.
Mas também não leva a sério os direitos jurídicos. Rejeita aquilo que outras concep-
analogia com a interpretação da literatura. Vários objetos estão envolvidos na Cl 11 ções do direito aceitam: que as pessoas podem claramente ter direitos, que prevalecem
ca de um romance: tema, enredo, nível de coerência, caracterização. Dworkin diz sobre aquilo que, de outra forma, asseguraria melhor o futuro à sociedade. Segundo o
os críticos juristas precisam empregar critérios semelhantes ao refletirem sob o pragmatismo, aquilo que chamamos de direitos jurídicos são apenas os auxiliares de um
que é o direito e de que modo se desenvolve. A diferença é que a esses críl melhor futuro: são instrumentos que construímos para esse fim, e não possuem força ou
nada se apresenta em seu estado final. Dworkin acha que a doutrina do preceJ si fundamento independentes (ID: 160),
te é semelhante à construção de um romance em cadeia, uma situação em qui IS
rios autores escrevem um livro que nunca é concluído. Qual é a obrigação d Num movimento semelhante ao de Lon Fuller 36, Dworkin opta por uma abor-
gundo autor? Escrever alguma coisa que esteja de acordo com o primeiro capír ii hqirrn do direito como integridade: esta é a abordagem que melhor se ajusta a
acrescente material novo. Dworkin sugere que a obrigação judicial é semelhan [o o ii 1 "comunidade política". Portanto,
mesma maneira, porém, queremos que os juízes atuais partam de onde os juíz
cidiram há cem anos. Deve haver continuidade. Portanto, a arte consiste em cria 1
sutil equilíbrio entre acrescentar algo que é novo e propiciar a continuidade. 34. O objetivo, para Dworkin, são movimentos como o do direito e economia e, possivelmente, o rea-
jurídico, com sua ênfase nos interesses sociais.
mos contando a história do desenvolvimento de nossa sociedade —uma nau
35. Dworkin afirma que o pragmatismo tem direito a mais respeito do que o convencionalismo, porque
do avanço de nossa sociedade na modernidade. ia de uma teoria interpretativa do direito; poderíamos ver o realismo jurídico como "fatos sobre o pi
indica, mais bem descritos e com menos veemência". Ele admite que os juízes poderiam oqt;,r
III lo objetivos sociais sob o disfarce do uso da retórica dos direitos - empregando uma lini,ii 1
33. Assim, podemos ver Dworkin interpretando a natureza atual do papel da legalidade na ai corno sã—; portanto, os juízes, de um modo geral, decidem os casos como se estivessem dLILI 1 li
dade; fundamentalmente, enquanto o positivismo jurídico sob Bentham e Austin teve o efeito de col istentes. Alguns "pragmatistas" argumentam que pode ser melhor servir aos interesR ; 1 LI iII
direito como instrumento de progresso social submetido às injunções da associação política a ser di considerar que alguns direitos estão arraigados e são difíceis de desalojar (ID: 1r, 1 )
da para a busca de objetivos políticos e estabilizada pelo princípio externo de utilidade, nós perdei iC. Consideremos os três temas de Lon Fuller (1969): 1. Uma moralidade do Es['Ir.iç.i' pc
em tal processo. sociedade humana e as aspirações humanas, inclusive o direito, devem empeni; .' III .111001.11 .1
520 Filosofia do direito
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 521
O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam desci o oH o para uma teoria do direito que tenta descrever o sistema jurídico de modo
factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrument
pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídico Inte científico e objetivo (Austin, Bentham, Kelsen, Hart). Dworkin exige a
opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam ii ação construtiva". Isso significa que chegamos a uma posição teórica em que
to para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporíruri diferença entre descrição e interpretação? Sem dúvida, não podemos ser ob-
como uma narrativa política em processo de desenvolvimento (ID: 225). olores imparciais do que é o direito "O direito como integridade deplora o
-
lilismo da antiga concepção de que'a lei é a lei", mas tampouco vamos ado-
Em contraste com os teóricos da questão de fato, Dworkin considera qu oncepção externa porque ela também deplora "o cinismo do 'realismo' mais
-,
direito é mediado pela teoria moral; em contraste com o pragmatismo, considera O ". O direito é continuamente trabalhado no processo de interpretação em que
teoria moral relevante como algo incrustado em decisões do passado. o 7 , o e advogados estão envolvidos. E impossível encontrar textos pseudocientífi-
Em última análise, a moralidade de aspiração dworkiniana é o desejo de tui obre a natureza do direito. Se o direito é sempre uma questão de interpreta-
nar-se uma comunidade de princípios, a integridade é a moralidade intrínseca no Igue-se que os que determinam o que é o direito são todos aqueles que se
direito, e a imagem que ele cria do sistema jurídico é uma imagem de constante ou oi tram dentro da ordem jurídica. Basicamente, isso significa juízes, mas tam-
municação de argumentação`. A chave é a integridade, uma virtude política esj
-
onvolve pessoas comuns. A imagem do direito oferecida por Dworkin é a de
cífica que não seria necessária num Estado utópico, mas que 000 Impla conversação ou debate em que pessoas com conhecimentos jurídicos
o~, min entam sobre a existência ou não dos direitos. Todas podem tentar dizer quais
( ... ) pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerero, i respostas jurídicas certas em determinada situação. Dworkin diz que nem
um princípio jurisdicional que deteiiiuna que o direito, na medida do possível, seja 1 ) e encontraremos a resposta jurídica certa: a habilidade judicial não é boa o su-
to como coerente nesse sentido (ID: 176).
fl w inic, mas o aspecto crucial da questão está em argumentar; o direito é uma ati-
li ;irgumentativa. Porém, na estrutura de nossa decisão de argumentar está im-
A integridade liga as aspirações comunitárias e as preocupações profission li ito que existe um direito a ser descoberto.
individuais. O juiz é instado a analisar é interpretar os direitos jurídicos de uma ri
neira específica:
OBJEÇÕES E CRÍTICAS A DWORKTN
O princípio jurisdicional de integridade ensina os juízes a identificar os direit
deveres jurídicos, na medida do possível, a partir do pressuposto de que foram tod
criados por um único autor a comunidade personificada—, exprimindo uma cono
-
1 sta é mais uma concepção interna do direito que se empenha em desenvolver
ção coerente de justiça e eqüidade (ID: 225). 1)significado deste a partir dos relatos de advogados e juízes, levando-se em con-
a o posicionamento desses relatos nos processos sociais e históricos; ao contrá-
A integridade, a moralidade interna do direito, especifica que rio, Dworkin adota uma política deliberada de silenciar os pontos de vista con-
hinos, isto é, não-filosóficos. Uma vez mais, isso prende a teoria jurídica à
( ... ) as proposições de direito são verdadeiras se constarem (ou decorrerem) dos prinri ideologia do sistema em última instância, não há "objetividade" alguma, uma
-
pios de justiça, eqüidade e processo legal justo que fornecem a melhor interpreta(, vez que estamos presos à tarefa de fornecer a "interpretação mais construtiva";
construtiva da prática jurídica da comunidade. 1) na verdade é prescritiva, e não descritiva. Uma teoria sobre o que o direito e a
tomada de decisões judiciais deveriam ser, e não sobre o que são na realidade.
Dworkin nos afasta da concepção de direito oferecida pelas variedades de p
Dworkin responde afirmando tratar-se de uma descrição do que é melhor na
sitivismo jurídico (as imagens da questão de fato). Não estamos mais sendo co
prática jurídica, um relato estrutural do que é inerente à natureza da prática ju-
rídica. Qual o critério para a "interpretação mais construtiva"? Isso é respondi-
celência; 2. A legalidade deve ter uma moralidade interna, isto é, alguns processos e formas que ator do pela moralidade política de Dworkin portanto, não é essa teoria a imagem
-
verdadeiramente jurídica; 3. É impossível exprimir a verdade última da condição humana; portanto, a dworkiniana do direito e da sociedade que ele quer que todos compartilhemos?
iriunicação, o contar histórias, as narrativas e a expressão das coisas constituem o processo que, em iíi
instância, o direito deve criar e defender. li) Hércules é um mito, ou, pior ainda, um hipócrita. Embora os juízes às vezes pos-
37. Todavia, na estrutura de sua esfera interpretativa ele impôs limites rigorosos às modalidades p sam soar como Hércules, eles estão apenas disfarçando seus verdadeiros mo-
tidas de discurso. Desse modo, ele pode ser mais limitado do que Fulier.
tivos. Dworkin responde afirmando que Hércules é um modelo da melhor pri-
522 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 523
tica. Além disso, fica claro que alguma prescrição está ligada à prática da Oficialmente, Dworkin é o crítico mais severo (amigavelmente) do positivis-
jurídica normativa; parte da tarefa da filosofia do direito consiste em perg i i jurídico contemporâneo. Sua posição explícita é a de deixar para trás o posi-
e encontrar padrões para o que é permissível e desejável no ato de julgar. ii amo - definido como uma teoria jurídica que baseia ou institui seu conhecimen-
mos aqui preocupados com questões de justificação e legitimidade na tom 11 la prática jurídica numa concepção do direito de "fato manifesto" — em favor
de decisões, e não em simplesmente descrevê-la, como um observador cxi li interpretação construtiva"; contudo, o que oferece a base de seu projeto?
no pode estar tentando fazer; O projeto de Dworkin tem por base uma distinção crucial: aquela que existe en-
fundamentos das proposições e sua força. Sua posição é simples: as teorias de
(iv) comentaristas céticos afirmam que é impossível encontrar qualquer des
a jurídica anteriores enfatizaram os fundamentos do direito ou as proposições
coerente e integrada de valores políticos e morais subjacentes a uma socio; L
como a dos Estados Unidos. Em vez de princípios conflitantes que possam as quais reivindicam o status de direito - enquanto negligenciaram a força (mo-
reconciliados pela melhor interpretação construtiva, os céticos vêem incool ij, política) envolvida na afirmação de que tal e tal proposição deve ser aplicada
cia e contradição; uma parte válida do universo jurídico`.
1 Lata-se de uma distinção extremamente interessante. Qual é a base do apelo
(v) e se a busca de uma narrativa coerente da moralidade política resultar numa a força? Ou, dito de outra forma, qual é a força que ativa essa força? Duas inter-
ralidade que o juiz não possa aceitar - a legislação do apartheid será, de fat o, 1 1 çLes nos ocorrem: (i) a tradição da racionalidade kantiana ou (ii) a atração da re-
reito, a expressão da moralidade política da comunidade e, portanto, deve a nietzschiana.
empregá-la em novas decisões?
A primeira acena para a tradição da intuição e para o argumento de que as pro-
(vi) a implicação que se extrai da obra de Dworkin é que a verdadeira pesquisa ciçoes que nos "impressionam" por serem corretas de algum modo se beneficiam
pírica é necessária para se determinar se uma descrição sociológica da real 1" ,c fato. Na tradição kantiana, partirmos de dois pressupostos: o primeiro, de que
da prática jurídica e da "comunidade jurídica", da "estrutura e ambiente cL ii i otonalidade inerente a nossas crenças sociais, ou aos padrões de crença neces-
munidade interpretativa", revela se as interpretações profissionais coletiva; a ri para se criar uma prática - como a matemática—; o segundo, que aceitamos os
direito realmente ocorrem e nos mostra o que - se é que alguma coisa - as 14 mi lamentos de nossos egos racionais. Em resultado dessa combinação, acreditamos
na possíveis. Como afirma Cotterrell: li ii nossa subjetividade pode ser controlada por nossa natureza racional; ou, dito de
li a forma, que o cerne de nossa racionalidade impõe limites a nossa subjetivida-
Dworkin escreve muito sobre a comunidade enquanto base do direito e sol li , universalidade de nossa racionalidade nos permite ter confiança em nossa ca~
modo de se conceitualizá-la, mas nunca oferece uma análise das verdadeiras cond e,
sociais sob as quais uma comunidade pode existir, ou do que o conceito significa quai i ] uIade humana de criar instituições universais (como o projeto de legalidade) a
associado a padrões concretos da vida social, ou das circunstâncias políticas e 50cm ir de (nossa) diferença (social) e identificar a racionalidade sob a indiferença. No
pecíficas em cujo contexto é útil pensar o direito como expressão de valores comunil;ii tio do direito, Dworkin repete várias combinações desse tema. O kantiano, po-
ao baseia numa metafisica racional, em nossa aceitação de que é significativo
Cotterrell (1989: 172-81) desconfia que a defesa dworkiniana da integridad í.il,ii sobre um direito para além do direito, do direito que se faz puro, porque pre-
prática jurídica só funciona devido a uma rigorosa separação entre perspectivas " 1 mios do "fato metafísico numenal" do direito puro como o objeto que estamos
ternas", as descrições dos profissionais militantes, e perspectivas "externas", co i 11 ii lindo alcançar, um fenômeno ideal do qual a verdadeira prática representa ape-
conhecimento sociológico. Na verdade, porém, o cuidado com que Dworkin o naa tímida imagem. Ora, Dworkin faz referências a essa estrutura de crença, mas
mata sua teoria não funciona, como veremos a seguir. ii; que seu esquema necessite dela, porque fazê-lo iria deixá-lo suscetível às con-
,lIçoes dos céticos externos.
li, rá então Dworkin se aliado a Nietzsche na busca da vontade de potência? Terá
A INTERPRETAÇÃO REVISITADA, OU: SERÁ DWORKTN
ali uma interpretação da legalidade liberal capaz de reenergizar o sistema de le-
UM IMPERIALISTA INIERPRETATIVO?
mililade liberal cuja base na verdade corresponde a nossas intuições (liberais) e
Quando lhe disseram que o mundo ficava sobre as costas de um elefante a a 'a aros sentimentos subjetivos? É fácil acreditar nisso... Ler O império do direito é
este, por sua vez, ficava sobre as costas de uma tartaruga, [um inglês] pergunta
sobre o quê fica a tartaruga?" - "Sobre outra tartaruga". - "E essa tartaruga?" -
Sahib, depois dessa vêm tartarugas que não acabam mais" (Clifford Geertz, lhe /1 a. "As filosofias do direito são ( ... ) geralmente teorias desequilibradas do direito: remetem sobr
preteition of Cultures, 1973: 29). iiiilamentos, e praticamente silenciam sobre a forçado direito" (ID: 111)
524 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto
aliar-se a alguém que escreve como um nietzschiano - um nietzschiano liberal si 1 o'rmenêutica exige uma profunda sensibilidade diante das diferentes maneiras
cero, decidido a combater o niilismo e derrotar o desencanto jurídico ao criar, co 11 1 rianjar-se no mundo vivido, invocando a análise histórica e a relatividade cul-
grande poder de sedução, uma concepção interpretativa de legalidade jurídica. Coo motivo pelo qual "o direito" se converte num termo vago que só tem senti-
que repetindo o comentário de Nietzsche de que "o mundo real vira uma fábula" um situações concretas reconhecíveis pela análise histórica.
Dworkin descreve o desenvolvimento jurídico em termos de um romance em Em contraste, a idéia de que existe uma interpretação correta está profundamen-
'nraizada no projeto de Dworkin. Além do mais, ele começou por desfazer a epis-
deia!39 Além disso, a aceitação da teoria torna a prática semelhante ao que a teoi o
/oIElogza amoral do direito positivista, oferecendo uma teoria do direito que vê a
pretendia desenvolver! Isso é perfeito pragmatismo (o termo não é usado em flI
tica jurídica como a expressão de uma moralidade pública subjacente. Dworkin
nhum sentido pejorativo). Só Dworkin não fala assim; ele se recusa a ser um neonietz
'1 lo aos profissionais do direito, como os advogados e juízes, que voltem seu racio-
schiano. Afirma estar revelando a verdadeira natureza do direito - será Dworkin, eu 11 para o mundo exterior e situem suas deliberações numa concepção holística de
tão, um verdadeiro positivista? o sociedade. Ele afirma explicitamente que a teoria jurídica deve ajustar-se à socie-
Muitos críticos acreditam que Dworkin quer ter o melhor tanto do positivismo lulu que interpreta; uma teoria jurídica que tentasse harmonizar as sociedades te-
quanto da interpretação; ele quer a certeza que o positivismo procurava, ao mesm 1, um nível tal de generalidade que perderia todo e qualquer sentido ("Legal Theory
tempo que desfruta da liberdade construtiva que a interpretação parece oferecei (1 the Problem of Sense", 1987: 14-5; ID: 102-3). Ao buscar orientação em sua bus~
O problema de Dworkin é que em geral se considera que a "guinada interpretativa' iia resposta certa, o juiz elabora uma teoria baseada nas estruturas jurídicas e
implica que devemos abandonar a aceitação de alguma concepção universal do di II íl:: cas daquela sociedade. Se assim for, então qualquer país pode ter uma moralida-
reito (tradicionalmente almejada por aqueles que ofereceram uma resposta à pergun li política coerente e uma narrativa social - os nazistas certamente as tinham. Des-
ta "o que é o direito?"). Como diz Gadamer: "Em vista da natureza finita de no o 1 110,ão, e contra todas as suas intenções liberais, sua teoria acomoda e defende
sã experiência histórica parece haver algo de absurdo na idéia toda de uma úniea ii uquer valores que informem uma tradição específica, de modo que as leis nazis-
interpretação correta" (1975: 107; também citado em Douzinas et alii, 1992, um não são apenas reconhecidas como leis válidas, mas também como leis dotadas de
sua discussão crítica da fragilidade das idéias de Dworkin sobre a interpretação) iiina força moral particulaua tente forte? Leis que, para quem estiver dentro da comu-
tu ode interpretativa nazista, têm uma força gravitacional intensa, que exige que se-
i' 1 1 aplicadas? Como eram... freqüentemente com satisfação.
39. Em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche déscreve de que modo o "mundo real" se transformou o1 Além do mais, a base das teorias tradicionais do direito geralmente se encon-
"fábula". A longa jornada do mundo das idéias platônicas para o mundo criado do cristianismo e par, ia no objeto de análise— mesmo que tal objeto só se torne visível por meio de um
priori kantiano, passando pelo pressuposto da incognoscibilidade, a idéia de que, por sob a "realidade", o de fé, como em Santo Agostinho, ou de uma definição estipuladora, como a de-
te uma estrutura que é absoluta, verdadeira, e que pode servir como fonte de certeza para .a epistemolo'
1 ção austiniana do direito positivo como os comandos do soberano, sustentados
de normas para a moralidade, fenece quase até a dissolução. O mundo real torna-se uma questão de ni
histórias, nossas interpretações, nossas perspectivas; não existe nenhum modo de comprovar a estril El o sanções e habitualmente obedecidos. Inversamente, a interpretação abandona a
Contudo, com o desaparecimento do mundo real, o mundo aparente também deve ser objeto de susp 1 71(za. de um objeto ,fixo em cuja direção as observações de uma pessoa são reflexos mais
Que direito temos de confiar nos relatos cotidianos, nos usos lingüístícos e nas explicações de sua práti li no; ou mais obscuros, substituindo isso pela interação menos segura de um domínio
nos são oferecidos pelos participantes? (Observe-se: tanto Hart quanto Dworkin parecem fazer exata w , ,lu oh vidade e, no caso do intérprete, pela participação a uma tradição interpretativa.
isso.) Ou somos verdadeiros para com nossos pressupostos e declaramos que é esse o resultado pragriEi
de nossa metodologia e desses "dados", ou tentamos ocultar o problema na esperança de ganhar o p11 lato de que é até possível reconhecer o compromisso com a tradição da interpre -
com a força de nossas histórias. ço implica que admitimos que podem existir outras modalidades de interpretação.
40. Os especialistas podem estar questionando esse comentário demasiado breve sobre a irsterpr, li a tradição individual não pode abarcar a totalidade - a totalidade continua sen-
A hermenêutica contemporânea convive com as conseqüências da guinada interpretativa, isto é, coro ç , E ti tini mistério.
de que a interpretação se move num círculo inevitável. Em última análise, a autoridade reside ria tradi i A interpretação envolve necessariamente uma perda da certeza; isso faz parte
interpretação e da capacidade de extrair o significado das relações entre os praticantes da tradição e seu
do vivido. Como argumenta coerentemente Gadamer - tido como fundador da moderna hermenêut
li d tica da interpretação. O positivismo enfatizava a certeza e -favorecendo a anã-
hermenêutica tradicional" tentou limitar o horizonte da interpretação. Era uma teoria do conhecimenE
envolvia afirmações objetivistas e psicológicas cujo objetivo era apreender as intenções objetivas do
cado. Pretendia revelar a verdade das intenções dos participantes de uma prática - como a interpretou o homem e essa vontade; o significado do direito era, então, parte da interpretação mais ampt 1 11.11
Bíblia - que seria a atividade fundamental para a tradição judaica ou cristã. Assim, precisava de uma idvi li 1loda criação divina. A hermenêutica contemporânea perde a certeza de uma intuição flJrh 1 1 1 i
II : seus proponentes não podem reivindicar o valor absoluto de suas afirmações e devem rol II]
plícita ou explícita de um "objeto pré-interpretativo" puro que existisse independentemente da interpol
w , iaie ele todo conhecimento no contexto do homem na história.
Santo Agostinho pode ter visto seu papel como o de interpretar o significado da vontade divina e a w1I
526 Filosofia do direito Ronald Dworkin e a luta contra o esencanto 527
lise descritiva - pressupunha que o direito era um objeto estável que se podia re' ii onde pudéssemos ficar, que nos permitiria fugir a uma acomodação acrítica às
nhecer com relativa facilidade. Dworkin argumentou (de modo claramente simpIi ii eis dadas de uma tradição. Para voltar ao direito nazista, a menos que possamos
ta) que o mesmo processo ocorria com o direito natural; para ele, ambos se presi ii r convencer de que os nazistas tinham um direito errado - isto é, se nesse sistema
miam capazes de conceber uma essência do direito por meio da qual poderiwi 1it1)0 trarmos princípios e práticas que contenham bases conflitantes com a ideolo-
orientar suas divergências teóricas e dar forma à prática jurídica. Se há, desse mod nazista—, o juiz deve empenhar-se em aperfeiçoar o código nazista, levando as
um consenso quanto à essência do direito, tal essência pode ser o critério por re inIlções desta ao mais alto nível. Porém, depois de afirmar que a teoria deve ser es-
rência ao qual se podem resolver as divergências entre os advogados sobre o que ifi ca a uma sociedade particular para que possa ser significativa, Dworkin age
o direito nos casos específicos; há um padrão comum ao qual eles podem recorrei e o se não fosse esse o caso, fazendo do critério de adequação o único dos padrões
e que confere sentido a sua divergência. ie nos permitem avaliar os méritos da interpretação. Ele propõe outro critério como
Porém, se tal essência abstrata não existe - se a divergência desaparece se e 1 1 medida em que a interpretação torna o objeto "o melhor exemplo possível da for-
ou aquela teoria do propósito explica e unifica mais adequadamente as decisõi i a ou do gênero ao qual se considera que pertence" ID: 52); além disso, "toda in-
passadas -, então as disputas sobre a natureza do direito parecem intrinsecameii 'rpretação se empenha em fazer de um objeto o melhor possível, como um exem-
te insolúveis. Elas começam a assemelhar-se menos a disputas entre advogados o de algum empreendimento hipotético" (ID: 53). Portanto, a melhor interpreta-
mais aos debates que os críticos literários travam quando discutem o modo mais e o, a resposta certa à pergunta "o que é o direito?", é a única que faz do objeto - a
clarecedor de ver detetininado romance (como observa o próprio Dworkin). Uma v Ieciflcidade desse "direito" - o melhor possível. Contudo, como pode Dworkin in-
que aparentemente não existe uma resposta certa a propósito da totalidade, o qi»' car a segurança desse objeto ideal, independente? Trata-se de um a priori kantia-
passa por argumento erudito nada mais é que um conflito político entre perspec( 1 II) ou de um tropo nietzschiano?
vas incomensuráveis. Dworkin usa esses movimentos para limitar a liberdade do intérprete. Primei-
Dworkin assegura-nos, porém, que a guinada interpretativa não traz consy , o caráter empírico do objeto impõe limites ao valor que se lhe pode atribuir;
i na tirania não pode ser disfarçada de uma ordem política ideal, mas pode ser in-
nenhum desses resultados. A primeira conseqüência do relativismo parece contr
ria à afirmação dworkiniana do caráter fundamental dos direitos na prática jurídie rpretada de modo que aproxime essa ordem do grau que seu caráter tirânico per~
- e então, o que cede? Os direitos ou a guinada interpretativa? Dworkin argumei ii ite - digamos, ao interpretar como não essenciais ao regime atos oficiais que ca-
ta que a interpretação não implica a perda de um critério que nos permita avalie lcem dos atributos formais elementares (por exemplo, a generalidade e a prosperi-
as opiniões, porque "as interpretações concorrentes se voltam para os mesmos o[ Lide) do direito. Desse modo, a interpretação faz de uma prática o melhor exemplo
jetos ou eventos interpretativos" (ID: 46). Dworkin afirma, coerentemente, que ui Issível daquilo que ele é. Em segundo lugar, porém, a natureza transcultural ideal
intérprete não pode transformar uma prática ou uma obra de arte em nada que ei do objeto impõe limites ao tipo de valor que lhe é atribuível, ou impõe limites ao
gostaria que fossem, uma vez que a "história ou forma de uma prática ou de li nificado de "melhor". O melhor é o melhor do próprio objeto, uma vez que se tra-
objeto limita suas interpretações disponíveis" (ID: 52). Essa é a ética da fidelidaJ i) do tipo de coisa que ele é. Portanto, para voltarmos a Hegel, o ideal da constitui-
interpretativa; uma interpretação deve "ajustar-se" ao objeto. Não precisa ajusta 10 política é diferente, presumivelmente, daquele da família, de modo que a inter-
se a cada aspecto deste (pois a interpretação tem um potencial reformista), "n'ii' Ictação de um despotismo político deve ser guiada pelo primeiro ideal, não pelo
deve ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver a si próprio como a Iglindo. Da mesma maneira, se o objeto, do modo como é encontrado, é o padrão
guém que está interpretando aquela prática, e não criando uma nova" (ID: 66). ' aferimento da teoria, isso não envolve uma mera acomodação ao dado (aos ca~
for esse o caso, então as divergências entre os intérpretes são significativas, pois si lichos históricos da prática específica) porque, por sua vez, a verdade do objeto é
divergências sobre a melhor maneira de interpretar o mesmo objeto. O objeto é o cii , ;i ia natureza ideal, à luz da qual o intérprete concebe o objeto como uma aproxi-
tério para a validade da teoria. inação mais ou menos adequada (no caso Riggs vs. Palmer, o juiz Earl ofereceu-nos
Isso, porém, coloca o primeiro conjunto de preocupações: ou o "objeto" tem ui-r,) una modalidade de prática jurídica melhor que a do juiz Gray). Além disso, esse
validade independente, e admitimos a possibilidade de descobrir sua verdade, ou de nstruto é interpretativo, e não arbitrariamente construcionista, porque é limitado
vemos encarar o fato de que a guinada interpretativa implica que não há como ava ida história e pela forma do objeto. Portanto, diz Dworkin, a interpretação "é uma
liar uma prática, a não ser por meio de padrões que lhe são intrínsecos. Se isso fui estão de interação entre objetivo e objeto" (ID: 52). Contudo, mal Dworkin 111
verdade, há então o perigo de ficarmos presos no círculo das concepções expressas uia a segurança do objeto, este já se vê comprometido pelas etapas reais de su
LI ema interpretativo.
por uma comunidade e de não termos nenhuma essência transcendental, ou outro
528 Filosofia do direito
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 529
A comunidade interpretativa de Dworkin
vorkin tenta manter a confiança em seu esquema interpretativo, argumentando
é verdadeiro para com a natureza de nossa prática e apaziguando a voz dos cé-
Retomemos a questão básica: ao tentar transformar o legado de Hart, Dwo
i. Para demonstrar que isso não funciona plenamente, é necessário examinar
kin passa de uma estrutura positivista para uma estrutura hermenêutica ou int
s detalhadamente as duas primeiras dessas etapas da interpretação.
pretativa. Contudo, ele deseja evitar a relatividade ao incorporar, à prática, a idéia cli'
um objeto ou objetivo que independe das regras e estruturas da prática. Ele comcç.i
1) A primeira etapa é "pré-interpretativa", ou o ponto em que "são identificados
por admitir a existência de uma "atitude interpretativa" que pressupõe que as pni
as regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da
ticas a ser interpretadas têm um valor: "Que serve a algum interesse ou fim, ou qm'
prática" (ID: nota 1, pp. 65-6). A forma histórica do objeto "pré-interpretativo" -
aplica algum princípio — em suma, que tem algum desígnio — que pode ser afim 1i
a prática jurídica e o discurso dos profissionais — limita a interpretação e desem-
do independentemente de apenas se descrever as regras que constituem a prátic
o papel de validar o processo, considerando-o interpretativo e não de in-
Essa atitude interpretativa parece ser uma concepção vital na obra madura
vnção. E aqui que se interpõe o paradoxo da interpretação`, pois, se a prática
Dworkin, e fornece as bases de seu otimismo no sentido de que a teoria jurídic i
deve desempenhar essa função, então deve ser capaz de demarcação isenta de
conferindo maior clareza ao desígnio e à finalidade da prática — pode introduzir 1111i]
valores (isto é, não-interpretativa); de outra forma, a definição do objeto será,
diferença prática, uma vez que a atitude interpretativa envolve a idéia de que as exi
cm si, uma interpretação necessitada de validação ad infinitum. Dworkin, po-
gências da prática mudarão na medida em que se mostrarem "sensíveis a seu dl
rém, reconhece que a definição isenta de valores — a concepção da questão de
sígnio". O significado da prática social não é evidente por si próprio, mas deve
ato - é impossível. Identificar o direito é algo implicitamente sobrecarregado
continuamente interpretado e muda o tempo todo à luz dessas interpretações: "
de teoria, e portanto sujeito a controvérsias, pois "as regras sociais não têm ró-
pessoas agora tentam impor um significado à instituição — para vê-Ia em suameli
tulos que as identifiquem" (ID: 66).
luz —' e em seguida reestruturá-la à luz de tal significado" (ID: 47).
Para tomarmos o exemplo hartiano do xadrez, o observador externo não ape-
Juízes, advogados e comentaristas acadêmicos do direito estão todos envolvd
nas não seria capaz de entender o significado dos movimentos sem conhecer as
na prática interpretativa. A exigência-chave é a da interpretação construtiva: "uni.
regras; ele não conseguiria entender que o jogo era um jogo, ou mesmo que se
questão de impor um propósito a um objeto ou a uma prática, a fim de convertê- li
tratava de xadrez, sem aprender a tradição dos jogos e aprender que, naquele
no melhor exemplo possível da forma ou do gênero ao qual se considera que perliri
caso, se tratava de xadrez. As categorias sob as quais as regras se clássificam não
cem" (ID: 52).A prática interpretativa não é independente, mas sim parte de 1111 1 ,, são próprias, mas sim impostas a regras em conformidade com algum interesse
tradição ou comunidade, e tem um pendor reformista. humano e urna certa tradição humana de interpretação. O objeto já foi alterado
Dworkin apresenta três etapas: (i) a pré-interpretativa, em que se identifit c moldado pela interpretação, e é impossível encontrar o objeto (o direito) do
prática; (ii) a interpretativa, em que a pessoa que interpreta justifica, em termos modo como existe em si mesmo. Portanto, na verdade não existe uma fase pré-
rais, por que vale a pena dar continuidade à prática, e (ili) a pós-interpretativa, cari interpretativa (Dworkin reconhece isso ao colocar a expressão entre aspas). Isso
terizada pela reforma, em que a prática se ajusta conforme as exigências de jv significa que, afinal, não é o objeto que vai limitar a interpretação, mas sim um
ficação estabelecidas na etapa interpretativa. Isso é reflexivo ou auto-referencial 11, "consenso" dentro de uma tradição - ou aquilo que Dworkin chama de "comu-
sentido de que a justificação provém (de aspectos) da prática e, por sua vez, inftn nidade interpretativa" — relativa à natureza do objeto; um consenso que pode ou
e configura o desenvolvimento dessa prática. não existir (ID: 66-8). Além disso, a limitação colocada por esse objeto definido
Desse modo, Dworkin caracteriza o direito como uma prática interpretativa 1111 por consenso se traduz numa exigência de adequação entre a interpretação e a
dada num consenso geral quanto à natureza do direito. Dentro desse acordo i 13 tica. A avaliação de uma boa adequação exige, porém, que o intérprete tenha
podem surgir argumentos empíricos e teóricos sobre o funcionamento de part
prática sem o rompimento do funcionamento geral.
Temos aqui um problema óbvio: em nossa época há um conjunto multifo' ii 1. O paradoxo da interpretação remete ao seguinte problema, que pode ser enunciado como um par
de argumentos sobre a finalidade do direito, e as vozes das perspectivas mandst aposições apostas:
críticas são radicalmente diferentes daquelas dos liberais; portanto, haverá con (i)não se .pode iniciar uma interpretação sem ser estabelecido previamente os fatos;
(ii)não há fatos sem interpretação.
so real suficiente sobre a natureza do direito, para que o sistema tenha um alto
de estabilidade, ou a metanarrativa de Dworkin será apenas uma interpret 1 O paradoxo foi assinalado por Nietzsche: "Em oposição ao positivismo, que se detém nós fenômenos
Ainda que uma interpretação extremamente agradável às sensibilidades libi i SÓ existem fatos e nada mais!', eu diria: não, é exatamente de fatos que se carece e o que existe con
;m interpretaçõ" (Will to Power [Vontade de potência], parágrafo 481).
530 Filosofia do direito
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 531
um senso "pré-interpretativo" dos atributos paradigmáticos ou essenciais da prf Essa consciência ou obrigação moral só tem esperança de ser bem-sucedida
rica, aquelas características às quais "qualquer interpretação plausível deve adi' quando se for membro da comunidade interpretativa: (i) exige-se que o intérpre-
quar-se" (ID: 72). De novo, a prática não anuncia, de modo autônomo, suas ca te selecione atributos paradigmáticos da prática, mas tal seleção é interpretati-
racterísticas essenciais, de forma que estas também serão uma questão de intu va e pressupõe, num certo nível intuitivo, uma teoria da finalidade que revigore
ção e convicção que - a menos que tomemos o caminho kantiano - são, uirn a prática. Contudo, não há, entre as etapas da interpretação, uma distinção clara
vez mais, interpretativas. Não apenas a definição do objeto, mas também a idéLi ou ontologicamente fundada que obrigue a escolha moral a encarar a "realidade",
de uma boa adequação, são coisas implicitamente mediadas pela teoria. O pro de modo que a inquietação moral contra a manipulação dos precedentes judiciais
biema, aqui - pelo menos para seus críticos - é que Dworkin se recusa a analisa ou de outros argumentos - por exemplo, das técnicas de interpretação das leis -
as condições sob as quais se produz o suposto consenso por ele exigido (sob' perca sua força (ID: 235); (ii) o padrão de adequação que se adota, tanto quanto
a natureza do consenso da comunidade interpretativa); como em Hart, Dwoi a teoria da finalidade da qual se faz uso, refletem um juízo relativo ao que confe-
kin pressupõe, em última instância, a natureza não problemática do cotidiano re valor à prática; e Dworkin admite que haverá negociações entre as convicções
(2) Na segunda etapa - interpretativa -, a prática anteriormente definida é integrad estéticas pessoais sobre o quanto se requer em termos de integração e as con-
sob uma teoria da finalidade com plena consciência de si mesma. O objetivo ri vicções substantivas de cada um sobre quais fins enobrecem mais uma prática.
interpretação é fazer do objeto - por exemplo, o desenvolvimento do direito nurn
Em resultado, cai por terra a distinção entre a interpretação correta e uma in-
área específica - a mais próxima aproximação possível de sua própria nature' 1 tipretação ou invenção falsa: existem apenas invenções. Para evitar esse resulta-
ideal, e o teste parece simples: "a teoria lido juiz ou do teórico] faz do objeto o nui o, Dworkin apresenta uma defesa da fidelidade (e, portanto, da possibilidade de
lhor possível?". Porém, uma vez que o objeto diferenciado (o objeto independer rima solução racional dos litígios interpretativos) que substitui o objeto indepen-
te que tem por objetivo limitar a interpretação) é na verdade apenas um conjun ente pela idéia de consenso interpretativo. Para evitar o relativismo das interpre-
to de práticas interpretativas, a interpretação sobrecarregada de valor é nece' 1 ções, Dworkin presume que deve haver um consenso anterior sobre a natureza do
sariamente a imposição ao objeto da opinião do próprio intérprete a propósi reito antes que uma comunidade interpretativa possa desenvolver-se; e ele tam-
daquilo que o mostra em sua melhor luz (ID: 67,87). Dworkin reconhece que d ém contra-argumenta, partindo do fato da existência corrente de uma comuni-
ferenças substanciais de interpretação - a divergência interna dentro da comuni ade interpretativa para chegar à proposição de algum consenso anterior com base
dade - são possíveis e, de fato, desejáveis (ID: 88), mas uma obrigação impot ro qual a comunidade tem condições de desenvolver-se.
ao intérprete é imprescindível para uma boa adequação entre a finalidade do ti] Para preservar esse consenso, o cético deve ser mantido à distância. O excesso de
da de valor e os atributos paradigmáticos da prática. Isso, porém, só funciona ir i formações de diversas fontes sobre a natureza do direito destruiria a capacidade
tanto a identificação dos atributos paradigmáticos quanto a idéia que se tem e a comunidade interpretativa manter seu consenso. O inimigo é o "ceticismo ex-
uma boa adequação forem conceitualmente independentes da hipótese no qi 'rno" (ID: 78). O cético externo entende as reivindicações dworkinianas de interpre-
diz respeito ao objetivo da prática (ID: 67-8). Elas não devem pressupor a hipo i ção valorativa como necessariamente perspectivas, pois carecem de um objeto in-
tese ou adequar-se a ela, porque então não poderiam limitar. Contudo, uma VI/ pendente que possa convalidá-la; desse modo, o cético deseja que Dworkin di-
que a seleção dos atributos paradigmáticos, a avaliação da adequação e a form i oinua o alcance de suas reivindicações. O cético pode sustentar (e tentar defender)
lação do objetivo são todas interpretativas - uma vez que todas incorrem na mci; i hipóteses interpretativas tão fervorosamente quanto o realista interpretativo; con-
ma mente interpretadora -, não é possível fazer nenhuma distinção forte enli 1 ido, ele não irá defendê-las como verdadeiras intuições do objeto, mas sim como
essas operações. Dworkin se fundamenta numa limitação "psicológica" u ii irojeções que são agradáveis aos sentimentos estéticos e morais daqueles que ele
voz da consciência intelectual -, estimulando o intérprete a conservar indepci li 'rita convencer. Porém, tendo em vista que esses sentimentos são igualmente des-
dentes seus juízos sobre a adequação e sobre o objetivo que confere mais vai uídos de bases numa realidade independente, eles são tão naturalmente múltiplos
à prática (ID: 234-5). uanto as afirmações interpretativas que lhes são agradáveis. Portanto, uma interpre-
ição só pode ser popular ou impopular; não pode nunca ser correta, ou mesmo me-
ror do que qualquer outra, a não ser em termos dos objetivos políticos explícitos por
42. Como é evidente na descrição que Dworkin (ID: 66) faz de sua idéia de "comunidade interpor ti às déla, e que funcionam como critérios de aceitação`.
va": "Mas é preciso haver um alto grau de consenso - talvez uma comunidade interpretativa seja bem dii
nida como necessitando de consenso nessa etapa - se se espera que a atitude interpretativa dê frutos,
demos, portanto, nos abstrair dessa etapa em nossa análise ao pressupor que as classificações que ela 43. Dworkin lida com o cético de modo que quase aceita seus pressupostos epistemológicos, mas deles
oferece são tratadas como um dado na reflexão e argumentação do dia-a-dia." ii' Ura a incisividade. Ele argumenta que o cético não tem força contra sua tese porque ele não reivindica, para
532 Filosofia do direito
Ronald Dworkin e a luta contra o desencanto 533
Ao demonstrar que a vida social é muito menos estruturada e muito mais complexa,
Aceitamos a integridade como um ideal político específico, e aceitamos o príncíp
muito menos imparcial e muito mais irracional do que sugere o processo legal, os interes-
jurisdicional da integridade como princípio soberano sobre o direito, porque querem
ses atendidos pela doutrina e pela teoria jurídicas vão se tomar visíveis (Roberto Unger,
nos ver como uma associação de princípios, como uma comunidade regida por uma úni
The Crítical Legal Studies Movement [Movimento dos estudos jurídicos críticos], 1984).
ca e coerente concepção de justiça, eqüidade e processo legal justo na relação exata ( ... )
nossa ambição fundamental de nos tratarmos como uma comunidade de princípios.
