O Sacramento Da Eucaristia

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O Sacramento da Eucaristia

Introdução

1. Tríade vocabular

N o âmbito das relações humanas, Eucaristia caracteriza o gesto


de "reconhecimento", "gratidão", "acção de graças"(cf. Sab 18,2;
R o m 16,4). N o âmbito religioso descreve o acto de agradecimento
a Deus: "e tudo o que fizerdes por palavras ou por obras, fazei-o
em n o m e do Senhor Jesus, dando por ele graças ("eucharistountes")
a Deus Pai"(Col 3,17).
A "acção de graças" anda associada à "benedictio"("eulogia"),
celebração das maravilhas de Deus, e à "anámnesis"(memorial).
C o m efeito, ao render graças, o h o m e m bendiz a Deus por algum
beneficio recebido das suas mãos, acontecimento que é recordado.
A tríade inseparável: eucharistia — eulogía — anámnesis, foi
aplicada desde o início à celebração eucarística.

2. Vocabulário jesuano e cristão

Esta tríade aparece nas perícopas da multiplicação dos pães e da


última ceia de Jesus. "Eulogía" e "eucharistia" são usados indife-
rentemente. Na primeira multiplicação dos pães, João usa "eucha-
ristia" e os sinópticos usam "eulogia". N a segunda, Mateus usa
"eucharistia"(Mt 15,36) e Marcos usa "eucharistia" para o pão e
"eulogia" para os peixes (Mc 8,6-7). D e igual modo, na última ceia
os narradores usam-nas indiferentemente. Mateus, "acção de graças"

X X V I I (1997) DIDASKALIA 5-52


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sobre o cálice e " b ê n ç ã o " sobre o pão (Mt 26,26-27); Paulo usa
"acção de graças" sobre o pão ( I C o r 11,24) e " b ê n ç ã o " referente
ao cálice ( I C o r 10,16). " A n á m n e s i s " é usada p o r Paulo ( I C o r
11,24.25) e Lucas (Lc 22,19, referente ao pão).
N o uso cristão prevalece o vocábulo "eucharistia" para designar
a fracção do pão, m a n t e n d o - s e implícito o significado de "eulogía"
e de "anámnesis".

I — A n a m n e s e Pascal d o Crucificado

Eucaristia significa, pois, u m a "acção de graças anamnéstica".


Isto é, acção de graças p o r u m a intervenção graciosa de Deus: o
a c o n t e c i m e n t o da salvação. R e n d e n d o graças recorda-se, actualiza-
-se, revive-se esse acontecimento, p o r isso se diz que a eucaristia é
a " a n a m n e s e " do a c o n t e c i m e n t o da salvação. A c o n t e c i m e n t o este
que é a pessoa do Crucificado — a pessoa de Jesus e o seu destino
c o m o Crucificado. Daí dizermos que a eucaristia é a anamnese do
Crucificado. Essa celebração anamnéstica apresenta-se sob a forma
exterior de banquete. Q u e espécie de banquete?

1.1. Última Ceia de Jesus

1.1.1. Ceia pascal?

a) O problema

As narrações da última ceia de Jesus (Mc 14,22-25; M t 26,26-


- 2 9 ; Lc 2 2 , 1 9 - 2 0 ; I C o r 11,23-26) f a l a m - n o s de u m b a n q u e t e
pascal: " B e m sabeis que de aqui a dias é a páscoa, e o filho do
h o m e m será entregue para ser crucificado"(Mt 26,2 e par.). D u r a n -
te a ceia pascal, que Jesus mandara preparar (Mt 26,17-19), é por
Ele instituída a eucaristia (Mc 14,12-16 e par.). Assim, para os
sinópticos e para Paulo, a celebração eucarística da c o m u n i d a d e
cristã t e m carácter pascal. N o evangelho de João, p o r é m , apesar da
insinuação d o capítulo VI ("e a páscoa dos j u d e u s estava próxima":
J o 6,4), a última ceia de Jesus não parece ter carácter pascal, visto
que o dia de Páscoa cai, não n o dia seguinte, mas dois dias depois,
n o sábado (Jo 18,28; 19,14.31).
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b) Tese da história comparada das religiões

Será possível harmonizar as duas tradições?


A harmonização revestiu-se de especial importância sobretudo a
partir do m o m e n t o e m que a História C o m p a r a d a das Religiões
utilizou a discordância c o m o a r g u m e n t o contra a instituição da
Eucaristia p o r Cristo. A eucaristia cristã, segundo ela, teria a sua
origem, não na páscoa judaica, mas nos mistérios pagãos. O cristia-
nismo helenista, responsável pela sua introdução, t e n t o u legitimá-la
e m Cristo e mais e s p e c i f i c a m e n t e na sua ú l t i m a ceia, à qual
atribuíra carácter pascal. O Evangelho de João, p o r é m , despreocu-
padamente, faculta-nos u m a reminiscência das circunstâncias his-
tóricas que permite desmontar a construção dogmático-mitizante da
tradição sinóptica.

c) Tentativas de harmonização

E m resposta à tese da História Comparada das Religiões f o r -


mam-se algumas tentativas de harmonização:
• Segundo a tese tradicional a tradição sinóptica está correcta.
João está errado.
• Segundo outros, as duas tradições estão parcialmente c o r -
rectas. C o m e f e i t o , p r e v e n d o os a c o n t e c i m e n t o s , Jesus
antecipara a ceia pascal.
• Para outros, não há contradição, p o r q u e naquele ano, e m
virtude de a páscoa cair e m dia de Sábado, o abate dos
cordeiros foi antecipado de u m dia. Jesus, seguindo os fari-
seus, teria realizado a ceia pascal nessa mesma tarde, ao passo
que os saduceus a teriam deixado para o dia seguinte.

N e n h u m a das citadas tentativas de harmonização merece crédito;


n e m a via da harmonização p r o m e t e qualquer saída para a questão.

d) Tese de A.JAUBERT, La date de la Cène, 1957, propõe outro


calendário, ao longo de toda a semana.

e) Opinião de JOACHIM JEREMIAS, Die Abendmahlsworte


Jesu, 1967 4.Auf.:

1) Rejeita todas as tentativas de harmonização c o m o insatis-


fatórias.
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2) Interroga-se sobre o Q u i d d u s h , a H a b d h u r a e as refeições


essénicas:
• Quiddush — bênção do cálice c o m que se inicia o sábado.
Trata-se de u m a bênção q u e o chefe de família pronunciava
sobre o cálice de v i n h o n o início do sábado (ao aparecerem
as primeiras estrelas e depois de acesa a luz e m casa). Então
bebe o chefe de família e a seguir os presentes. Q u a n d o a
refeição de sexta-feira se prolongava pelo t e m p o de sábado,
o Q u i d d u s h celebrava-se n o fim da refeição. J.Jeremias não
encontra qualquer m o t i v o para caracterizar a última ceia de
Jesus c o m o u m quiddush.
• Habdhura = reunião de amigos. Seriam refeições corporativas
c o m s e n t i d o sagrado. Para J.Jeremias a ú n i c a c o m tais
características deveria ser a ceia pascal. As que se realizavam
p o r ocasião de noivados, casamentos, circuncisões e funerais
não t i n h a m carácter sacro.
• Refeições essénicas. J.Jeremias o p õ e - s e à opinião de K u h n ,
segundo o qual as refeições quotidianas da c o m u n i d a d e do
Q u m r â n t e r i a m i n f l u e n c i a d o a e u c a r i s t i a cristã. N ã o
explicam o b i n ó m i o p ã o - v i n h o , n e m as circunstâncias de se
celebrar à n o i t e . A l é m disso, participavam na eucaristia
h o m e n s e mulheres; a eucaristia celebrava-se na casa de uma
família; não é seguro que os essénios tomassem v i n h o à
refeição (o v o c á b u l o tirosh é demasiado genérico). Para
J . J e r e m i a s n ã o e x i s t e m vestígios q u m r â n i c o s , q u e r nas
narrações da última ceia de Jesus, quer na celebração cristã
da eucaristia.

3) J o a c h i m Jeremias t a m b é m não encontra qualquer dado


astronómico decisivo. C o m efeito, não é possível determinar c o m
segurança o dia exacto da m o r t e de Jesus: o dia 15 de Nizan caiu à
sexta-feira n o ano 31 (27 de Abril) e ao sábado n o ano 30 (7 de
Abril) e n o ano 33 (3 de Abril). E m qual deles m o r r e u Jesus? O s
anos 28, 29 e 32 estão fora de discussão, p o r q u e e m n e n h u m deles
o dia 15 de N i z a n caiu à sexta ou sábado. Portanto, a astronomia
não ajuda a dirimir a questão entre J o ã o e os sinópticos.

4) Todavia, J o a c h i m Jeremias identifica 14 indícios favoráveis


ao c o n t e x t o pascal da última ceia de Jesus:
• Em Jerusalém: O s sinópticos e J o ã o situam a última ceia de
Jesus e m Jerusalém, apesar do seu hábito de voltar todas as
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tardes a Betânia, o n d e estava hospedado. P o r q u e razão,


aquele dia, t o m o u a ceia e m Jerusalém apesar da multidão
que ali se acotovelava (cerca de 100.000)? Tal circunstância
t o r n a - s e c o m p r e e n s í v e l t r a t a n d o - s e de u m a ceia pascal:
" Q u e m c o m e r o cordeiro fora da cidade recebe 40 chico-
tadas" (Siphre N u m . 69).
Local: A facilidade e m conseguir o local para a ceia (Mc
14,13-15 e par.) denota u m a circunstância especial. Parece
que era uso jerusalemitano ceder o local pela cabeça do
cordeiro. Trata-se, c o m certeza, de u m indício precário.
Hora nocturna: O s diversos testemunhos (excepto o de Lucas:
" q u a n d o chegou a hora, pôs-se à mesa", 22,14) recordam
esta circunstância ( I C o r 11,23; J o 13,30; M c 14,17; M t
26,20). Pois b e m , na Palestina do t e m p o de Jesus havia u m a
refeição a m e i o da m a n h ã (entre as 10 e as 11 horas) e outra
a m e i o da tarde (mesmo n o Q u m r â n ) , que, sendo festiva,
por vezes, se prolongava pela noite fora. N ã o parece que
Jesus tivesse o costume de tomar refeições de noite. P o r
ocasião da multiplicação dos pães, ao cair da noite, sublinha-
-se q u e já havia passado a hora da refeição (Mt 14,15).
P o r é m , a ceia pascal, essa, é celebrada de noite: "a Páscoa só
de noite p o d e ser c o m i d a " (Zebh. V,8). A hora n o c t u r n a é,
pois, u m indício importante.
Jesus e os Doze: Esta refeição é reservada ao g r u p o mais
í n t i m o dos D o z e (Mc 14,17 e par.), q u a n d o Jesus n ã o
costumava seleccionar os seus convivas. E todavia u m a
circunstância compreensível n u m a celebração pascal, para a
qual se requeria u m grupo de pelo m e n o s 10 pessoas.
Reclinados: Era sentado q u e o j u d e u tomava a sua refeição
q u o t i d i a n a . R e c l i n a d o só e m g r a n d e s festividades. Esta
posição era obrigatória, m e s m o para os pobres, durante a
ceia pascal, e m sinal de liberdade.
Pureza levítica: Segundo J o ã o (13,10), a última refeição é
tomada e m pureza levítica, aliás exigida aos leigos na noite
de páscoa (e só para este banquete).
Fracção do pão: D e acordo c o m o rito pascal, Jesus parte o
pão n o decorrer da refeição (Mc 14,22; M t 26,26), e não ao
princípio c o m o era costume nas refeições normais.
O vinho (Mc 14,25 e par.): Entre os j u d e u s o vinho só fazia
parte da e m e n t a dos dias festivos: circuncisão, n o i v a d o ,
casamento e durante os sete dias de luto; Páscoa, T a b e r -
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náculos e Pentecostes; para iniciar e t e r m i n a r o dia de


sábado. Para além destas ocasiões, era usado c o m o medicina.
N a ceia pascal não podia faltar (quatro cálices), m e s m o que
fosse necessário recorrer à caixa dos pobres.
• Vinho tinto: N a ceia pascal u s a v a - s e v i n h o t i n h o . O
simbolismo v i n h o / s a n g u e sugere a presença de vinho tinto.
• Judas vai às compras: Alguns discípulos pensam que Judas saiu
às compras (Jo 13,29), i n t e r p r e t a n d o assim a palavra de
Jesus: " o q u e tens a fazer fá-lo depressa"(Jo 13,27). Tal
interpretação é compreensível n u m a noite de páscoa, na
qual era lícito fazer compras. Se não fosse o dia 14 de
Nizan, que necessidade havia de ir fazer compras de noite?
• Judas foi dar esmolas: O u t r o s julgaram que ele tinha ido dar
esmolas (Jo 13,29), segundo o costume pascal de ajudar os
pobres a celebrar a páscoa (as taças de vinho!). E m n e n h u m a
outra noite havia o costume de dar esmolas.
• O cântido "hallel": A última ceia de Jesus termina c o m u m
cântico de louvor (Mc 14,26; M t 26,30). O cântico hallel é
parte integrante da ceia pascal (e só da celebração pascal).
• Pernoitamento no monte das Oliveiras: E m vez de regressar a
Betânia, c o m o nos dias anteriores, Jesus resolve passar a
noite n o m o n t e das Oliveiras. Tal circunstância só se explica
e m noite de páscoa, na qual havia o preceito de pernoitar
e m J e r u s a l é m . A g r a n d e a f l u ê n c i a de p e r e g r i n o s fizera
alargar o círculo da cidade que ia até Beth-phage, não até
Betânia.
• "Berakha" sobre o pão e o vinho: J e s u s , ao e x p l i c a r o
simbolismo d o pão e do v i n h o , r e f e r e - o s à sua m o r t e .
Trata-se de u m indício importante p o r nele se reflectir a
"berakha" que o chefe de família pronunciava sobre o pão e
o vinho. E m resposta à pergunta de u m a criança sobre o
s i g n i f i c a d o da f e s t a , o c h e f e d e f a m í l i a e x p l i c a v a o
significado do rito (Ex 12,26-27; 13,8) e dos alimentos: cor-
deiro, pão ázimo, ervas amargas e os cálices (os 4 cálices do
Faraó, 4 expressões da salvação, 4 cálices da imolação de
Israel). O sentido m e s s i â n i c o - e s c a t o l ó g i c o d o pão e do
vinho foram referidos p o r Jesus à sua pessoa e destino.

