Luiz Carlos de Freitas A Organizacao Do Trabalho P
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A escrita da história da educação brasileira: saberes, poderes e sujeitos (1822-1889) – Fase IV View project
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Entrevista
Luiz Carlos de Freitas: “A organização
do trabalho pedagógico no contexto
atual do ensino público brasileiro”
Interview with Luiz Carlos de Freitas: "The
organization of the pedagogical work in the
current context of Brazilian public education"
Marcos Francisco Martins (UFSCar)*
Adriana Varani (Unicamp)**
Tiago César Domingues (UFSCar)***
RESUMO ABSTRACT
Entrevista realizada com Luiz Carlos de Freitas, Interview with Luiz Carlos de Freitas, Unicamp
professor da Faculdade de Educação da Unicamp e professor and coordinator of the Laboratory of
coordenador do Laboratório de Observação e Descriptive Studies and Observation (LOED -
Estudos Descritivos (LOED), que visou a conhecer a acronym in Portuguese), which aimed to get to
concepção sobre a organização do trabalho know the conception of pedagogical work
pedagógico, orientada pelo materialismo histórico- organization directed by historical and dialectical
dialético. No diálogo guiado pela metodologia da materialism. In the dialogue, wich was guided by
entrevista semiestruturada, Freitas apresentou the methodology of semi-structured interview,
posicionamentos sobre os teóricos russos e os Freitas presented positions on the Russian theorists
caminhos da educação na revolução de 1917, a visão and the paths of education in the 1917 revolution,
sobre a Pedagogia Histórico-Crítica, o lugar do the vision about the Historical-Critical Pedagogy,
trabalho na organização escolar, os estudos no the place of work in the school organization, studies
campo das teorias pedagógicas, a militância junto in the field of pedagogical theories, militancy in the
ao MST, a teses liberais das políticas educacionais MST, the liberal educational policies thesis of
dos "reformadores empresariais" e a discussão "corporate reformers" and a discussion about
sobre a avaliação. evaluation.
Palavras-chave: Luiz Carlos de Freitas. Keywords: Luiz Carlos de Freitas. Organization
Organização do trabalho pedagógico. of educational work.
Introdução
L
uiz Carlos de Freitas recebeu os entrevistadores da Crítica Educativa
na FE-Unicamp (Faculdade de Educação da Universidade Estadual
de Campinas), no dia 26 de fevereiro de 2016, e com eles dialogou
sobre a organização do trabalho pedagógico no contexto atual do
ensino público brasileiro.
Entrevista
Adriana Varani - Bem, Professor, eu já havia dito ao Marquinhos sobre a
proposta de entrevistá-lo e, com a criação da Crítica Educativa, isso se
tornou viável. É uma revista nova...
Marcos Francisco Martins - Até para te posicionar, Professor, o campus da
Universidade é bastante novo, mas se expandiu rapidamente e este ano está
completando 10 anos. Temos cerca de 200 professores, com 14 cursos de
Graduação, 9 Programas de Mestrado e este ano os primeiros doutorados serão
instalados. Então, a UFSCar é recente em Sorocaba.
pela via do pensamento, uma atividade complexa, que acontece como parte da
formação humana na escola. A reconstrução dessa prática no e pelo processo de
reflexão implica em que você se valha de conceitos e categorias que vão
ancorando essa reconstrução da prática no plano da teoria. Entre essas
categorias que vão emergindo desse contato com a forma como a escola
organiza o trabalho pedagógico, a categoria da avaliação aparece como aquela
que sobredetermina, basicamente, o conteúdo e método – na forma escolar
atual.
Em torno dessas categorias é que a atividade humana, na formação escolar, vai
se configurando em nossa escola corrente, cumprindo duas funções sociais:
excluir, por um lado, e subordinar por outro, que são as funções clássicas que o
nosso sistema social atribui à escola atual.
No entanto, é bom que adiantemos, não estamos condenados a reproduzir estas
duas funções. O sistema gostaria que não se fizesse nada contra tais funções,
mas as contradições acabam falando mais alto.
Então, essa é um pouco a origem da questão. No final da década de 1980, nós
fomos pesquisar a prática das escolas e fizemos estudos de longa duração,
preferencialmente na sala de aula, tentando encontrar os “nós”, as categorias
que poderiam ajudar a reconstruir aquilo que estava acontecendo no âmbito do
trabalho escolar. Isso tinha, naquele momento, uma postura descritiva mesmo,
e é isso que marca o nome do laboratório: “Laboratório de Observação do
Estudos Descritivos” (LOED), que nasce com essa tarefa de descrever aquilo que
ocorre em sala de aula para permitir elaborar e construir categorias explicativas.
E, nesse processo, a avaliação emerge como sendo algo que, já naquela época,
anuncia a pressão das teorias de responsabilização atuais; era marcante e visível
como ela afetava a própria organização do trabalho pedagógico do professor.
A categoria da avaliação tomou-nos muito tempo pela sua complexidade, pela
sua abrangência, pelos problemas que acaba gerando na sala de aula, e acabou
virando um objeto de pesquisa central. Mas nosso interesse, de fato, era o
próprio trabalho pedagógico, a contribuição à produção de uma teoria
pedagógica, com suas categorias constitutivas, mas fomos puxados para esta
temática do impacto da avaliação no conjunto das categorias do trabalho
pedagógico
E continuamos a ser retirados desse objetivo mais amplo – a construção da
teoria pedagógica - pela violência das políticas públicas que pautaram a
supremacia da avaliação externa e, através dela, mataram a própria avaliação
que estava no interior do processo pedagógico da escola, sob controle do
professor. A avaliação externa sobredetermina a própria avaliação interna que o
professor costuma fazer, a qual passa a ficar em segundo plano. E o que toma
seu lugar é a avaliação externa. O professor passa a ser cobrado em função dos
resultados dos alunos nela e não em função do que ele acha que seu aluno
precisa. Esse deslocamento acabou nos jogando no campo das políticas públicas
de avaliação.