O direito contemporâneo tateia em direção ao direito puro quando surgem esti1
PRÓLOGO: UMA REFLEXÃO SOBRE A INOCÊNCIA
de decisão que parecem satisfazer a eqüidade e o processo, trazendo o direito para m
E O CONHECIMENTO ESCOLÁSTICO
perto de sua própria ambição; os juristas declaram estar otimistas em relação a esse pro
cesso quando afirmam que o direito se purifica. O otimismo pode estar deslocado. Um
Que episódio extraordinário do progresso econômico do homem foi a época que
avaliação cética parece melhor para alguns críticos de nosso direito: primeiramente, el
chegou ao fim em agosto de 1914! A maior parte da população trabalhava duro, é ver-
prevêem o triunfo da entropia, o direito perdendo sua coerência substantiva geral no cai
dade, e não vivia confortavelmente, mas tudo levava a crer que estava satisfeita com sua
produzido pelo egoísmo e por concentrações desiguais de poder político. Qual atitude,
sorte. Todo homem de talento ou caráter superior à média podia escapar para as clas-
pessimista ou a otimista, é sábia e qual é tola? Isso depende da energia e da imaginaçã
ses média e superior, a cujos membros a vida oferecia, sem grandes custos e contratem-
tanto quanto da previsão, pois cada atitude, se suficientemente aceita, contribui para a si i, pos, facilidades, confortos e comodidades para além do alcance dos mais ricos e pode-
própria reivindicação (ID: 406-7).
:0505 monarcas de outros tempos. Enquanto sorvia o chá matinal ainda em sua cama, o
habitante de Londres podia pedir por telefone os mais variados produtos de todo o mun-
Em última análise, Dworkin exorta os juristas a não se verem como meros ser do, na quantidade que desejasse, e esperar, com razoável certeza, que dentro em breve
vidores do Estado; eles têm as chaves do desenvolvimento de sua sociedade. Amo seriam entregues à sua porta; no -mesmo instante, e pelos mesmos meios, podia arriscar
dernidade pode se salvar se respeitarmos nossas próprias ambições (como Dwo sua fortuna em recursos naturais e novos empreendimentos em qualquer parte do pla-
kin as interpreta para nós!): neta e compartilhar, sem esforços ou mesmo sem problemas, dos frutos e vantagens es-
perados; ou podia decidir juntar a segurança de sua fortuna à boa-fé dos habitantes de
O que é o direito? ( ...) O império do direito se define pela atitude, não pelo tenit qualquer cidade, de um continente qualquer, que lhe recomendasse sua fantasia ou as in-
rio, o poder ou o processo. ( ... ) [essa atitude] deve ser onipresente em nossas vidas coi formações de que dispusesse. Podia dispor sem demora, se quisesse, de meios confortá-
muns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. E urna atitude interpretativa veis para transitar por quaisquer países ou climas, sem passaporte ou outras formalida-
auto-reflexiva, dirigida à política em seu mais amplo sentido. E uma atitude contestado des; podia pedir que seu criado lhe trouxesse, do banco mais próximo, a quantidade de
ra que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públio metal precioso que lhe fosse conveniente, e então partir para países estrangeiros sem co-
de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem a cada nova cii nhecer sua religião, sua língua ou costumes, levando consigo todo o dinheiro do que fos-
cunstância. se necessitar. Ao menor obstáculo, poderia sentir-se extremamente aborrecido e muito
A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colo surpreso. Acima de tudo, porém, ele veria esse estado de coisas como normal, seguro e
car o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhc permanente, a não ser pelo fato de que a situação poderia tornar-se ainda melhor. Qual-
mantendo a boa-fé para com o passado. Por último, trata-se de uma atitude fraterna, uni quer desvio seria considerado aberrante, escandaloso e passível de ser evitado. Os pro-
expressão de como somos unidos pela comunidade ainda que divididos por nossos pn jetos e a política do militarismo e do imperialismo, as rivalidades de raças e culturas, os
jetos, interesses e convicções. De qualquer modo, é isso o que o direito representa pa: monopólios, as restrições e exclusões, que fariam o papel da serpente nesse paraíso, pou-
nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter. co mais eram que os prazeres de seu jornal cotidiano, e pareciam não exercer quase ne-
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 537
536 Filosofia do direito
nhuma influência sobre o curso da vida social e econômica, cuja internacionalização es smente não conseguem entender o ceticismo, o "anseio desconstrutivo", a "ir-
tava praticamente a ponto de completar-se (J. M. Keynes, The Economic Consequences ci onalidade", a natureza polêmica, instável, vaga, indisciplinada e irreverente dos
the Peace [As conseqüências econômicas da paz], 1919: 6-7), ;ciitos que se agrupam sob o rótulo indefinido de CLS; muitos vêem os CLS como
1 'rigosos ou niilistas. Nesse caso, porém, o escritor CLS consideraria a descrição
Em 1919, Keynes - famoso economista e alto funcionário do governo britâni 1. 'ynesiana da época perdida irremediavelmente ingênua; mais do que isso, peri-
co - era um homem decepcionado. A incapacidade de o presidente Wilson, dos Es )samente simplista. A partir da perspectiva CLS, Keynes ignorava as bases de um
tados Unidos, de dar forma à posição dos Aliados nas negociações sobre o Tratado E o de vida que lhe parecia tão natural e sem problemas. Na citação acima, ele
deVersalhes, assinalava a vitória da paixão e do desejo de vingança sobre a mode- 1 inc só parece admitir a naturalidade do sistema de classes inglês como também,
ração racional. a certo modo, exclui toda a classe operária enquanto "habitante (s) de Londres".
Keynes acreditava que uma época havia chegado ao fim; uma época em que to- () mundo inteiro servia para prover recursos para os passatempos civilizados do
dos acreditavam num processo civilizador progressivo conduzido pelo estado de di- ndo desenvolvido, cujos habitantes podiam prescindir do conhecimento da re-
reito, pelos direitos de propriedade, pelo comportamento apropriado e pela argu ligião, da língua e dos costumes dos "outros". Onde estavam, em sua concepção, o
mentação racional. A conferência de paz assinalou o declínio da racionalidade. Em ";tupro da África, a conquista da índia e o saque de suas riquezas, o argumento de
suas próprias palavras, Keynes havia crescido num mundo em que "as regras do jogo" ue a Austrália era despovoada e ninguém possuía nada de sua ilha, a destruição e
- quer no debate intelectual ou no comportamento pessoal, na condução dos negó- escravização dos povos nativos nas terras que os países ocidentais "civilizados"
cios ou nas relações industriais, na diplomacia internacional ou nas finanças, na re- usavam como fonte de suas matérias-primas? Que direito de dominar tinham a
tórica ou na realidade política - eram amplamente conhecidas e aceitas. Sua vida fora cultura ocidental e as ideologias ocidentais? O próprio Keynes aceitava, implicita-
uma sucessão ininterrupta que o levara da escola e da universidade para os altos es- 1 tente, que o simples fato da dominação ocidental tornava-a progressista e certa?
calões do serviço público inglês, caracterizado pelo seu potencial de debate e pela 1 le pressupunha que poder significava direito?
racionalidade de sua argumentação. Seu mundo era ao mesmo tempo agradável e Devia-se mesmo comemorar aquela época pré-1919? Para nossa consciência
previsível, e em sua opinião - e também na dos outros, como pensava - o mundo xis-moderna, Keynes havia sido político em sua interpretação do estado das socie-
mais amplo estava ainda em processo de aperfeiçoamento, o que lhe parecia vir ocor- lades ocidentais pré-1919. Por sua vez, escrevendo na Alemanha, a comunista Rosa
rendo desde o início da Revolução Industrial. luxemburgo (em A acumulação de capital, publicado na Alemanha em 1913, tradu-
Na conferência de paz, porém, Keynes testemunhou a castração da argumenta- io inglesa de 1951) afirmava que o capitalismo ocidental exigia a submissão contí-
ção racional em favor do ódio político. Ele previu que o desejo de fazer a Alemanha nua, a absorção e a assimilação de outras partes do globo e a expropriação de seus
pagar pelo terrível custo que a guerra impusera aos Aliados resultaria num desastre; racursos para alimentar o consumo cada vez maior do excedente capitalista. O ca-
a opção pela vingança em lugar da moderação racional teria conseqüências extremas ftalismo é forçado a expandir-se por sua própria dinâmica interna, mas só pode
e contraproducentes. A reação de Keynes foi retirar-se da vida pública e passar a tra- lazê-lo se se alimentar de "estratos sociais e formas de organização social não-
balhar nas faculdades de Cambridge, onde acreditava que as antigas regras de argu- capitalistas". Os sistemas não-capitalistas são despojados de sua dinâmica própria
mentação ainda sobreviviam. Foi ali que lhe deram espaço para elaborar seu polê- a convertidos em extensões da estrutura capitalista. Embora Luxemburgo estivesse
mico As conseqüências econômicas da paz. Mais tarde - na condição de economista exortando o leitor a ver o lado destrutivo do capitalismo, sua própria crença no so-
responsável pelas políticas que ajudaram a salvar as sociedades ocidentais da de- cialismo mostrou-se igualmente enfraquecida. Nesse caso, porém, a exploração e
pressão econômica da década de 1930 -, Keynes admitiu, com todas as vantagens a dominação conseguiram o controle sem um amplo excesso criativo.
de ter observado a depressão e a agitação política dos anos entre as guerras e do Hoje, tanto o capitalismo quanto o socialismo parecem variantes do impulso
grande desastre da Segunda Guerra Mundial, que previra com tanta exatidão, que ele moderno de estudar, visualizar e submeter ao domínio racional nosso mundo e trilns-
sempre atribuíra "uma racionalidade irreal aos sentimentos e ao comportamento das ormar suas entidades em bens de consumo. As percepções divergem: o capital i si iic
outras pessoas (e, sem dúvida, também aos meus próprios)", e que a "atribuição de
se assemelhava à civilização para Keynes, mas Luxemburgo o via como um s -A ul
racionalidade à natureza humana ( ... ) ignorava certas fontes poderosas e preciosas
socialmente destrutivo e acreditava que o socialismo poderia ser a salvação da hu -
de sentimentos" (1949: 100-1). A guerra havia liberado essas fontes e emoções, a
cidade. Por sua vez, os CLS são um reflexo da perda contemporânea da fé a 1 1 ai
maioria das quais hostilizava, em vez de favorecer, a civilização e o progresso.
as formas de pensamento que fazem as estruturas sociais do mundo n nt 1cu ii
Assim também é a opinião comum acerca do Movimento dos Estudos Jurídicos
crer naturais, inevitáveis, intrinsecamente justificáveis e inquestionavelmiu 1 prO-
Críticos (a partir daqui às vezes referido como CLS, iniciais em inglês de Critical Le-
gal Studies). Em todo o mundo, inúmeros conferencistas e professores de direito sim- gressistas,
538 Filosofia do direito Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 539
Para boa parte da modernidade, o pensamento jurídico fortaleceu o desejo d Em meados do século XX, porém, as mensagens enviadas pelos antropólogos
domínio racional do mundo. Seja em formas kantianas, rousseaunianas, hegelianas, li,iviam desestabilizado os cânones. Entre os conceitos que o célebre antropólogo
benthamistas, austinianas ou kelsenianas, dominar o mundo social significa torná-lo li,incês Lévi-Strauss legou a nosso conhecimento da modernidade estava a idéia de
sujeito à ordem jurídica. Não é coincidência que a metodologia-chave do direito mo- 1 )cência perdida; em vez de uma antropologia que celebrasse o progressivo e gb-
derno seja a legislação, ou que na sobrevivência da tradição do common law uma idéi i I( )SO avanço do homem, Lévi-Strauss falava de estruturas profundas e do desenvol-
inerente de funcionalidade natural ofereça uma fé na universalidade e na fundamen- vi n iento de formas que nos moldavam e aprisionavam. Estaríamos certos ao celebrar
tação. A filosofia do direito não pode fugir a uma preocupação com as bases últimas conquistas da modernidade? Os avanços da modernidade eram obtidos à custa
do direito, uma vez que este é continuamente instado a assegurar que a lei é "bem exploração dos outros em seu estado "primitivo" e, ao nos daí ntos conta do custo
fundada", isto é, que o verdadeiro direito é racional e oferece alguma resposta às per-
en modernidade, perdemos nossa inocência, nossa confiança de "modernos" no pro-
guntas "por que, enquanto cidadão, devo obedecê-lo?" e "as instituições jurídica., , vsso1. Lévi-Strauss parece tomar a si o ônus de narrar a culpa que deve resultar
de minha sociedade são justificadas?". Li perda da inocência. Para Lévi-Strauss, escrever é um instrumento de opressão,
Os estudos jurídicos críticos abalam essa confiança. Com que se pareceria o 11111 meio de colonizar a mente primitiva - mas quase não há como fugir disso, pois,
mundo se ampliássemos o olhar do jurista e permitíssemos a introdução de todos oc i i i ia vez instaurado, o novo regime de verdade e significado escraviza também o
outros tipos de perspectivas? Enquanto Keynes jogava segundo as regras do jogo "ra 1 iário da linguagem. Para o antropólogo, só podemos nos lembrar de nossa "auten-
cional", que dizer de todos os outros tipos de (não-)conhecimento excluídos das re- cidade" perdida. O mesmo ocorre com os CLS. A acusação é simples; ao apresentar-
gras do jogo jurídico dominante? 'II ri a imagem da teoria jurídica como aplicação da razão abstrata e da ciência, da or-
1 n social construída através do direito e da capacidade de administração racional
i se encontra na base dessa ordem jurídica, a teoria jurídica moderna dominante
A DESTRUIÇÃO DA INOCÊNCIA: OVOLTAR-SE
PARA OU 11 OS CONHECIMENTOS o pensamento institucional dos fundamentos, do universalismo e da razão legisla-
li - debilitou nossa imaginação cultural e crítica. A modernidade pretendia apre-
Se minha hipótese estiver correta, a função primordial do ato de escrever, enquari otar sociedades de justiça social e liberdade, e com esse fim em vista os indivíduos
to meio de comunicação, consiste em facilitar a escravização de outros seres humano: 'II icederam ao Estado a autoridade que lhes permitiria construir a ordem jurídica ra-
O uso da escrita com objetivos imparciais e com a intenção de satisfazer a mente nu, mal. Para os CLS, porém, essa oferta é equivocada, e as pessoas deveriam desen-
campos da ciência ou das artes é um resultado secundário de sua invenção - e talvti Iver uma orientação crítica e assumir a responsabilidade social por suas vidas.
não seja mais do que um modo de fortalecer e justificar sua função primordial, desse O que são os Estudos Jurídicos Críticos? Trata-se de um rótulo geral que abran-
melhando-se dela (Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropíques, [Tristes trópicos]).
um grande número de empreendimentos subversivos perante aquilo que, para
Um princípio metodológico básico dos CLS é abrir a teoria jurídica a outras dit
ciplinas e recusar-se a admitir que a teoria jurídica seja apenas uma discussão file 1. Muitos comentaristas definem o pós-modernismo como uma perda de confiança nas metanarrativas
sófica da idéia de direito; ao contrário, o direito deve ser abordado a partir de muito Oprogresso que constituem a modernidade. Para Hany Redner, a crença essencial do indivíduo moderno
1 mtra-se na idéia de progresso. O progresso, a exemplo de Deus para o pré-moderno, é um conceito que
perspectivas e através das lentes de muitas disciplinas. Uma dessas disciplinas é
pode ser negado ou seriamente questionado. Na década de 1980, porém, os pensadores começam o .1
antropologia. sentar outras narrativas que destruíram nossa confiança. Em retrospecto, agora compreendem ' ti'
No século XIX, as sociedades ocidentais enviaram antropólogos para as terra'; 1, europeus, nos lançamos numa ofensiva sem precedentes sobre o poder, que chamávamos de itt,,,.
conquistadas dos "primitivos"; para observar os "selvagens" da África, Austrália, Nov; Todas as outras sociedades e culturas foram esmagadas, exterminadas ou obrigadas a juntar-.tc;t itt
Guiné etc. Dois temas essenciais eram evidentes: o primeiro era a tarefa de desci , corrida pelo progresso; é possível, inclusive, que algumas delas cheguem mesmo anos ui H 1] .1
os recursos naturais e humanos foram colocados à nossa disposição para que os transft ttt ii; . .t itt' '. 1 -
brir qual era a maneira natural de fazer as coisas, de desnudar as estruturas fundn nilo com nossa vontade soberana. Essa busca intransigente de poder se justificava em tona, 1,11,,
111•11111
mentais da vida humana. Contudo, se fosse impossível descobrir tal coisa, impt iii 111 itado para o homem" (Redner, 1982:13). À maneira weberiana, Redner conta com c,- iiii,
nha-se outra determinação: apresentar narrativas que refletissem nossa superioridéi tocência e como a aceitação do progresso diminui quando compreendemos que nos 1 1111111 tt. itt,1,, ti
de, nosso poder natural, nosso direito de dominar. Os antropólogos então viajam 1 para controlaras próprias forças que, segundo pensávamos, nos tornariam poderor 11111,,, ii,, 1
, ima maneira de dominar sistematicamente, controlar e dispor das coisas, que em t Itt til II 1101 II
e tentaram encontrar as leis naturais da ordem humana, mas tiveram dificuldad;,
lura a natureza, mas que [os seres humanos] hoje percebem que também est:
pelo menos muitos dos que estavam imbuídos de imagens da inferioridade "nati uuprometendo sua natureza humana... Eles podem tornar-se irrelevantes, ou tttt,.ut ti-ti,,, LI
ral" do outro. próprios esquemas, e desse modo pôr fim a si mesmos" (ibid.: 5).
540 Filosofia do direito
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 541
seus membros, são as principais tradições do saber jurídico. Os Estudos Jurídio e; vão ainda mais longe, vendo-os como niilismo ou simples crítica negativa) e re-
Críticos constituem um projeto pós-positivista que implica: (i) uma crítica do mélt i esentam-nos como um desenvolvimento do realismo jurídico norte-americano.
do científico "objetivo" tido como base do conhecimento tradicional, com a reiviii 1 iO só é parcialmente verdadeiro. Os realistas jurídicos norte-americanos eram cé-
dicação de que o "entendimento interpretativo", ou a hermenêutica, deve substituii os acerca da imagem tradicional (em grande parte jurídico-positivista) do direito
o positivismo; nosso modo de entender a ciência é visto como uma escolha políli nlodemas sociedades ocidentais, do formalismo da erudição jurídica e de seu su-
ca. A abordagem hermenêutica está ligada a uma abordagem radical, e às vezes d :10 conservadorismo. Contudo, os realistas lutavam para tornar o sistema jurídico
viés expressamente esquerdista, dos fenômenos jurídicos; (ii) uma mudança ii a mais eficiente, em seu papel de instrumento de mudança social e desenvolvi-
modo de ver o direito. Considera-se que o conhecimento jurídico tradicional tente e [o social, do que pretendia o pensamento político liberal dominante. Os realis-
desesperadamente dar sentido ao mundo, defender a idéia de que o direito é uni s não eram céticos quanto aos conhecimentos externos ou extrínsecos que em sua
corpo coerente e racional de regras e princípios, e que o objetivo do conhecimenti inião deviam complementar a formação jurídica tradicional e influenciar o desen-
jurídico dominante consiste em reconstruir decisões jurídicas racionalmente espi tivimento jurídico. O movimento pró-direito e sociedade que procurava controlar
cificas para mostrar que elas se ajustam, ou não, ao desenvolvimento apropriado práticas jurídicas e a operacionalidade da elaboração das leis, bem como observar
racional do "direito". Ao contrário disso, os CLS usam uma série de técnicas qu' 'eito vivo ou o direito em ação, por oposição ao direito encontrado nos livros, era
trazem à tona falhas, contradições e tensões. Por um lado, se o conhecimento tradi i 'Ia, moderada e socialmente reformista ou liberal-democrática em sua orientação
cional - pelo menos como o afirmam os CLS - separa o estudo do direito do estu 1 Í ica. E os que estavam se voltando para uma metodologia interpretativa em subs-
do da sociedade e encontra o motor do desenvolvimento jurídico na orientação for 111 ao positivismo não eram especialmente radicais em sua postura política; a re-
necida por regras e princípios, assim como pelo poder discricionário, por outro ladi esentação dworkiniana (1977, 1982, 1986) da necessária construção narrativa dos
os CLS nos falam da natureza inevitavelmente política da vida'. Os motivos da dc lores políticos que se encontravam na base do desenvolvimento jurídico moderno
confiança e do ceticismo diante de qualquer afirmação da pureza do direito es[.,-í,, a essencialmente liberal. Por sua vez, os adeptos dos CLS eram céticos acerca da
profundamente impregnados nos Estudos Jurídicos Críticos; para esse movimenh, ópria base do liberalismo moderno e acreditavam que boa parte da prática jurídi-
devemos investigar como o direito, enquanto campo de ação, mantém seu doui e facilitava as formas de dominação política que constituíam a organização social in-
nio sobre nós e contribui para se manter a legitimidade do sistema. 1 e e desigual que os CLS julgavam encontrar na organização social moderna. A for~
içio jurídica justificava a organização social moderna ao dar-lhe uma certa justi-
li t, i ço racional ou natural, em vez de afirmar que era simplesmente o resultado de
ORIGENS DO MOVIMENTO DOS ESTUDOS JURÍDICOS CRÍTICOS 1 plexos processos de poder político'.
tica graças às condições particularmente alienadoras da existência social moderna te polarização política, de manifestações em prol dos direitos civis e contra a
Esta é a corrente que está na base da descrição que Robert Gordon (1982; revisado guerra doVietnã e inúmeros escândalos por corrupção, essa concepção de con-
em 1990) faz do espírito de desilusão diante dos estudos jurídicos, que se abateu si senso liberal parecia estar fora dos eixos',
bre muitos acadêmicos e estudantes nas décadas de 1960 e 70 e forneceu bases si
lidas para o florescimento do movimento CLS. Gordon assinala, em particular, a 111 W) 'i concepção dos juristas desempenhando seu papel num contexto de ciência po-
satisfação com abordagens de ensino e estudo do direito e da prática jurídica q lítica e adotando uma postura de reforma perante as mudanças sociais pressu-
enfatizavam: punha, na condução do governo, uma elite imparcial e inteligente que o advo-
gado poderia assessorar nas questões de legislação e política. Esta havia sido,
(i) a imagem tradicional ou formalista do desenvolvimento do direito contr sem dúvida, a intenção de Austin, cujo primeiro objetivo consistira em conven-
qual os realistas jurídicos norte-americanos se haviam posicionado desd cer as elites dominantes da verdade do princípio de utilidade e, em seguida, in-
década de 1920. Era a imagem de um desenvolvimento jurídico que se de troduzir a crença na educação para as massas, mas tal educação consistia, em
por meio da análise doutrinária - a argumentação dos realistas jurídicos ci grande parte, em socializá-las para que assimilassem o ponto de vista da classe
aquela segundo a qual a concepção dominante pressupunha uma imagem iii dominante. Para os adeptos dos CLS, a obra de Hart deu prosseguimento a
direito como um sistema completo e autônomo de regras, conceitos e princi essa tendência, introduzindo uma concepção de vastos contingentes populacio-
pios logicamente coerentes. Aplicar o direito não era coisa notável; dizia respií oais obedecendo por hábito, com a concepção crítico ~reflexiva sendo necessá-
to simplesmente ao inevitável desdobramento de implicações que eram me ria somente aos profissionais do direito (os que pertencem ao sistema). Contu-
rentes ao material jurídico apresentado. As técnicas do juiz eram socialmenk do, influências como a guerra do Vietnã, o militarismo bilateral e a corrupção de
neutras e suas concepções pessoais irrelevantes. Julgar era uma questão d( Watergate desestabilizaram esse pressuposto. Por sua vez, os CLS se dedicaram
descoberta; organizar a descoberta dos fatos e dizer o direito. Portanto, a (I(- a seus escritos não a serviço de uma reforma social feita em etapas, mas de uma
cisão final era tida como uma questão de necessidade, e não de escolha. (J
cisão política radical.
realistas jurídicos norte-americanos argumentavam que a idéia de um avari.• Em resultado, professores e estudantes interessados nas questões sociais
juridicamente conduzido devia ser substituído por um modelo de desenvolvi testemunharam:
mento conduzido pelo entendimento das conseqüências socialmente deseji (iii) a ausência de preocupações humanas concretas nas discussões nas faculdades
veis. Para os realistas, a certeza jurídica não era apenas impossível de se ol de direito. Duncan Kennedy (reproduzido em Kairys, ed. 1990), num famoso ar-
ter; era também objetivamente indesejável. A sociedade moderna vivia CLi ligo intitulado "Legal Education as Training in Hierarchy" [A educação jurídica
estado de modificação contínua; precisava de critérios que a guiassem e de como um exercício de hierarquia], discorre sobre estudantes que chegam às fa-
instituições que acomodassem a rápida transformação social. Tanto a abord culdades de direito (nos Estados Unidos, a faculdade de direito é uma pós-gra-
gem tradicional quanto os argumentos dos realistas pressupunham o coe d uação*) pensando que vão estudar as questões mais prementes de sua época.
senso liberal; as pessoas dotadas de razão podiam concordar com os terrr. um vez disso, boa parte do material é tediosa e enfadonha, e só se refere à rea-
das discussões, e um advogado relativamente hábil podia debater questõr idade social viva através das lentes abstratas dos conceitos jurídicos. A vida real
doutrinárias de maneira impassível e profissional. A exigência realista da é suor e sangue, sexo e vômito, esperança e depressão, opressão e lucro - tudo
trodução de perspectivas sociológicas e de outra natureza levaria a uma "te o que fica fora dos materiais discutidos nas escolas de direito.
ria jurídica sociológica" mais complexa, representando a realidade das situe
ções sociais, e os interesses sociais a ser servidos não se furtavam à ampla
trutura liberal'. Contudo, no contexto dos Estados Unidos dos anos 60 e 70 5. A crítica (por exemplo, Kennedy, 1976) seria ainda muito mais severa quando aplicada à imagem eu-
uma atmosfera cultural em sintonia com os movimentos de liberação de 11 exemplificada por H. L. A. Hart - do sistema jurídico como algo dominado por regras (e não por pa-
li por definições individualistas (e não altruístas) dos direitos jurídicos e pelo raciocínio dedutivo (e não
gros/brancos, feministas, gays e conflitos de gerações, ao lado de uma cresce e ca mente orientado). Enquanto a argumentação dos realistas jurídicos via essa imagem como uma re-
etação equivocada da realidade do processo legal, para os autores CLS o direito era contraditório em
as áreas nas quais a formação tradicional o apresentava como uma prática coerente; portanto, uma ta-
5. Como diz IJorwitz (1992), o realismo podia ser visto ou como uma continuação da agenda reformi 1, 1 1111 era livrar-se do domínio dessa falsa representação ideológica.
ta do progressismo anterior à Primeira Grande Guerra, que respondia às desigualdades de classe em nome 1. * Quase todos os Estados norte-americanos exigem que, para tornar-se advogado, é preciso completar
conquista de uma verdadeira sociedade liberal, ou, como no caso de Karl Llewellyn, uma nova "metodologia tiro anos de faculdade (graduação), depois três anos de uma faculdade de direito (pós-graduação) e, por
ou tecnologia da realidade. ser aprovado em um exame da Ordem. 'á. do T.)
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 545
544 Filosofia do direito
lr a pessoa;
(iv) quando alunos de espírito mais reformista iam para a vida prática, espera''
ri)o texto;
conseguir impor mudanças reais. Sob o argumento de que colocariam o libi'
'1 a atribuição de direitos; e
lismo moderno à altura de suas promessas de direitos individuais, igualdadc, ii'
1 o significado das afirmações e dos efeitos (ideologia e prática) do direito.
dependência de legalidade e liberdade social, eles logo se deram conta de qi
na verdade, as vitórias aparentes eram muito ambíguas em seus resultaj
Essas problemáticas são interligadas; as reflexões sobre o método implicam re-
Como afirma Gordon: hõcs sobre a visão social, a metodologia de ver, articular e criticar a realidade so-
As difíceis lutas em nome da conquista de novos direitos legais para os oprirn rI; portanto (assim se espera), a ação de uma pessoa não se encontra tanto sob o
começaram a parecer vitórias ambíguas. O sistema jurídico oficial fora obrigado a inínio da mistificação ideológica.
nhecer o questionamento de suas promessas utópicas. Contudo, esses ganhos reais Em parte, os CLS são uma expressão da Angst* da dúvida sobre si mesmo que
- -
dem ter aprofundado a legitimidade do sistema como um todo; o movimento ti' ii tiNge os juristas acadêmicos do fim do período da modernidade. Como conceber a
lhista assegurou os direitos, extremamente importantes, de organização e de gre\' Nação entre o direito e a pessoa? Para compreender o significado da subjetivida-
custo de amoldar-se a uma estrutura de regulamentação jurídica que atestava a ii Jurídica contemporânea, os adeptos dos CLS parecem acreditar que devemos,
timidade da administração na tomada da maioria das decisões sobre as condiçõi' meiro, compreender e situar a pessoa do modernismo avançado, que é consciente
trabalho (1982: 286). seu gênero e raça. Vejamos as páginas iniciais de um livro de 1991, The Alchemy
Portanto, a atenção teórica voltou-se para a tentativa de entender coni / I'ace and Rights: Diary of a Law Professor [A alquimia de raça e direitos: diário de
direito servia para legitimar a ordem social existente. Um dos objetivos óbvi professor de direito], de Patricia J. Williams:
era a teoria jurídica, uma vez que
Uma vez que a posição do sujeito é tudo em minha análise do direito, vocês mere-
(v) a preocupação profissional dos futuros advogados exigia uma teoria jurídica c em saber que a manhã está péssima. Estou muito deprimida. Sempre demoro um
os deixasse afinados com as exigências da prática jurídica profissional. As;i ii Iernpo para descobrir o que há de errado, mas em geral começa com algum tipo de pen-
boa parte da teoria jurídica, tanto aquela ensinada num curso especial qual samento perfeitamente irracional, do tipo: odeio ser advogada. Nesta exata manhã, estou
aquela inerente a partes de cursos centrais, pareciam funcionar de modo sentada na cama, lendo sobre vícios redibitórios.Vício redibitório é um defeito de uma mer-
cadoria que, se já existia por ocasião da compra, dá ao comprador o direito de devolver a
justificassem as estruturas vigentes. O conhecimento jurídico tradicional p11
coisa e reaver parte (ou a totalidade) do preço que por ela pagou. O caso que estou len-
cia criar uma imagem do atual estado de coisas e do sistema jurídico que do é uma'decisão do estado da Louisiana que diz respeito ao vício redibitório da loucura:
tentava e constituía a sociedade como um todo funcionalmente eficaz e Ir
gressista. Os adeptos dos CLS não compartilham esse ponto de vista.
Se uma teoria do direito deve fómecer uma base para .o dever judicial, então os princípios que ela enuncia de-
«m justificar as regras estabe1ecida'áo identificar as preocupações e tradições políticas ou morais da. comunidade
A PROBLEMATIZAÇÃO DO PROGRESSO SOCIAL E A 11 na opinião do jurista que defende tal teoria, realmente dá sustentação às regras (lhkingRights Seriously: 67).
e,
HUMANIZAÇÃO DA [hORTA JURÍDICA Para Dworkin, embora "esse processo de justificação deva levar o. advogado a aprofundar-se na teoria
lica e política", só estamos preocupados com a melhor interpretação construtiva do liberalismo afim de
zar as tarefas do libealismo. Dworkin postula urna narrativa do direito e da prática jurídica que fortaleça
As diferentes problemáticas dos CLS que vêm à luz quando passamos do
-
ormule criticamente o liberalismo a partir de seu interior, ao mesmo tempo que, para ele, os CLS sim-
sitivísmo para a interpretação, ou hermenêutica, e interrogamos criticamente os 1 «mente postulam uma narrativa diferente da prática jurídica.'Uma narrativa que enfatiza urna concepção
'
tante problemática do progresso social e do papel constitutivo do direito na cdi,: tilidade; em vez disso, ele só levará em consideração o "ceticismo interno". São narrativas que apontam
de uma ordem social totalmente moderna'. Embora esta seja a metaproblemática, Ir diferentes concepções da natureza do direito. Está em jogo saber em que pé estamos no projeto da mo-
idade e no desenvolvimento do liberalismo. Será que a história do desenvolvimento social e político-ju-
versas problemáticas presentes nos CLS são as que têm por preocupação: 1 i, o dos últimos duzentos anos é interpretada como uma trajetória extremamente progressista, nó sentido
Fue isso nos ofereceria um lugar muitíssimo desenvolvido e "melhor" do que aquilo que se tinha antes? Ou
que o que se vê é exploração, miséria, alienação, sonhos destruidos, promessas não cunipridivi, um simu-
7. Compare-se com Dworkin, que nos pede para refletir sobre qual estado de espírito do direito
II) de legalidade liberal? Os adeptos dos CLS por exemplo, Roberto Unger, pessoa muito ligada aos mo-
-
desenvolvimento jurídico gostaríamos de compartilhar -o otimismo ou o pessimismo. Ele nos exorta a l i i
untos sindicais e de direitos humanos em seu país, o Brasil assinalam os aspectos negilivos da i noder-
-
ter a fé no otimismo a interpretar o direito como uma força progressista e a lutar por um futuro aind, i
-
~, ) , ],ide e desejam incluir essas imagens no âmbito dos itens que consideramos como "direito" e "efeitos legais".
lhor. Dworkin deixa claro que a teoria jurídica deve justificar -o direito e servir de guia ao sistema ao lor,
Palavra alemã que significa:"medo", "angústia", "inquietação", "ansiedade". (N. do T)
seu avanço:
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 547
546 Filosofia do direito
por mais direitos de propriedade, pelo Estado de Direito e pelo livre-mer-
l. i ,,
O demandante alegou ter comprado do réu uma escrava chamada Ka1,
qual pagou quinhentos dólares, e dois ou três dias depois descobriu-se qin' 1 os escritos CLS enfatizam a zona vulnerável das pretensões da modernida-
1 iii iversalidade, à razão e à coerência.
crava era louca, e fugiu, e que os vícios eram do conhecimento do réu. (...)
dedor] afirmou que Kate não era louca, mas apenas estúpida, e que esb tra questão: os autores CLS, como Williams, Kennedy ou Unger, passam ra-
diferente de loucura; mas, ao contrário, um defeito aparente, contra o qual o' lilinte da análise social para as preocupações individuais. Isso não acontece
o advertiu. ( ...) O código havia declarado que uma venda podia ser evitada p II 'rnente para tornar as proposições abstratas mais acessíveis, nem para situar
ta de qualquer vício ou defeito que torne a coisa absolutamente inútil, ou Como diz Unger:
tão inconveniente e imperfeito, que se deva presumir que o comprador n'
adquirido se tivesse conhecimento do vício. Estamos convencidos de que a Toda verdade sobre as pessoas pode ser vista duplamente: como uma verdade so-
em questão era totalmente inútil, ou, talvez, pior que isso. as sociedades e sua história e como uma verdade sobre o indivíduo e suas paixões
1
1 1087:199).
Como eu disse, este é o tipo de manhã em que odeio ser advogada, profess
qualquer outra coisa em minha vida. E tudo que posso fazer para alimentar xri'
tos. Deixo meus cabelos soltos, revoltos, reviro os olhos. liii ger não parte de uma imagem subjacente da hiimanidade que corresponda
Vocês devem então saber que esta é uma daquelas manhãs em que me rem' ii nilureza humana essencial: para ele, um dos motivos das contradições na or-
tar apresentável; devem saber que estão lidando com alguém que está escreveu, Lii (que os CLS enfatizam) está no fato de serem, elas próprias, uma expres-
com um velho roupão de banho felpudo, com pequenas franjas azuis das quais pvj exigências conflitantes da auto-afirmação". Embora Unger acredite que de-
borlas brancas, tentando saber se é estúpida ou louca... II idotar conscientemente uma política em nossa legalidade - e a política dele
orna comunidade superliberal (uma posição um tanto contraditória em termos
Na seqüência dessa interação de narrativa pessoal e comentário sobre a 11
7 ii ) —, seu conceito de "comunidade" é uma idéia reguladora, e não a crença na
dade social, Williams descreve imagens da televisão que liga em busca de insp i, ii:ia de um estado de coisas concreto (ainda por vir).
imagens que a informam de que "as condições são más, muito más, em todo o
do (...)".Williams procura subverter o sentimento que um grande economista ii
americano, John Kenneth Galbraith (1992) chamou de "cultura do contenta 1 ARA OS ESTUDOS JURÍDICOS CRÍTICOS, AS TÁTICAS VÁLIDAS
to", em que os membros das classes mais abastadas, sobretudo os que está(, 1(11 JEM A PERSONIFICAÇÃO DA RAZÃO (OU DA RACIONALIDADE)
pregados e compartilham o aumento da prosperidade econômica, fecham os DO IEXTO E A CRIAÇÃO DA INSTABILIDADE E
DA AMBIGÜIDADE NO TEXTO
ao sofrimento dos explorados e constroem sistemas intelectuais que não os dii
sentir-se socialmente responsáveis.
L uxtos CLS são freqüentemente de leitura difícil e complexa. Uma vez que
Seu ataque também se volta para aquilo que os CLS chamam de reificação,
põem que o saber jurídico tradicional luta por manter a tristeza, a violência e
tipo de processo é esse em que os tribunais só podem falar sobre uma pessoa
iii o do mundo à distância, seus autores tentam romper com o modo tradicio-
a linguagem de vícios "redibitórios"? Como essa discussão sobre uma miii]
1 screver e interpretar a cultura jurídica. Os temas que introduzem são também
Kate, se reduz a saber se o comprador pode ou não ter seu dinheiro de volti
1convencionais - sentimentos, identidade pessoal, tragédia, a violência oculta
que, por sua vez, depende de saber se o tribunal a considera estúpida ou lot
ii iccimento jurídico contemporâneo, a relação essencial das coisas do mundo.