Conclusão: Estes indícios m e r a m e n t e ocasionais, considerados


globalmente, levam J o a c h i m Jeremias a decidir-se e m favor do
carácter pascal da última ceia de Jesus. C o m p l e m e n t a r m e n t e o autor
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refuta 11 objecções c o m o demasiado débeis para p ô r e m causa a


conclusão anterior.
C o r r o b o r a a tese de J Jeremias a conjectura, bastante verosímil,
de que João poderia ter deslocado o dia de páscoa para o sábado
c o m o fim de fazer coincidir a m o r t e de Cristo, o C o r d e i r o de
Deus, c o m a imolação dos cordeiros n o templo.

1.1.2. Páscoa judaica

A d m i t i n d o que a última ceia de Jesus foi u m a ceia pascal, de


acordo c o m a tradição sinóptica, o sentido teológico da páscoa
judaica torna-se relevante para a compreensão daquela e conse-
q u e n t e m e n t e da eucaristia cristã.
A páscoa j u d a i c a nasce d o c r u z a m e n t o de duas festas da
Primavera: a dos povos nómadas (o cordeiro) e a dos povos seden-
tários (os pães ázimos). R e f l e c t e m - s e nela duas épocas sucessivas da
história do p o v o de Israel.
C o m o p o v o nómada, dedicado à pastorícia, celebra a festa da
Primavera ( = n o v o ciclo da fecundidade) c o m o sacrifício de u m
cordeiro da colheita anterior (um ano de idade), sem defeito, e m
"acção de graças" e c o m o " p e n h o r " de boa fecundidade para o
rebanho. O sangue era derramado diante da tenda, para afugentar
os espíritos malignos. O s ossos não eram quebrados, para significar
o vigor físico e para impetrar força para o c o m b a t e contra os
inimigos.
C o m o p o v o sedentário, dado à agricultura, adopta os costumes
dos povos agrícolas, celebrando a festa da Primavera c o m os pães
ázimos. Iniciava-se, assim, o ciclo do f e r m e n t o n o v o , conservado de
dia para dia, até à Primavera seguinte, c o m o q u e a indicar a
perenidade do alimento dado p o r Deus.
Sobre esta base cultural c o m u m , o p o v o de Israel modela a sua
festa da páscoa c o m o "eucharistia-eulogía-anámnesis" da libertação
da escravatura egípcia. A festa da Primavera adquire o carácter de
"acção de graças", "acto de l o u v o r " e " m e m o r i a l " da acção liber-
tadora de Deus: "tereis este dia sempre na m e m ó r i a e celebrá-lo-eis
ao longo das vossas gerações c o m culto e t e r n o " ( E x 12,24). Este
culto, ao m e s m o t e m p o q u e r e c o r d a o passado, actualiza-o e
projecta-o n o f u t u r o messiânico:
• Dimensão anamnéstica: E m cada páscoa o p o v o recua e m
espírito aos tempos do Egipto e do Sinai para reviver a
escravidão, simbolizada nas ervas amargas, e a libertação de
12 DIDASKALIA

D e u s , iniciada c o m o Ê x o d o e continuada ao l o n g o da
história.
* Dimensão presente: ao recordar a obra libertadora de Deus
ao l o n g o da história, a c e l e b r a ç ã o da páscoa p r e t e n d e
t a m b é m assegurar a presença libertadora de Deus n o m o -
m e n t o presente. A o m e s m o t e m p o que se expressa a fide-
lidade à história, exprime-se t a m b é m a fidelidade de Deus e
do P o v o ã Aliança. A Páscoa é, c o m efeito, u m a actua-
lização da Aliança sinaítica n o sangue c o m q u e Moisés
aspergiu o p o v o .
* Dimensão escatológica: A libertação d o passado e do pre-
sente encaminha-se para a grande libertação messiânica, que
a páscoa celebra antecipadamente. A celebração pascal é p r é -
a n ú n c i o e p e n h o r da páscoa escatológica, d o b a n q u e t e
messiânico e da nova aliança que os profetas anunciaram.

1.1.3. Estrutura da ceia pascal no tempo de Jesus (enquadramento das


palavras de Jesus sobre o pão e o cálice)

Segundo J o a c h i m Jeremias (op.cit.) a celebração pascal cons-


tava, ao t e m p o de Jesus, de:
* Aperitivos:
• Q u i d d u s h ( = 1 ° cálice)
• Aperitivos: salada, ervas amargas e compota;
• O s alimentos são trazidos para a mesa;
• O 2 o cálice é preparado.
* Liturgia pascal:
• H a g g a d a pascal, a cargo d o c h e f e de família (em
aramaico);
• I a parte do cântico Hallel (em hebraico);
• T o m a - s e o 2 o cálice.
* Refeição:
• Bênção dos pães ázimos;
• T o m a - s e o c o r d e i r o , o p ã o , as ervas amargas, a
c o m p o t a e o vinho;
• O r a ç ã o sobre o 3 o cálice.
* Final:
• E n c h e - s e o 4 o cálice;
• Canta-se a 2 a parte do Hallel;
• B ê n ç ã o d o 4 o cálice.
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 13

As palavras de Jesus sobre o pão coincidem c o m a bênção da


mesa n o início da refeição principal e as palavras sobre o cálice c o m
a bênção do último cálice: "Jesus aproveitou a oração inicial e final
do banquete pascal para p r o p o r o n o v o significado do pão e do
v i n h o " (J.Jeremias, op. cit., 81).

1.1.4. Novo significado da ceia pascal

As observações de Marcos-Mateus ("durante a refeição) e de


Paulo-Lucas ("depois de cear"), referentes ao p ã o e ao cálice
respectivamente, levam à conclusão de que Jesus utilizou a
"berakha" sobre os pães ázimos e sobre o último cálice para lhes
conferir o valor de dons messiânicos.
A última páscoa de Jesus adquire o significado de consumação
plena. Sem deixar de recordar toda a história da salvação, refere-se
essencialmente ao seu p o n t o culminante: o a c o n t e c i m e n t o salvífico
na pessoa de Jesus Cristo. Aquela última ceia adquire o carácter de
páscoa escatológica, da qual cada páscoa era a sua celebração
profética.
A última ceia pascal de Jesus serve de p o n t e entre a páscoa
judaica e a eucaristia cristã. Aquela recorda a história salvadora de
Israel, bifocalizada n o p r i m e i r o acto l i b e r t a d o r de D e u s e n o
advento do Messias; a eucaristia celebra este m o m e n t o culminante,
q u e t u d o recapitula; é a anamnese d o a c o n t e c i m e n t o de Jesus
Cristo, do mistério de Cristo, que, segundo Paulo, abrange toda a
história da salvação desde o p l a n o secreto de D e u s até à sua
realização plena n o Crucificado-Ressuscitado.
Entre a páscoa judaica e a eucaristia cristã não há ruptura,
c o m o não há ruptura entre a história de Israel e o mistério de
Cristo. Tal c o m o o mistério de Cristo abrange toda a história da
salvação, assim t a m b é m a eucaristia engloba a páscoa judaica, à qual
confere a p l e n i t u d e de sentido, e n q u a n t o b a n q u e t e messiânico,
n o v a páscoa, n o v a aliança. N a Eucaristia, n ã o há r u p t u r a , há
novidade e a novidade é a plenitude.
14 DIDASKALIA

1.2. Eucaristia cristã

1.2.1. Raízes históricas

A — História das narrações

a) Quadro sinóptico

M c 14,22-25; M t 26,26-29; Lc 22,19-20; I C o r 11,23-26

M A R C O S 14 M A T E U S 26

(22) D u r a n t e a refeição, Jesus (26) D u r a n t e a refeição, Jesus


t o m o u o p ã o e, depois de o t o m o u o pão, b e n z e u - o ( e u l o -
benzer, partiu-o e deu-lho, g é s a s ) , p a r t i u - o e o deu aos
dizendo: "tomai, i s t o é o m e u discípulos, d i z e n d o : " t o m a i e
c o r p o (lábete, t o ü t ó estin tò comei, i s t o é o m e u c o r p o " .
sômá mou).

(23) E m s e g u i d a , t o m o u o (27) T o m o u depois o cálice, ren-


cálice, deu graças e apresentou- deu graças (eucharistésas) e deu-
lho, e todos dele beberam. -lho dizendo: "bebei dele todos,

(24) E disse-lhes: "Este é o m e u (28) p o r q u e e s t e é meu


s a n g u e da aliança, q u e será der- s a n g u e da n o v a aliança, d e r -
ramado por muitos" (toütó ramado por muitos homens
e s t i n t ò ' a i m á m o u t ò tês e m remissão dos pecados".
diathékes t ò e k c h u n n ó m e n o n
'upèrpollõn).

L U C A S 22 P A U L O : 1 C o r .11

(19) T o m o u e m seguida o pão e (23) O S e n h o r Jesus na noite


d e p o i s d e t e r d a d o graças e m que foi traído t o m o u o pão
(eucharistésas) partiu-o e d e u -
lho dizendo: " i s t o é o m e u (24) e depois de ter rendido gra-ças
c o r p o q u e é dado p o r vós (tò (eucharistésas) partiu-o e disse:
'uper ' u m ô n didómenon) "isto é o meu corpo que será en-
fazei isto e m m e m ó r i a de m i m " . t r e g u e p o r vós; fazei isto e m
O SACRAMENTO D A EUCARISTIA 15

memória de m i m " ( t o ú t o poieíte


eis tèn emèn anámnesin).

(20) D o m e s m o m o d o t o m o u (25) D o m e s m o m o d o , depois


t a m b é m o cálice, depois de de haver ceado, t o m o u t a m b é m
cear, dizendo: " e s t e c á l i c e é a o cálice, dizendo: "este cálice é
nova aliança em meu san- a nova aliança n o m e u sangue;
gue, que é derramado por fazei isto todas as vezes que o
vós" (toûto tò potérion 'e beberdes, em memória de
kainè diathéke en tô 'aímati mim".
mou, tò 'upèr 'umôn
ekchunnómenon). (26) Assim, todas as vezes que
comerdes deste pão e beberdes
deste cálice lembrais a m o r t e d o
Senhor até que venha".

b) Dupla tradição

Estas narrações agrupam-se em duas tradições: a antioquena


(Paulo e Lucas) e a jerusalemitana (Marcos e Mateus).
A simples existência de duas tradições sugere que as fórmulas
de cada uma delas é a resultante de compromissos litúrgicos. A
priori, n e n h u m a delas p o d e ser t o m a d a c o m o "ipsissima verba
Jesu". A circunstância de Paulo nos oferecer o mais antigo teste-
m u n h o escrito, t a m b é m n ã o d i r i m e a questão a f a v o r da sua
tradição. Dois grandes especialistas na matéria, J o a c h i m Jeremias e
Johannes Betz, divergem.
J.Jeremias inclina-se pela m a i o r antiguidade da tradição de
Marcos, e m virtude dos hebraísmos e da cristologia aí presentes.
Paulo, para este autor, já apresenta u m a certa helenização ('uper
'umõn em vez de peri pollôn).
J.Betz, pelo contrário, à luz da história da redacção, considera
mais antiga a tradição antioquena. C o m efeito, a fórmula paulina
reflecte melhor as circunstâncias históricas da última ceia ("depois
da ceia"). N a fórmula de Marcos a estilização litúrgica quase as
apagou (já n e m a estrutura da ceia pascal transparece). O desgaste
litúrgico torna-se palpável n o paralelismo entre a palavra sobre o
pão e sobre o cálice: "isto é o m e u c o r p o " — "este é o m e u san-
gue da aliança". Pelo contrário a fórmula de Paulo e de Lucas é
menos polida ("este cálice é a nova aliança n o m e u sangue"), e
mais consentânea c o m o contexto pascal da última ceia, na qual não
16 DIDASKALIA

se falava de v i n h o ou de sangue, mas de cálices. Além do mais, a


fórmula antioquena não é deduzível da fórmula marquina, enquanto
esta se explica pela tendência e m paralelizar os dois elementos: p ã o /
v i n h o (corpo/sangue).
P o r tais razões, J.Betz considera a fórmula antioquena mais
antiga, apesar da helenização — aliás exigida pelos destinatários
helenistas — patente n o 'upèr 'umõn, e m vez do perí pollõn. A sua
reconstrução, a partir de Paulo e de Lucas, seria:
" O Senhor Jesus na noite e m q u e foi entregue t o m o u o pão,
a b e n ç o o u - o , partiu-o e deu-lhes c o m as palavras: 'Isto é o m e u
corpo, q u e será dado p o r vós. Fazei isto e m memória de m i m ' . D e
igual m o d o , depois da ceia, o cálice c o m as palavras: 'Este cálice é a
N o v a Aliança n o m e u sangue, que será derramado p o r vós. Fazei
isto e m m e m ó r i a de m i m " .

c) Tradição comum

J.Betz situa esta fórmula pelos anos quarenta. N ã o acha possível


recuar mais n o t e m p o . N o entanto, os elementos comuns às duas
tradições (particularmente a teologia do Servo de Javé) apontam
para u m a fórmula c o m u m , mais antiga, impossível de reconstituir,
mas da qual deveriam fazer parte os seguintes elementos:
* U m c o n t e x t o de refeição;
* Presença de pão e de vinho;
* Relacionamento entre pão/vinho, corpo/sangue e morte
reparadora;
* Instituição da N o v a Aliança;
* R e f e r ê n c i a ao b a n q u e t e do R e i n o de Deus;
* O r d e m de repetir (anamnese).

d) Ipsissima verba Jesu?

E m resumo, as narrações actuais apontariam, segundo J.Betz,


para u m a f ó r m u l a antiga baseada nas palavras usadas p o r Jesus
(ipsissima verba Jesu) na celebração da sua última páscoa. Nesta, Jesus
ter-se-ia apresentado c o m o N o v o Moisés a sigilar a N o v a Aliança
c o m o sangue. O sangue que Ele próprio vai derramar. Desta forma
a última ceia de Jesus apareceria e m perfeito paralelismo c o m
a última ceia dos j u d e u s na escravidão; tal c o m o eles na vigília
do Ê x o d o , Jesus, c o m os seus, celebra antecipadamente a libertação
q u e está p a r a a c o n t e c e r . O n o v o P o v o d e D e u s , c o m o o
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 17

antigo, servir-se-á do rito de despedida para celebrar a grande


libertação.

