ISSN 2318-2253 Direito B1 - CONTUMAZ

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5 DIREITO CONCORRENCIAL

E TRIBUTAÇÃO – O
DEVEDOR CONTUMAZ E A
COMPETÊNCIA DO CADE
Competition law and taxes - the recurrent debtor
and CADE’s role
Renato Lopes Becho1
Fala sobre o Devedor Tributário COntumaz, os impactos de suas causas Bráulio Bata Simões2
e os motivos de sua existência.
André Catta Preta FederighiI3

RESUMO
O presente trabalho busca investigar a origem do Devedor Contumaz no sistema positivo e suas
interações com o Direito Tributário e o Direito Concorrencial. A discussão acima tem especial reper-
cussão nas relações jurídicas que envolvam não só o Direito Tributário, como também as normas de
proteção da Ordem Econômica e as especificidades do Direito Concorrencial. A morosidade e a inefi-
ciência dos entes fiscais contribuem para a criação da figura do Devedor Contumaz e os mecanismos
de reprovação tributário parecem não demonstrar devida efetividade no combate a tal sujeito. Surge
o Direito Concorrencial como uma forma de combate ao Devedor Contumaz, sobretudo mediante a
atuação do Cade.

Palavras-chave: Direito Concorrencial; Direito Tributário; Cade; Devedor Contumaz; Livre Concorrên-
cia.

ABSTRACT
The present work seeks to investigate the origin of the recurrent debtor in the positive system and his
interactions with Tax Law and Competition Law. The discussion above has a special impact on legal
relations that involve not only Tax Law, but also the rules of protection of the Economic Order and
the specificities of Competition Law. The slowness and inefficiency of the tax entities contributes to
the creation of the figure of the recurrent debtor and the mechanisms of tax sanctions do not seem
to demonstrate due effectiveness in combating such subject. Competition Law appears as a way to
combat the recurrent debtor, especially through CADE’s role.

Keywords: Competition Law; Tax Law; Cade; recurrent debtor; Free Competitionw

1 Renato Lopes Becho Livre-Docência (USP) e Doutor em Direito (PUC-SP). Juiz Federal. Professor da PUC-SP. E-mail:
rbecho@pucsp.br

2 Pós-Doutor e Doutor em Direito (PUC-SP). Advogado. Professor CEDES. E-mail: bata@bsplaw.com.br

3 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestrando em Direito Constitucional Tributário
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo. E-mail: andrecpfederighi@gmail.com

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RDC, Vol. 9, nº 2. Dezembro 2021 ISSN 2318-2253, DOI: 10.52896/rdc.v9i2.907
Classificação JEL: H21 e H26

Sumário: 1. Introdução; 2. Metodologia; 3. O Direito Tributário e o Devedor


Contumaz 4. Elisão, Evasão Fiscal e o Devedor Contumaz; 5. A ineficiência e
a morosidade dos entes fiscais como estímulos ao Devedor Contumaz; 6. O
Direito Concorrencial e o papel do Cade no combate ao Devedor Contumaz;
7. Conclusão; Referências.

1. INTRODUÇÃO

A interação entre os diversos ramos do direito é um fato já sedimentado que advém não só
em função da complexidade das relações sociais e suas consequências jurídicas, mas também pelas
possibilidades que surgem na ciência jurídica, tanto pela via da interpretação sistemática4, quanto
pelo avanço do conceito doutrinário de diálogo das fontes (MARQUES, 2014). A imbricação entre re-
gras e princípios de um ramo jurídico com outro é uma constante na pragmática jurídica.

Tal constatação não poderia deixar de ser verificada entre o Direito Concorrencial e o Direi-
to Tributário. É cediço que determinadas práticas levadas a cabo por contribuintes os colocam em
vantagem competitiva, vez que podem se alavancar às custas do Estado e da sociedade, quando
postergam ou se tornam inadimplentes de suas obrigações tributárias. Surge o conceito do Devedor
Tributário Contumaz como um elemento de investigação sob o ponto de vista do direito concorren-
cial.

Poderia o Estado, reprovar o Devedor Tributário Contumaz nos dois âmbitos: tributário e con-
correncial? Nesse sentido, devemos investigar quais os parâmetros e limites impostos por estes dois
ramos do direito, no que tange a dissuadir ou punir tais condutas.

Ganha importância estudar as condutas que levam ao conceito de Devedor Contumaz, inclusi-
ve com a investigação a respeito dos elementos fáticos que podem conceituar tal agente e os limites
do planejamento tributário no que tange aos conceitos de Elisão e Evasão fiscal.

Nesse contexto, a constatação da ineficiência e morosidade da máquina pública em responsa-


bilizar e impedir a existência do Devedor Contumaz, deve ser cotejada com a competência dos órgãos
de defesa da concorrência como potenciais mecanismos de dissuasão ou reprovação do Devedor
Contumaz no sistema.

2. METODOLOGIA

O texto que segue é desenvolvido em três partes principais. Na primeira parte, será apresen-
tado o panorama descritivo da situação do Devedor Contumaz no Brasil, com base na literatura jurí-
dica e econômica já produzida a respeito do tema. Nesta parte com enfoque teórico, serão traçadas
as distinções entre conceitos afins, como Elisão, Evasão, Sonegação e Contumácia.

4 Leciona Ferraz Jr. que “[…] falemos em interpretação sistemática (stricto sensu). A pressuposição hermenêutica é a
da unidade do sistema jurídico do ordenamento. Há aqui um paralelo entre a teoria das fontes e a teoria da interpretação.
Correspondentemente à organização hierárquica das fontes, emergem recomendações sobre a subordinação e a conexão das
normas do ordenamento num todo que culmina (e principia) pela primeira norma-origem do sistema, a Constituição”. (FERRAZ
JR, 2007, p. 293.)

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Na segunda parte, será analisado como a ineficiência dos Entes Fiscais pode se traduzir em
estímulo à prática da contumácia com suporte em dados empíricos, produzidos pelo Conselho Na-
cional de Justiça (“CNJ”) em seu relatório anual “Justiça em Números”.

Por fim, na terceira parte, será realizada uma análise crítica da jurisprudência do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) relativa aos casos de Devedor Contumaz, visando o
estabelecimento de critérios para que se possa engendrar o papel do citado órgão no combate à
contumácia. Para a análise crítica da jurisprudência, será explorada a pesquisa “Concorrência e Tri-
butação”, elaborada pelo Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (“CEDES”) em 2019.

3. O DIREITO TRIBUTÁRIO E O DEVEDOR CONTUMAZ

A fim de tratar o tema com a acuidade que se demanda, é necessário, preliminarmente, esta-
belecer algumas premissas especialmente relacionadas aos conceitos que serão tratados neste tra-
balho. Entendemos que o objeto mais atual do direito tributário deixou de ser o tributo e se tornou
o homem sujeito de deveres e direitos perante a obrigação tributária5 . Obviamente que a prática
de verter recursos aos cofres públicos deve observar os estreitos limites constitucionais (CARRAZZA,
2013, p. 37) postos em nossa Constituição Federal, que, vale sempre deixar afirmado, é objeto de
constantes violações por parte dos entes fiscais. Não obstante tal constatação, entendemos o tributo
como indispensável ao financiamento do Estado e das políticas públicas6.