Williams brinca com as palavras, pedindo-nos para imaginar se ela própria é
iiiores CLS subvertem as imagens confortáveis da ausência de valores cientifi-
pida ou louca por deixar-se irritar.
ii objetividade do positivismo — e retomam as formas literárias, a preocupação
Williams, e os CLS em geral, desejam que nos empenhemos em desarticulm
.1 1 16rica, á identificação do direito como texto e, portanto, aberto aos mesmos
estruturas confortáveis de nossos pensamentos. Ver a pobreza, a irracionalida li,
II 1 ática que os críticos literários usam para analisar as obras dos "romancis-
corrupção, a violência, a proximidade da morte, a mera estranheza do mundo
Uonutores CLS lutam por desvencilhar-se dos estreitos limites da cultura mo-
que eles afirmam é que o pensamento jurídico tradicional impõe uma barreira i 1
ii 1 1 1'vitalizar a ligação entre vida, imagens do direito e conceito de justiça:
pensamentos. O pensamento jurídico tradicional nos diz implicitamente qu e i
é como deveria ser, e que nosso papel como advogados ou pensadores do dii 11
não deve ser posto em dúvida. O direito é o instrumento da modernidade, e a i i i, , \Vi]Éirns.(1991: 6) assim descreve seu livro: "Trata-se de um livro sobre a teoria jurídi. 1 Iii
dernidade é sã, racional, funcional e eficiente (ainda que às vezes os que escr pIcar o chamado pensamento crítico aos estudos jurídicos. Acredito que certos .:ui. 1
I'rn oferecer uma profunda contribuição aos debates sobre a ética do direito e o sj1;I ll 1
sobre o direito também chamem a atenção para certas ineficiências que poderia i i i
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 549
548 Filosofia do direito
i'ooptado pelo sistema—, mas isso cai no terreno do romantismo de se ansiar por
A consciência de que a vida é complexa é um fato de grande importância ajih'
ia situação revolucionária).
ca. O direito freqüentemente procura evitar essa verdade, criando sua própria linh»
de verdades estreitas, simples, porém hipnoticamente poderosas em sua retóric:i, A maior parte dos textos CLS é uma agressão indiscutível à legislação liberal,
conhecer, desafiar e jogar com essas verdades enquanto gestos retóricos é algo qu pia é tida como portadora de vários pressupostos equivocados.
parece necessário quando se tem em vista qualquer concepção de justiça. Esse reco
cimento complica a suposta pureza de gênero, raça, voz, limite; permite que reconi O pressuposto da neutralidade do direito. Para o movimento CLS, porém, essa
mos a utilidade de tais categorizações para certos fins, bem como a necessidade du separação entre direito e política é teoricamente falsa e desorientadora para o
eliminação em outras ocasiões. A definição também se vê dificultada em sua mud povo. O liberalismo é tido como mistificador no sentido de presumir que o di-
em sua expansão e contração ao sabor das circunstâncias, em seu espaço para a p reito pode, de alguma forma, ser normalmente invocado pelos indivíduos contra
bulidade de taxonomias criativamente unidas e seus resultados extremamente impi o Estado, ainda que seja criação deste.
síveis (Williams, 1991: 10).
10 O pressuposto de que a razão jurídica é, de alguma forma, uma questão não pro-
O desejo de Williams de romper com aquilo que percebe como constrangin blemática. Os Estudos Jurídicos Críticos tomam o lugar da crítica da idéia de
tos dos textos tradicionais chega às raias da licença literária. Como se esperasse i uma "lógica jurídica" politicamente neutra, isto é, da idéia de que pode haver
tal acusação, ela esclarece: uma análise jurídica que não seja, em algum sentido, politicamente orientada ou
ligada a agendas políticas.
Acho que um dos resultados mais importantes da reconceituação de verdade
jetiva" em evento retórico será uma consciência mais equilibrada de responsabi1iL O pressuposto de que as leis são dados positivos da vida social, isto é, que têm
jurídica e social. E assim será porque boa parte das coisas enunciadas por vozes su significados objetivamente determinados que não se pode, na verdade, contes-
tamente objetivas, não mediadas, encontra-se na verdade misturada a subjetividn tar; que sua validade e importância são determinadas por métodos objetiva-
ocultas e afirmações não verificadas, que se apropriam do outro para além do eu ao i iL mente inquestionáveis. As leis e o sistema jurídico têm alguma forma de relação
mo tempo que negam as conexões (ibid.: 11). natural ou funcional com as condições subjacentes, objetivamente reconhecí-
veis, da existência social (cf. o funcionalismo implícito de Austin e Hart, para não
mencionar as condições mínimas do direito natural para Hart). Por sua vez, os
OBJETIVOS ESSENCIAIS DO MOVIMENTO DOS
ESTUDOS JURÍDICOS CRÍTICOS autores CLS usam uma forma mais pós-moderna de escrita que tenta libertar a
análise jurídica da idéia de tecnicalidade neutra e mostra que é um instrumento
O liberalismo é um dos objetivos, assim como o marxismo. Todos os sisten político. Portanto, os juristas precisam fazer escolhas relativas ao modo como vão
de pensamento que levam a pensar que o mundo não tem problemas, que apresei usar esse instrumento: a que políticas e políticos irão servir? Além disso, os au-
tam alguma ligação necessária entre direito e formações sociais, são atacados. tores CLS, Unger em particular, têm uma visão radicalmente condicional dos fun-
rém, há dificuldades com os CLS - suas críticas às vezes parecem tão radicais, damentos da vida social. A sociedade contemporânea não é nenhuma formação
totalizadoras que negligenciam a luta por criar a modernidade, o núcleo de princíj naturalmente evolutiva; trata-se, antes, de uma "política congelada".
que, apesar de impropriamente, servem para fazer do liberalismo uma filosofia id) A contingência e a abertura radicais da modernidade e, portanto, o significado
criatividade e liberdade individuais. O texto é quase sempre uma mensagem do progresso social. Aprofundaremos esta questão quando Unger for conside-
convertidos, mensagem que não consegue chegar aos detentores do poder e fn » rado em linhas gerais.
alianças em nome de uma práxis progressista (às vezes, o escritor CLS tem medo
ristas contemporâneos, como Ronald Dworkin, são criadores de mitos no sentid ...) a preocupação não diz respeito apenas aos modos específicos, indiscutivelmente
que criam narrativas de coerência e razão quando, na verdade, o direito é políti numerosos, pelos quais o sistema jurídico atua no sentido de constranger os pobres
contraditório. ( ... ), mas sim a todos os modos pelos quais o sistema parece, à primeira vista, basica-
Os CLS exigem a substituição do legalismo jurídico por uma política de tni mente incontroverso, neutro, aceitável...
formação. Essa perspectiva tem por objetivo revelara possibilidade de mudanç
todas as formas de relações e estruturas institucionais sociais. Os pensadores rad i O que é o direito? O direito é um entre muitos outros sistemas de significação
devem agir de acordo com as práticas legais e utilizar argumentos desconstruti 1' as pessoas constroem a fim de lidar com as necessárias relações com outras
desmistificadores para promoverem mudanças libertadoras. Ao demonstrarem oas. Porém,
sidade de quaisquer alegações de inevitabilidade ou absolutismo social, os ali
CLS esperam revelar possibilidades ocultas pelas idéias dominantes. O direito, corno a religião e as imagens da televisão, é um desses conjuntos de cren-
A maioria desses autores se distancia do marxismo, e não se faz tentativa ças - e ele se liga a inúmeros outros conjuntos não-jurídicos, porém semelhantes - que
convencem as pessoas de que todas as relações hierárquicas sob as quais vivem e traba-
ma de chegar a uma concepção estável sobre o tipo de estrutura jurídica ou o tip
lham são naturais e necessárias (1982: 286-7).
sociedade desejada pelos CLS. Essa recusa em especificar o objetivo fundameni.iI
ditada pela perspectiva teórica que os CLS adotam. Especificamente:
Portanto, o direito é hegemônico. Esta é uma das duas idéias-chave que são fre-
(i) Um ataque a todas as afirmações de que existem alguns tipos de leis no 1111 1
li usadas pelos CLS e que derivam da tradição marxista; enfatiza que, na
da história que fogem ao controle dos seres humanos. Esta é uma rejeiçi ?dade capitalista moderna, o domínio é basicamente obtido não pela força ou re-
teoria marxista do materialismo histórico. Portanto, o marxismo é visto sim 'suo, mas pelo doniínio de sistemas de crença compartilhados tanto pela classe do-
mente como mais uma ideologia; no caso, como uma ideologia que reiviu ii 1 ante quanto por seus subordinados. Idéias favoráveis às classes dominantes pas-
va verdades absolutas para sua imagem dos processos históricos inevitávei a ser aceitas pelas classes subordinadas. Em particular, a hegemonia enfatiza que
(ii) Isso também equivale a uma resistência à idéia de que existem forças 50 ( ... ) o modo de dominação mais eficaz ocorre quando tanto as classes dominantes quan-
ou econômicas que controlam a vida humana de modo irresistível ou objri to as dominadas acreditam que a ordem existente, talvez com algumas mudanças peri-
Ao contrário, a vida social é vista como algo continuamente criado pelas féricas, é satisfatória, ou pelo menos representa o máximo que se poderia esperar, por-
lhas e decisões individuais das pessoas no contexto de sua coexistência. P 11, que afinal de contas as coisas têm de ser como são (ibid.: 286).
to, os CLS revelam uma falta de interesse pela ciência social que trata a
dade e os fenômenos sociais como objetos de estudo. Os partidários dos CLS preocupam-se muito com o modo como a hegemonia
ada e mantida, e, em particular, com o papel que as idéias jurídicas desempe-
(iii) Uma desconfiança de todas as teorias e idéias que fazem o mundo social i
hIm nesse processo. Eles se empenham em desconstruir a estabilidade abstrata dos
cer natural e inevitável.
lij j oitos jurídicos: os conceitos jurídicos só podem ser considerados na perspectiva
(iv) A rejeição da idéia de absolutos morais. Assim, não podemos determina II' relações de conflito e escolha sobre cujas bases se assentam'.
antecedência como seria uma sociedade perfeita ou um direito perfeito. 1H1
assim se manifesta sobre o projeto radical: "Não existem formas únicas
determinadas que [o projeto radical] deva presumir ao longo de seu avanço." 9, Uma importante área de ataque é o campo da doutrina dos contratos. Na Inglaterra, A. Thompson,
faz sentido tentar especificar as formas de utopia ou coisa semelhante. A 11, Liiw of Contract" (na edição de I. Grigg-Spall e E Ireland, 1992: 69-76), critica o modo como geralmen-
ensina o direito dos contratos, em que "as questões de justiça social e distributiva, estudadas como con-
consiste apenas em opor-se a todas as afirmações repressivas de que o diii 'ndas dos contratos e que ameaçam a ordenação de mundos e princípios, são simplesmente excluídas
a sociedade não podem ser criticados em sua essência; que sua natureza ii verso irreal da teoria dos contratos ( ...)". E qual é o resultado? "O direito contratual cria uma imagem
vel e imutável; que é impossível abrir espaço para críticas ou transform;iç' 3 icinte da sociedade bem ordenada; uma sociedade na qual o direito aparece como o 'paraíso da justiça',
tio da sujeira dos negócios, da política, do poder e dos conflitos de interesses e valores; uma sociedade
tá acima das incertezas e incoerências da argumentação política e moral ( ...) faz com que a contingên-
A abordagem do direito reflete a abordagem geral do social. Em termos 3> capitalismo e das relações sociais como relações de troca de mercado se assemelhe a fatos necessários
para Gordon, os CLS introduzem uma abordagem interpretativa ou antiposi W, çla ( ...)," O direito de contratos leva a concretude da vida real a ficar de fora das discussões racionais das
do direito na sociedade. Em suas palavras, l' aula.
552 Filosofia do direito
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 553
Os CLS afirmam que o direito é importante em termos ideológicos. Se a iH As coisas parecem mudar na história quando as pessoas rompem com seu
social não é um objeto, não é algo apresentado a nós, mas sim criado por indivíd i modo habitual de reagir à dominação, agindo como se os obstáculos à melhora de
o que é que força as pessoas a recriá-la constantemente, da mesma maneira? suas condições de vida não fossem reais e elas pudessem mudar as coisas, e às ve-
que a hegemonia das idéias não permite que a maioria das pessoas anteveja posI zes elas podem, ainda que nem sempre como esperavam ou pretendiam fazê-lo...
lidades para além do que já existia anteriormente ou do que lhes é apresenHJ
como conhecido? O direito contribui poderosamente para a hegemonia das id Contra Gordon, porém, do fato de que o mundo social é criado pelas pes-
fornece um reservatório de idéias que constituem a noção de propriedade privada, li coas não se segue que elas possam mudá-lo facilmente. A indeterminação do
berdade de contrato, autoridade e coerção legítima, responsabilidade individual etc. Ia movimento CLS éambivalente; é como se o próprio chamado à ação ocorres-
ma de tudo, cria a idéia de direitos que subseqüentemente ergue barreiras nocio se em reconhecimento da dificuldade de combater o poder e a multiplicidade
ao redor dos indivíduos e vê a relação natural com os outros como questão de coa ias forças sociais em operação na modernidade tardia. Além do mais, podemos
fronto e defesa. Os direitos são armas, e o direito assegura que as pessoas se Sinl;a perguntar: o que vai substituir a reificação das idéias? Há um caminho sutil a ser
bem armadas umas contra as outras. 1 rilhado entre a plasticidade e a incoerência, entre o perspectivismo interpreta~
Mas isso significa cair na armadilha da reificação, ou do processo pelo qual a Livo e o niilismo; afinal, a autoridade que Hobbes impôs à ordem social - uma
idéias são tratadas quase como se fossem coisas, objetos em si mesmas. Muito co autoridade não desejada pelo movimento CLS - nasceu em parte da multipli-
bora o direito se desenvolva, na verdade, através de batalhas a propósito de deteri 111 cidade discursiva ao romper-se a coerência da síntese medieval. Contudo, esse
nadas idéias e disposições, bem como da manipulação das pessoas, é apresento processo de interpretação política é quase sempre decididamente crítico ou de-
como se a doutrina fosse uma realidade fixa. Digamos que, entre A e B, surja um 1 cestabilizador, francamente desconstrutivo e alegremente depreciador dos tex-
tígio que termina sendo levado ao tribunal. O tribunal decide que a lei favoreçu tos legais e das correntes doutrinárias preponderantes (ver, por exemplo, Kelman,
contra B. Dizemos que A tem direitos contra B, e que B tem uma obrigação legal 1984). Os outros objetivos são:
moral para com A. O direito é, agora, algo que A possui. Tornou-se uma coisa.
Portanto, encaramos as idéias jurídicas como se fossem coisas: a "proprieda 1 i) atacar a reificação das idéias jurídicas. Mostrar que se trata apenas de idéias e
é tida como uma coisa; o mesmo se diz de "patrimônio", "contrato", "delito ci-V ii do resultado de argumentos e conflitos específicos que, em última instância, são
Essas coisas povoam nosso mundo de idéias. Parecem sólidas e inevitáveis. Fay argumentos políticos sobre o modo como deveríamos viver. Portanto, o univer-
o mundo parecer imutável e excluem a realidade da interação humana", mas a so jurídico não é uma estrutura neutra e inevitável de regulamentação, mas uma
que as coisas são assim mesmo? arena política (e uma arena em que, por exemplo, a interpretação semiótica dos
argumentos jurídicos tem a mesma importância da interpretação de fatos e re-
Para lutar contra a hegemonia e a reificação, os CLS têm por objetívo: gras; ver Duncan Kennedy, 1989, "A Semiotics of Legal Argument").
(i) excluir a idéia de que o mundo social é um cenário de bases naturais objetiv o) atacar a hegemonia do liberalismo jurídico, mostrando particularmente as con-
mente identificáveis pela realidade política da interpretação. Não existe um moi tradições internas das idéias jurídicas. Se estas são contraditórias e cheias de
natural ou objetivamente racional de perceber o mundo; portanto, a abordag conflitos, então podemos encarar sua dominação como uma questão de esco-
interpretativa ou hermenêutica é intrinsecamente política. Disso se segue qu 1 1a ou imposição, e não de opção natural". Um bom exemplo é um ensaio de
mundo social é em grande parte criado pelos seres humanos, que podem, pc Duncan Kennedy sobre o contrato, "Form and Substance in Private Law Ad-
tanto, mudá-lo se mudarem seu modo de percebê-lo e usarem o poder que é judication". Kennedy enfatiza a tensão contínua entre forma, "por exemplo os
na "realidade" - deles. Desse modo, a mudança jurídica não deve ser um reík
xo passivo das verdades da condição humana, mas sim uma arma da luta 1
litica progressista`. Contra o determinismo das condições sociais, autores (.d I criação contínua dos seres humanos, que reproduzem continuamente o mundo que conhecem por-
111 iam (equivocadamente) não ter escolha—, é evidente que estaremos introduzindo uma abordagem mui-
como Gordon (1982: 290) defendem a indeterminação social:
ente no debate sobre a possibilidade ou não de a transformação jurídica produzir mudanças reais ("so-
a econômicas"), ou de o direito ser totalmente dependente do mundo real e "implacável" da produção.
2. A síntese de Kelman em A Cuide to Critical Legal Studies (1987: 3) é reveladora. Ele acusa o pensa-
1O.Vejamos, de novo, a abertura do livro de Patricia Williams: como pôde Kate, uma negra inocente, Liberal iiominante de apresentar uma imagem de coerência e lógica doutrinárias quando a realidade não
comprada e vendida, reduzida a uma discussão sobre sua transformação em produto em termos de estai de contradição subjacente e ocultamento da contradição. Na verdade, o pensamento legal é "simul-
dez ou loucura, ser mencionada num contexto de "vício redibitório"?
1 i iente assediado pela contradição interna (não por 'preocupações antagônicas' engenhosamente pon-
11. Ainda citando Gordon (1982: 290), "Se começarmos a ver o mundo dessa forma - não mais ci ii.
até obter-se um equilíbrio judicioso, mas sim por um conflito irredutível, irremediável e insolúvel) e
um conjunto estável de 'condições econômicas' ou 'forças sociais' que nos oprimem, mas sim como um 1'
•p essão sistemática da presença dessas contradições".
554 Filosofia do direito Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 555
atributos formais de um contrato válido -, comutatividade, intenção dc II gatória do "direito"? O direito só é obrigatório do ponto de vista positivista
uma relação jurídica, oferta/aceitação etc." e objeto válido (ou irracionalidack' iinedy não leva em conta a posição de Dworkin nesse texto). Para a perspectiva
termos, despropósito, desequilíbrio do poder de negociação e política públici li pretativa radical, devemos levar em conta a finalidade e o papel. O raciocínio ju-
Ele também se refere à tensão entre regra e princípios, ou entre direito estri li o é um tipo de trabalho dotado de finalidade - no caso, a finalidade consiste em
justiça ou eqüidade. Li 1 ao caso o resultado que me é sugerido por meu senso de justiça, a despeito do
II' parece ser, à primeira vista, a existência ou a oposição do direito. Contudo, os da-
Embora o direito tenha por objetivo a lógica, a precisão de raciocínio etc., li jurídicos não obrigam - a obrigação imposta por um meio é relativa ao projeto
constantemente adotando soluções pragmáticas em seu embate com a realida Ilhido ou à escolha do que se deseja fazer. Não existe uma determinação inevi-
experiência supera qualquer tipo de lógica estritamente jurídica. Na realidade d vi do resultado que seja antecipada pelos próprios dados jurídicos. O projeto es-
reito contratual, objeto válido e formalismo se contradizem; por exemplo, o (1 1 Iii ido é certamente limitado pelos dados de que se dispõe, mas o contraste não se
parece exigir o equilíbrio das prestações para que uma troca lícita possa ocorrer, i 1 c ntre um sujeito radicalmente livre e transcendental (o juiz existencialista), que
essas considerações podem ser reduzidas a ninharias - a algo puramente formal 1 fazer tudo, ou um robô condicionado pelo direito; trata-se, antes, de um tipo
nominal. De novo, o objeto válido exige que ambas as partes tenham a intenção trabalho que visa a um objetivo e é realizado com materiais específicos.
chegar a um acordo. Mas há um critério objetivo de intenção comum - a saber, ic
partes compreenderam os termos, o que nos permite ver que, na verdade, a exibI
cia de objeto válido acaba sendo uma mera formalidade. Essas contradições são II DUNCAN KENNEDY E A IDÉIA DE CONTRADIÇÃO FUNDAMENTAL
correntes no direito, e a prática jurídica pode ser transformada (ou assim se espc II
por nosso conhecimento dela. Essas contradições são algo que podemos eliminar 111 O empenho liberal no direito consiste em produzir regras claras em todos os ca-
meio de uma melhor ciência do direito? Ou serão irremovíveis? Kennedy sugere e c, a despeito da contradição entre forma e objeto e entre regra e princípio. Qual a
segunda alternativa, uma vez que as contradições na realidade do direito refle1 k , III tao disso? Segundo análise de Kennedy num artigo de 1976, intitulado "Form and
contradições fundamentais da condição humana no contexto da modernidade. Es1 II III )sl-ance in Private Adjudication", há um conjunto de contradições no cerne do li-
cificamente, a modernidade liberal cria uma tensão entre o individualismo conca, rt1ismo. O artigo de Kennedy (1979) sobre "The Structure of Blackstone's Com-
sob a idéia de um estado de direito abstrato e infalível, por um lado, e nossos sei i i lanlaries" [A estrutura dos comentários de Blackstone] pergunta quais são as
mentos comunitários de empatia e altruísmo, por outro. O juiz se vê lançado em (11 II cões sociais, os conflitos e dicotomias existentes por trás deles`. Com esse conhe-
reções opostas por esses dois impulsos contraditórios: imento, qual é então o papel da obra de Blackstone? A tensão básica se dá entre
)Inurndade e autonomia.
O altruísmo nega ao juiz o direito de criar regras sem verificar seus resultados,
sim como nega que a única alternativa à postura passiva seja a afirmação de um poi
A maioria dos participantes da cultura jurídica norte-americana acredita que o
discricionário total enquanto criador do universo jurídico. O altruísmo afirma que pod
Objetivo da liberdade individual é ao mesmo tempo dependente e incompatível com
mos chegar a uma compreensão dos valores que as pessoas introduziram em suas rc
a ação comunitária coerciva que se faz necessária para obtê-lo. Outras (família, amigos,
ções particulares e da tendência moral de seus atos. Estes às vezes permitem que o jiIi
burocratas, o Estado) são necessárias se pretendemos nos tornar pessoas integrais ( ... ).
tome uma decisão, depois do fato, com base em todas as circunstâncias, como uma
Mas ao mesmo tempo que nos forma e protege, o universo dos outros ( ... ) ameaça-nos
soa-em-sociedade, não como indivíduo (1976: 1773).
com a aniquilação ( ... ). Infinitas conformidades, grandes e pequenos abandonos do
eu em nome dos outros - eis o preço da liberdade que experimentamos na sociedade
Para os CLS, o direito é um campo de ação, e o modo como tomamos decisíl (1979: 211-2).
jurídicas é produto de nossa "consciência legal", e não do fato de sermos deterru
nados pelos dados do processo material. Kennedy (1986) nos pede para imagina
que sente um juiz hipotético - um juiz bastante específico, no sentido de ser um a1 Í 13. Como Keiman (1987) sintetiza o projeto de Kennedy nessa análise:
vista liberal comprometido com o uso do direito para fins de justiça social - quan(1 4o expandir o insight realista de que a categorização jurídica cria uma ênfase que pressupõe um aspecto de
se vê diante de um caso individual em que percebe a existência de uma regra jurídi 'solidez, realidade e valor intrínseco', Kennedy analisa exaustivamente os modos como os comentários conferiam le-
gitimidade às práticas sociais existentes na Inglaterra de Blackstone através da criação de categorias artificiais que aos
que está em desacordo com o modo como ele deseja ver o caso resolvido. poucos assumiam uma aparência de necessidade. A analise estrutural dos comentários é, na verdade, uma ind
Diante da exigência de conceder um mandado judicial para proibir um pique1 1' indireta sobre os modos como os limites e agrupamentos do pensamento jurídico moderno contribuem para ia-.
nosso juiz prefere ficar do lado do trabalhador, mas como ele pode esquivar-se à fo bilização de uma ordem social existente.
556 Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 557
Filosofia do direito
A contradição é de tal monta que a liberdade individual depende da coerção co pectiva de obter direitos plenos tem sido uma fonte de esperanças intensamente moti-
vadora, quase religiosa, desde que chegaram a este país ( ... ); nos casos em que a expe-
letiva. Precisamos dos outros ao mesmo tempo que definimos nossa liberdade pui
riência pessoal tem raízes não apenas num sentimento de ilegitimidade, mas no de ser
oposição a eles. Para Kennedy,
ilegítimo, no de ser vítima de estupro e no medo de ser assassinado, a adesão dos negros
a um esquema de direitos tanto positivos quanto negativos — ao eu, à santidade dos pró-
A contradição fundamental - o fato de as relações com os outros serem ao rnesrn
prios limites pessoais - faz sentido (1991: 154).
tempo necessárias à liberdade e incompatíveis com ela - não é apenas intensa. E tan
bém onipresente ( ... ), é um aspecto de nossa experiência de todas as formas de vida se
cial ( ... ). Simplesmente não existem questões legais que não envolvam diretamente Embora os direitos possam dividir as pessoas e criar uma distância social, para
problema do conteúdo legítimo da coerção coletiva, uma vez que, por definição, um prc muitos essa distância é bem-vinda. Williams narra como a experiência dos negros é
blema legal só passa a existir quando alguém tiver pelo menos imaginado que poderi e de um ser demasiado conhecido, de um indivíduo já muito conhecido pelo imagi-
invocar a força do Estado (ibid.: 213). nário dos estereótipos, enquanto os direitos podem criar os limites de uma perso-
nalidade abstrata, porém jurídica. Os direitos criam uma pessoa que pode se ajustar
Em seu artigo, Kennedy afirma que nossa consciência da contradição funda s estruturas institucionais que tradicionalmente têm excluído a personalidade hu-
mental não é um aspecto inevitável da existência humana, mas sim o ponto final d mana, real, da "minoria negra":
um longo processo de transformação histórica. Os direitos são o mecanismo pelo qual
o liberalismo oculta a contradição. Os direitos são afirmações de liberdade abstraídas Educaram-me para que eu estivesse sempre consciente da probabilidade de que, a
das condições sociais, sem que na verdade determinem a natureza dessa liberdade'. despeito de minha habilitação profissional, as pessoas iriam perceber e repudiar o fato de
Para onde isso leva? Ninguém sabe ao certo! A ambigüidade resulta nisso: ser; eu ser mulher e negra, considerando-me inconfiável, sem valor, hostil, raivosa, impoten-
a contradição fundamental (i) um atributo exclusivo do liberalismo, que por isso mes te, irracional e provavelmente indigente. A futilidade e o desespero são aspectos muito
mo vai desaparecer quando este for superado, ou (ii) trata-se de uma característio reais de minha resposta. Desse modo, ajudam-me a demarcar limites; mostrar que
essencial da condição humana que o liberalismo apenas realça? posso falar a linguagem [dos direitos legais] é meu modo de aumentar a confiança que
se deposita em mim nas minhas atividades profissionais. Como negra, recebi desta so-
No primeiro caso, então, os CLS têm por finalidade revelar as características ciedade uma forte consciência de mim mesma como alguém que já é por demais conhe-
contraditórias do liberalismo, na esperança de superá-las - uma preocupação mar cido, pessoal e subordinado aos brancos. Ainda estou me recuperando do fato de ter
xista tradicional; no segundo, a revelação das contradições precisa ser complemen- sido tratada como três quintos de um ser humano, como parte descartável do universo
tada por tentativas de chegar a um meio-termo (ou justiça social) aceitável, ao mes- branco (ibid.: 147).
mo tempo que nos damos conta de que é impossível superar a contradição. Sem
dúvida, o tema de Kennedy é o de que precisamos reenfatizar a base comunitária da A partir dessa experiência, a perspectiva de Williams sobre a utilidade e a expres-
liberdade - que é uma questão social, e não individual. O discurso sobre os direitos sividade dos direitos é diferente daquela da posição dominante nos CLS. Os direi-
disfarça as condições sociais que precisam ser consideradas ao se definirem as áreas tos não devem ser minimizados, mas sim transformados num carnaval devida, numa
de liberdade e restrições nas relações entre as pessoas. Para os CLS, os direitos divi- estética do legalismo.
dem as pessoas em indivíduos - os direitos minimizam as aspirações comunitárias. Se os CLS podem afirmar que os direitos nos apartam da comunidade, então,
São os instrumentos da mistificação do liberalismo jurídico. para aqueles que não aproveitaram os frutos da modernidade, para os excluídos e
oprimidos, o fato de ter direitos é uma maneira de ser modernos. Os direitos são ao
mesmo tempo instrumentais — são os instrumentos que nos permitem adquirir po-
COMPARAÇÃO COM O DISCURSO DE PATRICIA WILLIAMS
SOBRE OS DIREITOS der social e concretizar nossos projetos de vida enquanto indivíduos ou grupos, e
expressivos — ao permitirem a escolha e criarem um espaço social, expressam um
Outra maneira de descrever a dissonância entre os negros e os CLS dá-se em ter bem social, isto é, o tipo de vida social que dá aos indivíduos a possibilidade de fa-
mos do grau de utopismo moral com que os negros vêem os direitos. Para eles, a pers- zer projetos de vida e escolhas constantes. Trata-se de uma concepção institucional
que incorpora uma noção do ser humano mais rica do que aquela que carece da
idéia de direitos e das conseqüências existenciais.
14. Em geral, os autores CLS parecem céticos acerca dos direitos (por exemplo, Gordon, 1984), vendo-o-
como instâncias que nos limitam em vez de nos humanizai constituindo-nos em indivíduos separados, não co-
mo seres sociais.
558 Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 559
Filosofia do direito
REVENDO A CONTRADIÇÃO FUNDAMENTAL, OU: O MOVIMENTO ivimento do moderno Estado administrativo encontram-se as preocupações com
CLS PODE FUGIR À NECESSIDADE DE SER RACIONAL? liberdade e o estado de direito politicamente fortalecidas pela experiência da de-
1 uaidade:
Num famoso diálogo com Peter Gabei (Rol? Over Beethoven), Duncan Kennedy
clarou ter renunciado à idéia da contradição fundamental. A renúncia não prei As questões fundamentais de especulação jurídica e política decorrem da dupla ex-
afetar a substância da acusação - o fato de certas contradições fundamentais di \ periência da injustificabiidade da ordenação social existente e da corrupção dos acordos
social—, mas equivalia a um reconhecimento de que elas estavam, em certo sei e tradições morais pela injustiça de suas origens. Na medida em que as pessoas têm essa
experiência, elas lutam por evitar ou diminuir a escravização mútua dentro daquela or-
além da possibilidade de apreensão por uma teoria racional e lógica. Os probJi
denação e por estabelecer o poder mais abrangente, o poder de governo, numa base que
existenciais do mundo não podiam ser refletidos por teorias. Kennedy estava an supere a arbitrariedade das hierarquias sociais ordinárias. Uma das formas principais
ciando o paradoxo com o qual os CLS se depararam, no sentido de que acusava dessa luta é o anseio pelo estado de direito (1976: 176).
projeto do liberalismo jurídico de pretender apreender as verdades da condição 111 1
mana através de certos axiomas lógicos e formais; os CLS, por sua vez, faziam A percepção existencial da injustiça social que o indivíduo moderno experi-
por meio da escrita de artigos concisos e formais, razão pela qual devem apontc cuta ao recusar-se a aceitar como natural uma ordem social com hierarquias in-
verdades sem a pretensão de criar teorias verdadeiras. Para os críticos dos CLS, rporadas não desaparece com o estabelecimento de direitos legais e do estado de
equivale a um recolhimento ao silêncio, a uma renúncia da tradição de engajam li reito. A desigualdade persiste; na verdade, a^ existência da desigualdade social
crítico - mas o partidário dos CLS perguntaria: com que linguagem devo falar? A e'opicia o contexto para a ordem jurídica e estimula a exigência contínua de trans-
partir de Hobbes, o controle do jogo de linguagem dominante tem sido uma pau 1
)rmação da sociedade. Unger parece indicar que estamos condenados a experimen-
crucial da manutenção da ordem social e, conseqüentemente, da dominação po ir um sentimento contínuo de injustiça social, uma vez que não podemos investir
ca. Os CLS desejam acabar com o predomínio da linguagem jurídica, mas devem u ordem jurídica (e a sociedade por ela constituída) do status
de algum tipo de or-
crever judiciosamente para serem ouvidos - não há muito como fugir a esse critén dem natural.
Mas há um sentido mais amplo na indicação dos limites do sentido - sem dth
da, as limitações do formalismo demonstram que o todo não pode ser apreendido A menos que as pessoas recuperem a percepção de que as práticas da sociedade re-
forma axiomática. A mensagem é, de novo, que a análise e a síntese estão interligc presentam algum tipo de ordem natural, e não um conjunto de escolhas arbitrárias, elas
das: não se pode fugir às metanarrativas. E preciso ter uma imagem do todo a fim d não poderão fugir ao dilema do poder não justificado. Contudo, como se pode chegar
apreender a diferença entre verdade e construção teoremática. Talvez isso fique mal a essa percepção de uma ordem imanente nas circunstâncias da sociedade moderna?
evidente na obra de Roberto Unger, como pretende mostrar a discussão seguintu. (1976: 240).
Unger sugere que um acordo moral comum teria, primeiro, de presumir algum
MANTER A CRENÇA NAS METANARRATIVAS, OU: OQUE A POLÍTICA D conceito estável de "uma natureza humana comum, ou das exigências intrínsecas da
TRANSFORMAÇÃO SIGNIFICA NA OBRA DE ROBERTO UNGER? ordem social, em vez de ser produto dos interesses dos grupos dominantes", bem
como um "consenso universal sobre a ordem imanente da vida social".
Roberto Unger é extremamente prolífico. Sua obra vai de uma primeira aplica- Só então seríamos capazes de acreditar no padrão de distribuição como forma
ção da epistemologia e da teoria social ao direito, em meados da década de 1970 de (des)igualdade natural. Isso equivaleria a uma volta a alguma forma de direito cos-
(Knowledge and Politics, 1975), a um manifesto do movimento CLS (lhe Critical Lega? wineiro, e não ao estado de direito. Mas também teria de ser um direito costumeiro
Studies Moveinent, 1986) e uma gigantesca obra sobre a teoria social em fins da dé- especificamente moderno: "Seria menos a ordem normativa estável de um grupo es-
cada de 1980 (Politics, a Work in Constructive Social Theorj), pecífico do que o desenvolvimento da linguagem moral da humanidade" (1976:241).
passando por uma pro-
funda análise do desenvolvimento do direito ocidental, no estilo de Weber (Law iii Devemos habitar uma ordem imanente enquanto precisamos de transcendên-
Modern Society, 1976). cia. A idéia de Unger não é o movimento para alguma esfera platônica, mas sim o
A primeira influência sobre Unger é a teoria social de Max Weber, em particular "ideal de uma comunidade universal" em que "a consciência de uma ordem laten-
a ideologia dos tipos ideais e a necessidade de lidar com a natureza complexa da ad- te ou natural na vida social deve estar em harmonia com a capacidade de permitir que
ministração moderna. Unger inicia sua primeira obra jurisprudencial, Law in Modern a vontade reformule os ordenamentos sociais" (1976: 266). O que servirá de guia a
Society, com uma retomada explícita da narrativa de emancipação; por trás do desen- essa vontade?
560 Filosofia do direito
Ceticismo, desconfiança .e o movimento dos estudos jurídicos críticos 561
Unger recusa-se a adotar a fria racionalidade da concepção weberiana de que ii
desigualdade social era a força motriz por trás do trabalho individual e, desse modo, 1)'55° é uma crítica fundamental do liberalismo` e da oposição binária que é intrín-
seca à sociedade liberal (por exemplo, público/privado, fato/valor, razão/desejo), na
desenvolvimento econômico. Para Weber, estamos condenados à jaula de ferro dl
tarefa de transcender o liberalismo que caracterizou a modernidade avançada.
Estado jurídico-racional e sua administração burocrática, uma vez que não podernc
Contudo, embora tenhamos uma vocação - a vocação da transformação -' não te-
superar a desigualdade. Unger procura fazer o pensamento humano reconciliar-se
rnos direito natural nem podemos estar convencidos da graça divina`.
com a metafísica. Na década de 80, Unger aparentemente passou do desejo de ir além da mo-
dernidade para a adoção de uma teoria jurídica política radical do modernismo. O
Boa parte da ciência social foi criada como um baluarte contra a metafísica e a pu que se deve confrontar agora é o legado de Nietzsche, em particular o niilismo. De-
lítica. Fiéis à perspectiva produzida pela revolta moderna contra a filosofia antiga, os
vemos enfrentar e superar o niilismo", com que Nietzsche quer dizer que devemos
ricos sociais clássicos estavam ansiosos por libertar-se, primeiro, das ilusões da meta iii
ca, depois, da aparente arbitrariedade dos juízos políticos. Eles queriam criar um coli destruir os valores tradicionais juntamente com um Deus que funcione como centro
de conhecimentos da sociedade que não vivesse à mercê da especulação metafísica ou da autoridade; precisamos compreender nossa verdadeira posição: em última instân-
da controvérsia política, e até certo ponto foram bem-sucedidos. cia, o destino da sociedade encontra-se na vontade humana, uma vez que ofiíndamento da
Hoje, porém, vemos que para evitar seus próprios dilemas, a teoria social deve, vi' sociedade é a vontade humana. Portanto, o direito como mecanismo para a criação da
certo sentido, tomar-se novamente metafísica e política. Deve posicionar-se sobre qut': organização social e da teoria jurídica - como o pensamento institucional dessa
tões da natureza humana e do conhecimento humano para os quais nenhuma elucida ordem - deve criar uma ordem social e dotá-la de uma autoconsciência institucio-
ção "científica" é, ou poderá vir a tornar-se, possível. E deve reconhecer que seu próp 1 nal quando todas as justificações naturais ou transcendentais (e as sanções aos atos
futuro é inseparável do destino da sociedade. O progresso da teoria depende de evel humanos) tiverem sido abandonadas. Como podemos firmar nossa posição? Como
políticos. As doutrinas adotadas pela teoria são ao mesmo tempo ideais e descriç6t: contestar o desafio pós-moderno? Unger volta deliberadamente à metanarrativa
escolhas que a teoria faz são ao mesmo tempo ideais e descrições. Essas escolhas não como forma de escrita. Em sua obra introdutória ao projeto fundamental dos anos
nem arbitrárias nem susceptíveis de comprovação lógica ou empírica. Elas se erguem 80 (Social Theory: Its Situation and Its Task), ele começa por definir o projeto social da
bre concepções especulativas dos requisitos da ordem social e das exigências da na 111 modernidade:
reza humana, concepções que são informadas pelo conhecimento histórico, mas o.
podem ter a pretensão de decorrer necessariamente deste. O pensamento social moderno nasceu proclamando que a sociedade é criada e
imaginada, que é uma criação humana e não a expressão de uma ordem natural subja-
Unger depara com a mesma problemática de Kelsen, mas a metodologia e cente. Esse insight inspirou as grandes doutrinas seculares de emancipação: liberalismo,
abordagem da teoria social é o extremo oposto. Como não podemos criar, com êxih socialismo e comunismo. De um jeito ou de outro, todas essas doutrinas sustentavam
uma teoria pura, devemos ser claros quanto à política de nossas posições teóricas; a promessa de criar uma sociedade na qual podemos estar, tanto individual quanto co-
necessário combinar os diferentes aspectos de nossos anseios humanos em nome letivamente, habilitados a libertar nossas relações práticas e passionais de papéis e hie-
de uma preocupação intelectual progressiva e edificante.
