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Número 12 – novembro/dezembro/janeiro - 2008 – Salvador – Bahia – Brasil - ISSN 1981-1861 -

ESTATUTO DO CONTRIBUINTE: CONTEÚDO E ALCANCE

Humberto Ávila
Advogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica
(PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul
(AJURIS). Doutor em Direito (Doctor juris) e Certificado de Estudos em
Metodologia da Ciência do Direito pela Universidade de Munique, Alemanha.
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito e Especialista em Finanças pela
Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS).

SUMÁRIO: I. FUNDAMENTOS DA CONSTITUIÇÃO DO “ESTATUTO DO CONTRIBUINTE” - A.


Redefinição da função da Ciência do Direito - 1. Distinção entre norma e dispositivo e entre sistema
interno e externo - 2. Distinção entre descrição e construção - B. Redefinição do “Estatuto do
Contribuinte” - 1. Elementos - a) Normas - b) Finalidades - 2. Limites formais - a) Limites
procedimentais - b) Limites de eficácia - 3. Limites materiais - a) Normas de competência - (1)
Normas excludentes de competência - (2) Normas atributivas de competência - b) Princípios
materiais - 4. Deveres de medida - a) Princípio da igualdade - b) Postulado da proporcionalidade - 5.
Quadro ilustrativo dos limites fundamentais à tributação - II. EFICÁCIA DO “ESTATUTO DO
CONTRIBUINTE” - A. Crítica à postura restritiva da jurisprudência - B. Redefinição da função da
jurisprudência - Conclusão.

INTRODUÇÃO

A expressão “Estatuto do Contribuinte” denota um conjunto de normas


que regula a relação entre o contribuinte e o ente tributante.1 Sua utilização
possui conotação tanto garantista dos direitos dos contribuintes quanto limitativa
do poder de tributar.
1
Em sentido análogo: CARVALHO, Paulo de Barros. Estatuto do Contribuinte, direitos, garantias
individuais em matéria tributária e limitações constitucionais nas relações entre fisco e
contribuinte. Revista de Direito Tributário (7/8):138, 1979; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de
Direito Constitucional Tributário. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 291 e ss; TORRES,
Ricardo Lobo. Os Direitos Humanos e a Tributação. In: Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário, V. 3 Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 27 ss.; COÊLHO, Sacha Calmon
Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 37 e ss.
Causa espanto examinar o “Estatuto do Contribuinte” no direito brasileiro.
É que não se tarda a perceber um descompasso entre aquilo que é previsto pelo
direito positivo e aquilo que é descrito pela doutrina e concretizado pela
jurisprudência.

De um lado, a análise da Constituição Brasileira de 1988 revela uma


enormidade de dispositivos que servem como pontos de partida exatamente para
garantir os direitos dos contribuintes e para limitar o poder de tributar: princípios,
direitos e garantias fundamentais, princípios tributários, definição de espécies
tributárias e extensas regras de competência. De outro, o exame da doutrina põe
a descoberto tanto a circunscrição de sua atividade, com notáveis exceções, à
mera descrição do ordenamento jurídico, quanto sua dificuldade em constituir o
conteúdo semântico daquelas normas jurídicas por ela própria qualificadas de
fundamentais - os princípios jurídicos; e o estudo da jurisprudência manifesta a
ineficácia dos direitos fundamentais enquanto normas protetoras dos direitos dos
contribuintes e dos princípios fundamentais como normas limitadoras do poder de
tributar.

Por que existe essa disparidade? Este estudo responde a essa questão,
apresentando uma alternativa interpretativa que, unificando pontos de vista
analíticos e dialético-hermenêuticos, expõe os obstáculos que ainda impedem a
construção integral do “Estatuto do Contribuinte” no direito brasileiro.

I. FUNDAMENTOS DA CONSTITUIÇÃO DO “ESTATUTO DO CONTRIBUINTE”

A. REDEFINIÇÃO DA FUNÇÃO DA CIÊNCIA DO DIREITO

1. DISTINÇÃO ENTRE NORMA E DISPOSITIVO E SISTEMA INTERNO E EXTERNO

Os primeiros obstáculos à delimitação integral do “Estatuto do


Contribuinte” residem na indevida equiparação entre norma e dispositivo e entre
sistema interno e sistema externo.

É preciso distinguir a norma do dispositivo. Norma não é o texto nem o


conjunto deles. Norma é o conteúdo de sentido construído a partir da
interpretação sistemática de textos normativos.2 Os dispositivos consistem no
objeto da interpretação; as normas, no seu resultado. É equivocada, pois, a
afirmação de que a Constituição de 1988 possui uma inigualável quantidade de
normas que garantem os direitos dos contribuintes e limitam o poder de tributar. A
Constituição de 1988 nada mais possui do que um maior número de pontos de
partida para a construção dos direitos dos contribuintes e das limitações ao poder
de tributar. É preciso não confundir o ponto de partida com o de chegada.3

2
GUASTINI, Riccardo. Teoria e dogmatica delle fonti. Milano: Giuffrè, 1998. p. 16.
3
PAWLOWSKY, Hans-Martin. Methodenlehre für Juristen. 3. ed. Heidelberg: Müller, 1999. p.
120.

2
É também necessário estremar o sistema externo do interno. O sistema
tributário não se resume ao conjunto de dispositivos que dizem respeito expressa
e imediatamente à matéria tributária. O critério ratione materiae apenas focaliza o
elemento exterior do sistema jurídico, deixando intacta a multiplicidade e a
mobilidade das relações sintáticas e semânticas a serem construídas pelo
intérprete.4 A análise do elemento exterior conduz até o sistema tributário externo.
Em vez da matéria, é preciso construir uma sistematização do conteúdo de
sentido dos dispositivos que protegem expressa ou implicitamente, imediata ou
mediatamente os bens jurídicos - situações, objetos ou estados juridicamente
protegidos - restringidos pela concretização da relação obrigacional tributária. Só
a compreensão do direito tributário por meio do exame unificador das normas que
resguardam os direitos de liberdade e de propriedade permite a elaboração do
sistema tributário interno.5 É desacertada, pois, afirmação de que o sistema
tributário se resume aos artigos 145 a 162 da Constituição de 1988. Esses
dispositivos nada mais são do que uma parte dos pontos de partida para a
concepção do sistema tributário. O próprio texto constitucional já fornece uma
pista ao prescrever que o sistema tributário também inclui outras garantias
asseguradas ao contribuinte (art. 150, caput), quer aquelas expressamente
disciplinadas, quer aquelas decorrentes dos princípios fundamentais adotados
pela Constituição (art. 5º, § 2º). É necessário não baralhar o início com o fim.

Assim analisada a questão, determinadas características atribuídas ao


sistema tributário brasileiro - rigidez e exaustividade - merecem maior atenção. O
sistema tributário é qualificado como rígido, porque as principais normas da
tributação, estando previstas na própria Constituição, ou não podem ser
modificadas, se consideradas como garantias fundamentais (art. 60, § 4º), ou
exigem um procedimento parlamentar específico, mais complexo do que o
previsto para a alteração da legislação ordinária; e como exaustivo, porque a
própria Constituição esgota todas as questões relativas aos princípios tributários e
às regras de competência.6 O sistema tributário até pode ser qualificado de rígido,
se e enquanto a rigidez indicar tão-só o procedimento mais complexo exigido para
sua alteração; de exaustivo, desde que isso demonstre que o intérprete deve
construir todas as soluções a partir do sistema constitucional externo. Entender
rigidez como imobilidade das relações internormativas e exaustividade como pré-
determinação absoluta do sentido normativo pelos dispositivos constitucionais
será misturar, uma vez mais, o termo inicial com o final.

4
CARVALHO, Paulo. Teoria da Norma Tributária. São Paulo: LAEL, 1974. p. 74; idem: Estatuto
do Contribuinte, direitos, garantias individuais em matéria tributária e limitações constitucionais
nas relações entre fisco e contribuinte. Revista de Direito Tributário (7/8):137, 1979; idem. Direito
Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 77.
5
Sobre sistema jurídico interno em geral: CANARIS, Claus-Wilhelm. Systemdenken und
Systembegriff in der Jurisprudenz. 2. ed. Berlin: Duncker und Humblot, 1982. p. 19, 35 e 40;
BYDLINSKI, Franz. System und Prinzipien des Privatrechts. Wien, New York: Springer, 1996. p.
16. Sobre sistema tributário interno: TIPKE, Klaus. Die Steuerrechtsordnung. Köln: Otto Schmidt.
1993. p. 105 ss. E sobre o postulado da unidade: ALEXY, Robert. Juristische Interpretation. In:
Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995. p. 76.
6
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: RT, 1968. p. 7, 20 e 36.
Sobre a proibição de modificação de garantias: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 937-7,
Tribunal Pleno, Relator Ministro Sydney Sanches, DJ 18.03.93.