Queremos deixar assentado que a tributação é uma exigência, extremamente custosa, mas
indispensável quando pensamos no pacto social. Obviamente que tal exigência é um dos mais rele-
vantes custos de qualquer atividade empresarial, o que leva pessoas e empresas a planejarem suas
condutas, inclusive em âmbito internacional, para elidir a tributação, vez que, é inegável que a ver-
dadeira aliança e fidelidade do dinheiro é com a segurança e os lucros7.

Caso um sujeito de deveres tributários consiga se esquivar de tais obrigações, estará em


nítida vantagem competitiva em relação aos seus concorrentes. Isto ocorre em função não só dos
valores objeto das obrigações tributárias, mas também em função dos custos de oportunidade e de-
mais gastos com a observância das normas tributárias – o chamado compliance tributário8, ou custos
de conformidade tributária (compliance costs of taxation) (CARVALHO, 2019, p. 983).

5 Leciona Becho que “Colocar o homem no centro do direito tributário implica afirmar que a simples arrecadação não é
mais o fim último do direito tributário. A finalidade do direito tributário é fazer da arrecadação um ato de justiça social, com
limites, com proteções ao contribuinte diante da força e da voracidade do Estado.” (BECHO, 2009, p. 351)

6 Leciona Weiss que “[...] os direitos fundamentais proclamados na Constituição somente são exercíveis se o Estado
puder provê-los ou garanti-los, o que demanda recursos financeiros por parte da sociedade.” (WEISS, 2009, p. 119)

7 De acordo com a lição de Adams, “A mensagem importante de hoje, ou para qualquer tempo na história, é que o
dinheiro tem alianças apenas com a segurança e os lucros. [...] Qualquer nação que ofereça segurança e melhores lucros pode
esperar uma avalanche de dinheiro. Isto é uma verdade tanto quanto a busca pela autopreservação”. Livre tradução nossa, no
original consta: [...] The important message for today, or for any time in history, is that money has allegiance only to safety and
profits. [...] Any nation that offers safety and better profits can expect an avalanche of money. This is much a truth about human
nature as the drive for self-preservation”. (ADAMS, 2012, p. xi.)

8 O termo compliance advém do idioma inglês, do verbo to comply, que significa “agir de acordo com as regras”.

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Especialmente, no Brasil, de acordo com um estudo da FIESP do ano de 20129, existe um alto
custo apenas para manter a empresa com a observância de todas as obrigações tributárias. Também,
neste ano de 2020, um estudo do Banco Mundial, em parceria com a companhia britânica de audi-
torias PricewaterhouseCoopers (“PWC”), revelou o tempo gasto para estar em conformidade com as
obrigações tributárias brasileiras: absurdas 1.501 horas, sendo que a média mundial é de 234 horas
(PWC, 2020).

Claramente, seguir a lei e honrar com as obrigações tributárias no Brasil é um grande fator
que impacta a atividade de qualquer empresário. Neste aspecto, vale sempre lembrar da famigerada
Curva de Laffer, modelo proposto pelo economista norte-americano Arthur Laffer que demonstraria
que, “em certas situações, quanto maior a alíquota de um tributo, menor será a sua arrecadação. O
tributo ótimo estaria no ponto de intersecção entre alíquota e a sua arrecadação” (CARVALHO, 2018, p.
237), de forma que, muitas vezes, quanto mais elevada fosse a carga tributária e o peso da tributação,
maiores seriam as tentativas de fuga das obrigações pelos contribuintes.

Contudo, não obstante as notórias críticas ao sistema tributário brasileiro, fato é que, ao se
esquivarem de tais regras, os agentes econômicos passam a possuir uma vantagem competitiva em
relação aos seus rivais do mesmo segmento. Porter explica que, para atingirem sucesso competitivo,
as empresas devem perseguir ao menos um dos dois critérios a seguir: menores custos ou produtos
diferenciados que permitem preços mais altos (PORTER, 1990, p. 10.).

Se dentro de um mercado livre as vantagens competitivas são vistas como legítimas, fruto de
um processo natural de desenvolvimento organizacional e tecnológico10, devendo ser incentivadas;
as vantagens obtidas por meios ilícitos, como é o caso da contumácia ou da sonegação, devem ser
combatidas, visto que subvertem a lógica tradicional de mercado de coroar aqueles que mais eficien-
temente produzem.

Dentro dessa lógica perversa de mercado, passam a ganhar participação relevante aqueles
que mais fraudam, sonegam ou evadem a tributação (MATTOS, 2019, sem paginação), podendo assim
praticar violações à concorrência por via reflexa, como é o caso da prática de preços predatórios,
uma vez que o montante “economizado pode ser utilizado para outros fins (BAGUS, BLOCK, EABRASU,
HOWDEN & ROSTAN, 2011, pp. 24-26).

Assim, a “competitividade espúria” deve ser diagnosticada e pulverizada por meio de dife-
rentes áreas do Direito, como o Direito Penal, o Direito Concorrencial e até mesmo o Direito Tributá-
rio, baseando-se no trinômio dever, consciência e aderência a normas (SLEMROD, 2018, p. 80).

Um recente exemplo noticiado em vários veículos de comunicação, foi o caso da rede varejis-
ta Ricardo Eletro, que, de acordo com os dados divulgados (FAGUNDES e MENEZES, 2020, sem pagina-
ção), teria sonegado, entre os anos de 2014 e 2019, por volta de R$ 380 milhões. Uma vez confirmado
tal dado, seria possível afirmar que seus potenciais rivais do segmento seriam impactados por tal

9 Em 2012 a FIESP concluiu que foram gastos R$ 24,6 bilhões com custos de conformidade à tributação pela indústria de
transformação brasileira. (FIESP, 2013, p. 4). O mesmo estudo, quando realizado em 2018, concluiu que o custo de conformidade
à tributação pela indústria de transformação brasileira aumentou para R$ 37,2 bilhões neste intervalo (FIESP, 2019, p. 8)

10 A Livre Concorrência em matéria tributária significa uma concorrência saudável, que valorize os processos
schumpeterianos de seleção das empresas mais eficientes no mercado. (SCHUMPETER, 2017, p. 119)

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efetiva economia ilícita, que, muito provavelmente, seria refletida nos preços mais baixos artificial-
mente praticados, vulnerando, assim, a livre concorrência.

Nestes termos, se revela óbvio que um agente que não honre com as pesadas obrigações tri-
butárias de poderá empregar um custo menor de produção, e consequentemente, terá condições de
ofertar um produto de preço artificialmente menor, com nítida vantagem competitiva e em prejuízo
a todos aqueles que respeitam as normas tributárias.

Gary Becker, célebre economista americano da Universidade de Chicago, chegou inclusive a


criar o conceito do “ infrator racional” (MATTOS, 2019, sem paginação) para descrever tais situações:
seria aquele agente que realiza, antes de praticar a conduta ilícita, uma análise de custo-benefício
para verificarem se suas vantagens competitivas adquiridas compensam os custos esperados da
infração. Sua análise econômica do crime o fez verificar que os agentes econômicos agem racional-
mente na verificação dos riscos advindos da fiscalização. Dessa forma, incentivos para o cometimen-
to da conduta ilícita, relativos à fiscalização tributária e ao enforcement dos agentes reguladores
(SLEMROD, 2018, pp. 79/80), devem ser balanceados em qualquer análise da probabilidade de ser
pego. Tal questão será aprofundada no item 5.

No Brasil, tal constatação leva a um inevitável questionamento: os devedores contumazes se


beneficiam de nosso sistema tributário e consequentemente, ao não honrarem com suas obrigações
tributárias, prejudicam não só o sistema tributário, mas também o ambiente concorrencial?