B — História da tradição

Mas, a eucaristia cristã remontará, de facto, a u m gesto de Jesus


ou será uma simples interpretação da Igreja, posta na boca de Jesus?
Qual é o veredicto da história das tradições cristológicas?

a) A eucaristia à luz do Servo de Javé

A referência ao Servo de Javé nas fórmulas eucarísticas levanta


problemas em relação à formação destas e à origem da eucaristia.
C o m efeito, na hipótese de a interpretação da m o r t e de Cristo à luz
da figura do Servo de Javé ter sido adoptada pela segunda geração
da comunidade cristã, será lícito colocar aquelas fórmulas na boca
do Jesus histórico e atribuir-lhe a instituição da eucaristia?

aa) Do Filho do Homem ao Servo de Javé (F.Hahn)

Jesus não se anunciava a si próprio. Inserido na corrente apo-


calíptica, c o m o João Baptista, Jesus anunciava simplesmente a vinda
do Filho do H o m e m , sem n u n c a c o m ele se identificar. A p r e -
sentava-se c o m o profeta e não c o m o r e d e n t o r (nem segundo a
figura do Servo de Javé).
A c o m u n i d a d e primitiva é que o identificará c o m o Filho do
H o m e m venturo. Ele, crucificado e arrebatado aos céus, à semelhança
de Elias, é esperado a todo o m o m e n t o para julgar os vivos e os
mortos, na qualidade de Filho do H o m e m — crêem os protocristãos,
interpretanto, nesse sentido, as suas palavras. A expectativa iminente
da Parusia constituía o cerne da fé da c o m u n i d a d e primitiva.
O protelamento da Parusia leva os cristãos à elaboração de u m a
nova concepção cristológica, segundo a qual Jesus, logo após a
morte, sentado à direita de Deus, inaugurou o seu reinado espiritual
através do envio do Espírito Santo. A cruz passa a ser interpretada à
luz da figura do Servo de Javé, o qual, segundo as profecias, carrega
sobre si os pecados do m u n d o e redime os h o m e n s pelo sofrimento
e pela m o r t e "peri pollõrí'.
C o n s e q u e n t e m e n t e , segundo a presente hipótese, as fórmulas
eucarísticas, alicerçadas na interpretação da cruz à luz da figura do
Servo de Javé, não remontariam ao Jesus histórico. Seriam m u i t o
18 DIDASKALIA

mais recentes; remontariam, sim, à c o m u n i d a d e cristã da segunda


geração. Esta, c o m efeito, sob o influxo da cristologia do Servo de
Javé e dos mistérios pagãos teria transformado o banquete fúnebre
e m ceia pascal e esta em anamnese do Crucificado-Ressuscitado. O
Jesus histórico é que nada t e m a ver c o m a eucaristia.

bb) Da ressurreição à morte do Servo de Javé

Será tão tardia a descoberta da figura prototípica do Servo de


Javé? N ã o a terá Jesus referido à sua pessoa e destino, na pregação
ou, pelo menos, na última ceia?
A corrente crítica mencionada acima, da qual Ferdinand H a h n
é u m e l e m e n t o d e s t a c a d o , p a r t e de p r e s s u p o s t o s inaceitáveis,
particularmente, ao reduzir a ressurreição de Cristo à vaga ideia de
u m " a r r e b a t a m e n t o " ao céu, segundo o esquema das lendas de
E n o q u e e de Elias.
Para a c o m u n i d a d e primitiva Jesus não fora arrebatado n u m
carro de fogo. Para ela a ressurreição do Crucificado-, m o r t o e
sepultado, é u m a experiência pneumática incontestável, p o r q u e assente
n o próprio t e s t e m u n h o do Espírito do Ressuscitado. Cristo vive.
Eis o núcleo da fé e do querigma e o p o n t o de partida para a
reflexão teológica.
T u d o aquilo que parecia destituído de sentido faz parte dos
insondáveis desígnios de Deus. O crucificado não é, pois, u m
maldito. Ele é o Messias, que Deus faz sentar-se à sua direita (Sal
110,1), na qualidade de "Kyrios", "Christos" e ' " U i o s " . Da expe-
riência da ressurreição forma-se a primeira cristologia segundo o
m o d e l o da messionologia régia.
Tal cristologia vai, p o r é m , de e n c o n t r o a u m escolho: c o m o
p o d e u m crucificado ser o " u n g i d o " ? H á q u e justificar aquela
morte.
E a ressurreição que lança a primeira luz sobre a m o r t e de
Jesus. Se Ele vive, a sua crucifixão não foi a m o r t e de u m maldito.
Pelo contrário, aconteceu de acordo c o m os imperscrutáveis de-
sígnios de Deus: " P o r v e n t u r a não era necessário que Cristo sofresse
estas coisas e assim entrasse na sua glória?"(Lc 24,26). Mas qual o
significado concreto da sua morte? E a figura do Servo de Javé que
a fornece.
R . S c h n a c k e n b u r g (cf. M S , 3 / 1 ) crê q u e os apóstolos, i l u -
minados pelo Espírito, descobriram o significado soteriológico da
m o r t e de Jesus na alusão ao Servo de Javé que ele próprio fizera n o
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 19

decorrer da última Ceia. Schnackenburg, p o r é m , dá p o r pressu-


posto aquilo que carece de demonstração, isto é, que é originária
a referência à teologia do Servo nas narrações da última ceia.
W . P a n n e n b e r g , p o r seu lado, julga q u e a c o m u n i d a d e des-
cobriu o significado da m o r t e de Cristo através da leitura do Antigo
T e s t a m e n t o : " E c o m e ç a n d o p o r Moisés, p e r c o r r e n d o t o d o s os
profetas, explicava-lhes o q u e dele se achava dito e m todas as
Escrituras"(Lc 24,27). A c o m u n i d a d e lê, pois, as Escrituras à luz dos
novos acontecimentos à busca de sentido para os mesmos. E assim
que os cânticos do Servo de Javé se apresentam c o m o predições
exactas de tudo o que acabara de acontecer: afinal, Jesus morrera
c o m o Servo de Deus peri pollôn, segundo as Escrituras.
Portanto, a interpretação da m o r t e de Cristo, à luz da figura do
Servo de Javé, é corolário da ressurreição (descobre-se a sua c o e -
rência interna e parte-se à procura do seu significado) e segue-se-
-lhe imediatamente, apenas a leitura da c o m u n i d a d e incide sobre o
Dêutero-Isaías, lido à luz da experiência da ressurreição.
A opinião de P a n n e n b e r g encontra confirmação e m antigos
vestígios da cristologia do Servo de Javé:
Act 4,30: dià toü onómatos toü 'agíou paidós sou Iesoü ( " e m n o m e
do teu santo servo Jesus").
Act 6,26-40. A partir de u m a passagem d o Servo de Javé,
Filipe anuncia Jesus Cristo ao e u n u c o etíope.
Fil 2,6-11: "aniquilou-se a si m e s m o , assumindo a condição de
servo e assemelhando-se aos h o m e n s (...), h u m i l h o u - s e a si
m e s m o , t o r n a n d o - s e o b e d i e n t e até à m o r t e , e m o r t e na
cruz".

As palavras exactas "ipsissima verba Jesu" que Cristo p r o n u n -


ciou na última ceia n ã o c h e g a r a m até nós. N ã o c o n s e g u i m o s
reconstituí-las. Pelo m e n o s através da crítica literária das fórmulas
eucarísticas n ã o c o n s e g u i m o s lá c h e g a r c o m certeza absoluta.
Todavia, a associação da cristologia do Servo de Javé à eucaristia,
embora não seja fácil de atribuir ao Jesus histórico, t a m b é m não
parece tão recente c o m o j u l g a m F . H a h n e outros.
Podemos, pois, concluir que a m o r t e de Cristo e a eucaristia
desde m u i t o cedo (primeira c o m u n i d a d e cristã) foram interpretadas
à luz da figura do Servo de Javé. D e o n d e se segue q u e a estrutura
teológica das fórmulas eucarísticas remonta, de facto, à c o m u n i d a d e
dos apóstolos.
20 DIDASKALIA

N o entanto, o hiato entre a c o m u n i d a d e cristã dos apóstolos e


o Jesus histórico não constituirá u m problema insolúvel? A eucaris-
tia não será m e s m o obra interpretativa da comunidade?

b) Ultima ceia de Jesus e eucaristia cristã

O problema enunciado seria insolúvel, se a teologia do Servo


de J a v é fosse p a r t e estrutural da eucaristia; se, p o r e x e m p l o ,
estivesse na sua origem.
T e n h a m o s presente que a tipologia do Servo de Javé em rela-
ção à m o r t e de Cristo d e s e m p e n h o u u m papel m e r a m e n t e inter-
pretativo e, em virtude d o n e x o í n t i m o entre a eucaristia e o
a c o n t e c i m e n t o salvador e m Jesus Cristo, deu entrada nas fórmulas
eucarísticas. D e o n d e se segue que a eucaristia não vai buscar a sua
legitimação a essa interpretação específica do acontecimento central
da salvação.
A justificação da eucaristia está n o n e x o que Jesus estabeleceu
entre a sua última ceia pascal e os acontecimentos à volta da sua
pessoa, i n d e p e n d e n t e m e n t e das interpretações e linguagens que a
c o m u n i d a d e vier a adoptar.
A luz da verosimilhança histórica estabelecida anteriormente
p o d e m o s dizer q u e a eucaristia cristã é o memorial da última ceia
de Jesus, celebrado pela c o m u n i d a d e em obediência ao preceito do
Senhor.
Pois bem, nessa última ceia e na qualidade de Messias, Jesus
celebra c o m os D o z e a ceia pascal messiânica: a páscoa messiânica. N a
qual culmina a páscoa judaica, tal c o m o na sua pessoa e destino
culmina toda a história da salvação. Cristo é a plenitude da história
da salvação, o n o v o acontecimento pascal; n'Ele realiza-se a nova, a
última, a definitiva libertação.
Jesus faz da eucaristia pascal a anamnese deste acontecimento
libertador ( i n d e p e n d e n t e m e n t e das linguagens, images e tipologias
q u e viessem a ser descobertas e adoptadas para o interpretar e
veicular). A eucaristia é essencialmente, e sem mais, a anamnese do
a c o n t e c i m e n t o supremo da salvação.
A cristologia do Servo de Javé nada de essencial lhe acrescenta,
c o m o nada acrescenta à m o r t e de Cristo; apenas a interpreta (nada
p o u c o , pois, dessa forma, foi desvendado, para as mentes de então,
o significado soteriológico da mesma).
P o r conseguinte, a eucaristia cristã não é u m corolário da
cristologia do Servo de Javé, n e m a sua origem depende da apli-
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 21

cação da tipologia do Servo ao Crucificado. O n e x o anamnéstico


entre a eucaristia e o Crucificado é anterior ao m o m e n t o interpre-
tativo, m e s m o anterior ao a c o n t e c i m e n t o histórico. E e m virtude da
anterioridade daquele n e x o que a interpretação sacrificial da m o r t e
de Cristo levará, inevitavelmente, à interpretação sacrificial da sua
celebração anamnéstica, a eucaristia.

• * *

N u m a palavra, a cristologia do Servo de Javé diz que a história


da salvação atingiu a sua plenitude n o Crucificado, e a teologia da
eucaristia conclui, de seguida, que, sendo o Crucificado a plenitude
da história da salvação, a eucaristia é a anamnese do Crucificado,
enquanto anamnese da plenitude da história. C o m tal reflexão a
comunidade nada modifica, nada cria, só c o m p r e e n d e c o m mais
profundidade o sentido do acontecimento de Cristo e o significado
da celebração eucarística.

• • •

E m conclusão, m e s m o que Cristo não tivesse explicado o seu


destino e o significado da eucaristia à luz da tipologia do servo de
Javé — o que ainda não está cabalmente demonstrado — nada se
poderia concluir contra a genuinidade da eucaristia, desde que se
admita que ela é o memorial da última ceia de Jesus e esta é a
plenitude da ceia pascal judaica.

1.2.2. Compreensão sacrificial da eucaristia


D a exposição a n t e r i o r c o n c l u i - s e q u e Jesus, ao c o n f e r i r à
páscoa judaica o sentido de plenitude, instituiu a eucaristia cristã
c o m o anamnese do m o m e n t o culminante da obra da redenção p o r
Ele levada a b o m t e r m o na cruz.
A referência central da eucaristia ao C r u c i f i c a d o (ao c o r p o
martirizado, ao sangue derramado e aos instrumentos de morte)
levaram, desde m u i t o c e d o , a u m a c o m p r e e n s ã o sacrificial da
mesma. Usa-se até a categoria de sacrifício expiatório para definir a
sua n a t u r e z a t e o l ó g i c a . E m q u e m e d i d a e e m q u e s e n t i d o a
eucaristia é sacrifício?
A resposta v e m - n o s dos próprios textos neotestamentários sobre
a instituição da eucaristia.
22 DIDASKALIA

A) Linguagem sacrificial das fórmulas

Diversos são os elementos que a p o n t a m para uma m o r t e c o m -


preendida c o m o sacrifício, e para u m a eucaristia anamnese do sacri-
fício da Cruz, isto é, sacrifício ela mesma (o santo sacrifício da
missa). O s elementos sacrificiais das fórmulas eucarísticas são os
seguintes:

a) sôma ... 'aíma

• Vocábulos sacrificiais?

Sôma não é u m vocábulo cultual-sacrificial, c o m o 'aíma o é. O


b i n ó m i o sacrificial é sárx-'aíma (assim já aparece n o cap. VI de
S.João). O r i g i n a r i a m e n t e , p o r é m , n e m o s e g u n d o t e r m o das
narrações da última ceia p u n h a o acento em 'aíma, mas e m kainè
diathéke. O b i n ó m i o era, pois, f o r m a d o p o r u m par vocabular nada
sacrificial: sôma — kainè diathéke.

• Significado de SÔMA:

Sôma, vocábulo característico da antropologia hebraica, significa


o corpo vivente. Aqui, nas fórmulas eucarísticas, refere-se à pessoa
integral de Jesus, que se dá e m oblação a D e u s pelos homens.
Portanto, ao dizermos "isto é o m e u c o r p o " , não nos referimos ao
corpo martirizado ou exangue de Jesus, mas à pessoa de Cristo.
N o t e - s e que a deslocação de 'aíma para o centro, não levou à
substituição de sôma p o r sárx, de o n d e se conclui que tal deslocação
não obedeceu ao intento de introduzir o carácter sacrificial-cultual.
Explica-se c o m o resultado da paralelização litúrgica e da analogia
c o m o texto da primeira aliança ("sangue da aliança").

• Significado de 'AÎMA:

'Aíma significa "derramar o sangue", o acto de dar a vida, visto


que, segundo a mentalidade hebraica, n o sangue está a vida, exclu-
sivamente pertencente a Deus. N e n h u m a outra oblação lhe é mais
agradável do que a oblação do sangue, o centro da festa do Kippur.
Portanto, 'aíma, vocábulo sacrificial, está mais ligado à ideia de
sacrifício de louvor do que à de sacrifício expiatório ou à ideia de
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 23

sofrimento. O sangue derramado p o r muitos significa "a vida dada


p o r muitos".

