Linguagem Visual Na Historiografia

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LINGUAGEM VISUAL

NA HISTORIOGRAFIA

Autoria: Dra. Camila Serafim Daminelli

2ª Edição
Indaial - 2020

UNIASSELVI-PÓS
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD:


Carlos Fabiano Fistarol
Ilana Gunilda Gerber Cavichioli
Jóice Gadotti Consatti
Norberto Siegel
Julia dos Santos
Ariana Monique Dalri
Marcelo Bucci

Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2019


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.
D159l

Daminelli, Camila Serafim

Linguagem visual na historiografia. / Camila Serafim Daminelli. – In-


daial: UNIASSELVI, 2020.

170 p.; il.

ISBN 978-65-5646-015-4
ISBN Digital 978-65-5646-016-1

1. História e linguagem visual. - Brasil. Centro Universitário Leonardo


Da Vinci.

CDD 701.15

Impresso por:
Sumário

APRESENTAÇÃO.............................................................................5

CAPÍTULO 1
História e Linguagem Visual..........................................................7

CAPÍTULO 2
Linguagem Visual, Modernidade e Tecnologia.........................61

CAPÍTULO 3
Imagem e Ensino de História.....................................................119
APRESENTAÇÃO
Os conteúdos abordados nesta disciplina buscam desenvolver habilidades
em relação à linguagem visual. Entendendo-a em suas especificidades, o
inquérito ao qual submetemos um produto visual na perspectiva historiográfica
requer instrumentos específicos. No entanto, não há como selecionar e normatizar
critérios universais, elencados como os mais aptos ao saber histórico. A princípio,
cabe dizer que no decorrer dos debates que aqui terão lugar buscaremos romper
com a gaiola epistemológica que limita a imagem a um documento visual,
interpelado iconograficamente, apenas. Como sugere o historiador Ulpiano
Bezerra de Meneses (2012), é crucial que o historiador/a se familiarize com as
inúmeras variáveis que definem a natureza da imagem e com a multiplicidade
de papéis que ela pode assumir historicamente. Quer dizer, ainda que não
percorramos todos os métodos e caminhos pensados para se “ler” uma imagem,
interpretar os seus signos ou o seu conteúdo intrínseco, será preciso realizar uma
cartografia dos aportes oferecidos a esta inquirição pela história da arte, pela
história das técnicas, pelas ciências da percepção, da comunicação, da cultura
visual e da semiótica, entre outros.

No primeiro capítulo abordamos os marcos teóricos que pensaram a


“leitura” de imagens, introduzindo técnicas e metodologias oriundas do campo
do ensino das artes. Estas contribuições são importantes seja porque a análise
das técnicas tem peso na produção de sentidos, seja porque estes estudos
foram desenvolvidos com um público-alvo semelhante àquele com o qual nós,
professores e professoras, também atuamos: crianças, adolescentes, jovens,
estudantes e apreciadores de arte. Abordaremos a imagem pela perspectiva
iconográfica, iconológica e no âmbito dos estudos da cultura visual, no qual a
imagem é documento visual e artefato. No âmbito da imagem como fonte
histórica, analisamos a tensão existente entre o seu uso como testemunho e/ou
como representação, ou seja, a imagem como representação do passado, mas
também como instrumento para construí-lo.

No segundo capítulo da disciplina, aproximaremos os debates sobre a


linguagem visual ao campo das técnicas e tecnologias. Arte, fotografia, cinema e
televisão são linguagens visuais, mas vão além. São técnicas, ou melhor, fazem
parte de uma produção artística técnica que se relaciona com a modernidade,
com tecnologias e que se inserem em uma outra dinâmica de produção de
sentidos. Vamos abordar a discussão clássica sobre a obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica e também problematizar os registros audiovisuais como
linguagens possíveis de produção e apropriação do conhecimento histórico.
O terceiro capítulo da disciplina está dedicado à relação entre imagem e
ensino de História. Tal relação, embora não seja nova, encontra-se em franco
desenvolvimento. As possibilidades de utilização de imagens em sala de aula,
em quaisquer dos níveis de formação, é um tema de suma relevância em
uma sociedade como a nossa, na qual impera a visualidade. Levantamos as
possibilidades de utilização da imagem como objeto e fonte para a construção do
conhecimento histórico escolar e sugerimos, finalmente, propostas didáticas que
inspirem cada um e cada uma a empregar recursos imagéticos na disciplina de
História.
C APÍTULO 1
HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

• Analisar e compreender os conceitos e códigos que envolvem a leitura de


imagens, no âmbito de diferentes perspectivas teóricas que pensam a imagem
como linguagem.

• Apreender as especificidades dos documentos imagéticos enquanto fontes


históricas e além, sobretudo em relação a sua qualidade de representações que
indiciam sobre dado contexto histórico, oferecendo também um testemunho
sobre ele.

• Ser capaz de realizar a análise crítica de imagens, situando-as na produção do


conhecimento histórico como uma categoria de documento que é, ao mesmo
tempo, fonte e objeto de investigação, com as características próprias de sua
materialidade e lugar de produção.
Linguagem Visual na HistoriograFia

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Realizar uma leitura crítica de imagens, imprescindível ao saber histórico,
requer o conhecimento dos critérios investigativos da imagem enquanto produto
cultural, coisa feita por homens e mulheres, com intenções, que comunicam e
que expressam através de diferentes aportes: plasticidade, elementos formais,
estéticos, iconográficos etc. Para que possamos inquerir uma imagem, qualquer
que seja, enquanto produto visual ou como fonte documental, que aporta um
testemunho, será preciso caminhar primeiro entre o universo das artes e seu
encontro com a semiótica. Deste encontro resultaram diferentes métodos de
leitura de imagens, os quais teremos a oportunidade de conhecer e “provar” em
um primeiro momento deste Capítulo I.

Não estranhe se neste primeiro momento a discussão desenvolver-se


de maneira lenta, abordando metodologias de leitura de imagens que não são
específicas do campo historiográfico. Elas são importantes, pois o conceito
“leitura de imagens” é oriundo dessas interceptações que os diferentes campos
do conhecimento realizaram e realizam entre as artes visuais. Requer também
alguma atenção o fato de que a concepção da imagem como algo que pode
ser “lido” não reflete um consenso entre historiadores e historiadoras, talvez por
isso os métodos de leitura de imagens fiquem restritos a esta parte inicial da
discussão. Nos dois outros momentos do capítulo, utilizaremos a noção de que as
“inquerimos”, o que certamente abrange com maior precisão a sua utilização pelo
saber historiográfico.

No segundo e no terceiro momento do capítulo, situaremos as discussões


oriundas do fazer historiográfico, como as relações entre História e imagem,
imagem e memória, imagem e documento. Quais são as perguntas que o
historiador/a pode ou deve fazer ao artefato visual na tessitura historiográfica?
Há uma relação direta entre a natureza visual de um problema histórico e as
respostas disponíveis na visualidade de um produto inquerido? A imagem compõe
um sistema linguístico? Buscaremos, se não resolver, ao menos discutir essas
e outras celeumas próprias do nosso campo, apresentando algumas das ideias
centrais.

Um dos objetivos que perpassa a discussão do capítulo é também contribuir


de alguma maneira com a cultura visual de cada cursista. Em que pese a
disseminação profusa e sistemática de imagens de diferentes tipos, disponível
a quem quer que seja na internet, aqui teremos a oportunidade de analisá-las
a partir de outras perspectivas. É válido para nós o seguinte ditado: nunca nos

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Linguagem Visual na HistoriograFia

banhamos no mesmo rio duas vezes. Assim, mesmo aquelas obras, imagens ou
produtos visuais mais disseminados, com os quais nos depararmos em diversos
momentos da vida, ganham aqui uma nova oportunidade.

2 INTRODUÇÃO À LEITURA DE
IMAGENS
Diz o ditado popular remetido a Confúcio: uma imagem vale mais do que mil
palavras. O contexto de produção desta lógica, a Antiguidade Oriental, difere em
absoluto das nossas sociedades contemporâneas. Dispomos de recursos visuais
infinitamente mais complexos do que aqueles aos quais o filósofo teve acesso.
Na época, possivelmente, esteve no centro da lógica do ditado citado, que remete
ao século V a. C, a forma de comunicação simbólica chamada de ideograma. Tal
ditado popular é utilizado, nos dias atuais, para expressar a ideia de que uma
única imagem possui a capacidade explicativa de mais de mil palavras. Cabe-nos
indagar o seguinte: resulta correta essa afirmação? Nas páginas que seguem,
problematizaremos a relação entre imagem e expressão/comunicação, a começar
por uma introdução do que seria uma “leitura” da visualidade enquanto linguagem.

Confúcio e a máxima de que a imagem é um recurso visual mais expressivo


do que o texto escrito – porque possibilita exprimir ideias complexas através de
um único plano – é retomado aqui, em primeiro lugar, para situar um argumento
fundamental acerca da leitura de imagens: ela é democrática, na melhor acepção
dessa palavra. Ela é inclusiva ou, pelo menos, mais inclusiva do que a palavra
escrita, pois, para que o leitor/a comungue de uma cultura escrita, ele deve,
no mínimo, ser alfabetizado/a. No interior desta cultura letrada, inserem-se as
diferentes interpretações, ou mesmo o entendimento que cada um/a fará do que
leu. No entanto, aquele que não sabe ler, nesta lógica, fica alheio ao enunciado e
ao que está sendo informado no texto escrito.

No caso da imagem, a inserção do leitor/a em um saber específico torna-


se dispensável, pois basta ter olhos para ver. Nisso reside o valor que se dá,
atualmente, à imagem como recurso publicitário, político ou estético. É nesse
sentido que os recursos visuais são democráticos, pois permitem que diferentes
públicos estejam aptos a compreendê-los, de acordo com as suas inserções
socioculturais e políticas. Agora, assim como no texto escrito, não basta saber
o significado das palavras para dotar um texto de compreensão, na linguagem
visual não basta enxergar para entender os enunciados da imagem. É preciso
estar instruído e informado, além de conhecer os símbolos e os mecanismos
mobilizados pela linguagem visual para produzir sentidos.

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Tomemos como exemplo a pintura realizada em uma rua pública na capital


da Lituânia, a cidade de Vilnius, no Leste Europeu, em maio de 2016 (Figura 1). O
que se vê nessa imagem?

Para o leitor ordinário, que desconhece as figuras envolvidas e o contexto


político de produção do mural, dois homens se beijam, numa aparente relação
amorosa. Para identificar este ato, basta que a pessoa esteja inserida num padrão
cultural em que o beijo na boca é uma das manifestações do amor romântico. A
imagem pode manifestar ao leitor, ainda nesta hipótese, um posicionamento do
artista em relação à homoafetividade, inserindo-a num contexto humorístico para
ridicularizá-la ou, ao contrário, expondo-a como bandeira política.

FIGURA 1 – VLADMIR PUTIN E DONALD TRUMP SE BEIJAM EM MURAL NA LITUÂNIA

FONTE: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/grafite-com-beijo-de-
trump-e-putin-ilustra-temor-dos-lituanos.html>. Acesso em: 6 nov. 2019.

O leitor/a politicamente informado identificará, pelos caracteres físicos, as


figuras de Vladmir Putin e Donald Trump representadas. O beijo, para ele/a, pode
significar através da veia humorística uma aproximação entre as duas figuras, já
que em 2016 Trump era então candidato à presidência dos Estados Unidos e
Putin, como ainda hoje, exercia o cargo de presidente da República da Rússia.
Apesar da troca de elogios mútuos, essas duas figuras têm posicionamentos
divergentes em relação ao cenário internacional, talvez nisso reside um pouco a
“graça” da imagem para este leitor/a. Quem sabe seria interessante reparar, ainda,

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Linguagem Visual na HistoriograFia

que as cores dos dois personagens denotam em parte a personalidade de cada


um: sisuda e acinzentada, no caso de Putin, enquanto Trump foi representado em
tons mais fortes de laranja e amarelo do que as tonalidades da pele e cabelo dele,
respectivamente, possuem de fato.

FIGURA 2 – ERICH HONECKER E LEONID BREJNEV NO


MURAL DE DMITRI VRUBEL DE 1979 EM BERLIM

FONTE: <https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-36325911>. Acesso em: 6 nov. 2019.

Um terceiro leitor/a dessa imagem, munido de uma cultura política um pouco


mais sólida, analisará possivelmente todos esses elementos de signo e de estética, de
forma, cor e expressão, mas saberá que se trata de uma compilação, uma apropriação
cultural do painel elaborado em 1979 por Dmitri Vrubel (Figura 2). O painel representava
Erich Honecker, líder da Alemanha Oriental e Leonid Brejnev, premiê soviético e se
baseava, por sua vez, numa foto verídica na qual os dois líderes se cumprimentavam.
O beijo fraternal socialista, cumprimento comum entre lideranças do partido e demais
membros, podia ser excepcionalmente dado na boca ao invés de nas bochechas.
Naquele contexto, o beijo na boca como forma de cumprimento consistia em um
escárnio dessas figuras públicas que, atuando em forças divergentes, pareciam levar-
se muito bem.

Se comparamos ambos os murais, o beijo de Putin e Trump ganha outros


contornos. Os lábios apenas se tocam e os olhos estão semiabertos, o que sugere
ressalvas mútuas entre estes últimos, que se mostravam bastante menos “entregues
à relação” do que os dois primeiros. Finalmente, destacamos que o realismo expresso
pela Figura 2 é conquistado por meio dos elementos técnicos e não pela forma visual,
a figura em si, daí que pareça mais afrontadora do que a Figura 1, a qual expressa um
ar brincalhão.

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Que leitura é possível fazer da Figura1 estando, agora, munidos de todas


as informações sobre os representados e suas relações, acerca do contexto de
sua produção, do local desta manifestação artística, sobre a imagem enquanto
representação de outra imagem, e sobre o que nela está “dito”? Parece evidente que a
leitura dessa imagem sugere que a aproximação entre os representados se mostrava
frágil, construída sob suspeição mútua. O beijo representado se baseou em sentimentos
que o artista evidenciou entre os dois líderes, na materialidade das relações que eles
estabeleciam: calor e desconfiança, admiração e dúvida, e aproximação com reservas.

Às vésperas da eleição de Trump, o mural apontava para os paradoxos, mas


também fazia pensar sobre os reflexos de uma possível aproximação entre ele
e o presidente russo. Apesar dos elogios trocados, essas figuras se mostravam
portadoras de temperamentos políticos distintos, cuja compatibilidade haveria ainda
que ser comprovada. Mas para os lituanos, habitantes de um pequeno país que sofria,
historicamente, pressão da gigante Rússia sobre o seu território, fronteira e economia, o
beijo selado entre ambos representava o seu receito frente às manifestações de Trump
em relação à OTAN, considerada de vital importância para a sua segurança.

Esse exercício de inquerir a imagem sobre seu lugar de produção, sobre as suas
características visuais e sobre o seu significado, constitui uma primeira aproximação ao
tema da leitura de imagens, que agora veremos de maneira mais teórica. Maria Emilia
Sardelich (2006) realizou uma síntese dos conceitos que fundamentam as propostas
de leitura de imagens no campo do ensino de artes, o que nos interessa no sentido
de situar os debates e as diferentes perspectivas desse campo do conhecimento que
aqui se situa entre a história e a linguagem. Quem sabe, ao final desta abordagem,
poderemos identificar qual metodologia de “leitura” de imagens mais nos interessa, ou
melhor, a que se apresenta mais útil para nós, enquanto historiadores e historiadoras.

Antes de adentrarmos nestas diferentes propostas de “leitura de imagens”, cabe


destacar que esta expressão começou a circular no campo das linguagens e das artes
no meado da década de 1970, no bojo de um momento de intensas transformações nos
paradigmas linguísticos e estéticos, com a explosão dos sistemas audiovisuais. Essa
tendência que, inspirada numa ideia geral, buscava “ler” a imagem, foi influenciada por
dois movimentos: o formalismo e a semiótica.

O formalismo esteve fundamentado na teoria da Gestalt, movimento datado do


início do século XX. Esta palavra significa, no idioma alemão, “forma”. Segundo a
teoria gestáltica, o todo não pode ser apreendido pelo conhecimento de suas
partes, pois o todo é outra coisa – uma entidade concreta e individual – que não
a soma de suas partes. Atentar-se aos fenômenos da superfície e não às profundezas
obscuras que compõem um objeto, por exemplo, conduz à compreensão de que é a
sua forma externa o que sobressai na “leitura” que dele se faz. Nesse olhar para o todo
enquanto uma forma única consiste o método de leitura dos formalistas. Esta teoria

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Linguagem Visual na HistoriograFia

preza pelo processo de dar forma, de caracterizar o que se apresenta diante dos olhos,
tendo inspirado intelectuais não só do campo das artes, mas fundado também uma
escola psicanalítica.

A semiótica, por sua vez, é um campo de estudos que se dedica à construção do


significado, à análise do processo de signo (processo de significação). Nos processos de
signo, analisam-se indicação, designação, semelhança, analogia, alegoria, metonímia,
metáfora, simbolismo, significação e comunicação. Ao contrário da linguística, que
explora também os processos de significação, mas em linguagens escritas,
a semiótica se volta a sistemas não linguísticos, entendendo que em toda
expressão cultural há um processo comunicativo. Apesar do termo semiótica
já haver aparecido nos escritos de John Locke, no final do século XVII, foi Charles
Sanders Pierce quem se destacou como o pioneiro da ciência semiótica, tendo-a
categorizado em três eixos, em texto de 1867: primeiridade (qualidade, a primeira
impressão), secundidade (relação, a matéria em que está impressa a qualidade) e
terceiridade (representação, sua qualidade distintiva, original).

Voltemos ao contexto da leitura de imagens, conforme vinha se desenvolvendo


este campo de estudos nos anos 1970, na medida em que uma imagem passa a
ser compreendida como signo, ou seja, cujo significado incorpora diversos códigos,
surge a necessidade de construir categorias visuais que formalizem o processo de
leitura. De acordo com Sardelich (2006), a noção de que se poderia ler e, portanto,
ensinar a ler dados visuais, foi inspirada no livro de Rudolf Arnheim de 1957 intitulado
Art and visual Perception. Nessa obra o autor catalogou dez categorias visuais que,
juntando qualidades plásticas e estéticas aos aspectos formais, permitiriam desvelar
uma configuração que por si mesma possuía qualidades expressivas. As categorias
elencadas por Arnheim são as seguintes: equilíbrio, figura, forma, desenvolvimento,
espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e expressão.

Outra abordagem de relevo em relação à proposta de leitura de imagens foi


desenvolvida por Robert Ott em 1984. Sua abordagem se centra no aspecto estético
da leitura de obras de arte. Na realidade, a proposta de Ott caracteriza-se por um
sistema de apreciação que deve ser mediado, o que talvez explique a ampla utilização
de seu sistema entre professores e professoras ao redor do mundo, inclusive no Brasil.
O método de leitura de imagens proposto pelo autor foi definido em seis etapas, assim
descritas:

Aquecendo (ou sensibilizando): o mediador prepara o potencial de


percepção e de fruição do observador.
Descrevendo: o mediador questiona sobre o que o observador
vê, percebe.
Analisando: o mediador apresenta aspectos conceituais da
análise formal.
Interpretando: o observador expressa suas sensações, emoções
e ideias, oferece suas respostas pessoais à obra de arte.

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Fundamentando: o mediador oferece elementos da História da


Arte, amplia o conhecimento e não o convencimento do observador
a respeito do valor da obra.
Revelando: o observador revela através do fazer artístico o
processo vivenciado (OTT, 1984 apud SARDELICH, 2006).

Por se tratar de um processo em que não existe um resultado final único ou


correto, as etapas foram descritas no gerúndio, tempo verbal que na língua portuguesa
representa ações em movimento. Façamos um exercício de leitura de imagem a partir
da proposta de Ott, ressalvando nosso papel, nessa hipótese, enquanto mediador do
processo de apreciação de uma obra: a pintura Criança Morta, de Cândido Portinari
(Figura 3). A você, como acadêmico, cabe responder às questões com vias a experimentar
o método de leitura de imagens que estamos analisando.

Aquecendo: o mediador aprecia a obra e suscita que o observador faça o mesmo.

Descrevendo: o que você vê nesta imagem? Como são as suas linhas? Ausentes,
nítidas, angulosas, indefinidas? Que cores foram utilizadas e que cores predominam?
São fortes, misturadas ou chapadas? Há jogos entre claro e escuro? Quais são as
texturas da obra, lisas, ásperas, macias? Você observa na imagem formas orgânicas,
geométricas ou difusas?

Analisando: como o artista organizou as formas? No centro ou nas extremidades?


Elas estão agrupadas ou estão distantes? Esta alocação parece ter sido espontânea?
Qual foi a técnica utilizada pelo artista? Os seus olhos, quando veem esta obra,
movimentam-se de forma rápida, lenta, profunda ou ritmada? Há algum objeto em
destaque nesta pintura? Qual é o tema desta obra?

Interpretando: como o artista utilizou os elementos formais (cor, técnica, forma


etc.) para expressar as suas ideias? Quais são as suas impressões sobre esta obra?
Ela lhe reporta a alguma experiência? Que sentimentos suscitam? Que título você daria
para esta obra?

Fundamentando: qual é a relação do título da obra com o que ela expressa?


Onde você considera que o artista estava e sob quais condições realizou esta obra?
Você considera que o artista utilizou a sua memória, a observação ou a imaginação
para produzir esta obra? A obra se reporta a alguma outra? Você vê nela traços que
lembram outra obra ou imagem?

Revelando: como você faria uma obra sobre este mesmo tema? Experimentação
artística, cuja obra, resultante desta leitura, poderá também ser apreciada seguindo os
passos propostos.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 3 - CRIANÇA MORTA (1944), CÂNDIDO PORTINARI

FONTE: <https://masp.org.br/acervo/obra/crianca-morta>. Acesso em: 6. nov. 2019.

O tema desta obra de Portinari é a família migrante, a família sem posses


que emigra do nordeste brasileiro fugindo da seca e da pobreza, que no drama
vivido são sinônimos. A amplitude do horizonte, bem como do problema social no
qual está inserida essa família é logrado pelos tons terrosos abaixo, de fora a fora
da pintura, e do azulado chapado, acima. No centro da imagem está o ponto de
destaque: as mãos do pai, que segura a criança morta, são desproporcionais, o
que garante que este elemento será visualizado de imediato pelo/a observador/a.
O aspecto fantasmagórico ou cadavérico das pessoas denota o tamanho da sua
dor e do sofrimento vivido, ao que se somam as lágrimas em forma de pedras que
rolam sobre os seus rostos. A morte assombra tanto os retratados quanto a obra,
sendo difícil ao observador/a ficar alheio à denúncia social expressa pela pintura.

Do método proposto por Ott (1984 apud SARDELICH, 2006) para a leitura de
imagens podemos destacar algumas especificidades. A primeira e mais evidente
é que ela se destina ou, pelo menos assim foi pensada, para uma mediação
professor/aluno cujo objetivo seria o de “ensinar” a ler uma imagem. A segunda
característica do método seria a sua aplicação limitada, sobretudo, a obras de
arte, pois os passos e, consequentemente, o inquérito que o mediador propõe
em relação à imagem se centra no processo artístico-criativo, nas formas, nas

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

técnicas e na plasticidade características da obra de arte. Finalmente, uma


terceira especificidade se refere ao resultado da leitura de imagens proposta
por este método, que seria o de realizar uma produção em relação a elas e não
apreender um sentido ou um “dizer” expresso pela linguagem visual, no caso,
artística.

A influência de Robert Ott na metodologia de leitura de imagens é


significativa. Nos estudos de Abigail Housen, a autora parte do postulado de
que o desenvolvimento de determinado domínio se faz em direção da menor à
maior complexidade de pensamento, configurando-se estágios. Para Housen,
conforme observou Sardelich (2006), o leitor de imagens vai evoluindo, passando
por estágios em que sua compreensão estética vai se aprimorando: estágio
narrativo, estágio construtivo, estágio classificativo, estágio interpretativo e
estágio recreativo. A descrição dessas fases ou estágios apresenta semelhanças
evidentes com a proposta de Ott. Também Michel Parsons (1992) elaborou
estudos nesse sentido. Para Parsons, o desenvolvimento estético ao longo
desses estágios é favorecido pela aproximação e familiaridade que um indivíduo
vai estabelecendo com as imagens das obras de arte. Isto depende, é claro, tanto
do amadurecimento destas relações indivíduo-imagem quanto das qualidades
das experiências artísticas de cada um.

As propostas de Housen e Parsons possuem diversas similitudes. Elencamos


para a experimentação a metodologia da primeira autora, Abigail Housen, para
quem a leitura de imagens segue cinco estágios, assim definidos: descritivo,
construtivo, classificatório, interpretativo e re-criativo. Nesta oportunidade a
imagem a se analisar é La novia que se espanta al ver la Vida Abierta de Frida
Kahlo de 1943 (Figura 4). O questionário ao qual submeteremos a obra, para “ler”
a imagem segundo o método de Housen, é o seguinte:

Estágio I, descrição: o que é esta imagem? O que ela mostra? O que chama
nela mais a atenção? Que narrativa possível está inscrita nesta imagem?

Estágio II, construção: Como a obra foi feita? Qual a técnica empregada?
Como são as linhas, as cores, a textura? Como se dá a composição dos
elementos? Ela se pretende realista?

Estágio III, classificação: Qual foi o contexto de produção desta obra?


Quando e por quem ela foi produzida? Ela se insere nos marcos de algum estilo
artístico?

Estágio IV, interpretação: Como a artista utilizou os elementos formais para


expressar o que sentia? Há uma ideia expressa nesta obra? Qual seria a narrativa
possível da história imaginada desta obra?

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Linguagem Visual na HistoriograFia

Estágio V, recriação: A partir da ideia que a obra expressa, no seu


entendimento, como você faria um trabalho na mesma linha deste La novia que
se espanta en ver la vida abierta?

FIGURA 4 – LA NOVIA QUE SE ESPANTA EN VER LA


VIDA ABIERTA (1943), FRIDA KAHLO

FONTE: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/04/brasilia-recebe-maior-
exposicao-feita-no-pais-sobre-mexicana-frida-kahlo.html>. Acesso em: 6 nov. 2019.

A obra de Frida Kahlo analisada anteriormente faz referência a um padrão


artístico chamado natureza morta. Talvez muitos/as o considerem pouco
expressivo, com signos limitados. Bem por isso o elegemos para análise. La novia
que se espanta en ver la vida abierta é um exemplo de como os elementos formais,
aqui destacadamente as cores, as formas dissemelhantes e a composição dos
objetos, aliam-se na formação de sentidos.

O movimento das folhas do abacaxi, por exemplo, e as cores vibrantes


utilizadas na pintura transformam a obra em uma “natureza viva”, visto que
estas características estão ausentes no gênero “natureza morta”. Essa é
uma característica da pintora, presente em grande parte de sua obra, aqui se
destacam as cores quentes, que fazem desta mesa de frutas uma imagem idílica
dos trópicos. O caráter realista da imagem – a boneca retratada – contrasta com
as frutas representadas. Do que a noiva-boneca estaria se escondendo ou com
o que se espanta, como sugere o título da obra? Kahlo parece ter expressado

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

através da exposição do interior suculento das melancias e do mamão as partes


íntimas femininas, já que as frutas nos falam em uma linguagem provocativa,
que sugere coisas ocultas. Neste sentido podemos sugerir que a noiva estaria
preocupada com sua vida sexual de casada, situação desconhecida dada sua
condição pueril, razão pela qual se encontra a espreitá-la com receio por cima da
casca da melancia.