4. ELISÃO, EVASÃO FISCAL E O DEVEDOR CONTUMAZ

Vale destacar que a figura do Devedor Contumaz deve ser bem-conceituada para não gerar
confusões com outros importantes conceitos. Ao falarmos de Devedor Tributário Contumaz não de-
sejamos tangenciar, a priori, os conceitos de Elisão e Evasão Fiscal, que buscam sua diferenciação
no âmbito da licitude dos atos para a obtenção de vantagens fiscais. Assim, enquanto Elisão significa
eliminar tributos de forma lícita, o termo Evasão indica a conduta de evitar os tributos de forma ilí-
cita11.
A Elisão fiscal, como visto acima, é um direito do contribuinte e se revela no âmbito do plane-
jamento tributário12. Aqui, por meio da interpretação e das lacunas da lei, o contribuinte busca evitar
a ocorrência da tributação, ou então opta por um regime de tributação mais favorável. Não preten-
demos abordar exemplos de planejamentos tributários, tampouco os embates a respeito de abuso
de direito ou a norma geral antielisiva com os direitos dos contribuintes, vez que fugiria ao objeto
deste trabalho. Contudo, desde já consideramos que o conceito de Devedor Tributário Contumaz não

11 Na lição de Barros Carvalho, “[...] (Elisão) é lícita, consistindo na escolha de formas de direito mediante as quais
não se dá a efetivação do fato tributário, e consequentemente, impedindo o nascimento da relação jurídica, a segunda
(Evasão) decorre de operações simuladas em que, ocorrido fato de relevância para o direito tributário, pretende-se ocultá-lo,
mascarando o negócio praticado.” (CARVALHO, 2014, p. 83)

12 Como bem leciona Torres, “[...] o “planejamento tributário” não é mais que um procedimento de interpretação do
sistema de normas (especialmente as tributárias e as de direito privado), visando à criação de um modelo de ação para o
contribuinte, que poderá consistir tanto numa escolha dos atos jurídicos que coincidam com hipóteses de não incidência,
quanto de isenção (total ou parcial) ou mesmo de negócios mais favoráveis, para obter o resultado desejado, de eliminação ou
de redução do tributo devido”. (TÔRRES, 2003, p. 175)

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encontra guarida na Elisão fiscal, tampouco no planejamento tributário.

Já, quanto ao termo Evasão fiscal, sempre deve ser lembrada outra conexão existente em
nosso sistema positivo: o direito tributário e o direito penal, com as condutas previstas na Lei nº
8.137/90, responsável pela definição dos crimes contra a ordem tributária.

Sem dúvida que as condutas de Evasão fiscal também podem ser responsáveis por um dese-
quilíbrio de mercado, e, consequentemente, uma concorrência desleal. Apenas a título de exemplo,
podemos destacar os casos de contrabando e descaminho recorrentes na indústria de cigarros. De
acordo com recente notícia do jornal O Estado de São Paulo (FORÚM NACIONAL CONTRA A PIRATARIA
E A ILEGALIDADE. 2020, Sem paginação), estima-se que o Brasil perde R$ 12,2 bilhões anuais em arre-
cadações de impostos, sendo que hoje, de cada dez cigarros consumidos no Brasil, seis são ilegais. A
explicação para a diferença de preço reside, novamente, em função da diferença da carga tributária:
enquanto no Brasil é de por volta de 70%, no Paraguai é de 18%.

Vale lembrar que o mero fato de ser devedor de tributos não caracteriza crime contra a
ordem tributária. Contudo, tal afirmação ganhou tons de debate em função do recente julgamento
do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº16333413, de forma que foi fixada a tese de que “o
contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado
do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”.
Não obstante não concordarmos com a decisão, por motivos que desbordariam do presente traba-
lho, entendemos que esta exceção (especificadamente para o ICMS) não constitui a regra, de forma
que a máxima de declarar tributo e não pagar, em regra, não constitui crime. Contudo, por se tratar
de crimes, também não interessa ao conceito de Devedor Contumaz, tampouco aos objetivos deste
trabalho. Entendemos que a reprovação da conduta dos sonegadores fiscais, stricto sensu, deve se
dar em âmbito criminal tributário, com mecanismos de fiscalização cada vez mais eficientes a serem
utilizados pela Receita Federal do Brasil, Polícia Federal e Poder Judiciário por meio de suas compe-
tências criminais.

Superadas tais confrontações, passemos ao conceito de Devedor Tributário Contumaz. Para


Edson Vismona, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (“ETCO”), Devedor Contumaz
é aquela “[…] empresa que declara possuir uma dívida tributária, mas de forma reiterada e preme-
ditada não age para quitá-la”, sem cometer crime, de forma que, ainda, “[…] o não pagamento dos
tributos é repassado para o preço dos produtos, que ficam artificialmente mais baratos” (LEORATTI,
Alexandre, 2020, sem paginação).

Infelizmente ainda não temos uma legislação específica que tenha como propósito definir
as condutas e as sanções para um Devedor Contumaz. Contudo, dois projetos de lei em tramitação
no Congresso contêm dispositivos que podem eliminar esta lacuna legal: o Projeto de Lei do Senado
(“PLS”) nº 284/2017 e o Projeto de Lei (“PL”) nº 1646/2019.

Interessante destacar que o PL nº 1646/2019 conceitua o Devedor Contumaz, logo no artigo


1º, parágrafo único: “Considera-se Devedor Contumaz o contribuinte cujo comportamento fiscal se ca-
racteriza pela inadimplência substancial e reiterada de tributos”. No artigo 2º do mencionado projeto

13 STF. RHC 163334, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-271
DIVULG 12-11-2020 PUBLIC 13-11-2020

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temos os atos que poderão indicar a instauração de um procedimento especial contra o Devedor
Contumaz, de forma que poderá ser instaurado no caso de haver indícios de (i) que a pessoa jurídica
tenha sido constituída para a prática de fraude fiscal estruturada, inclusive em proveito de terceiros;
(ii) que a pessoa jurídica esteja constituída por interpostas pessoas que não sejam os verdadeiros
sócios ou acionistas ou o verdadeiro titular, na hipótese de firma individual; (iii) que a pessoa jurí-
dica participe de organização constituída com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os
mecanismos de cobrança de débitos fiscais; ou mesmo (iv) que a pessoa física, devedora principal ou
corresponsável, deliberadamente oculta bens, receitas ou direitos, com o propósito de não recolher
tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais.

Ainda, no §1º do artigo 2º encontramos o montante de quinze milhões de reais como valor
estipulado para fins de limite mínimo para que a inadimplência substancial e reiterada de tributos
possa justificar a instauração do procedimento administrativo. Cabe destacar que o mesmo dispo-
sitivo estabelece a necessidade de que tal dívida esteja em situação irregular por período igual ou
superior a um ano.

Entendemos a limitação de valor como um aspecto salutar do projeto de lei. Realmente o tra-
tamento diferenciado deve ser reservado para casos específicos que revelem um dano significativo
ao erário.

Ainda, no artigo 3º, visualizamos as restrições legais impostas em caso de caracterização do


Devedor Contumaz, que podem vir a ser (i) o cancelamento do cadastro fiscal do contribuinte pessoa
jurídica ou equivalente e, cumulativamente, (ii) o impedimento de fruição de quaisquer benefícios
fiscais, pelo prazo de dez anos.