Em conclusão, estes dois v o c á b u l o s , u s a d o s nas f ó r m u l a s


eucarísticas, p õ e m e m relevo a oblação que Jesus fez de si próprio a
Deus pelos homens. Ele deu a sua pessoa, a sua vida. D e per si não
nos dão a ideia de u m sacrifício cruento, e n q u a n t o cruento; não é a
crueldade ou o sofrimento que eles acentuam.

b) "O sangue da aliança"

Lc. 22,20: touto tò potérion 'e kainè diathéke en tô 'aímatí mou


(estin en tô emô 'aímati, I C o r 11,25).
M c 14,24: toútó estin tò 'aîma mou tês diathékes
Ex 24,8 (LXX): tò 'aîma tês diathékes
• A fórmula mais antiga é a de Paulo-Lucas, a qual diz: este
cálice ê a nova aliança no meu sangue. A fórmula de Marcos
pressupõe o uso litúrgico tendente ao perfeito paralelismo
c o m a palavra sobre o pão e, além disso, o influxo da ex-
pressão do Ê x o d o acerca da aliança ("o sangue da aliança").
• A fórmula de Paulo-Lucas faz ver c o m o o tema f u n d a m e n t a l
era inicialmente o da "nova aliança"(Jer 31,31). Jesus Cristo
teria, pois, sublinhado que na sua pessoa era selada a nova
aliança, que aquele cálice simbolizava.

C o m o é que na fórmula eucarística se relacionou a " N o v a


Aliança", ou melhor, o "cálice da N o v a Aliança" c o m o sangue?
N ã o foi, c o m certeza, a partir da leitura de Jeremias. Terá sido
em virtude do paralelismo da Antiga Aliança? Essa, de facto, fala do
"sangue da aliança". Mas este sangue é o das vítimas imoladas e m
sacrifício de oblação, c o m o qual Moisés asperge o p o v o . N u n c a se
ouvira dizer que o sangue de u m justiçado pudesse ser considerado
sangue de u m a vítima imolada e m sacrifício de oblação. Só as
profecias do Servo de Javé apresentam o martírio do Servo c o m o
sacrifício expiatório, e m c o n e x ã o c o m a aliança nele. Trata-se,
todavia, de u m discurso metafórico, figurado, q u e evita qualquer
referência ao sangue.
• Perante este p a n o r a m a a f ó r m u l a eucarística só se c o m -
preende c o m o convergência de três factores: a) a celebração
pascal c o m o elemento da N o v a Aliança, realizada n o a c o n -
tecimento messiânico, representada pelo cálice da aliança; b)
24 DIDASKALIA

a teologia do Servo de Javé com o pensamento do sacrifício


expiatório e da aliança; c) o paralelismo com a antiga aliança
n o sangue ("sangue da aliança"); d) simetria dos dois
elementos ou mundos da fórmula.

• * •

Ora então, a teologia do Servo de Javé faz da morte de Cristo


u m sacrifício expiatório e da eucaristia a anamnese do sacrifício da
cruz. Deste m o d o entram em contacto o "cálice da Nova Aliança"
c o m o "sacrifício da cruz", fazendo recordar o êxodo com a
referência ao "sangue da aliança". Descoberta: a nova aliança é de
igual m o d o uma "aliança no sangue", ou melhor, dirá Marcos
citando o Êxodo, o sangue de Cristo é o "sangue da aliança" e o
cálice simboliza-o: "este é o meu sangue da aliança".

• * *

E m conclusão, as expressões "aliança no sangue" ou "sangue da


aliança" pressupõem uma concepção sacrificial do Crucificado e da
Eucaristia, sua a n a m n e s e . T o d a v i a a a c e n t u a ç ã o do carácter
sacrificial através da referência ao sangue não provém da teologia
do Servo de Javé, mas da cadeia de associações gerada pelo recurso
a essa teologia. Segundo crê J.Betz, o tema central e primordial era
o da aliança e não o do sangue. Jesus apresenta-se na última ceia
como novo Moisés a estabelecer a Nova Aliança. Essa aliança é
associada à cruz pela teologia do Servo de Javé e ao sangue pelo
paralelismo da primeira aliança. A primeira fórmula (antioquena)
conserva no centro o motivo da aliança. Só a evolução litúrgica e a
preponderância da figura do Servo fizeram do sangue o motivo
principal, inculcando assim a ideia cultual-sacrificial.

c) didómenon (Lc) ... ekchunnómenon (Mc.Mt.Lc.)


(pão = "que se dá") (cálice = "que se infunde")

Particípios passivos presentes que acentuam o aspecto obla-


cional da morte de Cristo. Trata-se da oblação da vida, nos
termos dos cânticos do Servo de Javé, sem, porém, colocar
o acento no sofrimento como o fizera o Deutero-Isaías.
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 25

d) peri pollôtt (Mt.; Mc/ 'uper/) ... 'uper 'umôn (ÍCor. Lc)
(pão) (pão; Lc.: cálice)

Semelhante precisão confere à oblação o sentido expiatório


acentuado pelos cânticos do Servo: "ele próprio deu a sua vida ....
t o m a n d o sobre si os pecados de muitos h o m e n s " ( I s 53,12). " O
Senhor fazia recair sobre ele o castigo das faltas de todos nós"(Is
53,6).
Portanto a m o r t e de Cristo é u m sacrifício expiatório ("no
lugar de", "por") peri pollôn; aspecto ainda mais acentuado p o r
M t . ao p o r m e n o r i z a r : " p o r m u i t o s h o m e n s e m remissão dos
pecados".

e) Sacrifício e sofrimento

1. Adopção da tipologia do Servo d e j a v é . Para quê? Sentido!

O m o t i v o central dos textos do Deutero-Isaías sobre o Servo é


o significado positivo do sofrimento, da dor, da "vida sem sentido".
N o capítulo 53 lemos:

"desprezado ... escória da humanidade


homem das dores, experimentado nos sofrimentos
... amaldiçoado...
... castigado por nossos crimes
e esmagado por nossas iniquidades;
o castigo que nos salva pesou sobre ele
fomos curados graças a seus padecimentos.

... o Senhor fez recair sobre ele


o castigo das faltas de todos nós.

... foi suprimido da terra dos vivos


morto pelo pecado do meu povo.

... aprouve ao Senhor esmagá-lo sob o sofrimento;

... /ele ofereceu/ a sua vida em sacrifício expiatório


... deu a sua vida
e deixou-se colocar entre os criminosos
tomando sobre si os pecados de muitos homens".
26 DIDASKALIA

O Deutero-Isaías descobre o significado do sofrimento e do


martírio do seu personagem (personificação do profeta) na ideia de
sacrifício expiatório. Nesta transposição deixa cair os elementos
cultuais, carne e sangue, e i n t r o d u z u m e l e m e n t o n o v o (não
existente nos sacrifícios cultuais), o sofrimento da vítima. A cate-
goria de sacrifício expiatório fica subordinada exclusivamente ao
tema: sentido do sofrimento e da m o r t e .
O "escândalo da cruz". Ter-se-á recorrido à tipologia do Servo
de Javé para dar significado à paixão e m o r t e de Jesus?
A história das tradições cristológicas, antes mencionada, diz-nos
q u e tal recurso foi feito, não c o m esse fim, mas para enquadrar a
m o r t e (na cruz) nos planos de D e u s a respeito do Messias. Fez-se
para legitimar a messianidade do Crucificado.

2. O texto e o contexto das narrativas da eucaristia t a m b é m não


a c e n t u a m m i n i m a m e n t e n t e a ideia de paixão ou de sofrimento,
n e m aludem à n o ç ã o de pena, de castigo ou de satisfação. A chave
interpretativa é a ressurreição e a glorificação do Crucificado c o m o
Senhor, Cristo e Filho de Deus. João desloca o tema da exaltação
para o gesto da elevação da cruz.
• O c o n t e x t o da ceia pascal situa-nos n u m banquete fraterno
de "eucaristia", "eulogia" e "anamnese". Portanto, no â m -
bito de u m sacrifício cultual, n o qual se oferecem e conso-
m e m dons divinos, representados nos alimentos.
• O s vocábulos " c o r p o " , "cálice", "nova aliança", "sangue",
neste contexto, falam-nos da pessoa e da vida de Jesus, que
ele oferece a D e u s e m oblação pelos homens.

• * *

A eucaristia arranca do culto pascal j u d a i c o para o qual o


sacrifício não consistia na dor das vítimas. O sofrimento da vítima
não tinha valor algum. Valor tinha a oblação da carne (holocausto)
e principalmente a oblação do sangue, pois n o sangue estava o
mistério da vida. C o m a oblação do sangue restitui-se a Deus a vida
(o sopro) q u e d'Ele havia saído, que só a ele pertence e que a ele
regressa (por isso era p r o i b i d o t o m a r o sangue). Desse m o d o
reconhecia-se que D e u s era o autor e senhor da vida; e tributava-
se-lhe o maior holocausto.
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 27

Segundo a mentalidade cultual judaica, a concepção de sacri-


fício nada tem a ver c o m a ideia de dor, de pena ou de sofrimento;
mas só c o m a noção da vida.
Ora bem, a eucaristia, a ceia pascal, é u m b a n q u e t e sacrificial,
cujos dons são soma e 'aíma, referidos ao a c o n t e c i m e n t o salvífico
em Cristo. Será a dor, o sofrimento, a pena q u e se quer acentuar?
Pois, sem dúvida alguma, o corpo exangue e o sangue derramado
são sinais da crueldade do acontecimento.
Todavia, m e s m o n o inciso de Mateus ("por muitos h o m e n s
para a remissão dos pecados"), não são feitas alusões ao sofrimento
de Cristo. Até nos elementos soma e 'aíma não e n c o n t r a m o s o
carácter cultual-sacrificial b e m expresso (o par sacrificial é sarx e
'aíma, c o m o está patente n o cap. VI de João).

• * •

A própria aplicação das categorias sacrificiais ao Servo de Javé,


portanto ao martírio de u m a pessoa, fez-se apenas metaforicamente
e, por isso, impropriamente, e e v i d e n t e m e n t e e m função de u m
p e n s a m e n t o b e m d e t e r m i n a d o . Q u e se p r e t e n d e u realçar o u
explicar c o m semelhante aplicação? O problema a resolver era o
seguinte: qual o sentido da vida soferente, culminada n o martírio,
de certos profetas, n o m e a d a m e n t e de Jeremias, os quais c o m o
prémio da sua dedicação ao p o v o e à causa de Deus r e c e b e m maus
tratos e a morte?
Resposta: o martírio na vida e na m o r t e do profeta é de grande
significado. E u m sacrifício e x p i a t ó r i o . P o r t a n t o , desloca-se a
atenção do sacrifício-oblação cultual para o sofrimento, q u e preci-
sava de explicação e de sentido. R i g o r o s a m e n t e , ao martírio d o
Servo não deveríamos chamar sacrifício, p o r não ser cultual.
N ã o se t e m i g u a l m e n t e na d e v i d a l i n h a de c o n t a q u e a
aplicação da profecia do Servo a Jesus procurava explicação para u m
problema b e m determinado, o qual não contemplava os sofrimentos
de Cristo. Pretendia-se simplesmente dar sentido à m o r t e de Cristo,
q u e se apresentava c o m o escândalo e l o u c u r a : c o m o é q u e o
crucificado p o d e ser o Messias, q u a n d o "está escrito: maldito t o d o
aquele que é suspenso n o madeiro"(Gal 3,13; cf. D t 21,23)?
A resposta encontrada na figura do Servo foi: na m o r t e , Jesus
c o n s u m o u a sua obra redentora na qualidade de Servo. Messias
segundo a profecia do Servo.
28 DIDASKALIA

• * *

B) A anamnese do Crucificado

As fórmulas eucarísticas apresentam a consumação da vida de


Jesus na cruz c o m o u m sacrifício ("por muitos h o m e n s e m remissão
dos pecados", precisa Mateus). E m que medida e em que sentido a
m o r t e de Jesus é u m sacrifício? A resposta exigirá a distinção entre
o a c o n t e c i m e n t o da m o r t e e as suas circunstâncias.

a) O acontecimento

1. Os dados

O s dados recolhidos ao longo da presente análise p õ e m em


primeiro plano, não as circunstâncias cruentas da m o r t e de Jesus,
mas o seu gesto interior:
• A ceia pascal coloca-nos perante u m N o v o Moisés, liber-
tador do seu p o v o , p o n d o e m relevo a atitude da pessoa de
Jesus e não os trabalhos que teve de suportar.
• As expressões " c o r p o " , "cálice", "nova aliança" e "sangue"
referem-se, não aos despojos de uma vítima sacrificada pela
morte, n e m ao seu sofrimento, mas à pessoa que activa-
m e n t e se deu e que de si deu o mais precioso, a vida.
• P o r t a n t o as narrativas da última ceia estão centradas n o
a c o n t e c e r da salvação ao l o n g o de toda a história q u e
culmina p l e n a m e n t e n o acontecimento de Jesus crucificado
e exaltado à direita de Deus. E m que consiste este acon-
tecimento?

2. Natureza do acontecimento

O h i n o da carta aos Filipenses (Fil 2 , 6 - 1 2 ) f a l a - n o s de


obediência até à m o r t e e m o r t e de cruz. A carta aos Hebreus (Heb.
4,15) diz-nos que Jesus Cristo experimentou todas as condições da
existência humana, m e n o s o pecado. Para o evangelho de João,
Jesus, Filho de Deus, viveu e m perfeita união filial c o m o Pai e
fraterna c o m os h o m e n s seus irmãos.
Nesta perspectiva, a experiência da m o r t e foi u m acto de
supremo a m o r de Jesus ao Pai e aos irmãos. A m o r firme, indes-
trutível. A oblação da sua própria vida. A c o m u n h ã o agápica de
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 29

Jesus c o m o Pai e c o m os irmãos custou-lhe a vida, isto é, foi total,


absoluta c o m o só a p o d e m o s imaginar n u m h o m e m possuído pelo
Espírito do próprio Filho U n i g é n i t o de Deus. Portanto, a m o r t e foi
para Jesus a consumação da sua vida e m perfeita união filial c o m
Deus e fraternal c o m os irmãos. A consumação da vida h u m a n a do
Filho de Deus e do Filho do h o m e m . Através dela Jesus entrou na
plenitude da união agápica c o m o Pai e c o m os irmãos.