3
2. DISTINÇÃO ENTRE DESCRIÇÃO E CONSTRUÇÃO

Em face das considerações anteriores, resulta absolutamente claro que o


“Estatuto do Contribuinte” não é predizível pelo texto da Constituição de 1988. Ao
contrário: ele deve ser coerentemente construído. Isso porque, sendo o direito
vertido em linguagem, o trabalho do intérprete não se caracteriza como
reconstrução de algo anterior, mas sempre como constituição de algo novo.7

É inexato, pois, definir a interpretação como mera descrição do


significado, quer no sentido de comunicação de uma informação ou conhecimento
a respeito de um texto, quer no sentido da intenção do seu autor. De um lado, a
compreensão da significação como o conteúdo conceptual de um texto pressupõe
a existência de uma significação intrínseca que independa do uso ou da
interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado
às palavras, mas algo que depende precisamente do uso e da interpretação,
como comprovam a modificação de sentido das palavras no tempo e no espaço e
as controvérsias doutrinárias a respeito do sentido mais adequado de um texto
legal. De outro lado, a concepção da significação como a intenção do legislador
pressupõe a existência de um autor determinado e de uma vontade unívoca
fundadora do texto. Isso, no entanto, também não sucede, pois o processo
legislativo qualifica-se justamente como um processo complexo que não conhece
nem um autor individual nem uma vontade específica. Sendo assim, a
interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado
previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui uma significação
de um texto.8 A questão nuclear disso tudo está no fato de que o intérprete não
atribui “o” significado correto aos termos legais; ele tão-só constrói exemplos de
uso da linguagem ou versões de significado, já que a linguagem nunca é algo pré-
dado, mas algo que se concretiza no uso ou, melhor, como uso.9 As fontes do
direito são possibilidades dele, que devem ser completadas por algo que se situa
fora delas.10

Do exposto resultam duas conclusões. Em primeiro lugar, a função da


doutrina e da jurisprudência não consiste em meramente descrever o significado
do “Estatuto do Contribuinte”, mas em continuamente constituí-lo. Equipará-lo aos
dispositivos contidos na Constituição de 1988 será, novamente, igualar o objeto
com o resultado da interpretação. Em segundo lugar, não se podendo equiparar
as fontes do direito com as normas que a partir delas podem ser construídas,

7
MÜLLER, Friedrich. Warum Rechtslinguistik? Gemeinsame Probleme von Sprachwissenschaft
und Rechtstheorie. In: Rechtstheorie und Rechtsdogmatik im Austausch. Gedächtnisschrift für
Bernd Jeand’Heur. Org. Wilfried Erbguth, Friedrich Müller e Volker Neumann. Berlin: Duncker
und Humblot, 1999. p. 30 e 31.
8
GUASTINI, Riccardo. Interprétation et description de normes. In: Interpretation et Droit. Org.
Paul Amselek. Bruxelles: Bruylant, 1995. 97 e 98.
9
MÜLLER, Friedrich. Op. cit. p. 40.
10
De maneira análoga: KAUFMANN, Arthur. Die ‘ipsa res iusta’. In: Beiträge zur Juristischen
Hermeneutik. Köln: Carl Heymans, 1993. p. 61.

4
jamais se pode contar com a realização do “Estatuto do Contribuinte” porque ele
está expressamente previsto em uma fonte normativa, seja ela qual for.11

O exposto atesta por que a doutrina e a jurisprudência, ao examinarem o


tema relativo às limitações ao poder de tributar, circunscrevem-se, em regra, à
investigação do seu sentido negativo: proibição de instituição de tributos por meio
de instrumentos diversos da lei; proibição de eficácia antes do início do exercício
seguinte ao da edição da lei, etc. Ora, restringindo-se a interpretação à descrição
de algo previamente constituído, não havia outro caminho senão fixar-se ao
elemento exterior da Constituição por meio da análise das normas expressas
constantes do “Sistema Tributário”, deixando de lado a construção da significação
positiva das limitações mediante investigação dos princípios enquanto normas
que instituem finalidades a serem atingidas (dignidade humana, liberdade,
propriedade) e dos princípios e postulados que determinam como os encargos
tributários deverão ser divididos (princípio da igualdade) ou qual estrutura deverá
ser observada no processo de aplicação (postulado ou princípio hermenêutico da
proporcionalidade).

B. REDEFINIÇÃO DO “ESTATUTO DO CONTRIBUINTE”

1. ELEMENTOS

A) NORMAS

As normas que compõem o ordenamento jurídico não são uniformes na


sua função limitativa do poder de tributar. Com efeito, enquanto algumas normas
estabelecem “como” e “quando” os tributos podem ser instituídos ou cobrados,
outras delimitam “o quê” pode ser objeto de tributação. Os limites decorrentes de
normas que prescrevem o procedimento e os limites de eficácia das normas que
instituem tributos podem ser didaticamente agrupados sob a rubrica de limites
formais (relativos à forma da tributação); os que prescrevem quais os fatos e
situações que podem ser objeto de tributação, bem como os seus requisitos,
podem ser reunidos na categoria de limites materiais (referentes ao conteúdo da
tributação).

As normas que formam o ordenamento jurídico também não são


uniformes em sua estrutura. De fato, há normas que determinam a realização de
fins, sem uma hipótese de incidência capaz de prescrever qual o comportamento
adequado a essa realização (e.g. segurança jurídica, democracia); há normas
que, ainda que ligadas à realização de fins, prescrevem, permitem ou proíbem
determinado comportamento ou prevêem o conteúdo que outras normas devem
possuir, instituindo as conseqüências que advém do seu descumprimento (e.g.
normas atributivas de competência). As normas imediatamente finalísticas podem
ser qualificadas de princípios; as mediatamente finalísticas, de regras. O

11
FERREIRO LAPATZA, Jose Juan. El estatuto del contribuyente y las facultades normativas de
la administración. In: Justiça Tributária. 1º Congresso Nacional de direito Tributário - IBET. São
Paulo: Max Limonad, 1998. p. 319.

5
importante é que enquanto a relação entre os princípios caracteriza-se como um
entrecruzamento, e soluciona-se mediante a atribuição de uma dimensão de peso
a cada um dos princípios envolvidos, com a conseqüente criação de regras de
prevalência diante do caso concreto, a relação entre as regras qualifica-se como
uma antinomia, e resolve-se por meio da abertura de exceções à regra ou com a
declaração de invalidade de uma delas.12

Os princípios, justamente por causa do seu elevado grau de abstração e


de indeterminação, dependem mais intensamente de atos institucionais de
aplicação para a determinação do seu sentido. E porque estabelecem fins como
devidos, podem-se entrecruzar com outros princípios no processo de aplicação.
Esse imbricamento só pode ser solucionado mediante uma ponderação que
atribua um grau de importância a cada um dos princípios envolvidos.

Ora, o “Estatuto do Contribuinte” só realiza sua função de garantir direitos


dos contribuintes e de limitar o poder de tributar se juridicizar tanto a forma quanto
o conteúdo da tributação. A explicação coerente do significado normativo desses
limites pressupõe, em nome do postulado da unidade da Constituição, a
aproximação semântica das regras e dos princípios, de tal sorte que o sentido de
cada um deles incorpore o significado dos outros que lhe são axiologicamente
sobrejacentes. Será desacertada a interpretação das regras desvinculada dos
princípios que com elas mantêm conexão semântica.

B) FINALIDADES

A tributação busca atingir determinadas finalidades. Essas finalidades


podem ser analisadas sob um enfoque extrajurídico, quando examinar as causas
que levaram o legislador a conformar a tributação dessa ou daquela forma, ou sob
um enfoque jurídico, na hipótese de investigar o fundamento de validade utilizado
para justificar a tributação ou a distinção entre os contribuintes e a finalidade que
a distinção visa a alcançar. É que, sendo diferente a justificação e a finalidade da
distinção, serão diversos os bens jurídicos, afetos aos sujeitos, que serão
restringidos e, por implicação, também diferentes as regras e os princípios que os
irão resguardar.

É desacertada, pois, a posição rígida no sentido de que a finalidade da


tributação é, em todo o caso, juridicamente irrelevante. Sê-lo-á enquanto ela for
utilizada como elemento para uma mera classificação que venha amalgamar
critérios econômicos e jurídicos; deixará de sê-lo, porém, quando ela servir de
fundamento para a instituição de tributos e para a diferenciação entre os
contribuintes. Isso porque será a finalidade mesma da tributação que irá definir os
seus limites: quando a tributação tiver finalidade eminentemente fiscal e, por isso,
visar a repartir os encargos tributários, o critério da repartição será a própria

12
Sobre o assunto: ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a
redefinição do dever de proporcionalidade. RDA, 215:151-179. 1999. Ver também: LÜBBE-
WOLFF, Gertrude. Die Grundrechte als Eingriffsabwehrrechte: Struktur und Reichweite der
Eingriffsdogmatik im Bereich staatlicher Leistungen. Baden-Baden: Nomos, 1988. S. 167.