Como já destacado, as propostas normativas acima ainda se encontram em discussão na


Câmara dos Deputados. Desta feita, nada de concreto, no âmbito do Direito Tributário Positivo, tem o
condão de conceituar o Devedor Contumaz, sendo tal tarefa, reservada, por ora, para a doutrina.

Em nosso entender, o Devedor Contumaz pode ser considerado como um tertium genus em
comparação aos conceitos de Elisão e Evasão fiscal. Mesmo que suas condutas não sejam considera-
das, a priori, atos de Evasão fiscal ou crimes tributários, também não podem ser considerados como
atos de Elisão fiscal resultantes de um planejamento tributário lícito, ao menos sob o aspecto stricto
sensu, vez que, consideramos que o simples ato de não pagar tributos não pode ser alocado como
um verdadeiro Planejamento Tributário.

Nesta seara é comum que tais devedores mudem de endereço constantemente, insiram
terceiros alheios aos negócios sociais, componham uma cascata de personalidades jurídicas para
dificultar que o Estado consiga atingir o proveito econômico, mas, muitas vezes, nem mesmo tais
condutas são reveladas. Na realidade, em grande parte, o Devedor Contumaz utiliza a ineficiência do
sistema contra o próprio sistema. Tal abordagem será explorada no próximo item.

5. A INEFICIÊNCIA E A MOROSIDADE DOS ENTES FISCAIS COMO ESTÍ-


MULOS AO DEVEDOR CONTUMAZ

Avançando no tema, entendemos que o Devedor Contumaz também é um resultado da inefi-


ciência e morosidade da máquina tributária estatal. De acordo com Becho (BECHO, 2018, p. 253-258),

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alguns dados importantes a respeito da morosidade e ineficiência da máquina estatal podem ser
elencados.

O brocardo “dormientibus non succurrit jus” se aplica de longa data sobre as relações jurídi-
cas. O efeito do tempo sobre o Direito encontra importância em complexas análises que tangenciam
os institutos da decadência e prescrição, bem como, os princípios da duração razoável do processo
e Segurança Jurídica, dentre outros. Com o passar do tempo, as situações mudam, pessoas morrem,
documentos se perdem e bens deixam de existir. Neste aspecto vale relembrar o indicativo da sobre-
vivência das pessoas jurídicas em nossa Sociedade.

Tomando como referência as empresas brasileiras constituídas no ano de 2006, a taxa de


sobrevivência para empresas de até 02 (dois) anos de atividade foi de 73,1%, o que revela uma taxa
de mortalidade empresarial média de quase 27% (SEBRAE, 2011, p. 14). Em outro estudo do Governo
Federal, para o ano de 2009, a cada dez empresas constituídas no ano de 2007, duas já haviam deixa-
do o mercado no ano seguinte e quatro não existiam mais após dois anos, o que indica que 40% das
empresas deixam de existir no brasil após dois anos de atividade (IBGE, 2009, p. 29).

Outros dados, indicam que em determinados ramos, a taxa de mortalidade empresarial che-
ga a até 70% (MATOS, 2011, sem paginação). Já em 2015, o IBGE reportou que 60% das empresas com
pouco mais de 5 anos fecham suas portas (IBGE, 2015, passim). Por enquanto, só no ano de 2020, com
a contribuição da pandemia de COVID-19, 1,3 milhão de empresas encerraram suas atividades no
Brasil (INDIO, 2020, sem paginação).

Em função destes dados, constatamos que, se as execuções fiscais demorarem dois anos
para serem ajuizadas, a chance de as pessoas jurídicas executadas não serem encontradas é, em
torno de 40 a 60%. Contudo, nos indagamos, qual tem sido o prazo utilizado pelos exequentes fiscais
para propor tais ações?

Becho responde a tal questionamento, inclusive com dados extraídos do Relatório de Avalia-
ção da Execução de Programas de Governo nº 21 (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, sem data, sem
paginação), em que se conclui pela “ineficiência do processo de inscrição da DAU (Dívida Ativa da
União), devido à grande intempestividade no envio dos créditos fiscais pela RFB a serem inscritos na
DAU”, concluindo que, em média, o prazo apenas para o ajuizamento das execuções fiscais é muito
superior a dois anos, como pode ser observado na práxis forense, de forma que “[…] a administração
tributária federal está dormindo na busca do crédito público, como também está descumprindo a
legislação” (BECHO, 2018, p. 255).

Desta feita, a questão do Devedor Contumaz envolve, comprovadamente, a ineficiência e a


morosidade da Receita Federal do Brasil em identificar tal devedor, e da Procuradora da Fazenda
Nacional em buscar o Crédito Tributário. Na realidade, estes devedores se valem da morosidade da
administração tributária federal, vez que sabem que até serem descobertos, a chance de passar dez
ou mais anos é muito grande. Desta forma, o Devedor Contumaz é um reflexo da máquina tributária
federal.

Vismona opina ainda que a lentidão do Judiciário também contribui com a atuação do Deve-
dor Contumaz (LEORATTI, 2020, sem paginação), pontuando que a “guerra de liminares” no setor de
combustíveis reflete nas condutas do Devedor Contumaz. De fato, o relatório do CNJ de 2020, conti-

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nua estabelecendo no topo do ranking da taxa de congestionamento do Judiciário as famigeradas
execuções fiscais, com uma taxa de 86,9% (CNJ, 2020, p. 76). Para se ter uma ideia, de cem processos
de execução fiscal que tramitaram no ano de 2019, apenas treze foram baixados.

Não obstante concordarmos que, muitas vezes, o Poder Judiciário é responsável pela insegu-
rança jurídica do sistema, entendemos que, especificadamente, quanto às execuções fiscais, mais um
dado merece ser analisado: em sua grande maioria, a taxa de congestionamento advém de condutas,
mais uma vez, do próprio ente fiscal exequente, que não observa a duração razoável do processo
ou então posterga a tramitação dos executivos fiscais de forma protelatória. Tal fato também já foi
exaustivamente analisado em outros trabalhos, sobretudo no que diz respeito à falta de prazos para
os exequentes se manifestarem nos executivos fiscais (BECHO, 2018, p. 161), o que contribui para a
eternização do crédito tributário.

Outro aspecto que reflete a ineficiência do sistema é o histórico brasileiro de constantemen-


te lançar programas de refinanciamentos e parcelamentos (os famigerados “REFIS”), inclusive com a
recente Transação Tributária, estabelecida pela Lei nº 13.988/20, com descontos em juros e multas
que chegam a 100% nos casos da chamada “transação excepcional”.

Não obstante a válida intenção do legislador, inclusive por aplicar tais normas para as dívi-
das intituladas de “irrecuperáveis ou de difícil recuperação”, fato é que, a constante possibilidade de
descontos e parcelamentos contribui para um espírito de inadimplência, pois constituem incentivos
jurídicos e econômicos para tal comportamento. Como bem colocam Pantoja e Peñaloza (PANTOJA
& PEÑALOZA, 2014, p. 39), o relacionamento entre o contribuinte e a Administração Tributária é ele-
mento a ser considerado na equação da Evasão (e da Contumácia), assim como princípios morais e
a imitação do comportamento social. Assim, conforme já bem estabelecido na literatura econômica
(ORVISKA & HUDSON, 2002, pp. 100-101) a respeito do tema da Evasão Fiscal, a criação de um senso
de dever cívico é um dos elementos que impacta de maneira positiva na percepção da Evasão Fiscal
como moralmente errado, de forma a reduzir a sua ocorrência. O mesmo pode ser aplicado, logica-
mente, à Contumácia.