3. Sacrifício de oblação

O Crucificado é o p o n t o culminante da história da salvação;


todavia, o seu valor salvífico não depende das circunstâncias ou do
género da sua m o r t e , mas da sua atitude existencial p e r a n t e si
mesmo, perante Deus, os h o m e n s e o m u n d o . O Crucificado é o
Filho de Deus q u e vive a filiação divina até às últimas conse-
quências, sem desfalecer n e m vacilar. A cruz (sofrimento) é apenas
o sinal externo da sua atitude interna. A m o r t e só e m sentido
figurado é u m scarifício, pois, e m sentido próprio, é a consumação
da vida c o m o Filho de Deus.
Essa aconsumação traduz-se n u m a união agápica inquebrantável
com Deus e c o m os homens, pois a vida segundo o espírito é u m a
vida em c o m u m , e m c o m u n i d a d e e para a c o m u n i d a d e . C o m a
morte, a união filial c o m Deus e fraternal c o m os h o m e n s atingiu a
plenitude. A ressurreição significa a consumação plena da união
filial c o m Deus e consumação da união fraternal c o m os homens.
Esta última efectiva-se c o m o regresso d o C r u c i f i c a d o à sua
comunidade, sob a forma de pneuma 'uiothesias, gerando, assim, a
comunidade n o Espírito. O Crucificado c o m o plenitude da história
da salvação é efectivação plena da união pneumático-agápica. Nisto
consiste a desalienação da pessoa, a m o r t e ao corpo do pecado, a
remissão dos pecados.
Portanto Jesus consuma o seu sacrifício e n q u a n t o realiza plena-
m e n t e a união c o m D e u s e c o m os homens. Nesta perspectiva não
temos a ideia de pena, de castigo, de justo preço, etc.. O que te-
mos é uma pessoa e m relação de união total; u m sacrifício-oblação.
U m a imagem simbólica adequada é a do S u m o Sacerdote n o dia do
Kippur, utilizada pela carta aos Hebreus (ephapax-acontecimento:
gesto perene de oferecer o sangue).
30 DIDASKALIA

b) As coordenadas circunstanciais

1. Ambiguidade das circunstâncias históricas

As circunstâncias históricas da oblação de Jesus Cristo são


ambíguas. Significam "escândalo" para os judeus, " l o u c u r a " para os
romanos, "sabedoria de D e u s " para os crentes. T u d o depende dos
critérios de interpretação.

2. Interpretação das circunstâncias

O s protocristãos interpretaram-nas à luz da ressurreição e das


profecias, elas t a m b é m lidas à luz da ressurreição.

3. Significado das circunstâncias

Q u a l o significado da paixão e da m o r t e violenta?


Pena? Castigo? Preço satisfatório pelos pecados dos homens?
A luz de q u a n t o ficou dito, a m o r t e de Cristo não é u m
castigo pelos pecados, mas a vitória definitiva sobre o pecado, a
vitória gloriosa sobre a alienação. Aos olhos do m u n d o , Jesus é u m
humilhado, u m aniquilado, u m fracassado, mas aos olhos de Deus e
dos crentes Ele é o " e x a l t a d o " ( c o m o é visto p o r João na cruz e
c o m o Ele próprio se vê: " n ã o choreis p o r mim..."). O que para o
m u n d o é escândalo e loucura é para Deus sabedoria e vitória. O
q u e para os carrascos é m o r t e , para D e u s e para os crentes é
ressurreição, é vida gloriosa.
A m o r t e de Jesus só é m o r t e para a alienação.
D a m o r t e e do sofrimento não nasce a vida; a vida nasce da
vida.
O sofrimento de Jesus não gerou a "filiação divina", c o m o a
dor do parto não gera a criança. N o entanto a vida da mãe e da
criança é posta à prova, manifestando-se mais forte que a dor e a
m o r t e . C o m o n a s c i m e n t o a vida celebra a vitória! A d o r é
testemunha da vitória da vida. Assim, na cruz, a filiação divina de
Jesus, e m vez de sucumbir sob o peso do sofrimento, vence e
celebra a vitória para si e para nós. O sofrimento dá testemunho da
p r o f u n d i d a d e da união filial de Jesus ao Pai e do seu amor fraternal
para c o m os h o m e n s seus irmãos.
A esta luz, a m o r t e de Cristo deve ser compreendida c o m o
oblação-doação suprema a Deus e aos homens. A oblação da vida
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 31

física t o r n a - s e s í m b o l o s e n s í v e l da sua o b l a ç ã o a g á p i c a . As
circunstâncias cruentas da sua m o r t e , vistas à luz da figura do servo
de Javé e do paralelismo c o m o "sangue da aliança", p o d e m levar-
-nos a exprimir este símbolo em linguagem sacrificial, a qual, apesar
de certa capacidade expressiva, será sempre inadequada para expri-
mir a oblação de Cristo, que ao nível agápico transcende absoluta-
m e n t e as categorias sacrificiais, na mesma medida e m que o a m o r
excede o f o r m a l i s m o ritual, frio, da oblação de dons, m e s m o
quando estes são soma (sárx) — 'aíma.
A m o r t e de Cristo é mais do q u e u m sacrifício, é o mistério do
amor. A cruz é o símbolo mais cru e radical do amor, ou da união
agápica c o m Deus.

c) A Eucaristia como sacrifício

A eucaristia é a anamnese do acontecimento da salvação e m


Jesus Cristo. P o r conseguinte será a anamnese d o sacrifício da cruz
na medida e n o sentido e m que aquela é considerada de sacrifício.
A reflexão anterior, p o r é m , faz-nos ver c o m o n o centro do
mistério da cruz temos a pessoa de Jesus. T e m o s o Crucificado, na
sua dimensão mais íntima, mais espiritual ou relacional c o m D e u s e
c o m o p r ó x i m o . Por tal razão a forma mais correcta de expressar a
d i m e n s ã o sacrificial da eucaristia consiste e m falar dela c o m o
"anammese do crucificado". Pois a plenitude da salvação está n o
crucificado, do qual a eucaristia é a anamnese. C o n s e q u e n t e m e n t e a
eucaristia é a anamnese da m o r t e de Cristo, c o m o plenitude da
salvação, isto é, c o m o sacrifício de Cristo.

1.2.3. Natureza sacramental da eucaristia

A — "Mistério de Deus" e eucaristia

a) Recapitulação e nexo

A eucaristia foi caracterizada c o m o a " a n a m n e s e pascal d o


crucificado" ou, p o r outras palavras, c o m o a "anamnese do aconte-
c i m e n t o de C r i s t o " ou ainda c o m o " a n a m n e s e d o mistério de
Cristo". Se preferimos a primeira expressão foi para sublinhar as
circunstâncias históricas desse a c o n t e c i m e n t o e mistério: C r u z -
Ressurreição, n u m contexto pascal.
Depois de termos aquilatado da índole, alcance e limites da
interpretação sacrificial da m o r t e de Jesus Cristo e da celebração
32 DIDASKALIA

eucarística, vamos tecer algumas considerações sobre a natureza


sacramental da eucaristia à luz da noção paulina de mistério e dos
elementos colhidos até agora.

b) Conceitos

P r e s s u p o m o s a n o ç ã o de m i s t é r i o / s a c r a m e n t o s e g u n d o a
teologia bíblica, patrística e contemporânea, exposta em Eclesiologia
e n o capítulo sobre a noção de sacramento. Vamos, p o r é m , precisar
a noção de anamnese à luz da teologia judaico-cristã (distinguir
entre "judaico-cristão" e "judeo-cristão").
Anamnese não significa só (nem essencialmente) uma evocação
comemorativa (cultual) de pessoas ou de acontecimentos passados.
A celebração pascal dos j u d e u s recordava u m acontecimento
passado, que se projectava pelos tempos fora; que se actualizava em
cada m o m e n t o da história do p o v o . O j u d e u , o n d e quer que se
encontrasse, sentia-se libertado do Egipto j u n t a m e n t e c o m os seus
antepassados e via nessa libertação a fonte de todas as libertações,
d u m m o d o particular da libertação messiânica.
A Páscoa, c o m efeito, celebra a libertação passada, actual e
futura do indivíduo e da c o m u n i d a d e .
Pois bem, nesta linha, a eucaristia c o m o anamnese pascal do
c r u c i f i c a d o , a l é m de c o m e m o r a r u m a c o n t e c i m e n t o h i s t ó r i c o
passado, celebra u m a c o n t e c i m e n t o p e r m a n e n t e m e n t e actual, u m
ephápax-acontecimento que se torna tangível e experienciável nela e
na comunidade. Este ephápax significa perenidade total e efectiva.
O Crucificado existe c o m o realidade acessível e m cada m o m e n t o da
história. (Este o p o n t o de partida para a compreensão da presença
real de Cristo na eucaristia).
O q u e é que, e f e c t i v a m e n t e , se torna presente (anamnes-
ticamente) na eucaristia?

c) O Mistério de Cristo

A resposta é b e m simples: o Mistério de Cristo. Tal resposta,


p o r é m , afasta i m e d i a t a m e n t e q u a l q u e r c o m p r e e n s ã o estática da
eucaristia. N ã o se trata, c o m efeito, de presencializar magicamente
um objecto (nem ectoplasmaticamente, como diria a
parapsicologia), o qual ficaria ao alcance da manipulação humana.
A eucaristia é o a c o n t e c i m e n t o da salvação em toda a sua
extensão e plenitude, cujo m o m e n t o culminante e perene é acção
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 33

d o C r u c i f i c a d o - G l o r i f i c a d o na q u a l i d a d e de " E s p í r i t o v i v i f i -
c a n t e " ( " P n e u m a z o o p o i o n " , I C o r 15,45). Esta "vida" gera u m a
nova humanidade, a "Ekklesia tou T h e o u " , que é o " S o m a tou
Christou", o "Pleroma tou Christou", o "Mysterion tou
T h e o u " ( " t o u Christou"). E m última análise, o a c o n t e c i m e n t o total
da salvação c o n d e n s a - s e na C o m u n i d a d e , e n t e n d i d a c o m o c o -
m u n h ã o efectiva entre os irmãos " e m Cristo" e, " e m Cristo" Filho
U n i g é n i t o de Deus, c o m o Pai.
Portanto, o acontecimento que se c o m e m o r a anamnesticamente
na Eucaristia e nela se realiza efectivamente é o Cristo que gera a
C o m u n h ã o , o Cristo elo de c o m u n h ã o , o Cristo c o m u n h ã o filial e
fraterna. N e s t e plano, a eucaristia é o m i s t é r i o / s a c r a m e n t o da
c o m u n h ã o ; celebra e realiza a c o m u n h ã o , a Igreja; auto-celebra-se e
auto-realiza-se c o m o c o m u n h ã o eclesial.
Invertendo a perspectiva, diríamos q u e a eucaristia celebra-
realiza a c o m u n h ã o eclesial dando expressão sensível à c o m u n h ã o
pneumática estabelecida entre os crentes e Cristo e, n o seu Espírito
de Filiação, c o m o Pai e, dessa forma, c o m e m o r a anamnesticamente
todos os m o m e n t o s da história da salvação, de u m m o d o m u i t o
particular o a c o n t e c i m e n t o culminante: a pessoa, o destino e a
oblação de Jesus Cristo (incarnação, vida, m o r t e , ressurreição e
geração da Igreja).
A esta totalidade refere-se Santo Agostinho q u a n d o afirma que
a eucaristia celebra o Christus totus. Agostinho serve-se d o tríplice
significado da expressão " C o r p u s Christi" para o explicar. C o m
efeito, o "Christus totus" engloba:
• O Corpus Christi terreno, crucificado e ressuscitado;
• O Corpus Christi eclesial;
• O Corpus Christi eucarístico.

O " C h r i s t u s t o t u s " é c e l e b r a d o na Eucaristia, na m e d i d a


e m q u e o " C o r p u s C h r i s t i e u c h a r i s t i c u m " dá c o r p o sensível
ao " C o r p u s Christi m y s t i c u m " e ao " C o r p u s Christi crucis et
gloriae".
E m conclusão, na eucaristia não está e m questão, só e princi-
palmente, a repetição dos gestos de Jesus na última ceia e a repre-
sentação-reprodução da cena do calvário, através da transformação
do pão n o corpo martirizado e do vinho n o sangue derramado;
mas, a u m nível mais f u n d o , o acontecimento da salvação e m toda
a sua totalidade h i s t ó r i c o - p n e u m á t i c a , a q u e se r e f e r e m as e x -
pressões paulinas de "Mistério de D e u s " — "Mistério de Cristo".
34 DIDASKALIA

O Sacramento da Eucaristia é este "Mistério de Deus" em acto,


envolvendo na celebração todas as partes da comunhão: a Igreja n o
lugar, a Igreja Universal (terrena e celeste) e a comunidade trinitária.

B — Rito e linguagens

A Eucaristia, c o m o sacramento, é uma actuação do "Mistério


de Cristo" n o m u n d o corpóreo, por isso deve expressar-se c o r p o -
reamente e da forma mais adequada, c o m o exigência da própria
natureza do rito.

a) Linguagem anamnéstico-sacrificial

O t o m acrificial da fórmula eucarística recorda as circunstâncias


externas da consumação de Jesus c o m o Filho de Deus. Dá, além
disso, u m a ideia da atitude íntima de Jesus, q u e se dá, que se
oferece e m holocausto (=oblação espiritual) pelo outros. R a z ã o
p o r q u e se diz que a m o r t e de Cristo t e m u m valor salvífico univer-
sal e q u e nela foram perdoados os pecados (teoria da satisfação).
Deve-se, pois, reconhecer que a linguagem sacrificial ao evocar
as circunstâncias da m o r t e de Cristo (interpretada à luz da profecia
do Servo de Javé e da aliança n o sangue) nos sugere a ideia de
oblação da própria vida, não e m sentido cultual, mas existencial
(dar a vida pelos outros). Pela morte, Jesus consuma a doação da
sua vida ao Pai e aos irmãos; oblação de tal maneira eficaz que
transforma os homens, de alienados e m Filhos de Deus.
Portanto, ao dizermos que a eucaristia é a anamnese do C r u -
cificado, e n t e n d e m o s que ela, recordando o m o m e n t o histórico da
consumação da união agápica do Filho de D e u s c o m o Pai e c o m
os irmãos, reactualiza, faz reviver e faz aprofundar a união agápica
dos filhos de Deus.
Esta linguagem sacrificial é de manter, p o r conservar a relação
da Eucaristia ao a c o n t e c i m e n t o histórico da salvação, devendo-se,
n o entanto, evitar exageros, que e m vez de darem sentido à m o r t e
de Cristo a esvaziam. C o m efeito, a m o r t e de Cristo não é u m
castigo ou pena pelos pecados, mas a expressão inequívoca do amor
que u n e Cristo ao Pai e aos irmãos.

b) Linguagem convivial

Esta l i n g u a g e m é e x t r e m a m e n t e apta para expressar o v e r -


d a d e i r o c o n t e ú d o da eucaristia: o m i s t é r i o da c o m u n h ã o . E,
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 35

todavia, a mais desprezada. Falou-se p r e d o m i m a n t e m e n t e do sacri-


fício da cruz. Imaginou-se nas espécies do pão e do vinho, respecti-
vamente, o cadáver de Cristo, suspenso da cruz, e o sangue derra-
m a d o . Assistia-se à missa c o m o M a r i a d e M a g d a l a assistiu à
crucifixão de Jesus n o Calvário, de coração confrangido p o r tão
horrível crime cometido pelos facínoras dos j u d e u s contra o Filho
de Deus: u m verdadeiro deicídio.
E m vez de "cenáculos" ou salas de convívio fraterno, fizeram-
-se templos c o m altares para o sacrifício, e s q u e c e n d o - s e q u e a
eucaristia é "banquete pascal".
A refeição, principalmente o banquete, possui a capacidade de
significar a amizade e de estreitar ainda mais os laços conviviais.
Neste simbolismo antropológico o cristianismo encontra a forma
ritual mais apta para expressar a dimensão mais p r o f u n d a e íntima
do mistério da c o m u n h ã o , a ágape universal.
O s alimentos, p o r sua vez, simbolizam os dons messiânicos que
sustentam a c o m u n i d a d e e lembram que a pessoa de Jesus é o elo
de união entre todos. O gesto de c o m e r e beber simboliza, p o r sua
vez, a gratuidade dos dons (do espírito da fraternidade). C o m
efeito, o alimento que t o m a m o s é d o m , o corpo e o sangue dados
(significado antropológico de corpo e de sangue). E, p o r o u t r o
lado, somos convidados, convivas, comensais.
Portanto, tendo e m conta o simbolismo convivial, não se deve
p r o c u r a r na eucaristia o a l i m e n t o individual, pois q u e nela o
principal não consiste n o simples c o m e r e beber ou n o alimento e m
si, mas n o c o m e r e n o beber e m convívio.