15. Unger emprega o termo "liberalismo" para designar os países desenvolvidos do Ocidente; portan-
A riqueza das preocupações imediatas associa-se ao anseio pela universalidadl 1 to, sua crítica do liberalismo é na verdade uma crítica da modernidade. Ele não é marxista.
pensamento para oferecer à mente um entusiasmo que a estimule à ousadia, que a 1 o 16. Ao expormos as "antinomias" do pensamento moderno, isto é, liberal, procuramos ir além delas.
ne receptiva ao incomum e ao lugar-comum, que a desperte para a unidade das coi,;,i' Somente o ideal regulador de uma comunidade universal pode consegui-lo, permitindo-nos a experiência do
Os grandes teóricos sociais tiveram essa experiência quando passaram das gil 1' "sentido de ordem imanente ( ...) em harmonia com a capacidade de crítica ou de transcendência", com o que
ralidades especulativas de seus antecessores para as conjeturas mais precisas de i i 1 "o antagonismo entre os aspectos individual e social da personalidade" se dissolve por meio do "reconheci-
ciência social. Agora, cabe a nós imitar nossos mestres através de uma viagem na di: mento, por parte de todas as pessoas, da individualidade concreta de seus semelhantes". Haverá, porém, um
oposta, de volta ao caminho por eles trilhado (1976: 268). modo de assegurar tal coisa? Unger só nos oferece uma prece enigmática:
Quando a filosofia alcança a verdade dè que é capaz, transforma-se em política e prece, política por meio da
qual o mundo é transformado, prece por meio da qual os homens pedem a Deus que complete a transformação do
Ao buscar o rigor intelectual de "conjeturas mais precisas" em detrimento de " y mundo ao conduzi-los à Sua presença e conceder-lhes aquilo que, por si sós, seriam incapazes de obter.
neralidades especulativas", obedecemos ao critério popperiano da prática de 11 11 li Mas nossos dias passam, e ainda não o conhecemos plenamente. Por que continuas em silêncio? Fala, Deus
ciência apropriada (abrindo nossas teorias e conjeturas à verificação e refutação), o (Ungei 1975 294-5).
nos limitamos a uma engenharia social gradativa, sempre superadas nossas espei ii 17. Unger apresenta um princípio-guia em Passion: Ais Essay on Personality (1984: viii-ix): "O pensa-
ças e energias. Em vez disso, devemos nos engajar na "crítica total", cujo prit vento só fala com autoridade sobre quem somos e como devemos viver quando submete nossos ideais e
:osso auto-entendimento à chama do cético, arriscando-se ao niilismo em nome do insight."
562 Filosofia do direito Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 563
rarquias rígidos. Se cabe a nós, de fato, reinventar a sociedade, podemos levar adir icional que investe nosso contexto da ilusão de solidez e inevitabilidade estrutural.
o objetivo liberal e esquerdista de extirpar, de nossas formas de colaboração prática As estruturas institucionais atuais traíram as esperanças de modernidade. O projeto
de ligação passional, a mácula da dependência e da dominação. Podemos favorecci ansformou-se num privilégio conservador para as elites. Para as massas, a realida-
ideal modernista de nos libertar, mais plenamente, da experiência subjetiva de um roi 1
e é a alienação, o ressentimento e o anseio. O desencanto opera em proveito das
ro pré-escrito e imposto. Podemos, inclusive, unir os objetivos da esquerda liberal
modernistas, com a ambição mais vasta de criar universos sociais cuja estabilidade 11, lutes, uma vez que gera apatia e respostas não positivas, como o crime, que só ser-
dependa da capitulação de nossa capacidade de criar uma sociedade, nem de seu c vem para fortalecer ainda mais o domínio das poderosas forças imaginadas.
fisco pelas elites privilegiadas. A questão prática da concepção da sociedade como a Unger não se afasta da linguagem que esteve na base da modernidade. Ele per-
criado e imaginado consiste em descobrir o que é realista e o que é ilusório nesses obJL unta constantemente por que certos conceitos devem ser estruturados do modo
tivos, e em encontrar o caminho que leve a sua concretização (1987: 1). :orno viemos a empregá-los. Por exemplo, os direitos. Por que motivo os direitos de-
vem ser vistos como coisas individuais? Por que não "direitos de solidariedade"? Di-
Assim,, embora a modernidade se tenha iniciado com o distanciamento e o c ),, cAos de mercado? Direitos da desestabilização?
tume, e as concepções religiosa e cosmológica entre nossas identidades sociais e i 11
Somente um superliberalismo pode conduzir a promessa transformadora do li-
dividuais, não levamos suficientemente longe a imaginação transformadora. Permitim 1 1 cralismo por direções radicais. Democracia com uma descentralização de poderosas
que um imaginário social debilitado e institucionalmente conservador controlasse nosc nAruturas institucionais, uma desestabilização das formas institucionais de modo
vidas. Não "adotamos integralmente a idéia da sociedade como criação humana". ue o poder possa vir de baixo, não de cima. Ansiamos por novas estratégias de con-
Unger vê como um objetivo importante o nosso entendimento do contexto: dv liança e dependência - por criar uma versão do ideal comunitário que seja mais de-
nossa existência cotidiana, não podemos aspirar a mais do que ser "criaturas de r 1 ensável do que aquilo que hoje temos".
tina". Aqui, Unger leva em conta a tradição pessimista de Weber no sentido de nu Qual é a mensagem específica da teoria jurídica? Unger parece sugerir duas
ver como se considerássemos nossas rotinas e estruturas como algo dado, mais cv roblemáticas fundamentais: a questão da contextualidade e a da solidariedade social.
táveis do que na verdade são. Nossas rotinas existem no interior de estruturas. Co A teoria jurídica deve libertar-se do domínio das imagens contextuais restritivas e
tudo, não devemos considerar essa estrutura de rotina como algo fixo, como se xv lutar por uma forma mais justa de solidariedade social. De que modo isso pode ser
fosse naturalmente dado. Temos de pôr fim ao domínio dos papéis e hierarquiiv ilcançado?
rígidos em nossas relações com as outras pessoas. O objetivo Em primeiro lugar, a transformação do elo entre teoria jurídica e a idéia de um
contexto de restrição; em segundo, a busca constante de uma maior flexibilidade so-
( ... ) consiste em libertar-se de um estilo de compreensão social que só nos peiiiiita exp!i cial e de uma experimentação constante, visando à criação de formas mais comuni-
car a nós mesmos e a nossas sociedades na medida em que nos vemos como marionv árias de sociedade, que não se fechem à alteridade de cada ser humano. Contudo,
tes indefesas das realidades sociais que criamos e habitamos, ou das forças do dircilti como se tornará possível essa reconciliação entre comunidade e liberalidade? Talvez
que supostamente deram origem a essas sociedades. ipenas por meio de um ideal regulador; Unger certamente se recusa a afirmar a pos-
sibilidade de uma sociedade utópica. Em vez disso, devemos transformar nossa teo-
Compare-se isso à convicção de John Austin de que havia certas leis fundamen ia jurídica num instrumento flexível. Em Law and Modern Society (1976), Unger asso-
tais de economia política às quais nós, em sociedade, simplesmente tínhamos de ali ciou o pensamento jurídico à criação de uma imagem de necessidade social, e o fez
nhar nossas instituições sociais. Ainda que, para Austin, tenhamos de encontrar ,, em forma de quatro itens que devem ser discutidos:
verdadeiro conhecimento do mundo natural e social, e fazer com que nossas inst
tuições jurídicas se ajustem a tal conhecimento, para Unger (i) O direito é um sistema. Esta é a idéia que Weber considerava fundamental para
o processo de racionalização ocidental. Portanto, a legalidade pode ser uma es-
A história é, de fato, surpreendente; as coisas simplesmente não parecem ser assin trutura fechada na qual se encontram as respostas a qualquer problema jurídi-
E a invenção social, deliberada ou involuntária, não é apenas uma representação de pc co. Em vez de um sistema determinante, por que não aceitar um princípio da
sibilidades preestabelecidas e estritamente definidas. indeterminação?
Em nossa vida cotidiana, iludimo-nos ao acreditar que alguma coisa nos form
e que a sociedade é estruturada por forças que não podem ser controladas; que u , 18. Obs.: Unger afirma que o radical deve evitar o tom utópico. Se o radical for visto como utópico, será
i'ocílimo para o conservador dizer: "Tudo muito bem com a esperança e a teoria, mas minha luta é com o rea-
contextos da vida fornecem as conexões naturais determinantes. Mas por que cor: é possível quando o
IicLa e o possível!" Temos de imaginar o não-ainda-possível, mas [também] aquilo que
tinuamos a ter essas convicções? Porque estamos nas garras de um imaginário insti concebemos
564 Filosofia do direito 565
Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos
(ii) Os profissionais do direito entendem as formas específicas de racionalidcIL O QUE COLOCAR NO LUGAR DESSAS IDÉIAS REJEITADAS?
jurídica que lhes permitem encontrar as respostas aos problemas jurídico:
partir dos recursos desse sistema (portanto, eles compreendem as técnicas Para Unger, a tese da autorização (empowerment), as idéias de fluidez e flexibili-
precedente, interpretação das leis e argumentação legal)19. Em geral, os auto ide do direito, a política de transformação têm por objetivo criar um novo imaginá-
res CLS negam a existência dessa modalidade autônoma e neutra de racioi ii) institucional no qual se possa desenvolver uma política de solidariedade social.
nio jurídico substituindo-o por um princípio do antiformalismo. 1 verdade, nesse projeto ele não se distancia muito dos valores ocultos do projeto
(iii) As doutrinas da estrutura jurídica refletem uma visão coerente das relações ci ídico desde Hobbes; a exceção é que Deus (assim como seu substituto moderno,
tre as pessoas, as condições fundamentais e a natureza basilar da sociedade. uncionalidade) foi finalmente morto. Em primeiro lugar, qual é o programa de
Os partidários dos CS negam isso, argumentando que na verdade as doutrina. tiinsformação social?
consistem em pontos de vista antagônicos, conflitantes e contraditórios, r O programa não é urna mera variação da república mítica, antiliberal, e muito me-
nhum dos quais é conseqüência natural da condição essencial da humanid;i nos alguma síntese absurda das democracias estabelecidas, com seus imaginários
de: este é o princípio da contradição. opostos. Em vez disso, representa um superliberalismo. Leva adiante as premissas li-
(iv) A legalidade dá forma à sociedade e ao desenvolvimento social, uma vez qi berais sobre o Estado e a sociedade, sobre o estar livre da dependência e do domínio das
relações sociais pela vontade, ao ponto em que estas se fundem numa ambição maior: a
a ação social reflete as normas geradas pelo sistema jurídico. Quer por coerçã construção de um mundo social menos alheio a um eu que sempre pode violar as re-
quer por interiorização, os indivíduos seguem as prescrições legais, o que no gras geradoras de seus próprios constmtos mentais ou sociais e substituí-Ias por outras
permite afirmar que a sociedade é regida pelo direito. Os CLS atribuem à es regras e outros consfrutos (Dle Critícal Legal Studies Movement, 1986: 41).
trutura formal do direito um papel menos importante na condução da socio
dade: este é o princípio da marginalidade. Ao contrário, o que é importante é Essa posição recorre a temas que já conhecemos desde Hobbes, e a afirmação de
consciência social que envolve e provê o campo do direito; talvez a confianç i li e o ponto central da ordem social é o fato de se poder substituí-la é idêntica ao
de Unger em Weber seja instrutiva - uma questão de legitimidade. iocedimento de revogação, à idéia de que submetemos o direito a experiências, de
e o que é legal hoje pode deixar de sê-lo amanhã - idéias tão cruciais ao positivis-
De que modo o sistema alcança e preserva sua legitimidade? A ligação entre a o) jurídico.Temos o processualismo sem nenhuma orientação que nos venha da idéia
rigidez do sistema social e o papel do sistema jurídico é clara, no sentido de que cer- lo natureza humana ou de destino humano. Por termos tido a coragem de "correr
tas idéias fundamentais impedem o funcionamento do pensamento transformador: risco do niilismo" ao "passar nossas idéias e nosso auto-entendimento pela chama
lo cético" (1984: ix), criamos as condições para um mundo social que "torna dispo-
1. A idéia de que a ordem social é mantida por um sistema de convicções que con- i íveis os instrumentos de sua própria revisão" (1986: 105).
vencem os que pertencem ao sistema de que é aquela a ordem natural das coisas. De que bases partimos? Rejeitamos qualquer idéia de uma sólida base ontológi-
- nossas bases são o reconhecimento da contingência e nossa autoconsciência
2. A idéia de que o sistema é estável e necessário, conquanto seja transitório e ar-
e sua possibilidade de revisão. Recusamo-nos tanto a "exaltar um valor específi-
bitrário, e reflita os interesses dos grupos e classes dominantes. As doutrinas ju- da
1 à custa de outros" (1987b: 354) quanto a escolher "uma dentre várias idéias
rídicas são apresentadas como essenciais e racionais, embora sejam contingen-
lesma espécie".
tes, subjetivas e arbitrárias. Em vez disso, as disposições exprimem nossa dialética fundamental: a de ha-
3. O pensamento jurídico corrente oculta a contradição entre a promessa de igual- lotar um contexto e transcendê-lo. Queremos transformar a transcendência do
dade e liberdade e a realidade de opressão e hierarquia. contexto numa grande virtude política. Unger fala sobre os problemas da condição
ós-moderna - sua idéia de plasticidade se assemelha a uma versão radical da so-
edade aberta que Popper e Kelsen defendem como sua concepção da sociedade
ista -, mas não se pode atribuir substância real à idéia de superliberalismo. A mui-
1 tal idéia parece correr o risco de tornar-se o melhor do liberalismo com mati-
19. Veja-se o argumento de Cotierreli (1989) em IYie Poiitics of Jurisprudence, de que a maior parte da /.(S de Rousseau e Hegel, acrescido da máxima nietzschiana sobre o confronto com
teoria jurídica reforça esse entendimento profissional e o ensino jurídico oferece ao indivíduo uma imagem
ii ceticismo.
de si próprio e as aptidões que permitem que tal tarefa seja aceita como o papel do jurista.
566 Filosofia do direito Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 567
(i) Os CLS parecem ter demonstrado com êxito a insuficiência de uma posição gn Para concluir, algumas palavras sobre atitude e esperança. Uma maneira de elas-
seiramente positivista. Todavia, será que a posição positivista crua, isto é, aqutI. iEicar os temas apresentados neste capítulo é dizer que os CLS tratam do fecha -
que vê o direito como uma questão de certas regras que ou obrigam ou são i e ento e da abertura. O movimento contesta todas as formas de fechamento dos uni-
válidas, deixando lacunas a ser preenchidas pela discricionariedade, ainda te' versos jurídico, político e social - e defende uma abertura radical do direito, da po-
em nossos dias, quem a defenda? Sem dúvida, os CLS vão mais longe. Esse m ftica e das formações sociais. Nesse sentido, reflete a ,posição social cambiável da
vimento nos pede para considerar o direito não em termos do modelo liberal d odernidade tardia (o começo do pós-modernismo). E possível traçar um contras-
um sistema de leis positivas enquanto regras definidas ou um corpo coerente 1e com Weber. Enquanto este descrevia o crescente desenvolvimento do modo de
regras e princípios, mas sim como um processo político no qual as relações 5( vida burocrático em termos de uma conexão entre governo e uma moderna "lógi-
ciais são continuamente negociadas, e as idéias e esperanças humanas desfigu ea" de governo com um vinculo especial com a "racionalidade", levando à domina-
radas e truncadas. O movimento CLS norte-americano enfatiza que os indiví- ao da racionalidade formal à custa da humanidade, os CLS tentam pôr fim ao do-
duos devem aproveitar as oportunidades de contestar as idéias estabelecidas e viínio dessa jaula de ferro de racionalidade em nome de uma reenergização das
sobretudo, de contestar os pressupostos de sua inevitabilidade. Tais idéias de- ormas de entendimento humanas. Os CLS defendem as tentativas de reintrodu-
vem ser bem-vindas, mas será que a crítica CLS da ideologia do liberalismo ju ir formas de pensamento que não são facilmente apreendidas pela racionalidade
rídico é apropriada? Porque: abstrata do discurso jurídico moderno - em outras palavras, necessidades humanas,
(ii) O liberalismo jurídico é representado não em termos de uma posição moral, desejos, paixões, medos...
quer em sentido hartiano quer dworkiniano, mas como mistificação. Em vez de Também podemos interpretar os CLS como um comentário sobre o destino da
"integridade", o que se observa é o cinismo, a falsa consciência, a inautenticida- razão", do próprio pensamento, na sociedade moderna. Que significa isso? Tome-
de, a superficialidade e o convencionalismo. Mas isso não equivale a jogar fora mos, de novo, a análise de Weber: nos primórdios da modernidade, a "razão", isto
o bem com mistificação? A legalidade tem uma moral intrínseca; o liberalismo
precisa ser continuamente afirmado e reafirmado em termos positivos, e não 21. Isso repete uma questão freqüentemente levantada. Em "The Critique of Law: What is 'Critical'
apenas em seus termos negativos. Não deveriam formar-se algumas conexões? :ihout Critical Legal Theory?" (Jounial of Law and Society, 14: 1987), o escritor inglês Alan Hunt argumenta
iue precisamos de uma teoria bem mais explícita dos CLS. Hunt estabelece os tipos de táticas e objetivos de
(iii) Embora enfatize corretamente a complexidade da vida e as situações sociais em
obras específicas desse movimento:
que o direito deve intervir, e que deve em parte constituir, os CLS exageram a
- Examinar a coerência interna da doutrina e da teoria jurídicas para mostrar suas contradições.
- Identificar os pressupostos políticos e sociais existentes nas doutrinas e idéias jurídicas.
- Buscar a origem social de idéias e doutrinas jurídicas específicas.
20. Peiler (1985: 1151) argumenta que "a afirmação de que'direito é política' deixou de ameaçar o uni- - Concentrar-se nas políticas, nos princípios e nas ordenações da vida social e das possibilidades políticas que são ex-
verso jurídico. Isso aconteceu não porque o lado jurídico da equação foi definitivamente reconstruído, mas cluídas por determinadas teorias liberais ou banidas da doutrina jurídica.
porque o lado político sofreu um processo de empobrecimento. - Concentrar-se na localização do poder nas práticas legais.
568 Ceticismo, desconfiança e o movimento dos estudos jurídicos críticos 569
Filosofia do direito
é, o raciocínio intelectual e a argumentação, eram um instrumento de libero 1111 a pela construção da sociedade. Ironicamente, embora os autores CLS freqüen-
de iluminação, da crítica social sistemática às "irracionalidades" das falsas crc uiirite dêem a impressão de querer reduzir as pretensões dos juristas, eles fazem
Contra as rígidas divisões e hierarquias sociais dos sistemas de castas, do Leu li i eito e à legalidade - sem esquecer a filosofia do direito - o elogio de situar, na
mo ou da submissão às crenças religiosas, a razão lutava pela inovação, pela cri ia Ii p»L Jade, a arena crucial da luta social e política; pode-se questionar se o direito é
cipação. Como afirmava Kant, podemos perceber os fundamentos da sociedade i 1 campo, e se o sistema realmente precisa de mais legitimidade. Contudo, se po-
derna na máxima de que, na modernidade, todas as coisas precisam submet Iituus suspeitar que nossos tempos são hobbesianos, no sentido de que o bem-es-
ao tribunal da razão. Portanto, antes de admitir qualquer sistema de crenças, di é sua própria legitimidade, o movimento CLS é contra-hobbesiano em suas ten-
mos submetê-lo a uma rigorosa investigação; é preciso rejeitar o que não tem 1 11
Uvas de pôr fim à força dos jogos de linguagem dominantes. Mas fazemos bem em
manência e manter o que a razão aceita. Nós, isto é, os seres humanos inclivid timbrar que Hobbes construiu à medida que desconstruiu, e que nos ofereceu uma
somos os controladores desse processo. Weber, contudo, chama a nossa atenção mça. A política de desconstrução textual, e não de reconstrução racional, pode as-
a armadilha que devemos subseqüentemente aceitar - isto é, o que parece raci melhar-se a deixar o imperador nu em nome da liberdade para os comprometidos
)S iniciados, mas para os outros ela estimula uma política neo-hobbesiana autori-
é aceito simplesmente porque é racional, mas será humano? Em vez de termos
cria da lei e da ordem. Os ideais reguladores podem não ser suficientes para resis-
instrumento a razão, o racionalmente efetivo que seria a arma no combate pel i li
ii mos, mas não parece haver mais nada que o indivíduo com plena consciência de si
berdade humana, a razão passa a ser a nova prisão. Aliados às instituições da] lesmo possa aceitar. Daí a raiva e a inocência perdida`. Talvez, também, a nostal-
rocracia de Estado, nós - os sujeitos individuais da sociedade moderna - perder
1 ia23; porque, embora os CLS pareçam admitir que Deus está morto, o movimento
o controle sobre a razão e nos tornamos o objeto da razão, o joguete nas mãos,], ,
ilda parece estar em busca da "vontade" de lutar.
burocracia estatal. Em vez da razão conduzida pelo sujeito ou nele centrada (is], ),,
em vez de sermos senhores de nosso pensamento), os indivíduos não têm mui
alcance ou muitos elementos que lhes permitam pensar por si próprios - ao cru
trário, eles são cercados por turbilhões de narrativas, de propagandas, de imagi li
do bem, do mal e do belo, às quais faz sentido ir juntar-se. E aquilo sobre o que II,)
se pode falar em linguagem estritamente racional converte-se no rebotalho da mi
demnidade - a zona desprotegida, o objeto de perseguição, da busca de estímul ii
do amor e do acréscimo.
Para os CLS, assim como para Weber, o sistema jurídico é uma representaça
desse processo. Portanto, a destruição da imagem de racionalidade formalista da li
galidade nos permite superar a jaula de ferro da racionalidade, ver os interesses h ii
manos por trás da razão. Em nossa citação inicial, de Unger, percebemos a narrativ.1
de uma autoconsciência plena que impregna a modernidade.
"Devolva-se a humanidade à razão!", eis o grito de guerra. O ceticismo dos Cl 22.Unger parece ter plena consciência da fragilidade da eficácia do movimento. Quase no fim de The
não é um projeto niilista, mas um anseio da mais profunda inquietação. Em seu o ritical Legal Studies Movement, ele afirma:
vel mais profundo, os CLS estão cheios de raiva. E de esperança. Esperança de que Por último, tem-se a disparidade entre nossas intenções e a forma social arcaica que elas assumem: uma ini-
condição humana pode ser melhorada - desde que aprendamos a nos livrar da ri ciativa conjunta Levada a cabo por intelectuais insatisfeitos e sediciosos no alto estilo do radicalismo burguês do sécu-
pressão dos processos mentais que nos aprisionam. Mas não existe utopia, assi iii lo XIX. Para todos os que participam dessa iniciativa, a desarmonia entre intenção e presença deve ser motivo de ira
(1986:119).
como não existem certezas - existe apenas a luta e o mistério da condição humar i.
E, uma vez que estamos condenados a uma luta infinita entre nossos contextos, noc 23.Como Peter Gabei iniciou sua parte no diálogo com Duncan Kennedy em Roli Over Beethoven: "O
ojeto consiste em perceber a relação desconexa que é imanente a nossa situação alienada" (1984: 19).
sos poderes e nosso desejo de ser humanos, a filosofia do direito é chamada a ofere 24.Ainda que, à primeira vista, essa leitura dos CLS tenha enfatizado uma imagem do direito que se
cer a nosso ' agonismo * um espaço em que possamos nos questionar - algo como opõe diametralmente àquela de Kelsen, há entre ambas semelhanças, no sentido de exigirem que a filosofia
a concepção teórica de um campo institucional basilar em que possamos travar nos orídica crie uma metagramática para a instância política. Enquanto a metagramática de Kelsen é a da sepa-
1 ição fundamental entre os jogos de linguagem e a criação de uma ciência formal do direito, os CLS criam
uma gramática da hermenêutica política. Para Kelsen, fica aberta a possibilidade de acusar os CLS de inge-
No original, "agonism", termo criado pelo autor a partir do adjetivo agonistic ("combativo"). (N. do T) uuidade e afirmar que o direito não pode ser o locus de uma política redentora.
I)tL0 17
()lnpreender a filosofia do direito feminista
( ...) Deus criou a mulher. E então, de fato, se pôs fim ao tédio - mas também a algo
mais! A mulher foi a segunda asneira de Deus - "em sua essência, a mulher é serpen-
te, Eva" - todo sacerdote sabe disso: "todo mal vem ao mundo através da mulher" -
todo sacerdote sabe disso também (Nietzsche, Parábola 48 de O anticristo, 1895, ex-
primindo o paradigma da misoginia).
A Rainha muito anseia por recrutar todos os que puderem falar ou escrever para
ajudar a pôr fim a essa loucura desenfreada e iníqua de "direitos das mulheres"... E as-
sunto que deixa a Rainha tão furiosa que ela não consegue se conter. Deus criou os ho-
niens e as mulheres diferentes - pois que cada um ocupe a posição que lhe cabe! (Rai-
iihaVitória, 1872, citada em Kamm, 1977:179).
Eu mesma nunca consegui descobrir o que é feminismo: sei apenas que as pes-
nas me chamam de feminista sempre que exprimo sentimentos que me diferenciam
de um capacho (Rebecca West, 1988).
[Por favor], apresentem-me a um mundo onde eu não tenha de sentir falta de
i im (Leslie Reese, feminista negra).
INTRODUÇÃO
1. ( ... ) O feminismo foi, e continua sendo, a maior e mais decisiva revolução social da modernidade. Ao
1 rádo de uma revolução política, uma revolução social não irrompe; ela acontece. Uma revolução social
também uma revolução cultural ( ... ) A cultura feminina, até então marginalizada e ignorada, come-
ia ( ... ) enunciações em seu próprio nome, a reivindicar a metade que lhe pertence na cultu-
cíonal da humanidade. A revolução feminista não é apenas um novo fenômeno da cultura ori ital,
um divisor de águas em todas as culturas até o momento existentes" (Heiler e Fehei 1988: 144-5),
572 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 573
ra feminista tem sua abordagem pessoal, influenciada por seu histórico de vida, ei ei as mulheres. O terceiro é a questão do senso de justiça feminino, ou do tipo de
formação, sua ideologia e classe social2 . i [ade" que está envolvido no argumento masculino tradicional de que as mulhe-
Talvez feminista seja simplesmente uma pessoa que é reconhecida pelos "t o diferentes dos homens e têm um senso rudimentar da objetividade abstrata
tros" e por si própria como feminista'. Como definição funcional, porém, ofem i 111 1111 parcial que a justiça requer.
mo pode ser definido como a criação e a justificação conscientes (às vezes Em resumo, a reação feminista implica:
ciente"), pelas próprias mulheres, de representações do feminino e da posiçe
mulher na realidade social - em contraste com as idéias aceitas de "senso core 111 1 , analisar, enfatizar e combater politicamente as estruturas de opressão' e violência;
ou do "dia-a-dia", que são tidas como impregnadas de concepções masculinar
que têm por objetivo a emancipação das mulheres. A produção acadêmica femi i e) analisar a onipresença do patriarcalismo e engajar-se em estratégias para com-
é um conjunto variado de práticas discursivas que operam no sentido de resistii batê-lo. Essas estratégias vão da ampliação da consciência à argumentação de
pressupostos correntes da cultura masculina dominante e solapá-los. Além dli» que o pessoal é político, e que não há espaços para além do alcance da opressão
feminismo é uma forma de práxis. As escritoras feministas reconhecem que de'» patriarcal'. A família é às vezes severamente criticada como a "estrutura prin-
empenhar-se em viver e escrever como mulheres ao mesmo tempo que exiei cipal do patriarcalismo" (Millet, 1985), enquanto as lutas sobre os direitos de
num universo social fortemente estruturado por homens e imbuído de práticas reprodução refletem os argumentos de que a reprodução não é um fato biológi-
culinas; elas reivindicam o direito de desenvolver perspectivas especificamente o 111 co imutável, mas um processo associado ao estado tecnológico e ideológico da
cas para afirmar e mudar para melhor a posição das mulheres (e, por implicação, i» sociedade (O'Brien, 1.981). Para aumentar sua auto-estima, as mulheres devem
chegar a uma apreciação mais plena e profunda da natureza da "humanidade") explorar novas possibilidades de "prazer", contrapondo-se a uma história em
que a sexualidade tem se organizado ao redor da centralidade das significações
masculinas', elas devem permitir-se a necessidade de experimentar, de sentir
AS QUESTÕES BÁSICAS INCLUEM A DOMINAÇÃO, O PATRIARCALISMO)
E O SENSO DE JUSTIÇA DA MULHER
1 A opressão e a exploração assumem várias formas, mas as estatísticas econômicas são estarrecedo-
'gundo um relatório da ONU de 1980 (citado em Bryson, 1992), "As mulheres constituem metade da
Quais são os problemas que a filosofia do direito feminista deve abordar? E. LI Lição do mundo, perfazem quase dois terços de suas horas dê trabalho, recebem um décimo da renda
tem vários, mas três parecem evidentes por si sós. O primeiro é a realidade core' e detêm menos de um centésimo da propriedade mundial".
ta da opressão reiteradamente legitimada pelas regulamentações legais. É ineg:iv 1. \s intelectuais feministas afirmam que a violência é ao mesmo tempo aberta e 1atente..Fra Kate Mil-
1, II 1i7), a violência do patriarcalismo é institucionalizada e estruturalmente inerente à prática dos sistemas
que a posição das mulheres ao longo da história tenha sido recorrentemente p 1 , 111 ios, na realidade das leis e das estruturas sociais que resultam em abortos ilegais e na possibilidade cons-
co melhor do que a dos escravos, isto é, a propriedade legal de seus senhores (pi» te estupro. A possibilidade onipresente de violência é o principal mecanismo por meio do qual as rala-
ou maridos) que as protegem e controlam. O segundo é a questão do patriarca) lisiguais de poder se mantém. Outros autores (Jessica Benjamin, 1980; Williams, 1991) chamam a atenção
mo, ou sistema de autoridade masculina que estrutura as instituições e a racioniL 1 à violência oculta da racionalidade masculina, que define o "outro" a partir dos cálculos e, portanto, dos
dade organizacional que constituem as relações opressivas e exploradoras que ai 'Inismos de tomada de decisões das organizações mais influentes e importantes. Portanto, as instituições
1 nHade moderna - imbuídas de uma crescente racionalidade formal - objetificam e controlam o "outro",
II1IS]nlO tempo que negam existência real a esse "outro". As feministas que estudam o Terceiro Mundo (por
111 Brown et ai., 1981) descrevem como a violência é usada para se garantir que as mulheres não infrïn-
2. Os textos feministas de extração marxista e socialista, por exemplo os de MacKinnon (1982, Vai, 1 1 .ii normas sociais. As mulheres devem restringir-se aos papéis e comportamentos que lhes são atribuídos,
1989), Mitchelle Oakley (1976), enfatizam a interação entre as posições econômicas e políticas das mulhi' violência é usada para controlar a sexualidade feminina e as funções reprodutoras.
e de classe, e se concentram nas exigências feitas às mulheres pela estrutura social; as feministas negras, 6. MacKinnon (1982) afirma que é somente ao observar a injunção de tratar o pessoal como político
exemplo B. Smith (1981) e Patrícia Williams (1991), reivindicam uma análise mais multiforme que procure pie as mulheres podem estabelecer a ligação entre sociabilidade e subjetividade, de modo que apolítica da
velar a diversidade dos sistemas que enquadram e oprimem as mulheres negras. 9lção estrutural das mulheres pode ser praticada através da política de suas vidas (não) "pessoais".
3. O gênero fica em aberto, uma vez que tem sido comum referir-se a certos homens, por exemp 7. O discurso da sexualidade é o exemplo básico do logos falocêntrico. A sexualidade feminina é tradi-
John Stuart MIII, como feministas (liberais). A análise de Engeis (1978: 87-8, 96) em The Origin of the Faniiiii linalmente caracterizada pela ausência, por uma lacuna, pelo vazio a ser preenchido pelo membro positivo
escrita em meados do século XIX, era provocadora: "[A verdadeira liberdade só será possível] quando uni 1 macho. Desse modo o falo, como significante original (o organizador dos símbolos do significado), ergue-
nova geração tiver surgido ( ... ), uma geração de homens que nunca, em suas vidas, souberam o que é cai i sobre as bases do nada do sexo das mulheres. Portanto, não existe nada que se possa chamar de "essên-
prar a rendição de uma mulher com dinheiro ou qualquer outro instrumento social de poder ( ... ), uma gr i. '" feminina, uma vez que tudo que as mulheres fazem, no sexo, é absorver, mostrar o caminho de 1"
çã6de mulheres que nunca souberam o que é entregar-se a um homem por qualquer outro motivo que ii. citar e estimular, aceitar e estimular o desejo e o desempenho; assim, as mulheres produv'iii .1
o verdadeiro amor, ou recusar-se a entregar-se a seus amantes por medo das conseqüências econômicas," iti,is não podem ser a verdade (a menos que, como no caso de Niêtzsche, sustentemos que a vnr II :11111
574 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 575
novas formas de subjetividade ao tomarem a decisão política de perseguir tal, os escritores do sexo masculino moveram-se em círculos de complexidade
tilos de vida que lhes dêem a liberdade de experimentar e sentir8; e ambigüidade em resultado de sua alegação de que as mulheres são mais pró-
(iii) analisar a questão da justiça. Tradicionalmente, as mulheres têm sido represei ximas da natureza do que os homens, e que a esfera propriamente feminina era
tadas como possuidoras de um senso rudimentar de justiça (ver 0km, 1 i o espaço privado da família, ainda que também representassem as mulheres
1989; Lloyd, 1984; Pateman, 1986,1989; Coole, 1988; Nye, 1990). Mesmo aol como guardiãs da moralidade e da ordem que os excessos masculinos podiam
da Grécia clássica, a mitologia apresentava relatos e imagens das mulheres co1 pôr em risco; através da permanência e da estabilidade, as mulheres dão força ao
seres irracionais, imprevisíveis, emocionais e simples, em oposição às quali 1 corpo social, atenuando os desejos exuberantes e a vontade de poder dos ho-
des de equilíbrio, razão e distanciamento às quais os homens (aparentemenl mens, que podem perturbar o equilíbrio do cosmo. Um tema dominante, porém,
recorriam quando de suas deliberações9. Ao longo da história da filosofia ocid é o de que as mulheres carecem do senso de justiça e não têm a objetividade ne-
cessária para governar justamente; devem ser mantidas à distância do centro do
poder político para que não subvertam a estrutura política. Em outras palavras,
objetivo a ser alcançado, mas sempre, na verdade, uma profundidade, destinada a permanecer um misci a questão é a seguinte: para criar e manter uma ordem social justa e estável, os
até a morte - então a verdade é uma mulher). Em contraste, feministas recentes que escrevem sobre a ii ii indivíduos precisam ser educados e ter um senso avançado de justiça que lhes
tidade empenham-se em reformular a genitália feminina não como ausência, mas como presença, e ÇL
guardiã do mistério do nascimento criador. Para a teórica e psicanalista francesa Luce Irigaray (1984: 24),
permita criar e deixar-se guiar por regras de sociedade civil respeitadas. Por-
sexo fen-iinino é uma aporia, um mistério, arauto do mistério do (futuro) nascimento: "Uma reformulação
Tanto, o senso de justiça é fundamental entre os cidadãos; contudo, se as mu-
imanência e da transcendência, especialmente através desse limiar que nunca é tido como tal: o sexo fi i t itieres - como sempre afirmaram os teóricos, de Rousseau (O contrato social,
nino. Limiar de acesso ao mucoso. Para além das clássicas oposições de amor e ódio, de fluido e gelo ali 1971) a Freud'° - são diferentes em sua constituição psicológica e incapazes de
lutos - um limiar sempre. semi-aberto. Limiar de lábios, estranhos às oposições dicotômicas (...). Mistério a'cançar o senso de justiça necessário, será um convite à desordem dar às mu-
identidade feminina?" heres participação e responsabilidade políticas plenas. A civilização é vista
8. A transformação das concepções da sexualidade feminina com a "descoberta" do clitóris (em obi
como The Myth ofthe Vaginal Orgasm (1970), de Arma Koedt), longe de verem a "verdade" do prazer ferrO
como obra dos homens, enquanto as mulheres são fundamentais para mantê-
no como a experiência da penetração peniana e o reconhecimento de um "direito ao orgasmo", levaram la através da reprodução, da criação dos filhos e da moderação dos excessos da
exigências de uma "igualdade do prazer". Isso é às vezes representado como parte de uma "luta pela dig criatividade masculina. Qual é a resposta ideal a essa imputação de diferença?
dade e autodeterminação [que] tem raízes na luta pelo verdadeiro controle do próprio corpo" (A. Dworkn Uma resposta consiste em dizer (a) que não há, em essência, nenhuma dife-
1981: 205). Livre das perspectivas edo desejo masculinos, o significado do prazer da mulher não é eviderw rença, e que qualquer diferença aparente é apenas o resultado da falta de opor-
por si mesmo. A força do patriarcado coloniza até mesmo as fantasias, portanto as mulheres devem tornar-
reflexivas a propósito de seu prazer. Historicamente, o prazer das mulheres estava estreitamente ligado ao pi
[unidades que levou as mulheres a não passarem pelas experiências de vida
rigo, à morte e à culpa. A relação sexual, por exemplo, implicava uma probabilidade de gravidez difícil de avi nas quais se pode fundamentar um senso de justiça; o aumento dessas opor-
liar e, com os altos índices de mortalidade associados ao parto - à morte (Giddens, 1992). A excessiva demor tunidades irá mostrar, por certo, que o senso de justiça da mulher é igual ao dos
tração de prazer durante o casamento, através do envolvimento em atividades que não girassem em torno homens"; outra abordagem, porém, consiste em afirmar que há uma vantagem
homem, levava ao risco de se extrapolar o papel esperado no casamento, com a possibilidade de divórcio
violência doméstica. Para as mulheres norte-americanas negras, a situação era diferente: "Em face de uma cii
tura dominante que caracterizava todas as mulheres negras como seres sexualmente promíscuos, o reconhi ii Otuco) - que confere fundamento ao significado. A crítica feminista que trabalha com os mitos (Pagels,
cimento público do eu como um ser sexual era visto como comprometedor da reputação de todas as mulhi l7 interpreta Cali e Hécate como criadoras das línguas e dos alfabetos, afirmando, portanto, que sempre
res negras e da raça em geral" (Hazel Carby, historiadora, citado em Jewell, 1993). Portanto, sentir prazer ei i- ,] i o uma linguagem e uma teoria feministas (submersas).
sua sexualidade era um fenômeno perigoso e ambivalente. Encontrar espaço para uma discussão livre e sin 10. Para Freud, a civilização é obra de homens, uma vez que requer as "sublimações dos instintos das
cera da necessidade e do prazer, uma liberação; como afirmou a ativista negra Sabrina Sojourner: "Cada un as mulheres são pouco capazes" (O mal-estar na civilização, 1961: 95).
de nós tem o direito de definir quais são nossos limites e fazê-los respeitar. O sexo em si e por si não é corL 11.A maior parte das teorias do "desenvolvimento moral" implica que há estágios de raciocínio moral
denável. O que se faz com o sexo pode ser muito condenável" (citado em Jewell, 1993). Em seus primórdio ile os indivíduos alcançam em decorrência de sua experiência de vida. Rawls argumenta que "nosso enten-
o feminismo radical argumentava que as mulheres precisavam de afirmações positivas de suas possibilidade: 1 'mento moral aumenta conforme avançamos, em nossas vidas, ao longo de uma série de posições" (1971:
de prazer - em áreas do corpo, sensualidade, contato humano, o infantil e o não-racional. As teóricas do les PIS, em seguida a uma discussão baseada nas seções 70-72). São três os estágios principais: (i) a criança
bianismo questionam se se pode criar um corpus de conhecimento das vidas das mulheres sem colocar como ,11 rende "a moralidade da ordem" com os pais; depois (ii), a "moralidade de associação", ou uma moralhli10
central a questão do prazer sexual. As feministas negras desejam que as narrativas do prazer nas vidas das mu- racterizada pelas virtudes cooperativas da justiça e da imparcialidade se desenvolve quando o indivído
lheres negras sejam exploradas e celebradas; a aceitação de que as mulheres negras podem "sentir prazer em mpenha uma série de papéis em várias instituições; finalmente, (iii) chega-se a uma "moralidari II
si próprias é subversiva" (Shange, 1987: 178). pios" na qual compreendemos o papel fundamental dos princípios abstratos e das exigência ç 1' ror 1.