Sugestão de filme: Frida (2002). No filme podemos acompanhar


parte da produção artística da pintora mexicana pelo viés de
sua biografia. A obra fílmica permite compreender que seu estilo
inconfundível de se autorretratar emergiu de uma vida de sofrimentos,
tanto físicos quanto emocionais.

Maria Helena Wagner Rossi (2003) propõe a terceira metodologia de leitura


de imagens que vamos atentar e provar. Pautada na noção de desenvolvimento
ou de níveis de compreensão estética no qual oscilam apreciadores de diferentes
idades em graus ascendentes de complexidade e sofisticação, a autora sustenta
que não é o indivíduo em si que se caracteriza por um ou outro nível, mas as
ideias que expressa em relação à apreensão estética. Rossi destaca a não
linearidade do pensamento estético, já que as formas tomadas pela linguagem
visual são menos sequenciais, mais holísticas e orgânicas do que as outras
formas de conhecimento.

Dentre tantas contribuições que se desenvolveram com base na teoria


de Housen e Parsons, a de Rossi se destaca por considerar que os níveis
de apreensão estética são válidos para diferentes produtos visuais e não
apenas para obras de arte. Outro diferencial dos seus estudos se centra na
crítica ao formalismo da leitura estética no Brasil, cujo predomínio no ensino das
artes reduz o processo educativo a um roteiro pré-estabelecido de perguntas que
desrespeita a construção individual da apreensão estética e dos seus sentidos.

Para desenvolver os níveis de compreensão estética de Rossi, selecionamos


uma obra de Cindy Sherman na qual a técnica utilizada foi a impressão
cromogênica em cores (fotografia) realizada entre 2010 e 2012.

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FIGURA 5 – SEM TÍTULO (2010-12), CINDY SHERMAN

FONTE: <https://gagosian.com/artists/cindy-sherman/>. Acesso em: 6 nov. 2019.

No julgamento estético que se situa no nível I, o leitor ou a leitora entende


que a qualidade da imagem se define pelos atributos do mundo representados,
ou seja, aqueles que podem ser identificados e que foram “transferidos” para a
obra pelo artista. Neste sentido, o artista é um copista, e quanto melhor a cópia,
melhor a obra. Não há distinção entre o julgamento estético e o moral: aquilo
que é condenável é percebido como esteticamente feio. Neste nível o leitor
atenta para o tema, para as cores, para o realismo ou para a maestria do artista.
Um apreciador hipotético de nível I qualificaria a obra de Sherman como feia
ou ruim, pois apresenta uma noiva e um chef, com humores desconexos, sob
uma montanha irreal. A imagem não fornece elemento para se compreender as
relações que se estabelecem entre os personagens ou seu contexto.

No nível II, a principal característica do pensamento do observador é o


deslocamento da responsabilidade da existência da obra do mundo físico para o
mundo interior do artista (ROSSI, 2003). Ou seja, é o mundo interno e subjetivo
do artista que determina a qualidade da obra. Neste nível o observador ainda
acredita que o artista é um copista do real, mas são as qualidades do tema
“copiado” que merecem julgamento e não a obra propriamente. A criatividade
do artista relacionada a sentimentos é o critério de julgamento. Se o artista
expressou bem algum sentimento, a obra é boa (e não mais se o sentimento
é bom ou ruim), mas também é boa se é “criativa”. A depreciação do realismo
começa a se transformar neste nível e o conduzirá a priorizar, no nível III, o critério
da expressividade da obra. Aqui talvez um observador entenda que Sherman quis
expressar seus sentimentos em relação a uma festa que não surtiu os efeitos
esperados: seja pela tez da personagem, atrás ou pelo cenário e suas cores, que

20
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

despertam sentimentos lúgubres ou melancólicos.

O pensamento mais sofisticado da interpretação se revela no nível III, quando


o observador apreende um sentido abstrato, um tema subjetivo nos elementos
da obra. Nesse nível os atributos do mundo representado são desprezados e
prioriza-se a expressividade da obra. Importa se há uma mensagem, uma ideia
ou, ainda, a reflexão de um tema relevante. Está presente a consciência de que
a subjetividade do leitor é atuante na atribuição de sentidos ao produto visual. O
pensamento abstrato é necessário, mas ele não garante o acesso ao pensamento
estético, pois o fator determinante é a familiaridade com a leitura e discussão
própria do campo estético. Como aqui se manifesta a subjetividade do apreciador,
em toda sua complexidade, limita-se a comentar o sentimento engessado da
mulher, com uma veste que se reporta ao romantismo. O cenário monocromático
destaca-se em contraposição ao branco da vestimenta, cujo resultado é uma
estética agradável.

Tendo em vista a crítica realizada por Rossi (2003) em relação a um


questionário que limita a apreciação artística do observador, pelo mediador,
parece claro que os aspectos formais – ou seja, a perspectiva formalista – foram
priorizados pelos autores trabalhados até então. A incorporação da semiótica no
campo de estudos da leitura de imagens influenciou a criação de dois conceitos
basilares para o campo, como ele se apresenta atualmente: as noções de
denotação e conotação. A denotação refere-se ao que pode ser apreendido, na
leitura de uma imagem, enquanto objetividade. Trata-se do conjunto de elementos
e formas que podem ser descritas: as situações, as figuras, as pessoas, as ações.

Já o conceito de conotação se refere àquilo que não está inequivocamente


na imagem, pois se relaciona ao campo das subjetividades. Ou seja, as
impressões do intérprete, seus sentimentos, aquilo que a obra inspira ou faz
pensar. Conotação se refere, também, a um significado construído pelo indivíduo
sobre a imagem que observa, sobre o que ela expressa. Ambos os conceitos
estão incorporados ao modelo de Rossi, diluídos na construção dos níveis de
compreensão estética, sendo que a denotação predomina no estágio primário ou
nível I e a conotação se desenvolve paulatinamente entre os níveis II e III.
A influência da semiótica no modelo formalista de apreensão ou leitura de
imagens resultou – para definirmos alguns pontos e fecharmos esta primeira parte
da discussão – em uma leitura orquestrada da produção imagética ou visual,
formada pelos seguintes códigos, conforme nos aponta Maria Emilia Sardelich
(2006, p. 456-457):

Espacial: o ponto de vista do qual se contempla a realidade


(acima/abaixo; esquerda/direita; fidelidade/deformação).
Gestual e cenográfico: sensações que produzem em nós os
gestos das figuras que aparecem (tranquilidade, nervosismo,

21
Linguagem Visual na HistoriograFia

vestuário, maquiagem, cenário).


Lumínico: a fonte de luz (de frente achata as figuras que
ganham um aspecto irreal, de cima para baixo acentua os
volumes, de baixo para cima produz deformações inquietantes).
Simbólico: convenções (a pomba simboliza a paz; a caveira,
a morte).
Gráfico: as imagens são tomadas de perto, de longe.
Relacional: relações espaciais que criam um itinerário
para o olhar no jogo de tensões, equilíbrios, paralelismos,
antagonismos e complementaridades.

Chegamos ao ponto em que, já familiarizados com os conceitos mais


utilizados para a apreciação imagética, nosso itinerário nos conduz às abordagens
correntes entre os historiadores/as para a análise – e não leitura – de imagens.
Estamos mais confortáveis com a utilização do conceito de análise, ao invés
de leitura, uma vez que esta última subentende uma ideia basilar presente na
imagem, tão explícita quanto a palavra escrita, o que nem sempre existe em
dado produto visual. Quer dizer, uma produção visual, como ação que se realiza
processualmente, é um empreendimento que não termina necessariamente com
a mesma ideia com que foi iniciado, tampouco parece correto afirmar que cada
elemento e cada nuance foi estrategicamente pensada para formar um todo
harmonioso.

Como sugere Ulpiano Bezerra de Meneses (2012), a trajetória inicial da


análise de imagens pelos historiadores e historiadoras esteve inspirada em
Erwin Panofsky (1892-1968), cujos estudos foram desenvolvidos no decorrer
da primeira metade do século XX. Panofsky foi professor junto à Universidade
de Hamburgo, na Alemanha e em diferentes universidades nos Estados Unidos,
para onde migrou com a ascensão do nazismo. Durante o curso de sua carreira
desenvolveu um método de compreensão da História da Arte que se pautava em
três momentos ou três níveis de significação.

O primeiro, aparente ou natural, é o nível pré-iconográfico. Consiste na


percepção da obra visual em seu estado puro ou descritivo daquilo que pode ser
expresso em informações: a forma dos objetos, pessoas, animais ou as relações
que estabelecem entre si. O segundo nível é o iconográfico propriamente dito
ou convencional. Neste nível insere-se a equação cultural do conhecimento
iconográfico de cada apreciador; o objeto de análise são as fórmulas, as
convenções, os motivos artísticos e os temas representados. O terceiro nível é
o da interpretação iconológica, a procura de uma espécie de mentalidade de
base ou em uma questão: o que isto e aquilo, representado desta forma e, por
esta fórmula, significa?

A abordagem iconográfica de inspiração panofkyana é a mais utilizada na


interpelação de imagens no campo da História, embora atualmente o conceito

22
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

de iconologia tenha mais destaque. Vimos, anteriormente, como ambos os


conceitos estão pautados no método de Panofsky. Privilegiando o significado
das imagens, a iconografia compartilha com a semiótica uma reação explícita
contra o puro formalismo na apreciação imagética, entendendo a imagem como
suporte sígnico com propriedades intrínsecas. Como o termo iconografia sugere,
uma análise iconográfica suporia a apreensão de uma descrição possível de se
identificar na imagem. Esta descrição, plausível de se “ler” na imagem, dá lugar
a classificações, comparações e tradições expressas pela visualidade e pelos
signos. Este repertório de informações primárias é o que situa a iconografia em
um estágio inicial da análise imagética.

Iconologia, por sua vez, seria um passo adiante na elaboração de teorias


e perspectivas de análise de imagens, pois, apoiada em fontes heterogêneas,
em um repertório imagético formado por emblemas e alegorias, embasa uma
ciência da arte que vai além da busca por uma escritura representada pela
imagem visual. Uma análise que se configure de terceiro nível, de interpretação
iconológica, requer que o apreciador possua uma vasta erudição, além do senso
cultural comum e de competências em várias áreas das humanidades. Este nível
leva em conta a história pessoal e técnica do/a observador/a para entender uma
obra, que é produto de determinado momento histórico, que se relaciona com
determinado inconsciente coletivo e que vai além do que aparentemente significa.
Como alguns podem já estar suspeitando, a análise realizada no começo deste
capítulo em relação aos murais do Leste Europeu (Figuras 1 e 2) foi inspirada nos
níveis de significação de Panofsky.

Conforme a orientação de Meneses (2012), seria interessante analisarmos,


ainda que pontualmente, alguns itinerários dos estudos iconológicos pós-Panofsky.
Uma abordagem de destaque deste movimento é a iconologia crítica, que se
insere no campo de pesquisa designado estudos de cultura visual. Este campo
se caracteriza pelo estudo da construção social do visível e da construção visual
oriunda do social. Muito mais abrangente do que o estudo da arte, a iconologia
crítica se volta às meta-imagens, ao estatuto da imaginária mental, ao estatuto
teológico e político das imagens, o iconoclasmo e a iconofobia, a interação entre
o virtual e o real, dentre outros chamados “fenômenos da imagem” (MENESES,
2012, p. 248). Uma das referências principais desta corrente é William Mitchell.

Um segundo campo de interesse entre os teóricos da visualidade é o da


antropologia da imagem, cujo foco encontra-se no corpo como agente de
percepção e da ação, bem como na premissa de que as imagens têm lugar,
elas acontecem – para além do quadro na parede e da sua formação na cabeça
do/a observador/a. Destacamos, nesse campo de estudos, a contribuição de

23
Linguagem Visual na HistoriograFia

Hans Belting, um dos principais nomes das teorias da visualidade, para quem
a produção e a memória das imagens têm no corpo o agente principal de sua
concepção.

A reversão do paradigma da imagem como privada de movimento, estática,


na parede, abre espaço para o reconhecimento do seu caráter artefatual. E o
que enseja a compreensão da imagem como artefato? Sobretudo para nós,
historiadores/as, que tendemos a limitar o produto visual à condição
de documento, perceber a imagem como artefato significa operar
paradoxalmente a sua “desdocumentalização”. Ou seja, realizar um
procedimento de investigação que leve em conta a vida pregressa da imagem,
os caminhos que ela percorreu, os fins a que serviu, antes de receber o status
de documento. Utilizaremos o exemplo dado por Meneses para interpelar uma
fotografia em modelo 3x4, no caso, que consta no passaporte de Albert Einstein.

FIGURA 6 – PASSAPORTE DE ALBERT EINSTEIN

FONTE: <https://www.terra.com.br/diversao/gente/de-einstein-
a-lennon-site-mostra-supostos-passaportes-de-famosos,2f08c9
32e7bc0410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html>.
Acesso em: 6 nov. 2019.

24
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Considerando apenas o contexto, fica claro que o uso da fotografia de


Einstein em seu passaporte difere da mesma imagem em uma carteira, que
simboliza sua lembrança para uma pessoa querida, que a guarda consigo. Outro
significado teria a mesma fotografia, se exposta em um porta-retrato em seu
escritório, que reportaria ao reconhecimento daquele espaço enquanto seu lugar,
ou seja, remete à ideia de pertencimento. Na parede da Academia de Ciências
de Berlim, onde lecionou, abandonando-a para exilar-se nos Estados Unidos, a
fotografia possui valor de memorial, valorização e de continuidade institucional.
Na figura anterior, em que pese o enorme valor enquanto artefato histórico, por
ser um documento antigo de uma figura ilustre, a fotografia cumpriu uma função
social prática: reconhecer o detentor do documento, permitindo seu deslocamento
para fora do seu país de origem, a Alemanha.

A imagem como documento consiste no final de um ciclo de vida do artefato


imagético, que então se insere numa nova dinâmica – o seu descarte da vida
social e a sua apropriação enquanto documento. Está claro que o procedimento de
arquivamento ou musealização de uma imagem não esgota sua vida pregressa.
Antes o contrário, historicizar sua vida social evita que a imagem seja esvaziada
quanto à participação em múltiplas esferas da vida, para além do arquivo/
documento e limitada à função de representação (o que teremos a oportunidade
de analisar melhor no último momento deste capítulo). Aqui a principal referência
talvez seja Igor Kopytoff (2008) e sua “biografia cultural das coisas”, no campo
dos objetos/artefatos visuais.

Sugestão de atividade de estudo: vocês, acadêmicos,


conseguiriam escolher um objeto-documento e investigar a sua
biografia, os usos e fins a que serviu antes de tornar-se objeto
museal, por exemplo? Utilizem as experiências de vocês em espaços
de memória, museus e arquivos para escolher o objeto a ser
investigado neste exercício.

Como objeto de análise, apreciação artística, artefato, documento, entre


outros, a imagem, ou o produto visual, oferece-se à teorização de distintos
campos do conhecimento: da antropologia à neuroestética, das artes visuais
à psicanálise. A celeuma em relação ao campo historiográfico se insere, como
sugerimos já noutras oportunidades, à alforria incompleta do documento visual.
Isto porque, ainda com base em Meneses (2012), se por um lado ninguém nega
que a imagem pode servir de fonte histórica, por outro, tratá-la em pé de igualdade
com outras tipologias de fontes ainda é problemático. Para este historiador, a

25
Linguagem Visual na HistoriograFia

razão para a cidadania de segunda classe conferida ao documento visual


está no cerne da formação básica do historiador/a, ainda exclusiva ou
preponderantemente logocêntrica, que trata com desconfiança aquilo que
possui caráter etéreo ou afetivo.

À justificativa acima descrita agregamos outra, que se vincula a nossa


formação na erudição escrita. Como aprendemos, o nosso ofício, senão
através da leitura, seja de outros trabalhos historiográficos ou dos documentos
que analisamos? Também nossa forma de expressão é a palavra escrita, já
que o produto, o resultado do metier histórico ainda são textos escritos. Pouco
familiarizados com as teorias da imagem e também porque não conseguimos
moderar a contento a identidade da imagem visual, transformamos a imagem em
palavra, esvaziando assim sua natureza visual. Noutras palavras, observamos os
objetos e as formas, desprezamos a materialidade do não verbal e transformamos
a imagem num discurso verbalizável, apreendendo na imagem um significado
dado a priori. Desprezamos saber que tanto a ideia produz a forma, quanto é
produzida por ela.

A questão que nos fica deste problema, que é específico do campo da


História, é saber se podemos fazer diferente; se podemos realizar uma abordagem
da imagem como documento visual que expresse um pensamento que só pode
perfazer-se adequadamente de modo visual. E, claro, como incorporamos esta
perspectiva na construção do conhecimento histórico, tendo em vista ainda os
diferentes suportes imagéticos – artes, fotografia, cinema, publicidade, dentre
outros. Para o historiador que vem nos inspirando nestes debates, Ulpiano
Bezerra de Meneses, a alternativa consentânea aos papéis desempenhados pela
imagem e seu poder de produzir efeitos seria estudar qualquer problemática da
disciplina histórica introduzindo a dimensão da visualidade, sem que o foco
gravitacional desta utilização seja a imagem como documento. Quer dizer,
as imagens devem ser tratadas também como componentes do jogo social, junto
a outras fontes capazes de encaminhar a problemática da investigação – social,
cultural, econômica, das mentalidades – e não como um feudo com personalidade
própria que só serve e só embasa problemáticas oriundas do campo visual.

A título de síntese, recordemos o que foi visto nesta primeira seção do


Capítulo I. Introduzimos a discussão sobre a leitura de imagens a partir do campo
em que esta perspectiva floresceu, o mundo das artes, expondo e realizando
exercícios de leitura com base na proposta metodológica de Ott, Housen (ambas
sintetizadas por Sardelich) e Rossi. Vimos, a partir desta última proposta, como
a semiótica fissurou a concepção formalista de análise de imagens, propondo
como base para este exercício as noções de conotação e denotação. Depois,
abordamos a contribuição de relevo de Panofsky para uma ciência da arte ou da
imagem, que se baseia em três níveis de apreciação (proposta que goza de muito

26
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

prestígio entre historiadores/as, embora criticada com a mesma intensidade).


Também houve espaço para destacarmos, brevemente, as teorias investigativas
do campo visual, abertas por ele e seus itinerários, conforme a sugestão de
Meneses – os estudos de cultura visual, a antropologia da imagem e a imagem
como artefato. Introduzimos as tensões que envolvem a concepção da imagem
como documento, o que terá continuidade a seguir, nas seções 3 e 4 deste
capítulo.

Sugestão de atividade de estudo: utilizando os critérios de análise


propostos por Sardelich (2006), cada um dos acadêmicos deve
selecionar um par de obras de arte com as quais tenha familiaridade.
Em seguida, para exercitar, observá-las sob outras perspectivas:
a espacial, a cenográfica, a lumínica, a simbólica, a gráfica e a
relacional. O resultado do exercício pode ser compartilhado com os/
as colegas nos fóruns de discussão e mídias do grupo.

3 A IMAGEM COMO FONTE


HISTÓRICA: CRÍTICA E MÉTODO
Constitui ponto pacífico para o saber histórico que uma imagem, qualquer que
seja, pode vir a ser utilizada enquanto fonte documental para a escrita da história.
Menos consensual, no entanto, seria a maneira de lidar com distintas tipologias
de imagens na operação historiográfica. Longe de ousarmos diluir as tensões em
relação à utilização de imagens na escrita da história. Fiquemos, então, no campo
das certezas: como qualquer outra fonte documental, as imagens devem
ser submetidas à análise crítica em relação ao seu lugar de produção, ao
seu contexto e aos seus usos. Veremos, no último apartado deste capítulo,
as especificidades da imagem enquanto evidência histórica, segundo leituras
singulares do nosso campo. Antes, parece necessário fazer considerações acerca
do método historiográfico.

Documentos e relatórios de Estado, fotografias, diários íntimos, processos


judiciais, objetos pessoais, monumentos, equipamentos, jornais, revistas,
documentários, prontuários, autobiografias, certidões de batismo, casamento,
atestados de compra e venda, cartas de alforria, correspondências pessoais,
memórias, tratados militares, políticos, manifestos, tapeçarias e as paredes de uma
caverna são algumas das tantas fontes possíveis de inquirição pelo conhecimento
histórico. A metodologia empregada em cada uma dessas tipologias, cujas

27
Linguagem Visual na HistoriograFia

diferenças são significativas, possui, porém, dois pressupostos em comum: o


procedimento judicioso em relação a sua produção; e o questionário ao qual a
fonte deve ser submetida.

Utilizaremos nesta incursão sobre o método crítico o programa esboçado por


Marc Bloch (2001). Como é sabido, Bloch redigiu a referida obra sob condições
dramáticas há mais de 70 anos. Sua longeva validade reside tanto na qualidade
de suas assertivas quanto na construção de um guia sobre como e com quais
limites devemos trabalhar enquanto historiadores e historiadoras, como mulheres
e homens de ofício. Em que pese a possível existência de manuais mais recentes,
que apresentem outros problemas – por exemplo, em relação às fontes digitais –
sua obra é uma referência para a nossa profissão e ousamos dizer que se trata de
um estudo precursor da história como ciência que possui suas teorias, métodos e
legitimidade próprios, em relação às demais Ciências Humanas.

Procedimento em relação a sua produção e submissão a um questionário.


Do primeiro pressuposto temos que, antes de tudo, a fonte deve ser inquerida
quanto ao seu lugar de produção e funções: aqui importa saber quem produziu
ou construiu dada fonte documental, em que contexto político, subjetivo ou
em relação a que processos. Com quais finalidades foi construída? Para um
uso administrativo, de controle, para ser apreciada publicamente? Com quais
intenções ou interesses? Quem a produziu, no sentido do seu lugar social? Quais
foram os possíveis filtros aos quais foi submetida? Pertence a algum campo de
conhecimento ou institucional específico? Qual foi o caminho percorrido até a sua
salvaguarda? Quais foram as condições de possibilidade de sua aparição e da
sua transformação em documento?

Investigar o lugar de produção das fontes documentais requer do/a


historiador/a um conjunto de deduções: que os textos, imagens e objetos
mentem sua proveniência e que seus vestígios podem ser falsificados,
manipulados ou ingênua e equivocamente produzidos. Neste último caso
insere-se a situação, por exemplo, da fabricação de atos com a finalidade de
repetir peças autênticas que haviam sido perdidas – um “falso-falso” (BLOCH,
2001, p. 97). Ou ainda, o fato de que muitas testemunhas – termo que aqui denota
não apenas o testemunho narrado, pessoal, mas o testemunho documental de
uma época ou acontecimento – se enganam de boa-fé.

Parece evidente, no caso de um testemunho oral, por exemplo, a necessidade


de investigar o contexto de produção do depoimento: considerar as emoções, as
tensões e as implicações do testemunho na análise das hipóteses levantadas.
A inexatidão ou mesmo o embuste são construídos com base em aspectos
psicológicos, como o cansaço, as ameaças ou a perda de um ente querido. Um
testemunho perante o operador do direito, em que a vida da testemunha está em

28
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

jogo, não tem o mesmo peso e consequência do que o relato confidenciado por
uma mulher a sua vizinha ou o narrar de acontecimentos por uma menina em seu
diário íntimo. Mas tal relativização, aplicável de maneira distinta a cada um dos
documentos, não possui valor em si mesma, já que a crítica é instrumento do
método e não o fim do método em si.

A erudição, por maior que seja, cai no vazio quando se limita a detectar o
contexto da produção documental sem investigar seus motivos, sem disto produzir
conhecimento, mesmo quando “falsos”. No caso das inconsistências da natureza
humana, fiquemos com o exemplo dado por Bloch (2001): confiaríamos mais no
diagnóstico de um médico, que analisou com cuidado a situação de seu paciente,
ou na sua descrição dos móveis do quarto em que se encontrava o enfermo? Ou
este: ou as nuvens mudaram de forma desde a Idade Média, já que as descrições
de então revelam visões de cruzes e espadas, ou o relato informa não sobre o
que se viu na realidade, mas sobre o que, em sua época, era estimado natural
ver. E mesmo no caso da falsificação e da manipulação sua existência interpela
uma atmosfera social que assume ela mesma um valor documental, ou seja: a
falsificação pode, igualmente, dar-se à utilização como fonte documental.

Aproximamos as contribuições de Bloch à discussão sobre o uso de imagens


na oficina da história, através da seguinte assertiva: na base da crítica ou do
método crítico está um trabalho de comparação. Embora o pressuposto seja
válido para qualquer tipologia de fontes, para qualquer testemunho, poderemos
dar exemplos concretos do método em relação ao campo visual. São três os
princípios que compõem seu programa do método crítico: o princípio da
contradição, o princípio da discrepância e o princípio da semelhança
limitada.

Para abordarmos o princípio da contradição, consideremos a seguinte


hipótese: suponhamos que haja uma imagem sem referências precisas, em que
uma pessoa parece estar sendo nomeada, empossada, coroada ou coisa que o
valha. A pessoa é identificada como sendo uma dada personagem histórica pela
origem do desenho e pelas suas características físicas. Como verificar o episódio?
Há que recorrer a outros testemunhos: de imagens semelhantes, artefatos do
período, informar-se sobre o “aparecimento” desta imagem, o que se sabe sobre
ela. Suponhamos que haja, neste vasto corpus documental levantado, uma
discrepância que arruíne um dos testemunhos que embasaram a hipótese prévia.
Pelo princípio da contradição, um dos dois deve sucumbir, pois um acontecimento
não pode ser e não ser ao mesmo tempo.

Como escolher qual testemunho será rejeitado e qual deve subsistir?


Há muitas gradações entre o infinitamente provável e o apenas verossímil.
Algum vestígio entre a documentação levantada se aproximará de uma das

29
Linguagem Visual na HistoriograFia

probabilidades, aumentando seu coeficiente de certeza. No caso hipotético citado


acima consistir em demasiada abstração, fiquemos com outro: duas fotografias
similares, registradas em um mesmo local, remetem a datas diferentes entre si.
Como uma pessoa não pode estar em um mesmo lugar, da mesma maneira,
duas vezes, uma das datações está equivocada – ou mente. Se pessoa pública,
buscaremos sua agenda oficial, as entrevistas concedidas às mídias em busca
de informações. Compararemos as vestimentas, o corte de cabelo em relação a
outras fotografias da mesma época, investigaremos quem são as pessoas que
também aparecem na imagem. Objetos, veículos e o ambiente ao redor podem
ser de grande ajuda. O exemplo é pueril, mas permite expressar a ideia de forma
clara: é pouco provável que, no universo de fontes consultadas, os indícios se
aproximem com a mesma precisão de ambas as datas sugeridas para a fotografia.
Alguma há de destacar-se.

O princípio da discrepância, por sua vez, baseia-se na ideia de que o diferente


se delata. Em uma mesma geração, de uma mesma sociedade e, sobretudo, em
um mesmo suporte, “reina uma similitude de hábitos e técnicas muito grande
para permitir a qualquer indivíduo afastar-se sensivelmente da prática comum”
(BLOCH, 2001, p. 110). Eis o exemplo de um documento, supostamente do século
XVIII, que esteja escrito em papel ao invés de pergaminho, em grafia destoante
e com figuras de estilo raras, para não dizer ausentes, em outros documentos de
sua mesma época. Pelo princípio da discrepância, a estranheza do feito aspira a
que dele se duvide.

Talvez o caso do estilo, na arte, seja um exemplo palpável desta discrepância.