II — Presença Real de Cristo na Eucaristia

2.1. Questão

A eucaristia, c o m o anamnese pascal do Crucificado, é u m ban-


quete, n o qual se c o n s o m e m os dons messiânicos. C o m e - s e a carne
e bebe-se o sangue do Crucificado, de acordo c o m as expressões do
cap. VI do ev. de João:
• v.51: " O pão que eu h e i - d e dar é a minha carne(sárx)".
• v.52: " C o m o p o d e este dar-nos a c o m e r a sua carne?"
• v.53: "Se não comerdes a carne do Filho do H o m e m e não
beberdes o seu sangue não tereis a vida e m vós".
36 DIDASKALIA

• v.54: " Q u e m c o m e a minha carne e bebe o m e u sangue".


• v.55: " A m i n h a carne é deveras u m a comida e o m e u
sangue deveras u m a bebida (alethés brôsis — alethés pósis)".
• v. 56: " Q u e m c o m e a minha carne e bebe o m e u sangue
p e r m a n e c e e m m i m e eu nele".
• v.57: " O que me c o m e viverá p o r m i m " .
• v.61: "Isto vos repugna?"

Q u e significa comer a carne e beber o sangue de Cristo?


J o ã o serve-se de u m complexo simbolismo para esboçar o rosto
espiritual de Jesus. Logos. luz, cordeiro, água viva, vida, b o m
pastor, caminho, verdade, ressurreição, pão descido dos céus. N o
cap. VI serve-se d o símbolo do pão, que dá a vida, para sublinhar o
valor soteriológico da pessoa e do destino de Jesus n o aconteci-
m e n t o da cruz, celebrado na eucaristia cristã.
E m primeiro lugar, c o m o pão-palavra a ser recebido na fé. E m
seguida, c o m o pão eucarístico, pelo qual o crente participa n o
a c o n t e c i m e n t o da cruz, e n t e n d i d o c o m o o sacrifício do cordeiro de
Deus. A eucaristia é u m banquete sacrificial, n o qual se c o n s o m e m
os despojos da vítima: a carne e o sangue.
Mas, toda a gente sabe que, na eucaristia, se c o m e pão e se
b e b e vinho. P o r isso m e s m o , c o m o fim de elevar o crente acima
da esfera m e r a m e n t e simbólica, é q u e J o ã o fala, não de pão e de
vinho, mas de carne e de sangue. N a verdade, embora composta de
pão e de v i n h o , esta refeição não é u m a simples evocação do
sacrifício de Cristo, mas u m a verdadeira anamnese do mesmo, n o
qual o crente c o m e verdadeiramente carne, ao tomar o pão, e bebe
verdaderiramente sangue, ao tomar o vinho.
Neste contexto a linguagem torna-se compreensível como
m e i o para inculcar o realismo da eucaristia c o m o anamnese do
Crucificado; é igualmente compreensível a preocupação de João em
sublinhar que a salvação, a vida eterna, gerada p o r Cristo na Cruz,
nos é acessível e m t o d o o seu realismo e totalidade sob a forma de
refeição, na qual t o m a m o s o verdadeiro pão descido do céu: o
crucificado.
Todavia, quererá João, além disso, dizer-nos que Jesus se torna
fisicamente presente? Será aquele pão, de facto, a carne física de
Jesus e aquele v i n h o o seu sangue físico?
E m suma, terá J o ã o usado u m a linguagem fisicista para inculcar
o realismo transfísico da eucaristia, ou terá ele pretendido f u n d a -
m e n t a r o realismo p n e u m á t i c o n u m a presença física de Cristo
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 37

materializada na carne e n o sangue, tal c o m o foram sacrificados na


cruz?
A resposta a esta questão será dada e m dois m o m e n t o s suces-
sivos:
- N o primeiro, precisar-se-á a espécie de presença de Cristo na
Eucaristia.
- E n o s e g u n d o , p r o c u r a r - s e - á saber c o m o se realiza tal
presença. Por m e i o de u m a transubstanciação?

2.2. Panorama histórico

A — Até à Idade Média

Antes da Idade Média não h o u v e reflexão sobre o assunto. O s


Santos Padres falam da presença real de Cristo na eucaristia sem
especificar a n a t u r e z a de tal p r e s e n ç a . C a r a c t e r í s t i c a , para os
primórdios do cristianismo, é a posição da Didaché, segundo a qual
a eucaristia (tal c o m o o ressuscitado) pertence à esfera das realidades
m e r a m e n t e espirituais: "Spiritualem c i b u m et p o t u m " ( D i d 10,3:
peumatikèn trophèn kai potórí). N a mesma linha, escreve Tertuliano
contra Marcião: "Isto é o m e u corpo significa: isto é o símbolo
(figura) do m e u c o r p o " ( A d v . Marcião: IV 40).

B — Berengário de Tours

Berengário de T o u r s (1000-1088) provoca u m a grande disputa


acerca da presença real de Cristo na eucaristia, ao aplicar-lhe, c o m
e x t r e m o rigor, a definição agostiniana de sacramento ( " s i g n u m
sensibile"). Segundo a sua opinião, o pão e o v i n h o são "figura et
s i m i l i t u d o " d o c o r p o e d o sangue de C r i s t o glorificado. E a
expressão "isto é o m e u c o r p o " t e m u m sentido figurado c o m o
estoutra "Cristo é a pedra angular".
Berengário foi c o n d e n a d o diversas vezes e teve de se retractar
duas vezes; a última teve lugar e m 1079 n u m sínodo quaresmal, sob
Gregório VII:

"Ego corde credo et ore c o n f i t e o r p a n e m et v i n u m


substantialiter converti in veram et propriam carnem et sanguinem
Jesu Christi et post consacrationem esse verum Christi corpus et
verum sanguinem Christi /.../ non tantum per signum et virtutem
sacramenti, sed in proprietate naturae et veritate substantiae"(DS
700).
38 DIDASKALIA

"Creio de coração e confesso com a boca que o pão e o


vinho se convertem substancialmente na verdadeira e própria
carne e sangue de Jesus Cristo e que depois da consagração são o
verdadeiro corpo de Cristo e o verdadeiro sangue de Cristo /.../
não somento por meio do sinal e em virtude do sacramento, mas
em propriedade da natureza e na verdade da substância".

E m 1059, n o sínodo r o m a n o sob Nicolau II, Berengário teve


de professar que ao t o m a r o pão se triturava c o m os dentes o
próprio corpo de Cristo (cf. D S 690: "Profiteor / . . . / p a n e m et
v i n u m / . . . / post c o n s a c r a t i o n e m n o n s o l u m s a c r a m e n t u m , sed
etiam v e r u m corpus et sanguinem D o m i n i nostri Iesu Christi esse,
et sensualiter, n o n s o l u m sacramento, sed in veritate, manibus
tractari et frangi et fidelium dentibus atteri").
B o a v e n t u r a e T o m á s de A q u i n o n ã o deixaram de criticar
semelhantes profissões de fé.
B o a v e n t u r a diz q u e se trata de u m a " f o r m u l a ç ã o excessi-
va"("quamvis nimis expressa", In IV Sent. d . l 2 , p . l , a.3, p . l , p.2PA).
E T o m á s de A q u i n o escreve: " N ã o se come, n e m se mastiga Cristo
c o m os dentes, na sua própria corporeidade, mas nas suas aparências
sacramentais"(STh III, q.77, a.7, ad 3: " C o r p u s autem Christi n o n
m a n d u c a t u r in sua specie, sed in specie sacramentali / . . . / . Ipsum
corpus Christi non f r a n g i t u r , nisi s e c u n d u m speciem
s a c r a m e n t a l e m " ) . O u t r a expressão característica de T o m á s é a
seguinte: "Species sacramentales sunt sacramenta corporis Christi
v e r i " ( S T h III, q.77, a.7). Boaventura t a m b é m se exprime de forma
semelhante: "estas são as aparências dos santíssimos sinais"("species
sanctissimorum s y m b o l o r u m " , In IV Sent., d.9, a.2, q . l , ad 5).
A l i n g u a g e m de B o a v e n t u r a e de T o m á s — seguida pela
maioria dos teólogos — é p r o f u n d a m e n t e diferente da linguagem
das profissões de fé de Berengário. D e u m lado, temos a linguagem
sensualística do magistério e do p o v o e, do outro lado, temos a
linguagem sacramental dos teólogos mais esclarecidos.

C — Os Reformadores

O s R e f o r m a d o r e s n e g a m u n a n i m e m e n t e a transformação subs-
tancial e o carácter sacrificial da eucaristia. Divergem, entre si, a
respeito da presença real de Cristo.
Lutero m a n t é m a fé na presença real de Cristo in usu. Para ele
não se verifica u m a transformação substancial, mas apenas u m a
coexistência do corpo e do sangue c o m o pão e o vinho.
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 39

Zwinglio nega a presença real. E m sua opinião, o pão e o v i n h o


são simples símbolos. A eucaristia é u m a evocação da redenção pela
morte de Cristo e u m a profissão de fé da c o m u n i d a d e .
Calvino, seguindo Wyclif, nega a presença substancial do corpo
e do sangue e d e f e n d e a presença de Cristo secundum virtutem.
Presença dinâmica, funcional.
Os historiadores das religiões d e f e n d e m que a última ceia de Jesus
é uma ceia de adeus (segundo João) e q u e a eucaristia nesce dos
convívios apostólicos. Paulo é que lhe terá dado o carácter místico
de anamnese da m o r t e de Cristo, c o m o participação do crente n o
próprio destino de Cristo.

D — Teologia tradicional

aa) Posição do Concílio de Trento (sess. XIII: Decretum de ss.


Eucharistia, can. 1: DS 1651):
"Si quis n e g a v e r i t , in sanctissime E u c h a r i s t i a e s a c r a m e n t o
contineri vere, realiter et substantialiter, corus et sanguinem una c u m
anima et divinitate D o m i n i nostri Iesu Christi ac p r o i n d e t o t u m
C h r i s t u m ; sed dixerit, t a n t u m m o d o esse in eo ut in signo vel
figura, aut virtute: anathema sit"(cf. D S 1636; 1640).

bb) Argumento do cardeal Wiseman:

1) J o 6,51-58: compreensão fisicista:


- Sentido natural das palavras: v. 55: alethès brôsis — alethès pósis;
v.54ss: trógein = roer, triturar com os dentes, mastigar, comer.
- Dificuldade da interpretação figurada: comer a carne e
beber o sangue significa (na Bíblia) perseguir alguém de morte;
aniquilar alguém (Sal 26,2; Is 9,20; 49,26; Miq. 3,3).
- Os ouvintes compreendem as palavras de Jesus em sentido
físico. Jesus não corrige tal compreensão, mas até provoca os seus
discípulos (vv. 60ss).

2) As fórmulas da instituição:
toûto estin tò soma mou
toûto estin tò 'aima mou

- As expressões tomadas à letra identificam o pão com o


corpo e o vinho com o sangue;
- A alusão ao sangue da aliança ('aímá mou tês diathékes, Ex
24,4-8) indica tratar-se mesmo de sangue físico.
40 DIDASKALIA

- Infalibilidade do locutor: Cristo não pode rpovocar o


equívoco nos ouvintes.

3) I C o r 11 e 10:

- Como pode o cristão ser réu do corpo e do sangue de


Cristo se na eucaristia o corpo e o sangue de Cristo não se
encontram realmente presentes (ICor 11,27-30)?
- A "koinonia" do sangue e do corpo de Cristo exige que o
corpo e o sangue de Cristo estejam realmente presentes na
eucaristia (1 Cor 10,16).

cc) Observações da exegese contemporânea

1) O significado de estín:

J . D U P O N T (Ceci est mon corps, ceci est mon corps, in NRTh 80,
1958) d e f e n d e q u e , a l é m de o estín n ã o c o n s t a r na f ó r m u l a
aramaica, esta, compreendida à luz da mentalidade semita e bíblica,
não implica identidade; corresponderia à seguinte: "isto significa
(representa) o m e u c o r p o " . Paralela a outras expressões bíblicas, tais
c o m o : " e u sou o aprisco"; " e u sou a v i d a " . " A b a n d o n e m o s ,
portanto — conclui D u p o n t — , sem hesitar u m a r g u m e n t o sim-
plista que não prova nada".
B E N O I T é do m e s m o parecer. C h a m a a atenção para a lin-
guagem das parábolas: " o campo é o m u n d o " ( c f . Lumière et vie
31,1957).
B O I S M A R D afirma: " E m si a frase poderia entender-se rigo-
r o s a m e n t e n u m sentido p u r a m e n t e c o m p a r a t i v o , c o m o q u a n d o
Cristo afirma: eu sou a videira, vós sois os sarmentos"(Lumière et
vie, 31, 1957).
Portanto, a partir da análise filológica da expressão, não é lícito
f u n d a m e n t a r u m a compreensão fisicista da presença de Cristo na
eucaristia (corpo e sangue físicos).

2) Sentido bíblico de soma e de 'aíma:

N e n h u m destes vocábulos se refere a c o m p o n e n t e s materiais do


corpo h u m a n o :
- soma é a pessoa humana;
- 'aima é a vida da pessoa;
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 41

- o binómio soma — 'aima (— basar — dam; bisra — dema)


significa a pessoa humana em atitude de auto-doação soteriológica.

Neste binómio temos uma referência à vontade salvadora de Cristo.