9. Isso costuma ser apresentado (pelos homens) como a afirmação de que o logos, isto é, o discurso, dem social, e desejamos preservá-lo. Esse é o senso de justiça em seu pleno desenvolvi ni O'. A 1 ii ii.
razão, é masculino. De fato, o logocentrismo, ou o primado da palavra, é associado a uma crença numa fon- ii Livel" de feminismo, o "feminismo liberal", argumenta basicamente que a posição esi IIanil.r 1111 11,
te de verdade definitiva - um Deus ou um significante transcendental (transferido para o falo no discurso fa o-na negação onipresente, às mulheres, de seu direito progredir no espaço público do i.l',lIu, II
Compreender a filosofia do direito feminista 577
576 Filosofia do direito
na diferença. E se as mulheres tiverem, de fato, uma percepção ética e moral di mente para melhor ddminá-lo racionalmente - e a experiência masculina de
ferente? Seria essa percepção tão válida, ou mais válida, do que a suposta obje vida. O desejo de separar e controlar as formações corresponde ao masculino
tividade da justiça masculina? - à resposta masculina, que é ligada às afirmações de que é objetiva, lógica, ex-
trovertida, realista, mecânica e pragmática. Muitas feministas argumentam que
isso significa que o cientista, a fim de tornar-se "livre de valores", deve dividir
COMO A FILOSOFIA DO DIREITO FEMINISTA sua personalidade e, dessa forma, correr o risco de tornar-se autoritário e
PROCURA ABORDAR ESSAS QUESTÕES? emocionalmente estéril`,
(i) As pensadoras feministas enfatizam áreas nas quais ou o direito legitins;i a (i v) autoras levam as experiências das mulheres diretamente para a teoria e a prá-
opressão ou a operação do direito realmente trata homens e mulheres dii tica de compreender o direito na realidade (mostrando os efeitos discriminató-
rentemente, talvez ao impor uma separação em áreas de atividades vitai' rios de se "viver o direito" ou do "direito em ação");
não levar a sério a violência praticada contra as mulheres; (v) para ir além da mera crítica, a produção acadêmica feminista tenta entender as
(ii) um tema comum nas obras feministas é a crítica da epistemologia da teoria li i dicotomias impostas pela teoria à análise da vida e rejeitar, como artificiais,
rídica tradicional, e fazem-se tentativas de mudar o modo como certas áreas aquelas que reivindicam uma naturalidade ou universalidade que se funda-
direito são tradicionalmente vistas12; mentam em preconceitos masculinos; assim, torna-se possível defender, por se
considerá-los superiores, os modos femininos de pensamento e associação, ou,
(iii) essa obra vai juntar-se a teorias de maior amplitude, que pretendem subv'i 1 si alternativamente, por se vê-los como complementos do modo masculino, que
a estrutura de masculinidade abstrata que é representada como a força oia deixa de ser considerado superior e passa a ser visto como apenas um de dois
nizadora de boa parte do pensamento social, moral e político`. Em essência, Is métodos analíticos de se fazer a associação entre cognição e mundo;
mos aqui duas afirmações: (a) a cultura ocidental estruturou seu pensan;sl'
segundo uma polaridade sexual em que o princípio masculino era supeli (vi) as pensadoras se opõem às percepções aceitas ou correntes sobre a normali-
central`, (b) as questões que mais têm ocupado os teóricos da política, morali dade dos padrões, como ocorre na concepção de igualdade, ou o reconheci-
dade e legitimação do poder, vieram à superfície através de um processo de hs mento de problemas, como ocorre na violência doméstica, urna vez que estes
rização masculino a partir da percepção masculina dos problemas da vida. A podem muito bem ser padrões criados pelo patriarcalismo - falsos para com a
gumas feministas argumentam que há uma correspondência entre a mali. "realidade" à qual devemos aspirar;
tecnológica de relacionar-se com o mundo - aquele de fragmentá-lo analiti
(vii) a produção acadêmica feminista freqüentemente torna problemática qualquer
confiança simples no direito como forma de resolver litígios sociais. Para boa
política e nas diferentes associações - impediu que muitas delas obtivessem as experiências exigidas pai parte da teoria jurídica feminista, o direito (e o Estado) é masculino em sua es-
gundo e terceiro estágios. Do esquema de Rawis se depreende que esse desenvolvimento moral só pode O trutura de racionalidade, tomada de decisões e fouiias de solução; portanto, o
rer se homens e mulheres tiverem liberdade de ação nesses contextos em que se fundamentam as três po'i
direito não pode ser a resposta ao problema da criação de relações sociais "jus-
As teorias feministas da diferença afirmam, porém, que esse é um esquema de desenvolvimento moral
nado por homens, e que não leva em conta os diferentes tipos de raciocínio. tas" (nas noções de estado de direito, igualdade, direitos, justiça). Isso coloca a
12. Para uma retomada do impacto variável da teoria feminista do direito sobre o ensino do direito,\ questão de se ir além do direito (motivo pelo qual a solução do estupro não
artigo de K. O'Donovan (1981); para uma coletânea sobre a aplicação às áreas centrais, ver A. Bottommely (1 pode vir do direito, sendo apenas um problema de desigualdades estruturais);
13. Como diz O'Brien (1981:5) ao apresentar os fundamentos desse projeto mais amplo: "O que j'r
samos fazer, para dizê-lo da maneira mais simples, é ser capazes de demonstrar que a cultura de dono.
masculina e o pensamento predominantemente masculino que a sustenta e justifica são, em certo sentliH
15. Robin Morgan (1989: 51) estabelece relações entre o patriarcalismo e a demarcação das bases da fi-
duzidos ao preconceito pelo próprio fato de serem masculinos. Um modo de colocar isso, ou de pelo ii
)sofia ocidental: "Se eu tivesse de citar uma qualidade como personificação do patriarcalismo, usaria a.pala-
começar a fazê-lo, é considerar a filosofia masculina como uma ideologia de supremacia dos homens."
via compartimentalização, a capacidade de institucionalizar a desconexão. O intelecto separado da emoção.
14. Além disso, uma forma de privilegiar os modos abstratos de raciocínio como única forma ra
ii pensamento separado da ação. A ciência apartada da arte.A própria terra dividida; fronteiras nacionais.
de tomada de decisões, uma associação das mulheres com o irracional (como diz Mari Matsuda, há uri)
Ocres humanos categorizados: por sexo, idade, raça, etnia, preferência sexual, altura, peso, classe, relisiõo, ap-
lismo operante que opõe "o entendimento da intuição, da experiência e da emoção como antíteses ir
dão física, ad nauseain. O pessoal isolado do político. O sexo divorciado do amor. O material. absti uído do
res da lógica, da razão e da ciência, associado a uma tendência a colocar as mulheres no primeiro grupo
;piritual. O passado sem fnculos com o presente e sem conexão com o fiLituro. O direito separado da justi
homens no segundo" ("Liberal Jurisprudence and Abstracted Visions of Human Nature: A Feminist Ciii
a. A visão dissociada da realidade."
of Rawls's Theoiy of Justice" (1986), 16 New Mex LJ 613, p. 617).
Compreender a filosofia do direito feminista 579
578 Filosofia do direito
1, a argumentação toda parecerá comprometida. Além disso, a forma da narrati-
( ii) as estratégias feministas procuram iluminar e definir os delitos pratica
"humaniza" a teoria, trazendo-a para o nível das experiências vividas pela mu-
contra as mulheres negligenciados pelas perspectivas tradicionais. Isso p
lhr; na escrita, ao se transpor o vazio entre o abstrato e o pessoal, é possível criar
ser feito mediante a admissão da totalidade das vozes, das experiências
ites onde antes só existia o abismo.
mulheres e de outras pessoas (particularmente de mulheres pertencentc'
minorias étnicas), de modo que se redefinissem os delitos dos quais as mui
res foram vítimas. ESCOLAS E PERÍODOS DA ESCOLA DA "FILOSOFIA
DO DIREITO" FEMINISTA
As feministas têm enfatizado áreas específicas de vitimização das mulheres
sempre foram desprezadas pelo sistema tradicional. Nessas diferentes áreas, com Em resumo, (i) a primeira onda de escritos feministas foi uma orientação liberal
direito de família e a vitimologia, têm-se colocado muitas questões concretas e ton 1 11 k ,clamava pela igualdade perante a lei; contudo, (ii) sempre houve uma tendência
do muitas iniciativas práticas para minorar os problemas. Este capítulo, porém, i ii lela de feminismo radical, que pregava a necessidade de ir além do liberalismo;
permanecer no nível teórico e apresentar as diferentes escolas de pensamento. (iii) ambas se envolveram num processo de questionamento de objetivos e pres-
11 1 em fins da década de 1970, quando, com muitas das medidas propostas em
tine da igualdade liberal já conquistadas no Ocidente, colocou-se a questão: o que
A METODOLOGIA FEMINISTA ,11 devia buscar era a igualdade, uma vez que o critério de igualdade era a norma
iocculina? Não seria possível chegar a um acordo sobre uma diferença que fosse
Em "Feminist Legal Methods" (1990), Harvard Law Review, Katharine Baït III
'mtajosa, mas que também permitisse que homens e mulheres fossem tratados
analisa três métodos. Em especial, (i) o da colocação da questão da mulher, ou o qu
no iguais? Desenvolveu-se =feminismo cultural que buscava uma orientação po-
tionamento e identificação dos elementos da doutrina jurídica existente que ignor
;Hva nas experiências e nos modos de raciocínio da mulher; este foi complemen-
ou colocam em posição inferior as mulheres e os membros de outros grupos exci
ido pelo (iv) feminismo étnico, ou de crítica de raça, que se voltava para as experiên-
dos; (ii) o da razão prática feminista, ou o raciocínio a partir de um ideal em que as
;; específicas da mulher negra; e ultimamente (v) desenvolveu-se um feminismo
luções jurídicas são respostas pragmáticas a dilemas concretos, e não escolhas cs 1.
n -moderno que tenta fazer frente à multiplicidade de forças culturais e aos espa-
ticas entre perspectivas opostas, freqüentemente mal combinadas; (iii) o da ma i,
de subjetividade que decorrem da condição pós-moderna.
conscientização, ou busca de insights e perspectivas enriquecedoras através da colabora(
ou interação com outras pessoas, com base na experiência e na narrativa pessoais.
Depois de afliniar que muitos dos projetos e temas da teoria jurídica tradicio 1 O feminismo liberal
e da teoria moral e política derivam essencialmente da experiência de vida mascu
na, as escritoras feministas oferecem contradescrições da 'vida. E evidente quc A primeira onda de feminismo defendia a igualdade de tratamento para homens
relatos variam, mas um tema central é o de que as mulheres vivenciam - e, port; 11 iuiheres. As feministas liberais apresentavam as mulheres como seres autônomos
to, passam a perceber - o mundo de maneira diferente dos homens. A forma esp uralmente dotados dos mesmos direitos e privilégios básicos dos homens, e rejei-
fica do raciocínio feminista decorre das diferenças dessa existência/experiência, vam à negação estrutural às mulheres de todos os direitos e privilégios de cida-
reivindicações da teoria feminista do direito podem assentar-se sobre essas bac viia dos quais os homens desfrutavam. A Declaration of Sentiments adotada na Se-
A narrativa e as modalidades de escrita poética criam empatia e solidariedi h :a Falls Convention'6 de 1848 - talvez o mais famoso documento do feminismo
ao apresentarem incidentes e sentimentos que evocam um nível de entendimc i-te-americano do século XIX - era o equivalente feminista da Declaração de Inde-
humano comum que ultrapassam a demarcação de identidades. Se o público ridência com "rei Jorge" substituído por "homem": "todos homens e todas as mu-
escritor/falante tem uma experiência comum, o leitor sente-se mais propenso a ali 11 1 res são criados iguais; são dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis;
ciar os pressupostos básicos do escritor. O que a experiência dos homens bran 'iii rc estes encontram-se a vida, a liberdade e a busca da felicidade". A filosofia jurí-
pode sugerir é lógico e simples; a experiência lógica, feminina, pode apontar para
gestões diferentes. A experiência de mundo de uma mulher pode levá-la a con cl
que a idéia postulada pela filosofia política ou social do pensamento dominante é 6. Declaração redigida em suas partes principais por Elizabeth Cady Stanton, assinada por cem ho-
gica ou irracional, ou simplesmente irrelevante. Se ela não puder conciliar a idéia t Ins e mulheres e aprovada pela primeira convenção dos direitos das mulheres em Seneca Falis. Uma com-
ção com a Declaração de Independência pode ser encontrada em Davies (1994:183-7).
sua própria experiência de vida, e se a idéia estiver na base da argumentação pi 1
Compreender a filosofia do direito feminista 581
580 Filosofia do direito
Assim como a servidão das mulheres acorrentou o homem à ignorância e aos vícios
dica liberal dos séculos XVIII e XD( forneceu a base intelectual para a primeira (n
do despotismo, sua libertação irá recompensá-lo com o conhecimento, a liberdade e
de escritos feministas, como os de MaryWollstonecraft ([1778, 1789] 1967)', WiF idicidade ([1825] 1983).
Thompson ([1825] 1983)18, John Stuart Miii (1869)19, e a escrita conjunta de Ivhll
Harriet Taylor (1970) 20.
Sob a bandeira do feminismo liberal, as mulheres alcançaram a maior parte de
O objetivo da teoria jurídica era alcançar subjetividade jurídica igual pai , ,11,is vitórias legislativas e judiciais, inclusive o direito ao voto, à igualdade de salários,
mulheres, assim como a tinham os homens. John Stuart MIII, por exemplo, abo 1111 ; benefícios sociais, ao acesso ao trabalho e à educação; foi assim também que con-
nava a idéia de que, no casamento, a mulher se tornasse propriedade sexual do i
li 1 istaram o direito de participar de júris e o direito condicional de optar pela inter-
rido, sem o direito de recusar a fazer sexo: pção da gravidez. Até pouco tempo, nos Estados Unidos, importantes adeptos
ssa escola incluíam Wendy Williams, Herma Hifi Kay e Nadine Taub, ainda que sua
Por mais brutal que seja o tirano ao qual ela tem a infelicidade de estar ligada — )resentante mais ilustre seja a juíza Ruth Bader Ginsburg. Tendo colado grau em
bora ela possa saber que ele a odeia, embora ele possa ter o prazer cotidiano de tori
1 )71,quando ainda membro do corpo docente da faculdade de direito da Rutgers
Ia, e embora ela considere impossível não sentir aversão por ele - ele pode solicit1
obrigá-la à mais aviltante degradação de um ser humano: a de tornar-se instrumeni iiversity. ela, com a cooperação da American Civil Liberties Union (ACLU), parti-
uma função animal que contraria suas intenções (1869: 57). ou de inúmeros processos que desafiaram a discriminação por gênero em diver
s contextos, obtendo um número significativo de vitórias, todas baseadas no libe-
Thompson argumentava que a escravização legal das mulheres impedia qu ismo jurídico". Críticos posteriores, escrevendo a partir de uma perspectiva às ve-
homens se tornassem mais esclarecidos: ts chamada de teoria da diferença, acreditavam que as vitórias eram um tanto vazias,
ria vez que, tendo por base a ideologia da igualdade formal dos sexos, equivaliam
0 tratamento igual para mulheres que queriam ser tratadas do mesmo modo que os
17. Em A Vindication of the Rights ofWoman (1789), Mary Wollstonecraft apresenta as mulheres 1 iomens. Sob o feminismo liberal, as mulheres pareciam obter êxito somente à custa
agentes racionais cuja inferioridade se deve, em grande parte,' à educação inferior que a igualdade de d alguma coisa. Por um lado, as que defendiam o individualismo freqüentemente
tunidades poderia corrigir.
t:am bem-sucedidas, mas seu sucesso estava condicionado ao fato de agirem como
.18. Em Appeal of One Haif. of the Human .Race, Women, Against the Pretensions of the Other Haif; M71,
Refriin Them in Political and Thence Civil and Dome.stic Slavery [Apelo a uma metade da raça humana, as relI c não houvesse obstáculos ao sucesso das mulheres enquanto grupo`. Por outro
res, contra as pretensões da outra metade, os homens, de mantê-las em escravidão política e, portanto, Lido, esse sucesso era realmente um sucesso feminista ou uma transformação par-
e doméstica], William Thompson respondia a um artigo de James Mili sobre o governo em que Miii ali] Lial no padrão masculino? Nicola Lacey afirma:
va que as mulheres não tinham interesses distintos daqueles de seus maridos ou país, e que, portanto, IIl
tinham necessidade alguma de representação política independente. Thompson argumentava que as 1,11
dões intelectuais das mulheres eram pelo menos tão grandes quanto as dos homens, e que as diferenças 1
21. Muitos dos debates dizem respeito à Suprema Corte dos Estados Unidos, com sua capacidade de
lógicas jamais deveriam ser usadas como argumento contra os direitos políticos. Thompson postulava qu
issiarar a inconstitucionalidade das leis. Exemplos famosos incluem Reed os. Reed 404 US 71, 77 (1971), em
fundamentar a distinção da base de alguma diferença natural, o direito havia "convertido a organização Ii,
1 lI.lc a Corte invalidou uma lei que preferia os homens às mulheres como administradores de bens patrimo-
ca num crime" (1983:171). Além disso, ele acreditava que as mulheres não teriam criado muitas das lei; qu
11mis, Frontiero os. Ríchardson 411 US 677 (1973), em que a Corte sustentou que as famílias de oficiais milita-
os homens haviam promulgado: "É possível imaginar que, exclusivamente nas mãos das mulheres, o
1115 do sexo feminino tinham direito a moradia e benefícios nas mesmas bases em que as famílias dos oficiais
Legislativo tivesse produzido atrocidades e desgraças semelhantes àquelas com as quais os legislador.
sexo masculino haviam infestado o globo?" (ibid.: 131). As mulheres precisavam de independência econí,I,Il masculinos os tinham; Weinberger os. Wiesenfeld 420 US 636 (1975) é um exemplo da natureza universal da
Ibordagem - pois nesse caso eram os homens que estavam sendo representados -, e a Corte revogou partes
ca, e as leis discriminatórias precisavam ser revogadas. Historicamente: "Qualquer sistema de trabalhl' I
lia Lei de Previdência Social (Social Security Act), que só concedia benefícios assistenciais às mães, e não aos
qualquer sistema de governo (...) sob quaisquer vicissitudes da condição do homem, ele sempre fez da 11111
lher sua escrava" (ibid.: 196). 1.,ais, de trabalhadores falecidos que tinham cobertura de seguro.
19. Em The Subjection ofWoinen (1869), John Stuart Mill argumentava que a razão de as mulheres 0 22. Cott (1987: 281) afirma que muitas das mulheres que foram bem-sucedidas no passado - particu-
isonente no período que vai de 1920 a 1950— não podiam servir de modelo a outras mulheres, uma vez que
cerem incompatíveis com a vida pública estava em sua pouca experiência, devido a seus papéis tradici, SI
inham de agir como se seu sucesso estivesse ao alcance de qualquer pessoa que aceitasse as regras do jogo:
e aos interesses masculinos de manter esses papéis. Contudo, Mili não questionou seriamente a. divisão, i.
papéis na família. O recurso ao individualismo assumiu o ponto de vista feminista de que as liberdades e oportunidades das
20. As idéias de HarrietTaylor foram incorporadas em The Subjection of Wornen, de seu marido J,Io, Irmulheres não deviam ser inferiores às dos homens, mas que o individualismo não mostrava como alcançar
o objetivo, a não ser que se agisse como se este já tivesse sido alcançado. Ainda que tenha produzido mode-
Stuart Mil, mas em "The Enfranchisement ofWomen" [A emancipação das mulheres] (1851) e em ensi'
los consumados de realização individual, não podia criar um programa que introduzisse mudanças na posi-
sobre o casamento, Taylor propunha uma total igualdade civil e política para as mulheres, o que incluía o III
prego em instituições públicas e Outras ocupações profissionais. ção das mulheres enquanto grupo."
582 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 583
• A idéia central do feminismo liberal equivalia a uma estratégia de assimilação O feminismo radical
mulheres a um padrão instituído pelos homens. Os direitos atribuídos aos homens
quanto sujeitos jurídicos tinham de ser disponibilizados às mulheres sempre que i ai. As feministas radicais vêem as diferenças culturais, sociais, econômicas e legais
comparação entre o tratamento dispensado a ambos revelasse uma disparidade: a e 1 ti
te homens e mulheres como produto da dominação masculina. As conquistas
'til
paração dava-se quase sempre numa única direção - a de uma norma masculina. O feministas liberais são às vezes vistas como algo que enfraquece a potencialida-
tencial radical inerente à idéia de "tratamento como igual" não se concretizava por( 111, Ii iiclical do feminismo e permite que as mulheres tenham êxito em ocupações pro-
o debate político introduzido pelo feminismo liberal era extremamente limitado. Lon
1 juflais somente se elas "se assemelharem aos homens". O liberalismo jurídico é
de produzir uma reconsideração substancial do modo como se organizava o mundo, já
ii isado de ignorar a realidade do poder e da dominação masculinos ao formular os
presumia que os padrões públicos instituídos eram válidos, e os instrumentos conceiti iii
1 ncípios aparentemente neutros da agenda de igualdade sexual do liberalismo.
feministas de parcialidade, discriminação e igual valor eram avaliados pelos padrões 1
blicos instituídos (1995: 7). Catherine MacKinnon é uma escritora prolífica quando a vemos sob essa pers-
i'tiva. Duas questões podem apresentar brevemente seu estilo. Em sua opinião, a
,11 , ordagem liberal do aborto que prevaleceu em Roe vs. Wade24 coloca o problema
Tendo em vista que as noções-chave do liberalismo jurídico são aquelas da ne 1
controle reprodutivo no contexto de uma estrutura de privacidade, liberdade pes-
tralidade, imparcialidade e universalidade, os argumentos e as disposições legisla 1
ii e autonomia do indivíduo. O pensamento liberal oculta o fato de que um gran-
vas tinham de ser estruturados de modo que não contradissesse esses ideais: por exeri 1
número de fatores, inclusive a pressão social, o aprendizado, a desvantagem eco-
PIO, a Lei Contra a Discriminação Sexual no Reino Unido, de 1975, proíbe a discrimi 1 mica, a força sexual, a contracepção inadequada e a fragilidade das leis contra a
nação com base no sexo em vez de proibir a discriminação contra as mulheres. Poréi 11,
1 y.essão sexual exercem impacto de modo que não permita que as mulheres con-
uma vez que setores progressistas da cultura judicial e legislativa têm sido domin ri dem as circunstâncias nas quais engravidam. Essa maternidade estruturalmente
das pelo liberalismo jurídico, não surpreende que a maior parte das vitórias qu rçada é uma perpetuação da desigualdade econômica, doméstica e sexual; o abor-
favoreciam os direitos das mulheres foi obtida por proponentes dessa correnic. é necessário para compensar a falta básica de controle que a mulher tem sobre
Contudo, o liberalismo jurídico pouco ajuda a compreender a natureza e as causas processo de reprodução. Da mesma maneira, a pornografia é postulada e discuti-
opressão feminina, e pode dar a impressão de minimizar os embates políticos qui pelo liberalismo jurídico no contexto da liberdade de expressão e da autonomia
ocorrem diariamente. Isso não quer dizer que a ênfase do legalismo liberal nos diu 1 idividual, enquanto MacKinnon a vê como um comércio que desumaniza a mulher
tos e no individualismo não ofereça recursos ao trabalho crítico - a teoria de justli e deteiritina os padrões dos maus-tratos a elas infligidos, gerando o estupro, o abu-
de Rawls, por exemplo, foi recentemente aplicada à justiça da família" - o que oco so sexual de crianças, a agressão física, a prostituição forçada e o crime sexual. A pró-
re, na verdade, é que a concentração nessa abordagem baseada em princípios é so pria natureza da pornografia contribui para aumentar a desigualdade social e legal
mente uma técnica, somente uma solução parcial. das mulheres, e a define. Porém, as tentativas das feministas radicais no sentido de
restringir a pornografia foram frustradas pelas forças dominantes do liberalismo ju-
rídico, que impregnam as questões de liberdade de expressão no sistema jurídico
23. Richards (The 3,ticaI Feminist, 1982) argumenta que princípios liberais como os contidos na ob
norte-americano; as feministas liberais aliaram-se aos interesses masculinos para
de Rawls refletem uma preocupação com a justiça vista como a liberdade individual de perseguir o própr
esmagar as propostas das feministas radicais`. Para estas, a pornografia não é uma
destino. Portanto, esse princípio revelaria a injustiça da recusa sistemática em oferecer essas oportunidad forma de expressão, é o silêncio induzido das mulheres.
às mulheres. Richards diz que a posição original de Rawls e o véu de ignorância deviam incluir especifica
mente a ignorância do próprio sexo (na teoria original de Rawls, as partes deviam pressupor que eram cl
sexo masculino e chefes de família), e que se devia permitir que a estrutura familiar fosse questionada. Coni 24. Em Roe vs. Wade 410 US 113 (1973), a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito con-
dicional de uma mulher a interromper sua gravidez. As feministas radicais argumentaram que a gravidez de-
que se pareceriam as organizações familiares se concordássemos com a instituição de princípios de justiçi
para a família por trás de um véu de ignorância rawlsiano? via ser vista no contexto da estrutura social da sociedade, e as feministas da esfera cultural afirmaram que a
gravidez devia ser vista como uma experiência exclusivamente feminina; em resultado, o feminismo liberal é
Da mesma maneira, 0km (1990) oferece uma análise que começa por propor essa experiência imagi-
nária e sugere uma sociedade em que a criação dos filhos e o serviço doméstico sejam igualmente comparti- incapaz de entender as questões existenciais* e políticas envolvidas. Roe foi decidido no contexto do feminis-
mo liberal e baseou-se em conceitos liberais convencionais de privacidade.
lhados; isso inclui creches subvencionadas pelo Estado e uma maior flexibilidade nos padrões de emprego,
25. Como St.rossen (1994: 151) expressou sua oposição às propostas de MacKinnon e A. Dworkin: "Pri-
de modo que o trabalho remunerado e a criação dos filhos possam ser facilmente divididos entre homens e
meiro, elas infringem princípios de liberdade de expressão. Segundo, subvertem os direitos femininos à igual-
mulheres. Ela também argumenta que os que optarem pelo padrão da família tradicional não devem ser dis-
dade ao darem às autoridades de Estado um poderoso instrumento para proibir obras de e sobre feministas
criminados, e que os dois cônjuges devem ter o mesmo direito a toda a renda familiar, compartilhando-a por
igual em caso de divórcio.
Respectivamente,frck, "fuckee" e "fuckor". (N. do T.)
584 Filosofia do direito 585
Compreender a filosofia do direito feminista
Temas da obra de Catheríne MacKinnon no hegemônico é, portanto, o processo por meio do qual a desigualdade de gênero se
torna socialmente real (1987: 149).
Catherine MacKinnon trabalha com uma perspectiva neomarxista com seus
mas de poder, dominação, alienação e a busca de um Estado futuro de relações SO Quais são as conseqüências dessa onipresente dominação masculina?
emancipadas. Por sua vez, ela tem muitos dos mesmos defeitos que já comprou
teram análises marxistas anteriores, isto é, pressupõe para sua teoria uma verd,lJ As mulheres não podem confiar no Estado
que transcende aquelas de outras perspectivas e é hostil à reconciliação; afim i
possibilidade de uma verdadeira essência das mulheres que se tornará evidente w Até mesmo o Estado neutro, liberal, de direito, é a encarnação do olhar mas-
condições de liberdade e insiste na totalidade da dominação masculina em todo 111i110:
espectro da ordem social.
Num de seus primeiros artigos, MacKinnon (1982: 515) substitui a categoria O Estado é masculino no sentido feminista: o direito vê e trata as mulheres do modo
trabalho no esquema marxista tradicional pela categoria da sexualidade: "Para o H como os homens vêem e tratam as mulheres. O Estado liberal constitui, coerciva e au-
minismo, a sexualidade é que o trabalho é para o marxismo: aquilo que as pess toritariamente, a ordem social voltada para o interesse dos homens enquanto gênero -
mais têm de seu, mas que lhes é mais subtraído.1121 O primeiro espaço de domini através de suas normas legitimadoras, de suas formas, sua relação com a sociedade e suas
ção encontra-se na apropriação masculina da sexualidade natural, pré-social, da!; políticas substantivas. As normas formais do Estado passam em revista o ponto de vista
mulheres, uma apropriação que configura a mulher como objeto do desejo mascu masculino no nível da intenção (MacKinnon, 1989:161-2).
uno. Portanto, a sexualidade feminina na sociedade estrutura-se como uma objei
ficação do olhar masculino, e não como uma conseqüência de formas naturais ou O segredo dessa dominação, a chave de seu sucesso, é a crença hegemônica
verdadeiras. A formação dos gêneros estrutura-se com base nisso; em última anuI ia que a estrutura do Estado de Direito liberal realmente impede a dominação.
se, o poder que configura a estrutura das relações entre os gêneros e a dominação da laia MacKinnon, a teoria jurídica liberal apresenta uma imagem do estado de di-
mulheres pelos homens é o poder de visualizar e definir a natureza da sexualida i'iLO em que o direito é desligado da moralidade, e o julgamento judicial é sepa-
feminina e, portanto, o gênero. ido do governo:
Assim como em Marx não podemos ver o comportamento dos oprimidos, do
famintos, como o comportamento natural do homem, em MacKinnon não podern Na jurisprudência anglo-americana, considera-se que a moral (os juízos de valor) é
ver o comportamento das mulheres sob condições contemporâneas como a verdadi separável e separada da política (das lutas pelo poder), e que ambas são separáveis e se-
de seu gênero. O conjunto de papéis sexuais subordinados das mulheres não co paradas da prestação jurisdlicional (da interpretação). A neutralidade, inclusive a tomada
responde a nenhuma divisão natural, extra-social, mas só tem sua verdade enquan de decisões judiciais moderadas, imparciais, que constituem precedentes, é tida como de-
to criação dos processos sociais. sejável e descritiva. Os tribunais, foros sem predisposições entre as partes e sem interes-
ses próprios, refletem a sociedade de volta a si mesma, resolvida. O governo do direito,
não os homens, limita a parcialidade com restrições escritas e atenua a força com uma
Gênero é o que gênero significa. Não tem base em nada além da realidade social qi ii
sua hegemonia constrói. O processo que confere à sexualidade seu significado masculi razoável obediência às regras (ibid.: 162).
A própria noção de igualdade é suspeita o gênero era simplesmente inferido da existência jurídica, suprimido numa ordem social
presumivelmente pré-constitucional através de uma ordem constitucional destinada a
Não apenas não se deve confiar no Estado, como também a própria noçã I não alcançá-lo. Falando em termos descritivos, e não funcionais ou motivacionais, a es-
igualdade é suspeita —em vez de usá-la, devemos perguntar: "igualdade em relação a qu tratégia consiste primeiro em constituir a sociedade de modo desigual, anterior ao di-
As mulheres querem reivindicar direitos iguais, mas não estarão reivindicando reito; depois, em conceber a Constituição, inclusive o direito à igualdade, de modo que
mente o direito de ser vistas como homens pelo olhar do Estado masculino? suas garantias só se apliquem àqueles valores que são subtraídos pelo direito; depois, em
construir normas legitimadoras de modo que o Estado se legitime através da não-inter-
O Estado tem uma jurisprudência masculina, o que significa que adota o ponto ferência no status quo. Depois, na medida em que a dominação masculina se torne tão
vista do poder masculino na relação entre direito e sociedade. Essa atitude é espcH] efetiva na sociedade que seja desnecessário impor a desigualdade sexual por meio do
mente clara nos julgamentos acerca da constitucionalidade, apesar de legítima na nu direito, a tal ponto que somente as desigualdades sexuais mais superficiais se tornem
dida em que é neutra quanto à política da legislação. A base de sua neutralidade de jure, nem mesmo uma garantia jurídica de desigualdade sexual será capaz de pro-
pressuposto geral de que as condições que vigoram entre os homens com base no duzir igualdade social (ibid.: 163-4).
nero também se aplicam às mulheres - isto é, o pressuposto de que a desigualdade
xual realmente não existe na sociedade. A Constituição - o documento constitutiv O verdadeiro dano, causado pelas diferentes agressões às mulheres
Estado dessa sociedade - pressupõe, em sua interpretação, que essa sociedade, absi 1 é a imagem de subordinação e a objetificação
do o governo, é livre e igual; que suas leis em geral refletem isso; e que o governo i
cisa e deve corrigir somente aquilo com que lidou mal anteriormente. Essa postiu
Ma parte do "sucesso" do feminismo no terreno jurídico tem ocorrido na vlsi-
estrutural a uma Constituição de abstenção: por exemplo, "O Congresso não promu
rã nenhuma lei que reduza a liberdade de ( ... ) expressão". Os que desfrutam de libe] Li chdade conferida aos danos sofridos pelas mulheres, por tanto tempo ocultos quer
des apreciam a igualdade, a liberdade, a privacidade, e socialmente a liberdade de exp )r trás da recusa em intervir (como na recusa em acreditar na freqüência do inces-
são os mantém juridicamente a salvo de intrusão governamental. Ninguém que na) 'ou do estupro), quer por ocorrerem dentro da esfera privada (a violência domésti-
tenha socialmente pode estar seguro de tê-las juridicamente" (ibid.: 163). ). As feministas jurídicas norte-americanas planejaram intervenções concretas no
cno prático do policiamento e da criação de normas criminais através da teoriza-
Já vimos essa crítica antes. No Estado de Direito liberal afirma-se que todos dos danos às mulheres que podem ser especificamente associados ao gênero -
tão proibidos de dormir embaixo das pontes principais da capital; a lei se apli 'uno o assédio sexual - como danos sociais de ocorrência baseada em grupos. A
igualmente tanto aos pobres quanto aos ricos.A questão é que só os pobres podinn ria MacKinnon tornou-se reconhecida pelo poder jurídico estabelecido através
precisar dormir embaixo de pontes; desse modo a lei, ao aplicar-se igualmente una definição bem-sucedida do assédio sexual, que desse modo se tornou uma
teoria jurídica, na prática só se aplica aos pobres. A argumentação de MacKinil 11 poria aceita de dano passível de reparação legal. Ela também se juntou a .Andrea
permanece no nível dos entendimentos hegemônicos; a desigualdade social qu \V rkin numa campanha contra a pornografia. Sua posição sobre a pornografia tem
existia na ordem social do patriarcalismo tradicional não foi destruída pelos dire co a ver com a sexualidade como tal; na verdade, nega que a pornografia conte-
legais oferecidos pelo liberalismo. Essa desigualdade é difícil de perceber e comI ualquer sexualidade natural ou livre em si. Ao contrário, a verdade da pomo-
ter, porque é papel do Estado não intervir na reformulação da ordem social. Pc encontra-se na representação das mulheres como objetos, objetos a ser domi-
meio-termo - o princípio de liberdade de John Stuart Mili - seria legítimo se fo Is, abusados, vitimados pela coerção - a pornografia só apresenta a sexualidade
verdade que os gêneros realmente fossem iguais perante a lei, se as liberdades ç Li Ii i\, és da dominação.
corpo social fossem uniformemente distribuídas; mas o fato é que não são. MacKin
non faz uma leitura da famosa máxima de que a modernidade se desenvolveu ni 111i Definimos a pornografia como a subordinação sexualmente explícita das mulhe-
movimento "de status para o contrato" (de identidades pré-modernas baseadas i 'es por meio de imagens ou palavras, o que também inclui o fato de serem desuma-
status de classe, gênero e família, para a identidade do indivíduo abstrato, que di izadas como objetos sexuais, coisas ou bens de consumo; sofrendo dores, humilhações
frutaria de igualdade): m estupro; sendo amarradas, cortadas, mutiladas, contundidas ou feridas fisicamen-
e; em poses de submissão sexual, servilismo ou exposição pública; reduzidas a partes
Uma vez que se entenda o gênero como um meio de estratificação social, as nu Io corpo, penetradas por objetos ou animais, ou apresentadas em cenários de degra-
gorias de status básicas para o direito medieval, que se imagina terem sido substituí lurLio, maus-tratos, tortura; mostrada como criaturas sórdidas ou inferiores; ensan-
pelos regimes liberais em forma de construtos aspiracionais, não-hierárquicos, de p dientadas, contundidas, machucadas num contexto que tornam essas circunstâncias
sonificação abstrata, mostram-se essencialmente inalteradas. Como categoria de st/' nxuais (ibid.: 176.