Vejamos as figuras 7, 8 e 9. Trata-se de um exercício de análise no âmbito mais
elementar. As três figuras trazem a figura da Madonna ou a Virgem Maria, em
português, junto ao menino Jesus. Ao mesmo tempo em que, tão somente
com uma primeira olhada, já sabemos que as figuras 7 e 8 não pertencem ao
mesmo contexto histórico, a similaridade da temática, técnica, estilo e elementos,
conforme expressa nas figuras 8 e 9, saltam aos olhos.

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

FIGURA 7 – MADONNA COL BAMBINO, (C. 1230), BERLINGHIERO DE LUCCA

FONTE: <https://www.metmuseum.org/art/collection/
search/435658>. Acesso em: 6 nov. 2019.

FIGURA 8 – MADONNA DEL GAROFANO, (1478-80), LEONARDO DA VINCI

FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/Madonna_of_
the_Carnation>. Acesso em: 6 nov. 2019.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 9 – ALDOBRANDINI MADONNA, (C. 1509-10), RAPHAEL SANZIO

FONTE: <https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/raphael-
the-garvagh-madonna>. Acesso em: 6 nov. 2019.

A primeira das três figuras é uma obra de Berlinghiero de Lucca, pintor


italiano que viveu no começo do século XIII. A obra é uma referência importante
da arte bizantina, estilo artístico que foi além dos muros do império homônimo.
Percebemos na figura que a perspectiva e o volume parecem ignorados. A
representação humana é realizada frontalmente, com uma inclinação leve que
sugere certa espiritualidade (diga-se, inclinação que está presente em todas as
três imagens). O dourado-ouro abunda, como se a nobreza do metal refletisse
a dos personagens representados. Para além dos traços finos característicos,
destaca-se a representação do menino Jesus: a criança não é mais do que um
corpo adulto em escala inferior.

A Figura 8 é a reprodução de um painel de Leonardo Da Vinci representando


uma das inúmeras Madonnas que produziu durante sua vida. Nela vemos a Virgem
Maria oferecendo um cravo ao menino Jesus, mote que intitula a obra (cravo,
garofano, em italiano). Não é preciso ser um especialista na arte renascentista
para observar algumas especificidades do artista, a exemplo do ambiente
escuro no qual se inserem as figuras principais, o rechonchudo menino Jesus,
a expressão ímpar de Maria, neste caso, um tanto melancólica, entre atenta e
desinteressada. Maria fora destacada por Da Vinci tanto pela expressão singular
quanto pela vestimenta opulenta, adornada pelo broche de topázio e também
pelo requintado penteado dos cabelos. Tudo isso conduz ao entendimento de que
Maria fora representada como uma rainha.

32
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

A terceira desta série de três figuras, a de número 9, é de outro artista


renascentista, Raphael Sanzio, cuja Madonna apresenta também suas
particularidades. Apesar da iluminação dotar esta obra de outra “cara”, da
presença de um terceiro personagem – João Batista –, da expressão de Maria
se inclinar à passividade e, claro, dos halos, a pintura possui inúmeros sinais de
que pertence ao mesmo período da anterior. Reparem no signo da flor, presente
em ambas as pinturas; nas janelas, a dotar de perspectiva e profundidade o
cenário; ou nas cores do manto da Madonna em cada uma das representações.
As semelhanças continuam: nos traços de Maria, na centralidade do corpo, na
cena cotidiana. Mesmo se tudo isso fosse diferente, ainda assim identificaríamos
o período das obras pelo seu estilo, pois sua visualidade os aproxima. A primeira
figura, no entanto, é discrepante neste sentido, embora apresente o mesmo tema
e as mesmas figuras representadas.

O princípio da semelhança limitada consiste no terceiro dos princípios do


método crítico no interior de um primeiro postulado, que se refere à produção
do testemunho. Trata-se de uma inferência relacionada à similitude entre um ou
mais documentos: ela deve existir, já que nenhum testemunho brota de uma ilha,
sem relação, aproximação ou parecenças com os demais, mas deve, porém,
guardar em relação a eles suas singularidades. Em que pese a uniformidade de
um agrupamento social, esta não detém força suficiente para que não se produza
testemunho algum fora dela – mas tampouco que se produza testemunhos
idênticos. Se tomarmos o caso da escrita, hieroglífica ou grafêmica como exemplo,
o argumento fica transparente: diferentes sociedades desenvolveram esta
faculdade, em diferentes lugares, momentos e não necessariamente mediante
contato, mas nenhuma delas se operou através do mesmo sistema simbólico.

De acordo com Bloch, a crítica deve mover-se entre estes dois extremos:
a similitude que justifica e a que desacredita. Com esta ressalva, o autor
atentava para o fato de que, em que pese inúmeras semelhanças e mesmo a
possibilidade da livre inspiração de um documento, imagem ou artefato, com base
em um modelo (ou ainda, que tenham bebido na mesma fonte) são muitas as
combinações no mundo para que seja possível produzir provas idênticas, sem
que por um ato voluntário de imitação. Isto talvez seja mais notável em relação ao
campo das artes plásticas, e mais problemático, por exemplo, no tempo presente,
em relação ao universo digital. Na velocidade com que a informação se projeta,
como atestar de quem é a autoria de dado texto, esboço ou identidade visual?
Quem o publicou primeiro? Enfim, de qualquer maneira, a crítica do testemunho
apoia-se na lógica do semelhante e do dessemelhante, do um e do múltiplo.

A título de síntese, temos que a produção de um testemunho deve passar


pelo crivo do/a historiador/a em relação ao princípio da contrariedade (se existem
outros testemunhos que o invalidem ou questionem), ao princípio da discrepância

33
Linguagem Visual na HistoriograFia

(que os testemunhos de um mesmo tipo ou época se parecem, pois a originalidade


individual é sempre circunscrita a uma realidade ou contexto) e ao princípio da
semelhança limitada (por mais que um conjunto de testemunhos compartam uma
gramática, um vocabulário e um estilo, não existem dois testemunhos idênticos).

Para amarrar os três princípios, lembremos que todo fenômeno humano é


um elo de uma série que atravessa temporalidades. Nenhum homem e nenhuma
mulher podem, apenas com a força de seu gênio, substituir gerações inteiras
em dado processo ou campo do conhecimento. Em tese, isso significa que se
parecem mais os testemunhos de épocas próximas do que dois testemunhos
de realidades apartadas temporalmente. Isto fica evidente no caso das Ciências
Biológicas ou Físicas, por exemplo. Há, em cada sociedade, um “legado”
do qual a seguinte se apropria ou rechaça, de acordo com os seus valores e
conveniências, mas que faz, de qualquer forma, referência à cadeia anterior,
continuando-a ou interrompendo-a. Mas a herança pode, de maneira consciente,
ativa ou não, romper-se, já que as sociedades e seu complexo sistema cultural
não são imortais.

Outra colocação de destaque se refere à necessidade de analisar o


documento, mas além dele. Tomemos o exemplo do/a historiador/a da antiguidade.
Através da erudição própria do campo, este profissional de ofício deve converter-
se, para bem fazer o seu trabalho de compreender e interpretar, em especialista
na semântica grega antiga, caso trabalhe com escrituras, por exemplo. Neste
contexto, as palavras ainda hoje em curso possuíam significados distintos.
Não atentar para a sua transformação resultaria em análises anacrônicas,
possivelmente, informando sobre valores e experiências que não eram do período
analisado, mas sim do nosso tempo.

Vejamos um exemplo conhecido. Dentre os conceitos mais polissêmicos


do mundo contemporâneo está o de democracia, que para os gregos, conforme
narrou Tucídides na obra A Guerra do Peloponeso, designava um sistema de
governo que não dependia de poucos, mas da maioria. A etimologia da palavra
infere também a um “governo do povo”. Sabemos hoje que a noção de cidadania,
que embasava a participação democrática ateniense, muito pouco se assemelha
ao seu uso no tempo presente. Como a própria noção de “povo” se modificou,
ampliando-se cada vez mais no sentido de incorporar a totalidade dos cidadãos –
e também de conferir a todos e todas a insígnia da cidadania – a democracia grega
(ou ateniense) soa para nós demasiadamente excludente, já que limitava-se a
incorporar homens, filhos de atenienses e maiores de 21 anos. Seria correto “ler”
na forma de governo grega uma falsa democracia, já que, se comparada à nossa,
mostra-se não inclusiva? Ou, de outra forma, entender a sociedade ateniense
como participativa e igualitária, porque a isso aspira a “nossa” democracia?
Parece claro que ambas as proposições são problemáticas e estão equivocadas.

34
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Da mesma maneira, uma análise crítica do campo visual prescinde o


conhecimento da linguagem visual em seus signos, símbolos e mecanismos
de produção de sentidos. Desse empenho saberá o/a historiador/a apreender
que um homem sentado expressa, se político ou estadista, o seu entronamento,
o exercício de um lugar de poder, o que por sua vez o vincula a uma cadeia de
soberanos na qual se incorpora como último elo. Saberá distinguir, igualmente,
quando esta posição houver sido uma escolha que informa sobre o seu caráter
impassível ou simplesmente buscou encobrir um considerado tipo físico
desprivilegiado. Disto só saberá se, para além de conhecer os signos, o/a
historiador/a seja profundo conhecedor do período em que tal personalidade foi
retratada; das pretensões da pintura em relação a sua memória histórica; dos
usos da pintura em dado contexto e da finalidade daquela, em específico; do
estilo e das preferências do pintor; da comparação com outras pinturas de mesma
temática do período, mas também no conjunto das pinturas do representado etc.

Dada a trajetória do estudo das artes pelo saber historiográfico parece certo
afirmar ser mais profícua a análise de séries de documentos de um mesmo tipo,
que pertençam a um mesmo contexto ou temática, do que um artefato singular.
Ou, melhor ainda, o cruzamento de documentos de distintos suportes e tipos.
Caso contrário, tendemos a adotar o quadro, imagem etc., como um todo
significante no conjunto de suas partes. Como pontuamos anteriormente, nem
tudo o que compõe uma obra foi logicamente posto nela a fim de produzir um
sentido. Além disso, no caso do campo visual, o estilo e as ideias podem ser dos
seus autores, individuais, portanto, mas a “gramática”, a linguagem através da
qual se expressa ou produz sentido, é do seu tempo, deixando-se ver melhor em
perspectiva comparada.

Em História, entretanto, por mais que o/a historiador/a “saiba”, nunca será
suficiente se não puder convencer o leitor ou leitora do conhecimento produzido. A
imperiosa necessidade de demonstrar “como sei o que estou afirmando”, tornou-
se a base do método historiográfico, como ele vem sendo construído ao longo
do século XX. Isto porque o destaque que conferimos às fontes documentais –
expresso nas listas de fontes utilizadas, ao final dos trabalhos, na referência a
cada um dos arquivos consultados e nas incontáveis notas de rodapé ao longo da
narrativa – baseia-se no preceito moral de que os dados possam ser verificados e,
assim, a consistência das afirmações que produzimos. Cabe-nos indicar “o mais
brevemente possível, sua proveniência, ou seja, o meio de encontrá-lo equivale,
sem mais, a se submeter a uma regra universal de probidade” (BLOCH, 2001, p.
94-95).

Como medievalista escrevendo no meado do século XX, Bloch nos lega


a preocupação com a falsificação documental no sentido jurídico do termo. No

35
Linguagem Visual na HistoriograFia

caso da História da Arte, essa discussão ainda é bastante viva e, no terreno


aberto pelas fontes digitais do tempo presente, ainda mais – vide, por exemplo,
as fake news. No entanto, em que pese o resíduo de contingências que nosso
exercício jamais poderá eliminar – pequenas dissimulações e conveniências que
passam despercebidas por nossos instrumentos de análise – há outros sentidos
possíveis para a noção de falso/verdadeiro. Além da questão da veracidade de
um documento, imagem, objeto e o que ele informa, o método crítico da ciência
histórica enseja fazer o testemunho falar o que não tencionava dizer. Ou seja,
o que pode dizer sobre meu problema de investigação dado testemunho,
para além do que diz, efetivamente? Isto nos remete ao segundo pressuposto
metodológico: o questionário de submissão das fontes.

Toda investigação histórica supõe, desde os seus primeiros passos,


que a pesquisa já tenha uma direção. Vejamos bem: direção e não resposta.
Assim como, se ao nos lançarmos à pesquisa em busca de respostas a uma
tese a se confirmar, analisaríamos o objeto de forma míope, iniciá-la com a
atenção aberta, o foco em tudo, à espera de uma questão norteadora também
não resultaria em uma investigação honesta. Numa adequação dos conceitos,
diríamos que é necessário um problema histórico a guiar o caminho, uma hipótese
a ser investigada.

Como pontuava nosso guia nesta análise crítica do método historiográfico,


Marc Bloch, até mesmo naqueles testemunhos mais voluntários, que tudo
parecem dizer, de cara, temos a necessidade e mesmo o gosto de investigar
o que ele nos deixa entender, sem pretender fazê-lo. Quer dizer, os objetos
prediletos de nossa atenção são, hoje, menos os informes pontuais, os dados, os
acontecimentos, e mais as maneiras de viver ou de pensar, particulares à época
que testemunham e que, talvez, estejam ali presentes a contragosto, ou seja, sem
que a sua produção ou autoria tenha assim desejado expor-se. Nossa represália
em relação à dependência que temos dos documentos, para escrever a História,
consiste em usar a astúcia para saber muito mais sobre eles do que eles julgaram
sensato nos dar a conhecer.

No entanto, a partir do momento em que não nos limitamos “a registrar [pura


e] simplesmente as palavras de nossas testemunhas, a partir do momento em que
tencionamos fazê-las falar [, mesmo a contragosto], mais do que nunca se impõe
um questionário. Esta é, com efeito, a primeira necessidade de qualquer pesquisa
histórica bem conduzida” (BLOCH, 2001, p. 78). Qualquer fonte documental, tendo
testemunhado muito mais do que se vê na superfície, não fala senão quando se
sabe interrogá-la. Claro está que, como em qualquer roteiro, entrevista, expedição
ou outra operação que enseje um passo a passo, no interrogatório das fontes,
haverá sempre desvios, alterações no itinerário, mudança nos planos. Mas impor
um questionário é estar ciente de que o testemunho, ao não ser submisso,

36
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

não se dá com a facilidade que se espera: é preciso pressioná-lo, por assim


dizer, com a força das perguntas pertinentes.

Pontuados tais pressupostos, uma questão está, ainda, a nos interpelar.


Existe, no interior do método crítico da ciência histórica, uma especificidade
metodológica relativa às imagens? Em Testemunha ocular Peter Burke (2017)
oferece uma contribuição destacada para o uso de imagens como evidência
histórica. Segundo o historiador, existe um debate historiográfico que deve
ser situado previamente à problematização dos usos das imagens pelo saber
histórico, que se refere ao conflito permanente entre positivistas e estruturalistas.
Para os primeiros, as imagens oferecem informações confiáveis sobre o mundo
exterior; perscrutam-na, portanto, para perceber a realidade além dela. Já os
estruturalistas focam-se na imagem e somente nela, em sua organização interna,
nas relações entre suas partes, entre uma imagem e outra do mesmo gênero,
pontuando que a imagem não informa sobre uma realidade, mas sobre uma
representação sempre situada de dada realidade.

Há, enquanto proposta metodológica, uma terceira via? Burke acredita que
sim, que há outro caminho sendo trilhado por historiadores e historiadoras, mas
que inexiste, por ora, um manual. Entretanto, sabe-se já que esta terceira via não
se situa no meio da estrada, entre as duas propostas apresentadas anteriormente
(a positivista e a estruturalista), mas fazendo cuidadosas distinções que se referem
aos dois pressupostos teórico-metodológicos da prática histórica tradicional
(lugar de produção do documento e questionário a ele aplicado), inserindo as
críticas pertinentes do campo visual. A título propositivo, Burke apresenta quatro
observações, das quais podemos nos aproximar no trabalho de análise
crítica de imagens.

I - As imagens não dão acesso ao mundo social diretamente, mas sim a


visões contemporâneas daquele mundo. Não podemos esquecer, por exemplo,
que tendências opostas de produtores de arte idealizam e satirizam o mundo
que representam, sendo necessário distinguir entre representações do típico e
imagens do excêntrico.

II - O testemunho das imagens necessita ser colocado nos seus devidos


contextos, cultural, político, material etc., incluindo as convenções artísticas
e pictóricas de determinado tempo e lugar. Nos contextos inserem-se também
as questões relacionadas às funções da imagem, os interesses do artista, do
patrocinador, do cliente.

III - Séries de imagens oferecem testemunhos mais confiáveis do


que pode aportar uma imagem individual. Quer dizer, uma “história serial” se
apresenta mais fértil; seja uma multiplicidade de imagens de um mesmo período,

37
Linguagem Visual na HistoriograFia

a fim de abordá-lo, seja ao observar mudanças nas imagens de um mesmo tema,


ao longo do tempo.

IV – É preciso ler nas entrelinhas das imagens, observar pequenos


detalhes, notar as ausências significativas; usar estas observações para
apreender informações que os produtores das imagens não sabiam que sabiam
ou suposições que não estavam conscientes de expressar.

As observações de Burke são válidas como síntese do que tratamos de


abordar neste apartado sobre o método crítico das fontes em História, que foi
desenvolvido conforme o itinerário de Marc Bloch. Agregamos, no entanto,
uma última questão, também sumária: é possível afirmar que as imagens se
prestam melhor, como documentos, como fontes documentais, às problemáticas
específicas do campo visual? Os autores chamados a colaborar nesta narrativa
estão de acordo em pontuar que se trata de um equívoco imaginar que a cada
problema histórico corresponde um tipo de documento específico para este
uso. Atentam, também consensualmente, que o conhecimento histórico mais
qualificado, fiável e prazeroso se constrói com o diálogo entre fontes documentais
diferentes e as mais variadas possíveis: “quanto mais a pesquisa [...] esforça-se
por atingir os fatos profundos, menos lhe é permitido esperar a luz a não ser dos
raios convergentes de testemunhos muito diversos em sua natureza” (BLOCH,
2001, p. 80).

Convencidos e convencidas de que as imagens, em toda a variedade em


que se apresentam no universo do campo visual, podem ser utilizadas como
fontes para a escrita da História problematizaremos, a seguir, alguns destes usos
frequentes. A imagem como testemunho e representação de dada sociedade,
cultura ou ação situada no tempo será o foco da abordagem, havendo, finalmente,
espaço para discutirmos a questão da imagem enquanto linguagem e como tal,
inspecionar os elementos que conformam o seu enunciado.

4 A IMAGEM COMO TESTEMUNHO E/


OU REPRESENTAÇÃO
Ouvimos com frequência, ao longo da trajetória acadêmica, a sugestão
de não utilizarmos imagens em nossos trabalhos, se elas se fizerem presentes
apenas enquanto ilustrações. O conselho constitui um “não faça isto”, tendo por
base a historiografia: a maior parte dos trabalhos de História que utilizam imagens
ou são estudos específicos sobre o campo visual ou as inserem a fim de ilustrar
conclusões que a narrativa já havia chego através de outras fontes. De fato, como
sugerido por Peter Burke (2017), alguns dos estudos pioneiros na utilização de

38
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

imagens possuem a característica de investigar temas em que o apelo ao visual


assume maior importância por serem escassos vestígios oriundos de outras
fontes, caso, por exemplo, da “pré-história”.

De qualquer forma as imagens, sendo bem exploradas ou apenas


superficialmente, aportam um testemunho e evidências específicas para o
levantamento de hipóteses. A concepção de testemunho, conforme a temos
utilizado, refere-se à característica de um artefato ter sido contemporâneo de um
momento histórico: quem se atreve a dizer que as pinturas rupestres encontradas
na Serra da Capivara, no Estado do Piauí, não testemunham sobre a presença
humana no local, desde 25 mil anos atrás? Não é testemunho no sentido
de “prova”. É testemunho no sentido de haver compartilhado, feito parte
daquele contexto, podendo, por esta razão, ser inquerido em relação a ele.
Sigamos com este exemplo, por meio da abordagem da Figura 10.

FIGURA 10 – PINTURA RUPESTRE DO PARQUE NACIONAL


SERRA DA CAPIVARA, PIAUÍ/BRASIL

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Puni%C3%A7%C3%B5es_
(14205232887).jpg>. Acesso em: 6 nov. 2019.

39
Linguagem Visual na HistoriograFia

Qual é o testemunho dado por esta imagem? Com certeza, ela testemunha
a presença humana na região; que estas pessoas manipulavam o ocre vermelho;
que representavam figuras humanas; e que, em suma, expressavam-se
pictoricamente. Já em relação ao que a imagem indicia – no sentido de vestígio,
possibilidade, evidência – pode-se pontuar a existência de códigos de conduta
e práticas de castigo. O que não podemos afirmar, senão por meio de outras
fontes, são as motivações do castigo, se eram perpetrados por homens ou por
mulheres, se os castigados eram crianças ou adultos, quais eram as funções da
representação desta prática, dentre outras questões que a imagem nos suscita.
Com isso queremos colocar uma questão inicial: o testemunho oferecido por
uma imagem tem limites, não podendo ser compreendido como manifestação de
uma mensagem autevidente, tampouco super interpretado, inferindo-se sobre ele
muito mais do que apenas indicia.

Não ignoramos o fato de que uma imagem pode manifestar um desejo,


uma aspiração, ou uma representação subjetiva de uma realidade, sem que
nada palpável acerca dessa realidade possa dela ser apreendido. No entanto,
uma imagem testemunha de maneira mais qualificada quando aponta para um
fenômeno social. As imagens são uma forma importante de evidência histórica,
sobretudo quando registram atos de testemunho ocular. Recordemos a existência
de uma cultura e mesmo de um estilo artístico designado “estilo testemunho
ocular”, no qual aos iniciantes das artes se instruía representar o mundo tal qual se
deixava ver. Esta tradição, que remonta à Grécia Antiga, inspira atualmente estilos
como a arte documentária, os retratos, as crônicas do cotidiano, o fotojornalismo,
por exemplo. Foi um estilo artístico muito valorizado nas campanhas de guerra
no século XVIII e XIX, quando artistas compunham as tropas dos exércitos com a
função de observar e testemunhar as batalhas, a fim de narrá-las visualmente de
forma realista.

Em Testemunha ocular, o historiador Peter Burke sumariou usos e abordagens


das imagens segundo uma classificação estética ou de estilo, a saber: fotografias
e retratos; iconografia e iconologia; o sagrado e o sobrenatural; poder e protesto;
cultura material através das imagens; visões da sociedade; estereótipos do outro;
narrativas visuais; de testemunha a historiador; além da iconografia; e, História
cultural das imagens. É importante que se tenha em mente este sumário, porque
a obra de Burke fez uma espécie de apanhado geral sobre as metodologias e
usos do campo visual na historiografia, mas também delineou possibilidades em
cada uma destas classificações. Limitamo-nos a abordar parte deste sumário,
em relação às imagens como testemunhos/evidências em dois sentidos: um
mais literal, quando as imagens informam sobre uma determinada cultura
material, e outro, em que permitem contextualizar dada concepção de
mundo, ou examiná-las quanto às mentalidades, aí incluídos os estereótipos.
Um terceiro momento de reflexão insere-se no campo que o historiador designou

40
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

“além da iconografia”, no qual abordaremos a contribuição da semiótica na análise


da produção visual considerada “de massa”.

Na construção material de uma sociedade, nem todos os artefatos são


produzidos com materiais aptos a resistir ao tempo. Um bom exemplo são os
telhados. Lembremo-nos das ruínas de Machu Picchu, no Peru: as muralhas,
paredes e caminhos da ciudadela construída no século XV estão preservados,
mas falta-lhes a estrutura superior. Esta, feita com vigas de madeira e coberta
com ichu, um tipo de palha local, não durava mais do que três ou quatro anos,
com manutenções periódicas. Isso se infere por meio de estudos arqueológicos
e, principalmente, através da tradição oral, uma marca da cultura Inca. Fora de
dúvida está que uma imagem originária desta população em relação as suas
habitações ou mesmo uma representação dos conquistadores espanhóis teria
sido de grande contribuição para enriquecer análises sobre sua cultura material,
já que se tratava de uma sociedade não escrita.

O valor das imagens como evidência para a História do vestuário é


igualmente destacado. Neste quesito ela informa sobre o que se vestia, quais os
tipos de tecido ou a composição das peças e cores, mas também as influências,
aproximações ou inovações de uma dada indumentária no interior de uma
comunidade, Estado ou em relação à contextos internacionais. Pensemos na
quantidade de indícios fornecidos pela pintura holandesa da segunda metade
do século XVI e decorrer do XVII, por exemplo, em relação aos alimentos, à
arquitetura das casas, à composição dos gêneros numa cozinha, à presença
de animais entre os habitantes da residência etc. Parece evidente que, ao nos
lançarmos à investigação historiográfica, temos que questionar: porque esta
imagem, que representa um lar comum, ou a vista panorâmica de uma cidade,
por exemplo, “mentiria”? Quais razões teria o artista para retratá-la como não
era? Quais elementos podem ter sido exagerados ou ocultados?

Conforme destacado por Burke, algumas evidências da cultura material


são mais confiáveis. No caso da pintura da República Holandesa, o fato de que
seus artistas estiveram “entre os primeiros a pintar vistas externas das cidades e
interiores domésticos, para não mencionar natureza morta, é uma valiosa pista
para a natureza da cultura holandesa no período” (BURKE, 2017, p. 129). De fato,
nesta cultura dominada por cidades e mercadores, a observação e o detalhe, tão
valorizados, fizeram surgir uma arte descritiva que se apresenta, por isto mesmo,
rica em indícios e testemunhos para a escrita da História. Aqui a ressalva se
constitui no cuidado de não se tomar como testemunho ocular o que na realidade
podem ser versões revisadas de uma imagem, ou ainda, uma representação de
dado contexto sobre outro. Em um exemplo extremo, seria como tomar a Madonna
de Da Vinci (Figura 8) como indiciária de elementos da época do nascimento de
Jesus, sendo que fora produzida quinze séculos depois.

41
Linguagem Visual na HistoriograFia

As imagens do cotidiano têm o poder de nos fazer adentrar no seu universo,


pois possuem caráter realista, mas também despretensioso. Temos que recordar,
no entanto, que ambas as características são ilusórias. É comum que as
imagens transmitam certa distorção da realidade, caso das pinturas que informam
sobre a arquitetura de uma cidade, por exemplo. Ao mesmo tempo em que seu
testemunho possui um valor ímpar, porque permite de uma só vez e de forma
geral, abstrair uma composição complexa de elementos que os textos – supondo-
se que existam – demorariam muito a explicar, o estilo artístico arquitetônico
ou de paisagem urbana costuma representar as cidades mais limpas e menos
populosas do que de fato se encontravam no momento da observação.

Esse é o caso da impressionante pintura de Jan Van Der Heyden (Figura 11),
um expoente da pintura holandesa do século XVII, em A barragem e Damrak. A
imagem é povoada por gentes e por construções de diferentes períodos históricos,
mas ela não deixa de apresentar-se organizada e asseada. Isso é o resultado de
uma “limpeza” estética, típica do gênero. O inverso de tal “limpeza” também pode
ocorrer: a desordem e a sujeira podem ser destacadas ou exageradas quando a
imagem possui uma retórica política ou moral. Ainda sobre a obra de Heyden, seu
fator realidade reside na segurança que ela expressa em relação ao testemunho
ocular do artista. Ou seja, ela nos convence, dada a sua técnica apurada, a
perfeita perspectiva e o jogo de sombras, que o artista estava justamente no
mesmo lugar que ocupamos a admirar a paisagem urbana.