O Devedor Contumaz sabe que será vantajoso deixar de observar as pesadas obrigações tri-
butárias, pois em um futuro próximo, algum programa de refinanciamento proporcionará descontos
vantajosos. Dessa forma, o Devedor Contumaz se financia por meio do Estado Brasileiro, ainda que
por um período, e mais, às custas da sociedade, que fica sem o abastecimento dos cofres públicos e
a realização dos deveres sociais do Estado.

Em função da constatada ineficiência, a resposta do sistema acaba por prejudicar ainda mais
a questão. Em busca de um “tempo perdido” o Estado acaba por criar novas práticas, conceitos e
manobras jurídicas que nos fazem lembrar do poeta português Bocage, ao afirmar que “[…] a emenda
foi pior que o soneto”14.

14 “A frase tem origem em uma história que envolve o poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765 0 1805). Conta-se que
um aspirante a poeta teria abordando-o, solicitando-lhe uma opinião sobre um soneto que tinha escrito e pedindo-lhe que
fizesse as emendas que fossem necessárias. Bocage teria concordado e, no dia seguinte, o aspirante teria encontrado com o
mestre. Para surpresa do rapaz, Bocage não tinha feito uma única emenda no soneto e nem mesmo se mostrava satisfeito com
a obra. O poema era e fato ruim, tão ruim que não havia emenda possível. Ou então, se fosse emendado, correções seriam
tantas que a emenda ficaria pior que o soneto.” (CRATO, 2009, p. 131)

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Uma vez que a atuação jurídica tributária dos entes fiscais, em função de sua ineficiência e
morosidade, é incapaz de corrigir as arestas do sistema em tempo hábil, parte para alternativas que
acabam por violar a própria Constituição e os princípios que sustentam o sistema jurídico na tenta-
tiva de recuperar um tempo perdido.

Mais uma vez, a título exemplificativo, as constantes tentativas inconstitucionais de configu-


ração da responsabilização tributária, buscam no deslocamento do eixo do sujeito passivo tributário
a solução para o problema e são um retrato desta análise. Uma vez que o contribuinte e os bens já
desapareceram e o Fisco chegou tarde demais, busca na Responsabilidade Tributária uma forma de
solucionar o problema. Sai de cena o contribuinte e entra o responsável tributário como uma espécie
de remédio para todos os males.

Na mesma linha de raciocínio da inconstitucionalidade (BATA, 2018, pp. 280/281) da Súmu-


la 435 do Superior Tribunal de Justiça, por criar uma espécie de responsabilização tributária sem
15

respaldo legal, a aplicação da teoria da actio nata na responsabilização tributária e no redirecio-


namento da execução fiscal para terceiros, que continua pendente de análise pela sistemática dos
repetitivos, por meio do REsp nº 1.201.993, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, afirma que o
prazo de redirecionamento para os responsáveis tributários nasceria a partir do momento em que o
juízo de origem se convenceu da inexistência de patrimônio da pessoa jurídica ou então a partir do
momento em que for constatada a “ocorrência da hipótese legal de responsabilidade tributária”. O
risco de se manter o posicionamento do julgamento acima é que o sistema jurídico estará admitindo
redirecionamentos sem prazo. Na prática, ser sócio de pessoa jurídica pode, em tese, tornar o débito
imprescritível.

Ainda, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) editou a portaria nº 948, em se-
tembro de 2017, estabelecendo o “Procedimento Administrativo de Reconhecimento de Responsabili-
dade” (PARR), e passou a notificar responsáveis, com dívidas já extintas pela ocorrência da prescrição
intercorrente, para que efetuassem o pagamento do tributo. Na pragmática tributária, já visualiza-
mos casos práticos de tentativas de redirecionamento por meio do PARR para execuções fiscais que
estavam sobrestadas há mais de 10 anos!

Entendemos que, além do já mencionado desrespeito à Constituição e aos princípios consti-


tucionais do devido processo legal, contraditório, ampla defesa, legalidade, segurança jurídica e du-
ração razoável do processo, tais exemplos se mostram, na maioria dos casos, ineficazes e refletem de
forma contundente que o tratamento para o Devedor Contumaz é outro que não a responsabilidade
tributária.

Se tais “punições” e responsabilizações não tem se mostrado eficientes, outro aspecto que
sempre deve ser cotejado é o estímulo à conformidade tributária. Assim, podemos nos indagar a
respeito dos incentivos aos contribuintes adimplentes. Neste aspecto, em âmbito federal, se destaca
o bônus de CSLL16, que de forma tímida, “premia” as pessoas jurídicas submetidas ao regime da tribu-
tação com base no lucro real ou presumido, que estejam integralmente em conformidade tributária,

15 STJ. Súmula 435: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio sem
comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.

16 Art. 38 da Lei nº 10.637/02.

104
sem atrasos ou qualquer tipo de cobranças com o fisco federal, com um desconto de irrisórios 1% da
base de cálculo da CSLL, a cada período de 5 anos.

Em sentido semelhante, o fisco Estadual Paulista editou o Programa de Estímulo à Conformi-


dade Tributária (Programa “nos Conformes”), veiculado pela Lei Complementar nº 1.320/18, com seu
respectivo “Sistema de Classificação dos Contribuintes”, introduzido pelo Decreto nº 64.453/2019. Na
palavras de Carvalho (CARVALHO, 2019, p. 1004), tendo como critério o perfil de risco dos contribuin-
tes e como propósito estimular a autorregularização, o programa promete oferecer vantagens futuras
aos contribuintes melhor ranqueados (distribuídos conforme os riscos que oferecem aos cofres pú-
blicos entre as notas A+, A, B, C, D, E e NC).

Não obstante a honrável intenção dos legisladores federal e paulista, entendemos, data ve-
nia, que tais iniciativas têm se mostrado tímidas e ineficientes para alterar a realidade do Devedor
Tributário Contumaz.

Ainda, podemos nos indagar, um outro aspecto sobre este tema: se os programas de denún-
cia dos entes fiscais têm demonstrado algum resultado como forma de dissuadir as condutas dos
devedores contumazes. Inclusive, tais programas de incentivo aos denunciadores, denominados de
whistleblowers17 na doutrina internacional, vem se mostrando eficazes no direito comparado, sobre-
tudo pelo pagamento de prêmios em valores ao delatores18.

No Brasil, não temos notícia a respeito de programas semelhantes, com a intenção de paga-
mento de prêmios para os delatores de esquemas de Sonegação Tributária. Contudo, tanto a Receita
Federal, quanto a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional disponibilizam canais de denúncias contra
fraudes e sonegações. Esta última, disponibiliza uma aba no sistema online do Regularize, com um
canal de denúncias patrimoniais: “Se você está desconfiado que alguma empresa ou pessoa está pra-
ticando fraude para encobrir patrimônio perante a Fazenda Nacional, use este canal para registrar
uma denúncia”19.

Sem adentrar em debates jurídicos ou mesmo morais a respeito destes programas de dela-
tores, entendemos que a esta iniciativa, ainda que relativamente preambular, também não se revela
eficaz no combate ao Devedor Tributário Contumaz.

Assim, devemos nos indagar se outros ramos do direito poderiam socorrer o sistema como
opções dissuasivas para o combate ao Devedor Tributário Contumaz. Surge a potencialidade do Di-
reito Concorrencial no combate ao Devedor Contumaz.