588 Filosofia do direito Compreender o filosofia do direito feminista 589
Andrea Dworkin e MacKinnon sugerem que a representação de uma sexuals Portanto, a experiência das mulheres não tem lugar nesse processo ( ... ) (Carol
dade livre é possível: "As publicações eróticas, por contraste definidas como não-p u Smat, "Law's Truth/Women's Experience", em Díssenting Opinions: Femínist Exploita-
nográficas, podem constituir um material sexualmente explícito que não desfigul4 lions in Law and Society, 1990: 18).
a igualdade." Depois de consumir muita energia em campanhas em prol do rcc
nhecimento das iniqüidades contra as mulheres, MacKinnon é ambivalente: Boa parte da complexidade da experiência da vítima é tida como inadequada
is procedimentos do julgamento - ela é forçada a reportar-se apenas às noções ju-
Na verdade, eu preferiria não ter despendido tanta energia tentando fazer com ti licas estabelecidas, e quaisquer preocupações que não possam ser acrescentadas
o direito reconheça os delitos praticados contra as mulheres como delitos. Contudo, ii discurso estritamente jurídico são reduzidas ao silêncio (ver Estrich, 1987)27.
rece necessário legitimar nossos danos como tais a fim de deslegitimar nossa vini 1' Na análise de Smart, as mulheres podem compreender suas próprias experiên-
ção por eles, sem o que é difícil avançar de modo mais positivo (1987: 104). ci;ts em seus próprios termos e usar isso como uma verdade que contradiz aquela do
discurso legal. MacKinnon, ao contrário, argumentava que a dominação do machis-
Aqui, o feminismo pode juntar-se aos criminologistas radicais na tentativa
HO prejudicava gravemente o entendimento feminino da "verdade" de suas pró-
redefinir "dano". Na área criminal da vitimologia, tentativas recentes têm se co',
'ias vidas; a teoria feminista é um agente de libertação.
centrado na definição de certos tipos de "danos" para além daqueles normalmerv
reconhecidos. Da mesma forma, algumas escritoras feministas têm se concentra
Como as mulheres podem confiar em suas próprias experiências
no machismo dos procedimentos jurídicos, em particular no julgamento de cnn
e em sua própria concepção?
sexuais como o estupro. Colocado em termos simples, no julgamento por estupi
o procedimento se destina a derrubar a história contada pela demandante, o que
faz tanto ao colocá-la como objeto de muitas dúvidas quanto ao dar-lhe conotaçõ Se MacKinnon está certa sobre o poder da ideologia e da hegemonia, então não
sexuais implícitas. A vítima se torna objeto do olhar masculino e é forçada a reviv' existe um modo seguro de as mulheres refletirem sobre suas posições e estratégias.
sua agonia. Como diz o crirninologista inglês Carol Smart: lvi acKinnon resolve o dilema ao conceder aos homens algum status privilegiado
como "realidade". "O enfoque feminista é simples. Os homens são as condições
A mulher que conta a história de seu estupro, mesmo com suas próprias palasii materiais das mulheres. Se acontece com as mulheres, acontece." Contudo, isso
e não com as do advogado de defesa, corre o risco de ser sexualmente instigante. Idio apenas nega que o universo masculino também deva ser socialmente cons-
O processo de julgamento por estupro pode ser descrito como uma sexualizaçiiv [roído; condena as mulheres a conhecer apenas por resistência, a só saber que elas
específica do corpo de uma mulher que já foi sexualizada nos limites de uma cultin: devem afirmar o não-masculino, e não o f eminino*.
falocêntrica. Seu corpo torna-se literalmente saturado de sexo. Algumas mulheres til
vez consigam resistir a isso até certo ponto, por exemplo, as muito velhas, mas a maio
ria não consegue...
O julgamento por estupro é um processo de desqualificação e celebração. Desquc 27. Em Real Rape, 1987, Susan Estrich começa com uma descrição de seu próprio estupro e passa para
inca a experiência feminina de abuso sexual. Isso é mais do que dizer que o direito tolo uma análise do informe, da investigação, da ação penal e do julgamento dos casos de estupro. Estrich pro-
o não das mulheres como um sim, ou que é sexista. As duas coisas são verdadeiras; põe mudanças específicas nas regras jurídicas, mas se concentra no modo como o direito penal norte-ame-
questão, porém, é que o espetáculo que ela deve relatar leva decididamente o julgameM ricano construiu a coerçã..b sexual como consentimento. Ela usa diversos estudos de caso e discussões sobre
to por estupro para além dos domínios da incerteza e da dúvida. O direito exagera ui 11 a legislação para desenvolver uma narrativa da exclusão da perspectiva da vítima; consentimento e coerção
seu entendimento comum da sexualidade feminina. Dá-lhe rédea livre e constrói a na são definidos a partir do ponto de vista masculino, com a expectativa de que a mulher recorra à força em rea-
rativa do estupro de forma sexualizada. Pode-se então desqualificar a mulher sexuali7;, ção à agressão do homem, e as questões de processo legal justo refletem o temor de que a mulher possa acu-
da. Ao mesmo tempo, porém, o direito celebra a chamada heterossexualidade natural sar homens inocentes de estupro. Outros estudos que usam os argumentos de MacKinnon sobre o modo
como o "consentimento" é estruturalmente forçado incluem a análise, por Olsen, do estupro presumido
Uma vez que diz respeito ao consentimento e ao não-consentimento, a perseguição s
("Statutory Rape: A Feminist Critique of Rights Analysis", 1980). Sua análise dos argumentos apresentados
xual das mulheres, que pode levar à submissão, é definida como um ato à margem da lei pelos membros da Suprema Corte, por advogados, por advogadas feministas e outros, faz transparecer o
Para o homem, o fato de ser um predador sexual é tido como normal, até mesmo com modo como cada argumento omite interesses particulares e, ao eliminar insights, pode impedir que o advo-
desejável. A sexualização de todas as mulheres é igualmente vista como natural; con: gado tenha uma visão clara do que realmente aconteceu à mulher real no caso real.
tranger uma mulher até que ela ceda é visto como coisa natural, um agradável passi Há no original um jogo de palavras intraduzível: to assert the non-male, rather than the (fe)inale. É im-
tempo falocêntrico. O julgamento por estupro não permitirá crítica alguma a essa ativi possível manter, em português, o jogo entre male (masculino) efemale (feminino); a forma (fe)minino não re-
dade "natural". produz o sentido do original. (N. do T.)
590 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 591
Digressão sobre o feminismo e a tecnologia da liberação: As mulheres vivem num estado de escravidão aos fatos biológicos da gravidez,
o exemplo do controle da natalidade e do aborto f) parto e da amamentação que não pode dar sentido a sua existência, uma vez
ite 'não há nela projeto algum"; uma mulher não pode situar em tais fatos "uma
Um mito central da modernidade é o "dilema tecnológico". Muitas feminisia i irmação superior de sua existência" (ibid.: 88). A reprodução é uma questão cen-
têm se voltado para os avanços tecnológicos para transformar as oportunidades de k Ii íl; é a área em que - no sentido de que elas não têm escolha diante de seus resul-
emprego e libertá-las dos perigos da reprodução. Sem dúvida, as mudanças na estru dos reprodutivos - as mulheres mostram sua impotência, sua passividade e inca-
tura de produção podem ter feito mais para transformar as oportunidades econômi ,lcidade de controlar e dirigir as condições de sua existência. Portanto - enquanto
cas para as mulheres instruídas de classe média, enquanto a tecnologia da sexualida tecnologia dos instrumentos deu ao homem a possibilidade de transcender a de-
de (melhores mecanismos de controle da natalidade, a pílula) afastou a sexualidadi endência natural -' o controle sobre a reprodução através do aborto e da contra-
de sua íntima relação com a morte (Giddens, 1992). Em fins da década de 1960, opção é o que oferece à mulher a possibilidade de transcender a natureza`.
feministas radicais como Shularnith Firestone consideravam o papel feminino di O aborto deve ser uma questão crucial da luta feminista; ainda que não exista
reprodução biológica como o principal obstáculo à emancipação das mulheres, a ina posição feminista sobre o aborto, trata-se de um espaço de contestação que in-
chegavam inclusive a denunciar, como opressores, os próprios fatos dos processo: clui argumentos sobre o poder das mulheres sobre seu corpo e seu direito à autode-
naturais: orminação, enquanto, por outro lado, alguns reconhecem os "direitos do feto" e a ne-
gação de uma "personalidade' (futura) se o feto for eliminado. As opiniões sobre o
A própria gravidez, independentemente do desprezo masculino, é invasiva, pe
gosa e opressiva; é uma agressão à integridade e privacidade físicas do corpo (FirestI
aborto são influenciadas pela religião (e muitas feministas vêem na recusa católica
ne, The Díalectíc of Sex, 1970) cm admitir os contraceptivos um desejo de condenar as mulheres à passividade) e
complicadas pela experiência histórica do genocídio racista ou pelas experiências de
A armadilha biológica criou um "sistema de castas sexuais"; para as mulherta., mulheres negras que tiveram de enfrentar a esterilização forçada.
era impossível conhecer o verdadeiro amor, uma vez que este deve ser uma emoção De Beauvoir analisa o aborto no contexto do controle cada vez maior que as mu-
que nasce da igualdade, e a realidade das relações era de dependência econômica lheres vêm exercendo sobre a reprodução; portanto, a legislação pró-aborto repre-
social das mulheres. Assim, "o amor, talvez mais ainda que o parto, é hoje o pivô senta um enorme avanço para as mulheres, porque seu uso é um exercício de liber-
opressão feminina" (1970: 121). As mulheres devem apoderar-se dos meios de reprc dade e atuação. Não obstante, De Beauvoir é presa de sentimentos contraditórios;
dução e usar a tecnologia para desligar, tecnicamente, seus corpos da reprodução, por um lado, a recusa em permitir o aborto é uma medida da resistência à liberda-
essa devia ser uma precondição da libertação das mulheres. Mas elas precisavam si de e ao poder das mulheres; por outro, abortar um feto é uma das experiências mais
cuidadosas, uma vez que o interesse masculino continuaria sendo o de manter a si) cruéis pelas quais pode passar uma mulher. Além disso, em muitas circunstâncias,
premacia e, desse modo, as mulheres deviam mudar as tecnologias sociais do par],) talvez na maioria delas, o contexto da decisão de abortar envolve a cínica duplici-
e da criação dos filhos, além de controlar a decisão de ter ou não um bebê. dade dos homens.
A análise de Firestone alcançou proporções míticas; é ao mesmo tempo citada
por suas afirmações exageradas e usada como exemplo de realismo feminista. Ima- Os homens proíbem universalmente o aborto, mas individualmente aceitam-no
ginar em que poderiam resultar as novas tecnologias de reprodução era comum. Num como solução conveniente de um problema; conseguem contradizer-se com indiferente
cinismo. A mulher, por sua vez, sente essas contradições em sua carne ferida; em geral,
livro anterior, que foi o texto principal do feminismo por toda uma geração, ou mair
ela é demasiado tímida para rebelar-se abertamente contra a má-fé masculina; ela se
- O segundo sexo (1953), de Simone de Beauvoir -, encontramos tanto uma celebra- vê como vítima de uma injustiça que faz dela uma criminosa contra sua vontade, e ao
ção existencialista da liberdade do homem perante a natureza quanto um doloroso
apelo a que as mulheres assumam o controle de suas faculdades reprodutivas.
De Beauvoir celebra a transcendência masculina da natureza; o homem deu va- 28. Esta é uma possibilidade ambígua. As feministas afirmam que a tecnologia foi desenvolvida por
lor a sua existência ao dominar a natureza e reformular as atitudes instintivas por empresas comerciais em grande parte controladas por homens, e que o uso de tal tecnologia pode ter o efei-
meio do ordenamento humano (o direito). O homem criou instrumentos que inven- to de deixar as mulheres sexualmente mais disponíveis aos homens a um menor custo social. Morgan (1970:
tam possibilidades, que dão forma ao futuro; as mulheres, ao contrário, ficaram pre- xxv) é retoricamente inflexível: "Sabemos que a chamada revolução sexual não passou de uma nova moda-
lidade de opressão das mulheres. A invenção da pílula gerou milhões de dólares para os laboratórios far-
sas à armadilha do corpo. O homem procura controlar seu meio ambiente e dominar macêuticos, transformou-nos em cobaias e em pessoas ainda mais 'disponíveis' enquanto objetos sextIii;: i
as forças da natureza; as mulheres são ligadas à natureza, e o resultado disso foi que partir de então, se uma mulher não quisesse ir para a cama com um homem é porque deveria ter prob] 1 1
o homem "dominou a natureza e a mulher" (1953: 91). emocionais ou ser inibida'."
592 Filosofia do direito Compreendera filosofia do direito feminista 593
mesmo tempo sente-se aviltada e humilhada. Ela encarna em si mesma, de modo co»
ou a comunidade está dividida quanto ao que o respeito por esse valor requer. Ele
creto e imediato, a culpa do homem; é dele a culpa, mas ele se livra atribuindo-a à ir 11
lher; diz apenas algumas palavras em tom suplicante, ameaçador, sensível ou furioso, oferece um meio-termo: os Estados não devem banir o aborto, mas podem forçar as
logo se esquece delas; cabe à mulher interpretar essas palavras com sofrimento e sangi mulheres grávidas a refletirem de modo responsável sobre a decisão de abortar, des-
As vezes ele nada diz, apenas desaparece (...). [As mulheres então] aprendem a n de que não as forcem a tomar uma decisão específica.
mais acreditar no que dizem os homens (...); a única coisa de que têm certeza é dev;v As discussões de Dworkin são notáveis por sua postura interpretativa; ele pro-
útero saqueado e sangrento, desses rubros farrapos de vida, dessa criança que não esli cura aplicar sua metodologia interpretativa liberal para pôr a descoberto uma es-
ali... Para muitas mulheres, o mundo jamais será o mesmo (1953: 474). 1 rutura racional por trás do (confuso) debate atual e dos casos jurídicos apropria-
dos (Roe vs. Wade, 410 US 113, 1973; e Planned Parenthood vs,Casey, 112 S Ct 2791,
De Beauvoir está presa aos critérios existencialistas de afirmar e tomar o coi )o3); contudo, a tudo isso também se aplica a mesma crítica feita às bases de sua
trole da própria existência; adota um dos pontos-chave que definem a modernidi comunidade interpretativa. A questão é simples: ao construir sua argumentação, ou
de, aquele do domínio sobre a natureza como símbolo do indivíduo moderno,' I)workin "simplesmente entendeu mal as críticas feministas do discurso privado"
utiliza-o como seu princípio fundamental de valor. Contudo, ainda que não se pn (NlcCaffrey e Novkov, 1994: 203), ou é ingênuo em relação à política do projeto fe-
cise definir a ação pessoal pelo controle sobre os fatos, o apelo à tecnologia da coi minista. Quanto à primeira possibilidade, sua transformação do debate numa aura
tracepção e do aborto se funda no fato de conferirem substância ao discurso libe de princípios não lhe permite perceber em que medida as posições de escritoras
sobre os direitos. Contudo, se o liberal permanece numa discussão da justiça dos di COMO MacKinnon dizem respeito a características existenciais da vida de uma mu-
reitos, pode estar se evadindo da realidade da liberdade potencial das mulheres e d lher. Como sintetizam McCaffrey e Novkov:
desafio do próprio feminismo. A distância entre uma discussão filosófica dos direit
envolvidos no aborto e a preocupação do feminismo com o poder das mulheres é,,]( , MacKinnon não está desenvolvendo um argumento sobre o valor intrínseco do
mesmo tempo minúscula e gigantesca. feto, mas sim sobre a relação material entre a mulher e o feto que ela traz consigo. A re-
lação é profundamente contextual e contém a história de sua formação. Portanto, pode
O legalismo liberal contra o feminismo: o caso de Life's Dominion tornar-se problemática através do modo como veio a existir: se uma mulher engravida
[Domínio da vida], de Ronald Dworkin devido.a um ato de sexualidade forçada, sua relação com seu feto será diferente de sua
relação com um feto que ela tivesse concebido por livre vontade. ( ...) MacKinnon pro-
cura enfocar a história contextualizada das origens do feto e o efeito que essas origens
O mais importante jurista liberal, Ronald Dworkin, argumenta que o debate S exercem sobre a mulher que o traz consigo (ibid.: 206-6).
bre o aborto tem sido erroneamente apresentado como opiniões conflitantes sob
se o feto é ou não uma pessoa com direitos e interesses próprios a partir do momei A solução que MacKinnon propõe para o dilema do aborto consiste em situá-
to da concepção, inclusive o direito a que não o matem. Ele afirma que, na verdad lo no interior das formas cambiantes de estrutura social e esperanças de igualdade
a questão subjacente diz respeito a saber se, e, em caso de resposta afirmativa, con ,sexual. Se as relações sexuais podem tornar-se menos desiguais e coercivas (tanto
e por que a vida humana tem "valor intrínseco" (isto é, "seu valor é independen1 pessoal quanto estruturalmente), não apenas o problema será menor em termos
daquilo que as pessoas apreciam, querem ou desejam, ou que é bom para elas" (199. quantitativos (no sentido de que, graças a uma escolha mais livre, haveria um menor
71), e se o aborto é condenável porque "nega e ofende a santidade ou inviolabiii oúmero de fetos), como também a relação com o feto seria diferente em qualquer caso
dade da vida humana" (íbid.: 24). individual. A leitura que Dworkin faz de Gilligan também retoma a idéia de respon-
Dworkin constrói sua argumentação passo a passo com o tema constante é sabilidade, mas minimiza a idéia afim da relação. Em resumo, há um abismo entre o
que, subjacente à questão do aborto, há um núcleo de argumentos morais "autôno enfoque dworkiniano da santidade da vida (e sua vaga teoria correspondente sobre
mos sobre como e por que a vida humana tem valor intrínseco, e o que isso impli o sagrado) e o papel do aborto na vida das mulheres. Do ponto de vista feminino: "as
ca para as decisões pessoais e políticas que envolvem o aborto" (ibid.: 24). Como el 11 tentativas do Estado de regulamentar o aborto remetem, na verdade, à adoção de con-
outras obras suas, Dworkin está em busca de uma teoria constitucional plena, qi i cepções específicas sobre os papéis ideais das mulheres na sociedade" (ibid.: 224).
contenha integridade e permita que se tome uma decisão com base em princípil O aborto é uma questão política nas campanhas da Nova Direita nortearneri-
Ele conclui que as mulheres têm um direito constitucional abstrato, baseado na pi cana e inglesa, e assume o aspecto de uma questão religiosa; para muitas mulheres,
vacidade, à "autonomia procriadora", e que falta ao Estado um interesse categóri é uma ideologia de mistificação, pois o verdadeiro problema é a marginalização .po-
de proteger o valor sagrado e autônomo que é representado pelo feto sempre q lítica e econômica dos interesses das mulheres. Para as feministas, o aborto não é
este possa reduzir seriamente o interesse da mãe pela liberdade, e nos casos e' apenas uma questão de direitos; é um espaço de importância vital, sobrecarregado
594 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 595
de lutas históricas a propósito da família, da maternidade, da sexualidade e da auto volvimento humano em seis estágios (originalmente baseado num estudo empírico
suficiência, e é somente ao se assegurar às mulheres a condição de membros pleno. de 84 meninos durante um período de 20 anos) desenvolvido por Lawrence Kohl-
e iguais da sociedade que o problema do aborto pode ser visto em sua maior profun berg, o discernimento das mulheres parecia exemplificar o terceiro estágio de desen-
didade existencial. volvimento, no qual a bondade era associada a agradar e ajudar os outros. Kohlberg
explicava isso como resultado das experiências de vida "permitidas" às mulheres, e
sugeria que se elas tivessem um papel mais importante na esfera pública poderiam
Feminismo cultural e teoria da diferença passar para os estágios mais altos que caracterizavam o discernimento masculino.
Por sua vez, Gilligan afirma que sua pesquisa empírica revela o que ela chama de
A filosofia, tanto ideal quanto material, não tem considerado interessante a práxi voz da mulher, uma voz diferente, não necessariamente inferior à voz huma-
feminina de dar à luz; ao contrário, tem abonado um desagradável fetiche sobre a mor na/masculina que tem sido tradicionalmente descrita pelos psicólogos.
te, uma preocupação com a finitude. A morte sem nascimento não é somente abstrat, Kohlberg desenvolveu uma noção de motivos estruturalmente categorizados
e irreal, mas aponta para uma estranha relutância em dar sentido à persistência da es
para o engajamento na ação moral através de testes como o seguinte "dilema mo-
pécie como subestrutura material da temporalidade. Quero sugerir que tal elisão só
possível onde o pensamento é masculino (O'Brien, 1989: 84). ral" a que o estudante deve responder`:
Na Europa, uma mulher que sofria de câncer estava à beira da morte. Um remédio
Para o feminismo cultural, a dominação masculina tem por base o fato de a es- poderia salvá-la, uma forma de rádio que um farmacêutico da cidade havia descober-
trutura de pensamento (razão) moderna estar fundada sobre a experiência mascu- to recentemente. O farmacêutico cobrava 2 mil libras pelo remédio, dez vezes mais do
lina e na força da violência, mas a humanidade perde muitas coisas valiosas graças que lhe custara prepará-lo. O marido da doente, Heinz, pediu a todos os seus conhe-
ao desprezo pelas experiências e perspectivas das mulheres. Até mesmo no irredutí- cidos um empréstimo em dinheiro, mas só conseguiu obter mais ou menos a metade
vel núcleo liberal da teoria jurídica - o direito como barreira que mantém afastada a do que precisava. Ele disse ao farmacêutico que sua esposa estava morrendo e pediu-
morte pessoal e coletiva—, minimiza-se o caráter fundamental da ligação material da lhe que cobrasse menos pelo remédio ou que o deixasse pagar mais adiante. O farma-
mulher com a vida e sua manutenção`. O feminismo cultural tenta reparar essa de- cêutico, porém, disse "não". Desesperado, o marido arrombou a farmácia e roubou o
ficiência, apresentando o raciocínio do "outro" feminino. remédio para a esposa. Ele deveria ter feito isso? Por quê?
Carol Gilligan Há uma lista de respostas que não fornecem uma razão absolutamente certa
ou errada. Ao contrário, é possível ocorrer divergências em qualquer estágio. Não
Gilligan, psicóloga educacional norte-americana de Harvard, elaborou uma tese obstante, os estágios são definidos por princípios de raciocínio, isto é, por formas,
sobre a "voz da mulher" e uma ética do cuidado* que se tem mostrado extrema- não por conteúdo.
mente polêmica. Há dois estágios de moralidade pré-convencional:
Em seu livro In a Different Voice: Psychologi cal Theory and Women's Development
(1982), Gilligan dava uma resposta à obra de Lawrence Kohlberg (1973, 1976, 1981, Primeiro estágio: A ação é motivada pela fuga à punição, e a "consciência" é o medo
1987), que havia estabelecido uma escala de desenvolvimento moral cognitivo em irracional de punição.
Pró - Se você deixar que sua esposa morra, vai ter problemas. Será
que as mulheres eram constantemente sobrepujadas pelos homens. Em seu livro,
acusado de não ter gasto o dinheiro necessário para salvá-la, e ha-
Gilligan argumentava que o raciocínio moral das mulheres não era inferior; era sim-
verá uma investigação sobre você e o farmacêutico devido à mor-
plesmente diferente, enfatizando valores contrastantes. Segundo o modelo de desen-
te de sua esposa.
Contra —Você não deve roubar o remédio, pois será detido e man-
29. Para preservar a supremacia do homem, o problema do nascimento e das inter-relações deve ser
dado para a cadeia se o fizer. Se conseguir escapar, sua consciên-
retirado do centro da cena; os homens nascem das mulheres, mas devem encontrar sua essência em outra cia não vai deixá-lo em paz, pois ficará o tempo todo pensando que
parte, não em sua relação com elas; como Descartes, que perguntou "de onde provém minha existência?", a qualquer momento a polícia poderá prendê-lo de novo.
e respondeu: de Deus. A palavra de Deus deve ser transcrita e traduzida pelos homens.
* No original, ao ethic of core. A palavra core significa "cuidado", "solicitude", "proteção". Será aqui tra-
duzida corno "cuidado(s)", no sentido da aplicação dessas qualidades (femininas, para o texto) em benefí- 30. A discussão do dilema de Kohlberg, apresentada a seguir, provém em grande parte de Reconstruc-
cio de urna comunidade ou de casos individuais. (N. do T.) ting Public Phulosophy (1982: 128-31), de William M. Sullivan.
596 Filosofia do direito 597
Compreender a filosofia do direito feminista
Segundo estágio: A ação é motivada pelo desejo de recompensa ou benefício. As pos
Na moralidade pós-convencional, o critério de julgamento moral é o princípio abs-
síveis reações de culpa são ignoradas, e a punição é vista de mod trato, e não a filiação a um grupo. Os indivíduos moralmente autônomos criticam
pragmático (isso diferencia o próprio medo, sofrimento e prazer da ts regras sociais à luz de princípios racionais.
conseqüências da punição).
Pró - Se você vier a ser preso, poderia devolver o remédio e sua sen Quinto estágio: A preocupação de manter o respeito dos iguais e da comunidade
tença seria relativamente leve. Não será muito desagradável passa' (admitindo-se que seu respeito tem por base a razão, e não as
alguns dias preso se você voltar para sua esposa ao sair da prisão. emoções). A preocupação com o respeito de si mesmo, isto é, para
Contra - Ele poderá passar pouco tempo na prisão, mas sua espo- evitar que o eu seja considerado irracional, incoerente e sem objeti-
sa provavelmente já terá morrido quando ele sair, o que não sert vos (isso diferencia a culpa institucionalizada do desrespeito da co-
nada bom para ele. Se a esposa morrer, ele não deve culpar-se: nãc munidade ou do desrespeito de si mesmo).
foi por culpa dele que ela teve câncer. Pró - Se você não roubar, perderá o respeito das outras pessoas. Se
deixar que sua esposa morra, isso aconteceráporque você tem me-
A seguir vem a moralidade convencional, que é reflexo do sentimento de se per- do, não por ser uma pessoa sensata. Portanto, você perderá o respei-
tencer a um grupo. "O indivíduo convencional subordina as necessidades indivi- to de si mesmo e, provavelmente, o respeito dos outros também.
duais ao ponto de vista e às necessidades do grupo ou dos relacionamentos com- Contra —Você perderia seu respeito e reputação dentro da comu-
partilhados" (Kohlberg). nidade, e violaria o direito. Perderia o respeito de si mesmo se se
deixasse levar pelas emoções e não levasse em conta as perspec-
Terceiro estágio: A ação é motivada pela expectativa de desaprovação dos outros,
tivas futuras.
real ou imaginária/hipotética (por exemplo, a culpa) (isso diferen-
cia a desaprovação da punição, do medo e do sofrimento). Sexto estágio: Preocupação com a autocondenação por ter violado os próprios
Pró - Ninguém pensará que você é uma pessoa má se roubar o re- princípios (isso diferencia o respeito da comunidade do respeito de
médio, mas sua família vai considerá-lo um marido desumano se si mesmo; diferencia o respeito de si mesmo pela conquista de uma
não a roubar. Se você deixar que sua esposa morra, nunca mais con- racionalidade geral do respeito de si mesmo pela preservação dos
seguirá encarar alguém sem constrangimento. princípios morais).
Contra - Não é só o farmacêutico que vai vê-lo como um crimi- Pró - Se você não roubar o remédio e deixar que sua mulher mor-
noso; todos os demais agirão da mesma forma. Depois de roubar ra, passará o resto de sua vida se condenando por ter agido assim.
o remédio, você vai sentir-se mal ao pensar que desonrou sua famí- Não seria acusado e apárentemente viveria segundo os princípios
lia e a si mesmo; nunca mais vai olhar alguém de frente. da lei, mas não viveria de acordo com seus padrões de consciência.
Contra - Se roubasse o remédio, você não seria acusado pelas outras
2uarto estágio: A ação é motivada pela expectativa de desonra, isto é, de culpa pessoas, mas iria condenar-se a si próprio por não ter agido segun-
institucionalizada pelo não-cumprimento do dever e por danos do sua própria consciência e seus próprios padrões de honestidade.
concretos causados aos outros (isso diferencia a desonra formal da
desaprovação informal; isso diferencia a culpa por más conse- A teoria dos estágios julga a forma de raciocínio, não o conteúdo. Os estágios
qüências da desaprovação). mais altos são considerados mais avançados por serem mais adequados formal-
Pró - Se você tiver algum sentimento de honra, não deixará que mente, no sentido de que os critérios que regem os estágios mais altos subordinam
sua esposa morra porque tem medo de fazer a única coisa que po- os mais baixos, com cada estágio se aproximando mais de uma reciprocidade de
deria salvá-la. Você se sentirá sempre culpado pela morte dela se transação ideal e do universo de princípios morais e direitos individuais`. Se empi-
não fizer o que for preciso para evitar sua morte. ricamente demonstrada, a seqüência invariável de estágios imporia firmes limites
Contra —Você está desesperado e talvez não saiba que está agin- à arbitratiedade dos princípios morais genuínos. Ao mesmo tempo, esses princípios
do mal ao roubar o remédio. Mas saberá que agiu mal depois que
for punido e mandado para a cadeia.Você se sentirá sempre cul-
31 Kohlberg define um princípio moral como um modo de escolha que é universal, uma regra para es-
pado por sua desonestidade e por ter infringido a lei.
colher aquilo que parece aconselhável que todas as pessoas adotem sempre, em todas as situações.
598 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 599
válidos seriam universais e estabelecidos independentemente de uma concepção se teme é ficar num ponto muito distante da extremidade. Gffligan argumenta que
substantiva dos objetivos humanos para além da maturação do potencial natural, su- esses temores e desejos "dão origem a diferentes representações de conquista e fi-
postamente genético. O princípio moral de justiça se transforma, assim, numa nor- liação, levando a diferentes modos de agir e diferentes modos de avaliar as conse-
ma processual de cooperação racional`. qüências das opções" (1982: 62).
Ao contrário disso, Gilligan postula a existência de uma voz feminina distinta, 2. O estudo sobre o aborto havia revelado, para as mulheres, uma linguagem moral
uma voz baseada em dilemas semelhantes, e entrevista homens e mulheres`. Em específica de "egoísmo e responsabilidade, que define o problema moral como uma
particular, entrevistou universitários, analisou outros estudos, feitos no início de sua questão de obrigação de cuidar e evitar o sofrimento. Infligir sofrimentos é consi-
vida adulta, sobre identidade e desenvolvimento moral, conduziu um estudo da de- derado egoísta e imoral, um reflexo da indiferença, enquanto a expressão do cui-
cisão de abortar que enfocava a relação entre experiência, pensamento, o papel do dado é tida como a consumação da responsabilidade moral" (1982: 73). As mulhe-
conflito no desenvolvimento, os direitos e responsabilidades, um estudo sobre con- res reconstroem dilemas hipotéticos em termos do real, e freqüentemente solici-
cepções de moralidade do eu, experiências de conflitos e opções morais` e avaliações tam novas informações. Elas tendem a ver a abstração, na discussão hipotética,
de dilemas morais hipotéticos. Gilligan conclui: como uma ameaça de danos através da ignorância das conseqüências sociais de
uma decisão. Gilligan afirma que as mulheres vêem o processo de construção de
1. As mulheres concebem as relações de maneira díferente dos homens. Enquanto os ho- argumentos hipotéticos como um processo de abstração e destruição da vida so-
mens vêem as relações como uma hierarquia, as mulheres as concebem como cial real. Portanto, podemos causar danos sociais ao ignorarmos as verdadeiras
uma rede. Para os homens, a hierarquia é instável, o que se deseja é chegar ao posições sociais e as redes sociais nas quais se situam as pessoas. A abstração pode
topo e o que se teme é que alguém consiga chegar muito perto dessa posição ele- ser útil para "extrair o sentido essencial e depurar os princípios objetivos de jus-
vada. Para as mulheres, a rede é estável, o que se deseja é estar no centro e o que tiça e para se avaliar a lógica formal de igualdade e reciprocidade", mas não con-
duz "ao entendimento da causa e da conseqüência, que implica a compaixão e a
tolerância que, como muitas vezes se considera, distinguem os juízos morais das
32.A psicologia de Kohlberg se destina em parte a complementar empiricamente as afirmações morais
mulheres" (ibid.: 100).
da doutrina do contrato social do modo como o elaboraram Kant e Rawls. Segundo essa concepção, a justi-
ça é urna obrigação para com o contrato que requer imparcialidade na aplicação da lei e o direito dos indiví- 3. As mulheres constroem a seu modo os problemas morais, vendo os dilemas morais
duos a ser tratados como iguais. A teoria é uma elaborada reformulação contemporânea do argumento libe- em termos de responsabilidades conflitantes. O cuidado é o critério mais impor-
ral que defende a auto-evidência do esquema moral do contrato social. Kohlberg pode então argumentar que tante na solução de conflitos, enquanto os homens vêem os direitos e a justiça
a educação moral deve concentrar-se na forma, não no conteúdo, das crenças morais e da ação. A partir da
perspectiva do contrato social, isto é, da moralidade do Estágio 5, todos os "conteúdos" ou fins morais são
como a chave para a solução. Portanto, as mulheres têm uma ética de cuidados ou
fundamentalmente arbitrários. A obrigação é definida em termos de contrato, como o respeito aos direitos responsabilidades, e os homens, uma ética de direitos ou justiça. Gilligan diz que sua
mútuos, em especial o direito de ser tratado como um fim em si próprio, e nunca como um meio para servir pesquisa, demonstra "a centralidade dos conceitos de responsabilidade e cuida-
aos fins de outra pessoa. A base cognitiva do raciocínio moral é uma capacidade progressiva de perceber os do para a construção feminina do domínio moral [e] da íntima relação, no pen-
elementos desse pensamento concreto, os atos específicos das pessoas, abstraídos de seu contexto de vida de samento das mulheres, entre as concepções do eu e da moralidade" (ibid.: 105).
modo que se concentre na qualidade formal da reciprocidade.
33. Gilligan (1982: 26-39) compara as respostas de Jake, um jovem típico, com as de Amy, uma jovem 4. A concepção do eu e do mundo caracteriza-se, portanto, pela relação, não pela do-
típica. Jake descreve o dilema moral como um conflito entre o direito à vida e o direito à propriedade; ele diz minação e separação. A autodescrição revela a identidade das mulheres e é defi-
que o direito à vida é mais importante do que o outro, e conclui que o roubo do remédio pode ser moralmen- nida no contexto das relações e avaliada por um padrão de responsabilidade e
te justificado. Amy parece mais dividida entre roubar o remédio e enfrentar a morte da esposa de Heinz; ela
procura caminhos intermediários, como um empréstimo para comprar o remédio, e descreve a questão mo-
cuidado: "a masculinidade se define pela separação, enquanto a feminilidade se
ral do princípio como a recusa do farmacêutico em chegar a um acordo que permita a Heinz obter o medi- define pela ligação" (ibid.: 7-8) . Uma das participantes das experiências descreve
camento. Gilligan então afirma que a resposta de Arny ficaria num nível de desenvolvimento moral inferior o fato de estar sozinha ou separada como "o som de uma única mão aplaudin-
ao de Jake (uma vez que Amy não viu a questão em termos de um conflito de direitos), mas conclui que a do... Falta alguma coisa" (ibid.: 160). Ao contrário, as auto descrições masculinas,
resposta de Amy valoriza a conciliação das relações contínuas e procura entender a inter-relação de todas as apesar de mencionarem as ligações, são marcadas por adjetivos de separação.
pessoas envolvidas na situação.
34. Como geralmente mostram os estudos de brincadeiras de meninos e meninas: em caso de trapaça,
O envolvimento com os outros [estava] preso a uma qualidade da individualidade,
os meninos tendem a reclamar dos transgressores e a bani-los do grupo, enquanto as meninas, ao percebe-
rem que nem todos brincam conforme as regras, procuram mudar o jogo e manter a coesão do grupo. Gilli- não a sua realização. Em vez de ligação, a realização individual domina a imaginação
gan (1982: 10-1) interpreta isso em termos de exigências contrastantes da estrita aplicação das regras e da masculina, e são as grandes idéias ou as atividades marcantes que definem o padrão
manutenção da coesão grupal. de auto-avaliação e sucesso (ibid.: 163).
600 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 601
Serão totais esses extremos? O que é o desenvolvimento de uma pessoa, e o enfatizem uma distinção entre dois modos de pensamento e enfoquem um problema
que é amadurecimento? Para Gilligan, a verdadeira maturidade para ambos os se de interpretação, e não que representem uma generalização sobre qualquer dos sexos.
xos consistiria em afastar-se dos absolutos aos quais estão associados. Isto é, os lio
mens devem afastar-se dos absolutos dos direitos, da verdade e da eqüidade, e apu Catherine MacKinnon reage prontamente, afirmando que Gilligan está, na ver-
ximar-se da percepção das diferenças entre o eu e o outro, bem como do reconheci dade, reforçando a opressão das mulheres; a obra de Gilligan celebra apenas a con-
mento de que existem múltiplas verdades. Da mesma forma, as mulheres devem cepção que se permitiu que as mulheres desenvolvessem:
afastar-se do absoluto dos cuidados e admitir uma reivindicação de igualdade e di
Sou crítica em afirmar o que temos sido, que é necessariamente o que se tem per-
reitos que transforme seu entendimento das relações e sua definição de cuidado.
mitido que sejamos, como se fôssemos nós, as mulheres, possessivas.