W i n k l h o f e r conclui: " O corpo e o sangue designam, cada u m
p o r si, a pessoa corpórea de Jesus c o m o objecto sacrificial". D a
mesma forma opinam: Baciocchi, J.Betz, H . S c h ü r m a n n , K . R a h n e r
e a quase totalidade dos exegetas e teólogos c o n t e m p o r â n e o s . '

- Recorde-se que o binómio originário não era soma —


'aima, mas soma — diathéke (linguagem nada sacrificial).

2.3. Natureza da Presença de Cristo na Eucaristia

A — A opinião tradicional (• demasiado Jisicista

As palavras da fórmula eucarística não possuem u m significado


fisicista. Falam-nos e m linguagem bíblica do mistério d o C r u c i -
ficado, cuja anamnese é o banquete eucarístico.
Este, p o r sua vez, c o m o anamnese, actualiza e presencializa o
mistério íntimo do Crucificado, recordando, de m o d o simbólico, as
circunstâncias martiriais da m o r t e de Jesus. C o m o a essas circuns-
tâncias está u n i d o o verdadeiro mistério, procurou-se, através delas,
penetrar na compreensão do mistério, à luz da figura do Servo de
Javé e do motivo: "sangue da aliança". Estamos, p o r é m , diante de
uma linguagem figurativa que vê n o "derramar o sangue" e na
"inanição martirial do c o r p o " u m acto sacrificial expiatório para o
perdão dos pecados da humanidade. A partir de semelhante inter-
pretação, começa-se a centrar toda a atenção n o "sangue" e n o
" c o r p o " . O mistério d o C r u c i f i c a d o passa a ser o mistério d o
" c o r p o e do sangue". E a eucaristia a anamnese do " c o r p o e do
sangue" de Cristo.
Tal linguagem é aceitável se for mantida na esfera simbólica,
pois o sangue derramado e o corpo martirizado p o d e m m u i t o b e m
exprimir o acontecimento de consumar a união c o m D e u s e c o m
os homens através do martírio.
O mal estaria na materialização da l i n g u a g e m e na trans-
formação das circunstâncias e m núcleo do acontecimento, ao p o n t o
de se identificar a redenção c o m o sangue e corpo materiais do
Crucificado; r o u b a n d o ao Crucificado o seu valor soteriológico e
p e r d e n d o sobretudo a visão mais p r o f u n d a da redenção.
42 DIDASKALIA

O r a , a eucaristia não é anamnese das circunstâncias, mas a


anamnese do mistério do Crucificado tal c o m o ele se eternizou no
m o m e n t o da cruz. Jesus existe hoje na condição de Crucificado,
isto é, na condição de Filho de Deus, u n i d o a Deus c o m amor
indestrutível, e m cujo amor t o d o o h o m e m se p o d e unir a Deus. A
consumação deste a m o r na cruz torna-se efectivamente presente na
eucaristia. O pneuma e, p o r isso, a pessoa do Crucificado estão
realmente presentes na eucaristia. O Crucificado está presente na
eucaristia. Nesta, o p n e u m a da união (pneuma 'uiothesías) torna-se
presente c o m toda a eficácia do primeiro m o m e n t o , o m o m e n t o da
consumação na cruz.
A simbologia da eucaristia t e m a capacidade de exprimir, seja o
mistério í n t i m o da c o m u n h ã o (banquete), seja o n e x o c o m o
m o m e n t o histórico. O s dons sobre a mesa representam o d o m da
união e recordam as circunstâncias históricas desse d o m . Isto é, o
d o m é representado nas suas vestes externas: corpo e sangue —
(carne e sangue, usando a terminologia de João).
Simbolicamente, na eucaristia, é c o m o se se comesse a carne e
bebesse o sangue de Jesus, pois essa carne e esse sangue são o
símbolo ou t e s t e m u n h o real e histórico da sua oblação a Deus pelos
homens. O sangue e a carne, isto é, o martírio de Jesus são o sinal
externo da atitude interna de Jesus c o m o Filho de Deus, unido a
Deus p o r u m amor indestrutível. P o r isso, na esfera da simbologia,
p o d e m o s dizer que o pão é a carne e o v i n h o é o sangue do
Crucificado; sabendo, p o r é m , que e m realidade afirmamos que os
dons eucarísticos actualizam anamnesticamente o d o m do C r u c i -
ficado. Nesses dons torna-se presente o Crucificado c o m o d o m para
os h o m e n s . A o participar nos dons eucarísticos participamos n o
d o m do Crucificado.
A opinião tradicional, ao ver n o pão " c a r n e " real, física a
escorrer sangue e n o v i n h o sangue físico, desprezou o sentido
p r o f u n d o da eucaristia e não percebeu nada da linguagem sim-
bólica. Fez da linguagem o c o n t e ú d o e perdeu o conteúdo da lin-
guagem.
Aliás, esta depauperação verificou-se principalmente n o Ocidente
romano, onde se apreciavam conceitos claros e n e n h u m valor se dava à
linguagem simbólica dos orientais. Pois, se para João tanto mais
p r o f u n d o era o sentido da eucaristia, quanto mais real e fisicista era a
sua linguagem; para os ocidentais, pelo contrário, tão fisicista é a
compreensão c o m o o é a linguagem. Daí, comer o pão é comer a
carne e tomar o cálice é beber sangue, em sentido real-físico. O
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 43

mistério não está na profundidade do simbolismo, mas na falta de


evidência física: aparentemente pão e vinho, realmente carne e sangue.
Q u e carne e que sangue? A carne e o sangue físicos do C r u c i -
ficado?
Desilusão!
Esses não existem. N e m na última ceia de Jesus os apóstolos
c o m e r a m a sua carne e beberam o seu sangue, fisicamente. Q u e
absurdo! Igual absurdo após a m o r t e de Jesus.

B — Presença pessoal

Por conseguinte o que se presencializa sacramentalmente na


eucaristia não é a carne e o sangue físicos do Crucificado, mas a
pessoa do Crucificado tal c o m o existe hoje. As palavras soma —
'aíma significam a pessoa, a l u d i n d o à sua c o n d i ç ã o oblacional
propiciatória e, p o r isso, às circunstâncias da consumação da r e d e n -
ção, da qual a eucaristia é a anamnese.
" O corpo e o sangue designam, cada qual p o r si, a pessoa
corpórea de Jesus, c o m o objecto de sacrifício"(Winklhofer).
E m suma, na eucaristia torna-se realmente presente o Cristo
vivo da glória. " N o sacramento da eucaristia está contido verda-
deira, real e substancialmente o c o r p o e o sangue, a alma e a
divindade e por isso m e s m o o Cristo todo " ( T r e n t o , cf. atrás).
Qual o interesse salvífico desta afirmação solene do Concílio?
Qual o interesse de u m a eucaristia só para que o Cristo t o d o esteja
presente?
Há aqui uma preocupação estático-ontológica q u e p o u c o se
interessa da pragmaticidade das coisas.

C — Presença dinâmica

A linguagem corpo (carne) — sangue situa-se na cruz, fala-nos


de u m a presença dinâmica, soteriológica de Cristo na eucaristia. Ele
torna-se presente n u m a refeição, cujos dons simbolizam o corpo e
o sangue. A l i n g u a g e m eucarística é u m a afirmação acerca da
finalidade dessa presença: uma presença " a d " e não u m simples
"esse ibi".
Trata-se, pois, de u m "esse ad": u m a presença dinâmica c o m o
a u t o - d o m . A única finalidade d o "estar ali" é u m estar e m f u n ç ã o
de, estar ao serviço de. A sua presença ali está condicionada pelo
ser alimento. A eucaristia é u m verdadeiro alimento: verdadeira
comida e verdadeira bebida. Presença dinâmica.
44 DIDASKALIA

C o m o se justifica a adoração do Santíssimo Sacramento?


N ã o se justifica e m si, mas pela necessidade de adorar a Deus.
M e s m o sem o Santíssimo Sacramento, havia a exigência de adorar a
Deus. Deus adora-se na sua presença cósmica. E m toda a parte está
realmente presente. N a Eucaristia está presente na pessoa do reden-
tor, d o C r u c i f i c a d o glorioso. A g o s t i n h o diz: " N i n g u é m c o m e
aquela carne sem a ter adorado primeiro. N ã o pecamos adorando-a,
mas pecamos não a a d o r a n d o " .

D — Presença pneumático-sensível

N a glória, Jesus, o Crucificado, vive c o m o ressuscitado, c o m o


p n e u m a , sem carne n e m sangue. Ele vive c o m o corpo pneumático
( I C o r 15). Esse c o r p o p n e u m á t i c o não possui matéria, é extra-
-terreno, é celestial, é incorruptível.
P o r isso o Cristo presente na eucaristia não é u m Cristo de
matéria, mas o Cristo p n e u m á t i c o , glorioso. A sua presença na
eucaristia é real, autêntica, ao p o n t o de, participando na eucaristia,
nos unirmos p n e u m a t i c a m e n t e a ele. Ele é atingível sob a forma
simbólica de alimento. Para a fé, o pão e o vinho são este Cristo na
sua dimensão salvífica, consumada de u m a vez para sempre na cruz.
Daí a tendência de ver n o pão e n o vinho, não os alimentos mate-
riais, mas o elemento p r o f u n d o que estes corporalizam, ao qual eles
dão corporeidade. O pão e o v i n h o são o corpo do Crucificado.
P o r u m lado, o pão e o vinho, para a fé, são o Crucificado, só
o Crucificado. Por outro lado, o Crucificado faz-se pão e vinho
para nós (dá-se c o m o alimento verdadeiro e de forma sensível no
pão e n o vinho). N o m o m e n t o da eucaristia o pão e o vinho são a
corporeidade sacramental de Cristo. N o pão e n o vinho nós atin-
gimos e entramos e m c o m u n h ã o c o m o Crucificado penumático.

E — Presença permanente

O Concílio de T r e n t o afirma a presença p e r m a n e n t e de Cristo


na Eucaristia, contra a afirmação dos reformadores (in usu).
A c t u a l m e n t e p õ e - s e e m d ú v i d a a presença p e r m a n e n t e de
Cristo: " a l i m e n t o - p a r a - m i m " . N ã o tendo esse sentido, Cristo deixa
de estar p r e s e n t e . As partículas n ã o t ê m sentido de a l i m e n t o ,
portanto Cristo não está nelas.
N ã o há razões sérias para duvidar da presença permanente:

a) N ã o se deduz das palavras da instituição;


O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 45

b) A fé da Igreja tem sido contrária:


C i r i l o de A l e x a n d r i a a f i r m a - a c a t e g o r i a c a m e n t e c o n t r a os
coptas que criticavam a conservação das espécies.
Justino refere que os diáconos levavam a eucaristia aos doentes.
N o séc. III havia uma celebração semanal e u m a c o m u n h ã o
diária. O s presbíteros e os diáconos conservavam-na e m suas casas.
Por vezes, até os próprios fiéis.
A tradição apostólica de Hipólito codifica as normas sobre a
conservação das espécies e m casa.
C o m o édito de Constantino passa-se a conservá-las nas igrejas
(contra nestorianos e coptas).
Os presbíteros conservam-na e m casa para casos urgentes.
E m viagens perigosas t a m b é m se leva a eucaristia.
c) Os alimentos depois da refeição conservam o seu carácter de
alimento. A eucaristia obedece a esta lei.

F— Conclusão

O pão e o vinho presencializam o corpo e o sangue de Jesus,


símbolos da totalidade da sua pessoa e m auto-doação sacrificial. P o r
c o n s e g u i n t e o q u e se t o r n a p r e s e n t e na Eucaristia é a pessoa
pneumática de Cristo, sob a forma de alethés brôsis — alethés pósis. E
b e m significativa a expressão de João: " q u e m m e c o m e viverá p o r
mim"(Jo 6,57). Portanto, até para João, a carne e o sangue signi-
ficam a pessoa de Cristo, o pão descido do céu.

III — M o d o c o m o se efectiva a Presença de Cristo na


Eucaristia

1. A questão

O Concílio de T r e n t o define:

"Si quis dixerit, in sacrosancto Eucharistiae sacramento rema-


nere substantiam panis et vini una cum corpore et sanguine Domini
nostri Iesu Christi, negaveritque mirabilem illam et singularem
conversionem totius substantiae panis in corpus et totius substantiae
vini in sanguinem, manentibus dumtaxat speciebus panis et vini,
quam quidem conversionem catholica Ecclesia aptissime
transsubstantiationem appellat: an. s.: (DS 1652 cf. *1642).
46 DIDASKALIA

"Se alguém disser que no sacrossanto sacramento da


Eucaristia permanece a substância do pão e do vinho juntamente
com o corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo e negar
aquela admirável e singular conversão de toda a substância do pão
em corpo e de toda a substância do vinho em sangue, perma-
necendo porém as espécies do pão e do vinho, conversão esta que
a Igreja católica denomina adequadamente de transubstanciação,
a.s.(sess. XIII, Decr. de ss. Eucharistia, can. 2, DS 1652).

E m resumo, o Concílio:

a) refuta a doutrina luterana sobre a coexistência do pão e do


vinho com o corpo e o sangue de Cristo;
b) defende a conversão das substâncias do pão e do vinho em
corpo e sangue;
c) admite que esta conversão não abrange todos os elementos
constitutivos do pão e do vinho. Implicitamente admite o mesmo
relativamente ao corpo e ao sangue de Cristo (ali há algo que não
é corpo e o sangue de Cristo).

C o m efeito, admite-se q u e n e m todos os elementos detectáveis


pela análise empírica (aparências) se transformaram. D e igual m o d o
admitem-se não presentes todos os elementos não constatáveis pela
análise empírica relativamente ao corpo e ao sangue de Cristo (os
acidentes materiais do corpo e do sangue não estão presentes).
E m suma, estamos perante u m complexo de acidentes sem a
sua substância e perante u m a nova substância sem os seus acidentes.
A este f e n ó m e n o dá-se o n o m e de "transubstanciação" =
conversão de u m a substância e m outra, sem corrupção dos aciden-
tes da primeira e sem os acidentes da segunda.
Wyclif, aristotélico rigoroso, d e n u n c i o u o absurdo metafísico
da afirmação. N o sistema aristotélico é tão absurda uma transubs-
tanciação, c o m separação de substância e de acidentes, c o m o n o
sistema euclidiano o círculo quadrado ( N e m D e u s o pode fazer. A
contradição é a destruição de Deus). P o r isso a definição tridentina
n ã o p o d e ser c o m p r e e n d i d a à luz das categorias aristotélicas.
Substância não é 1 substância, n e m transubstanciação é transubs-
tanciação.
O próprio Concílio, ao usar o vocábulo "espécies", em vez de
"acidentes", foge ao rigor do sistema aristotélico.
Q u e é isso de "espécies" de pão e de vinho?
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 47

D e certeza não são b e m os acidentes das categorias aristotélicas,


pois se fossem, o rigor, a simetria e a harmonia exigiriam o vocá-
bulo acidentes, evitado de propósito. Pois b e m , se as espécies não
são p r ó p r i a , absoluta e e x c l u s i v a m e n t e a c i d e n t e s e m s e n t i d o
aristotélico, é p o r q u e incluem algo de substância. Portanto, segundo
o rigor aristotélico, há algo de substancial que não se transforma.
D e o n d e se segue q u e o v o c á b u l o substância n ã o e x p r i m e a
categoria aristélica de substância.
E m suma, a transusbtanciação não é u m a transubstanciação e m
sentido rigoroso.
Q u e é isso de trans-substanciação?
Paulo VI, e m vez de falar de substância, fala de u m a realidade
ontológica que se transforma, sem, p o r é m , explicitar essa realidade
o n t o l ó g i c a ( M y s t e r i u m Fidei, 1965). Q u a l será essa r e a l i d a d e
ontológica do pão e do vinho que se transforma e m corpo e sangue
de Cristo?