FIGURA 11 – A BARRAGEM E DAMRAK (C. 1663),


JAN VAN DER HEYDEN

FONTE: <https://www.harvardartmuseums.org/collections/
object/228161?position=0>. Acesso em: 6 nov. 2019.

42
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Sugestão de filme: Moça do brinco de pérola (2004). Trata-se


da adaptação fílmica de um romance baseado na origem do quadro
homônimo, um dos mais famosos de Johannes Vermeer. Para além
do drama central envolvendo uma jovem camponesa e o pintor, os
cenários, figurinos e as relações de mecenato do meado do século
XVII na Holanda estão muito bem representados.

Quando nos referimos aos testemunhos da imagem em relação à cultura


material não estamos apenas sugerindo que elas apresentam indícios da
existência ou não de dado objeto, instrumento, vestimenta ou mobiliário, mas que
eles evidenciam a organização e o funcionamento dos objetos investigados. Este
tipo de “informe” raramente se apreende em textos escritos.

O exemplo da Figura 12 pode tornar mais claro tal argumento. A obra, uma
aquarela de Jean-Baptiste Debret, foi produzida entre 1820 e 1830 e intitula-se
Loja de Sapateiro. A imagem retrata um sapateiro português, proprietário de seu
comércio e dos africanos escravizados que o auxiliam nos serviços que presta.
Um deles, em razão possivelmente de dano causado a alguma peça, é visto
sendo castigado com uma palmatória, sob o olhar temeroso do companheiro à
direita do observador e caçoísta da senhora à esquerda, possivelmente, a esposa
do sapateiro, a amamentar uma criança.

Repare-se na riqueza de indícios da cultura material do espaço: as


ferramentas, os utensílios, a palmatória. A imagem informa que o comerciante
produz sapatos variados, para um público de posses. No alto se veem botinas
em couro; no interior do ímpio móvel envidraçado, a cobrir toda a parede traseira
do estabelecimento, observam-se sapatos de seda. Em relação a estes últimos,
a coloração clara não deixa dúvidas de que se trata de calçados para o público
feminino. A delicadeza do armazenamento e o asseio do espaço denotam tanto
o cuidado com um produto custoso, voltado a uma determinada pertença social,
como a frequência do lugar por estes indivíduos. Quer dizer, não se tratava de
uma oficina frequentada exclusivamente pelos trabalhadores. Tudo o que compõe
o lugar destinava-se a ser visto, inclusive os trabalhadores e a prática do castigo.

O estilo dos móveis, comuns para um contemporâneo, talvez não tenha


sido registrado em detalhes em outras tipologias de documentos. Por sua vez,
a organização do lugar e a disposição do espaço, entre o armário e o móvel
central (possivelmente para o atendimento) e a dos trabalhadores se daria com
dificuldade em um documento escrito, nisto residindo sua contribuição mais

43
Linguagem Visual na HistoriograFia

importante. Já a indumentária da imagem corrobora o exposto noutras fontes:


enquanto os escravizados vestiam roupas claras, feitas de baetão – tecido de lã
grosso, dos mais baratos da época – e não levavam calçados, os homens livres,
porém sem grandes fortunas, vestiam-se com modéstia, mas portavam sapatos
e calças compridas, nisso diferenciando sua indumentária daquela voltada aos
homens e mulheres de sua propriedade.

FIGURA 12 – LOJA DE SAPATEIRO, (1820-1830), JEAN-BAPTISTE DEBRET

FONTE: <https://nacoesunidas.org/especial-entre-o-brasil-e-a-africa-
houve-uma-troca-forte-e-poderosa-alberto-da-costa-e-silva/loja_de_
sapateiro_aquarela_jean-baptiste_debret/>. Acesso em: 6 nov. 2019.

Para o estudo das mentalidades, as imagens constituem também fontes de


notório valor. Podemos inclusive pontuar que a abertura do campo historiográfico,
no sentido da abordagem de novos temas, novos problemas e novas perspectivas,
foi possível pela incorporação de outras fontes que não as ditas “oficiais” para a
escrita da História, como aquelas do campo visual. Uma história da morte, do
amor, da infância, problemáticas investigativas da chamada “história vista de
baixo”, a cultura popular como um todo: se bem é verdade que escritos, diários,
relatos podem dar conta destas temáticas, também é verdade que as imagens
permitiram enriquecer grandemente estes estudos ao longo do século XX.

Vêm-nos à mente, tão pronto colocamos esta questão, a obra de Philippe


Ariès, História Social da Criança e da Família. O historiador investigou a
emergência de um “sentimento de infância” no início da Era Moderna, utilizando

44
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

como fontes documentais artefatos de patrimônio material dos cemitérios, tratados


sobre educação de crianças e jovens e imagens do período. Para o historiador,
a alteração nas representações da infância se vinculava às sensibilidades
dos adultos em relação a essa fase da vida, evidenciando o momento de
transformação nas relações entre adultos e crianças e pais/mães e filhos. A obra,
não ignoramos, tem sido alvo de diversas críticas ao longo dos mais de trinta
anos desde a sua publicação. A principal delas, a nosso entender, é a que acusa
o autor de negligenciar a mudança nas convenções de representação, vendo
demasiada ausência de representações da infância durante a Idade Média e
entendendo-a, por analogia, como ausência de sentimento em relação a esta fase
da vida. De qualquer forma, seu trabalho tornou-se uma referência pioneira na
utilização de imagens para o estudo das mentalidades, mas alerta também sobre
as suas dificuldades.

Um exemplo de sensibilidades apreendidas no âmbito político são as


charges e as caricaturas do Segundo Império brasileiro. Elas testemunham de
maneira ímpar a existência de um tipo de antimonarquismo que, ao mesmo
tempo que satirizava a situação social e política do país, construía uma imagem
do Imperador. Como nos mostrou Lilia Moritz Schwarcz (2014), os idealizadores
da República no Brasil, no bojo das tensões travadas com os monarquistas,
lograram formular a conexão entre a imagem de Pedro II como um velho e a
obsolescência do regime que conduzia. Imagens do Imperador dormindo, alheio
aos temas do país, abundaram nos jornais da época. Tratava-se, neste caso, de
uma representação visual do Imperador, mas também da manifestação de uma
imagem mental dos sentimentos que o monarca suscitava entre seus opositores.
(Indicação de leitura: SCWARCZ, 2014. Trata-se de uma premiada biografia de D.
Pedro II que aborda concepções acerca do monarca construídas no contexto da
crise do Império.)

Vejamos a Figura 13, uma caricatura intitulada Manipanso Imperial publicada


no jornal O Mequetrefe, em 1878. Primeiramente devemos ter em conta que uma
caricatura ou charge não se produz tão somente para ilustrar uma ideia, mas
para convencer e influenciar a formação de uma imagem mental sobre alguma
coisa. Conforme esclarece a historiadora Joelza Esther Domingues (2016, s/p),
“Manipanso é uma palavra de origem quicongo para designar um ídolo africano
que representa o ancestral de um clã”. Apesar de a caricatura pautar-se num estilo
fantástico original, nota-se que o Imperador fora representado com fisionomia
realística. A princípio, parece evidente o intento de acusá-lo pela centralização na
distribuição de privilégios e cargos, estes representados pelas pastas que segura
nas múltiplas mãos. A serenidade no olhar se choca com o colar de crânios
humanos que leva posto, o que sugere a impiedade de sua personalidade.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 13 – MANIPANSO IMPERIAL, CÂNDIDO ARAGONEZ


DE FARIA. O MEQUETREFE, 10/01/1878

FONTE: <https://ensinarhistoriajoelza.com.br/caricaturas-do-segundo-
reinado-critica-com-humor-e-ironia/>. Acesso em: 6 nov. 2019.

Sugestão de site: <https://ensinarhistoriajoelza.com.br/>. A


autora do site é professora de História e oferece sugestões de
documentos e fontes de diversos temas do currículo da disciplina
para se trabalhar em sala.

Como parte importante da campanha republicana, as caricaturas se davam


à apreciação junto a textos que expunham os problemas do regime, mas elas
informam também um enunciado próprio. No caso, a imagem do Imperador
representava um sistema de governo obsoleto e antiquado – observe-se o
manipanso, distribuindo cargos sem critério além do seu poder discricionário.
Videm-se também as figuras em menor escala: sustentando-o, figurativamente –
porque estão abaixo – os políticos e o Exército são pelo Manipanso sustentados,

46
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

já que ele é a fonte de seu status quo. O elemento pictórico em si corrobora este
enunciado: a representação tribal de um líder sentado confortavelmente em uma
grande almofada suscita o sentimento de que ele e o regime que representa
estão situados em outro tempo social. Voltando à questão que temos feito: o
que imagens como essa podem testemunhar? Nesse caso, elas são, no mínimo,
testemunhas da criação de instrumentos para expressar, visualmente, uma ideia
subjetiva sobre o Imperador Pedro II.

Parece necessário pontuar que a distinção entre a imagem como testemunho


e a imagem como representação não se sustenta. Isso porque qualquer imagem
concreta, mesmo em relação a uma imagem mental sobre dado período ou
personagem, não pode ser outra coisa senão uma representação daquele
momento ou pessoa. No caso de um retrato em que o artista – suponhamos que
assim seja – reproduziu fielmente as características de seu modelo, por exemplo,
no retrato de Getúlio Vargas (Figura 14), nem por isso o retrato deixa de ser
uma representação do estadista. Aqui operamos com a noção de representação
como uma forma de reproduzir, simbolizar, ser a imagem de uma coisa, período,
sentimento, lugar. Mas representação também no sentido de “estar no lugar de”,
no sentido de uma atuação que substitui a coisa em si.

FIGURA 14 – RETRATO DE GETÚLIO VARGAS (1938)

FONTE: <https://www.deviantart.com/gukpard/art/President-Getulio-
Vargas-painting-1938-700235104>. Acesso em: 6 nov. 2019.

47
Linguagem Visual na HistoriograFia

No retrato em análise, as características fisionômicas de Getúlio se deixam


reconhecer, pretendendo-se uma obra realista, inclusive tendo em vista a sua
finalidade expositiva no panteão dos estadistas brasileiros, na sede do Governo
Federal. No entanto, o retrato não dissimula seu caráter lisonjeiro. Realizada em
1938, a pintura apresenta um homem de 56 anos, com aparência, porém, mais
jovial. Seu biotipo físico fora igualmente alterado: ali, parece mais magro e alto do
que realmente foi. A faixa presidencial e o cenário onde foi retratado demonstram
o desejo de uma memória histórica específica, a saber, ser lembrado com as
insígnias do cargo que ocupou – embora isso seja em parte a continuidade de
uma tradição no país. Finalmente, uma sombra pairava sobre o governante: a
de sua ilegitimidade. Tendo em vista consagrar-lhe a insígnia da legalidade,
segurava firme numa das mãos – sugerindo-se inclusive que nela se apoiava – a
Constituição Federal de 1937.

Tendo sido esclarecida esta ponderação – a de que uma imagem será


sempre uma representação, não importa o grau de fidelidade atribuído em
relação ao modelo ou sua pretensão à testemunha ocular – tomemos um
exemplo de representação no extremo: imagens construídas sobre o “outro”.
De acordo com Peter Burke (2017), as maneiras com as quais lidamos com o
outro, com aquele que é diferente de mim, na tentativa de compreendê-lo, são
duas: a domesticação do exótico por analogia à minha cultura; e a construção
da outra cultura em oposição a que eu pertenço. Este tipo de representação
designa-se, grosso modo, estereótipo, e se observa entre duas culturas: a
portuguesa e a generalidade dos indígenas; entre religiões: no caso dos judeus e
dos muçulmanos; ou entre integrantes de uma mesma pertença social, como nas
representações masculinas sobre as mulheres.

Entre os exemplos mais familiares de estereótipos do outro, para nós, está


o dos indígenas que habitavam o território brasileiro quando da sua invasão
pelos portugueses. As populações indígenas foram objeto de inúmeras imagens,
relatos e publicações no Velho Mundo, sobretudo nos séculos XV e XVI, tendo
alcançado vendagem significativa dado o interesse que despertavam. Assim como
as “raças monstruosas” que faziam parte do imaginário europeu no período das
navegações, é importante lembrar que a produção de imagens sobre sociedades
remotas não fora de todo “inventada”. Em que pese o fato de grande parte delas
ter sido produzida por homens que jamais pisaram em solo americano, essas
visões distorcidas acerca do “outro” que, além de diferente, era alguém que
se desconhecia, ilustra tanto os medos dos europeus frente ao mundo que se
ampliava, quanto a sua autopercepção em termos de humanidade e civilização.
Neste caso, o “outro”, além de bárbaro, revelava-se através das imagens enquanto
privado de humanidade.

48
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

Nenhuma imagem foi mais fértil em relação a esta falta de humanidade


do indígena do que o discurso do canibalismo. Tomemos o exemplo da Figura
15 de autoria de Theodor de Bry, publicada no ano de 1592, De Bry era um
ourives e editor de origem Belga, inserido no grupo daqueles interessados nos
“descobrimentos”, mas que nunca esteve no Brasil. Suas imagens sobre o Novo
Mundo foram produzidas em chapas de cobre (método designado “água-forte”)
e inspiraram-se, sobretudo, no relato e nas imagens de Hans Staden – um
explorador mercenário alemão que foi prisioneiro dos Tupinambás durante nove
meses, na região situada entre a atual cidade do Rio de Janeiro e a de Bertioga
em São Paulo.

FIGURA 15 – COZINHANDO E COMENDO, (1592), THEODOR DE BRY

FONTE: <https://super.abril.com.br/historia/como-eram-os-rituais-de-
canibalismo-dos-indios-brasileiros/>. Acesso em: 6 nov. 2019.

Na imagem de De Bry, vemos a cena de uma refeição em que o alimento


é a carne humana; uma típica representação de canibalismo, com Staden
representado atrás a gesticular sobre a barbaridade do ato. Os homens têm
partes do corpo cobertas de pelo, plumas ou penas e estão do lado oposto ao
ocupado pelas mulheres. Destaca-se a representação de duas mulheres velhas,
à esquerda, com os seios flácidos (havia uma terceira na imagem original, cortada
nesta que reproduzimos), a grande moradia que figura no plano mais ao norte da
imagem e a gordura que goteja dos membros sobre a fogueira.

49
Linguagem Visual na HistoriograFia

Além de todas as liberdades que De Bry tomou em relação às imagens de


Staden, nesta, em particular, a antropofagia foi retratada não como um ritual, mas
como uma prática ordinária de alimentação. Isto dá margem para que se “leia”
o canibalismo enquanto naturalizado, seja para o grupo em questão, seja para
a totalidade dos grupos indígenas, já que a prática foi generalizada sem muito
critério. Isto, hoje sabemos, está longe de ser verídico. Em termos pictóricos,
não só a representação indígena na imagem não informa sobre os caracteres
fisionômicos dos Tupinambás, como a sua feição é grotesca, monstruosa,
atualizando as representações do outro entre os europeus, que agora se
encarnavam no habitante da América Portuguesa: exótico, inculto, primitivo,
desumano e cruel.

Como observou a historiadora Darlene Sadlier (2016), nada na gravura de


De Bry é “tipicamente brasileiro”: reparem nos corpos esculpidos, nos cabelos
longuíssimos da representação feminina mais à frente, que parece inspirado na
Vênus de Botticelli. O destaque dado à prática do canibalismo pelos europeus
não fora o resultado apenas de sua repulsa ou curiosidade, mas constituiu-
se na prova de que a noção de cultura se limitava à civilização e esta não era
encontrada senão no Velho Continente. Neste sentido, a imagem de De Bry, como
outras, informa muito pouco sobre a realidade Tupinambá do meado do século
XV e muito sobre o imaginário europeu, de si e do outro, no mesmo período.

O estereótipo, no entanto, nem sempre se constitui como imagem negativa.


O caso de Eugene Delacroix, pintor francês que viveu no século XVIII, é ilustrativo.
Fascinado com a cultura oriental, o artista produziu desenhos e pinturas lisonjeiras
de mulheres belíssimas e misteriosas, de uma cultura muçulmana luxuosa em
cores e em ouro. Estas imagens não estão mais longe de serem estereótipos do
que a representação dos indígenas pelos europeus. Em primeiro lugar, o “oriente”
se resumiu à observação de umas poucas cidades muçulmanas, do que resulta
uma enorme generalização. Depois, como o próprio artista assumiu, as mulheres
muçulmanas não se deixavam retratar, motivo pelo qual usou modelos judias
para inspirar as suas obras, inserindo as insígnias exóticas que observava nas
muçulmanas. Neste caso, temos num mesmo exemplo a representação de um
estereótipo e a distorção de uma realidade.

Outro exemplo foi a emergência do sentimento romântico em relação aos


indígenas brasileiros. É verdade que ele foi gestado, no século XVIII, junto
aos propósitos nacionalistas, mas também é um fato que o bom selvagem de
Rousseau adquiriu, no Brasil, nuances daquilo que “éramos”, ou seja, do que
não somos mais, ou ainda, do que aspiramos enquanto identidade coletiva.
De qualquer forma, tratava-se de um “outro” positivamente estereotipado, que
se deixa ver muito bem pelas pinturas “nacionalistas” do século XIX. É curioso

50
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

pensar que, no curso da história, os indígenas passaram de selvagens canibais a


modelo de bondade e pureza.

Orientamo-nos, a partir de agora, para a parte final da discussão sobre a


linguagem visual na operação historiográfica, abordando as contribuições da
semiótica para o campo da chamada “cultura de massa”. Designamos nossos
artefatos de análise de fontes “documentais” porque esta nomenclatura é uma
herança do ofício, dos tempos em que apenas documentos – no sentido lato, de
textos escritos por uma oficialidade que confere, afirma, um estado ou condição
– eram confiáveis provas dos acontecimentos do passado. Mas o conceito de
“fonte” não é menos problemático: sugere uma fonte d´água a se encontrar e nela
a verdade sobre o passado, como se este pudesse ser avistado sem o contágio
com intermediários. As críticas ao uso de imagens parecem residir no mais
profundo deste postulado: na sua origem há um indivíduo que retrata o mundo
como quer, como pode, como parece conveniente. Portanto, as imagens iludem,
mentem, criam e imaginam.

O tratamento historiográfico conferido às imagens como fontes de informação


situadas, numa sociedade como a nossa contemporânea, eminentemente visual,
requer do/a historiador/a de ofício a aproximação da linguagem visual à estrutura
linguística, oral e discursiva. O conhecimento do construto teórico, ideológico,
social, enfim, histórico das imagens estimula uma interação crítica com o
universo ao seu redor, que está a todo o momento gerando representações do
mundo através do campo visual. Daí que o diálogo entre culturas possibilitado
pelo estudo crítico de imagens tradicionais, como a arte, mas também daquelas
disponíveis no cotidiano – como outdoors, propagandas etc. – relacione-se com a
perspectiva histórica, ao estimular um exercício cultural mais consciente em seu
relacionamento com o “mundo das imagens”.

Neste sentido, parece importante situar o caso das imagens como produto
da cultura de massa. Para esta “leitura”, em específico, são fundamentais as
contribuições de Roland Barthes (1915-1980). Barthes foi um sociólogo francês
que se destacou, dentre outros, no campo da semiologia – lembremo-nos da
semiótica: ciência, teoria ou campo de conhecimento dos sistemas de signos.
Através do estudo das imagens, das artes e da produção midiática em geral,
Barthes realizou uma etnografia da sociedade francesa através dos signos que
ela emitia, oferecendo uma contribuição em relação à maneira de “ler” a produção
visual contemporânea.

Para o historiador Rodrigo Fontanari (2016), especialista na obra de Barthes,


é na sua Mitologias, conjunto de textos escritos entre 1954 e 1956, que o autor
esboça uma crítica ideológica da linguagem da cultura dita de massa, apontando
para o mascaramento ideológico operado pelos códigos das mídias ao dissimular

51
Linguagem Visual na HistoriograFia

a realidade e dar por natural aquilo que é historicamente construído. E como se dá


tal mascaramento? Segundo Barthes as palavras, uma vez que a linguagem é
naturalizada, passam pelas coisas, escondendo-se aí as intenções. Na obra
oferece-se um modelo de desmontagem das operações discursivas dos meios
de comunicação através de um exercício crítico de visão, que enseja perceber a
produção de sentidos para além das aparências.

O mito é definido por Barthes como uma fala, um sistema de comunicação


e uma forma de significação que se define não pelo que diz, mas pela maneira
como diz. A isto chamamos “linguagem”. Para o que nos interessa nesta
discussão, importa que saibamos problematizar o uso social e histórico que os
falantes fazem de uma dada linguagem, por exemplo, a visual, porque este uso é
capaz de fazer com que os objetos e as matérias passem a significar outra coisa,
para além de uma nomenclatura do mundo.

Fontanari recorda que o conceito barthesiano de mito não se distancia de


outro, aqui já abordado: o de “conotação, esse acréscimo de significado ao signo”
(2016, p. 147). O conceito de conotação aponta que é por meio do uso empregado
à linguagem que o mito é definido conceitualmente, porque ele impõe ao signo
um sentido secundário – “co-notar”, notar outra vez –, para além do desejo da
produção visual em deixar-se mostrar francamente, como sugere o significado do
verbo “denotar”. O signo, para a semiótica, é tudo aquilo que está no lugar de outra
coisa, ausente, passando a representá-la. Segundo André Valente (1997) com
base nas diferentes relações entre significante e significado estabelecem-se três
tipos de signos: ícone (como metáfora; imagem ocupa o lugar de algo que dela
se assemelha); índice (como metonímia; um termo ou imagem substitui o outro
porque o sentido de ambos é contíguo); e símbolo (de caráter conotativo; uma
forma de convenção em que uma realidade concreta representa algo abstrato).

Vamos aos exemplos práticos. Na Figura 16 temos um exemplo de ícone:


o desenho de um abridor de garrafa de Coca-Cola vintage. Este desenho se
assemelha, relaciona-se e faz lembrar o produto Coca-Cola, mas trata-se de um
ícone ligado tanto à marca quanto ao produto, mas não há o produto em si. A
Figura 17, por sua vez, sugere que se trata da bebida Coca-Cola, porque o líquido
é escuro, está gelado e a identidade visual do produto, como ele costuma ser
publicitado, suscita a ideia de refrescância, o que está sendo indicado – daí o
“índice” – pela imagem. Finalmente, a Figura 18 aporta um símbolo: o produto
não está ali, nem representado, nem sugerido. A relação com o símbolo é
convencional: é preciso aprender o que ele significa, saber o que é uma Coca-
Cola, para compreendê-lo.

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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

FIGURA 16 – UM ÍCONE COCA-COLA

FONTE: <https://nerdstore.com.br/marca/coca-cola/>. Acesso em: 6 nov. 2019.

FIGURA 17 – UM ÍNDICE COCA-COLA

FONTE: <https://www.metropoles.com/gastronomia/beber/coca-cola-quer-
incentivar-publico-a-consumir-menos-acucar/amp>. Acesso em: 6 nov. 2019.

FIGURA 18 – UM SÍMBOLO COCA-COLA

FONTE: <https://www.inteligemcia.com.br/coca-cola-influenciou-pesquisas-
que-tinham-seu-patrocinio-revela-estudo/>. Acesso em: 6 nov. 2019.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

A aproximação da História com os saberes oriundos da semiótica é


notável, sobretudo em estudos que utilizam fontes documentais do mass media,
publicidade e cultura de massa. A “leitura” barthesiana nos é importante também,
por exemplo, em estudos que investigam fenômenos de recepção, quando se faz
necessário analisar a produção de sentidos em âmbito coletivo. Recepção, diga-
se, não apenas no seu sentido comercial, mas que abrange também a propaganda
política, os regimes autoritários ou as campanhas de guerra, para citar alguns
exemplos do desenvolvimento do estilo e de fórmulas visuais de relevo voltadas
às massas.

Embora não tenhamos a pretensão de ser experts em semiótica, porque


isto requer toda uma formação que não possuímos como historiadores/as, seria
importante realizar um exercício de leitura de imagem pautando-nos em tal
perspectiva, aplicada a um produto da chamada cultura de massa. Fiquemos com
o produto Coca-Cola. A imagem em análise (Figura 19) foi produzida como uma
publicidade natalina da marca, no ano de 1957, tendo sido veiculada em revistas
periódicas brasileiras.

Do ponto de vista da análise que temos feito até aqui, a publicidade se insere
na dinâmica enquanto testemunha de um momento histórico, indiciando sobre a
vestimenta da época, o mobiliário e os objetos, os penteados. Mas a imagem não
pode representar tal momento histórico porque a família em tela não existe: a
imagem é a composição de um conjunto de fatores que enunciam o embricamento
entre família, felicidade e Coca-Cola.

Num exercício de denotação, observamos que a ambientação da família se dá


em espaço doméstico, porém festivo, descontraído. Na cena representada, uma
família branca, heteronormativa e nuclear troca presentes de Natal entre si. Ou,
melhor posto, o pai, provedor da família, é quem distribui os presentes. O que está
colocado enquanto signo é o produto Coca-Cola sendo consumido neste
ambiente doméstico, familiar, harmonioso. Apesar da “festa”, os membros
que a compõem são apenas o pequeno núcleo familiar, muito bem arrumados
para uma confraternização reservada. “Conotando” a imagem, percebemos que
ela sugere uma mensagem: os momentos simples podem se tornar grandes
momentos com Coca-Cola, e ainda mais quando se verifica a presença dos três
elementos da “fórmula felicidade”, como informa o enunciado: a família, o Natal e
Coca-Cola.

O que não está dito é que tudo o que está representado, desde a família,
o cenário, o produto ou a festividade, foi naturalizado, como se não fossem,
todos estes elementos, construções culturais que variam mesmo dentro de
uma mesma cidade, classe ou etnia. Também fica evidente que um produto

54
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

cujo apelo imperialista é inquestionável, insere-se no cenário nacional de maneira


naturalizada. Barthes questionaria acerca desta imagem o seguinte: qual é a
sua retórica? O que ela inspira a que nos identifiquemos? Podemos afirmar com
certeza que a publicidade estimula a que se vincule a festividade natalina com
a família, com presentes. Já a família se reporta ao ambiente doméstico e tal
domínio e suas relações como permeados pela presença de Coca-Cola.

FIGURA 19 – PUBLICIDADE DE NATAL DA COCA-COLA VEICULADA EM REVISTAS

FONTE: <https://exercicios.mundoeducacao.bol.uol.com.br/exercicios-historia-brasil/
exercicios-sobre-governo-juscelino-kubitschek.htm>. Acesso em: 6 nov. 2019.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

Como poucos produtos, Coca-Cola logrou ao longo do século XX consolidar


sua imagem junto à da confraternização natalina, inserindo-se num mesmo apelo
de consumo que hoje caracteriza esta data. No caso da bebida, por sua vez, seu
apelo se irradia a diversas outras comemorações: dia dos pais, dia das mães,
dia das crianças, carnaval, aniversários, reuniões entre colegas de escola ou de
trabalho... Enfim, a publicidade da marca sugere em cada um desses contextos
que é um bom momento para fazer uso da bebida, para se permitir, para disfrutar.
A análise de um produto como Coca-Cola – que é ao mesmo tempo um símbolo
capitalista, ou de consumo, e um ícone da cultura norte-americana – tem mais
nuances do que aquelas que apontamos. Acreditamos, no entanto, que nosso
ponto em relação às intenções que se escondem sob a linguagem visual foi
observado a contento.