Contudo, não estamos alheios aos desafios em matéria de Direito Tributário para os órgãos
de defesa da concorrência. Nos indagamos se o Direito Concorrencial poderia utilizar de sua norma-
tividade para combater o Devedor Tributário Contumaz com maior celeridade e efetividade do que a

17 A palavra whistleblower do idioma inglês pode ser traduzida como “denunciante ou delator” para o idioma português
e significa, na literalidade, aquele que assopra o apito para denunciar práticas ilícitas

18 Kohn esclarece que, a título de exemplo, o Canadá tem se demonstrado como um dos países, ao lado dos Estados
Unidos, que mais recompensam financeiramente os delatores de fraudes fiscais, com “prêmios” que variam de 5 a 15% dos
tributos efetivamente recuperados. (KOHN, 2017, p. 352)

19 Tal informação pode ser encontrada no portal do Sistema Regularize, da Procuradoria da Fazenda Nacional, disponível
em https://www.regularize.pgfn.gov.br

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visualizada até hoje no Direito Tributário.

Contudo, quais os desafios de tal abordagem? Pensamos que são dois, primeiramente a ca-
racterização legal do Devedor Contumaz, que é questão conceitual interna do própria Direito Con-
correncial, e, em segundo lugar, encontrar meios de combater o Devedor Contumaz e retirá-lo do
mercado para que ele não possa prejudicar seus concorrentes por meio de condutas desleais.

6. O DIREITO CONCORRENCIAL E O PAPEL DO CADE NO COMBATE AO


DEVEDOR CONTUMAZ

A Constituição da República, em seu Título VII, que trata Da Ordem Econômica e Financeira,
estabelece logo no Capítulo I, a respeito dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, que a lei
reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da con-
corrência e ao aumento arbitrário dos lucros (Art. 173, § 4º), sujeitando a pessoa jurídica às punições
compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica. Ainda, estabelece o
art. 174, caput, que o Estado exercerá, dentro dos limites da legalidade, as funções de fiscalização,
incentivo e planejamento enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica.

Como podemos visualizar, o Estado brasileiro se comprometeu a reprimir as condutas que


revelem a dominação dos mercados e o aumento arbitrário dos lucros, inclusive pela eliminação da
Concorrência. O que se busca é estabelecer o Princípio da Livre-concorrência, garantindo a Liberdade
Econômica, competindo ao Estado defender tal ideal. Em outros termos, a Constituição da República
optou pelo “desenvolvimento de uma economia de mercado, na qual, o Estado possui um papel es-
sencial de preservação do espaço concorrencial” (NETO & CASAGRANDE, 2015, item 1.2).

O Princípio da Livre-concorrência é corolário da Livre-iniciativa, de forma que pode ser equi-


parado ao princípio da defesa de mercado. Assim, concorrência é, segundo Figueiredo, “[...] a ação
competitiva desenvolvida por agentes que atuam no mercado de forma livre e racional”, de modo
que a disputa saudável por parcela de mercado é a regra, estando o Estado autorizado a “[…] intervir
de forma a garantir que a competição entre os concorrentes de um mesmo mercado ocorra de forma
justa e sem abusos oligopólio, truste, cartel etc.)” (FIGUEIREDO, 2014, item 2.4.4).

Cabe ao Estado, oferecer proteção ao devido processo competitivo em sua Ordem Econômi-
ca, reprovando condutas que possam gerar ruídos desestabilizadores destes ideais constitucionais.
Em suma, o Estado possui um dever e um papel essencial na preservação do espaço concorrencial.

Diante de tais premissas, natural abordar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência,


e sua composição, inclusive com respeito à competência do Cade, criado pela Lei nº 4.137/1962, e
atualizações legislativas por meio das Lei nº 8.884/94 e Lei nº 12.529/11 (atual Lei de Defesa da Con-
corrência - “LDC”), no que tange à transformação do Conselho e reformulações implementadas com
vistas ao potencial combate ao Devedor Contumaz.

Hoje o Cade possui natureza jurídica de autarquia federal e passou a concentrar as funções
institucionais e decisórias de autoridade da defesa da concorrência. De acordo com o artigo 31 e 32
da Lei nº 12.529/11, são sujeitos destinatários da LDC as pessoas físicas ou jurídicas de direito público
ou privado, e as associações de entidades ou pessoas lato sensu (art. 31 da LDC), sendo responsáveis
pela infração à Ordem Econômica tanto a empresa per se, como também seus dirigentes ou adminis-

106
tradores, solidariamente.

A doutrina explica que “o escopo de aplicação subjetiva da Lei é bastante aberto, incluindo
desde pessoas físicas, até sociedades empresárias ou não”, de forma que a “pretensão do legislador
foi atingir qualquer pessoa ou organização atuante no mercado, cujos atos possam distorcer a con-
corrência” (NETO & CASAGRANDE, 2015, item 2.2).

A priori, nos parece que o conceito de Devedor Tributário Contumaz se encaixa potencial-
mente nos artigos acima, podendo ser considerado como sujeito destinatário das normas de prote-
ção da concorrência.

Obviamente que não defendemos que a pura condição de Devedor Tributário possa acarretar
consequências no âmbito do Direito Concorrencial. Os casos de Devedores Tributários Contumazes
que não revelem uma vulneração à Livre-concorrência não podem ser tratados nesta seara.

Não obstante a carência de legislação que defina o Devedor Tributário Contumaz, sendo que,
por ora, temos apenas os projetos de lei já abordados linhas atrás, entendemos que, caso as condu-
tas do Devedor Tributário Contumaz revelem uma afronta à concorrência justa, é dever do Estado in-
terferir para cessar a ofensa e reequilibrar o mercado. Nestes termos, pouco importa a conceituação
de Devedor Contumaz para o Direito Concorrencial. Como visto, se uma pessoa jurídica ou um pessoa
física cometerem atos contra a livre-concorrência podem ser destinatários das normas que protegem
a Ordem Econômica.

Não obstante nosso posicionamento, temos que, até o momento, o Cade tem arquivado de-
núncias de sonegação fiscal como fator de vantagem competitiva. Conforme Relatório CEDES 181009
(“Concorrência e Tributação”) (CEDES, 2019, pp. 40 e ss.), visualizamos alguns exemplos de casos que
desafiaram o Cade no que concerne a relação do Direito Concorrencial com o Direito Tributário, todos
por sonegação fiscal: Processo Administrativo nº 08012.000208/1999-79, Averiguação Preliminar nº
08700.002374/1999-33, Averiguação Preliminar nº 08012.002528/2001-85, Averiguação Preliminar nº
08012.003648/2005-23, Averiguação Preliminar nº 08012.004657/2006-12 e Processo Administrativo nº
08012.007104/2002-98. Todos os casos foram arquivados pelo Cade.

Quanto ao primeiro caso, consta do relatório do CEDES que, apesar de reconhecer a violação
à concorrência da sonegação por via reflexa pela prática de preços menores decorrente da sone-
gação, o relator Celso Campilongo reconheceu ser este assunto que foge da competência do Cade,
determinando-se, assim, a remessa dos autos ao Ministério Público.

Em suma, nos casos de sonegação fiscal, embora o Cade reconheça que esta pode vir a
causar prejuízo à livre concorrência por meio da prática de preços abaixo do valor de custo, cris-
talizou-se a tese de que a competência para análise de distorções concorrenciais decorrentes de
ilegalidade cuja repressão caiba a outra autoridade foi negada ao Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência. Como pode ser visualizado, os citados casos resultaram em arquivamento, de forma
que nunca houve exame de mérito de casos concretos20 de práticas tributárias potencialmente lesi-
vas à concorrência.