6
capacidade de contribuir para esse custeio; já quando tiver finalidade
principalmente extrafiscal e, por isso, visar a atingir um fim concreto, econômico
ou social, o critério da repartição não mais será a capacidade de contribuir, mas a
adequação, a necessidade e a correspondência do meio relativamente àquela
finalidade. O desconhecimento dessa distinção tem deixado sem controle os
contornos da instituição de impostos ligados ao comércio exterior, a instituição
legislativa de responsáveis tributários e mesmo a criação de mecanismos
variados para facilitar a fiscalização de tributos.

Não menos desarrazoada, contudo, é a postura rija no sentido de que a


finalidade da tributação sempre serve de critério jurídico de controle da tributação
e que a ponderação entre finalidades conflitantes é sempre igualmente
estruturada. Como será visto adiante, não é qualquer finalidade que é capaz de
estruturar uma relação jurídica, mas somente uma finalidade concretamente
verificável que baste para consolidar uma relação meio-fim juridicamente
controlável. O financiamento de gastos públicos gerais ou específicos com a
seguridade social, sobre serem vagos e ambíguos, não servem para estruturar a
aplicação da proporcionalidade: serão sempre adequados e necessários para
financiar os gastos públicos.

Aqui, importa registrar que o “Estatuto do Contribuinte” só logrará garantir


os direitos dos contribuintes e limitar o poder de tributar se prescrever “como” e
“quando” podem ser instituídos tributos e “o quê” pode ser objeto de tributação.
Nesse sentido, a construção do “Estatuto do Contribuinte” pressupõe a
sistematização das normas que incidem, necessariamente, na concretização da
relação obrigacional tributária: primeiro, das normas, princípios e regras, que
estabelecem como devem ser instituídos os tributos, adiante definidas como
limites formais; segundo, das normas, princípios e regras, que delimitam o
conteúdo da tributação, a seguir designadas de limites materiais; por fim, das
normas e postulados que estabelecem como devem ser repartidos aqueles bens
protegidos ou realizadas aquelas finalidades devidas, logo chamados de deveres
de medida, como os que instituem os deveres de igualdade e de
proporcionalidade.

2. LIMITES FORMAIS

A) LIMITES PROCEDIMENTAIS

A Constituição de 1988 estabelece o princípio democrático como sendo


fundamental (art. 1º). Além disso, institui a legalidade como sendo garantia
fundamental (art. 5º, inc. II). Mais ainda: no “Sistema Tributário Nacional”, a
Constituição eleva a legalidade à limitação específica ao poder de tributar (art.
150, inc. I): só a lei pode instituir ou aumentar tributos. Ao fazê-lo, institui o
procedimento parlamentar de discussão e votação como essencial a instituição de
tributos.13 A consensualidade passa a ser elemento de validade dos tributos.

13
ÁVILA, Humberto Bergmann. Medida Provisória na Constituição de 1988. Porto Alegre: Sergio
Fabris, 1997. p. 56 ss.

7
A jurisprudência, no entanto, tem — equivocadamente — analisado a
legalidade como regra semanticamente autônoma relativamente ao princípio
democrático. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal aceita não só a instituição
de tributos mediante medida provisória, como permite a reedição sucessiva delas
e a convalidação de efeitos das anteriores pela última.14

B) LIMITES DE EFICÁCIA

Constituição de 1988 estabelece o princípio do Estado de Direito como


sendo fundamental (art. 1º). Dentre seus corolários, está o princípio da segurança
jurídica: a previsibilidade e a certeza do direito devem conformar a tributação.
Além disso, arrola o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada
como direitos fundamentais (art. 5º, XXXVI). Ainda: no “Sistema Tributário
Nacional”, a Constituição eleva a irretroatividade a limitação específica ao poder
de tributar (art. 150, inc. III, a): é vedado cobrar tributos em relação a fatos
ocorridos antes do início da vigência da lei que os instituiu ou aumentou. A
Constituição vai ainda mais longe: constitui a anterioridade à limitação específica
ao poder de tributar: os impostos só podem ser cobrados se instituídos até o final
do exercício anterior (art. 150, inc. III, b); as contribuições sociais, se instituídas
90 dias antes (art. 195, § 7º). O decisivo é que essas limitações instituem a
previsibilidade da atuação estatal como essencial à instituição de tributos.

De novo, a jurisprudência tem analisado — desacertadamente — a


irretroatividade e a anterioridade como regras semanticamente independentes do
princípio do Estado de Direito e da segurança jurídica que lhe é inerente. De fato,
o Supremo Tribunal Federal permite, por exemplo, a aplicação de novas alíquotas
no curso do próprio exercício, relativamente a lucros obtidos antes da modificação
legislativa.15

3. LIMITES MATERIAIS

A) NORMAS DE COMPETÊNCIA

(1) NORMAS EXCLUDENTES DE COMPETÊNCIA

A Constituição Federal atribui à União, aos Estados e aos Municípios o


poder de tributar determinados fatos ou situações especificados nos artigos 153 a
156 e em outros dispositivos esparsos. A parcela de poder atribuída a cada
Estado-Membro para instituir tributos denomina-se competência tributária. A
competência tributária, no entanto, é resultado da análise conjunta de duas
espécies de normas jurídicas: de um lado, das normas que atribuem poder ao
Estado para instituir tributos por meio da especificação dos fatos e situações que
torna suscetíveis de tributação (normas atributivas de competência); de outro, das
normas que subtraem poder do Estado sobre determinados fatos e situações que

14
Exemplo: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.417, Relator Ministro Octávio Galloti, DJ
24.05.96, p. 17412.
15
Exemplo: Recurso Extraordinário nº 197790-6, Relator Ministro Ilmar Galvão. DJ 19.02.97.

8
tornam insuscetíveis de tributação (normas excludentes de competência). A
parcela de poder do Estado para instituir tributos é resultado do poder que lhe
atribui menos o poder que lhe é subtraído, nos termos da Constituição.

A Constituição de 1988 atribui competência à União, aos Estados e aos


Municípios para instituir impostos sobre situações e fatos que discrimina. A um só
tempo, porém, estabelece, no capítulo “Das Limitações do Poder de Tributar”, a
vedação de instituição de impostos sobre determinadas situações, bens ou
pessoas (entidades federativas, templos de qualquer culto, partidos políticos,
sindicatos, instituições de educação e assistência social, livros e periódicos). À
exclusão de parcela do poder de tributar por norma constitucional dá-se o nome
de imunidade.

O que importa é que os fatos, situações e pessoas excluídos do poder de


tributar do Estado correspondem a fatos, situações ou pessoas vinculadas a
finalidades que devem ser estimuladas pelo próprio Estado: o dever de o Estado
garantir a estrutura federativa implica excluir de cada ente federado o poder de
tributar o patrimônio, renda ou serviços dos outros (art. 150, inc. VI, a); a
obrigação de o Estado estimular e garantir a liberdade religiosa e de culto implica
excluir da tributação os templos de qualquer culto (art. 150, inc. VI, b); o dever de
o Estado garantir o processo democrático, erradicar a pobreza e promover o
desenvolvimento social implica excluir da tributação o patrimônio, renda ou
serviços dos partidos políticos, das entidades sindicais dos trabalhadores, das
instituições de assistência social sem fins lucrativos (art. 150, inc. VI, c); a tarefa
de o Estado estimular a difusão de idéias implica a proibição de tributar os livros e
periódicos (art. 150, inc. VI, d).

Isso equivale a dizer que as causas justificativas das imunidades


consistem em facilitar, por meio da exclusão de encargos tributários, a
consecução de finalidades que devem ser perseguidas pelo próprio Estado. Em
face disso, as imunidades — como, aliás, quaisquer normas — devem ser
interpretadas teleologicamente.16

(2) NORMAS ATRIBUTIVAS DE COMPETÊNCIA

Como dito, a Constituição Federal atribui à União, aos Estados e aos


Municípios o poder de tributar determinados fatos ou situações que especifica. Ao
fazê-lo, delimita as hipóteses de incidência dos tributos. Essa demarcação do
poder de tributar deve ser construída, sobretudo, de dois modos.