O que se buscou abordar neste apartado foram sugestões de análise de


imagens de acordo com o método crítico da História, entendemos produtos da
cultura visual como testemunhos do seu contexto de produção, e que podem, por
isto mesmo, indiciar sobre ele uma série de coisas, se logramos fazer as perguntas
corretas. No universo das artes, abordamos alguns estilos e os cuidados a se
tomar para que não entendamos o enunciado desse tipo de imagens como
evidente, tampouco sobrevalorizemos o elemento pictórico ou iconográfico.
Destacamos a necessidade de percorrer uma terceira via analítica, como sugerido
por Peter Burke, para incorporar com qualidade as imagens na construção do
conhecimento histórico: suas fórmulas, estilos, elementos pictóricos, convenções,
relações, entre outros.

Indicação de leitura: Gatto, 2018. O texto aborda alguns


conceitos fundamentais da semiologia de Barthes aplicada a
fotografias, pinturas e imagens das mídias.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Qualquer artefato cultural se inscreve numa cadeia que engloba quem o
produziu, quem o utilizou, quem o analisou, quem o empregou de outra forma.
Mas as imagens, além de oferecerem seus testemunhos e indícios, permitem
que se formem visões do passado, pois através delas imaginamo-lo melhor.
Essa relação entre imagem e imaginação está presente na própria etimologia de

56
Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

ambas as palavras. Também para a psicologia, por exemplo, o conceito de imago


designa uma imagem inconsciente de um objeto. O elemento estético aporta
ao conhecimento do passado uma sensação, uma visão desse passado. Este
postulado é dos mais importantes. Um produto visual se insere em nossa memória
histórica como um dado, eis aí seu potencial para o conhecimento histórico, mas
onde residem também os seus perigos.

As artes, privilegiadas na discussão que ora encerramos, poderiam haver


sido abordadas pela perspectiva da História Social da Arte ou da Psicologia
histórica, por exemplo. Optamos, em alternativa, por realizar um apanhado geral
da sua utilização na operação historiográfica em dois sentidos. O primeiro, situado
no apartado inicial do capítulo, apresentou propostas de leituras de imagens
do campo do ensino de artes. Para quem está começando a se aventurar nos
domínios da visualidade, não há melhor iniciação do que essa. A contribuição
fundamental dada por esse campo vem no sentido de estabelecer etapas de
apreciação artística que são fundamentais no “olhar” para a imagem e na sua
significação. Mas o ensino das artes aporta, também, ao instruir que a produção
de sentidos se dá não apenas pela representação de alguém ou alguma coisa
identificada, pois o pictórico, o gestual, o lumínico, o gráfico, o espacial, entre
outros passam uma mensagem, um enunciado e um sentimento.

Os outros dois apartados do capítulo estiveram focados na utilização de


imagens pelo saber historiográfico. Sustentamos que as fontes visuais, como
qualquer outra, devem ser inqueridas quanto ao seu lugar de produção, além
de submetidas a um questionário qualificado para a investigação em curso. Da
mesma forma como a tradição historiográfica sugere que se utilizem tipologias
documentais diversas para a construção de hipóteses e argumentos, no caso
da incorporação das imagens, isso se mantém: elas fornecem um testemunho
mais seguro se cruzadas com outros, com outras “miradas” e outras “vozes”.
Atentamos, finalmente, para a diversidade de produtos visuais disponíveis para
o propósito da História. Uma obra de arte do século XIII e uma propaganda da
década de 1990, o que elas têm em comum? A resposta esclarece aquilo que
no capítulo seguinte será abordado em relação às imagens técnicas: seria mais
acertado falar em múltiplas linguagens visuais, pois cada produto possui uma
forma de significação que testemunha e enuncia não pelo que diz, mas pela
forma e através do que diz. Conforme aprendemos com Barthes, esse é o sentido
do qual se investe a palavra “linguagem”.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

1) Em relação aos teóricos que propuseram metodologias


de leitura de imagens, qual das afirmativas a seguir está
incorreta?

a) ( ) As etapas de apreensão artística propostas por Ott constituem


movimentos, daí sua descrição no gerúndio, sendo o último
deles a fase de reprodução, em que o apreciador revela sua
apropriação da obra através de um fazer artístico singular.
b) ( ) Para Maria Helena Wagner Rossi existem três níveis de
julgamento estético, sendo o mais sofisticado o nível III, em que
o observador tem consciência de que a sua subjetividade atua na
produção de sentidos e significados em relação ao produto visual
analisado.
c) ( ) Os métodos de leitura de imagem de Robert Ott, Abigail
Housen e Maria Helena Wagner Rossi compreendem etapas de
recriação artística ao final do processo de apreensão, quando
então os/as mediadores poderão atentar se os/as observadores/
as compreenderam corretamente a obra analisada.
d) ( ) As etapas de apreciação sugeridas por Erwin Panofsky foram
largamente utilizadas por historiadores e historiadoras ao longo
do século XX, embora atualmente se destaque a necessidade de
analisar produtos visuais para além de iconografia e iconologia.

2) Em relação ao método crítico das fontes elaborado por Marc


Bloch no livro Apologia da História, assinale a alternativa
correta:

a) ( ) Aborda sobretudo a crítica a documentos escritos e oficiais.


b) ( ) Compõem-se pelos princípios da discrepância, da
semelhança limitada e da contradição.
c) ( ) Prescinde o acosso de uma hipótese a ser comprovada.
d) ( ) No caso das imagens, o método sugere maior importância
à análise de sua produção do que dos símbolos e signos que a
compõem.

3) Analise as afirmações a seguir acerca da noção de


testemunho, conforme elaborada por Peter Burke,
assinalando a opção correta:

a) ( ) O testemunho oferecido por uma imagem refere-se a haver


sido contemporânea de dado contexto histórico, podendo ser
inquerida em relação a ele.
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Capítulo 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL

b) ( ) Testemunho assemelha-se à noção de “prova documental”,


daí a possibilidade de ser utilizada na produção do conhecimento
em História.
c) ( ) Algumas imagens fornecem um tipo de testemunho mais “fiel”
do passado, a exemplo dos retratos pintados e das fotografias, a
partir do final do século XIX.
d) ( ) Uma imagem pode ser compreendida enquanto verdadeira
testemunha ocular, se tiver sido produzida neste mesmo passado
e com fins de registro histórico.

4) Em relação à obra de Barthes, assinale a alternativa


incorreta:

a) ( ) Está centrada na leitura semiótica de imagens do mass


media.
b) ( ) Incorpora noções de outros teóricos, como denotação e
conotação.
c) ( ) Acredita que através da naturalização da linguagem
escondem-se as intenções, por exemplo, na publicidade.
d) ( ) Foi um crítico de ícones como a Coca-Cola por razões
ideológicas não sustentadas em suas teorias.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

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VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

60
C APÍTULO 2
LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E
TECNOLOGIA

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

• Compreender o papel dos processos tecnológicos na produção artística, assim


como na difusão de imagens em diferentes contextos históricos e sociais.

• Conceber a fotografia, o cinema e a televisão em suas relações com


manifestações artísticas, ideológicas e historicamente situadas.

• Desempenhar-se criticamente em relação aos conteúdos e intencionalidades


da linguagem, quando aportados pelos registros visuais e audiovisuais.
Linguagem Visual na HistoriograFia

62
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Em primeiro lugar, comecemos por dizer que modernidade é um termo
polissêmico. Ou seja, a depender do referencial teórico adotado, do fenômeno
específico a ser abordado ou até mesmo do lugar e do período em que se está
situado, podemos encontrar concepções distintas de modernidade, que apesar de
se sobrepuserem em muitos sentidos, certamente não coincidem por completo.
No entanto, é possível destacar de antemão que todas estas possíveis definições,
incluindo variações semânticas como modernização e modernismo, guardam
consigo uma intrínsica dimensão temporal que as convertem em conceitos
históricos de enorme relevância.

Em diversos idiomas existem palavras derivadas da expressão originalmente


latina, hodiernus, utilizadas para se referir ao tempo mais recente, algo que se
conserva até os dias atuais, quando dizemos, por exemplo, que um determinado
aparelho eletrônico, recém-lançado, é o “mais moderno” do mercado. Contudo,
esta afirmação carrega ainda outro significado: o de que, por ser mais atual, o
referido aparelho seria, consequentemente, também diferente e melhor do que os
anteriores, ainda que fadado a ser ultrapassado pelo próximo que virá. Enquanto
conceito histórico, esta segunda concepção de modernidade é a que mais nos
interessa. A percepção do presente como um tempo radicalmente novo, que
rompe com as tradições do passado e se abre para um futuro de possibilidades,
constitui uma experiência moderna do tempo que começa se delinear, sobretudo
na Europa, por volta dos séculos XV e XVI, no bojo de fenômenos históricos
concomitantes como a invenção da imprensa, a difusão do Renascimento
Cultural, a eclosão da Reforma Protestante e a formação dos Estados
Absolutistas, mas que se expandem para outras regiões do planeta através das
Grandes Navegações e do desenvolvimento se um sistema mercantilista mundial.
Especialmente ancorado em torno da valorização de uma cultura humanista, o
conjunto de transformações provocadas por este processo de grande abrangência
envolveu mudanças profundas, que foram desde uma nova concepção de sujeito
até um novo paradigma epistemológico.

Como período histórico, uma noção de Idade Moderna irá se afirmar


lentamente, principalmente, por oposição a uma Idade Média que se tinha
a impressão de deixar para trás. Mas foi somente na esteira de uma extensão
do pensamento iluminista e dos impactos da dupla revolução, Industrial e
Francesa, ocorridas no final do século XVIII, que por volta de 1800 as rápidas e
contínuas transformações sociais e tecnológicas vieram atribuir à modernidade
um acentuado teor de realidade e vivência cotidiana. A partir desse momento,
conceitos meta-históricos, como os de aceleração e progresso – além de outras
variações semânticas, como “desenvolvimento” e “evolução” – passaram a ser

63
Linguagem Visual na HistoriograFia

cada vez mais utilizados para descrever o crescente afastamento entre espaço
de experiência (passado) e horizonte de expectativa (futuro), assim como para
explicar a própria História (KOSELLECK, 2014).

Curiosamente, mas de maneira coerente, quando se tem a necessidade


de descrever este momento mais recente dos tempos modernos como uma
novíssima Idade Contemporânea, é que se consolida o entendimento do período
anterior como sendo uma Idade Moderna. Ou seja, a modernidade tal qual a
conhecemos em termos de experiências caracterizadas, dentre outros aspectos,
pela predominância do progresso tecnológico, do sistema capitalista e de uma
sociedade urbano-industrial e de valores liberais-burgueses, é algo que se inicia
justamente quando, em termos históricos, a Idade Moderna chega ao fim. Para
ressaltar esta diferença, alguns autores costumam chamar este período anterior
de Primeira Modernidade ou Início da Modernidade. O imperativo processo de
adequação, nos mais variados âmbitos, à frenética sequência de inovações
conhecidas ao logo dos séculos XIX e XX, será frequentemente denominado de
modernização. Ao passo que modernismo expressa a reação estética a estes
processos de modernização, seja de forma entusiasta, crítica ou apenas reflexiva,
sempre mediados pela experiência de uma modernidade strictu sensu. As novas
possibilidades de reprodução técnica das obras de arte, oriundas da Segunda
Revolução Industrial iniciada por volta de 1850, provocarão, por exemplo,
profundas alterações não apenas nos modos de produção, mas também na
própria forma moderna de percepção artística.

Ainda no campo da arte, é justamente da tentativa de marcação de uma


descontinuidade em relação a estes movimentos modernistas da primeira metade
do século XX que surgirá uma ideia de pós-modernidade. Entretanto, a rigor,
tal posicionamento, assim como o próprio prefixo “pós”, seria historicamente
equivocado, haja vista que não haveria nada mais moderno do que um gesto de
inovação que busca superar a ordem precedente. Partindo deste pressuposto,
autores como Hans Ulrich Gumbrecht defendem que a versão mais interessante
de “pós-modernidade consiste em conceber nosso presente como uma situação
que desfaz, neutraliza e transforma os efeitos acumulados dessas modernidades
que têm se seguido uma a outra desde o século XV” (GUMBRECHT, 1998, p.
21). Nesta perspectiva, o século XXI seria produtor de uma nova temporalidade,
diferente daquele imperativo por inovação característico da modernidade, na qual
agora predominaria uma impressão de desaceleração em relação aos ritmos de
mudança e uma crise da ideia de progresso, motivada dentre outras coisas pelas
expectativas negativas das ameaças de colapso ambiental. Para Gumbrecht, a
constatação de “uma mudança do hábito – moderno – de organizar as múltiplas
representações de fenômenos idênticos como evoluções e histórias para o
hábito – pós-moderno – de tratá-las como variações que estão simultaneamente

64
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

disponíveis” poderia indicar a constatação, tanto no nível historiográfico quanto


no artístico, desse novo paradigma (1998, p. 22-23).

2 ARTE E REPRODUTIBILIDADE
TÉCNICA
Técnica, arte ou ofício. Três conceitos que designam maneiras de realizar
uma ação ou um conjunto de ações. Conhecimentos que abrangem métodos,
instrumentos, procedimentos, ferramentas: um modo de fazer. Interpelando a
técnica por este prisma, fica claro que a possibilidade de reproduzir uma obra
de arte sempre esteve à disposição de homens e mulheres que, atentos/as aos
procedimentos, puderam refazer um objeto original. Na Antiguidade Clássica, por
exemplo, os aprendizes de ofícios mais destacados eram aqueles que logravam
melhor imitar a arte de seus mestres. A cunhagem de moedas, desde quatro
mil anos atrás, constitui um dos mais antigos procedimentos de reprodução em
massa. No Oriente, a xilogravura – técnica de gravura que utiliza uma matriz
de madeira onde está esculpida uma imagem – é conhecida desde o século
VI, antecedendo, portanto, a reprodução tipográfica da escrita. Em termos de
reprodução técnica, a imagem surgiu antes da palavra.

Outras artes fazem parte do universo de possibilidades a serviço da


reprodução anteriores ao século XIX, momento em que o fenômeno da
reprodutibilidade técnica entrou em um novo patamar. A prensa móvel
desenvolvida por Gutenberg (1450) é uma forma de reprodução técnica, na qual
um dispositivo com tinta aplica pressão sob uma superfície de papel ou tecido,
imprimindo nela o texto da matriz. A matriz, por sua vez, é formada por “tipos” –
daí o nome tipografia – bloquinhos de chumbo forjados em relevo, cada um com
uma palavra ou letra, que unidos formavam a placa que seria prensada e daria
origem a uma pilha de páginas idênticas. Em seguida, a placa era desmontada,
as palavras de uma nova página eram agrupadas e o processo repetia-se até
a conclusão da obra. A mesma técnica, porém, em bloco único e um tanto
rudimentar, ao invés dos “blocos móveis”, já era utilizada para a impressão de
ideogramas na China desde o século VIII.

65
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 1 – BLOCOS MÓVEIS DE TIPOGRAFIA

FONTE: <https://thonyc.wordpress.com/2018/11/01/apples-pears-
comparing-print-technologies/>. Acesso em: 13 dez. 2019.

Durante o medievo europeu desenvolveu-se a gravura em metal (com


destaque para o cobre), nomenclatura genérica para designar a calcogravura
(gravura mediante compressão). Na gravura em metal a tinta é depositada
nos sulcos de uma gravura produzida no metal por um cinzel, ou buril, para a
impressão da imagem em outra superfície. A lógica desta técnica é a mesma da
xilogravura. A água-forte, do mesmo período, é também uma técnica de gravura
em metal, mas cuja especificidade reside na corrosão dos traços do artista pelo
ácido nítrico, o que provoca os sulcos que receberão a tinta para impressão.
Embora mais de uma impressão possa ser produzida por uma única operação,
com qualidades distintas entre a primeira e as demais, as técnicas de reprodução
de gravuras se caracterizam pela operação singularizada, ou seja, cada gravura
que se queira reproduzir com certa qualidade requer um novo procedimento de
pintura e pressão da matriz na superfície que a receberá.

As artes gráficas tornaram-se aptas a acompanhar a experiência de


aceleração técnica do início do século XIX com o desenvolvimento da litografia,
já que este método se apresentava muito mais eficiente do que os demais na
reprodução massiva de gravuras. Na litografia – lito, pedra, grafia, escrita – a
matriz de pedra calcária recebe um desenho feito com material gorduroso,
trabalhado em goma arábica nas regiões brancas, não pintadas. A gordura não
adere à goma, definindo-se o desenho. No processo de entintagem, além das
cores, uma solução destaca as partes oleosas, desenhadas, que repelem água,
daqueles que absorvem água e repelem gordura. Ao umedecer a superfície da
pedra, primeiro com removedor, depois com água, as partes pintadas, gordurosas,

66
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

são impressas na superfície de contato. Através da prensagem de papel, madeira


e até mesmo plástico sobre a pedra, reproduz-se milhares de cópias da imagem.
Pode-se voltar a umedecer a pedra para expelir pigmento quantas vezes forem
necessárias para a continuidade da reprodução.

A revolução operada pela litografia na reprodutibilidade técnica só seria


ultrapassada pela invenção da fotografia. Com ela, o artista libertava as mãos
e acelerava ainda mais o processo de reprodução. No entanto, o advento
do “desenho da luz” trouxe, para as teorias da arte, tensões que envolviam a
própria definição/redefinição de arte, além de questões novas relacionadas às
possibilidades de sua reprodução, que não se limitavam mais ao ofício do artista
e suas técnicas. Técnica, neste momento, deslocava-se do sentido comum de
procedimento para incorporar nele o de máquina. Numa equação simplista: a
imagem passava a ser o produto de um procedimento mediado pela máquina.
Independentemente de a intervenção humana ser mais ou menos significativa
nesse procedimento – isto variava entre os que pensaram a relação arte/
reprodutibilidade técnica – de qualquer forma o advento da fotografia alterou as
singularidades que até então haviam definido a produção artística de homens e
mulheres.

FIGURA 2 – MÁQUINA DE IMPRESSÃO LITOGRÁFICA

FONTE: <https://www.flickr.com/photos/heitlinger/6479417679>. Acesso em: 13 dez. 2019.

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Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 3 – RÓTULO IMPRESSO EM MÁQUINA DE IMPESSÃO LITOGRÁFICA

FONTE: <https://www.flickr.com/photos/heitlinger/6479417679>. Acesso em: 13 dez. 2019.

De acordo com Wagner Souza e Silva (2012), no estado da arte atual que
se relaciona à produção de imagens técnicas, esse conceito – técnica – não se
refere apenas a um meio de produção, mas também a um modo de percepção
produzido pelo aparato tecnológico. Apesar de usados indiscriminadamente,
técnica e tecnologia possuem significados diferentes. Para o autor, o termo técnica
sugere uma conexão mais íntima com as necessidades e motivações da práxis,
enquanto tecnologia corresponde aos aparatos e aos discursos que estipulam os
modos de atuação. Os usos, formas de proceder e as maneiras de produção de
sentidos através do aparato tecnológico, por exemplo, são as técnicas, ou ainda,
as razões para fotografar, por exemplo. O sentido de ambos os conceitos está
explícito na maneira como os utilizamos corriqueiramente: quando se aborda um
“modo de fazer” de dado fotógrafo – uma expressão prática da necessidade que
leva a uma ação – não afirmamos que ele possui sua “tecnologia própria”, mas
sim uma “técnica própria”, ou pessoal. Em síntese, tecnologia se define pela
conjunção do material e da teoria que foram originados por uma técnica.

A fotografia e o cinema, antes de se tornarem imagens, são o produto de


atividades técnicas e tecnológicas. Ou seja, sendo a produção de imagens o
produto final dessas tecnologias, sua operação passa por uma instrumentalização

68
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

a que Souza designa experiência tecnestésica. Tal experiência está marcada,


nos dias de hoje, pela influência da tecnologia digital na percepção de imagens
e na construção de narrativas visuais, uma vez que a popularização dos
aparelhos de comunicação e suas câmeras integradas, conectadas às redes
sociais, constituem um arsenal de novas formas de aproximação e produção
dessas narrativas. Uma característica de nossa experiência tecnestésica é que
essa aproximação gera cada vez mais atribuições para as práticas de produção
visual e, imersa em outros dispositivos que os outrora aparatos que em caráter
exclusivo fotografavam/filmavam. A tecnologia da fotografia, por exemplo, perdeu
muito de seu apelo singular, hoje conectada a um universo que não é mais
específico de sua constituição original, ou seja, a câmera fotográfica. Utilizamos
cada vez menos tal aparato, hoje substituído por aparelhos multifunção, como os
smartphones.

Os debates sobre a produção de imagens técnicas e a possibilidade de sua


reprodução, como não poderia deixar de ser, percorreu uma trajetória constante
de aperfeiçoamento e progressão ao longo do século XX, que acompanhou o
desenvolvimento de tecnologias sempre mais atuais, mais promissoras, mais
revolucionárias. Embora o universo tecnológico nos deixe tímidos/as no sentido
de construir conhecimentos duradouros, porque os objetos e os problemas
mudam com a velocidade típica do nosso tempo, o campo da sociologia da arte
se desenhou, em nosso entender, a partir das contribuições daqueles que, a partir
do início do século XX refletiram sobre as alterações nas formas de percepção e
comportamento surgidas com a expansão e o progresso dos meios técnicos. Um
estudo da imagem em interlocução com a modernidade e a tecnologia não pode
dispensar estas contribuições.

A discussão basilar do espírito fissurado das artes pela fotografia e depois,


pelo cinema, foi empreendida por Walter Benjamin, ao longo da década de 1930. O
filósofo e crítico literário alemão escreveu um dos maiores clássicos da sociologia
da arte, uma obra que aqui será abordada enquanto precursora, mas que requer
alguma crítica e revisão: A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica.
No centro das preocupações de Benjamin estava o fato de que, por volta de 1900,
a reprodução “tinha alcançado um nível em que não só começou a transformar
em seu objeto a totalidade das obras de arte do passado” (2017, p. 13), como a
submeter a sua repercussão às mais profundas transformações.

A obra de arte autêntica guarda, em relação às imagens dela reproduzidas,


a autoridade que se relaciona a sua autenticidade e originalidade. Tal autoridade
é maior em relação às reproduções manuais (falsificações) do que em relação
às reproduções técnicas. Isso porque, segundo Benjamin, a reprodução
técnica é muito mais independente da obra original do que a manual. Através
da reprodutibilidade técnica fotográfica, por exemplo, podem-se ampliar partes

69
Linguagem Visual na HistoriograFia

de uma obra de arte, desvelando aspectos através da lente objetiva que a


óptica humana não consegue captar. Na era digital este postulado se expande
infinitamente. Pensemos na ampliação possibilitada pelos pixels, que nos
permitem ver inclusive um pequeníssimo cílio que caíra na tinta ainda fresca de
uma tela pintada a óleo.

Uma segunda razão da autonomia da reprodução técnica em relação às


cópias manuais, e mesmo em relação à original, refere-se ao seu alcance, à
capacidade de ir ao encontro de uma massa de expectadores que jamais verão a
obra de arte original. Isso, em primeiro lugar, dá-se porque a obra original é apenas
uma, enquanto a sua cópia pode se reproduzir infinitamente. Depois porque,
mesmo considerando que inúmeras obras de arte circulam entre exposições e
mostras ao redor do mundo, existem muitas outras que são fixas, exemplo dos
afrescos na parede de uma catedral ou das obras arquitetônicas. Neste sentido,
parece claro que o aprimoramento da reprodutibilidade técnica significou
para as artes a sua democratização, pelo menos no sentido da expansão do
conhecimento e do acesso às imagens.

Por mais bem-feita que seja a cópia manual de uma obra de arte ou as
possibilidades abertas pelas formas de sua reprodução técnica, a obra de arte
possui uma existência única no lugar onde se encontra, seu “aqui e agora” a que
Benjamin vai designar “aura”. A aura que habita a obra autêntica “é a essência
de tudo o que ela comporta de transmissível desde a sua origem, da duração
material a sua qualidade de testemunho histórico” (BENJAMIN, 2017, p. 15). A
sua autoridade de coisa original, fruto de um gênio e de uma materialidade única
não pode ser copiada sequer pelo próprio artista, se fizesse de sua própria obra
uma reprodução manual cinco minutos depois da primeira. A autoridade reside
justamente nisso: a segunda, realizada em relação de subordinação à primeira,
dá um testemunho absolutamente diferente. Talvez seja menos o caso desta não
possuir uma aura, do que o de ser habitada por outra, mas igualmente singular,
como a obra original.

Sugestão de filme: A arte da falsificação, 2013. O filme


apresenta uma singular trajetória de falsificação de obras de arte, a
de Wolfgang Beltracchi, que durante décadas se dedicou a copiar
técnicas e estilos de artistas famosos, ao invés de reproduzir seus
quadros famosos. Suas falsificações – adquiridas como verdadeiros
Picassos e Modiglianis por museus e galerias de arte mundo afora –
recolocam a questão sobre a originalidade da obra de arte e o “aqui e
agora” que habitam obras únicas.

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Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

Benjamin entendia que a possibilidade de reprodução técnica da obra de


arte a libertava do domínio da tradição. Na medida em que se multiplicava a
reprodução do que antes era singular, substituía-se a existência única de uma
obra de arte por sua existência em massa, nisso operando-se a atualização da
obra, já que lhe permitia ir ao encontro de novos receptores. Mas, atualização
significava para o autor a liquidação do valor de herança cultural aportado pela
obra de arte, e também o enfraquecimento de sua aura. Por um lado, enfraquece-
se porque toda aproximação, espacial e humana, subentende a perda do ritual em
que a obra singular está envolta. Por outro, a apreensão da obra de arte, com a
facilidade com que se dá através da sua reprodução técnica, é a manifestação da
tendência de ultrapassar a existência única de cada situação, através da recepção
em larga escala de sua reprodução.

O caráter único da obra de arte autentica seu lugar junto ao ritual de sua
utilização primeira, e também sua função social. É a isso que Benjamin se refere
quando fala da inserção da obra de arte no contexto da tradição. Realizada
para fazer pensar, inspirar, cultuar, a obra de arte está carregada de emoção e
de todos os sentimentos que avultam da criação artística original, os quais não
estão presentes na sua cópia ou reprodução. Com os diferentes métodos de
reprodução técnica da obra de arte, a possibilidade de sua exposição cresceu
numa proporção tamanha, mensurada pela fissura que se abriu entre o valor de
culto de uma imagem (culto no sentido religioso, espiritual, mas também culto
no sentido de cultuar a genialidade da obra originária) e seu valor expositivo.
Enquanto a obra de arte tradicional tem sua existência sob o valor de culto, a ser
fruída por um público seleto em uma exposição ou museu, a essência da obra de
arte reproduzida é o seu valor expositivo, já que sua razão de ser é a apreciação
por diversas coletividades em espaços diferentes ao mesmo tempo. Isto não
apenas subverte o “aqui e agora” da obra original, mas sugere, para o autor, que
quanto mais reproduzida, menos ritualizada se converte a obra original.

Como parece evidente, há ressalvas contundentes a se fazer em relação


aos conceitos de valor de culto e valor de exposição. Num exemplo simples, é
patente que a disseminação universal da reprodução da La Gioconda de Da Vinci
não diminuiu a função de culto da obra original. Ao expandir-se como reprodução,
conquistou apreciadores em diferentes rincões do mundo, que hoje se espremem
no Louvre para vê-la “pessoalmente”, a metros de distância e ainda assim com
minutos contados. Ou seja, ao contrário de seu valor de culto ter se enfraquecido
com a sua reprodução técnica, parece que sua aura foi potencializada, assim
como seu valor simbólico, que cresceu na proporção da sua reprodução.