2. Tentativas de explicação

A — Explicação hilemóifica

O s seus propugnadores são mais tridentinos que T r e n t o .


Aristóteles d e c o m p õ e o ser físico e m substância e acidentes. A
substância compõe-se, por sua vez, de matéria prima e de forma
substancial. N a eucaristia a matéria e a forma transformam-se, m a n -
tendo-se intactos os acidentes p o r acção da omnipotência de Deus.
Q u e diz a isto a física moderna?
O pão e o vinho não são substâncias, mas u m a complexa aglo-
meração de substâncias, justapostas sem qualquer p r o p o r ç ã o fixa e
sem qualquer relação molecular ou atómica. São misturas.
Resposta do hilemorfismo m o d e r n o :
A substância do pão e do v i n h o é composta pelo aglomerado
das respectivas substâncias. Transubstanciação significa a m u t a ç ã o
substancial de todas e de cada u m a das substâncias intervenientes.
O u ç a m o s o mais e r u d i t o dos defensores c o n t e m p o r â n e o s desta
corrente, Selvaggi:
" A p l i c a n d o estes conceitos ao d o g m a eucarístico, d e v e m o s
afirmar que quando na transubstanciação, pelas palavras de Cristo,
toda a substância do pão e do vinho se converte n o seu corpo e n o
seu sangue divino, então os protões, neutrões e electrões e m acto,
48 DIDASKALIA

q u e p e r t e n c e m à m a s s a da m a t é r i a c o n s a g r a d a , os á t o m o s , as
m o l é c u l a s , os iões, os c o m p l e x o s m o l e c u l a r e s , os microcristais, e m
s u m a , t o d o o c o n j u n t o das substâncias q u e c o n s t i t u e m o p ã o e o
v i n h o , d e i x a m d e ser e c o n v e r t e m - s e n o c o r p o e n o sangue de
C r i s t o . P e r m a n e c e m p e l o c o n t r á r i o os a c i d e n t e s p e r t e n c e n t e s a
todas estas substâncias: a e x t e n s ã o , a massa, as cargas eléctricas, c o m
todas as energias p o t e n c i a i s e actuais m a g n é t i c a s , eléctricas, c i n é -
ticas, q u e daí d e r i v a m , e p o r t a n t o t o d o s os efeitos ópticos, acús-
ticos, t e r m o d i n â m i c o s , e l e c t r o m a g n é t i c o s , q u e estas talvez possam
p r o d u z i r ; e t o d o s estes c o n j u n t a m e n t e c o n s t i t u e m as e s p é c i e s
eucarísticas, isto é o c o n j u n t o dos f e n ó m e n o s d i r e c t a m e n t e e x p e r i -
m e n t a i s " (II conceito di sostanza nel dogma eucarístico in relazione alia
física moderna, i n Gregorianum 3 0 ( 1 9 4 9 ) ; o u t r o s escritos d e Selvaggi:
La sostanza nella física dei quanti, 1952; Realtà física e sostanza sensibile
nella dottrina eucarística, 1956; Ancora intorno ai concetti di sostanza
sensibile e realtà física, 1957).
Este t e x t o está c h e i o d e absurdos:

1) "toda a substância do pão e do vinho se converte no seu


corpo e no seu sangue divino". A divindade não possui sangue,
nem o sangue é divino, mas material. O ressuscitado-pneuma não
tem sangue. Sangue é um símbolo, como o coração!
2) Equaciona-se substância com matéria. Ora, sendo assim,
deveria transmutar-se a matéria e a forma do pão.
3) Os protões, neutrões, electrões; átomos, moléculas, iões,
complexos moleculares e microcristais não são só matéria inerte.
4) "deixam de ser": a teoria da aniquilação foi rejeitada pelo
tomismo.
5) Acidentes: C o m o pode a massa ser um acidente? A massa
não é o acidente da quantidade, mas a matéria quantificada. E a
energia u m acidente? Só ignorando a física moderna o poderíamos
afirmar. N ã o é preciso saber muito de física para saber que a
matéria e a energia são dois estados diferentes da substância física,
cuja natureza se desconhece (interacção?). A física só tem confir-
mado a fórmula de A.Einstein: E = mc2. Portanto a matéria é
uma forma de energia e esta é condensável em matéria. A matéria
é uma espécie de condensação da energia, ou uma reserva de
energia.

P o r t a n t o à luz da física m o d e r n a n ã o é possível falar, c o m


rigor, d e substância e d e acidentes, pois matéria, massa e energia são
c o n c e i t o s c o r r e l a t i v o s . C o n s e q u e n t e m e n t e , se nas e s p é c i e s da
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 49

eucaristia temos massa e energia, temos forçosamente matéria. Se as


relações massa-energia não se modificaram, n e n h u m a mutação se
verificou na matéria.
Isto significa que a física nada t e m a dizer sobre a eucaristia,
nem esta interfere n o m u n d o daquela. Aliás foi esta a sábia resposta
de Carlo C o l o m b o a Selvaggi:

"Esta realidade 'física' do pão, objecto da ciência moderna,


será afectada pela transubstanciação? De maneira nenhuma, o
dogma católico não implica nenhuma mutação da realidade física
do pão... A mutação passa-se entre realidades que estão "para
além"(al di lã) das realidades 'fisicamente' atingíveis, entre
realidades transfisicas, isto é propriamente metafísicas" (Teologia,
filosofia e física nella transustanzione, in La Scuolla Cattolica 83,1955).

O próprio Selvaggi identifica c o m o "acidentes": " o c o n j u n t o


dos f e n ó m e n o s experimentáveis". P o r t a n t o toda a realidade física.
A opinião de C o l o m b o é h o j e doutrina c o m u m (excepto para
os ambientes restauracionistas).
J.Ratzinger partilhava-o:

"A transformação essencial que acontece na eucaristia não é


um facto que diga respeito à física, pois que a 'essência', a
'substância' de que se fala coloca-se fora do âmbito próprio da
física e do fisicamente experimentável. (...) A transformação que
acontece na eucaristia refere-se per definitionem não ao que aparece,
mas àquilo que não pode aparecer. Verifica-se fora do âmbito
próprio da física. Isto, falando claro, significa que, do ponto de
vista físico e químico, não se verifica absolutamente nada nas
oblatas, nem na mais minúscula das suas partículas; do ponto de
vista físico-químico, depois da transformação, elas ficam exac-
tamente c o m o eram antes. Só uma grosseira ingenuidade
intelectual e um absoluto desconhecimento acerca do que a
reflexão sobre a fé entende sobre 'transubstanciação' tornaram
possível a impugnação de tais asserções" (II problema delia
transustanziazione e del significato deli'Eucaristia, Roma, 1969,44s;
cita o arti. de Colombo contra F.Selvaggi, referido acima).

B — Explicação antropológica

O s dons eucarísticos são realidades antropológicas: a) base


físico-química; b) ser antropológico.
50 DIDASKALIA

N a eucaristia verifica-se u m a transformação do ser a n t r o p o -


lógico. Essa transformação dever-se-ia denominar transignificação,
transfinalização ou transinalização.
B.Welte
P o n t o de partida:

a) O conteúdo antropológico das coisas é o mais p r o f u n d o do


ser;
b) os transcendentais são convertíveis segundo a filosofia
aristotélico-tomista: o ser, o verdadeiro e o b o m (ter sentido para
... Deus e para o h o m e m ) .

O r a , o mais í n t i m o do ser das coisas é o ser sentido para


alguém (para D e u s e para o h o m e m ) . N ã o há nada sem sentido para
alguém.
O s e n t i d o das coisas é variável s e g u n d o a r e f e r ê n c i a aos
sujeitos. E x e m p l o : a ) U m a substância química p o d e ser alimento ou
combustível (Whisky); b) U m templo grego é u m a coisa para os
construtores, outra para os crentes, outra para os turistas e outra
ainda para os arqueólogos. Portanto, o ser da coisa m u d a consoante
a relação. O h o m e m determina o que u m a coisa é, de certo m o d o .
c) A bandeira nacional é objectivamente u m pano; na realidade
corporaliza a pátria. Ora, a conversão de u m pano n u m a bandeira é
mais p r o f u n d a do q u e u m a transformação química.
E m suma, na eucaristia, Cristo dá u m ser n o v o ao pão e ao
v i n h o sem q u e se opere u m a transformação química. Para Cristo, o
pão e o v i n h o passam a ser a sua auto-doação e a sua a u t o - p r e -
sença.

Charles Davis
O pão é u m a realidade humana. A sua substância c o m o pão é
antropológica. O pão c o m o alimento só é concebível em relação ao
h o m e m , c o m efeito é fabricado pelo h o m e m e para o h o m e m ;
portanto é u m a unidade substancial humana. Esta substância é uma
realidade q u e está para além da sua constituição fisico-química.
N a transubstanciação é esta substância antropológica que se
transforma n o sacramento do corpo e do sangue de Cristo.

C — Crítica à explicação antropológica

A encíclica " M y s t e r i u m Fidei" de 1965 não c o n d e n o u a expli-


cação antropológica, mas considerou-a de insuficiente.
O SACRAMENTO DA EUCARISTIA 51

3. Sentido da Transubstanciação

1. Questão do Concílio de Trento

N o Concílio de T r e n t o está e m questão a presença real p e r m a -


n e n t e . A defesa desta d o u t r i n a leva ã a f i r m a ç ã o da t r a n s u b s -
tanciação, pois não se consegue conceber que Cristo (o corpo e o
sangue) se torne presente sem u m a transformação d o pão e m corpo
e do vinho e m sangue.

2. A transubstanciação não é uma mutação física

T u d o o que é objecto da análise empírica deve ser considerado


c o m o espécie do pão e do vinho. Desse m o d o a realidade que se
transforma é transfisica, transempírica, até p o r q u e se transforma
t a m b é m n u m a r e a l i d a d e p n e u m á t i c a , isto é, n o C r i s t o v i v o
pneumático. Este não p o d e reduzir-se a matéria, n e m p o d e ocupar
o espaço vazio deixado pela matéria, pois não é matéria.
Sobre o assunto J . R a t z i n g e r opina categoricamente:

"A transformação essencial que acontece na eucaristia não é


um facto que diga respeito à física, pois que a 'essência', a
'substância' de que se fala coloca-se fora do âmbito próprio da
física e do fisicamente experimentável. / . . . / A transformação que
acontece na eucaristia refere-se per definitionem não ao que aparece,
mas àquilo que não pode aparecer. Verifica-se fora do âmbito
próprio da física. Isto, falando claro, significa que do ponto de
vista físico e químico, não se verifica absolutamente nada nas
oblatas, nem na mais minúscula das partículas; do ponto de vista
físico-químico, depois da transformação, elas ficam exactamente
como eram antes. Só uma grosseira ingenuidade intelectual e um
absoluto desconhecimento acerca do que a reflexão sobre a fé
entende sobre 'transubstanciação' tornaram possível a impugnação
d e tais a s s e r ç õ e s " ( II problema delia transustanziazione e dei significato
deli'Eucaristia (Roma 1969) 44s; cita o art. de C . C o l o m b o contra
F.Selvaggi, referido acima).

3. A transubstanciação é uma nova relação

N o pão e n o v i n h o haverá alguma realidade não física? A


relação. A relação depende da(s) pessoa(s) que o relaciona(m) a si.
O pão e o vinho adquirem u m a nova relação ao Cristo C r u c i -
ficado. E uma relação tal (sacramental) que presencializa o Cristo
52 DIDASKALIA

p n e u m á t i c o de m o d o corpóreo-material. O pão e o v i n h o dão a


sua corporeidade a Cristo, para este se tornar presente sacramen-
talmente n o m u n d o . O Cristo p n e u m á t i c o assume a corporeidade
do pão e do v i n h o para se presencializar c o m o alimento descido do
céu. A corporeidade do Cristo "verdadeira comida e verdadeira
b e b i d a " é a corporeidade do alimento corporal pão e vinho, de tal
m o d o que, c o m e n d o o pão e b e b e n d o o vinho, se c o m e realmente
(comer é linguagem simbólica) o Crucificado. Isto é linguagem para
dizer que entramos e m c o m u n h ã o agápica e m grau superlativo c o m
o P n e u m a de Cristo. Esta realidade íntima é representada de m o d o
corpóreo.
" O ser alimento", isto é " o ser p ã o " e o "ser v i n h o " de facto
transubstancia-se, torna-se o corpo e o sangue de Cristo, o Cristo
pessoa, o C r u c i f i c a d o glorioso; sem q u e as espécies, isto é os
c o m p o n e n t e s físicos e a estrutura química sofra a mínima mutação.
A eucaristia não é objecto das ciências empíricas .
Sobre a visão incarnacional da eucaristia na patrística oriental,
conferir J . B E T Z , Eucharistie, in MS(D) I V / 2 300-303.
E m que consiste exactamente a relação p ã o - c o r p o e v i n h o -
-sangue é impossível determinar. O único que sabemos é que se
trata de u m a relação real e permanente. O alimento corporal é na
verdade alimento pneumático; tal c o m o a refeição corporal é uma
refeição pneumática; tal c o m o o convívio h u m a n o é u m convívio
p n e u m á t i c o (coisa q u e antes não era). Mas tal c o m o a c o m u n h ã o
pneumática não nega a c o m u n h ã o humana, assenta nela transfor-
m a n d o - a e m pneumática, assim t a m b é m a refeição pneumática é na
sua corporeidade u m a refeição corporal e os alimentos pneumáticos
são, na esfera corporal, alimentos físicos.
O d o g m a está não n o facto negativo de o pão não ser pão, mas
n o facto de o pão ser, a nível pneumático, o corpo de Cristo. O
pão é a corporeidade sacramental do Cristo, verdadeira comida, e o
v i n h o é a corporeidade sacramental do Cristo, verdadeira bebida.
E m suma, corporeidade do Mistério da Ágape.

J O S É DE F R E I T A S FERREIRA

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