Em primeiro lugar, a delimitação do poder de tributar deve ser elaborada


por meio da análise das regras de competência. Embora não haja
predeterminação absoluta — não propriamente por causa das normas
constitucionais, mas devido à linguagem ordinária em que são vertidas —, o
intérprete vê-se limitado pelos pontos de partida estabelecidos pelas regras de
competência (arts. 153 a 156). Assim, aliás, o próprio entendimento do Supremo
Tribunal Federal: “...o conteúdo político de uma Constituição não pode levar ao

16
Exemplo: Recurso Extraordinário nº 104563, Relator Ministro Oscar Corrêa, DJ 05.09.86p.
15836.

9
desprezo do sentido vernacular das palavras utilizadas pelo legislador
constituinte, quer ao técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito”
(...). “Realmente a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes
conforme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o
objetivo da própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os
parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos,
especialmente os de contornos jurídicos. Logo, não merece agasalho o ato de
dizer-se da colocação, em plano secundário, dos conceitos consagrados,
buscando-se homenagear, sem limites técnicos, o sentido político das normas
constitucionais”.17

O importante é que o maior detalhamento das normas de competência


limita mais amplamente a atividade legislativa, que não poderá transbordar
daquelas estreitas linhas demarcatórias. Essa maior especificação das hipóteses
de incidência dos tributos não as tornam alheias ao processo de delimitação
gradual do seu significado semântico pela doutrina e pela jurisprudência, apenas
restringe, mais intensamente, a liberdade de atuação do legislador ordinário.

Em segundo lugar, a demarcação do poder de tributar deve ser


concebida mediante a análise dos princípios fundamentais ligados à própria
estrutura de competências instituída pela Constituição de 1988. Nesse desiderato
importam o princípio do Estado de Direito (art. 1º) e o princípio federativo (art. 1º e
art. 18): o primeiro, porque institui o controle da atuação estatal e sua
racionalidade pela clareza e previsibilidade das normas; o segundo, porque
predispõe harmonicamente os poderes entre as unidades autônomas da
federação.

B) PRINCÍPIOS MATERIAIS

A concretização da relação obrigacional tributária restringe a esfera


jurídica do homem, afetando-lhe indiretamente a dignidade individual e familiar, a
disponibilidade jurídica acerca dos direitos de propriedade e de liberdade. São
justamente esses fins relativos à garantia de condições de possibilidade de
desenvolvimento da dignidade humana, da propriedade e da liberdade que o
Estado, exatamente por ter de preservá-los, não os poderá excessivamente
restringir por meio da tributação. Com efeito, ao passo que Constituição
estabelece regras de competência para a instituição de impostos, ela também
assegura a inviolabilidade da dignidade humana (art. 1º, inc. III e art. 226),
estabelece a função social do Estado (art. 3º, inc. III e art. 6º), assegura a
inviolabilidade dos direitos de propriedade (art. 5º, inc. XXII) e de liberdade (art.
5º, caput, e art. 170). E quando o faz, cria um relação de tensão entre finalidades
dialeticamente implicadas: enquanto a instituição de impostos serve para
preservar essas finalidades, elas deverão sujeitar-se a um mínimo de restrição
por meio da tributação, igualmente assegurada. Deve-se harmonizar essas
finalidades concretamente imbricadas. Dentre as alternativas de interpretação,

17
Recurso Extraordinário nº 166772-9-RS, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 16.12.94 pp.
34896, p. 11 e 12 do acórdão original.

10
deverá ser escolhida aquela que privilegie o homem como fim, nunca como meio,
atribuindo à sua dignidade a maior eficácia possível.18

Daí derivam conseqüências práticas. Somente a renda disponível da


atividade desempenhada pode ser tributada. Despesas indispensáveis à
manutenção da dignidade humana e da família devem ser excluídas da
tributação. Preservar a dignidade humana e a existência da família implica não as
destruir por meio da tributação.19 No mesmo sentido, as despesas necessárias ao
livre exercício de atividades empresariais e para a manutenção da fonte geradora
da renda devem ficar livres da tributação.20

Ainda que a ponderação entre aqueles fins só se complete no plano


concreto, mediante a criação de regras de prevalência, a pretensão de eficácia de
cada norma implica na proibição de restrição de sua eficácia mínima. É dizer: a
instituição de impostos não pode prejudicar os limites mínimos de eficácia do
direito de propriedade e de liberdade. Cada norma constitucional pressupõe a
existência de bens — situações, objetos ou estados —, que devem ficar à
disposição dos sujeitos, de modo a permitir sua eficácia.21 Confiscar significa,
pois, aniquilar a eficácia mínima do princípio da proteção da propriedade e da
liberdade em favor da tributação.22 Sendo assim, é da igual pretensão de eficácia
das normas constitucionais que decorre a proibição de excesso
(“Übermassverbot”), segundo a qual a realização de um fim não pode
comprometer a realização mínima de outro. Uma medida é não-excessiva quando
não restringe de forma demasiada os direitos atingidos. No Recurso
Extraordinário nº 18.331, julgado em 21 de setembro de 1951, a Segunda Turma
Supremo Tribunal Federal, declarou inconstitucional a imposição por restringir
excessivamente o princípio da liberdade de exercício profissional. No julgamento
do Recurso Extraordinário nº 18.976, prolatado em 02 de outubro de 1952, o
Supremo Tribunal Federal estabeleceu que uma exigência do Poder Público pode
vir a ser declarada inconstitucional, por excessiva, sempre que sua aplicação
dificultar o pleno exercício de um direito fundamental. Mais tarde, o mesmo
Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 47.937, julgado em 19 de
novembro de 1962, decidiu que a cobrança do selo proporcional com a multa de
cinco vezes o valor é excessiva. No julgamento da Representação nº 1.077,
ocorrido em 26 de fevereiro de 1981, o Supremo Tribunal Federal reafirma sua

18
ENDERS, Christph. Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung. Tübingen: Mohr Siebeck,
1997. p. 99 e 101. Ver também: NEUMANN, Volker. Menschenwürde und Existenzmininum.
Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht. v. 5, p. 426. 1995.
19
HOMBURG, Stefan. Zur Steuerfreiheit des Existenzminimums: Grundfreibeitrag oder Abzug
von der Bemessungsgrundlage? Finanzarchiv, (52): 182-195, 194. 1995; TORRES, Ricardo
Lobo. Os Direitos Humanos e a Tributação. In: Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário, Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 27 e 166 ss.
20
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Notas a ALIOMAR BALEEIRO, Direito Tributário
Brasileiro, 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 318.
21
MARX, Michael. Zur Definition des Begriffs »Rechtsgut«: Prolegomena einer materialen
Verbrechenslehre. Köln: Carl Heymanns, 1971. p. 68.
22
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. RDA (215):151-179, Rio de Janeiro: Renovar, jan./mar. 1999, p. 175.

11
competência para a declaração de inconstitucionalidade de qualquer exigência do
Poder Público, ainda que prevista em lei formalmente válida, que restrinja
excessivamente algum direito fundamental. Fala-se, aqui, da proibição de
excesso.

O decisivo é que ficam estabelecidos limites ao poder de tributar: de um


lado, um limite “superior”, na medida em que a tributação não poderá ser
excessivamente alta a ponto de comprometer a eficácia mínima dos direitos
fundamentais de propriedade e de liberdade, sob pena de haver violação da
proibição de confisco (art. 150, inc. IV); de outro, um limite “inferior”, já que a
tributação não poderá, pelos bens e situações que atinge, comprometer a eficácia
mínima do direito fundamental à dignidade humana, sob pena de violação do
mínimo vital (art. 1º, inc. III).23

Analisado o âmbito em que pode recair a tributação, cumpre analisar


como deve ela ser repartida. São os deveres de medida que o dizem.

4. DEVERES DE MEDIDA

A) PRINCÍPIO DA IGUALDADE

O princípio da igualdade exige igualdade de tratamento entre aqueles que


se encontram na mesma situação (art. 5º, caput). Trata-se de um direito
fundamental ao tratamento isonômico.

A igualdade implica generalidade e abstração: nenhum tratamento igual


sem normas que se dirijam a um número indeterminado de pessoas e a um
número indeterminado de situações.24 Nenhuma igualdade sem lei abstrata e
geral. Daí a essencial unidade entre legalidade e igualdade, bem qualificada por
SOUTO MAIOR BORGES como legalidade isonômica.25 A igualdade por meio da
generalidade e da abstração só se viabiliza por meio da regulação dos casos
normais. Regra, aliás, vem do latim “regula”, cujo significado é padrão ou
modelo.26 Assim também norma, aplicável aos casos “normais”.27 É dizer o
mesmo: a norma geral e abstrata pode vir a ser insuficiente para a regulação de
casos excepcionais, em cujas hipóteses o postulado da razoabilidade irá medir a
aplicação por meio da análise de elementos concreto-individuais

23
De modo similar: LEMKE, Gisele. Imposto de Renda: Os Conceitos de Renda e de
Disponibilidade Econômica e Jurídica. São Paulo: Dialética. 1998. p. 51-2.
24
OSTERLOH, Lerke. Gesetzesbindung und Typisierungsspielräume bei der Anwendung der
Steuergesetze. Baden-Baden: Nomos. 1992.
25
BORGES, José Souto. A isonomia tributária na Constituição Federal de 1988. RDT (64):8-19,
p. 13.
26
Similar: BORGES, José Souto Maior. O contraditório no processo judicial: uma visão dialética.
São Paulo: Malheiros, 1996. p. 92.
27
KELSEN, Hans. Allgemeine Theorie der Normen. Wien: Manz Verlag. 1990. p. 3.