Além dessa classe de crítica em relação à aura da obra de arte, que se


enfraqueceria na proporção das possibilidades de sua reprodução, Benjamin
argumentou, também, no sentido de que as novas artes – a fotografia, o cinema

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Linguagem Visual na HistoriograFia

e o disco – manifestam minimamente sua aura, “seu aqui e agora”, seja pela
reprodução em massa, seja porque são produzidas com a finalidade, justamente,
de serem reproduzidas. Ou seja, há nisso uma crítica contundente à cultura de
massa como instrumento da indústria da arte e nesta, uma reflexão sobre
a apreciação das artes sem o pensamento crítico necessário. Onde reside
o “aqui e agora” de uma narrativa fílmica, se a ilusão criada pela técnica não é
resultado da atuação do ator, mas sim de um conjunto de montagens? Eis, por
exemplo, uma das reservas do autor.

O cinema foi objeto de especial atenção de Benjamin. Na atuação para a


câmera, ao invés dos olhos, entendia que o ator estava sozinho, exilado, numa
atuação de natureza diferente daquela que se dá diante dos expectadores.
Uma vez que o público se identifica com um personagem através da técnica, da
máquina e de seus instrumentos de produção de sentido, perde-se o valor de
culto do cinema como obra de arte. Para Benjamin, o único mérito revolucionário
do cinema consistia em revolucionar as concepções tradicionais de arte.
Não se entenda, nesta análise dura do autor, um rechaço da sétima arte. Se
apreendermos com atenção as suas palavras, perceberemos que, ao contrário,
ele enseja uma utilização do cinema em sua função social que esteja à altura da
potencialidade desta técnica em representar a tragédia e as utopias humanas.
Comparando a obra de arte em sua acepção tradicional, que requer concentração
e que deve ser apreciada em silêncio, já que faz pensar, o autor entendia o
cinema como o passatempo dos incultos, a arte da distração que suscitava, ao
contrário, o barulho e o pensar superficial e acelerado. Comparava, finalmente,
que enquanto o indivíduo mergulhava na arte, as massas eram absorvidas pela
“arte técnica”.

Na esteira de Benjamin, outros dois intelectuais amadureceram as teorias


críticas em relação à reprodução técnica de imagens, aqui elencados para
apreciação de suas ideias. Além de clássicos, importa conhecer estes estudos
porque suas reflexões abrangem distintas fases do desenvolvimento tecnológico
ocorrido no século XX, servindo para embasar análises sobre o tempo presente,
em relação à era digital.

Durante os anos 1950 Roland Barthes aproximou suas análises ao tema da


fotografia e da reprodução técnica, nas quais julgava poder observar a codificação
ideológica presente em qualquer processo da então moderna produção mitológica.
Em textos da década seguinte o autor passa a dialogar intimamente com Walter
Benjamin. Este acreditava que a única maneira de mobilizar a fotografia em
sentido contrário ao da multiplicação capitalista seria associá-la à palavra crítica.
Ou seja, conectar uma linguagem à outra, para fins revolucionários. Barthes se
mostrará um crítico desta perspectiva, pois entendia que ancorar o sentido da
imagem a um texto verbal aprisiona o visual, transformando a imagem em uma

72
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

mensagem sem código próprio, conotada apenas em sua relação com o verbal.

A análise realizada por Barthes em A mensagem fotográfica (1990) tem


como objeto a fotografia e sua reprodutibilidade na mídia periódica, nos jornais,
e o processo de construção de significados pelos receptores. De um lado da
produção do jornal está uma fonte emissora – o jornalista, o fotógrafo e o editorial
do jornal – que, segundo o autor, parasitam a imagem, incorporando nela uma
moral, uma imaginação e uma intenção logradas através da sua subordinação
ao texto escrito. De outro lado está uma fonte receptora, que faz uma leitura da
imagem inspirada pelos saberes manipuladores do texto que a acompanha. No
entanto, tal leitura da linguagem fotográfica é histórica e será sempre, portanto,
influenciada pelos saberes do leitor ou leitora, que não pode senão por meio deles
realizar essa leitura.

Barthes expressa através do conceito de analogon a ideia da imagem como


analogia da realidade, um produto que não apresenta códigos na sua mensagem
em si, uma vez que representa uma realidade objetiva. Mas, no âmbito da
fotografia jornalística, sustenta que existem duas mensagens inerentes a este tipo
de produção imagética. Essa primeira, denotada em analogia à realidade, e outra,
conotada pela imposição de um segundo sentido à imagem fotográfica. Seja
porque sua produção se dá por meio de procedimentos técnicos que manipulam
o processo de conotação de quem faz a sua leitura, seja porque seus dizeres
foram subjugados ao texto escrito, a imagem jornalística é trabalhada além da
mensagem que lhe é intrínseca (para o autor, nenhuma), nisto diferindo das
outras obras de arte, como a pintura, por exemplo.

Este processo de segundo sentido conferido à imagem reduz a liberdade


interpretativa do “leitor” frente a um objeto já demasiadamente interpretado
seja pelos procedimentos – pose, trucagem, esteticismo etc. – ou pela palavra
escrita. Entretanto o autor se mostrava também em parte otimista em relação à
reprodução técnica, eis aqui o paradoxo por ele apontado: a fotografia, objeto
inerte reproduzido por uma linguagem mecânica e inculta, conforme afirmava, não
reconhece o estado denotativo, porque ele é desnecessário (já que é analogon
de uma realidade literal). Daí que sua linguagem própria só exista socialmente
quando se encontra com o cognitivo, a percepção, que lhe dá razão de ser e
de existir. Isso pode ser, como apontado, indicado pelos fatores de manipulação,
mas está condicionado também a uma reserva de signos pré-estabelecidos,
determinado por um espaço temporal, histórico, cultural e estético no qual o leitor
está inserido. Isso, conclui, faz desta “mecânica” a mais social das instituições
humanas.

O terceiro teórico chamado a contribuir com esta discussão sobre arte e


reprodutibilidade técnica é o filósofo tcheco Vilém Flusser, cuja obra foi em parte

73
Linguagem Visual na HistoriograFia

desenvolvida no Brasil, entre 1941 e 1972, para onde veio com a ascensão do
nazismo na Europa. Em Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia
da fotografia, originalmente publicada em 1983, Flusser sustenta que a invenção
das imagens técnicas representa a segunda de duas grandes viradas na cultura
humana (sendo a primeira a invenção da escrita linear). Situada na evolução
da cultura ocidental como resposta à textolatria oitocentista, o resultado da
massificação das imagens técnicas foi devastador para a cultura, segundo o autor,
porque ela substitui o real por sua imagem, criando uma ilusão de experiência
vivida quando na realidade vive-se no plano das imagens e seus efeitos. No
glossário que propõe para uma futura filosofia da fotografia, textolatria aparece
como a idolatria do texto devido à incapacidade de decifrar seus códigos, não
obstante a capacidade do leitor de lê-los. Neste sentido, as imagens técnicas se
diferem de outras formas de linguagem pictórica porque estas representavam,
sugeriam, propunham uma visão do mundo e das coisas, enquanto aquelas as
substituem.

O objeto da reflexão de Flusser são os processos sociais transformados em


cenas pela mediação das imagens. O que vislumbra para a transformação da
fotografia em instrumento crítico, à semelhança do que propunha Benjamin, passa
pela desmagicização da imagem produzida pela técnica. Isto porque o autor via
nesse tipo de imagem um princípio mágico do mundo que se desenvolveu na era
pós-histórica (ou pós-industrial). Tirar a realidade fotográfica da mística técnica
pressupunha, neste sentido, que o fotógrafo não se limitasse a condição passiva
de utilizar o equipamento conforme a lógica da produção em série. Tratava-se
de uma concepção crítica que ensejava desenvolver a consciência histórica
nos homens e mulheres comuns, consciência diluída pela profusão de imagens
que naturalizavam a separação entre o produtor e seu meio de vida do produto
realizado.

O momento da produção deste texto, o início da década de 1980, foi marcado


pela expansão dos aparelhos tecnológicos, o que abrange desde a automatização
das câmeras fotográficas até o desenvolvimento dos microcomputadores. Para
Flusser, o conceito de aparato é central: em oposição aos instrumentos da era
industrial, os aparelhos pós-industriais não laboram nem transformam o mundo,
nisso residindo o caráter novo das sociedades do período, em que o trabalho não
é mais um dos alicerces. Em sua obra, inquerir o aparato fotográfico, considerado
o patriarca, o protótipo de todos os aparelhos modernos, foi uma tentativa de
descrever criticamente as engrenagens pós-ideológicas do aparato industrial,
publicitário, político e econômico que constitui o mundo contemporâneo. Como
bem destacaram Martins e Silva (2013, p. 173-4), “o fio condutor do livro é a
denúncia do caráter totalitário e eminentemente massificador da cultura superficial
(embora altamente abstrata e codificada) das imagens técnicas”.

74
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

A interface entre esses autores, dentre outros, que teorizaram sobre a


reprodutibilidade técnica, com destaque para a fotografia, observa-se pela crítica
consensual da universalização das imagens como produto e fator de alienação.
Seja através da perda do valor de culto (Benjamin), da codificação ideológica
que a imagem reforça (Barthes) ou da mística produzida pela técnica (Flusser),
as teorias da arte posteriores ao advento da fotografia suspeitavam não do
seu poder de alterar a realidade social tanto quanto fora alterada a percepção
da visualidade ao longo do século XX, pois isso era evidente. O receio que se
observa nas análises destes teóricos era a manipulação do poder emanado
dessas imagens técnicas para a construção de um tipo específico de sociedade,
alienada, manipulada, autoritária. Veja-se, por exemplo, a aproximação feita por
Walter Benjamin entre reprodutibilidade técnica como instrumento de distração
e manipulação e os preceitos dadaístas e futuristas. Os primeiros a refletir um
comportamento associal desejavam apenas “causar”: a arte era para eles um
instrumento de distração. Os segundos viam na estetização da política um meio
para se alcançar uma estética da guerra e aniquilar tudo o que se relacionasse
com uma sociedade entendida como atrasada, como afirmava o Manifesto
Futurista, de 1909: “queremos glorificar a guerra, única higiene do mundo, o
militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias
pelas quais se morre, o desprezo pela mulher” (MARINETTI, 1909). Na Figura
4 temos um exemplo do dinamismo e da temática do combate que nas artes
caracterizaram o movimento futurista. O curso da experiência humana confirmou,
com os piores resultados possíveis, as conjecturas previamente levantadas por
Benjamin.

FIGURA 4 – CARGA DOS LANCEIROS (1915), UMBERTO BOCCIONI

FONTE: <https://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2014/05/09/1096363/
futurismo-charge-of-the-lancer-umberto-boccioni.html>. Acesso em: 13 fev. 2020.

75
Linguagem Visual na HistoriograFia

Sugestão de atividade de estudo: cada acadêmico deve


realizar uma pesquisa individual sobre as vanguardas modernistas
europeias, escolhendo uma entre elas para aprofundamento: quando
e em que contexto histórico surgiu? Quem foram os principais
expoentes? Quais foram as características do movimento nas artes
e na literatura? E, sobretudo, quais foram os usos políticos sugeridos
ou inspirados por estas vanguardas? Os resultados das pesquisas
podem ser compartilhados entre todos.

3 A FOTOGRAFIA COMO TÉCNICA,


PRÁTICA SOCIAL E FONTE
DOCUMENTAL
As aproximações entre a imagem fotográfica e o conhecimento histórico se
dão a partir do estatuto técnico da fotografia em seu caráter de autenticidade e
prova, dado seu apelo enquanto testemunha ocular de fatos históricos. Como
sabemos, a evidência histórica do testemunho dado por uma imagem não é
inequívoca, neutra ou passiva. Igualmente no caso da fotografia, esse testemunho
está constituído por investimentos de sentido, tendo que ser inquerido enquanto
representação do passado para a construção de conhecimento histórico. A
consciência historiográfica, ao incorporar à investigação do campo um conjunto
amplo de registros da cultura humana, compreende que a elaboração de
linguagens, o uso de equipamentos e as condições de sua utilização são definidos
e redefinidos pelos sujeitos históricos. É a partir dessa lógica, dinâmica não-linear,
que abordaremos a fotografia, em dois momentos: realizando uma breve história
da técnica e interpelando-a como prática social; e inferindo sobre questões
teórico-metodológicas para a sua utilização na escrita da história.

Embora haja relatos de que Aristóteles (384-322 a.C.) tenha feito a primeira
descrição do funcionamento de uma câmara escura, foi o árabe Abu al-Hasan Ibn
al-Haytham (965-1038 d.C.) quem descreveu, trabalhou a técnica e ampliou-a,
conferindo-lhe também outros usos, como a observação de eclipses lunares e
solares, que seriam fundamentais para o desenvolvimento do telescópio e do
microscópio. Grosso modo, a técnica fotográfica consiste numa caixa, que
pode ser do tamanho de um quarto ou ter as medidas da palma de uma mão,
sendo três lados escuros e um claro. A parede oposta à clara deve conter um

76
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

orifício por onde entra a luz que projeta, na parede clara, a imagem do objeto
que está do lado de fora da câmara escura, em frente ao orifício. A imagem da
câmera fotográfica como sinônimo de aparato industrial é apenas uma de uma
série de experiências com a câmara escura: desde os experimentos escolares
com caixinhas de fósforo, até as Dirkons elaboradas em papel na extinta União
Soviética demonstram como a técnica é acessível, mas também como ela está
arraigada à cultura ocidental moderna.

Nas páginas que seguem, utilizaremos como itinerários da abordagem sobre


a fotografia dois estudos da historiadora Ana Maria Mauad; o primeiro datado
de 1996, o segundo, em parceria com Marcos Felipe de Brum Lopes, de 2012,
incorporando outras contribuições e sugestões de leitura e audiovisuais. No
que se refere ao primeiro ponto em discussão – uma breve história da técnica
– parece relevante pontuar, destarte, que o discurso inaugural da história da
fotografia a partir do daguerreótipo como resultado natural de esforços primitivos
não parece um caminho muito preciso. A câmara escura, como dissemos, há
muito conhecida no Velho Mundo, foi desenvolvida tecnicamente em diferentes
lugares, em diferentes momentos. Durante o século XIX variaram, de acordo com
seus inventores, os suportes de fixação de uma imagem, que era, ainda, única. O
daguerreótipo, compreendido como o primeiro instrumento técnico dessa fixação
– no caso, em uma placa de metal – foi apenas um dos processos que a logrou.
Pela fama galgada pelo invento, cujo autor vivia num dos centros culturais mais
destacados do mundo – a França do século XIX –, o daguerreótipo foi alçado à
categoria de elo condutor entre a técnica da câmara escura e a fotografia como
prática social como a entendemos no século XX.

O daguerreótipo foi, isto sim, o primeiro processo fotográfico amplamente


comercializado a partir de 1839. A imagem capturada pela câmara escura era
fixada em uma placa fina de metal, geralmente o cobre, devido ao seu baixo
valor. A fixação se operava pela sensibilização da placa com iodeto de prata,
que deixava a imagem espelhada. Nesse processo, a imagem da placa final
continha seu positivo e seu negativo, a depender do ponto de vista do observador.
As imagens eram únicas e extremamente frágeis, já que a superfície banhada
em prata se riscava com facilidade. A invenção, designada pelo apelido de seu
inventor, Louis Daguerre, não foi patenteada, mas sim cedida ao governo francês
em troca de uma pensão. Isso, a falta de patente do invento, foi fundamental na
disseminação da fotografia e na revolução nas formas de apreensão imagética,
como abordado no apartado anterior.

77
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 5 – DAGUERREÓTIPO DE LOUIS DAGUERRE, 1839

FONTE: <http://30joursaparis.com.br/tag/daguerre/>. Acesso em: 13 dez. 2019.

O valor cobrado por um retrato tirado a partir de um daguerreótipo, por


exemplo, ainda na primeira metade do século XIX, podia fazê-lo acessível
às classes trabalhadoras. A arte dos retratistas, por sua vez, era dificilmente
acessada por esta parcela populacional. Sobre a técnica, é interessante perceber
que a necessidade de exposição à luz solar intensa durante cerca de dez minutos
para a fixação da imagem resultou na sua execução a céu aberto, mas também,
na utilização de encostos e suportes que resultavam em representações um
tanto engessadas e em expressões sisudas de parte dos retratados, claro, com
exceções.

Pode-se imaginar a revolução operada pela fotografia numa sociedade em


que o pictórico, representando a realidade subjetiva por definição, era até então
um resultado da intervenção humana, que mediava a relação entre imagem e
realidade. Ou seja, na produção das artes, o artista expressava o mundo segundo
seu olhar. Com a fotografia, inaugurava-se uma economia visual que reproduzia
o mundo com todos os detalhes supostamente de forma objetiva, cujo produto
final unia realidade e imagem. Como os inventos e produtos de uma época são
sempre filhos de seu tempo, parece claro que as descobertas fotográficas se
estruturaram sobre as transformações das sociedades ocidentais, modernas e
urbanas, irmanadas a um conjunto de novidades como a lâmpada elétrica, o trem

78
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

a vapor e o cinematógrafo (MAUAD; LOPES, 2012, p. 270).

Até a década de 1880, quando a técnica fotográfica como resultado de


negativos se popularizou, ainda a cargo de sua operacionalização por profissionais,
outras técnicas existentes eram o calótipo (sensibilização de um papel, a partir
do nitrato de prata, que depois “copiava“, como um carimbo, a imagem negativa
produzida na câmara escura para um segundo papel, positivando-a); o ambrótipo
(impressão fotográfica sob placa de vidro); e o ferrótipo (criação de uma imagem
positiva sob uma chapa fina de ferro revestido com verniz), as duas últimas sem o
correspondente negativo. Seria pertinente realizar uma divisão entre os circuitos
e usos sociais da fotografia durante o século XIX e depois, no XX, analisando
como esse circuito se complexificou até o advento da fotografia digital.

Durante o oitocentos os usos da fotografia atualizam a tradição das pinturas a


óleo, tanto em relação aos retratos quanto às paisagens, já que esses dois estilos
de produção imagética se apresentam na fotografia segundo padrões construídos
nas épocas anteriores: a posição dos retratados, os símbolos inseridos, a vista
aérea para as paisagens etc. Os retratos parecem ter se convertido rapidamente
em um enorme sucesso. Nisto influenciaram os custos relativamente acessíveis
da fotografia e a facilidade com que se instruíam os fotógrafos para o trabalho.
Considera-se, como parece evidente, que o custo de um retrato fotográfico era
barato em comparação com um retrato pintado, mas também o objeto adquirido
era de outra materialidade: pequeno, mais íntimo, portátil.

De qualquer forma, tais aspectos multiplicaram a demanda pela produção de


retratos e de profissionais que os executassem, o que contribuía para a redução
dos valores de produção. O retrato fotográfico é um dos sintomas do novo
ordenamento social evidenciado no meado do século XIX em relação ao indivíduo,
à família nuclear e aos mecanismos de autorrepresentação das camadas
burguesas em ascensão. O retrato fotográfico moldou a face das camadas
médias abastadas à semelhança dos códigos pictóricos de representação de
outrora, utilizados pela aristocracia, atualizando seu modo de vida através de um
dispositivo de representação moderno, que articulava um universo de signos de
distinção.

As fotografias de paisagens foram outra modalidade produzida em larga


escala durante o período. Um fotógrafo, que poderia também ser um retratista,
acompanhava as empreitadas de companhias comerciais e agências coloniais
a fim de produzir imagens e construir representações dos domínios imperiais
e de conquistas empresariais. As vistas fotográficas se pautavam pelos
cânones da pintura de paisagem e, dado o objeto em apreciação, utilizavam-se
costumeiramente chapas médias e grandes. A fotografia de paisagens inseria-
se também nos circuitos de comportamento burgueses, pois permitiam trazer

79
Linguagem Visual na HistoriograFia

ao universo social de origem uma “mostra” das viagens turísticas e da refinação


simbólica do cotidiano proporcionada pelos trânsitos burgueses. Atente-se,
por exemplo, para a disseminação de relatos de viagem em revistas voltadas
às classes ricas urbanas ou os cartões postais remetidos aos pares durante o
transcorrer das viagens.

Uma terceira utilização da fotografia, a qual teve início ainda no século


XIX, referia-se a sua utilidade supostamente científica. O urbano, o moderno e
o civilizado se consolidaram a partir de padrões formados com base nos seus
opostos: os bárbaros, os incivilizados, os atrasados. Categorias etnocentricamente
construídas que utilizaram a fotografia para criar inventários do mundo e
categorizar a humanidade em raças e “tipos”. Nesta última categoria insere-se
a sua instrumentalização para os estudos sobre criminologia e teorias raciais,
uma vez que a objetividade visual aportada pela técnica informava a respeito
das características, semelhanças e anomalias encontradas – com demasiada
facilidade – em pessoas que haviam cometido um crime específico, por exemplo.
Isso permitiu a criação de estereótipos que foram cientificizados e adotados pelos
Estados liberais como “provas” que reificavam preconceitos cujo perfil classista
e racista é hoje inquestionável. Como recorda Mauad (1996), a fotografia como
prova infalsificável foi inserida na documentação oficial para fins de controle
social: tem-se, até os dias de hoje, sua obrigatoriedade na Carteira de Identidade,
no Passaporte, na Carteira de Habilitação etc.

A fotografia passou a ser entendida como uma forma de arte a partir do


advento do século XX, quando o trabalho de fotógrafos pioneiros se inseriu
nos circuitos das obras de arte “tradicionais”, deles se independizando logo em
seguida. Destaca-se a exposição precursora de Alfred Stieglitz em 1902, no
National Arts Club de Nova York, realizada após intentos anteriores que, além
de subjugar a fotografia à pintura, por exemplo, tinham como avaliadores, com
exclusividade, pintores, ao invés de fotógrafos. Desse momento data o conceito
de pictorialismo, surgido para descrever fotografias que simulavam o estilo das
pinturas e que eram manipuladas pelo uso do foco brando e do tom sépia, por
exemplo. Este intento de aproximação da fotografia ao campo visual das artes
plásticas é característico de um momento em que a fotografia, como arte, não
dialoga intimamente com o conceito de objetividade.

De acordo com a escritora Carol King (2011), depois da Primeira Guerra


Mundial, o espírito de celebração da mecanização e da velocidade inspirava
fotógrafos e fotógrafas ao redor do mundo, numa evidente apologia da
modernidade. Paul Strand, Edward Weston e Ansel Adams fundaram, em 1932,
uma pequena sociedade de fotógrafos chamada f/64, cujo objetivo era desafiar
o predomínio do pictorialismo. O grupo defendia o uso mais puro e realista
possível da fotografia, sem manipulações. Buscava utilizar as fotografias como

80
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

meio de promover as reformas sociais na década de 1930, nos Estados Unidos.


No período, o Departamento para o Desenvolvimento do Trabalho nos Estados
Unidos já contava com projetos que envolviam fotógrafos no mapeamento de
determinadas situações sociais, como as retratadas por Dorothea Lang sobre as
famílias migrantes e sem-teto.

Na mesma direção foram os investimentos em relação ao inventário


imagético de períodos marcados por conflitos armados, que passaram a contar
com a contribuição de profissionais que retratavam tanto o cotidiano dos exércitos
quanto o dia a dia das pessoas de sua pátria. Nesse sentido, duas contribuições
merecem destaque, ainda na primeira metade do século XX. A primeira foi a
experiência de Bill Brandt ao retratar, para o Departamento de Guerra britânico,
a depressão no seu país e o ataque de parte dos alemães. A obra, publicada
em livro, revolucionou a fotografia inglesa ao mostrar o contraste entre a vida
prazerosa da aristocracia e a árdua realidade dos operários.

A segunda contribuição consiste na trajetória de Robert Capa, profissional que


se especializou em fotografia de guerra, tendo coberto, dentre outras, a Guerra
Civil Espanhola, a Guerra Civil Chinesa, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da
Indochina, na qual morreu ao pisar em uma mina terrestre enquanto trabalhava.
Dentre muitas imagens icônicas produzidas por ele está A morte do soldado
legalista, realizada em 1936 durante a Guerra Civil Espanhola, e o desembarque
dos soldados americanos na Normandia, no episódio conhecido como Dia D, que
encerrou a Segunda Guerra Mundial (Figura 6). Capa se caracterizava pelo estilo
destemido. Ao utilizar câmeras com lentes de curto alcance, considerava que
uma fotografia, quando não estava suficientemente boa, era o resultado de uma
distância muito grande em relação ao objeto fotografado. Dentre os seus legados
está também a co-fundação da Agência Magnum, junto a Henri Cartier-Bresson,
David Seymour e George Rodger, uma cooperativa de fotógrafos livres que conta
atualmente com mais de um milhão de fotografias em seu banco de imagens.

81
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 6 - SEM TÍTULO (1945), ROBERT CAPA


HENRI CARTIER-BRESSON

FONTE: <https://blogdojuanesteves.tumblr.com/
post/149474501166/ligeiramente-fora-de-foco-
robert-capa/embed>. Acesso em: 13 dez. 2019.

FIGURA 7 – ATRÁS DA ESTAÇÃO ST. LAZARE (1932)


HENRI CARTIER-BRESSON

FONTE: <http://100photos.time.com/photos/henri-cartier-bresson-
behind-gare-saint-lazare>. Acesso em: 13 dez. 2019.

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Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

Sugestão de leitura: Steinbeck e Capa, 2011. Em Um diário


russo, John Steinbeck, jornalista e escritor estadunidense vencedor
do Prêmio Pulitzer de 1940 – e futuramente, do Nobel, conquistado
em 1962 – narra sua viagem com o fotógrafo Robert Capa por
países que formavam a hoje extinta União Soviética. Para além do
objeto central do livro, qual seja, fazer um relato “neutro” do outro
lado da cortina de ferro, a obra apresenta também os desafios e as
especificidades do trabalho de um fotógrafo profissional no meado da
década de 1940.

Um terceiro nome, uma reverência na história da fotografia, é o do francês


Cartier-Bresson. Enquanto Capa se caracterizou pelos detalhes obtidos em
aproximação com o objeto fotografado, Cartier-Bresson tinha como filosofia
capturar o momento decisivo, o instante único. Pioneiro em fotografia de rua,
apreciava a simetria e o equilíbrio; via padrões repetidos em cenas do cotidiano.
Nas fotografias afamadas de O momento decisivo, livro publicado em 1952,
observa-se como o fotógrafo foi inspirado pelas formas angulosas do surrealismo
e pelas formas geométricas do cubismo, como sua Atrás da estação St. Lazare
(Figura 7). A imagem consiste em um trabalho harmonioso, espontâneo e preciso.
O jovem pulando uma poça d´água, tendo utilizado uma escada como ponte,
é apenas um elemento com o qual outros dialogam: as acrobatas da figura ao
fundo parecem imitá-lo; o cartaz apresenta elementos circenses, como também
as formas arredondadas na água. A palavra Brailowski, sem o “B” apagado pelas
grades, resulta em Railowski que lembra, por sua vez, rail, ferrovia em inglês, cuja
estética (dos trilhos e do trem) é retomada pelas grades e pela escada no chão.