Temos estado há décadas em cima desta questão para tentar entender como é
que isso pauta a atividade do professor, como é que esse processo de avaliação
externa penetra na escola (na pretensa forma de “devolutiva”) e afeta as outras
categorias que estão lá: os objetivos, o próprio conteúdo, os métodos,
1Nota dos entrevistadores: José Carlos Libâneo é autor do livro Didática, em que desenvolve a tese central
com a qual Luiz Carlos de Freitas dialoga.
2Nota dos entrevistadores: Dermeval Saviani está sendo referido no contexto da teoria que formulou e que
culmina na Pedagogia Histórico-Crítica.
médio), e outra que entra pelo fundamental e sai na universidade. São dois
grandes troncos formativos que modulam o grau de conhecimento que você
acessa. Quando os liberais falam em dar a oportunidade para que todos
aprendam, eles não supõem a eliminação desta dupla via.
Portanto, é obvio que nós temos, neste momento histórico, que lutar contra uma
escola que segrega o acesso ao conhecimento (motivado por origem de classe)
mesmo que ele seja incluído - isso é mais fácil de se entender com a grande
contribuição dada por Bourdieu3 com a categoria da “exclusão branda”. As
pessoas estão dentro do sistema, mas aprendendo em trilhas que definem
previamente, em geral, o alcance de sua destinação. Isso reforça o acerto de se
enfatizar a necessidade de acessar o conteúdo independentemente da origem
social do aluno. O que não significa que todos devam ser iguais e devam estudar
as mesmas coisas.
Então, acho que essa ênfase de que a escola “tem que garantir o direito de
aprendizagem do aluno”, não é uma invenção dos reformadores empresariais
que descobriram, agora, que se deve garantir o direito à aprendizagem. Melhor
seria falar em direito à educação – mas isso seria pedir muito a eles.
Este direito já está posto lá em 1980, muito antes que o empresariado
descobrisse que precisa, agora, abrir a “torneirinha da instrução” um pouco
mais, pois o processo produtivo se complexificou e o trabalhador precisa saber
um pouco mais. Muito antes disso, por outros motivos muito mais honestos e
muito mais formativos, já se defendia que – aqui entra o mérito do prof. Saviani
– houvesse a ênfase no acesso ao conhecimento como um direito.
Onde há, portanto, alguma divergência?
Uma vez, discutindo isso com o professor Saviani, ele me disse algo assim: “Eu
sou um filósofo, eu sou um teórico da educação, um historiador e não um
pedagogo” (no sentido técnico do termo, penso eu). Ele queria dizer que outros
deveriam ajudar a converter essa proposta da Pedagogia Histórico-Crítica,
formulada enquanto uma propositura teórica, com a finalidade de tentar
construir seu correlato do ponto de vista didático, pedagógico, para incentivar o
processo pedagógico a caminhar numa direção coerente àquelas teses da
Pedagogia Histórico-Crítica. Ele lançava este desafio, com razão, pois ele não
pode fazer tudo sozinho. Penso que o professor Saviani tem uma consciência
muito clara de que a Pedagogia Histórico-Crítica é algo que está em
desenvolvimento, do ponto de vista das suas repercussões pedagógicas. E desde
este ponto de vista, cabe a ele valorizar toda contribuição que avance, muito ou
pouco, nessa direção. Não poderia ser diferente. Se uma pessoa resolver fazer
um trabalho na sua prática pedagógica, que conduza à implementação da
Pedagogia Histórico-Crítica, claro, é uma contribuição. Se conseguiu ser fiel ou
não à proposta, é uma questão a ser discutida. Obviamente, alguns podem ir um
pouco mais longe, outros ficam aquém e outros não conseguem.
É neste ponto que aparece a minha divergência, porque o trabalho feito por
essas pessoas que tentaram implementar a Pedagogia Histórico-Crítica,
conduziu a algumas propostas que, em meu entendimento, têm dificuldade para
expressar corretamente o que está posto na teoria. Veja, então, que as minhas
3Nota dos entrevistadores: Pierre Bourdieu, sociólogo francês, autor, dentre outras obras, de Escritos de
educação, em que desenvolve o conceito de exclusão branda.
O professor Maurício alertava para algo que me parecia muito sensata: ele
valorizava os processos formativos. Mas ele fazia também uma afirmação muito
importante: a escola ensina pela sua forma de organização; o modo que nós
organizamos o poder na escola conta, pois a escola tem uma estrutura de poder
que também forma o estudante. Isso inclui a relação professor-aluno também.
A questão era se podíamos alterar os métodos no interior da aula, como
propunha Libaneo, sem pelo menos nos propormos a alterar as estruturas de
poder. Isso me apareceu uma advertência muito sensata, pois tínhamos que
olhar para além do método, para além da sala de aula.