12
(“Zumutbarkeitsgrundsatz”).28 Ora, a aplicação da regra geral deve manter-se
dentro dos casos padrões, não se orientando àqueles atípicos.29

A pretensão de eficácia do princípio da igualdade exige que todas as


manifestações relevantes dos contribuntes sejam atingidas. Daí a exigência de
universalidade.

A concretização do princípio da igualdade depende do critério-medida


objeto de diferenciação. Isso porque o princípio da igualdade, ele próprio, nada
diz quanto aos bens ou aos fins de que se serve a igualdade para diferenciar ou
igualar as pessoas. As pessoas ou situações são iguais ou desiguais em função
de um critério diferenciador. Duas pessoas são formalmente iguais ou diferentes
em razão da idade, do sexo ou da capacidade econômica. Essa diferenciação
somente adquire relevo material na medida em que se lhe agrega uma finalidade,
de tal sorte que as pessoas passam a ser iguais ou diferentes de acordo com um
mesmo critério, dependendo da finalidade a que ele serve. Duas pessoas podem
ser iguais ou diferentes segundo o critério da idade: deverão ser tratadas de modo
diferente para votar em alguma eleição, se uma tiver atingido a maioridade não
alcançada pela outra; deverão ser tratadas igualmente para pagar impostos,
porque a concretização dessa finalidade é indiferente à idade. Duas pessoas
podem ser consideradas iguais ou diferentes segundo o critério do sexo: deverão
ser havidas como diferentes para obter licença maternidade, se somente uma
delas for do sexo feminino; deverão ser tratadas igualmente para votar ou pagar
impostos, porque a concretização dessas finalidades é indiferente ao sexo. Do
mesmo modo, duas pessoas podem ser compreendidas como iguais ou diferentes
segundo o critério da capacidade econômica: deverão ser vistas como diferentes
para pagar impostos, se uma delas tiver maior capacidade contributiva; serão
tratadas igualmente para votar e para a obtenção de licença maternidade, porque
a capacidade econômica é neutra relativamente à concretização dessas
finalidades.30

Vale dizer: a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador


e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão tão
importante quanto menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios
distintos, pela singela razão de que alguns critérios são adequados à realização
de determinados fins; outros, não. Mais do que isso: fins diversos — como será
demonstrado — conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no
Direito.31

28
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. RDA (215):151-179, Rio de Janeiro: Renovar, jan./mar. 1999, p. 173.
29
OSTERLOH, Lerke. Gesetzesbindung und Typisierungsspielräume bei der Anwendung der
Steuergesetze. Baden-Baden: Nomos. 1992. p. 80.
30
KIRCHHOF, Paul. Die Verschiedenheit der Menschen und die Gleichheit vor dem Gesetz.
München: Siemens Stiftung, 1996. p. 8 e ss.
31
VOGEL/WALDHOFF. Bonner Kommentar zum Grundgesetz. 81 Lfg. 1997. p. 388. BIRK,
Dieter. Steuerrecht I, Allgemeines Steuerrecht. 2. Auf. München: Beck, 1994. p. 10-11. HUSTER,
Stefan. Rechte und Ziele: Zur Dogmatik des allgemeinen Gleichheitssatzes. Berlin: Duncker und
Humblot, 1993. p. 149, 166-7, 210.

13
As normas tributárias dirigem-se à concretização de diversos fins. E, ao
fazê-lo, restringem bens jurídicos distintos. Lembre-se: não se está aqui a falar na
causa extrajurídica que levou o legislador a instituir esse ou aquele tributo. Não.
Ao contrário: investiga-se o fundamento de validade ou justificativa jurídica
utilizada para a distinção entre os sujeitos e a finalidade que a distinção busca
alcançar. Lá uma questão metajurídica; aqui, um problema eminentemente
jurídico, apesar de relegado pela doutrina ao oblívio.

Quando os impostos possuírem uma justificação e uma finalidade fiscal,


enquanto instituídos com o fim preponderante de obter receitas dos particulares, o
princípio da capacidade contributiva será a medida de diferenciação entre os
contribuintes.32 O parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição determina que os
impostos “terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte.” Importa dizer: o critério de aplicação da igualdade
entre os contribuintes com a finalidade de pagar impostos é a sua própria
capacidade econômica. Como a distinção entre os contribuintes é feita com base
em elementos residentes neles próprios e a finalidade da tributação é a própria
distribuição igualitária da carga tributária, critério e finalidade, antes de se
afastarem, aproximam-se, para consubstanciar uma só equação: a imposição
deve corresponder à capacidade contributiva. Fala-se, por isso, em fim interno.33

O dever de observância da capacidade contributiva traz duas


conseqüências. Primeira: se os impostos deverão ser graduados segundo a
capacidade econômica, é porque o substrato econômico na hipótese de cada
imposto é pressuposto pela própria Constituição. Só atividades relacionadas à
renda, patrimônio ou consumo indicativas de expressão econômica podem ser
tributadas (capacidade econômica absoluta, “Prinzip der Ist-
Einkommenbesteuerung”). A capacidade produtiva não deve ser tributada, mas
somente a riqueza efetivamente percebida. Nesse sentido, afastam-se tanto a
tributação de rendimentos meramente nominais decorrentes da inflação quanto a
tributação de riquezas meramente prováveis por meio de ficções e presunções
absolutas.

O decisivo é que o poder de tributar é limitado pelo princípio da


capacidade contributiva: a instituição de impostos “pessoais” é inconstitucional
quando não obedecer à capacidade econômica dos contribuintes.

B) POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE

Quando os impostos tiverem uma justificação e uma finalidade extrafiscal,


enquanto instituídos com o propósito prevalente de atingir fins econômicos ou
sociais, já não mais será o princípio da capacidade contributiva a medida de
diferenciação entre os contribuintes. Recorde-se: justificações diversas levam à
utilização de critérios distintos. Ora bem: ao Estado cumpre não só garantir e

32
MOLINA, Pedro M. Herrera. Capacidad Económica y Sistema Fiscal. Madrid: Marcial Pons.
1998. p. 73. MOSCHETTI, F. La capacità contributiva. Tratatto di Diritto Tributario. v. I, t. 1.
Padova: CEDAM, 1994. p. 230.
33
HUSTER, Stefan. Rechte und Ziele: Zur Dogmatik des allgemeinen Gleichheitssatzes. Berlin:
Duncker und Humblot, 1993. p. 149.

14
estimular a realização dos princípios fundamentais (arts. 1º a 5º) ou gerais da
tributação (arts. 145 a 149); ao Estado incumbe também estimular e realizar os
princípios gerais da atividade econômica (arts. 170 e ss.), bem como zelar pela
concretização de outros tantos fins, como a manutenção do Estado Federativo
(art. 18), a preservação da eficiência administrativa (art. 37), a garantia da
segurança pública (art. 144), a implementação da política urbana (arts. 182 e
183), a garantia da função social da propriedade (arts. 184 a 191), a preservação
da ordem social (arts. 193 a 231), a evolução da ciência e da tecnologia (arts. 218
a 224), a proteção do meio ambiente (art. 225) e da famíllia (arts. 231 e 232), a
fiscalização e o controle sobre o comércio exterior (art. 237).

O que importa é que todos esses fins (ou tarefas) podem justificar o modo
instituição de impostos. E — eis o decisivo — ao justificar a instituição de um
imposto em algum fim estatal o legislador afastar-se-á do direito fundamental à
igualdade segundo a capacidade econômica dos contribuintes. Quando o Poder
Legislativo estabelece limites à dedução de despesas com educação ou saúde,
ou cria ficções ou presunções legais, ele se afasta da capacidade contributiva
individual em nome da eficiência administrativa. Quando o Poder Legislativo ou
Executivo estabelece alíquotas diferenciadas do imposto de importação ou de
exportação ele se distancia da capacidade econômica do particular porque tem a
finalidade de fiscalizar e controlar o comércio exterior.