No Brasil a fotografia deu origem a nomes destacados internacionalmente,


como o de Sebastião Salgado e o de Araquém de Alcântara, ambos ainda em
atividade. O primeiro, economista de formação com estudos realizados sobre a
pobreza no Brasil e na América Latina, encontrou na fotografia uma maneira de
dotar de rostos as pessoas que habitavam seus trabalhos. Especializou-se em
fotografias de retratos de migrantes, exilados, estrangeiros, com destaque para
mulheres e crianças que vivem em contextos de miséria e guerras, exclusivamente
em preto e branco. Recebeu inúmeros prêmios internacionais pelos seus trabalhos
fotográficos, sendo atualmente titular da cadeira n. 01 das quatro ocupadas por
fotógrafos na Academia de Belas Artes da França. Durante a chamada carestia de
1983-1985 na Etiópia, Salgado produziu uma de suas séries fotográficas mais

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Linguagem Visual na HistoriograFia

aclamadas, Êxodos, na qual retratou os deslocamentos humanos resultantes da


situação de fome e da insurgência de grupos guerrilheiros no país, que resultaram
na morte de mais de 400 mil pessoas.

FIGURA 8 – DA SÉRIE ÊXODOS (1984), SEBASTIÃO SALGAD

FONTE: <https://focusfoto.com.br/recife-recebera-exposicao-
fotografica-de-sebastiao-salgado/>. Acesso em: 13 dez. 2019.

O catarinense Araquém de Alcântara é um dos fotógrafos mais importantes da


atualidade, especialista em paisagens naturais. Há mais de trinta anos dedica-se a
documentar a natureza e os biomas brasileiros, tendo sido o primeiro profissional
a registrar fotograficamente a totalidade dos parques nacionais. Através da
fotografia, realiza um trabalho contundente no combate ao desmatamento da
Amazônia, disponibilizando seu trabalho a entidades e instituições de defesa do
patrimônio ambiental brasileiro. Possui mais de 50 livros publicados e um currículo
com mais de 70 exposições realizadas no Brasil e no mundo. Como qualquer
seleção, muitos nomes de relevo no campo da fotografia ficaram de fora desse
limitado sumário.

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Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

FIGURA 9 – DA SÉRIE PARQUES NACIONAIS BRASIL


(2004), ARAQUÉM DE ALCÂNTARA

FONTE: <https://galeriachroma.com.br/artistas/galeria/
parques-nacionais>. Acesso em: 13 dez. 2019.

Em relação aos circuitos sociais da fotografia no século XX, Mauad e Lopes


(2012) estabelecem, para fins didáticos, dois roteiros: o das imagens públicas
e o das imagens privadas. Em relação à fotografia pública, prevaleceu, dentre
outras possibilidades, a institucionalizada, associada e produzida pelas agências
do Estado para dar visibilidade as suas ações, incorporadas a estratégias
de persuasão do poder político. Um segundo tipo de fotografia pública foi a
considerada “engajada”. Na diversificação imagética ocorrida ao longo do
século XX, a questão social emergiu na cena pública em diferentes lugares e
de diferentes formas. Sobretudo a partir da irradiação dos movimentos sociais e
políticos, a fotografia tornou-se uma poderosa arma nas mãos de profissionais que
registravam acontecimentos e encadeavam imagens em narrativas contestatórias.
As bandeiras de luta foram variadas, dos direitos civis à liberdade sexual, do
movimento operário aos movimentos pós-coloniais.

Em todos os casos mencionados anteriormente, a fotografia se tornou ou


foi produzida enquanto pública “para cumprir uma função política que garante a
visibilidade do poder, das estratégias de poder, ou, ainda, das disputas de poder”
(MAUAD; LOPES, 2012, p. 275). As fotografias se tornam parte e objeto de
uma memória pública que registra e projeta no tempo histórico uma versão dos
acontecimentos, construída por uma narrativa verbal e multitemporal: o tempo do

85
Linguagem Visual na HistoriograFia

acontecimento, o tempo de sua recepção; o tempo e as formas de sua exibição e


salvaguarda etc.

A experiência fotográfica do século XX alterou as formas de acesso aos


acontecimentos e sua inscrição na memória pública. O valor autoral da fotografia
parece ter se elevado com a sua disseminação entre as camadas sociais, mas
também se relaciona a sua profissionalização. De qualquer forma, esse valor
envolve um investimento do fotógrafo na produção de sentido definida pela
relação com o mundo visível, assim como sua ressonância no campo social onde
desenvolve sua experiência fotográfica. Uma fotografia adquire valor histórico
dada sua capacidade de responder às demandas dos circuitos sociais nas quais
esteve inserida, mas também pelos recursos técnicos e estéticos utilizados nesse
trabalho.

Em relação aos usos privados da fotografia, esses dizem respeito às formas


de recolher e preservar fragmentos de experiências cotidianas, ordinárias,
porém afetivas, por exemplo, os rituais simbólicos da infância. Um bebê dando
os primeiros passos, fazendo traquinagens; uma criança correndo atrás de um
cachorro na grama, tomando banho de piscina ou de mangueira; a primeira
comunhão ou o batizado; o primeiro dia na escola. No tempo presente, toda família,
por mais diferente que seja a sua formação e dinâmica, registra fotograficamente
as fases da vida de seus membros, com destaque para a infância, com vias a
construir uma memória futura e compor o legado familiar afetivo. Entre as elites,
o predomínio de álbuns fotográficos em estúdio desde o último quartel do século
XIX em diante limitou o registro de experiências cotidianas, informando pouco
sobre as formas de ser criança de cada período. No entanto, estas narrativas
biográficas visuais informam sobre as formas de autorrepresentação burguesa.
Atualmente observamos certo renascimento deste gênero fotográfico, quer dizer,
as crianças voltaram a ser fotografadas em estúdio, mais do que nunca cercadas
de elementos do universo infantil como brinquedos, parquinhos e fantasias. O
cenário, absolutamente artificial, infere pouco sobre o lugar social da criança: é
a própria produção técnica em si que delata sua origem entre as classes bem
colocadas socialmente.

No âmbito da produção fotográfica não profissional, pelo menos dois


momentos transformaram sua produção, circulação e consumo. O primeiro
observou-se com o desenvolvimento de câmeras de tamanho reduzido, na virada
do século XIX para o XX, como a Kodak n. 01 (Figura 10). Embora seu acesso
fosse limitado pelo alto custo do produto, o invento, que utilizava películas de
vidro, obviamente de única utilização, fáceis de inserir e alterar, permitia que um
indivíduo comum fosse proprietário de um equipamento que fazia do entusiasta
um produtor de imagens, tornando o mediador profissional desnecessário. O
artefato não requeria, para sua utilização, mais do que o conhecimento acerca do

86
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

aparato em si – abrir a gaita da lente, apertar o botão, trocar a lâmina de vidro,


fechar a gaita. A câmera fotográfica tornara-se, como o relógio havia sido dois
séculos antes, um objeto de fetiche e uma insígnia da modernidade, mas também
um distintivo de classe social.

FIGURA 10 – KODAK N. 01, c. 1909

FONTE: <https://michaels.com.au/collections/pre-owned-products/
products/kodak-3-a-autographic-f7-7-6>. Acesso em: 13 dez. 2019.

O segundo momento de mudanças técnicas de relevo em relação à indústria


da fotografia foi a entrada em cena da fotografia digital. A partir dos anos 1980,
dados os avanços tecnológicos introduzidos nos instrumentos fotográficos,
originou-se no interior das teorias da imagem debates sobre o caráter da
fotografia digital, e sua relação de continuidade ou ruptura com a fotografia
analógica. Noutras palavras, a discussão teve origem – e perdura – em torno do
questionamento da imagem digital enquanto fotografia. Dentre os argumentos a
favor da ruptura entre fotografia analógica e digital está um determinismo técnico
que definiria o meio. Ou seja, para aqueles que defendem esse preceito, sem
processo físico e químico não há fotografia. Também se aponta que a fotografia
analógica mantém uma relação física com o mundo, uma indicialidade da qual está
liberada a fotografia digital. Neste sentido e, finalmente, opõe-se a objetividade
da fotografia analógica à manipulação como marca da fotografia digital.

Será importante esclarecermos essas questões. Em primeiro lugar, não faz


sentido destituir a imagem digital de seus aspectos fotográficos porque, embora

87
Linguagem Visual na HistoriograFia

não haja a transferência de energia da luz para os elementos químicos na


superfície sensível, o processo de formação da imagem ainda ocorre no interior
da câmera. Mas, sobretudo, porque a fotografia é uma experiência histórica e
uma prática social, transformada, evidentemente, pela substituição do negativo e
da prata por grades de pixels e pela tradução de impulsos elétricos, mas isso não
alterou em absoluto o seu circuito social. A produção de imagens digitais mantém
com a prática analógica uma série de coisas: as lentes ópticas, o enquadramento,
a cor e a escala de cinza, pode ser impressa ou não (como o filme, que pode não
ser revelado), pode ser exposta, compartilhada, apreciada ou ficar restrita ao seu
círculo social de origem.

Os dois últimos argumentos se relacionam às associações materiais com a


realidade. É compreensível que estas questões se refiram às possibilidades de
manipulação da realidade pelo aparato digital: antes ou depois da captura, pode-
se alterar a cor, a intensidade, o enquadramento, as proporções, pode-se inserir
outros personagens, objetos, cenários. Tudo pode ser modificado, forjando-se a
realidade, antes mesmo da imagem deixar o aparelho original de captura para
ser impressa, publicada ou compartilhada. O regime de verdade que a fotografia
analógica fundou se fortaleceu em relação à imagem digital, mas esta acabou por
estender àquelas as técnicas de manipulação informática, ao passo que nenhuma
está em condição de guardar inquestionavelmente uma verdade representada.

Sabemos que a objetividade inexiste mesmo na fotografia analógica não


manipulada, pois o olhar, a técnica da autoria fará de cada imagem, única,
construída em perspectiva subjetiva. Mas parece importante pontuar que também
a fotografia analógica pôde desde os primeiros experimentos de fixação da
imagem, sofrer alterações, então conhecidas como “montagens”, por exemplo,
pela seleção de alguns objetos fotografados e sua adição em outros cenários
e contextos. Analogia e verdade não se conectam de forma automática, assim
como não são necessariamente relacionadas às noções de mentira e de imagens
digitais. Como a objetividade, conceitos como verdade, mentira e manipulação
não são a-históricos, mas significados em cada contexto, pois socialmente
construídos. Consideramos, segundo orientações dos autores que vêm nos
inspirando neste índice sobre a história da fotografia, que indicar a especificidade
da técnica – através da nomenclatura digital – já expõe o diferencial desta classe
de uso da luz – foto –, e da escrita – grafia –, não sendo necessário designá-la de
outra forma, tampouco considerá-la outra coisa, que não isso: fotografia digital.
Talvez um terceiro momento, então de alteração dos circuitos sociais da
fotografia, seja a sua produção junto aos aparatos individuais multifunção,
os smartphones, conectados às redes e mídias sociais. A ampliação e mesmo
a vulgarização desses aparelhos, sem exceções, compostos por câmeras
integradas, não apenas popularizou a fotografia de uma maneira nunca antes
observada, como deu origem a uma cadeia de produção e consumo de imagens

88
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

que tem na fotografia um elemento fulcral. A representação de si, a exposição das


experiências vividas e da intimidade através do compartilhamento de instantes e
lives se tornou uma forma privilegiada de exposição da compreensão de mundo
de alguns grupos sociais, geracionais e inclusive profissionais.

Uma vez apresentadas as técnicas, tecnologias, abordagens e alguns


momentos do pensamento ocidental em relação à fotografia, podemos afirmar
com alguma certeza que hoje ultrapassamos o seu entendimento como duplicação
da sociedade, para compreendê-la como o resultado de um investimento de
sentido, “uma leitura do real realizada mediante o recurso a uma série de regras
que envolvem, inclusive, o controle de um determinado saber de ordem técnica”
(MAUAD, 1996, p. 75). Investigar esses sentidos é tão importante para a produção
historiográfica quanto as informações materiais disponibilizadas pela imagem
fotográfica em si. Isso nos conduz ao segundo momento da abordagem sobre
a fotografia: orientações teórico-metodológicas para sua utilização na oficina da
História.

Ana Maria Mauad, em um texto fundamental sobre as interfaces entre


história e fotografia (MAUAD, 1996), apresenta o pensamento de alguns
críticos da imagem técnica como duplicação do real. Estas críticas podem ser
interessantes para introduzir um roteiro teórico-metodológico. Uma primeira
demanda é a que ressalta, em que pese o efeito de realidade, que a fotografia
é bidimensional, plana, com cores que podem ou não reproduzir a realidade.
Neste sentido, a fotografia isola um determinado ponto no tempo e no espaço,
acarretando a perda da dimensão processual do tempo vivido. Além disso, a
imagem técnica é puramente visual, excluindo outras formas sensoriais. Outra
crítica de relevo é a que denuncia a faceta encenada das fotografias históricas, já
que a interação do fotógrafo na ação e o efeito de paragem da imagem produzem
uma determinada versão dos fatos históricos que lhes garantiriam o estatuto de
verdade comprovada. Finalmente, uma terceira postura relacionada à fotografia
como transformação do real remete a uma perspectiva antropológica, segundo a
qual o significado da mensagem fotográfica é convencionado culturalmente, ou
seja; sua compreensão pressupõe certa aprendizagem ligada à interação dos
códigos de leitura da imagem técnica.

A consideração dessas críticas importa no sentido de conduzir a questões


teórico-metodológicas norteadoras em pesquisas com fotografias: como alcançar
o que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como acessar um
passado por meio dessas imagens técnicas? Como ultrapassar a superfície da
mensagem fotográfica e ver além e através da imagem?

Como resultado de um trabalho social de produção de sentido, a fotografia


é uma linguagem, uma mensagem “que se processa através do tempo,

89
Linguagem Visual na HistoriograFia

cujas unidades constituintes são culturais, mas assumem funções sígnicas


diferenciadas, de acordo tanto com o contexto no qual a mensagem é veiculada,
quanto com o local que ocupam no interior da própria mensagem” (MAUAD, 1996,
p. 79). Com base nas regras de produção de sentido nas linguagens não verbais,
temos que a representação final, o produto final é sempre uma escolha realizada
em um conjunto de escolhas possíveis.

Para analisar as unidades constituintes da mensagem visual enquanto


índice (marca de uma materialidade passada), por um lado, e enquanto símbolo
(imagem socialmente estabelecida para ser perenizada), por outro, Mauad (1996)
sugere a confecção de fichas individuais que devem ser construídas para cada
imagem. Ressalta, também, que se utilize para a construção do saber histórico
um corpus fotográfico, uma série extensa e relativamente homogênea que permita
dar conta de destacar semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens
que o/a historiador/a escolheu analisar. Essa homogeneidade pode construir-se
em relação a um tema, como o casamento ou as festas familiares ou em função
das diferentes agências de produção de imagens, tais como o Estado, agências
publicitárias, a imprensa etc.

São duas as fichas propostas pela historiadora: a ficha de elementos da


forma do conteúdo e a ficha de elementos da forma da expressão. Na primeira,
a indicação metodológica consiste em atentar aos seguintes elementos: agência
produtora; ano; local retratado; tema retratado; pessoas retratadas; objetos
retratados; atributo das pessoas; atributo da paisagem; tempo retratado (dia/
noite); designação de um número para a fotografia. Da segunda ficha constarão
os seguintes dados: agência produtora; ano; tamanho da foto; formato e suporte;
tipo; enquadramento I (horizontal ou vertical); enquadramento II (esquerda, direita
ou centro); enquadramento III (distribuição de planos); enquadramento IV (objeto
central, arranjo e equilíbrio); nitidez I (foco); nitidez II (definição de linhas); nitidez
III (iluminação); produtor (amador ou profissional); número da fotografia.

Cada uma das categorias analisadas constitui unidades culturais que devem
ser realocadas em categorias espaciais, estabelecidas para a estruturação final
da análise. Esse procedimento de instrumentalizar a noção de espaço como
chave de leitura das mensagens visuais é comum na produção historiográfica
que lida com imagens técnicas. Os campos espaciais – fotográfico, geográfico,
do objeto, da figuração e da vivência – permitem o restabelecimento dos códigos
de representação social de comportamento, mas também reconstruções de
realidades sociais do passado nos marcos de sua historicidade.

Como recordam Mauad e Lopes (2012), a fotografia é uma atitude de


representação ideologicamente elaborada, pois a manipulação dos elementos
técnicos é exercida por pessoas que agregam valores de suas experiências

90
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

pessoais às imagens que produzem. Essas imagens fotográficas, como produto


de práticas e experiências históricas de mediação, oferecem-se à apreciação
historiográfica: se inqueridas, permitem investigar sobre o seu papel na produção
de sentido social, sobre as práticas de produção e consumo de imagens, sobre
indivíduos e instituições que as protagonizaram, seja como financiadores ou como
representados, sobre seu público de recepção etc. Obedecendo às demandas
visuais dos grupos envolvidos na produção e no consumo de imagens, a fotografia
como imagem técnica se modificou desde a sua criação. Esse saber-fazer
do/a fotógrafo/a e seus instrumentos, que envolve o desenvolvimento técnico,
industrial, das relações de trabalho e das competências científicas também pode
ser acompanhado pelo/a historiador/a a partir de questionamentos de diferentes
ordens.

A compreensão de um processo como histórico subentende, como visto


no capítulo anterior, a organização de um questionário em relação ao passado,
numa relação dialética entre as práticas sociais dos sujeitos que habitaram esse
passado, suas experiências históricas e as evidências que são produtos destas
relações. Entre estes produtos está a fotografia. Sua especificidade consiste numa
abordagem da realidade em termos de visualidade; realidade concebida por um
meio (fotografia), e a partir de um mediador (fotógrafo). Como temos abordado, a
fundamental ancoragem metodológica no tratamento de fotografias na pesquisa
histórica consiste na incorporação da história do meio na elaboração do
objeto de estudo, a fim de compor um quadro que defina as fotografias como
práticas sociais e experiências históricas. Dentre os cuidados metodológicos,
destacamos a escolha de se trabalhar com séries fotográficas ou com fotografias
únicas a maneira de foto ícones, que potencializam um acontecimento ou uma
ausência.

A título de síntese, os procedimentos metodológicos que instauram a


investigação histórica com fontes visuais técnicas – mas que são antecedidos
pela construção do questionário a que serão submetidas – compõem-se por
quatro pontos: produção, produto, agenciamento e recepção. Esses aspectos
orientam a análise histórica de fotografias, contudo, destaca-se a necessidade de
discutir também, por um lado, o estatuto epistemológico das imagens e, por outro,
a noção de fonte histórica como fonte que contém o passado, à espera de ser
revelado pelo/a historiador/a.

Atentar para a produção consiste em situar o dispositivo, a técnica e


as tecnologias que mediaram a relação do sujeito e seu olhar sobre o objeto
fotografável e a imagem que elaborou, o produto como materialidade de outro
tempo histórico. Ou seja, por produção subentende-se a compreensão de que a
mirada do/a fotógrafo/a se materializa através da manipulação de um dispositivo
tecnológico com regras definidas historicamente. Aqui também importa situar

91
Linguagem Visual na HistoriograFia

um pouco a história da técnica e o regime de visualidade no qual se operou a


produção da imagem técnica – não como pano de fundo, mas inquerindo esse
regime como indício de uma lógica, de uma concepção de mundo e do lugar
ocupado nele por homens e mulheres que o viveram.

A investigação sobre o produto em si, a imagem que se fez matéria, requer


atenção dado seu potencial “efeito realidade”. A imagem possui a capacidade de
potencializar a matéria visual, mascarando o processo de produção de sentido
social por meio da qual foi concebida. Como relação social, as imagens técnicas
“nos contam histórias, atualizam memórias, inventam vivências, imaginam
a história, demarcam o campo do visível e do invisível” (MAUAD; LOPES,
2012, p. 280). Nessa capacidade residem, ao mesmo tempo, os perigos e as
potencialidades da fotografia como objeto e fonte histórica. Um acervo fotográfico
pessoal salvaguardado que não se refira à pessoa pública retrata mais fielmente a
realidade do que o cotidiano fotografado de um líder político? Ou seja, seria mais
“natural”, menos intencional? O que esses produtos visuais indiciam, informam ou
simulam?

O processo social que envolve a trajetória das imagens técnicas, a biografia


da fotografia como artefato, revela-se através do conceito de agenciamento.
Neste aspecto deve-se ter em mente que até o encontro do/a historiador/a com
uma imagem técnica ou um conjunto delas, guardadas, arquivadas, expostas
ou destruídas, elas passaram por processos de seleção e descarte, sofreram
alteração em seus circuitos sociais e foram utilizadas de outras formas que
não aquela visada em sua produção original. Esta biografia das imagens revela
relações sociais diferenciadas e requer que a concebamos como materialização
não de uma, mas de distintas práticas sociais nas quais estas imagens estiveram
envolvidas. É fundamental conhecer a trajetória dos produtos e dos arquivos
visuais ao longo de sua existência: por quais razões foram produzidos? Por
quem foram conservados? Quando e com quais objetivos foram expostos,
musealizados, mantidos ou retirados de sigilo?

Finalmente, atentar-se-á para a recepção da imagem técnica em análise.


Questiona-se, neste ponto, o valor atribuído à imagem pela sociedade que a
produziu e como estruturou a recepção da visualidade e seus espaços. Uma
fotografia pode ter sido produzida com valor informativo, afetivo, para fins de
memória ou prova, como manifestação artística ou como forma de denúncia
social. Pode, como parece claro, servir a mais de um desses preceitos, já que a
condução da narrativa historiográfica nunca será tão simples a ponto de afirmar
que foi isto ou aquilo, sem interrogar os processos de recepção: quem o pensou,
quais estratégias utilizou, quais eram os públicos-alvo etc.

92
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

4 REGISTROS AUDIOVISUAIS:
CINEMA E TELEVISÃO
Em um conjunto de textos de André Bazin (2014) publicados postumamente
em 1960, intitulado O que é o cinema, o teórico francês analisa a imagem
fotográfica e a imagem cinematográfica desde uma perspectiva comparada,
realizando algumas definições. Para o autor, a fotografia possui caráter centrípeto
(atuando como uma força que puxa o corpo, neste caso, os olhos, para o centro
do movimento). Os olhos do/a observador/a ficam restritos aos limites da moldura,
não questionam se existe algo mais, além daquilo que veem: trata-se de uma
imagem “acabada”. No cinema, por sua vez, a imagem é regida por uma força
centrífuga (uma força inercial que empurra para fora um corpo em movimento de
rotação). Há o deslocamento constante do olhar, pois a imagem está sempre em
movimento, em processo. Ao contrário da imagem acabada e finita da fotografia,
no cinema convive-se com a possibilidade constante de que algo novo entre
em cena, existindo muito além do que se deixa ver no momento, pelo menos
enquanto possibilidade.

Parece adequado iniciar a discussão sobre o audiovisual com esta


comparação, já que entre um produto e outro – a fotografia e o audiovisual –
situa-se como diferença inicial o fato de que o primeiro se constitui por uma
imagem imóvel, enquanto o outro se funda por um encadeamento de imagens
que adquirem sentido no movimento: uma narrativa. A comparação também
parece relevante dado que as primeiras projeções audiovisuais resultantes
de aparatos tecnológicos foram produzidas pelo ordenamento de imagens
fotográficas acompanhadas de música que, juntas, conformavam uma narrativa
expressa pela fórmula áudio + visual. Não é preciso ir muito longe para explicar do
que se tratava, já que a técnica não desapareceu: fotodocumentários, produções
escolares e, mais além, a técnica do stop motion são exemplos de audiovisuais
produzidos com base em imagens fixas.

Os audiovisuais são um objeto de análise difícil de situar em sua relação


com a História, em nosso entender, porque no conceito se inserem muitas
variantes, cada uma com sua trajetória e desenvolvimento específicos: cinema
(subdividido entre os vários gêneros), animação, games, vídeos (videoaulas,
videoclipes, vídeos de canais, como o Youtube, montagens, videocasts etc.).
Elencamos dois produtos culturais para análise retenida, o cinema e a televisão,
e sobre eles lançaremos questões relacionadas ao seu desenvolvimento técnico
e usos em diferentes contextos. Em primeiro lugar, inquerindo a técnica e seus
produtos quanto aos seus fins comerciais e políticos. Depois, aventurando-nos a

93
Linguagem Visual na HistoriograFia

tecer algumas considerações sobre a sua utilização na produção historiográfica.


Por fim, problematizamos a linguagem audiovisual na produção do conhecimento
histórico acadêmico, bem como suas potencialidades na construção de imagens
sobre o passado. O viés adotado nas páginas que seguem é o de uma abordagem
do audiovisual em sua inserção cultural.

De acordo com o historiador Rafael Rosa Hagemeyer (2012), em seu


História e Audiovisual – leitura que nos inspira na discussão que segue – qualquer
sociedade humana, visando transmitir algum aspecto de sua experiência elabora,
de alguma maneira, representações visuais acompanhadas ou não de som
simultâneo. Na valoração e no estabelecimento de formas consideradas legítimas
se conforma uma linguagem audiovisual, que servirá de base para formas futuras
de expressão. Neste sentido, consideramos que o teatro grego, por exemplo,
constituía uma espécie de narrativa audiovisual, já que se tratava de uma forma
elaborada de representar uma história utilizando recursos visuais e sonoros
(dramatização).

A constituição da linguagem cinematográfica deve muito às antigas formas


de enquadramento do olhar, que se desenvolveram durante o Renascimento.
Foi durante esse período que surgiram as formas modernas de produção de
quadros, com base em “’telas’, espaço privilegiado de composição das formas
do mundo, no qual os artistas adotaram as metáforas teatrais da ‘cena’ e do
‘cenário’ para ambientar as ‘ações’ e os ‘personagens retratados” (HAGEMEYER,
2012, p. 66). Como bem percebe o autor, as expressões entre aspas continuam
sendo adotadas como conceitos da linguagem cinematográfica: são critérios de
representação visual do mundo.

No âmbito das técnicas de projeção da realidade ou de realidades fantásticas,


os avanços da ciência óptica desde o século XVII têm no epidascópio um
exemplar de referência. A “lanterna mágica”, como fora designada posteriormente,
era um aparelho de projeção constituído por uma câmara escura (um candeeiro)
e por um jogo de lentes, sendo considerada a antecessora dos aparelhos de
projeção modernos. Athanasius Kircher, um padre jesuíta residente em Roma,
descreveu o invento em 1645. O aparato funcionava da seguinte maneira: em uma
sala escura, a luz de uma vela acesa dentro do candeeiro atravessava uma placa
de vidro pintada com desenhos coloridos à mão. Na parede oposta ao “projetor”,
apreciavam-se as imagens ampliadas. Promovendo-se o deslocamento da placa
de vidro ou da chama da vela, produzia-se um etéreo efeito de movimento. A
técnica foi utilizada em exibições públicas, para entretenimento ou com fins
educacionais – como em algumas universidades – em diferentes partes do mundo
até o século XIX.

94
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

FIGURA 11 – UM MODELO DE LANTERNA MÁGICA

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lanterna_m%C3%A1gica>.
Acesso em: 13 dez. 2019.