20 O Cade chegou a analisar, em sede da Consulta n. 0038/1999, os efeitos da tributação na concorrência relativamente
à nocividade ou não da guerra fiscal de ICMS, situação na qual se verificou que esta possibilitava o oferecimento de preços
muito reduzidos, o que poderia ter repercussão na livre concorrência

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O posicionamento do Cade nos casos de Devedor Contumaz, no entanto, não se encontra
tão distante daquele relativo à sonegação (CARNEIRO, 2020, pp. 78/79.), uma vez que na Averiguação
Preliminar n. 08012.003648/2005-2321, além de ter reafirmado incompetência para a análise concreta
dos casos de contumácia, o Cade ainda estabeleceu que nem todo caso de venda de mercadorias
abaixo do preço de custo somada a conduta de contumácia implica em danos concorrenciais, visto
que ainda deveriam ser observados os critérios previstos no art. 36, XV, da Lei n. 12.529/2011 e da
Portaria Seae n. 70, de 12 de dezembro de 200222.

Não obstante o reiterado posicionamento do Cade, entendemos que há espaço para uma
mudança de jurisprudência em função da pragmática jurídica, por todos os argumentos já levanta-
dos.
Avançando no tema, voltamos a analisar os artigos da LDC. Em seu artigo 36, a LDC trata das
infrações contra a Ordem Econômica, que podem ser (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudi-
car a livre concorrência ou a livre iniciativa; (ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços; (iii)
aumentar arbitrariamente os lucros; e (iv) exercer de forma abusiva posição dominante.

Mais uma vez, nos parece que os atos dos devedores tributários contumazes, que, por meio
da inobservância das obrigações tributárias, conseguem uma vantagem competitiva, incidindo em
concorrência desleal, também se encaixam no escopo da lei.

Partindo da premissa que o Devedor Tributário Contumaz é um elemento que desestabiliza


tais desideratos normativos, naturalmente passa a ser alvo do arsenal normativo presente no direito
concorrencial, de forma que podemos concluir que também compete ao direito concorrencial com-
bater ou dissuadir as condutas que revelem o Devedor Tributário Contumaz, inclusive, para alento da
sociedade, com métodos mais céleres do que aqueles que temos visto no direito tributário.

Superadas as indagações quanto ao correto enquadramento do Devedor Tributário Contumaz


no âmbito das normas de proteção ao direito concorrencial, nos indagamos a respeito das penas es-
tabelecidas na LDC para os sujeitos que pratiquem atos que caracterizem infração da ordem econô-
mica. A resposta pode ser encontrada nos artigos 37 e 38 da LDC, que estabelecem penas cumulativas
de multa23; proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação por
prazo não inferior a 5 (cinco) anos; e, até mesmo, qualquer outro ato ou providência necessários para
a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

21 Na Averiguação Preliminar n. 08012.003648/2005-23, houve a análise de acusação de prática de conduta anticompetitiva


por (i) não recolhimento contumaz de IPI e (ii) fixação de preços substancialmente inferiores aos dos demais concorrentes. Tal
situação pôde ser classificada também como sonegação, uma vez que tais conceitos não são excludentes

22 De acordo com a legislação citada alhures, deveria ser observado ao menos que a prática se encaixa em alguma das
seguintes situações: “(i) o mercado não pode ser competitivo o bastante, impedindo o domínio pela empresa; (ii) a empresa não
pode deter posição diminuta no mercado; (iii) a existência de barreiras significativas à entrada de novos competidores após
o aumento dos preços é relevante, pois, do contrário, o aumento dos preços levará à entrada de novas empresas no mercado;
(iv) o preço deve ser fixado abaixo do custo variável médio; e (v) a distorção no equilíbrio competitivo não pode ser pontual”.
(CARNEIRO, 2020, pp. 78/79)

23 As penas de multa podem variar entre (i) multa no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do valor
do faturamento bruto da empresa que cometer a infração à ordem econômica; (ii) multa entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil
reais) e R$ 2.000.000.000,00, no caso de demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado; e (iii) multa de 1%
(um por cento) a 20% (vinte por cento) daquela aplicada à empresa no caso (i) para o administrador, direta ou indiretamente
responsável pela infração cometida.

108
Como pode ser verificado, as penalidades aos infratores da Ordem Econômica são pesadas.
Contudo, quanto ao tema das sanções, nos desperta um especial interesse o inciso VII do artigo 38
acima destacado. A doutrina revela que o inciso VII, em especial “dá ao Cade discricionariedade para
desenhar medidas interventivas, inclusive potenciais remédios estruturais (leia-se: determinação de
alienação de ativos) para modificar a dinâmica competitiva do mercado após a constatação de uma
infração” (NETO & CASAGRANDE, 2015, item 4.2).

Poderia o Cade determinar, até mesmo, o fechamento, lacração ou interdição de um esta-


belecimento comercial, em função do reconhecimento que um Devedor Tributário Contumaz está
prejudicando com contundência a Livre-concorrência? Inclusive, tal interpretação estaria em con-
sonância com o artigo 3º do PL 1646/2019, projeto do Devedor Contumaz, que define a interdição do
estabelecimento como uma das sanções possíveis.

Tal aspecto ganha tons ainda mais importantes em função de três razões: a) As súmulas
do Supremo Tribunal Federal a respeito da impossibilidade de interdição de estabelecimentos em
virtude de dívidas fiscais; b) a capacidade ou não de autoexecutoriedade dos atos administrativos;
c) o histórico da jurisprudência do CADE a respeito da possibilidade de determinar a interdição da
atividade dos agentes que prejudiquem a Ordem Econômica.

Quanto ao item “a”, tratamos especificadamente das Súmulas 7024, 32325 e 54726 do Supremo
Tribunal Federal. Os enunciados de tais Súmulas sempre foram cotejados com a análise referente à
proibição de utilização de meios indiretos coercitivos para o pagamento de tributos, as chamadas
sanções políticas na seara tributária. Em repercussão geral o STF já se manifestou, por reiteradas
vezes, que “é inconstitucional a restrição ilegítima ao livre exercício de atividade econômica ou pro-
fissional, quando imposta como meio de cobrança indireta de tributos”27.

Não obstante o contundente posicionamento do STF a respeito do tema, o mesmo Tribunal


já determinou que o protesto das Certidões de Dívida Ativa “constitui mecanismo constitucional e
legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos
aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política”28. Também, entendemos que, por se tratar
de potencial penalidade aplicada pelo Direito Concorrencial, não haveria de se cogitar de tais limita-
ções, vez que estamos, ainda que mediante um diálogo das fontes, na seara de outro ramo do direito,
com objetivos totalmente distintos. Em outras palavras, enquanto no Direito Tributário o objetivo
é a cobrança do crédito tributário, que, diga-se, só possui um meio constitucionalmente aceito – as
execuções fiscais, no Direito Concorrencial se busca a eliminação dos sujeitos que se utilizam de uma
vantagem competitiva ilícita e artificial, mediante a configuração da concorrência desleal.

24 Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 70: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para
cobrança de tributo”.

25 Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 323: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para
pagamento de tributos”.

26 Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 547: “ Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira
estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

27 Supremo Tribunal Federal. Tese definida no ARE 914.045 RG, rel. min. Edson Fachin, P, j. 15-10-2015, DJE 32 de 19-11-2015,
Tema 856.