Nesses exemplos, o direito fundamental à igualdade segundo a


capacidade contributiva (arts. 5º e 145, § 1º), justamente porque deixa tanto de
ser a medida de repartição da carga tributária quanto de constituir a finalidade da
tributação, é restringido em função de um fim estatal estranho às características
pessoais dos contribuintes (arts. 37 e 239). Importa dizer: o critério de aplicação
da igualdade entre os contribuintes com a finalidade de pagar impostos deixa de
ser sua própria capacidade contributiva. Como a distinção entre os contribuintes é
feita com base em elementos a eles exteriores, e a tributação baseia-se numa
finalidade estranha à própria distribuição igualitária da carga tributária, critério e
finalidade afastam-se para consubstanciar duas realidades empiricamente
discerníveis. Fala-se, por isso, em fim externo. Como tal, o fim externo é aquele
perceptível fora do âmbito jurídico.34

Ainda que o Poder Legislativo — ou, excepcionalmente, o Poder


Executivo — erija outra finalidade como justificativa da medida adotada, ainda
assim permanece o dever de preservar, ao máximo, a capacidade contributiva
dos cidadãos. Se assim o é, o único meio de preservar ambas as finalidades ao
máximo é atender ao postulado da proporcionalidade.

Com efeito, o poder de tributar deixa de centrar-se no princípio da


capacidade contributiva para ser confinado por meio do postulado na
proporcionalidade: a medida adotada deverá ser adequada à consecução do fim
justificativo da tributação; necessária, pois deve ser a menos restritiva dentre as
concretamente adequadas; e proporcional enquanto não excessivamente
restritiva ao direito fundamental à igualdade segundo a capacidade contributiva.

34
VOGEL, Klaus. Die Abschichtung von Rechtsfolgen im Steuerrecht, in: Der offene Finanz- und
Steuerstaat. Heidelberg: Müller, p. 542.

15
Nessa última hipótese, a finalidade de tratar os contribuintes segundo sua
capacidade contributiva deverá ser harmonicamente superada pela coordenação
com a finalidade extrafiscal erigida como justificadora da medida. E justamente
porque o legislador irá afastar-se do princípio geral da igualdade segundo a
capacidade contributiva, o fim justificador deverá ficar perfeitamente delimitado,
sob pena de arbítrio.35 Além do mais, o grau de distanciamento do direito
fundamental de igualdade não poderá ser incompatível com a sua hierarquia
sintática na Constituição vigente.

O Supremo Tribunal Federal vem aplicando, desde há muito, o princípio


da proporcionalidade, que exige que as medidas adotadas pelo legislador ou pela
administração sejam adequadas, necessárias e não-excessivas.

Uma medida é adequada quando se revela apta a alcançar o resultado


desejado. Na Representação nº 930, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é
inconstitucional uma lei que exige a demonstração de condições de capacidade
para o exercício de uma profissão que não as pressupõe.36 Nesse caso, a medida
foi declarada inconstitucional, porque inadequada para atingir o fim visado.

Uma medida é necessária, quando, dentre todas as medidas disponíveis


e igualmente eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação aos
direitos atingidos. No Habeas Corpus nº 76060, o Supremo Tribunal Federal
decidiu que não se pode, a pretexto de garantir um direito fundamental, exigir que
se produza uma prova complementar quando já foi produzida outra suficiente.37
Na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 855-2, o Supremo Tribunal
Federal declarou inconstitucional a lei que previa a obrigatoriedade de pesagem
de botijão de gás à vista do consumidor, não só por impor um ônus excessivo às
companhias, que teriam de dispor de uma balança para cada veículo, mas
também porque a proteção dos consumidores poderia ser preservada de outra
forma, menos restritiva.38 Nesses casos, a medida foi declarada inconstitucional,
porque existiam outras medidas menos restritivas aos direitos fundamentais
atingidos.

Uma medida é proporcional em sentido estrito ou correspondente,


quando não for considerada excessiva relativamente ao fim buscado. Nos casos
antes referidos, as medidas adotadas, relativamente ao fim buscado, também
foram consideradas excessivas.

35
De modo similar: LEMKE, Gisele. Imposto de Renda: Os Conceitos de Renda e de
Disponibilidade Econômica e Jurídica. São Paulo: Dialética. 1998. p. 54.
36
Representação nº 930-DF, Relator Ministro Rodrigues Alckmin, DJU 02-09-77, especialmente
as páginas 18 e 19 do voto do relator.
37
Habeas Corpus º 76060-SC, Relator Ministro Sepúlveda Pertence. DJ 15.05.98, p. 44.
38
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 855-2, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJU
01.10.93.

16
Seguindo esse movimento jurisprudencial, a doutrina hoje é unânime
quanto à aplicação do postulado ou princípio hermenêutico da
proporcionalidade no direito brasileiro. 39

Tudo isso quer dizer que o exame de proporcionalidade aplica-se sempre


que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade externa.
Nesse caso, deverá ser analisado se a medida leva à realização da finalidade
(exame da adequação), se a medida é a menos restritiva aos direitos envolvidos
dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame
da necessidade), e se não é desproporcional relativamente ao fim buscado
(exame da correspondência).

Importa notar que o dever de observância da capacidade contributiva


ainda permanece, não mais como finalidade da repartição do encargo, mas como
ponto de referência da ponderação a ser feita: a realização da finalidade
extrafiscal não poderá restringir de forma excessiva o direito fundamental à
igualdade segundo a capacidade contributiva. O princípio da capacidade
contributiva deixa de ser finalidade para ser contraponto e parâmetro do processo
de ponderação entre finalidades e bens dialeticamente implicados. Mesmo
havendo outra finalidade, a igualdade ainda funcionará como instrumento de
controle da realização isonômica daquela finalidade.

Da ponderação entre o dever de observância da capacidade contributiva


e a finalidade extrafiscal resultam alguns deveres abstratos mínimos: a finalidade
extrafiscal só justifica o tratamento desigual se atingir casos excepcionais ou
muitos casos mas com intensidade mínima.

Há instrumentos utilizados pelo legislador que se afastam do dever


constitucional de consideração da capacidade contributiva efetiva dos
contribuintes. Esse fenômeno por meio do qual alguns elementos da realidade
são escolhidos em detrimento de outros é o que se denomina de tipificação.
Tipificação é avaliação limitada da realidade; é avaliação defeituosa da situação
de fato.40 Em decorrência dela a aplicação não se efetiva de acordo com as
circunstâncias individuais do caso. Ao contrário, apenas alguns dados reais
passam a ser relevantes, sendo outros desconsiderados. No caso de tipificação
material ou categórica, a aplicação opera com uma ficção de uma situação de fato
não concretizada, independente de prova em contrário. Ocorrida a situação tida
como típica, deve ser dada a conseqüência. Na hipótese de tipificação formal ou
hipotética, a aplicação trabalha com dados de fato, cuja ocorrência ou não-

39
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. RDA, 215:151-179. 1999; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da
proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos
fundamentais. Brasília, Brasília Jurídica, 1996; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 8. ed. São Paulo, Malheiros. 1999. p. 356-394; MENDES, Gilmar Ferreira. A
proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Direitos Fundamentais e
Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1999. p. 67-83.
40
OSTERLOH, Lerke. Gesetzesbindung und Typisierungsspielräume bei der Anwendung der
Steuergesetze. Baden-Baden: Nomos. 1992. p. 56.

17
ocorrência pode ser demonstrada.41 Sendo assim, as ficções transformam-se em
questões constitucionais: elas restringem bens jurídicos protegidos por princípios
prima-facie. É preciso, então, descobrir em que medida é permitido afastar-se do
dever de consideração da capacidade contributiva e quais circunstâncias devem
ser consideradas como essenciais.

As ficções e presunções legais afastam-se do dever constitucional de


observância da igualdade segundo a capacidade contributiva em função de uma
finalidade extrafiscal qualquer, normalmente econômica ou social. Abstem-se da
busca dos efetivos elementos de fato em face da dificuldade de fazê-lo. Esse
afastamento dá-se de várias formas. Não podendo verificar concretamente a
situação individual dos contribuintes com a finalidade de descobrir a sua
capacidade contributiva efetiva, o legislador cria determinadas verdades jurídicas.
De um lado, mediante a assunção de determinadas realidades, porventura
inexistentes, por meio de ficções ou presunções absolutas.42 De outro lado,
mediante a criação de padrões legais, que espelhariam os casos normais.