Para Carol Smart:
( ... ) o modo como as mulheres raciocinam moralmente [não] constitui uma moralida-
de "numa voz diferente". As mulheres valorizam o cuidado porque os homens nos têm
Portanto, a obra de Gilligan constitui a base de uma crítica de qualquer sistema de valorizado na medida dos cuidados com que os cercamos... As mulheres pensam em
justiça (criminal e civil) que celebre a voz masculina dos juízos morais como uma forma termos relacionais porque nossa existência se define em relação aos homens. Além dis-
de justiça universal. Isso pode ser feito de diversas maneiras. Por exemplo, toma-se pos so, você não fala diferentemente quando é impotente. Na verdade, você não fala. Seu
sível reexaminar o sistema de "justiça" criminal em termos de procurar saber se a aplica discurso não é apenas diferentemente articulado, é silenciado. Eliminado, banido. Você
ção de uma modalidade de julgamento masculina é inerente e necessariamente "injusta" não é simplesmente privada de uma linguagem com a qual articular sua diferença, em-
no tratamento que dispensa às mulheres. Coloca-se a questão de saber se as sanções pe bora ela exista; privam-na também de uma vida que deveria estar na base da articula-
nais com base nessa modalidade masculina (por exemplo, o encarceramento institucio ção... Tudo que estou dizendo é que os danos do sexismo são reais, e que reificá-lo em
nal ou as penalidades econômicas) não são demasiado duras quando aplicadas às mu forma de diferenças é um insulto às nossas possibilidades (1987: 39).
lheres, uma vez que provêm de um modo de pensamento concebido para os homens,
para os transgressores de seu mesmo sexo. Igualmente, é possível desenvolver um argu. Essa é a crítica oposta ao essencialismo. Para MacKinnon, Gilligan não descre-
mento que critique o sistema em termos do tratamento que dispensa tanto aos homens ve o que as mulheres realmente são, mas o que elas passaram a ser em decorrência
quanto às mulheres. Gilligan está em busca de "uma visão mais fecunda da vida hu-
do processo de socialização que lhes foi imposto. Assim, Gilligan descreve, e em se-
mana". Para ela, a ética da justiça (a de que todos devem ser tratados como iguais) deve
ir somar-se à ética do cuidado (a de que não se deve ferir ninguém) para produzir um guida reifica, a opressão de gênero.Vista sob essa luz, a obra de Gilligan é reacioná-
melhor resultado. Sua conclusão, portanto, é não produzir um sistema separado de jus- ria'. Não obstante, nos Estados Unidos a aplicação de sua obra com o objetivo de
tiça para as mulheres, não substituir a ética de justiça pela ética do cuidado (1989: 74). transformar as perspectivas jurídicas - pelo menos nos círculos acadêmicos - tem se
mostrado um campo fértil à teorização". Em parte, essa é uma crítica ao direito exis-
Smart afirma que, sob certos aspectos, esta é uma conclusão decepcionante, pois tente: uma vez que todo o paradigma da filosofia política e moral em que ele se legiti-
cabe a argumentação de que alguns sistemas já alegam fazer isso (por exemplo, a no- ma é individualista, a teoria jurídica do constitucionalismo é individualista (Suzanna
meação de mulheres para a magistratura, o funcionamento do juizado de menores Sheriy, 1986); os debates sobre a tributação progressiva ou cortes de impostos são
com a justiça do menor). Portanto, a obra de Gilligan apenas ressuscita antigos con-
ceitos. Outros argumentam que o livro de Gilligan é essencialistal ou reproduz as
36.Joan Williams, em "Deconstructing Gender", 1989 (87 Michigan Law Review 797), mostra como Gil-
posições reducionistas que o discurso do homem atribuiu às mulheres. Gilligan, po- ligan tem sido usada, em processos judiciais, de modo que prejudique as mulheres. Em EEOC vs. Sears 628 F.
rém, nunca sugeriu que as vozes das mulheres fossem biologicamente determinadas, Supp. 1264 (ND ifi 1986), a Sears argumentou com êxito que as mulheres não estavam entre os mais altos
nem que só se pode encontrá-las nas mulheres. Como ela diz em sua introdução: salários por comissões de vendas porque "não se interessavam por vendas", e não porque a Sears as estives-
se discriminando. Gilligan foi citada na prova pericial em defesa do argumento da Sears de que as mulheres
têm aspirações profissionais diferentes das dos homens, o que as torna menos interessadas em cargos de alto
( ... ) a voz diferente que descrevo se caracteriza não pelo gênero, mas pelo tema. Sua as- nível. O tribunal aceitou uma imagem muito "gillianesca" das mulheres como nutrizes e protetoras, avessas
sociação com as mulheres é uma observação empírica, e é basicamente através das vozes a virtudes capitalistas como a competição. Joan Williams afirma que Gilligan e outras feministas das esferas
femininas que desenvolvo minha argumentação. Essa associação não é, contudo, absolu- cultural e relacional estão simplesmente apresentando sob uma nova forma a ideologia doméstica vitoriana
ta, e os contrastes entre vozes masculinas e femininas são aqui apresentados de modo que que construiu as mulheres como seres mais protetores, menos competitivos e mais morais do que os ho-
mens. Em sua opinião, mesmo no período vitoriano esse conceito das mulheres era visto sob uma luz posi-
tiva, mas terminou por levar à sua crescente subordinação.
35. Em outras palavras, o modelo de desenvolvimento feminino é um universalismo paralelo ao mode- 37.Resenhas dessa obra podem ser encontradas em Katharine T. Bartleft, Gender and Law (1993) e Les-
lo de desenvolvimento de Kohlberg. lie Bender, Froin Gender Differences to Feminist Solidaritij: Lising Carol Gilligan and na Efhic of Care in Law (1990).
602 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 603
dominados por idéias de separação com poucas noções de responsabilidade ío II Liberdade e autonomia constituem o "valor oficial" do liberalismo, sua espe-
(Kornhauser, 1987); as leis de falência mostram ser um campo de atividade e i ça; o medo está na vulnerabilidade da condição humana e no perigo de que o "ou-
nado pelos homens, indiferente aos efeitos de indução à pobreza de sua aplico 11 distinto e separado, possa nos aniquilar`. Para proteger-se desse "outro", os se-
(Gross, 1990); ao direito da responsabilidade civil se aplicaria uma noção dií humanos criam e respeitam o Estado`. O pressuposto de base do legalismo li-
de responsabilidade e de dano (Bender, 1990)38; e a aplicação da "rede de con K , i à é que os seres humanos experimentam o mundo como indivíduos separados,
ao direito constitucional resultaria em maior proteção (Karst, 1984). IpirLados uns dos outros, desde que assim o prefiram: em resultado, o valor colo-
do sobre todas as coisas é o direito de lutar por nossas vidas relativamente livres
Robin West - separação e conexão na teoria jurídica e feminista 1 controle externo.
Num artigo clássico, Robin West (1988) comparou as duas diferentes perspre A concepção dos teóricos jurídico-críticos
tivas. West afirmava que os teóricos masculinos do direito mostram uma forma
pecífica de raciocínio porque, primeiro e fundamentalmente, vivenciam o mundo Para os teóricos jurídico-críticos, a separação não é uma "celebração infinita da
condição de indivíduos separados, autônomos; tanto a base da teoria jurídica 1. 11 1 utonomia, mas sim um eterno anseio pela comunidade, ligação, unificação ou co-
culina tradicional quanto a da teoria jurídica masculina "crítica" é uma tese de" 1 exão". Os seres humanos não temem verdadeiramente a aniquilação, como o li-
paração". As mulheres, ao contrário, eralismo afirma, mas sim o isolamento e a alienação42. A teoria jurídico-crítica é a
história extra-oficial" da teoria jurídica masculina; em oposição ao enfoque liberal
( ...) não são essencialmente, necessariamente, inevitavelmente, sempre e por to(L) na autonomia, apresenta o indivíduo como se este realmente desejasse o oposto
eternidade separadas dos outros seres humanos ( ... ), [mas] são, em certo sentido, " daquilo que a cultura dominante lhe diz que ele deseja. Embora a cultura dominan~
nectadas" à vida e a outros seres humanos pelo menos durante quatro experiêri [e nos Estados Unidos (o liberalismo) diga que a autonomia é a chave para a felici-
materiais recorrentes e críticas: a experiência da gravidez; a experiência invasiva e ,(, , cl ade, em seu íntimo o indivíduo sabe que a chave está na conexão e na comunidade.
nectiva" da penetração heterossexual, que pode levar à gravidez; a experiência m( , ; i O "valor extra-oficial" da teoria jurídica masculina é a conexão e a comunidade, e o
sal da menstruação, que representa o potencial de gravidez, e a experiência pós-gr,
videz da amamentação (1988: 2-3). "dano extra-oficial" está na alienação e no isolamento`. West afirma que, embora
As mulheres raciocinam a partir de uma "conectividade" que os homens na 39. Para West, Ronald Dworkin expressa isso perfeitamente: "O que significa, para o governo, tratar
podem experimentar. Essa contra-experiência das mulheres fornece a base de uiii scus cidadãos como iguais? Ë () igual a querer saber o que significa, para o governo, tratar todos os cida-
alternativa à teoria jurídica que, através do pressuposto da tese de separação, tomo dãos como indivíduos livres ou independentes, ou com a mesma dignidade" (Ronald Dworkin, 1985: 191, ci-
se "essencial e irredutivelmente" masculina" (ibid.: 2). West desenvolve uma séric iodo em West, 1988: 6).
40.Desta vez, West retoma o temor expresso por Hobbes: "Se dois homens desejam a mesma coisa que,
de esperanças e temores contrastantes através de uma apresentação estilística da; oSo obstante, não pode ser desfrutada por ambos, eles se tomam inimigos; e, em nome de seu objetivo, (...)
posições do liberalismo jurídico, da teoria jurídica crítica, do feminismo cultural 1' ontam destruir-se ou dominar-se mutuamente" (Thomas Hobbes, Leviafã, citado em West, 1988: 8).
do feminismo radical. 41. O "Estado mínimo nos trata como indivíduos inviolados (..) [o que] nos permite, individualmente
ou com quem escolhermos, optar pela vida que desejamos e concretizar nossos objetivos (...)" (Robert No-
zick, 1974: 333-4, citado em West, 1988: 9).
Liberalismo jurídico 42. Como afirma Roberto Unger (1975: 201,citado em West, 1988:. 10): "A consciência, portanto, é a
marca da distância entre o eu e o mundo. Se se pudesse imaginar esse distanciamento da natureza em sua
O liberalismo jurídico pressupõe o individualismo autônomo e toma como seu forma pura, antes que fosse contrabalançado pelos efeitos da natureza humana, sua marca seria a experiên-
valor central as idéias de separação e liberdade; a liberdade é definida como a dis- cia do terror diante do estranhamento do mundo. Uma vez que esse terror é o que indicia essa própria sepa-
ação entre .o eu e a natureza, na qual se fundamenta a própria Consciência, nunca foi totalmente eliminado
tância do "outro" e como o espaço social para o indivíduo perseguir seus próprios da vida consciente."
43. O comentário de West sobre a "contradição fundamental" que Duncan Kennedy encontra na base
da vida social enfatiza sua estrutura masculina: "Segundo Kennedy, valorizamos tanto a.autonomia quanto a
38. Bender usa a obra de Gilligan tanto como fonte da crítica do direito de responsabilidade civil quan- relação e tememos tanto a aniquilação pelo outro quanto o alheamento dele, e tudo por boas razões. O outro
to como fonte de idéias transformadoras. Ela argumenta que uma ética dos "direitos" e da idéia de separa- é ao mesmo tempo necessário à continuidade de nossa existência e uma ameaça a tal continuidade. Embora
ção domina a matéria; a responsabilidade civil é em grande parte vista em termos de responsabilidade finan- sejaverdade que a narrativa liberal dominante da autonomia e aniquilação serve para perpetuar o status.quo,
ceira, e não de responsabilidade pelo cuidado com os outros. daí não se segue que os desejos subjetivos de liberdade e segurança que esses valores liberais reificam sejam
604 Filosofia do direito 605
Compreender a filosofia do direito feminista
as mulheres possam temer a intimidade como destruição de sua personalidade As feministas radicais, ao contrário, vêem a tese de conexão como ponto de par-
(através de sua estrutura física singular, que as torna sujeitas à invasão do pênis), tida da experiência feminina, porém argumentam que para a mulher é também uma
elas não a temem do mesmo modo que os homens. Assim, ao criticar o liberalismo fonte de degradação, impotência, subjugação e miséria. Em sua busca da intimidade,
o movimento dos Estudos Jurídicos Críticos deixou-se apanhar pela mesma arma as mulheres realmente vivenciam a invasão e a intrusão; equivocadamente, as femi-
dilha da tese de separação. Inversamente, nistas culturais caracterizam como conexão e cuidado coisas que na verdade são in-
( ...) em termos reais ou potenciais, as mulheres são materialmente ligadas a outras vi
vasões lesivas aos corpos e mentes femininos. West afirma que cada categoria apre-
das humanas. Os homens, não. Esse fato concreto tem conseqüências existenciais, senta descrições radicalmente diferentes da humanidade e da condição da mulher. A
Embora possa ser verdadeiro, para o homem, que o individuo é "epistemológica e mo importância disso é dupla: (i) as perspectivas do legalismo liberal não falam da hu-
ralmente anterior à coletividade", isso não é verdadeiro para as mulheres. O potenciiI manidade, mas do homem47; e (ii) na vida das mulheres há uma verdadeira contra-
de ligação material com o outro define o estado subjetivo, fenomenológico e existen dição que resulta das experiências conflitantes de intimidade e invasão".
cial da mulher, e o faz tão seguramente quanto a inevitabilidade da separação material
do outro define o estado existencial do homem. Nosso potencial para a ligação mate
rial engendra prazeres e sofrimentos, valores e perigos, atrações e medos, que são to direitos. M mulheres reagem ao estado natural de desigualdade com uma ética de responsabilidade e cuida-
talmente diferentes daqueles que, para o homem, decorrem da necessidade de sepa dos" (West, 1988:28).
ração (1988: 14). 46. Portanto, embora Unger afirme que "o amor ajuda o homem a superar a distinção entre o eu e a na-
tureza" (Unger, Knowledge and Politics: 205), o feminismo cultural não admite que as mulheres façam essa
Feminismo cultural versus feminismo radical mesma distinção. Para West, as mulheres valorizam o amor e a intimidade porque estes exprimem a unida-
de do eu e da natureza através de nossos próprios eus. "Intimidade não é uma coisa pela qual as mulheres
lutem por obter. Simplesmente a praticamos. É ridiculamente fácil. E também fica, desconfio, qualitativamen-
Na busca de um modo de pensamento e moralidade nas experiências de vida te além dos limites masculinos. A diferença pode ser colocada com total clareza: a intimidade que as mulhe-
das mulheres", o feminismo cultural desenvolve a tese da conexão, mas deixa d' res prezam é o compartilhar de um território intersubjetivo que preexiste ao esforço feito para identificá-lo"
analisar as condições materiais em que esse desenvolvimento tem lugar. Sua ver (West: 1988: 40).
dade essencial está na conexão, uma verdade que "deveria" ser universal: 47."Quando Hobbes, Ackerman, Dworkin, Rawls e outros autores da tradição liberal descrevem o im-
passe natural humano como um dilema de igualdade natural e antagonismo mútuo, e descrevem os seres
humanos como inevitavelmente separados e mutuamente egoístas, desse modo excluindo da espécie, por de-
A intimidade não é apenas algo que as mulheres praticam, mas algo que os ser finição, as mulheres grávidas e as que amamentam, eles estão (...) enganados de um modo particular e por
humanos deveriam praticar. A intimidade é uma fonte de valores, não um passatempo uma razão específica. GabeI confundiu sua experiência masculina de separação e alienação com a experiên-
privado. É moralidade, não hábito (ibid.: 18). cia 'humana', e os liberais confundiram sua experiência masculina de igualdade natural, separação mútua,
medo da aniquilação e egoísmo total e onipresente, com a experiência 'humana', e eles assim o fizeram por-
Enquanto o liberalismo fala sobre o medo da aniquilação, as mulheres temem a que as mulheres não deixaram claro que nossa experiência vivida, do dia-a-dia - de intimidade, ligação, se-
isolação e a separação; as mulheres quase sempre têm problemas quando um eu s' paração, invasão sexual, nutrição e intrusão -,.é totalmente diferente da dos homens. Precisamos inundar o
parado tem de afirmar-se". mercado com nossas próprias histórias para nos fazermos entender plenamente; a narrativa dos homens e a
descrição fenomenológica do direito não são a história e a fenomenologia do direito das mulheres. Precisa-
mos banir a confiança dos teóricos do direito de que falam para as mulheres, e precisamos preencher as la-
inteiramente falsos. Ao contrário, argumenta Kennedy, a coletividade é ao mesmo tempo essencial à nOSSI cunas que vão surgir quando conseguirmos fazer isso" (West, 1988: 65).
identidade e um obstáculo a ela. Temos desejos e valores contraditórios porque nossa condição humana ess'n 48."(...) as mulheres valorizam'oficialmente' a intimidade (e temem a separação) a despeito dos interes-
cial - a separação física da coletividade, que é necessária à nossa identidade - é em si mesma contraditória. ses subjetivos em contrário não (apenas) devido ao poder legitimador da ideologia patriarcal, não (apenas) de-
44. West define o feminismo cultural em relação a Caro! Gilligan (In a Different Voice), Nancy Chodu vido ao poder da negação, mas porque a circunstância existencial e material das mulheres é intrinsecamente
row (The Reproduction of Mothering [1978]) e Suzanne Sheny ("CivicVirtue and theFeminineVoice in Con. contraditória. O potencial de ligação física com outros, que é uma característica exclusiva das mulheres, traz
titutional Adjudication" [1986], 72 Virginia Law Review 543); Andrea Dworkin (Intercourse [1987]), Adrieniu' em si as sementes tanto da intimidade quanto da invasão, e, portanto, elas valorizam com razão a primeira e
Rich (On Lies, Secrets and Silence [1979]) e Catherine MacKinnon (Feminism Unmodfied). têm medo ou pavor da segunda, assim como a necessidade de separação física, para os homens, traz consi-
45. Observe-se um contraste com a teoria liberal. Enquanto Hobbes vê "outro" como um igual que t go as sementes tanto da intimidade quanto da alienação, e eles valorizam com razão a primeira e temem a
potencialmente perigoso, o "outro" com o qual as mulheres devem comumente se defrontar - o feto ou segunda. Se isso estiver certo, então todas as quatro narrativas da experiência humana - legalismo liberal, le-
criança - é tudo, menos perigoso e igual. Há uma desigualdade natural entre a mulher e sua criança - que e galismo crítico, feminismo cultural e feminismo radical — estão dizendo algo de verdadeiro sobre a experiên-
física, emocional e mentalmente mais frágil do que ela -, mas isso não leva a mulher a agredi-la (como 1-lol cia humana. O liberalismo jurídico e o legalismo crítico descrevem, ambos, algo de verdadeiro sobre a expe-
bes imagina que os homens farão); ao contrário, faz surgir nela sentimentos de responsabilidade, cuidados i' riência masculina, e o feminismo cultural e o feminismo radical descrevem, ambos, algo de verdadeiro sobre
nutrição. Em resultado: "Os homens reagem ao estado natural de igualdade com uma ética de autonomia e a experiência feminina" (1988: 53).
606 Filosofia do direito Compreender a filosofia do direito feminista 607
TEMORES FEMINISTAS E UTOPIA Que dizer, então, do amor? Os textos mais místicos de Luce Irigaray pedem um
inálgama de experiências, uma revelação do divino na humanidade através de uma
As distinções de West podem ser muito abruptamente demarcadas; os contra'.! natriz amorosa" em que a carne humana não seja vista com desconfiança, em que
em temores e esperanças devem ser reflexos de aspectos dos temores, esperançn udesvanecimento do afago" fale de uma celebração da vida numa ética do toque:
desejos humanos. Cada perspectiva se concentra em uma ou outra das condições liii
manas, em detrimento das demais. Andrea Dworkin, por exemplo, identifica o • Sendo a carne do outro o mais sutilmente necessário guardião de minha vida.
lor oficial (a intimidade) do feminismo cultural como um disfarce do dano. A mal Aproximando-se e falando-me com suas mãos. Devolvendo-me à vida mais intimamen-
ria das feministas admitiria que a relação sexual não desejada, o estupro, é um dn te do que qualquer alimento regenerador, as mãos do outro, essas palmas com as quais
mas as feministas radicais levam sua argumentação muito além disso, freqüen ele se aproxima sem me atravessar, fazem-me remontar aos limites do meu corpo e me
chamam de volta à lembrança da mais profunda intimidade. Quando ele me acaricia, não
mente apresentando a idéia de que a gravidez e a maternidade constituem dan
me pede que desapareça nem que esqueça, mas sim que eu me lembre do lugar em que,
em si, porque o feto e a criança são intrusivos. Para as feministas radicais, a rela. para mim, a vida mais íntima se conserva em segredo. Em busca do que ainda não veio
sexual, inclusive a voluntária, é um dano porque "divide internamente uma rnulh" a ser, para ele próprio, ele me convida a tomar-me o que ainda não me tomei. A conceber
- "apropria-se da manutenção da integridade física e da formação de um eu unifi um nascimento ainda futuro. Fazendo-me voltar ao útero materno e, mais além ainda,
do, nega-os e torna-os impossíveis" (West, 1988: 35). à concepção, despertando-me para outro - amoroso - nascimento (Irigaray, 1986: 232-3).
As feministas radicais são divididas entre negar a desumanidade e a aliei
ção do individualismo e afirmar que, como a intimidade constitui um dano, as mii A identidade do corpo feminino se perdeu na demarcação do papel de mãe a
lheres anseiam pela individuação. Especificamente, querem libertar as mulheren partir do objeto de desejo do amante. Na emancipação do corpo, para Irigaray, este
da colonização de suas mentes pela hegemonia do patriarcalismo. A cultura do não é o território nem daquele que deu à mulher seu corpo (a mãe), nem daquele que
minante diz às mulheres que elas prezam a intimidade e a dependência para toi ede que ele vá juntar-se ao seu (o amante); ao contrário, a união denota a busca de
ná-las mais facilmente controláveis pelos homens; a separação e a independência rn "momento de suprema comunhão", uma volta ao "nível mais profundo do fluxo
são as coisas de que realmente precisam, mas isso introduz o risco de se voltar ai dementar, onde o nascimento ainda não tem sua identidade confirmada" (ibid.: 234).
liberalismo. A vida dança com a morte, mas a morte não é mantida à distância por meio da
(legítima) dominação do outro, nem pela determinação do outro (pela demarcação
le limites), mas pelo constante renascer. A carícia remete a um "advento futuro que
Contrastando a interação do corpo masculino-feminino não se mensura pela transcendência da morte, mas pela exortação ao nascimento do
a e do outro (...).Antes de qualquer procriação, os amantes dão vida um ao outro.
De novo, as percepções do corpo são vitais. Na década de 1980, muitas crítica,,; or sua vez, o amor fecunda cada um deles (...), leva cada um deles a renascer para
feministas radicais da relação sexual representavam-na em teinios de uma profunda o outro ( ... )" (ibid.: 232, 235).
invasão da integridade física do eu. O livro Intercourse, de Andrea Dworkin, é um dos
principais proponentes dessa argumentação:
Além da diferença: feminismo como humanismo?
( ...) Há o contorno de um corpo, distinto, separado, sua integridade uma ilusão, um ti,
gico engano porque, despercebida, há uma fenda por entre as pernas, e ali ele tem de foi A metodologia utópica de Drucilla Comeu é um "feminismo ético" no qual
çar sua entrada. Não há nunca uma verdadeira privacidade do corpo que possa coexistir lutar pelo feminino significa também imaginar uma nova estrutura para a humani-
com a relação sexual: com o ser penetrado. A vagina é musculada, e os músculos devem dade para além da dominação:
ser afastados. O impulso é invasão permanente. Ela é aberta, fendida ao meio. Ela é
ocupada - fisicamente, internamente, em sua privacidade (..) sua fenda é sinônimo O feminismo ético "prefigura" não apenas um mundo em que o ponto de vista do
de entrada ( ... ). Por definição, pretende-se que ela tenha uma menor privacidade, uma feminino é apreciado; o feminismo ético também "vê"um mundo "povoado" por indi-
menor integridade do corpo, um menor sentido do eu ( ... ). Ela é definida pelo modo víduos "sexuados" de modo diverso, um mundo para além da castração. Através de nos-
como é feita, aquela fenda que é sinônimo de entrada; e a relação, o ato fundamental sas "visões", afirmamos o "dever-ser" de uma maneira diferente de ser humano. O "ob-
para a existência, tem conseqüências para o seu ser que podem ser intrínsecas, não so jetivo" do feminismo ético, que "vê" e "deve ser" inerente ao ponto de vista feminino,
cialmente impostas (1987:122-3). não é apenas o poder para as mulheres, mas a redefinição de todos os nossos concei-
Compreender a filosofia do direito feminista 609
608 Filosofia do direito
tos fundamentais, inclusive o poder. Em outras palavras, o poder feminino não devi O discurso das mulheres negras (particularmente das norte-americanas) foi ori-
separado da visão ética, diferente, de "seres" humanos buscados no feminino, ente pjialmente uma tradição oral, e mais recentemente tem alimentado uma tradição
da como um processo de redenção (1991: 131). literária, poética e musical (o blues, o jazz). Hoje, o feminismo negro retoma cons-
1 'ientemente a tradição narrativa enquanto se diferencia do "feminismo em geral`.
1 rnbora uma tendência da consciência negra possa significar uma volta à pureza -
SUBJETIVIDADES MÚLTIPLAS: O IMPACTO DO FEMINISMO ma tentativa de encontrar uma identidade estável que seja intocada pelo legado da
AFRO-AMERICANO OU DE CRÍTICA RACIAL49 'olonização, da dominação e do discurso da inferioridade, uma outra produção aca-
1 êmica, talvez pós-moderna, nega os universalismos (por exemplo, Harris, Angela P.,
Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a subir em carru,i 1990), prega a especificidade e a singularidade ao mesmo tempo que enfatiza os in-
gens e a transpor poças d'água, e que devem ter sempre os melhores lugares, onde cl i 1 cresses comuns no contexto das diferenças da humanidade".
que estejam. Ninguém nunca me ajuda a subir em carruagens ou a saltar poças de 1am,, Há muitos temas, mas um deles é um movimento que pretende resgatar um eu
nem me dá o melhor lugar! E por acaso não sou uma mulher? Olhem para mim! Tenho ii oveniente das estruturas da escravidão e da múltipla opressão. Como diz Beil Hooks
arado a terra, plantado e vivido em celeiros, e nenhum homem me levou pela mão dli (1.990, 1991): "( ...) nenhuma mulher negra pode tornar-se uma intelectual sem
hoje! E não sou uma mulher? Eu podia trabalhar e comer igual um homem - se ti'ves descolonizar sua mente". Como funciona essa descolonização? Vejamos o que diz
o que comer -, além de suportar o chicote tanto quanto ele! Pari treze filhos, vi quase i udy Scales-Trent:
dos ser vendidos como escravos e, quando chorei pela aflição de minha mãe, ninguém,
a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? (Discurso de Sojourner Truth, 185 Outro ato de capacitação Consistiu em assumir a tarefa de definir meu grupo, de dar
citado em Bartlett e Kennedy, 1991: 256)°. nome a mim mesma. Nomear-se, definir-se e, desse modo, assumir o poder de definir a
Uma ideologia feminista negra ( ... ) declara a visibilidade das mulheres negras... Thn despeito daqueles que exercem poder sobre você, é um importante ato de capacitação
segundo lugar, o feminismo negro afirma que a autodeterminação é essencial. As mii (...). Portanto, o ato de autodefinir-se deixa claro nosso valor e nossos direitos, e expõe
lheres negras têm o direito de interpretar nossa realidade e definir nossos objetivos. liii, a visão que temos de, nós mesmas como algo a ser levado em conta (citado em Jewell,
terceiro lugar, uma ideologia feminista negra contesta em profundidade a interestrutuii 1993:103).
das opressões do racismo, do sexismo e do classismo, tanto na sociedade dominanh
quanto dentro dos movimentos de libertação. Por último, uma ideologia feminista fli Ou, nas famosas palavras dó poeta norte-americano negro Audre Lorde, a mu-
gra pressupõe uma imagem das mulheres negras como sujeitos poderosos e indepen 1 l- er afro-americana, herdeira de uma tradição em que seus antepassados foram es-
dentes (Deborah K. King, citada em Jewell, 1993). cravos, deve não apenas criar mensagens e modos positivos de articular a situação
em que as mulheres negras se encontram, mas também desenvolver outras formas
49. É inclusive polêmico falar sobre feminismo negro. Embora mulheres negras como Maria Stews de apoio que permitam um certo grau de auto-suficiência e independência: porque
Sojourner Truth e Arma J. Cooper (que discutiu o ponto de vista da mulher negra em seu livro A Voicefr es ferramentas do senhor jamais derrubarão a sua própria cas0. Por mais que a lingua-
the South by a Black Woman ofthe South, de 1982) oferecessem uma perspectiva das mulheres negras, em
ral elas apresentavam uma argumentação a favor de toda a raça (uma vez que "um regato não pode ser si
perior à sua fonte"); o feminismo negro autoconsciente é relativamente recente. Frances Beale (1970) cunhi 51.Atenção: para a produção acadêmica feminista, o padrão tem sido o de que suas análises tendiam a
a expressão "duplo risco" para definir a condição de ser ao mesmo tempo mulher e negra. Alice Walker pn' refletir as experiências das norte-americanas brancas de classe média e de outras mulheres de países do Oci-
fere o termo womanism*, definido como um compromisso com "a sobrevivência e a integridade de todas o, dente europeu. Embora argumentassem que a cultura tradicional universalizava a partir de perspectivas limita-
pessoas, homens ou mulheres (...)". das, seu próprio saber era igualmente limitado. Contudo, o feminismo adquiriu consciência de que as vozes
50. A presença de Sojourner•Truth na Akron Convention on Woman's Suffrage, em 1851, foi contestaci, deixadas à margem do discurso principal da modernidade não têm sido apenas das mulheres, mas também
por várias colegas de Frances Gage, organizadora do evento. Gage relata que o conselho que recebeu foi ben i de muitos grupos sociais que eram percebidos como "o outro" pelo pensamento dominante. O feminismo,
simples: "Não permita que ela fale, sra. Gage, pois isso será o nosso fim. Para todos os jornais locais, nos., porém, ainda é em grande parte uma busca de mulheres brancas de classe média.
causa estará 'misturada com a questão da abolição e dos negros, e seremos denunciadas por isso" (citado er 52. Como diz Audre Lorde, as diferenças entre as feministas norte-americanas brancas e negras talvez
Linda Ammons, 1995: 1041). tenham a ver com diferenças reais de posição na vida: "Alguns problemas nós compartilhamos enquanto mu-
lheres, outros não. Vocês têm medo de que seus filhos cresçam, juntem-se ao patriarcalismo e se coloquem
* O termo, sem correspondente em português e criado por Wãlker em seu livro lis Search of Our Mothers' Garden, d rotura vocês; nós temos medo de que nossos filhos sejam arrancados de um carro e baleados na rua, e vocês
1983, define o feminismo negro que retorna o legado das mulheres afro-americanas, corajosas, fortes e audaciosas, que lu vão ignorar as razões pelas quais eles estão sendo mortos" (1984: 119).
tam pela libertação do povo negro e, por extensão, do resto da humanidade. Para Walkea o termo Jãminism é inadequado pai 53."Porque as ferramentas do senhor jamais derrubarão sua própria casa. Eles podem permitir, temporaria-
sua excessiva identificação com um movimento predominantemente branco. lbrtanto, wo,na.nism é diferente esuperior afir mente, que os vençamos em seu próprio jogo, mas jamais permitirão que façamos uma verdadeira mudan-
iniciam, e a diferença provém das diferenças históricas entre mulheres brancas e negras no contexto do racismo norte- ça. E esse fato só é ameaçador para aquelas mulheres que ainda definem a casa do senhor como sua única
ame-ricano. O womanisin, por exemplo, admite incondicionalmente que a mulher/pessoa seja lésbica, heterossexual, homossexuaf
Fonte de sustento" (Audre Lorde, 1981: 99.
ou bissexual. (I'I. do T.)
Compreender a filosofia do direito feminista 611
610 Filosofia do direito
gem e o imaginário tradicionais das escritoras feministas negras diga respeito li dou :xija que o leitor questione todas as abstrações das reificações do direito, sua obra
e ao sofrimento - compreensivelmente, uma vez que sua realidade histórica (mi': l também um ensaio de alegria diante das promessas do direito. Em particular, ela
quando contada por homens brancos`) tem sido freqüentemente um inferno 'az a crônica da esperança que os negros têm demonstrado nos direitos.
vida -, será que isso condena sua tradição a pertencerá narrativa de vitimização? A No sistema jurídico, os direitos são ilhas de capacitação. Não ter direitos significa não
uma poesia dos oprimidos? Audre Lorde (1984) compara o medo tradicional das estar capacitado, e a linha divisória entre direitos e não-direitos é quase sempre a linha que
tes da rica linguagem associativa e musical da poesia com seu medo da pele esc: separa dominadores de opressores. Os direitos contêm imagens de poder, e a manipula-
da fêmea, das trevas, do escuro do "outro". Lorde argumenta que a produção ac ção lingüística ou visual dessas imagens é central à criação e manutenção desses poderes.
mica negra só pode funcionar como análise significativa se encontrar, nas experiên
das mulheres negras, fontes de sabedoria e não meros exemplos de vitimizaçã Da parte dos negros, a percepção da capacidade dos direitos demonstra uma
Patricia J. Williams apresenta, em The Alchemy of Race and Rights: A Dianj of a T i1 ci:ença e uma esperança quase religiosas no potencial dos direitos existentes em aju-
Professor, uma vigorosa série de ensaios que misturam insights obtidos pela exp .Ia-los em sua situação:
riência pessoal pela produção jurídico-acadêmica e por vôos de alegoria e metáfo:
É preciso lembrar que, da perspectiva da vivência dos negros, não existia nenhum
Williams situa sua mensagem através da evocação narrativa. Ao colocar a (sua) su! direito dos escravos. O sistema jurídico não dava aos negros, mesmo aos libertos, ne-
jetividade como locus de múltiplas forças e mensagens culturais, seu eu quase nhuma expectativa, promessa ou segurança. Se considerarmos que os direitos emanam
dissolve; as guerras sobre identidade não se destinam exatamente aos seminári da história "jurídica" dos escravos ou da história das modernas estruturas jurídicas bur-
acadêmicos, e a luta pelo reconhecimento é social, racial e pessoal`. Embora Williai guesas, é evidente que os direitos não significam nada, pois em nenhum dos casos os
negros podiam contar com absolutamente nada... Uma vez que a experiência pessoal
de alguém tem raízes não no sentimento de ser ilegítimo, mas no fato de ser ilegítimo, de
54. Como o mercador de escravos John Newton (1962) recordou em seu livro TheJournai of a Slave 2 ser estuprado, e no medo de ser assassinado, faz sentido a adesão dos negros a um esque-
der 1750-1754: "Quando mulheres e meninas eram trazidas para o navio, nuas, trêmulas e aterrorizadas, ma de direitos positivos e negativos - ao eu, à santidade dos próprios limites pessoais
vez quase mortas de frio, cansaço e fome, eram quase freqüentemente expostas às libertinagens de selvag (1991: 154).
brancos. As infelizes não entendiam a língua em que lhes falavam, mas os olhares e modos dos que lhes
lavam eram perfeitamente compreensíveis. Na imaginação, a presa é imediatamente compartilhada, e o
O que nos oferece a leitura de Williams? Talvez, uma sensibilidade diante da
dela se reserva espera apenas por uma nova oportunidade de uso. Onde a resistência ou a recusa seriam
talmente inúteis, até mesmo a solicitação de consentimento raramente é objeto de cogitação." dor, da diferença - uma esperança em um mundo mais aberto—, de um tipo de sen-
55. "O leilão começava - e ali estavam as meninas, irnento mágico; uma consciência da complexidade do sentido nas relações sociais;
Indefesas em sua desgraça, uma apreciação da realidade da hegemonia e da reificação. Junto com Lourdes Teo-
Cujos soluços reprimidos, de profundo desespero, duro (Agua-marínha ou tempo sem palavra, excerto de The Generation ofFear, tradu-
Mostravam sua aflição e angústia. ção inglesa de lain Bruce, 1978), os escritores negros falam de
E as mães ali, com os olhos cheios de lágrimas,
Assistiam à venda de suas filhas queridas;
Ignorados, seus gritos fendiam os ares quão difícil tornou-se ser,
Enquanto os tiranos as barganhavam por ouro" (ElIen Watkins Harpei excerto de The SlaveAuction [(.1 mas foi sempre difícil ser em vão.
leilão de escravos], 1857).
56. lra uma ampla e detalhada apresentação do imaginário e da posição social das mulheres negro
e de como isso tem impacto sobre um campo específico do direito vivo, ver Linda Ammos, "Mules, Madoi FEMINISMO Pós -MODERNO
nas, Babies, Bathwater, Racial Imagery and StereoTypes: The African-American Woman and the Battered W
man Syndrome", Wisconsin Law Review, 1995, 5. Em parte, o pós-modernismo consiste na dificuldade de aceitar qualquer posi-
57.Uma das táticas principais da escrita feminista tem consistido em instilar vida nova à narrativa, coro
forma de produção acadêmica. Nas mãos de Patrícia J. Williams, a narrativa é usada para dar-lhe consciência d'
ção estabelecida, qualquer afirmação de essências e a identidade como única respos-
eu que forma a base do "caráter" que irá configurar os escritos de teoria jurídica. Seus temas remetem à di
ficuldade de adquirir uma consciência coerente do eu em um mundo pós-moderno desarticulado, em espe
refletida nas vitrines das lojas e me surpreendo ao ver ali uma pessoa inteira olhando para trás. É nessas ho-
cial para os negros que contam com o legado do discurso dos brancos para a construção de suas identidade:,
'as que minha pele fica viscosa como a argila, e meu nariz desliza pelo meu rosto, e meus olhos descem em
"Há momentos, em minha vida, em que me sinto como se uma parte de mim estivesse faltando. Há dias er
que me sinto tão invisível que nem consigo me lembrar em que dia da semana estamos, quando me sinto Lã gotas até o meu queixo. Nessas horas, preciso fechar os olhos e me lembrar de mim mesma, criar uma ima-
manipulada que nem consigo me lembrar do meu próprio nome, em que me sinto tão furiosa que não sou co em que seja suave e inteira; quando tudo o mais. me falta, pego um espelho e fico a olhar para mim até que
paz de dizer uma boa palavra às pessoas que mais me amam. É nessas horas que vislumbro minha imager )s traços se reagrupem como ovelhas desgarradas."
Compreender a filosofia do direito feminista 613
612 Filosofia do direito
nome da não-civilização. Em suas melhores formas, o feminismo fala à política do
ta. As mulheres não formam um grupo homogêneo, como deixam claro os argu "outro", ou daquele que o direito freqüentemente serviu para constranger e conde-
mentos conflitantes do feminismo radical e cultural. O feminismo é um conjuni nar ao silêncio. A questão que se coloca é a luta por aquela humanidade que se en-
vago de discursos e práticas, razão pela qual qualquer metateoria se torna impo contra para além do passado que nós fomos, e que ainda está por desenvolver num
sível. Em cada argumento feminista diferente podemos encontrar diferentes i1um futuro que poderia ser. Nesse sentido, seja o que for que pensemos sobre qualquer
nações da condição humana. pensadora feminista, o feminismo atua como uma exigência de considerar quem
O(s) movimento(s) feminista(s) não originou (originaram) uma perspectiva d somos, e qual seria um "nós" verdadeiramente social; ele nos pede que nunca dei-
minante, e existem muitas interpretações diferentes. Alguns aspectos não fugiram xemos de levar em conta o que é que pode unificar e embasar nossas verdadeiras
alguns dos problemas que julgam encontrar nas teorias tradicionais. Em parte, as
ri j ferenças.
ministas reproduziram as tendências universalizadoras que abominam na tradiç
Elas também foram demasiado rápidas em seu tratamento da tradição. Ao mesni
tempo, é possível que entre os pressupostos e as posições retóricas particulares q
passaram a dominar existam muitas perspectivas e posições criadas por homens,
que somente algumas delas possam ser vistas como objetivos dignos das femir i
tas. As feministas têm de reconhecer sua própria inserção, sua contextualidade. Api
sar de afirmarem que as perspectivas tradicionais não se mostraram à altura de s
contexto histórico específico, as feministas quase sempre deixaram de fazer essa en
tica em relação a si próprias. A preocupação pós-moderna com a reflexividade leva
auto-avaliação constante e complica todas as tentativas de definir uma identidad'
essencial - o sujeito não é uma entidade racional transparente, capaz de organizar
atribuir um conjunto de significados homogêneos ao campo de sua luta. Muitas e
ministas acreditam que, se não perceberem as mulheres como uma entidade coen ii
te, a criação de um movimento feminista coerente tornar-se-á impossível. Contud.
a pós-modernidade nos estimula a pensar em termos de relações sociais variada
de uma multiplicidade de esferas sociais em que existem muitos obstáculos e opi
tunidades de fomentar a liberdade e o tratamento do eu e do outro como iguais A
condição pós-moderna exige que as mulheres abandonem qualquer pretensa eni
dade e homogeneidade ao darem sua resposta à "questão da mulher" e se de
quem a analisar e mediar uma multiplicidade de relações de subordinação, transf.r
mando a opressão numa afirmação das possibilidades e oportunidades da vida.