Portanto, acho que a nossa tarefa era alterar a organização do trabalho
pedagógico de forma que não se restringisse a encontrar apenas uma forma
“didática” alternativa, baseada na unidade “aula”. Teria que ser algo mais
profundo e abrangente, ou seja, que afetava não só o acesso aos conteúdos, mas
afetava a própria forma da escola em seu conjunto. E isso não cabia na proposta
do Libaneo, pois ele partia da ideia de que a aula era uma unidade básica e isso
reproduzia a estrutura de poder da escola corrente, além de contribuir para a
separação entre a formação e o trabalho, categoria fundante. No entanto, nos
círculos da Pedagogia Histórico-Crítica, qualquer tentativa de se caminhar nesta
direção era considerada anarquismo e escolanovismo. Até hoje isso pode ser
percebido.
Neste momento, entrou em cena outra questão. Lá no ENDIPE, em 1988, um
período efervescente para as ideias progressistas, assisti a uma mesa redonda
com o prof. Miguel Arroyo. Naquela época...
Marcos Francisco Martins - O Arroyo naquela época era um pouco mais
marxista...
Risos...
Luiz Carlos de Freitas - Assistindo a uma palestra do Arroyo no ENDIPE, ele
desancou – como ele sabe fazer muito bem – algumas teses usuais dizendo algo
assim: “O que tenho visto na Pedagogia? Eu tenho visto vocês estudarem a
pedagogia corrente da escola capitalista e vocês ficam analisando como se
ensina isto e como é que se ensina aquilo, mas tudo dentro da Pedagogia da
própria escola capitalista. Quem daqui está estudando a didática socialista? Por
que, nós não queremos estudar? Isto tem um significado. Então, nós precisamos
pôr em pauta este estudo da didática socialista... O que já se acumulou sobre a
didática socialista?" Isso me chamou atenção para outro flanco, ou seja, "não
estávamos inventando a roda”, pois existiam tentativas anteriores feitas para
desenvolver uma pedagogia socialista.
A maior experiência revolucionária contemporânea, do século passado, é a
Revolução Russa. Portanto, ali exercitou-se outra didática que teve lugar em
condições objetivas de mudança mais favoráveis. Nós precisávamos investigar o
que se havia avançado dentro desta formatação, para que pudéssemos ver se
estávamos ou não muito longe e se podíamos aproveitar alguma coisa, apesar
das diferenças de realidade. Tinha também Cuba; não era bom dar uma olhada
para o que se produziu lá? Enfim, era preciso ver outras experiências e teóricos
que trabalharam em condições mais favoráveis e que poderiam ter avançado um
pouco mais sobre essas indagações. E aí que...
5Nota dos entrevistadores: Anton Semyonovich Makarenko, pedagogo ucraniano, é autor da obra Poemas
Pedagógicos, registro de sua experiência à frente da Colônia Gorki na década de 1920, na ex União
Soviética.
6Nota dos entrevistadores: Moisey Pistrak é autor da obra Fundamento da Escola do Trabalho, dentre
outras. Colaborou com a construção da pedagogia socialista pós Revolução Russa de 1917.
7Nota dos entrevistadores: Celestin Freinet foi um educador francês que viveu entre 1896-1966. Entre suas
obras estão Para uma Escola do Povo: guia prático para a organização material, técnica e pedagógica
da escola popular e Educação pelo trabalho.
8Nota dos entrevistadores: Nadežda Konstantinovna Krupskaja, pedagoga Russa que, assim como Pistrak,
colaborou para implementação de uma pedagogia socialista após a Revolução Russa, em 1917.
9 Nota dos entrevistadores: Antonio Gramsci comunista revolucionário italiano, principal mártir do
fascismo e autor com grande repercussão em teorias pedagógicas de viés socialista, como a Pedagogia
mas sobre Gramsci não posso falar quase nada porque, em primeiro lugar, não
sou leitor de Gramsci e entendo muito pouco dele; em segundo lugar, pelo que
já ouvi, duvido que muitos tenham entendido este autor com profundidade no
Brasil. O pouco que me aproximei das teses de Gramsci, deu para ver que, como
dizem os mais entendidos, há muita interpretação errada e muita reconversão
do lado revolucionário de Gramsci em uma posição reformista.
Marcos Francisco Martins - Neste caso, inspirados por uma leitura que
Bobbio faz de Gramsci, justamente nessa perspectiva. A sociedade civil
compreendida completamente à maneira liberal...
Luiz Carlos de Freitas – Minhas preocupações vão então sendo construídas
na interface com estes autores que vocês citaram no início: Saviani, Arroyo10 e
Tragtenberg, entre outros.
Veja, eu não tenho nenhum problema em aparecer ao lado das pessoas das quais
eu divirjo em alguns aspectos e concordo com outros tantos. Acredito que as
pessoas têm aportes a serem feitos mesmo no contraditório. Você pode ter
insights e recomendações muito importantes. Nós não podemos partir da ideia
de que tudo está “contaminado” e que devemos nos afastar. Não é assim. Se
você tem relativa certeza de sua posição, você pode viver perfeitamente na
relação com o contraditório; você vai tomar do contraditório aquilo que permite
avançar na sua posição. Não é isso uma forma dialética?
Marcos Francisco Martins - Exatamente! O contrário disso seria a negação
da dialética!
Luiz Carlos de Freitas - Então, se você elimina o contraditório como vai
haver movimento? Temos que trabalhar na presença do contraditório e às vezes
no enfrentamento dele, senão não se tem superação.
Essa foi a construção que nos levou a essa aproximação com a produção russa.