O importante é que, em ambos os casos, o legislador afasta-se da


capacidade contributiva efetiva em razão de uma finalidade extrafiscal: em função
da eficiência administrativa, inatingível acaso necessária a verificação individual
das despesas dos contribuintes, o legislador arbitra o limite de dedução por
considerá-lo adequado para mensurar o mínimo indispensável ao
desenvolvimento de uma vida digna e familiar; com a mesma finalidade, também
arbitra o limite mínimo a partir do qual os contribuintes apresentam capacidade
contributiva. Ao fazê-lo, o legislador (ou administrador, em alguns casos)
distancia-se do princípio fundamental da igualdade. Essa atividade deve, no
entanto, ser controlada de três formas. Em primeiro lugar, por meio de um
controle argumentativo, já que um distanciamento do dever de observância ao
direito fundamental à igualdade exige a demonstração e fundamentação das
razões justificadoras (ônus de argumentação).43 Em segundo lugar, mediante um
controle externo à medida, em razão do qual deverá ser demonstrado que a
medida escolhida é adequada, necessária e proporcional à sua finalidade
justificativa (postulado da proporcionalidade). Em terceiro lugar, por meio de um
controle interno à medida, que deverá obedecer aos critérios da gravidade,
precisão e concordância.44

Como visto, as normas constitucionais anteriormente referidas


estabelecem os limites normativos fora dos quais a tributação da renda é
inconstitucional. A zona dentro da qual é permitida a tributação situa-se entre o
limite inferior (garantia de existência mínima) e o limite superior (proibição de
confisco). Nesse espaço, a tributação obedece a limites decorrentes do princípio

41
Idem, ibidem. p. 27.
42
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963. p.
464.
43
Sobre o assunto, importante: ALEXY, Robert. Individuelle Rechte und Kollective Güter. In:
Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995. p. 261.
44
DE PAOLA, Leonardo Sperb. Presunções e ficções no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del
Rey. 1997. p. 73 e ss.

18
da igualdade segundo a capacidade contributiva, caso tenha por finalidade
prevalente a obtenção de receita dos particulares, ou decorrentes do postulado da
proporcionalidade, na hipótese de finalidade preponderantemente extrafiscal.

5. QUADRO ILUSTRATIVO DOS LIMITES FUNDAMENTAIS À TRIBUTAÇÃO

Proibição de Confisco (Princípios da Liberdade e da Propriedade)

Finalidade fiscal Finalidade Extrafiscal

↓ ↓

Zona
Princípio da Igualdade Postulado da Proporcionalidade
de

Capacidade
Adequação Necessidade Proporcionalidade
Contributiva Generalidade Capac. Contributiva Universalidade

Garantia de existência mínima (Princípio da dignidade humana)

19
II. EFICÁCIA DO “ESTATUTO DO CONTRIBUINTE”

A. CRÍTICA À POSTURA RESTRITIVA DA JURISPRUDÊNCIA

Uma investigação aprofundada da jurisprudência do Supremo Tribunal


Federal logo revela a aplicação restritiva dos princípios fundamentais e, por
conseqüência, do “Estatuto do Contribuinte”. Alguns exemplos o demonstrarão.

Em primeiro lugar, a posição do Supremo Tribunal Federal a respeito dos


limites materiais de sua atuação. O Supremo Tribunal Federal desenvolveu a tese
do legislador negativo para indicar que o Poder Judiciário tem a função de legislar
negativamente, no sentido de eliminar do ordenamento jurídico a norma
incompatível com a Constituição, mediante um juízo de exclusão, não podendo
criar norma jurídica geral diversa da instituída pelo Poder Legislativo.45

Há dois fundamentos concorrentes para a tese do legislador negativo, um


de natureza formal e outro de caráter material: o formal (procedimental) consistiria
na proibição de pronunciamento positivo por parte do Supremo Tribunal Federal,
em sede de controle abstrato de constitucionalidade, mediante criação de norma
geral, por ser esse controle circunscrito ao exame da compatibilidade da norma
com a Constituição, e conducente a um juízo de exclusão/eliminação do
ordenamento jurídico da norma incompatível com a Constituição; o material
consistiria na proibição de o Poder Judiciário exercer competência privativa do
Poder Legislativo, seja alterando norma que este Poder instituiu, seja criando
norma que ele deixou de editar, pois fazê-lo, nesses casos, importaria na violação
do princípio da Separação dos Poderes.

A utilização incondicional da tese do legislador negativo conduz a dois


equívocos. De um lado, desconhece que ela não se aplica a qualquer caso. Com
efeito, quando houver uma limitação de ordem procedimental (no controle
concentrado, como se trata de aferir a constitucionalidade de lei em tese, deve-se
analisar a lei tal como posta), aí sim existe um limite à competência do Poder
Judiciário; quando, porém, não houver limite decorrente do objeto da ação, não se
pode impedir o Poder Judiciário de instituir a norma individual para o caso
concreto. Bem ao contrário: é dever do Poder Judiciário dizer o direito. Isso
revela, pois, que o uso irrestrito dessa tese pelos tribunais inferiores, baseado
sobretudo na sua idéia geral desatrelada dos fundamentos que lhe atribuem
conteúdo de sentido (simplesmente “o Poder Judiciário não pode pronunciar-se
positivamente sobre questões jurídicas já constantes de lei”) pode constituir
verdadeiro repúdio ao dever constitucional atribuído ao Poder Judiciário de julgar
o caso concreto e a total negação do direito fundamental da universabilidade da
jurisdição.

De outro lado, o uso incondicional da tese do legislador negativo


negligencia a inarredável necessidade de construção das significações
normativas pelo Poder Judiciário. De fato, o próprio fundamento da teoria do
legislador negativo é incorreto, na medida em que parte do pressuposto de que há

45
Exemplo: Ação Direta de Inconstitucionalidade - Medida Cautelar nº 896, Relator Ministro
Moreira Alves, DJ 16.02.96, pp. 02997.

20
significados incorporados ao texto e normas com sentido inequívoco. Ora, não há
nem significação incorporada ao texto nem significados inequívocos, como já
analisado. As significações nunca estão prontas, mas devem ser exatamente
construídas mediante atos de decisão do próprio Poder Judiciário. A tese do
legislador negativo ainda conduz, de modo imperceptível, a uma equiparação da
hipótese em que o Poder Judiciário não pode agir positivamente (proibição de
preenchimento de lacunas como planejadas incompletudes decorrente de as leis
não conterem normas apesar de o ordenamento jurídico as exigir), com as
hipóteses em que ele deve exatamente atuar de modo positivo, quer utilizando
métodos como argumentum e contrario (atribuir sentido ao que o legislador, ao
regular somente um caso, determinou relativamente a outros diferentes), redução
teleológica (reduzir o sentido das palavras da lei por serem elas muito amplas em
relação a sua finalidade) e extensão teleológica (ampliar o sentido das palavras
da lei por serem elas muito restritas em relação a sua finalidade), quer
simplesmente concretizando definitoriamente e mediante regras de prevalência
aquilo que o ordenamento jurídico estatui por meio dos princípios fundamentais.46
Interpretar não é nem simplesmente enquadrar um fato ou comportamento numa
classe de fatos ou comportamentos, nem só atribuir um significado a palavras ou
enunciados; interpretar é também fazer suposições sobre finalidades e intenções
de agentes ou construir conjecturas sobre as relações de causa e efeito entre
fatos.47 De qualquer modo, a interpretação consiste numa atividade complexa de
relacionar elementos sintáticos, semânticos e pragmáticos segundo estruturas
fornecidas por postulados hermenêuticos.48 Nesses casos, o Poder Judiciário não
é chamado a criar uma norma para um caso não regulado mediante operação de
similitude com casos já regulados, mas convocado a construir o próprio
significado da norma em função da sua finalidade, que só estava entremostrada
antes da delimitação do caso a ser julgado. Ora, restringir a atuação do Poder
Judiciário ao aspecto negativo não é só desconhecer as hipóteses em que não é
sequer racionalmente concebível desconjuntar a dimensão negativa da positiva
ou mesmo prescindir do caráter multifacetado das normas jurídicas; é também
olvidar a indispensável faculdade positiva de o Poder Judiciário constituir o Direito
diante do caso concreto, e terminar por permitir um incontornável apoucamento
do significado normativo do “Estatuto do Contribuinte”.

Nesse mesmo diapasão, situa-se a utilização da legalidade como


obstáculo à concretização jurisprudencial. Com efeito, a estrita legalidade, a par
de funcionar como limitação formal ao poder de tributar (só se pode instituir tributo
por meio de lei formal), exerce o papel de limite material (a administração e o
particular vinculam-se ao conteúdo constante da lei). É precisamente da função
de limite material exercida pela legalidade que exsurge, no geral, o
desvirtuamento do seu sentido: a constante recusa do Poder Judiciário em
construir os significados das normas legais sob o argumento de que eles já teriam

46
CANARIS, Claus-Wilhelm. Die Feststellung von Lücken im Gesetz. 2. ed. Berlin: Duncker und
Humblot, 1983. pp. 82 e ss.
47
GUASTINI, Riccardo. Interprétation et description de normes. In: Interpretation et Droit. Org.
Paul Amselek. Bruxelles: Bruylant, 1995. 90 e 91.
48
ALEXY, Robert. Juristische Interpretation. In: Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1995. p. 76 e ss.