Se, nos últimos anos, a filosofia do direito feminista pareceu perder a direção
assim como o feminismo em geral—, isso é um reflexo de um processo através do qli
uma vez reconhecida a multiplicidade das subjetividades, fica muito difícil conlu
uma única história. O que nos reserva o futuro? Parte do dilema implica rejeitar
regenerar os processos da modernidade. Os que querem rejeitar o processo da rn
dernidade dizem que ele se tomou uma impostura, que permitiu a dominação sol]
a verdadeira liberdade, que destruiu, em vez de criar, o livre, o justo, o bem. Os
desejam a modernidade revigorada dizem que isso é em parte correto - houve
nas uma modernidade incompleta. Essas pessoas nos pedem, porém, que apro\
temos o momento e tentemos, de todas as maneiras possíveis, desempenhar um
pel na construção de uma civilização verdadeiramente humana da qual as mulhrr
foram tradicionalmente excluídas em nome da não-razão, e as minorias étnicas (Ri
Capítulo 18
Observações finais
ou reflexões sobre as tentações da filosofia
do direito na pós-modernidade
Este texto começou com reflexões sobre a complexidade decorrente do fazer per-
guntas gerais sobre a natureza do direito. Na seqüência, conduziu a narrativa desde
as origens até o presente, passando por interpretações de textos de teoria jurídica da
Grécia clássica. Não é fácil concluir; a consumação da viagem é simplesmente o con-
texto de nossos tempos - um período que muitos comentaristas vieram a chamar de
pós-modernidade. Não é fácil descrever ou definir esse conceito; talvez estejamos
demasiado envolvidos na complexidade e confusão do presente para podermos de-
finir, com certeza, seus principais processos e estruturas'. O que fica claro é que nos-
1. O que é pós-modernidade? Para a maioria dos comentaristas, é evidente que os últimos trinta anos
introduziram mudanças radicais na ordem social. Para descrever essas mudanças, os teóricos sociais criaram
vários rótulos, inclusive sociedade da mídia, sociedade do espetáculo, sociedade de consumo, sociedidc bu-
rocrática do consumo controlado, sociedade pós-industrial, sociedade globalizada, sociedade do capi[dlismo
mundial avançado, ordem de informação pós-capitalista e, por último, o rótulo que se tornou dominante:
616 Filosofia do direito Observações finais 617
ambivalência'. Muitos levavam espadas, mas "só para brandi-Ias"; o direito parecia Primeira tentação: aceitar o relativismo radical e a negação de
ter perdido sua racionalidade; como se poderia acreditar num padrão de coerência quaisquer respostas significativas à questão da essência
ou num objetivo social comum? Os discursos dominantes falavam da criação, ao
longo de lutas históricas e da concessão de direitos legais, de um sujeito moderno Um dos temas que preocupavam Kafka era a busca da verdade do direito. Em
The Problem of Our Laws [O problema de nosso direito], Kafka (1979) descreve uma co-
que estava sendo incorporado - por um processo de assimilação - às práticas da mo-
munidade governada por uma nobreza muito dissimulada e tradicionalmente legí-
dernidade organizada, estruturada. Porém, em vez de contentamento e satisfação
tima que afirma ter acesso exclusivo ao conhecimento do direito e de suas obrigações.
racionais, Kafka expõe sentimentos de suspensão e ambigüidade pessoais4. Nos con-
A nobreza também trata de garantir que todos os outros grupos sociais continuem
tos de Kafka, o sujeito é forçado a viver uma situação de contingência e escolha;
a ignorar a verdade do direito. Essa nobreza alcança o domínio sobre "as pessoas
ansiando por uma vida de paz relativa e de contentamento numa ordem social so
comuns" por considerar que a tradição determinou que somente a ela caberia co-
cialmente justa e aceitável, o sujeito só encontra um terreno movediço em que mui nhecer o segredo do direito e administrá-lo com justiça e sem interesses pessoais:
to pouco faz sentido, enquanto há pouco espaço para o repouso e tempo insufi "os nobres ficam acima da lei, e parece ser este, exatamente, o motivo pelo qual o di-
ciente para se conseguir a certeza. Os personagens de Kafka tornam-se cada vez reito foi colocado exclusivamente em suas mãos" (1979: 128). Com sua pretensão à
mais confusos e desnorteados à medida que tentam afirmar a verdade de seu con- integridade, a nobreza contrasta com a aparente subjetividade de todos os outros
texto social e a essência das instituições que os cercam e posicionam. Nesse mun- grupos sociais, que têm seus projetos específicos a desenvolver. Somente o isolamen-
do incerto, nem o direito nem seu legado cultural oferecem certeza alguma. Nós, to da nobreza pode garantir que ela não abusará da "verdade". Paradoxalmente,
iniciados nos diversos horrores do século XX, sabemos disso muito bem. Na traje- porém, essa pretensão é circular: a nobreza é aceita como manifestamente neutra
tória que levou ao Holocausto, a subjetividade legal dos judeus alemães - sua cida- exatamente por deter o controle do direito.
dania - foi-lhes tirada por lei. O que fora dado pela lei podia ser por ela retirado. Kafka situa os sujeitos de seu conto num dilema sutil: o estado de direito é dado
Haveria então, à luz dos excessos da modernidade, alguma base legítima, alguma por certo, mas em termos práticos isso significa que o domínio da nobreza é inques-
verdade em nossa aceitação das criações da modernidade?' E, se não houvesse, o tionável. Uma vez que o segredo do direito só é conhecido pela nobreza, só eles po-
que deveríamos fazer? Surgem diferentes respostas ou, mais apropriadamente, tal- dem alegar saber o que é preciso fazer e, na verdade, o que deve ser feito; a popula-
vez, diferentes tentações. ção - como admitiu Hart (1961) - só precisa, em última instância, confiar na inte-
gridade com que as autoridades desempenham sua tarefa. (E tentador substituir a
nobreza de Kafka por "especialistas", obtendo a imagem de dominação numa mo-
3.Uso a expressão "judeu centro-europeu" em reconhecimento à condição reproduzida por Kafka: a de
um indivíduo a quem se pede que esteja em casa a qualquer momento e em toda parte, mas que não conse-
dernidade supostamente racional fundada sobre a mais profunda irracionalidade.)
gue se sentir seguro em parte alguma. Os textos de Kafka refletem seu próprio ser, em particular a uma con- Contudo, uma dúvida irônica se insinua nessa situação que, sob outros aspectos, está
dição apátrida extra-histórica, uma condição cuja localização não se dá dentro dos limites tradicionais de acima de qualquer possibilidade de falha. Se o direito só é conhecido pela nobreza, e
tempo e espaço - uma identidade sociocultural particular, como a define Zimmermann: "Ele não era checo se necessariamente todos os demais ignoram sua forma essencial, então talvez real-
nem alemão. Esse fato, através da subtração e do silogismo implacáveis da política de Praga, fez dele um ju-
mente o direito não tenha um núcleo de significado. A essência do direito, a respos-
deu" (citado em Bauman, 1991: 180, de onde extrai meu modo de entender a situação pessoal de Kafka).
4. Em parte, Kafka estava relatando aspectos do ser judeu (muitos já afirmaram que a essência do ser ta às perguntas "o que é o direito?" e "o que deve guiar o direito?", são coisas que tal-
judeu é aquela de um estranhamento ou deslocamento permanentes), mas a história da identidade judaica vez não existam. Será que o único segredo é aquele para o qual não existe reEpn'?
na modernidade centro-européia organizada assemelha-se cada vez mais à de um precursor da identidade Em outras palavras, a dominação da modernidade tem por base, de fato, um &xi-H
do sujeito da condição pós-moderna. de significado e um fascismo sutil. Não há bases seguras a partir das quais fazei 1
S. Veja-se, por exemplo, a questão da linguagem. Kafka escrevia e falava em alemão. Sua participação
nessa comunidade lingüística não lhe deu nenhum sentimento de identidade estável; ao contrário, tratava-
se de uma tecnologia.
De mim, tiraram minha casa e meu carro,
6. A experiência dos judeus alemães (e de outros judeus europeus que caíram nas mãos dos nazistas) que a duras penas eu conseguira comprar.
aponta para a possibilidade onipresente do colapso das "liberdades" que a modernidade havia criado. Em (Consegui salvar a mobilia).
Long IHave Looked for the Truth (contido em Bertolt Brecht, 1980), o poeta judeu alemão Bertolt Brecht afir- Ao cruzar a fronteira, pensei:
ma que havia muito tempo estava à procura da verdade da vida social do homem, uma vida que é incerta, con- mais do que a casa, preciso da verdade.
fusa e difícil de entender. Contudo, lutou por dizê-la quando a encontrou. Os nazistas, porém, chegaram e Mas preciso da casa também. E para mim, desde então,
fuzilaram os pobres e os que se empenhavam em dizer as verdades difíceis. Como afirma Brecht, os nazistas a verdade tem sido como a casa e o carro,
privaram as pessoas tanto da "verdade" quanto dos confortos materiais: as coisas que eles me tiraram.
620 Filosofia do direito Observa ções finais 621
junções quanto à qualidade do direito; a única coisa que legitima o governo dos go- visível e indubitável que nos é imposta é a nobreza, e será que desejaríamos, de fato,
vernantes é o próprio sucesso de sua dominação. Contudo, nosso conhecimento des- nos privar dessa lei solitária?" (Kafka 1979: 130). Deveríamos, então, nos transfor-
se resultado é profundamente ambíguo, pois embora possa privar os governantes do mar em uma nova nobreza?
princípio central de sua dominação, também remove o instrumento por meio do qual O conto de Kafka também aponta para uma dialética envolvida na própria idéia
se pretendia que as pessoas os controlassem; afinal, para controlar a responsabilida- de progresso e modernidade. Nossa crença na continuidade do progresso depende
de dos governantes precisamos de sólidos argumentos éticos e políticos'. de uma sociedade plenamente moderna - a sociedade de justiça perfeita - que nun-
Nos contos de Kafka, as estruturas de uma burocracia complexa e a reificação es- ca se alcança concretamente, mas não podemos relatar esse fato a nós mesmos, uma
condem o abismo criado pela desconstrução do natural artificioso. Uma crença for- vez que tal conhecimento significaria que abrimos mão da iniciativa: "ao contrário,
mal na existência do segredo do direito impede que o abismo de significados invada tendemos a nos odiar por não podermos ainda ser considerados dignos do direito"
a consciência social: "Há uma tradição segundo a qual [os significados do direito] exis- (Kafka 1979: 129). O indivíduo moderno deve admitir, ou é preciso lhe dizer, que a
tem e são confiados como segredos à nobreza, mas esta não é, nem poderia ser, mais perfeição - a verdade - é uma possibilidade realista, ainda que futurista. Desse modo,
que uma antiga tradição à qual a idade confere autoridade" (Kafka 1979:128). A mo- a luta pela justiça, o compromisso político com a justiça e a marcha para sair do pas-
dernidade poderia sobreviver ao conhecimento de que não há nenhum destino gran- sado rumo ao futuro adquirem algum significado e propósito. Ao contrário, a pós-
dioso? Kafka interpreta a história do destino da condição humana como igual à do modernidade é a consciência cada vez maior de que essa ligação é absurda. Em ou-
estudo do pensamento jurídico. Ambas compartilham a "crença em que virá o dia em tras palavras, o pós-modernismo é a conscientização da inutilidade de qualquer uto-
que tanto a tradição quanto o estudo que dela fazemos chegarão (...) a sua conclu- pia de uma sociedade justa - a viagem está condenada - e, por implicação, de que
são. Tudo se terá tornado claro ( ... ). O direito pertencerá finalmente às pessoas, e a já chegamos ao nosso destino. O problema é que o destino é a inconcludência: não
nobreza desaparecerá" (Kafka 1979: 129). Através de seu papel de objetivo da ine- existe fim.
xorável busca do conhecimento, a idéia de chegar a conhecer a verdade do ser toma-
se o significante transcendental em relação à obscuridade e às relações profunda-
mente reificadas do presente. Juntamo-nos à transcendência de Platão na caverna Segunda tentação: o abandono da busca da sabedoria
não porque a tenhamos, de fato, conquistado, mas por conta de nossa crença em que do direito em favor da performatividade
a conquistaremos no futuro. Para Kafka, porém, isso é um enganar-se a si próprio. O
tempo e o lugar futuros nos quais o segredo do direito será conhecido por todos e a Poderá a filosofia jurídica, enquanto busca da grande imagem - a sabedoria do
nobreza estará praticamente extinta podem não chegar nunca. Existe somente o va- direito -. sobreviver, ou estará condenada a cair na linguagem confusa e desconexa
zio - e por isso devemos encarar, para sempre, a necessidade de afirmar o poder sem dos discursos antagônicos e irrelevantes? Como podemos explicar a grande difusão
garantias extra-humanas. Não podemos fugir à necessidade da nobreza: "A única lei do discurso jurídico e, ao mesmo tempo, do sentimento de impotência? Trata-se, em
parte, de urna questão da compatibilidade entre discurso e poder. Para Lyotard (1984),
o significado social do conhecimento mudou; a miniaturização e a comercialização
7. A modernidade foi uma tentativa de criar uma sociedade justa, de estrutura organizada e transpa- das máquinas de informação alteraram o modo como o conhecimento era adquiri-
rente - um mundo de práticas coerentes, organizado em torno de regras, onde as próprias regras extraíssem
sua legitimação da crença em alguma estrutura subjacente ou em sua funcionalidade intrínseca, ou em ter-
do, classificado, disponibilizado e explorado. As novas tecnologias classificam os co-
mos de sua pureza. A condição pós-moderna se introduz junto corna consciência cada vez maior da falta de nhecimentos de acordo com sua compatibilidade com a tecnologia e suas aplicações.
uma estrutura profunda. A tendência política dominante na condição pós-moderna contempla a tentativa Minimiza-se a importância das formas de conhecimento incapazes de ser articula-
desesperada de evitar idéias e devolver o discurso político ao senso comum. Em flancos opostos estão, por das de maneira quantitativa e ajustar-se à tradução para a linguagem do computador,
um lado, aqueles que defendem os benefícios do pluralismo e da diversidade radicais; por outro lado, nós
e sua sobrevivência torna-se difícil. O velho princípio de que a aquisição de conhe-
testemunhamos o mais grotesco expurgo étnico e a busca de identidades seguras - a ascensão de um novo
tribalismo. Mas a pós-modernidade não é urna volta ao pré-moderno. Ao contrário do mundo pré-moderno cimento estava associada ao treinamento das mentes, ou mesmo dos indivíduos, está
dos antigos, ela não respeita fronteiras absolutas, a não ser aquelas que constituem, elas próprias, criação do se tornando obsoleto; o conhecimento se transforma num produto a ser vendido.
direito (por exemplo, os direitos humanos, o direito internacional). Como reconheceu Nietzsche, isso impli- A questão do conhecimento está estreitamente ligada à questão do governo.
ca que o direito é o garante da estrutura social, uma vez que, dentro deste mundo, poderia perfeitamente não Lyotard sugere que as funções de regulação e, portanto, de reprodução, vêm sendo
haver nada de natural que se pudesse transgredir. Conseqüentemente, este mundo poderia, na verdade, não
ter sentido sem o simples pressuposto e sem a tradição de que há nele sentido. Além do mais, também, como
cada vez mais tiradas dos administradores humanos e confiadas às máquinas - a po-
nos alertou Poucault (1977; 1979), o poder da espada da lei faz parceria com os processos que tornam as prá- lítica se transforma numa guerra de imagem e pesquisas de opinião. Conhecirri e 11 1
ticas sociais contingentes "normais" e nos incentivam a aceitar a socialização na "norma". é o que toma alguém capaz de articular não apenas um bom discurso, mas tami
622 Filosofia do direito Observações finais 623
de emitir boas opiniões prescritivas e valorativas. Como, porém, avaliar esses atribu- vado uma guerra contra a narrativa, esta sobreviveu e conferiu legitimidade às ins-
tos? Na interpretação de Lyotard, suas qualidades serão consideradas positivas quan- tituições sociais, criando formas positivas e negativas de integração às instituições es-
do se harmonizarem com os critérios relevantes de justiça, beleza, verdade e eficiên- tabelecidas". Portanto, testemunhamos o avanço dos movimentos jurídicos e das hu-
cia que forem aceitos pelo círculo social dos conhecedores, interlocutores ou pessoas manidades e do estilo narrativo do feminismo - mas a base de seu poder é ambígua.
do mesmo grupo social. Para Lyotard, cada campo constrói seus próprios jogos de
linguagem, e cada enunciação é um movimento de um jogo; em sua imagem do jogo
de linguagem, o conflito é essencial. A metáfora convincente de Lyotard é a guer- Terceira tentação: trocar a modernidade por uma dialética
de tribalismo e subjetividade desmedida
ra: algumas posições são indefensáveis; algumas atacam, demolem, aniquilam e des-
troem insidiosamente os argumentos alheios: "Numa discussão entre dois amigos,
trava-se uma batalha na qual os interlocutores usam qualquer munição disponível; Em todo o mundo ocidental desenvolvido, o modernismo social e cultural viu-
se acossado por ataques provenientes de vários e diferentes quadrantes. Na direita,
perguntas, pedidos, afirmações e narrativas. A guerra não prescinde de regras; estas
permitem e estimulam a maior flexibilidade de enunciação possível" (1984: 17). os conservadores argumentam que o modernismo destruiu os valores da vida coti-
diana e do senso comum. A ilimitada auto-realização, as exigências de experiências
Não admira, portanto, que o discurso influenciado pelo movimento CLS se opo-
nha ao Movimento de Direito e Economia. O tema central dos CLS era a volta da or- autênticas e a substituição da objetividade pela subjetividade impuseram um pesado
ganização social às preocupações humanas, a formas menos alienadas de vida so- ônus ao eu. Do eu se pretende que veja o mundo como um espaço para projetos e
cial e interação humana. Ao contrário disso, os proponentes da escola econômica use os objetos do mundo como meios para chegar a fins que interessem ao eu. Para
do direito preferem que a teoria jurídica só se manifeste na linguagem compreen- a direita conservadora, isso liberou desejos hedonistas irreconciliáveis com a disci-
dida pelo poder econômico - a do dinheiro'. A economia é a linguagem mais pro- plina que a vida moderna exige (Gottfredson, M. e Hirschi, Travis, A General Theory of
pícia ao computador, mais minimalista no que concerne às preocupações com a Crime, 1990; compare-se com Morrison, 1995). Hedonismo, falta de identificação
natureza humana. O discurso do movimento de direito e economia emprega uma social, falta de obediência, de amor-próprio, a retirada da deferência diante da au-
linguagem pós-moderna. toridade - tudo isso é visto não como atributos de uma modernização bem-sucedi-
O conhecimento científico não é, porém, auto-sustentável. Existe em competi- da, mas de uma modernidade social e cultural que se perdeu no caminho. Para a es-
ção e conflito com outras formas de conhecimento que Lyotard chama de "narrativo", querda, ao contrário, o problema pós-moderno é o da modernização incompleta do
e que foi dominante nas sociedades tradicionais'. Embora a modernidade tenha tra- mundo (por exemplo, Habermas). Quando Lyotard afirma que, na condição pós-mo-
derna, as grandes narrativas perderam sua credibilidade ao mesmo tempo que con-
tinuamos a praticar os jogos que no passado foram legitimados por essas gran-
8. Como afirma Richard Posner, um dos principais proponentes desse movimento: "A coisa mais im- des narrativas, e o fazemos num nível de pura formalidade, ele repete a advertência
portante a se ter em mente sobre o conceito de valor é que ele se baseia naquilo que as pessoas estão dis- de Nietzsche de que o niilismo é a condição resultante quando matamos Deus mas
postas a pagar por alguma coisa, e não na felicidade que obteriam ao possuí-Ia ( ...). De modo equivalente, a continuamos a agir como se Ele ainda existisse. As narrativas de domínio e conquis-
riqueza da sociedade é a satisfação agregada daquelas preferências (as únicas que têm peso num sistema de
maximização da riqueza) que são mantidas pelo dinheiro, isto é, que são registradas num mercado."
ta da natureza levam-nos à ênfase tecnológica sobre o controle e a dominação, mas
9. Segundo a interpretação de Lyotard, dois grandes mitos ou narrativas que têm servido de justifica-
ção para a pesquisa científica são o da libertação da humanidade e o da unidade especulativa de todo o co-
nhecimento. A primeira dessas narrativas é de natureza política, militante ativista; a segunda se baseia no jovens; ao contrário, transforma-se num menu à Ia carta ao alcance dos adultos, como parte de seu treina-
conceito de totalidade sob a idéia de um sistema. A primeira dessas narrativas, a humanidade, é afigura he- mento e educação contínuos e reiterados. Junto com a capacidade de duvidar, o conhecimento se converte
róica do progresso social. O Estado usa narrativas de liberdade toda vez que assume controle direto sobre o em algo traduzível para a linguagem de computador, e o professor tradicional é substituído por bancos de
treinamento das pessoas, sob a égide da nação, a fim de conduzi-Ias ao progresso. Contudo, essas narrati- memória; o ensino é confiado às máquinas, ligando bancos de memória, bibliotecas, dados de computador
vas-chave não mais funcionam com a mesma intensidade na sociedade contemporânea. Para Lyotard, a gran- etc, a terminais que podem ser usados pelos estudantes. Abre-se mão do profissional. Contudo, a força mo-
de narrativa perdeu sua credibilidade a despeito do fato de ser narrativa especulativa ou narrativa de eman- triz por detrás da mudança não é mais "é verdade?", mas sim "para que serve?", "é vendável?". O consumis-
cipação; é nesse espaço que se instala a pós-modernidade. O poder declinante do progresso da narrativa mo, parece, toma-se um motivo dominante para o escritor pós-moderno.
transpõe a ênfase dos fins da ação para seus meios, no mesmo tempo que vemos uma explosão de diferen- 10. Imagina-se que a ciência tenha por base critérios objetivos. Lyotard, porém, afirma que o
tes tipos de técnicas e tecnologias. Mudam os critérios de legitimação. Lyotard argumenta que, na ciência, o mento científico não pode saber (nem dar a saber) que é o conhecimento científico verdadeiro, seio
objetivo deixou de ser a verdade e passou a ser a performatividade. O etos dos cientistas e técnicos moder- a outros tipos de narrativas do conhecimento que, de seu próprio ponto de vista, na verdade na' i,ir,Iilii'n
nos e a criação de instrumentos se voltam não para a descoberta da verdade, mas para o aumento da capaci- conhecimento algum; em resumo, a verdade do científico depende da verdade conhecida, 1 1
dade performativa. A política educacional muda de modo que se torne mais funcional, a ênfase incide sobre ciência deve se fazer passar pela maior narrativa de todas, e a credibilidade do próprio Estado
as aptidões, não mais sobre os ideais. 0 conhecimento não é mais transmitido de uma vez por todas para os ta nessa narrativa épica.
624 Filosofia do direito Observações finais 625
privam nosso espírito de uma finalidade. Segundo essa interpretação, uma socieda- tido, a pós-modernidade denota um sentimento de perda, no sentido de que não
de individualista e fragmentada na qual a lei e o direito são armas para conflitos em mais conseguimos apreender o que ocorre na sociedade, ou, na verdade, no globo
pequena escala parece ser nosso destino. Não admira que, nessas condições, a nos- como um todo, ainda que, ao mesmo tempo, precisemos saber o que ocorre nesse
talgia por uma sociedade pré-moderna tradicional aflore e, a seu lado, desenvolva-se nível de totalidade a fim de podermos dizer que não é mais possível dizer o que está
uma multiplicidade de pequenas narrativas. A falta de uma metanarrativa ou metalin- ocorrendo. Assim, embora esteja em voga afirmar que não há discursos teóricos ca-
guagem que dê sentido ao modernismo tardio passa a ser remediada pelo ressurgi- pazes de nos oferecer uma explicação de todas as formas de relações sociais e de tor-
mento de narrativas localizadas. Como as narrativas unem o narrador e o público, nar possíveis modalidades legítimas de prática política e intervenção jurídica, esse
para Lyotard a pós-modernidade consiste em manter a flexibilidade da forma nar- mesmo modo de pensar acaba configurando um entendimento teórico da totalidade`.
rativa ao mesmo tempo que evita, de algum modo, a imposição de sistemas de cren-
ças absolutas. Escaparemos da dominação por meio da fragmentação de diferentes
Quarta tentação: entender mal a natureza da desconstrução
narrativas; a sociedade é representada como algo que funciona muito melhor atra-
vés de uma variedade desestruturada de microeventos, e uma sociedade com múl-
Ao lado da percepção da contingência e dos sonhos de flexibilidade dinâmica,
tiplos centros é melhor que uma sociedade conscientemente planejada. As grandes
a consciência cultural pós-moderna é obcecada pelo processo de desconstrução (sob
narrativas são ruins, as pequenas são superiores. Tudo que podemos esperar do di- forte influência dos projetos de Jacques Derrida). A desconstrução liga-se à teoria ju-
reito é seu envolvimento numa multiplicidade de pequenas batalhas, pequenos rídica primeiro através da natureza textual do direito, e, segundo, através da ligação
movimentos numa ordem social constituída por uma grande diversidade de jogos de modernista (funcional) do direito com a estrutura social. Ao colocar uma série contí-
linguagem que competem entre si. nua de perguntas, a desconstrução procura exaurir a força de uma estrutura social cuja
O lado negativo desse cenário é que a vida social pode, ao contrário, transfor- substância está na proibição de perguntar. Existem duas formas de desconstrução:
mar-se numa guerra hobbesiana civilizada de todos contra todos - uma guerra me-
diada pelas armas da lei. Em vez de instaurar a justiça, o fato de levar a lei às pessoas (i) A desconstrução do texto. É lugar-comum afirmar que o estudo e a transmissão
estimula uma interminável seqüência de litígios. Sem uma crença nas grandes nar- do direito envolvem textos. Buscar a verdade do direito significa engajar-se na in-
rativas, a vida se converte num amontoado de pequenos jogos; ainda mais, Lyotard terpretação textual. Os textos de direito contêm o significado do direito?" A des-
parece esquecido da falta de alma que caracteriza esse jogo pós-moderno. Em sua construção é a técnica para se demonstrar que qualquer interpretação assente de
análise, as grandes narrativas são acusadas de legitimarem os grandes programas po- um texto jurídico está aberta à desestabilização. Toda interpretação que tenta
líticos do partido comunista ou os programas de dominação (a Guerra Fria), enquan- substituir a abertura ilimitada do texto básico por meio de uma interpretação de-
to as pequenas narrativas são associadas à criatividade localizada. A partir de outro cisiva - autoritária - usurpa a vida do texto, condenando-o a uma morte precoce.
ponto de vista, porém, como o do crítico norte-americano Fredric Jameson, os jogos Em vez de uma conclusão, a desconstrução percebe toda interpretação como en-
da pós-modernidade não passam de um pastiche que nos condena à esquizofrenia`. riquecedora ou empobrecedora do potencial do texto original, acrescentando ou
Jameson define o pós-modernismo como uma nostalgia pelo passado na qual, ao subtraindo a partir de um repertório de significados, mas exige que qualquer in-
mesmo tempo, parecemos perder nossa capacidade de nos situar historicamente. terpretação seja objeto de toda uma seqüência de estudos. A desconstrução de-
Tornamo-nos incapazes de nos inscrever num espaço-tempo contingente que faça clara que o objetivo da redução do(s) significado(s) interpretado(s) em um texto
sentido. Como, então, podemos nos comprometer com projetos sociais, uma vez que a um único significado latente não é apenas intelectualmente degradante, mas
esse tipo de compromisso equivale a envolver-se com um certo continuum de com- também perigoso.
prometimento e esperança?
Em termos parecidos, o jargão pós-modernista está impregnado de referências
12.A rejeição da totalidade, por Lyotard, constitui em si uma narrativa relativamente extensa, ainda que
à totalidade, à fragmentação, à dialética do globalismo e do localismo. Em certo sen- certamente enfatize uma fragmentação dos jogos de linguagem, do tempo, do sujeito humano e da própria
sociedade. Mas o que encontramos, qual é o estado de espírito com o qual nos havemos com essa dissolu-
ção da unidade, o que pode dar coerência e, ainda assim, autonomia, ao trabalho individual?
11. Jameson usa o termo "esquizofrenia" para denotar o sentimento de uma experiência mais intensa 13. Observe-se que a busca do sentido do ser por meio do estudo dos textos desse ser provém 1
do presente-muito-dado que nos oferece, ainda que confusamente, uma fragmentação ou um conjunto de tudo da "palavra de Deus". Nas tradições judaica, cristã e muçulmana, o dom de Deus consi'.te i II» 1 11,
presões permanentes de experiências temporais e descontínuas. Em vez de os diferentes eventos que inva- mento de textos à humanidade; textos que parecem mudar, desenvolver e revelar uma multipli
dem nossa existência serem meros problemas de uma trajetória de vida coerente, os eventos são intrusões tido(s) a cada nova interpretação que deles se faz. Os cânones interpretativos e o(s) sio iiIIc,id'(;) Il".IIlIw
deslocadas que ameaçam despertar reações que fragmentarão nosso próprio. ser. te(s) só pode (m) ser estabelecido (s) por meio da estabilização da interpretação - da criação 1i
626 Filosofia do direito
Obseruações finais 627
(ii) A desconstrução da ordem social. Repetindo uma afirmação contrária ao po- tanto mantém uma distância crítica da aceitação do poder da espada` quanto bus-
sitivismo jurídico de H. L. A. Hart, boa parte da teoria jurídica dominante tra- ca se libertar do processo de normalização imposto pela disciplina cotidiana`.
ta a contingência da modernidade tardia como o normal e reduz a importân-
cia do papel do poder por trás do direito. Em sua interpretação desconstrutiva
do direito, Derrida (1992) devolve os fundamentos da moderna teoria jurídica Quinta tentação: recusar o ônus da desconstrução através do recuo
anglo-americana ao construcionismo realista de Hobbes. Derrida devolve o a práticas, usos ou métodos eticamente duvidosos
direito ao conceito de força", invertendo assim a narrativa de Hart - a saber,
evitar a centralidade do poder que Austin confere ao direito - para nos falar da Para além da desconstrução encontra-se o mistério da indagação jurídica. Em
existência de um mistério fatal sob a presença do direito. Todas as formas de le- um mundo no qual tudo pode ser posto em dúvida e no qual justiça é autenticida-
gitimação podem ser desconstruídas - como no caso da natureza final do de — e não garantia -, é inevitável que levemos sobre nossos ombros o peso da exis-
"como se" da norma básica de Kelsen ou no da regra de reconhecimento de tência.
Hart -, e em nenhum estágio existe fundamentação para o direito. A justiça Através da prática acadêmica e profissional do dia-a-dia, o jurista faz o jogo da
nada mais é que a busca de justiça - não se poderá jamais afirmá-la conclusi- reconstrução racional - desenvolve-se uma doutrina, às vezes novos tipos de direi-
to são criados, como o "Direito da Indenização" - a partir das batalhas dos jogos
vamente (a não ser através de nosso consenso contingente sobre algum pro-
lingüístico-jurídicos. Os efeitos do direito ora sobem em nosso conceito, ora são
cedimento de reconhecimento - que sempre poderia ter sido outro qualquer).
Em decorrência disso, esquecidos. Nesse processo de jogar os jogos do(s) texto(s) e criar o(s) texto(s) do(s)
jogo(s), as palavras de Marx - que o livro de direito era a bíblia da liberdade dos po-
vos - se transformam tanto numa esperança quanto numa miragem. Ao contrário,
Tendo em vista a origem da autoridade, a fundamentação, a base ou posição jurídi-
parece mais pertinente a injunção deWittgenstein, para quem, no futuro, o único lu-
cas não podem, por definião, assentar sobre nada que não seja elas mesmas; elas pró-
prias são uma violência sem base. O que equivale a dizer que são injustas em si mesmas,
gar em que as questões filosóficas poderiam ser discutidas e resolvidas era a estação
no sentido de "ilegais". Não são nem legais nem ilegais em seu momento fundador.
ferroviária. A vida pós-moderna é uma vida cheia de atividades e de performances
Extrapolam a oposição entre fundado e infundado, ou entre qualquer fundacionalismo que nunca acabam.
ou antifundacionalismo. Ainda que o êxito dos [aspectos] performativos que fundam a Terão os jogos alguma estabilidade? Outra estabilidade além da satisfação tem-
lei ou o direito (..) pressuponha condições e convenções anteriores, ( ... ) o mesmo limi- poral ou da frustração dos desejos dos jogadores? E irônico encontrar na teoria har-
te "místico" vai reaparecer na suposta origem das alegadas condições, regras ou con- tiana de regras e jogos - uma teoria amoral — o profeta da pós-modernidade. A par-
venções, e na origem de suas interpretações dominantes (1992: 14). tir da estrutura das regras, confere-se ordem ao jogo e ele desenvolve sua ordem.
A ordem pode pairar sobre as cabeças dos jogadores como se fossem leis naturais,
Para Derrida, a desconstrução é uma forma de humanismo", sua revelação da mas sua estrutura renasce sempre de novo, informada pela disposição das autorida-
infinita regressão do ser da verdade não é uma negação da tarefa do iluminismo, des em desenvolver o jogo e pela disposição dos jogadores em obedecer às regras.
mas uma exortação à lembrança de que a tarefa da filosofia não consiste em apreen- Se o desejo de participar do jogo segundo as regras se dissipasse, evaporar-se-iam
der a verdade, mas em permitir que vivamos sob a égide do espírito da verdade.Vi- a estrutura e os fundamentos do jogo. E aqui que se encontra o atrativo do liberalis-
ver em meio ao processo de desconstrução é o destino do indivíduo moderno, que mo de Hart: tudo que diz respeito à ordem social devia ser como um jogo (ainda que,
sem dúvida, seja esta a provável natureza de algumas ordens). No contexto do jogo,
sem importar quão meticulosamente a ordem regida por regras seja observada, a
14.O texto de Derrida é denso, mas a profundidade de suas análises compensa sua leitura. Ele começa
por chamar atenção para a expressão inglesa to enforce lhe lato ("executar", "aplicar", "impor", "fazer cumprir"
o direito/a lei"): a palavra enforceability ("possibilidade de execução, aplicação, cumprimento") nos lembra 16. Poder-se-ia dizer, a esse respeito, que a desconstrução equivale a levar o critério hartiano da cida-
que não existe "direito" (droit) que não implique, em si mesmo, a priori, a estrutura analítica de seu concei- dania crítica a seu extremo e a contrastá-lo com aqueles que afirmam que, em geral, a obediência à lei é uma
to, a possibilidade de ser executado, aplicado pela força. Sem dúvida, existem leis que não são aplicadas pela boa coisa.
força, mas não existe lei sem a possibilidade de execução, assim como não existe aplicabilidade ou possibili- 17. Outra forma de indagação associada à desconstrução remete à análise crítica daquilo que Foucault
dade de execução da lei sem aforça, seja esta direta ou indireta, física ou simbólica, exterior ou interior, bru- chamou, na última parte do primeiro volume da História da sexualidade, de "Direito de morte e poder sobre a
vida"; o exercício do "biopoder" ou das disciplinas do corpo e das diversas formas extralegais de regular a vida
tal ou sutilmente discursiva e hermenêutica, coerciva ou reguladora, e assim por diante" (1992: 5).
15.Seminário, Queeri Mary e Westfleld Coliege, Londres, 1995. "tiormal" da população (as disciplinas de saúde física, beleza, sexualidade e saúde mental - em suma, da nor-
malidade em oposição ao desvio, que só pode ser compreendido por comparação com o "normal").
628 Filosofo do direito observações finais
demos fazer muito pouco além de invocar o domínio do sagrado. O fato de
SetfliOS
disciplina nunca é considerada ou vivenciada como opressão; ao contrário, trata-se
sempre derrotados em nossas tentativas de conhecê-lo não é motivo para não vi-
do contexto em que se julga valor e aptidão, e as penalidades aplicadas são tidas
como erradas ou pertinentes, mas nunca como escravizadoras. A ordem liberal ideal vermos em seu espírito. Portanto, o desafio do pós-moderno consiste em pergun-
é aquela que confere poder e sanciona, e que vem junto com o conhecimento de tar continuamente qual o sentido da existência humana, com pleno conhecimento
como prosseguir com os projetos dos jogadores e desenvolvê-los. A ordem evocada do fato de que qualquer resposta oferecida, e qualquer ordem social por meio dela
pela prática dos jogos parece tão atraente que nenhuma ordem tardio-moderna pode construída, não passam de uma suspensão temporária, de uma personificação de
deixar de apropriar-se de algo de seu poder de sedução e afirmar que o desempenho algumas de nossas vontades - de alívio para nossos medos.
de suas obrigações é normativo, que os movimentos devem seguir os comandos das
regras, como o mero desempenho de um papel, que se deve ocultar a coerção como
se o direito nada mais fosse que os efeitos das regras do jogo.
Não se pode, por certo, participar do jogo e subverter as regras; este é o para-
doxo da lei que rege o jogo. Participar de um jogo significa jogar segundo as regras;
não há como jogar a não ser seguindo as regras. Falhar é trapaceai e isso não é jogo.
Não se pode ser cético quanto às regras do jogo; cabe -nos,apenas, interpretá-las de
maneira construtiva (Dworkin). E impossível mover-se de modo que transgrida as
regras do jogo sem que se fique exposto à (justificada) penalidade; pode-se apenas
abandonar o jogo ou inventar outro jogo.
Os jogos da vida, os jogos do direito, são uma resposta à necessidade de reco-
nhecimento. Enquanto busca da verdade do direito, a filosofia jurídica é a vontade
de sabedoria. O fato de as humanidades seguirem a vontade, e não o instinto, é ao
mesmo tempo fonte de poder e de nossos problemas existenciais. Através do dis-
curso, dos desejos que alguém articulou, através das tradições da razão, procuramos
codificar aquilo que constitui as mais ambivalentes das criações humanas: as idéias
da dignidade e do sagrado. Os jogos de linguagem da teoria jurídica contemporânea
falam à natureza e às fontes multívocas desses desejos. Os desejos tornam-se mó-
veis, transitórios, desfocados ou, para sermos mais precisos, movem-se num esta-
do contínuo de (re)focalização.
Devemos, porém, nos lembrar de que os jogos dos pós-modernos, assim como
aqueles dos pré-modernos, não são auto-sustentáveis ou anistóricos. Nos jogos da
pós-modernidade, como nas corridas de bigas, o que importa saber é se se é escra-
vo ou homem livre, vencedor ou perdedor. Importa saber quem tem o desempenho
vencedor e qual é o envolvimento dos governantes; importa saber qual é a posição
do jogo no contexto da ordem social. Os jogos dos pós-modernos podem também,
de novo, ser jogos de paganismo (Lyotard eThebaud, 1985) - pois quem, em sã cons-
ciência, desejaria reinventar Deus? -, porém, tendo sondado o abismo existente no
coração do modernismo, não há necessidade de fugir ao desafio da desconstrução,
enfrentar o irredutível mistério da santidade do humano. Para humanizar as afirma-
ções da razão - que a pós-modernidade desloca e diminui -, podemos usar em
nosso cotidiano as afirmações humianas de empatia e solidariedade, mas também
precisamos de um significante transcendental. E possível que, na condição pós-mo-
derna, devamos reconhecer a impossibilidade de fugir a nossa inadequação exis-
tencial; precisamos reconhecer o mistério de uma profundidade em relação à qual po-
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