Qual é a produção russa que mais é apresentada no ocidente? Makarenko,
"Poema pedagógico", escrito em 1932. O que tinha acontecido na Rússia antes
de 32? Já tinha acontecido a implementação de uma política pública que tentava
construir uma escola unitária, ou seja, que não fosse dual. Isso já estava no
primeiro decreto da revolução sobre educação.
Nessa escola, todos trilhariam um caminho unitário, ainda que segundo suas
necessidades e possibilidades, mas sem o crivo da origem social. A escola russa
nasce com essa diretiva. Terá que ser uma escola em que todos podem passar
por ela.
Havia acontecido também todo um movimento comandado por Krupskaya
destinado ao reposicionamento dos conteúdos escolares e dos métodos
escolares. Foi um grande esforço conduzido sob a liderança dela e de
Lunacharsky11, que era Ministro da Cultura (e da Educação). Ela foi responsável
pela Sessão Pedagógica do Ministério da Cultura e trabalhava com toda uma
Histórico-Crítica. Entre as obras que escreveu, destacam-se os Cadernos do Cárcere, obra da maturidade
do pensamento deste autor.
10Nota dos entrevistadores: Miguel Arroyo, sociólogo e educador espanhol, foi professor da Universidade
Federal de Minas Gerais e discute em suas obras temas relacionados à educação popular, currículo, gestão
escolar, entre outros.
11 Nota dos entrevistadores: Anatoly Lunacharsky foi ministro da cultura pós Revolução Russa de 1917.
equipe, mais de 300 pessoas nas várias áreas. Pistrak se encarregou da tarefa de
dirigir uma escola experimental-demonstrativa (descrita por ele no livro Escola
Comuna) que estudasse quais deveriam ser os elementos fundamentais da
organização do trabalho pedagógico e da própria escola enquanto gestão, para
ser generalizado como política pública.
Esta escola comuna que ele dirige é ligada ao Ministério com essa função de
produzir no micro as primeiras recomendações que deveriam ser transformadas
em política pública e isso atravessa toda a década de 20 até 1928, 29. Em 1929 o
processo de industrialização da União Soviética estava praticamente concluído e
é avassalador o que acontece em termos de desenvolvimento industrial e técnico
na URSS. Pressões muito grandes vão ocorrendo sobre o sistema de ensino e
começa a faltar técnicos. As pressões sobre a escola aumentam e desse processo
origina-se a primeira reforma educacional na União Soviética, em 1931, e aí,
lamentavelmente, não foi uma reforma para avançar. Foi uma reforma que, na
minha percepção, retrocedeu a educação.
O texto do decreto de Stalin restaura, nesta reforma educacional, a lógica da
escola capitalista. Diz claramente no texto que a escola passa a ser instituída a
partir de grupos fixos de alunos, orientados por manuais didáticos e com
pessoal pedagógico especializado. Ele recua de toda aquela experiência que
estava se tentando fazer para romper a noção de escola centrada na aula,
tentando abrir a escola para a vida.
Pelas teses de Marx, nós temos que conectar estudo e trabalho. Este é o desafio
que estava e está posto. E conectar-se com o trabalho é conectar-se com a vida.
Pistrak participou do esforço de criar um plano de estudos para a escola baseado
na ideia dos “complexos de estudo”.
Todo este esforço na Rússia é interrompido porque a forma que o decreto de
Stalin aponta vai recuando o processo formativo para o interior da escola, numa
dimensão muito próxima daquilo que é feito pela escola capitalista, com ênfase
no pessoal e no material pedagógico. Makarenko não era um bom autor para
acessar esta evolução do período.
A didática como área de estudo, emerge na União Soviética nessa época, ao
redor de 1935. Até esse momento, não se sente a necessidade de um campo da
didática. É depois desse processo, dessa reforma que retrocede, que começam a
aparecer os livros sobre a didática disso ou daquilo.
Marcos Francisco Martins - Assim como Tragtenberg dizia, a forma escolar
educa, o modo de produção da vida social também educa e incide sobre uma
forma de gestão, de organização do trabalho pedagógico na escola. Assim como
o projeto de industrialização russa incidiu em um tipo de escola.
Luiz Carlos de Freitas - Isso aconteceu em resposta à própria forma de
organização das empresas russas, barrando a evolução das relações de trabalho
produtivo para outras formas mais avançadas. Na origem, a revolução tinha um
“namoro” com o fordismo e o taylorismo, porque ela precisava aumentar a
produção. O erro foi que isso ficou crônico e consolidou-se.
Eu diria que o socialismo começa a acabar aí, em 1931, com a reforma
educacional russa, pois passou-se a formar a juventude dentro de uma outra
perspectiva. Os processos educativos dentro de uma revolução são
fundamentais para você criar uma nova juventude, criar novos pensamentos, e
quando se abre mão disso, começa-se a formar pessoas dentro de lógicas que
depois serão usadas contra esse processo.
Neste processo de pesquisar a educação russa, eu entendi que, para além da
posição de Saviani, para além da posição de Tragtenberg, para além da posição
do Arroyo e de outros teóricos, havia um articulador maior que deveria, na
realidade, ser o acolhedor de todas essas experiências, sob o crivo das teses de
Marx para a educação, e isso inclui a Pedagogia Histórico-Crítica aqui no Brasil,
Martí12 em Cuba, Pistrak na Rússia, entre outros. Esse campo articulador, para
retirarmos os matizes mais personalizados, poderia ser o campo da própria
Pedagogia Socialista. Passamos, então, a olhar para essa noção de Pedagogia
Socialista. E o que é a Pedagogia Socialista? É o esforço da classe trabalhadora
mundial em reposicionar a sua forma de desenvolver a formação humana. E
nesse esforço, todos são bem-vindos. Todos que estão no campo progressista
têm algo a dizer.