21
sido integralmente postos pelo Poder Legislativo. Se é verdade que o âmbito
interpretativo da lei tributária é reduzido, dada a obrigatoriedade de possuir os
elementos essenciais da obrigação que institui, não é menos exata a necessidade
de concretização da norma tributária. Qualquer norma jurídica, inclusive a
tributária, possui uma finalidade, cuja concretização deve ser buscada no ato de
aplicação. Com razão afirma TIPKE: “Concretização da lei não é ampliação da lei.
Ela ocorre por meio da interpretação e coordenação valorativa. Todas as leis
carecem de interpretação e concretização. (...) O conteúdo do Direito não pode
ser colhido diretamente do texto, nem mesmo de partes isoladas do texto.”49

Em segundo lugar, a posição do Supremo Tribunal Federal a respeito dos


limites procedimentais a sua atuação em sede de recurso extraordinário. De um
lado, o Supremo Tribunal Federal desenvolveu a tese da ofensa indireta e reflexa
para indicar que o mero conflito indireto com o texto da Constituição não enseja a
interposição de recurso extraordinário; a ofensa a preceito constitucional, para
que viabilize o trânsito daquele recurso, há de ser frontal e direta, não sendo
suficiente, para tanto, a violação por via reflexa.50 De outro, a mesma Corte
desenvolveu a tese da impossibilidade de reexame de matéria de fato em sede de
recurso extraordinário.51 A tese da ofensa reflexa é correta do ponto de vista
procedimental, se e enquanto ela não for utilizada de modo acrítico para obstruir a
concretização jurisprudencial ou legislativa dos princípios constitucionais, que se
qualificam justamente por estabelecer finalidades a serem alcançadas, sob o
argumento de que a ofensa à Constituição é apenas indireta. Entender a proibição
de exame de ofensa indireta como proibição de concretização de normas que só
indiretamente estabelecem hipóteses e conseqüências normativas será causar
embaraço à própria eficácia dos princípios constitucionais fundamentais. A tese
da impossibilidade do reexame de matéria de fato é também adequada do ponto
de vista procedimental, se e enquanto ela não for empregada de maneira
invariável para impedir o julgamento de normas cujos efeitos necessários podem
ser analisados independentemente do refazimento de provas de fato.
Compreender a proibição de reexame de matéria de fato como proibição de
análise de efeitos absolutamente independentes do exame fático será novamente
estorvar a efetivação dos princípios constitucionais fundamentais, como evidencia
a falta de aplicabilidade da proibição de tributos com efeito de confisco. Em
ambos os casos, obstaculiza-se a constituição do “Estatuto do Contribuinte”.

Em terceiro lugar, a desconsideração da função limitadora da finalidade


da tributação. O Supremo Tribunal Federal utiliza a finalidade da tributação como
forma de justificar a diferenciação entre os contribuintes: o Poder Público pode
distanciar-se do princípio da capacidade contributiva, quando visar a alcançar fins

49
TIPKE, Klaus. Die Steuerrechtsordnung. Köln: Otto Schmidt, 1993. p. 203 e 227. Igualmente:
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 81.
50
Exemplo: Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário nº 158314, 1ª Turma, Relator
Ministro Celso de Mello, DJ 16.04.93, p. 6442. Ver, também: Agravo Regimental em Agravo de
Instrumento ou de Petição nº 133776, 2. Turma, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 22.09.95,
p. 30597.
51
Exemplo: Agravo Regimental em Agravo de Instrumento ou de Petição nº 196465, Relator
Ministro Carlos Velloso, DJ 26.09.97, p. 47485.

22
diversos da mera arrecadação.52 A justificativa da tributação por finalidades
extrafiscais não pode, contudo, deixar a tributação sem limites. É preciso, pois,
utilizar a finalidade não apenas como pressuposto e justificação da tributação,
mas como seu próprio limite. E isso se faz por meio do postulado ou princípio
hermenêutico da proporcionalidade.

Em quarto lugar, a desvinculação dos princípios materiais dos


procedimentais. O Supremo Tribunal Federal, a par das mencionadas teses que
limitam tanto o acesso ao julgamento quanto o seu objeto, geralmente analisa os
limites formais (sobre procedimento ou eficácia temporal) desvinculados dos
materiais. Isso se revela no aspecto processual, quando se considera
constitucional a exigência de depósito prévio para o recurso administrativo.53 Mas
se manifesta também pela compreensão dos limites formais (legalidade,
irretroatividade e anterioridade) como regras autônomas, sem que seu sentido
seja posto em correlação com os princípios fundamentais que lhe são
axiologicamente sobrejacentes (democracia e segurança jurídica).

B. REDEFINIÇÃO DA FUNÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

Esses exemplos revelam, pois, uma compreensão restritiva da atividade


jurisprudencial. Ora, se o ordenamento jurídico fornece somente os pontos de
partida, então é apenas por meio do Poder Judiciário que se pode tomar uma “de-
cisão” sobre os bens jurídicos atribuídos às partes, de modo que se possa conferir
não só uma dimensão de peso aos princípios que se entrecruzam, senão também
efetivar o próprio caráter multifacetado dos princípios fundamentais, que
funcionam como direitos subjetivos de proteção e como meios de integração e de
interpretação.

Meio imprescindível à efetividade do “Estatuto do Contribuinte” é a


compreensão da relação de interdependência entre os princípios formais e os
princípios materiais.

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta, de um lado, que os princípios


formais, o postulado da proporcionalidade e o princípio da igualdade são apenas
instrumentos procedimentais e estruturais para a concretização dos princípios
materiais e, de outro, que os princípios materiais muitas vezes só podem ser
integralmente concretizados por meio de determinados procedimentos. Tanto a
idolatria desmedida da legalidade como o culto exacerbado da igualdade
patenteiam o inadvertido isolamento das normas que só coerentemente
conjugadas ascendem a uma significação normativa. Em segundo lugar, importa
sublinhar a relevância do procedimento, seja ele administrativo ou judicial, para a
concretização do “Estatuto do Contribuinte”. É precisamente aqui que entra em
cena o devido processo legal por meio do qual serão distribuídos eqüitativamente

52
Exemplo: Recurso Extraordinário nº 185802, Relator Ministro Neri da Silveira, DJ 04.08.95, p.
22660.
53
Exemplo: Recurso Extraordinário nº 231320, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 06.11.98, p.
35.

23
os bens jurídicos conflitantes na relação obrigacional tributária, tanto na sua
esfera formal (juiz natural e imparcial, contraditório, ampla defesa) quanto no seu
aspecto material (proporcionalidade e razoabilidade). Dois lados de uma só
moeda.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se definir “Estatuto do Contribuinte” como o


conjunto de normas que juridiciza a forma, o conteúdo e a medida da tributação, e
que deve ser interpretado com a finalidade de realizar uma — simétrica e
superadora — unidade sintética entre os direitos-deveres dos contribuintes e os
deveres-poderes do ente tributante.

Importa enfatizar que o “Estatuto do Contribuinte” não é algo pronto que


já está na Constituição, ou mesmo algo que possa ser predeterminado em alguma
fonte normativa infraconstitucional. Ao contrário, a Constituição — e qualquer
fonte normativa — representa apenas uma possibilidade de Direito. A formação
do “Estatuto do Contribuinte” pressupõe, primeiro, um reajuste do papel
construtivo da doutrina e da função concretizadora da jurisprudência que baste
para consolidar uma investigação simétrica e multidimensional das normas
jurídicas, especialmente dos seus aspectos negativos e positivos; segundo, uma
redefinição da sistematização que a habilite não só a diferenciar as normas
segundo sua função inter e extranormativa como a integrar as finalidades que
justificam a própria tributação; terceiro, uma reconstrução dos limites ao poder de
tributar que não se restrinja a fazer as devidas distinções entre as normas, mas
que também faça as devidas aproximações sintáticas e semânticas entre elas.

Talvez desse modus procedendi não se salte descompassadamente de


uma mera interpretação de textos, equivocada porque confunde o resultado a ser
construído pela interpretação com o seu próprio objeto, para uma acriteriosa
ponderação de princípios, igualmente desacertada, porque negligencia a exata
função ordenadora do Direito, transformando a explicação coerente do significado
e da função dos princípios fundamentais num livre e descomprometido romance.

Referência Bibliográfica deste Trabalho:


Conforme a NBR 6023:2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),
este texto científico em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Eletrônica


de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de
Direito Público, nº. 12, novembro/dezembro/janeiro, 2008. Disponível na Internet:
<http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp>. Acesso em: xx de xxxxxx de xxxx

Observações:
1) Substituir “x” na referência bibliográfica por dados da data de efetivo acesso
ao texto.
2) A REDAE - Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico - possui

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registro de Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas
(International Standard Serial Number), indicador necessário para referência
dos artigos em algumas bases de dados acadêmicas: ISSN 1981-1861
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Administrativo Econômico, acompanhados de foto digital, para o e-mail:
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