28 Supremo Tribunal Federal. Tese definida na ADI 5.135, rel. min. Roberto Barroso, P, j. 9-11-2016, DJE 22 de 7-2-2018.

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Quanto ao item “b”, é fértil o debate no âmbito do Direito Administrativo, a respeito de um
dos atributos do ato administrativo, qual seja, a autoexecutoriedade, que, basicamente, permite que
o ato seja executado sem a necessidade da Administração se socorrer do Poder Judiciário para tan-
to. Sem dúvida, a autoexecutoriedade não é atributo inerente a todo e qualquer ato administrativo.
Podemos citar como exemplos as multas de trânsito aplicadas e não pagas pelo administrado, ou,
inclusive, a cobrança da dívida tributária, que, diga-se, também se origina do ato administrativo de
inscrição da dívida ativa. Como tais medidas administrativas de cobrança implicam na constrição do
patrimônio do particular, sempre deve a Administração se valer das vias judicias (mediante autoriza-
ção judicial ou procedimento judicial para tanto).

Contudo, em determinadas ocasiões, a ato administrativo tem tal atributo de forma plena.
Celso Antônio Bandeira de Mello explica que a executoriedade do ato administrativo existe nas hi-
póteses nas quais a (i) lei prevê expressamente ou nas quais (ii) a executoriedade for condição in-
dispensável à eficaz garantia do interesse público confiado pela lei à Administração (MELLO, 2013, p.
426).
Podemos exemplificar casos corriqueiros de autoexecutoriedade, como nos casos de apre-
ensão de alimentos impróprios para o consumo, de interdição de estabelecimento que cometa ativi-
dades ilegais, obras clandestinas, etc. Vale lembrar que, independentemente da autoexecutoriedade,
tais atos sempre poderão ser controlados, a posteriori, pelo Poder Judiciário.

Com relação ao Cade, nos parece que suas determinações têm a natureza jurídica de atos
administrativos autoexecutáveis, oriundos, inclusive de processo administrativo com a garantia dos
princípios do contraditório e ampla defesa, como pode ser, inclusive, visualizado na Jurisprudência
dos Tribunais.29

O Cade não pode nem deve ser incumbido da cobrança de tributos. No entanto, uma vez
transitada em julgado ou não contestada a decisão favorável à autoridade tributante, e verificada
concretamente a presença de prova de que o Devedor Contumaz conseguiu com a medida praticar
preços mais baixos do que a concorrência ou aumentar arbitrariamente seus lucros, a questão muda
de figura (GRINBERG, 2019, sem paginação).

Desta feita, nos parece que o Cade poderia, por sua competência legal, determinar sanções,
com o caráter de autoexecutoriedade, para punir e dissuadir o Devedor Tributário Contumaz, assim
como o faz a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que por meio da Lei
nº 9.847/99, detém o poder de lacrar postos de gasolina que vendam combustíveis adulterados ou
que cometam outras irregularidades.

Finalmente, quanto ao item “c”, não encontramos a possibilidade de interdição de estabe-


lecimento como uma punição já fixada pelo Cade. Inclusive, a doutrina ressalta que “o instrumento
de sanção mais utilizado pelo Cade é a multa, que é uma forma efetiva de criar desutilidade para o

29 EMENTA: ADMINISTRATIVO. DECISÃO DO CADE. SUSPENSÃO. DESCABIMENTO. 1. A auto-executoriedade é inerente às


decisões do CADE. Este tem o poder de, pela sua própria força e sem necessidade de prévia manifestação judicial, executar seus
atos administrativos. Trata-se de prerrogativa fundamental para a defesa do interesse público e preservação da autoridade do
Estado. 2. Não cabe suspender, em caráter provisório, antes da instrução probatória mais aprofundada, decisão administrativa
proferida com observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa por órgão administrativo de reconhecida
idoneidade. (Tribunal Regional Federal da 4ª Região TRF-4 - AGRAVO DE INSTRUMENTO : AG 2048 RS 2008.04.00.002048-4).

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infrator” (BOSON, 2016).

Contudo, ao analisarmos um processo administrativo do Cade, que teve por objeto um cartel
no mercado de cimento e concreto no Brasil, envolvendo as empresas Votorantim, Itabira, Interce-
ment, Holcim, Cimpor e Itambé encontramos alternativas interessantes de sanções administrativas
já impostas pelo Cade.

Trata-se do processo administrativo nº 08012.011142/2006-79, que, inclusive resultou em um


recorde de valores em multas aplicadas pelo Cade, com cifras que atingiram mais de R$ 1,5 bilhões
de reais. Na fixação das sanções pudemos visualizar alternativas interessantes: dentre elas destaca-
mos a imposição de “Alienação de 20% dos ativos de prestação de serviços de concretagem, os quais
deverão ser vendidos em mercados relevantes em que haja mais de uma concreteira de propriedade
ou de posse da empresa representada” e “Apenas para a Votorantim, venda de determinados ativos
de cimento”.

Em suma, pensamos que, mediante as investigações e exposições acima elencadas, o Deve-


dor Tributário Contumaz é um elemento de grande interesse do Direito Concorrencial. Ainda que a
interdição de estabelecimento comercial não seja uma sanção historicamente fixada pelo Cade, nos
parece que a LDC permite tal sanção, mediante a interpretação do artigo 8, inciso VII.

7. CONCLUSÃO

Diante de toda a exposição, tem-se como certo que a interpretação sistemática do Direito
visualiza o ordenamento como uno. As interações entre os diversos ramos do direito são corriqueiras
e devem ser abarcadas pelos operadores do sistema.

Com esta inspiração, procuramos delimitar o conceito de Devedor Tributário Contumaz, para
diferenciá-lo dos conceitos de Elisão e Evasão fiscal na seara tributária. O Devedor Contumaz, na
seara tributária, é aquele sujeito que se esquiva das obrigações tributárias, declarando seus débitos
e, de forma reiterada e premeditada age para não quitá-los.

Pudemos visualizar que a morosidade e a ineficiência dos entes fiscais, aliadas a outros
fatores, como a constante existência de programas de refinanciamento da dívida tributária e a falta
de estímulos e vantagens concretas para os sujeitos que se enquadram na completa conformidade
tributária, contribui para o surgimento dos devedores contumazes em nosso sistema jurídico.

Diante da ineficiência no combate ao Devedor Contumaz, o direito tributário busca, de forma


equivocada, superar o problema com a utilização de mecanismos inconstitucionais e ilegais, sobre-
tudo no que diz respeito aos responsáveis tributários. Não obstante as tentativas dos entes fiscais,
tais mecanismos têm se mostrado ineficientes.

Uma vez que os devedores contumazes, ao não honrarem com suas obrigações tributárias,
adquirem uma importante e artificial vantagem competitiva, configurando inclusive concorrência
desleal e nítida violação à livre-concorrência, em detrimento dos pares que observam as obrigações
tributárias, entendemos que se trata de elemento de crucial interesse ao Direito Concorrencial.

Neste aspecto, pensamos que o Cade é ente competente para fixar as sanções determinadas
em lei, para dissuadir e eliminar tais violações à Ordem Econômica, ainda que, por meio da criação

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de novas figuras, tais como a sugerida interdição de estabelecimentos. Acreditamos que o Direito
Concorrencial possa ter a capacidade de, por um meio mais célere e eficaz do que aquele visualizado
até hoje no âmbito tributário, combater o Devedor Tributário Contumaz.

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