Portanto, garantidas certas lógicas do ponto de vista estratégico, do ponto de
vista das concepções mais estratégicas, cabe todo mundo dentro desse grande
guarda-chuva, que é a Pedagogia Socialista. Como será a Pedagogia Comunista,
é oura história. Isso tira um pouco do embate que a academia gosta de
promover entre personalidades.
Marcos Francisco Martins - Professor, se me permite... o senhor acredita
que é este estágio que se encontra hoje a tentativa de formulação de uma
Pedagogia Socialista nestes termos: um campo articulador de todas essas
propostas críticas à escola capitalista? O senhor acredita que o MST tem tentado
experienciar isso? Porque, se fomos buscar os processos formativos
desenvolvidos pelo MST, os processos formativos mais amplos e escolares,
percebe-se uma tentativa de busca em autores socialista de experiências que
possibilitam superar essa lógica da formação capitalista, ou seja, o MST é ser
caracterizado, sob vários pontos de vista, como um movimento eclético na busca
de novos autores. É isso?
Luiz Carlos de Freitas – Em minha opinião, é isso. O “Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra” é um movimento, não um partido. Um movimento
tem muitas tendências dentro dele, por isso que é movimento; a junção de todos
para lutar por determinados objetivos num grande movimento. Ele não exclui.
Ele incorpora. Desde que se tenham os mesmos objetivos, estamos juntos. Na
verdade, são os objetivos desse movimento que contam. Aqui na academia
ficamos numa discussão muito voltada para a disputa de espaço. Mas a luta dos
movimentos é uma luta por objetivos, para conseguir determinados avanços.
Marcos Francisco Martins - Seja você cristão ou ateu; não é?
Luiz Carlos de Freitas - Desde que seja consoante com os grandes objetivos.
Essa é a grandeza dos “movimentos”. Dentro deles, algumas tendências
avançarão mais que outras, segundo seus referenciais.
Marcos Francisco Martins - Mas o senhor considera essa grandeza também
no que se refere a essa tentativa de construção de uma pedagogia para o MST;
12Nota dos entrevistadores: Jose Martí, ícone da independência de Cuba, fundador do Partido
Revolucionário Cubano, no final do século XIX.
conexão entre estudo e trabalho, teria sido fundamental para avançar a política
pública educacional; na ausência, tiveram que construir do zero.
Acho que nesse momento o nosso papel é enfrentar esta questão de imediato
onde existam as melhores condições possíveis. Se é lá na escola do campo, então
vamos tentar fazer lá. Se há alguma escola no sistema urbano querendo tentar,
ótimo, vamos fazer.
O assentamento e a ocupação do MST são lugares especialmente privilegiados,
porque embora você tenha muito assentamento e ocupação que não se liberta
até mesmo das relações com o agronegócio, ou com as próprias teses do
trabalho capitalista, o fato é que uma ocupação e um assentamento são atos
fundantes de vida, são momentos em que 100, 200, 500 pessoas ou mais dizem:
“Este pedaço de terra será nosso! E nós vamos praticar aqui uma nova relação
de vida!” Se conseguem ou não, é da vida. Você pode ou não conseguir, mas ele é
um ato fundante porque diz: “Nesta terra vai ser diferente, porque ela vai ser
administrada por nós e vamos plantar e retirar dela nosso sustento.” E isso é
colocado em uma perspectiva cooperativa, numa perspectiva de novas relações
sociais e, no dia seguinte, em qualquer ocupação, aparece a escola de lona
levantada sob quatro paus...
Marcos Francisco Martins - E no outro dia a igreja!
Luiz Carlos de Freitas - Faz parte, pois é um movimento. Mas a escola está
lá. Há crianças, e alguém fará o papel de professor, senão tiver professor! O
assentamento e a ocupação com as suas escolas itinerantes, provam isso. Eles
são espaços privilegiados onde você tem a tentativa de mudança das relações
entre as pessoas na direção de relações mais avançadas. Ali há o desejo, ali está
posta a necessidade. Portanto, eu posso tentar fazer a escola acompanhar esse
movimento e não simplesmente retroceder às formas capitalistas de
organização.
Esse é o sentimento que eu acho que move o MST, ou seja, na medida em que eu
avanço as relações sociais, puxa-se a escola para cima e não a deixa à mercê da
organização do trabalho pedagógico clássico. Essa relação tem que ser
construída e é isso que boa parte do Movimento dos Sem Terra tem feito, tem
tentado explorar para construir as novas relações, inclusive na escola.
O trabalho é uma categoria fundante nesse processo, o que não se choca com
aquela tese da importância do conhecimento. Valorizar o trabalho não elimina o
conhecimento porque o trabalho na nossa concepção não é o trabalho cindido,
não é o trabalho manual, ele também é junção e expressão do conhecimento que
está envolvido nele. E a revolução russa ensaiou 10 anos esse modelo de
interação. Shulgin desenvolveu o conceito de trabalho socialmente necessário
como um articulador da própria organização escolar. O Pistrak trabalhando com
uma ideia que puxava mais o pedagógico do que Shulgin.
Esta questão nunca foi tranquila no interior da revolução russa. No começo
tínhamos duas grandes tendências: uma era chamada “Escola de Moscou” e a
outra era a “Escola de Petrogrado”, depois “Leningrado”. E essas duas
concepções disputavam as atenções de Lênin. Uma delas olhava mais a questão
do ensino na escola e a outra, olhava mais para a formação pelo trabalho
produtivo na interação com as fábricas. A função da Krupskaya nesse processo,
era manter essas concepções unidas.
A própria experiência do MST tem revelado a dificuldade que temos para juntar
essas pontas. Como é que nós garantimos essa junção, como isso se expressa na
politecnia; como é que nós vamos garantir essa articulação?
Neste processo, Shulgin é a pessoa que nos ajuda a construir o que ele chama de
sistema politécnico, e que não é, como no caso do Brasil, uma discussão restrita
ao ensino médio, mas sim um sistema politécnico que vai desde o ensino infantil
até a universidade. Dentro desse sistema politécnico, é claro, está a questão da
junção entre o estudo e trabalho, um problema que é uma questão essencial. E
disto emergem as repercussões concretas na organização do trabalho
pedagógico.
A principal repercussão é que o formato da escola clássica capitalista não resiste
à proximidade com o trabalho. Quando você “encosta” o trabalho na escola ela
implode, ela não consegue dar conta, porque ela foi feita para pensar do ponto
de vista da teoria, da preparação para a vida futura, e ela não foi feita para
pensar do ponto de vista do trabalho.
Posta nesta condição de conectar-se ao trabalho, nossa escola faz vários
movimentos: ou ela usa o trabalho de uma forma ilustrativa ou então converte o
trabalho em brincadeira, em trabalho de mentirinha.
A forma escolar capitalista não suporta a conexão com o trabalho que tenha um
caráter não assalariado e sua assimilação como princípio educativo impõe
profundas modificações a ela, sendo uma delas a perda da centralidade da sala
de aula e da própria aula. Mas perder a centralidade da aula não é igual a perder
a importância do conhecimento, o que assusta alguns dos seguidores de Saviani,
os quais acham que ao negar a aula, estamos negando o conhecimento. Outro
impacto decisivo é na forma de gestão da própria escola, pois os estudantes
passam a ter protagonismo na condução da vida escolar.
Se você for lá no Instituto Josué de Castro, em Veranópolis (RS), que avançou
muito nessa questão da organização do trabalho pedagógico, verá que eles
criaram a noção de “tempos educativos” como: tempo aula, tempo formação,
tempo comunicação, tempo trabalho. Então, precisamos investigar, ou seja,
indagar o que ocorre quando colocamos a categoria trabalho, mesmo esse
trabalho precário que nós temos, como componente do estudo e quais
repercussões ocorrem na organização da escola. E isso tem me levado a
participar dessas experiências dentro do MST.
Adriana Varani - Isso seria o trabalho como princípio educativo?
Luiz Carlos de Freitas – Tanto quanto possível neste momento histórico, é o
trabalho como princípio educativo.
Adriana Varani - Não com preparação estrita para o trabalho.
Luiz Carlos de Freitas - Não como preparação estrita para o trabalho. Até
porque a especialização é algo posterior à politecnia; veja bem, que isso não é
desejável nem para Dewey. Ele também era contra a especialização e os russos
vão claramente propor uma recusa aos processos imediatos de especialização
para o trabalho antes do estudante passar pelo sistema politécnico.
Marcos Francisco Martins - Daí a defesa da politecnia!
começaria esse exercício de síntese fazendo uma última pergunta ainda do bloco
anterior. É a seguinte: chegamos a algumas conclusões aqui e uma delas é que a
forma escolar capitalista e a forma escolar de uma eventual proposta socialista
de organização do trabalho pedagógico admitem o trabalho como elemento
central. Não se desconfia da necessidade de trazer a vida para dentro da escola,
tanto para a forma escolar capitalista quanto para a forma escolar socialista. O
problema é o que é vida para uma proposta e o que é trabalho para outra.
Devemos, então, fazer um exercício de definição desses conceitos. Parece-me
que os pedagogos socialistas exercitam um pouco disso. Agora, de outro lado há
algumas teorias que tentam confundir os conceitos: a teoria do capital humano,
ao igualar capital e trabalho, traz confusão. Como você avalia a teoria do capital
humano? Parece que ela tem sido fundamento empregado pelos reformadores
empresarias para justificar as propostas educacionais. A teoria do capital
humano direciona as respostas sobre o tipo de escola que eles apresentam. O
que o Senhor pensa sobre isso?
Luiz Carlos de Freitas - Esse é um tema, talvez, mais para os sociólogos
examinarem. O pressuposto é que o conhecimento tem uma escala de valores:
quanto mais conhecimento, mais valor a pessoa acumula, quanto menos
acumula, menos vale. O conhecimento, em si, é uma mercadoria nesse processo,
ele vira uma mercadoria com um valor.
A matriz liberal é a matriz do esforço pessoal. Você tem acesso ou não a mais
capital cultural, se você se esforça mais ou se você se esforça menos, portanto, o
que você acumula de capital humano é produto do seu esforço, ou seja, é mérito.
É mérito seu! Portanto, se você não o obtém, também isso se deve a você. Com
esta racional, você naturaliza os processos de exclusão da escola. Você também
tira o foco do sistema, ou seja, a responsabilidade do sistema que criou
condições para alguém saber mais e outro saber menos, é deixada fora da
análise. O sistema passa ileso nessa interpretação, ele não é trazido à sua
responsabilidade.
Curiosamente são os defensores desse sistema omisso que falam em
responsabilização, mas responsabilização para os outros, os professores. Não há
uma responsabilização do sistema quanto às condições de vida ofertadas,
quanto às condições que são fundantes para facilitar os processos de
aprendizagem e toda esta sonegação de condições é escondida em um processo
que converte desigualdades sociais em desigualdades acadêmicas; a lógica do
movimento dos reformadores justifica essa conversão. Ou seja, para eles, as
desigualdades de posse de capital humano são desigualdades derivadas de
esforço individual.
A escola é responsabilizada porque ela não deveria ter permitido que as
desigualdades sociais se convertessem em desigualdades acadêmicas. Então, se
transfere para uma agência, que é a escola, a responsabilidade de cuidar daquilo
que é produzido socialmente pelos próprios empresários, a desigualdade social.
E você passa a discutir então, quantos alunos avançaram, quantos não
avançaram, quantos estão na média, quando estão proficientes, abaixo da
proficiência etc. Marcos Francisco Martins - O que tem se configurado no
contexto nacional das reformas sob a égide de personalidades que são ícones
dessa perspectiva, alguns ideólogos. Como Manuel Palácios13, por exemplo.
Luiz Carlos de Freitas - Palácios é um agente que opera ao nível da indústria
educacional de avaliação; os ideólogos disto não são os Palácios. Os ideólogos
disso defendem a filosofia do liberalismo. Ressalte-se o papel das fundações
ligadas às grandes empresas, que são as que procuram conduzir esse processo.
São elas que dão suporte a estas ideias, tanto aqui como no exterior. Nos EUA,
meia dúzia de fundações domina o Ministério da Educação. A política do Estado
de São Paulo, por exemplo, já está fortemente influenciada por meia dúzia de
fundações que pululam em volta da Secretaria da Educação. Veja que grandes
empresas de consultoria são instaladas dentro do prédio da Secretaria da
Educação. Por lá passaram, até pouco tempo, a McKinsey, uma grande empresa
que opera em 140 países, uma máquina mundial a serviço da reforma
empresarial da educação. E agora está lá dentro a Falconi. São assessorias que
defendem todas essas ideias; e quem está pagando isso? Em São Paulo são as
fundações empresariais que dão de graça para Secretaria da Educação essas
consultorias e que estão na base da formulação do programa de educação em
tempo integral do ensino médio aqui no estado, com experiência em trezentas
escolas.
É um movimento copiado lá de Pernambuco, feita pelo Instituto de Co-
Responsabilidade Educacional, uma entidade privada que está aqui em SP
também. Esse é o caminho que a educação brasileira, infelizmente, parece estar
tentando seguir, uma grande inflexão na política pública educacional.
Marcos Francisco Martins - O que me chama a atenção, Professor, é que, se
analisado conjunturalmente o contexto atual, no governo federal e no governo
estadual de São Paulo, muito embora sejam partidos que se apresentem como
distintos ideologicamente e opositores sob o ponto de vista político, há alguma
convergência entre eles no que se refere às políticas públicas educacionais;
não?! Há alguma convergência em torno dessas diretrizes liberais para as
políticas educacionais...
Luiz Carlos de Freitas - Essa perspectiva está há mais tempo sendo aplicada
no Estado de São Paulo e, aqui, os reformadores empresariais não têm sido
bem-sucedidos. Se eles tivessem sido bem-sucedidos, você veria uma aplicação
ainda mais forte destas ideias.
As ações atuais do Mercadante também não divergem muito dessas perspectivas
postas pelos reformadores. Ele é pródigo em fazer conexões com essas ideias.
Porém, nós não conhecemos ainda a versão completa da aplicação destas ideias.
Nós temos ensaios apenas. Estamos tendo agora uma experiência mais
completa dessa proposta que é a terceirização de gestão em Goiás, que também
é governado pelo PSDB; então, lá você vai ter 30% das escolas terceirizadas para
Organizações Sociais e isso é uma experiência que mostra para onde vai o
conjunto da proposta dos reformadores, a versão completa de destruição da
escola pública por terceirização e voucher.
Nota dos entrevistadores: Manuel Palácios era, à época da entrevista, Secretário de Educação Básica do
13
Além disso, você ainda tem uma terceira forma de privatização que são os
sistemas pedagógicos prontos. Tudo isso minará de tal forma o sistema público
que ele será destruído; claro, se não houver uma resistência, sempre tem um
fator de resistência. É preciso ter essa resistência e aprender com os que
enfrentaram isso nos outros países...
Marcos Francisco Martins - Como foi a Revolução dos Pinguins no Chile...
Luiz Carlos de Freitas - A revolução dos Pinguins no Chile... o movimento de
resistência nos EUA, que, agora, retirou meio milhão de crianças dos testes do
sistema de avaliação em larga escala... Lá, estes pais mandaram uma cartinha
para escola dizendo: “Meu filho não vai mais fazer avaliação”. No Estado de
Nova York foram 220 mil pais. Este movimento chama-se “opt-out”. É o nome
de um dispositivo legal que permite ao pai decidir se a avaliação de larga escala
será ou não feita pelo filho.
Então, esse é um movimento interessante. No caso americano, precisam estar
presentes na escola, no ato da avaliação externa, 95% das crianças; então,
quando os pais retiram as crianças eles colocam em cheque as próprias regras
do sistema.
Marcos Francisco Martins - Será que essa nomeação que o governador
Alckmin fez, e o fez com muita tranquilidade, do ex-presidente do Tribunal de
Justiça de São Paulo para a Secretaria de Educação, sem nenhuma expertise em
educação e o secretário nomeia o chefe de gabinete, que também não tem
nenhuma expertise em educação, dará tranquilidade ao governo, uma vez que
parece que ele está convencido de que a formulação das políticas educacionais
está terceirizada para empresas de consultoria, restando à Secretaria de
Educação, ao Secretário, fazer as relações públicas que as viabilizem,
encaminhando os problemas jurídicos e políticos advindos da reorganização?
Parece que as empresas, os reformadores empresariais formulam as políticas
públicas e coloca o Secretaria para legitimá-las politicamente...
Adriana Varani: Política e juridicamente...
Marcos Francisco Martins: Política e juridicamente, exatamente! O que o
Senhor acha disso?
Luiz Carlos de Freitas - Nós precisamos de mais informações para poder
examinar o que está acontecendo no estado de São Paulo. É muito pouco o que
conseguimos acessar. Acho que o segredo para o entendimento de tudo isso está
em conhecer aquilo que as assessorias privadas estão recomendando para a
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
Creio que é dessas assessorias da McKinsey e da Falconi que sairá a formatação
final que está se esperando para o estado de São Paulo em termos de educação.
Essa conversa toda feita pelo governo estadual dizendo que "Vai discutir com a
escola... etc.", isso é cortina de fumaça. No fundo, quem está estruturando a
educação paulista são os empresários com assessorias de empresas, com
grandes empresas de consultoria. O que é que eles estão produzindo? Eu não
tenho a menor pista, a não ser o próprio modelo da reorganização que apareceu
no ano passado e que remetia às ações feitas pela McKinsey na Cidade de Nova
York, onde propuseram coisas muitos semelhantes... John Klein fez uma ou
duas reorganizações de escolas com o apoio da McKinsey na cidade de Nova
York durante anos seguidos. Lá essa história toda esteve associada ao processo
de privatização formal por terceirização. Eu suspeito que o estado de São Paulo,
com a reorganização que tenta fazer, procura rearranjar a estrutura para efeitos
de privatização, deslocando uma parte da educação fundamental para os
municípios, com a municipalização, e as demais empurrando para formas de
terceirização.
O estado, de fato, está querendo se livrar do ensino fundamental, seja por
terceirização, seja por municipalização. Ele está querendo focar os esforços no
ensino médio, e aí é o modelo de educação integral que as empresas estão
moldando para o estado de São Paulo. A privatização já começou no ensino
médio. A questão, agora, é se a privatização seguirá para ensino fundamental.
Penso que eles têm um plano para isso. Eu não conheço, mas eu acho que eles
têm um plano articulado para isso e nós não temos visibilidade disso.
O próprio PSDB tem um compromisso, digamos assim, paradigmático com
estas ideias. Você pode ver em Goiás. Quem está lá é o PSDB, fazendo a
terceirização. O Distrito Federal está fazendo a terceirização, com o PSDB. Mato
Grosso também. Então, é um modelo que remete a uma atuação partidária.
Marcos Francisco Martins - Interessante que numa entrevista recente do
Nalini14, ele diz o seguinte: “Nós já sabemos o que os diretores e professores
pensam, e nós não sabemos o que os alunos pensam". Agora, imagine qual é a
decorrência disso na reformulação da reorganização, a partir de um pressuposto
desse? Ele vai atrás dos pais dos alunos para fazer as audiências, e quem não
terá audiência serão os professores e os gestores, mais uma vez.
Adriana Varani - E vai atrás daqueles que, de certa forma, têm menos
posicionamento crítico e que são mais fáceis de serem convencidos de que o que
está sendo proposto é uma boa educação, uma educação de melhor qualidade.
Luiz Carlos de Freitas - Isso é tática. Basta você analisar os posicionamentos
e estratégias que as fundações americanas estão usando, para você entender o
caminho do ideário de modificação e privatização da escola pública por lá. A
Fundação Walton, por exemplo, do dono do Walmart, já investiu em torno de
um bilhão de dólares em financiamento de projetos para mobilizar a
comunidade. Projetos que mobilizam a comunidade para as ideias que ela
defende, as ideias dos reformadores empresarias. Isso significa um processo
brutal de cooptação de entidades locais na defesa dessas ideias.
A estratégia é muito clara. Quando ouço o Secretário Nalini ou o governo falar
que “Temos que ouvir a comunidade...”, dá até um “frio na espinha”. Vem aí um
sistema brutal de cooptação dessa comunidade, que depois vai chegar à escola e
defender a reorganização.
Nos EUA, eles chegaram ao requinte de fazer uma votação entre os pais da
escola para definir se ela vai ser terceirizada ou não, em alguns estados. Se 51%
dos pais decidem que é para privatizar, então, privatiza-se. Olha que mágica!
Não é o governo que está privatizando, pois, a comunidade foi consultada, foi
ouvida democraticamente. Eu acho que a estratégia dos reformadores no Brasil
vai por esse caminho, ou seja, mobilizar as forças mais conservadoras da
14Nota dos entrevistadores: José Renato Nalini, à época da entrevista, era Secretário de Educação do
Estado de São Paulo.
Referências
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__________. Escola Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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TRAGTENBERG. M. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo:
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Recebido em: 19/05/2016
Aceito em: 20/06/2016