Os espetáculos de ópera, surgidos no século XVII, também representam


um tipo de expressão audiovisual, uma combinação complexa de drama e som
com códigos e técnicas próprias. Para Hagemeyer (2012), no avanço das artes
dramáticas, desenvolveram-se técnicas de deslocamento do olhar indispensáveis
para o surgimento da linguagem audiovisual em suas manifestações modernas.
Tal desenvolvimento está inserido nas revoluções das técnicas da era industrial,
cujo “progresso” até a invenção do cinematógrafo respondeu a demandas culturais
que já estavam estabelecidas no âmbito dos divertimentos e da modernidade. O
princípio do jogo de cena da ópera, por exemplo, é muito similar ao do cinema:
grosso modo, o palco mostra uma cena, da qual estamos distantes e da qual
não participamos enquanto espectadores. No entanto, sabemos de tudo o que se
passa, ao contrário dos personagens que ali estão. Um mínimo de verossimilhança
com o real é necessário para que nós, espectadores, embora não interfiramos na
narrativa, acreditemos nela: seja por meio da dramaturgia, dos efeitos, do cenário
etc.

Durante a última década do século XIX, a invenção do cinematógrafo


pelos franceses August e Louis Lumière foi dada a conhecer como um artefato
científico. Seus inventores, nas sessões fílmicas que organizaram eu seu país,

95
Linguagem Visual na HistoriograFia

França, afirmavam desacreditar a sua utilização com finalidades comerciais. O


cinematógrafo era um aparelho que capturava séries de imagens instantâneas
dispostas em rolo rotativo, criando a ilusão de movimento. O recurso musical,
orquestrado ou técnico, amplificava a sensação de aceleração das imagens.
O aparato era um dispositivo híbrido, pois, além das funções de captação de
imagens, ele também as projetava. Filhos de um industrial que produzia películas
fotográficas, os Lumière patentearam o invento que, na realidade, teve seu
registro solicitado três anos antes por León Boyle. Isso sugere, como abordamos
também em relação à fotografia, que o processo de mitificação dos “gênios
inventores” aporta pouco para uma história da técnica, pois ele é de alguma forma
excludente, ao considerar a autoria única de uma técnica que provavelmente
se desenvolveu em mais de uma oportunidade, ainda que fruto de um mesmo
momento histórico e social.

Na abordagem realizada por Hagemeyer (2012) sobre a história do cinema,


temos que sua invenção envolveu um aspecto técnico (o aprimoramento de
mecanismos de projeção de fotografias em sequência), um aspecto comercial (a
transformação operada na indústria de massas) e um aspecto comunicacional
(que se refere ao desenvolvimento de padrões de linguagem e constituição de
uma narrativa). É importante que atentemos a cada um destes aspectos, que
estão interconectados entre si.

A evolução do maquinário de projeção e captura de imagens, como visto,


não por acaso deu-se na região da capital francesa. Como capital mundial da
modernidade e dos divertimentos populares, inventos como o cinematógrafo e
depois, o cinema, estavam incorporados a uma cultura do entretenimento que
progrediu rapidamente para a indústria do espetáculo. Ou seja, onde imperava
uma cultura de expectação, as experiências audiovisuais constituíam-se como um
fato social: a adaptação das projeções aos palcos respondia às demandas sociais
e culturais do universo audiovisual na qual estavam inseridas. Esta experiência
foi distinta daquela observada nos Estados Unidos, por exemplo, em que regia
uma experiência de visualização e apreciação mais voyerista. Um exemplo dessa
apreciação voltada para o individual, pelo sujeito que paga para espiar algo
que só ele pode ver foi a invenção do cinetoscópio, equipamento simultâneo e
mesmo anterior ao cinematógrafo dos irmãos Lumière.

O cinetoscópio fora um invento originário dos Laboratórios de Thomas Edison,


que o patenteou. Constituía-se por um equipamento de projeção de imagens
observadas através de um visor individual, que era acionado pela inserção de uma
moeda. A captura de imagens em movimento se dava pela operação de diversas
câmeras fotográficas em fila, cujo produto era uma pequena tira de filme disposta
em looping (formato de cobra, na vertical), dentro do equipamento de projeção.
Como parece evidente, o equipamento fora pensado desde o princípio aliado a

96
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

sua comercialização: estava apto a ser distribuído em distintos estabelecimentos


públicos e de entretenimento, acessível ao nível do indivíduo que podia pagar por
ele. Esta é apenas uma de uma série de experiências, inventos e parafernálias
desenvolvidas no país, cujo lugar de destaque na segunda revolução industrial
permitiu a rápida ascensão de sua indústria cinematográfica, dominante do
mercado da produção fílmica já nas primeiras duas décadas do século XX.

Desde a sua invenção, o cinema foi aproximado do universo do sonho, do


subconsciente, envolto numa espécie de magia produzida pelo efeito de ilusões.
A possibilidade de manipulação política do inconsciente coletivo através do
cinema gerou diversas experiências de propaganda, que acreditavam ser possível
manipular as mentes e promover o convencimento das massas em relação a um
dado sistema de crenças. As potencialidades do cinema no âmbito da propaganda
foram provadas já no período da Primeira Guerra Mundial, quando se produziram
filmes com essa finalidade. De todo modo, parece claro que o poder evocativo das
imagens cinematográficas, seja por meio do efeito realidade ou da manipulação
inconsciente, não se limita a uma propaganda no sentido lato do termo: somos
influenciados pelos modos de ser e existir representados no cinema, mesmo que
o produto cultural que consumimos não tenha a intenção de convencer-nos a
algo.

Em relação aos usos políticos do cinema, mas também ao seu apelo às


massas (aspecto comercial), o caso da produção russa pós-revolução de 1917
merece destaque. A arte cinematográfica vinha florescendo no país desde a
filmagem da coroação do último czar russo, Nicolau II, em 1986, que foi, por
assim dizer, um entusiasta da técnica. Ainda no período czarista, adaptações
das obras de grandes ícones da literatura nacional, como Tolstói, Dostoiévski
e Puchkin, alçaram o país como um dos maiores produtores mundiais (e
consumidores) de cinema, lugar que ainda ocupa atualmente. As grandes
produções cinematográficas estimuladas, financiadas e distribuídas pelo governo
bolchevique, por sua vez, são fruto do gênio de cineastas cuja importância pode
ser sintetizada em dois pontos. O primeiro refere-se ao fato de que o interesse
de cineastas como Vsevolod Pudovkin, Sergei Eisenstein e Lev Kulechov no
desenvolvimento da linguagem do cinema e no ensino de suas técnicas fez deles
os primeiros “‘professores’ de cinema a analisar os mecanismos pelos quais os
filmes de Hollywood desenvolviam suas narrativas, identificando na rapidez da
mudança de planos a essência de seu dinamismo” (HAGEMEYER, 2012, p. 81).

Em segundo lugar, a contribuição de Eisenstein – lembremos, cuja


“escola” fora louvada por Walter Benjamim como única manifestação legítima
de representação, ao utilizar ao invés de atores, pessoas que se identificavam
com os personagens representados, por exemplo, os trabalhadores – originou
um tipo novo de efeito visual de produção de sentido, realizado pelo confronto

97
Linguagem Visual na HistoriograFia

de duas imagens conceito. O desenvolvimento desta técnica esteve inspirado na


lógica dos ideogramas orientais: aliando-se dois ideogramas com significados
relacionados, tem-se um terceiro, que representa outra coisa que não as duas
primeiras. Levando isso ao plano das imagens, Eisenstein utilizou técnicas de
montagem que se constituíam no choque entre duas imagens, a fim de produzir
um determinado efeito de sentido (uma terceira imagem). Sua obra-prima, O
Encouraçado Potemkin, foi considerada por diversas instituições de cinema como
uma das melhores produções fílmicas de todos os tempos.

O filme, lançado em 1925, conta a história de uma rebelião ocorrida em


1905 no navio de guerra Potemkin, estando baseado, portanto, em fatos reais.
O estopim para a revolta ocorre quando os marinheiros percebem que lhes foi
oferecida uma porção de carne estragada para o jantar. A revolta contra os oficiais
superiores se desdobra no desejo de lutar contra as injustiças universais, a
começar pela revolução social que desejam empreender junto a sua cidade natal,
Odessa, situada no atual território ucraniano. O filme é um clássico no seu estilo:
filmado em preto e branco, com alto contraste e mudo. Recebeu diferentes trilhas
sonoras ao longo do século XX, sendo a primeira produzida por Edmund Meisel,
em parceria com o próprio Eisenstein. A apreensão da riqueza de significados
de cada uma das cinco partes em que está dividida a obra não se dá senão por
certo esforço de parte do expectador/a no tempo presente, dada a complexidade
das ideias expressas e evocadas pela visualidade. Isto ocorre, também, porque o
filme está repleto de situações que aportam informações sobre o espaço-tempo
da narrativa, efeitos de sentido conquistados por meio das técnicas de montagem
e por uma linguagem característica da apreensão estética de seu tempo, que
podem passar despercebidas para os/as iniciantes do gênero. Finalmente, temos
que o caráter chocante dos confrontos parece o resultado de um gênio criativo
dos primeiros tempos da revolução russa, impregnado de um forte senso de
justiça e reparação para com o seu povo.

O terceiro aspecto a que nos adverte Hagemeyer (2012) acerca da invenção


do cinema e sua relação com a História refere-se ao seu aspecto comunicacional,
a constituição de uma narrativa e padrões de linguagem, aspectos em parte já
abordados. Nos primeiros tempos do cinema, quando de sua era “silenciosa”, a
possibilidade de condensar uma história, estabelecendo nexos narrativos entre

98
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

imagens separadas no tempo e no espaço, permitiu que se desenvolvesse a


ideia de que o cinema era uma linguagem hieroglífica, puramente imagética. No
entanto, a “evolução técnica” das formas de comunicabilidade utilizadas pelo/no
cinema, a partir dos anos 1930, trouxe uma série de inovações que não foram
entendidas consensualmente como um progresso. As ressalvas giravam em
relação, sobretudo, à introdução do som sincronizado e à imagem colorida, dois
elementos fundamentais na produção de sentidos e na alteração das formas de
apreensão visual, os quais devem ser levados em conta pelo/a historiador/a na
análise de produções cinematográficas.

FIGURA 12 – CENA DO MASSACRE NA ESCADARIA DE


ODESSA, EM O ENCOURAÇADO POTEMKIN (1925)

FONTE: <http://lounge.obviousmag.org/cultura_intratecal/2014/02/a-
escadaria-de-odessa-e-as-referencias.html>. Acesso em: 13 dez. 2019.

Podemos afirmar, em relação ao âmbito sonoro, que o silêncio nunca fez


parte da experiência cinematográfica. Isso porque junto à exibição visual de um
filme mudo, além dos ruídos e manifestações dos/as expectadores/as, partituras,
pianistas ou orquestras a acompanhavam. Nesse momento a trilha sonora,
portanto, era concebida separadamente, mas em sincronicidade com os planos
e sua alternância, o que dotava de densidade a dramatização de uma cena –
suspense, alegria, leveza – como ainda ocorre atualmente. A mudança mais
significativa do cinema falado em relação ao mudo, por conseguinte, referia-se
ao som verbal: substituíram-se os diálogos extremamente reduzidos do cinema
mudo, expressos através de palavras escritas, à moda de “legendas”, pela

99
Linguagem Visual na HistoriograFia

sincronicidade entre a dramaturgia e os sons que ela produz. Como resultado


do cinema falado, temos que uma produção possui, pelo menos, três tipos de
som: o verbal, o musical, e o ruído produzido pelas situações representadas
(HAGEMEYER, 2012).

O surgimento do cinema colorido, por sua vez, conferiu às produções um


caráter mais realista ou uma ilusão maior de realismo, aportando também
um sentido mais literal ao que era capturado pelas câmeras. As imagens em
preto e branco conferiam às produções certo distanciamento em relação aos
espectadores/as; muitos detalhes ficavam de fora da apreciação do público
porque a escala de cinza não permitia que se atentasse àquilo que não estava em
primeiro plano, ou ainda, àquilo que não tivesse sido pensado para um close up.
Nos filmes de arte, por exemplo, a filmagem em preto e branco, suas regras de
composição e jogos de luz característicos continuam sendo utilizadas. Já o filme
colorido, mais pictórico, permite que o espectador apreenda melhor a composição
do cenário, objetos, vestimenta etc. Uma vez que na imagem colorida “tudo se vê”
e ainda, “realisticamente”, sempre há quem se questione sobre a importância de
algum detalhe: está na cena com alguma finalidade ou simplesmente compõe um
universo recheado demais?

A fim de tecer algumas considerações sobre a televisão, parece adequado


apontar de antemão que a história desse meio de comunicação, suas teorias,
chaves de compreensão e apropriação como objeto de narrativas históricas o
coloca em lugar distinto daquele em que se situa o cinema no campo da produção
de conhecimento. Embora, quando de sua difusão, nos anos 1950, alguns
intelectuais a tenham considerado a “oitava arte”, convencidos de que ela abriria
as portas para o sonho da visão e da transmissão à distância de imagens, hoje
a televisão ocupa um lugar menos “nobre”, permeado muito mais por críticas
quanto ao seu papel na alienação das massas do que por esperanças em
relação ao desdobramento da técnica ou suas potencialidades, por exemplo, no
desenvolvimento de formas estéticas ou “artísticas” de linguagem.

Ainda em relação ao cinema ou a um audiovisual que está autolimitado


pelo tempo de sua exibição, a televisão se diferencia pela difusão de imagens e
sons em fluxo contínuo: anunciando novidades, informes, curiosidades, apelando
ao consumo como uma necessidade e exigindo, de alguma maneira, atenção
permanente. Acabado um jornal de notícias, a dramaturgia seguinte se mostra
sedutora, o programa de auditório que o sucede, da mesma forma parece “valer
a pena”; assim sucessivamente, toda a teledifusão será apresentada de forma
enormemente interessante. A linguagem audiovisual desenvolvida em meio
televisivo tem neste fluxo contínuo sua característica. Em que pese o invento ser
datado dos anos 1930, sua necessidade social – na qual pôde desenvolver-se –
se daria apenas com o final da Segunda Guerra Mundial.

100
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

Embora atualmente a segmentação de mercados consumidores demande


das emissoras de televisão uma série de estudos de recepção para orientar-
se na elaboração dos programas a serem exibidos e o melhor horário para
esta exibição – sem falar da super especialização do público espectador, pelos
canais de assinatura “temáticos” – a organização da televisão aberta ainda
está fortemente inspirada no modelo americano dos anos 1950. Ou seja,
organizada a fim de satisfazer o American Way of Life, a programação da manhã
está dedicada aos programas de variedades, culinária e bem-estar, temas e
demandas orientados ao público feminino. À tarde, quando as crianças estão em
casa, no contraturno escolar, exibem-se filmes, desenhos ou séries infantojuvenis,
ou ainda, aquela programação designada “familiar”. O fim da tarde e o começo da
noite estão voltados aos mais velhos: a dramaturgia é mais suave, romântica;
os jornais possuem caráter local e são mais informativos, com amenidades e
menos analíticos. Finalmente, o período da noite está reservado aos adultos,
audiência máxima: nesse espaço a programação oferece dramaturgias “nobres” e
os noticiários promovem a síntese do cenário nacional e internacional, em que se
veiculam análises de especialistas e a opinião de “colunistas”.

Como parece claro para nós, que nascemos e crescemos sob a influência, em
maior ou menor medida, do aparato televisivo, o fluxo contínuo da programação
não se encerra nem mesmo com a inserção de inúmeros comerciais entre um
bloco e outro de conteúdo. Isso porque as propagandas são parte constitutiva
do fluxo que compõe a transmissão. Escasseando-se cada vez mais o tempo
de propaganda, ele tende a encarecer-se, já que em “comercial” se incluem as
chamadas da própria programação, que compete pela audiência do público com
os produtos oferecidos, mas também com o conteúdo a ser exibido em outros
canais. Esse fenômeno é ainda mais evidente nos canais de assinatura pagos:
o/a espectador/a, adquirindo o acesso à transmissão, reduz drasticamente a
necessidade de que a programação seja financiada pela propaganda.

Mais adiante, ao pontuar questões teórico-metodológicas em relação à


televisão como fonte histórica e como um produto cultural, incorporaremos
outros elementos a essas breves considerações sobre a “tv” como meio
técnico. Consideramos importante situar, para o momento, duas especificidades
da televisão, no interior do conjunto amplo de audiovisuais. A primeira, a de
que a linguagem televisiva não se define por si mesma, mas numa relação
comunicacional entre a instituição que a produz, os expectadores/as e os/as
críticos/as, reconhecendo-se nisso uma série de leituras e correlações possíveis.
A segunda, a de que a televisão recorre a diversos tipos de representação visual
diferentes e simultâneos. Reside nessas características, sem dúvidas, parte das
resistências para a incorporação da televisão, sua programação e evocação
narrativa aos estudos históricos.

101
Linguagem Visual na HistoriograFia

Dando início ao segundo momento de nossa análise sobre história e


audiovisual, abordaremos a utilização desses produtos culturais na produção
historiográfica, com ênfase no cinema, a partir das análises do historiador
Alexandre Busco Valim (2012) e em menor medida na televisão, com base nos
estudos de João Freire Filho (2004). Em relação ao cinema, reiteramos que sua
produção consiste em fenômeno complexo no qual se entrecruzam elementos
de ordem estética, política, econômica e social, e destacamos que as questões
abordadas a seguir se baseiam em filmes característicos do denominado estilo
clássico hollywoodiano. Essa ressalva pressupõe o entendimento de que as
questões colocadas não são adequadas para a análise de outros tipos de
produção cinematográfica, a não ser a título de grosseiras generalizações.

Para Valim (2012), a narrativa historiográfica pode ser analisada a partir de


três perspectivas: 1) enquanto representação, o conjunto de ideias que compõem
a trama; 2) enquanto estrutura, através de uma abordagem sintática; e 3)
enquanto ato, processo dinâmico de apresentação de uma história a um receptor.
A natureza da análise, entre uma ou outra das perspectivas, será de eleição do/a
historiador/a, atendo-se ao gênero da produção ou produções em análise e às
questões históricas que se colocará em relação a elas.

Uma primeira coordenada metodológica de relevo será atentar ao caráter


necessariamente multidisciplinar da análise das relações entre a produção,
as relações sociais e a história dos meios através dos quais o produto
cultural foi construído (audiovisual). Ou seja, o produto deve ser analisado
“nos seus próprios termos”, mas também em relação ao aparato teórico dos
estudos de cinema, buscando o equilíbrio entre as teorias do Cinema, a História
do Cinema, e a crítica cinematográfica. Isto prescinde, no mínimo, um diálogo
entre dois campos do conhecimento, a História e o Cinema. Os críticos, por
sua vez, exercem “uma função que precisa ser integrada aos trabalhos sobre
história do cinema e seu papel deve ser estudado em conjunto com a análise
das temáticas do filme, na comparação com filmes preexistentes e no estudo dos
tipos de personagens e tipos de relações” (VALIM, 2012, p. 293), uma perspectiva
que pode dizer muito, segundo o autor, acerca do período estudado.

Uma segunda orientação, adotada a partir de Marc Ferro e Michèle Lagny,


ambos historiadores do cinema, refere-se à compreensão de que o cinema
não se constitui apenas como prática social, sendo também um gerador de
práticas sociais, podendo ser inquerido enquanto testemunho de formas de
agir, pensar e sentir de uma sociedade. Investigar os processos através dos
quais a narrativa cinematográfica suscita os indivíduos a se identificarem com
ideologias, posicionamentos e representações sociais e políticas dominantes,
além dos rechaços a essas tentativas de dominação, propicia uma visão crítica

102
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

sobre a sociedade, e também demonstra o papel adquirido pelo cinema enquanto


propulsor de certas transformações e de tomadas de atitude. Importa lembrar,
ainda, que tanto as narrativas e sua produção quanto a recepção dos audiovisuais
comprova que estes falam sempre do presente, mesmo abordando o passado ou
contextos distópicos, residindo nisso sua potencialidade em fornecer dados sobre
o lugar social, o contexto de sua produção e as ideias que o cercaram.

Uma incontornável preocupação dos estudos de cinema pautados pela


História Social é a que se refere à recepção cinematográfica. As produções
fílmicas em si dizem pouco acerca do processo pelo qual foram realizadas:
as estruturas organizativas, executivas, as situações de mercado, laborais
etc. Quando assistimos a um filme, não encontramos nele esta categoria de
informações. Assim, uma terceira indicação metodológica, referente à demanda
por enriquecer a análise historiográfica do produto cultural, para além de
si mesmo, seria incorporar como fontes documentais outros meios de
comunicação tais como revistas populares, programas de rádio, anúncios,
suplementos de jornais, dentre outros produtos culturais que se relacionem
com a produção, mas que informem também sobre os domínios culturais,
instituições e valores nas quais esta produção esteve inscrita. Importa
investigar, nesses materiais, como a vida cultural da produção a interpretou, pois
isso informa sobre atitudes e tendências difundidas no seu contexto de produção
e circulação, além de aportar sobre os valores sociais correntes apropriados,
modificados ou negligenciados pela obra.

Para a construção de conhecimento histórico com base em narrativas


audiovisuais, sobretudo cinematográficas, a análise dos gêneros é de suma
importância. Uma produção – seja de Hollywood, Bollywood, do período áureo
cinematográfico soviético ou brasileiro – transmite impreterivelmente um conteúdo
ideológico, ainda que de forma não intencional. Isso ocorre porque no processo
de sua produção há elaboração, acumulação, formação e construção de conteúdo
que reproduz a ideologia dominante, já que esta exerce todo o seu peso sobre
aqueles/as que idealizam, realizam e apreciam estes produtos culturais (VALIM,
2012). Trata-se de uma disputa de poder travada no âmbito do discurso que pode
ser subvertida, é claro, pelo indivíduo. Ou seja, a ideologia pode ser questionada,
seja em sua linguagem, seja no rechaço às interpretações imagéticas acerca de
lugares, atitudes e modos de vida. Entretanto, o poder da ideologia se mostra com
(mais) força quando o conteúdo fílmico proporciona imagens sobre uma realidade
para a qual o indivíduo não possui conhecimento prévio; nesse caso, tende a
assimilá-las como reais, ignorando seu poder de representação e simulacro.

103
Linguagem Visual na HistoriograFia

Sugestão de leitura: Sadlier, 2016. No capítulo sugerido para


leitura, a historiadora aborda imagens do Brasil retratadas pelo
cinema nacional, desde o movimento do Cinema Novo, nos anos
1960, até os anos 2000. O texto permite atentar para as fases da
produção cinematográfica nacional e para as especificidades da
indústria cultural brasileira.

Na análise acerca da produção de sentido da narrativa cinematográfica, em


que residem e se transmitem as ideologias de uma época, de um regime ou de
seus produtores, os gêneros importam porque a partir deles se estabelecem
as fórmulas que orientam as produções. Noutras palavras, o gênero é por si
só uma linguagem, uma estratégia de comunicabilidade através da qual se dota
de sentido uma narrativa. Desconsiderando-se a inserção de uma obra em seu
gênero, com todas as referências que ele aporta, a análise do/a historiador/a
sobre o seu conteúdo, produção ou relações sociais deixará muito a desejar.
Por essa razão parece importante prosseguir, ainda que brevemente, na
coordenada metodológica que aqui designamos como de análise dos gêneros
cinematográficos. A partir do balanço realizado por Valim (2012), abordaremos
a contribuição de alguns autores/as sobre a discussão dos gêneros e suas
convenções.

Para além de uma designação – western, noir, ficção científica, drama,


fantasia, policial, musical, comédia, histórico – o gênero é um conceito complexo,
de acordo com Edward Buscombe, uma moldura dentro da qual uma história pode
ser contada, limitando-a, portanto. Para Rick Altman, o gênero envolve múltiplos
significados: é um rascunho (uma fórmula que precede e programa a produção
industrial); uma estrutura (que modela um conteúdo no interior de um espaço);
um rótulo (categoria central nas decisões e comunicações entre produtores,
distribuidores e exibidores). Já para Dudley Andrew os gêneros cumprem funções
que abrangem toda a economia do cinema, composta pela indústria, por uma
necessidade social de produção de mensagens, por uma tecnologia, por um
conjunto de significados, de práticas e de pessoas. Todos estes aspectos da
economia cinematográfica estão inter-relacionados e sua dinâmica pode ser
estudada com base na análise dos gêneros.

Uma contribuição de destaque na abordagem dos gêneros enquanto


definidores de dada indústria fílmica e sua respectiva audiência é a aportada por
Jesús Martín Barbero, segundo o qual os gêneros são um ponto de ancoragem
da indústria cinematográfica. Para o autor, eles imprimem um tipo de qualidade

104
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

à narrativa, que serve como mecanismo de reconhecimento do seu “estilo” junto


às massas. Trata-se, nesta perspectiva, de uma chave de leitura de decifração
de sentidos em relação ao mundo exterior, ou seja, a recepção, o público
apreciador. Essa relação é a peça-chave da definição dos gêneros proposta
por Thomas Schatz e Leo Braudy, os quais defendem que, para que um gênero
se constitua como tal, é necessário que ele seja definido pela indústria e
reconhecido pela audiência num duplo processo: de certificação pela indústria e
de compartilhamento pelo público.

Qualquer leitor/a que tenha entrado em contato com material historiográfico


que verse sobre produtos ou sobre a indústria cinematográfica compreende a
importância dessa discussão. Para Valim (2012), a complexidade dos debates
que envolvem o gênero cinematográfico resulta em certo receio de parte dos/
as estudiosos/as em deter-se a analisar produtos ou conjuntos de produtos
audiovisuais que não se encaixem em categorias definidas, ou ainda, que
apresentem referências cruzadas. Daí que grande parte da historiografia
relacionada ao cinema se defina pela análise de filmes que possuam limites
claros quanto ao seu pertencimento em relação aos gêneros. Atente-se a que
esta ressalva quanto ao caráter híbrido ou limítrofe entre dois ou mais gêneros
não depende apenas de uma intencionalidade investida em sua produção, mas
da variação na percepção de diferentes públicos em relação à obra.

A perspectiva de análise dos gêneros – recordemos, aqui, o foco no estilo


clássico hollywoodiano – não se trata de um mero sistema de classificações.
Um gênero constitui um modelo cuja característica é a utilização repetida de um
mesmo material, uma estrutura narrativa similar, se não reproduzida. Em que
pesem os desfechos ou decisões particulares tomadas em uma produção fílmica,
que a faz “destoar” de suas irmãs de gênero, o reconhecimento de uma fórmula
traz para o/a espectador/a uma familiaridade fundamental na conformação de um
público apreciador. Para o/a historiador/a, o conhecimento do gênero pressupõe
também essa familiaridade, mas do ponto de vista analítico: o uso de imagens-
chave, sons, situações, ambientações, momentos de clímax etc., todo um intenso
diálogo intertextual.

Compreender as fórmulas e formas de comunicabilidade e produção de


sentido de narrativas audiovisuais não significa dizer que o produto, nesse caso
a obra cinematográfica, não esteja eivado de historicidade, dotado das marcas
do seu tempo e de conexões com a cultura que o produziu. As convenções de
gênero, suas referências repetidas e continuadas não devem ser supervalorizadas
em detrimento das relações sociais e contextuais de sua produção. Numa
equação simples, seria o caso de questionar se Por um punhado de dólares
(1964), western estrelado por Clint Eastwood se relaciona intimamente com O
grande assalto ao comboio (1903) mais do que serve de testemunho ao contexto

105
Linguagem Visual na HistoriograFia

do início da década de 1960, quando foi produzido e filmado.

A identificação de gênero é inequívoca. A partir da linha do Rio Mississipi


a oeste se configuram os cenários do gênero western – ocidental, em inglês –
que aborda o contexto da “tomada” destas terras habitadas por populações
nativas, no período compreendido entre a Guerra Civil Americana (1861-1865) e
o começo do século XX. Em linhas gerais, tem-se como personagem um cowboy,
homem branco, sempre de passagem, solitário, sem posses além de um cavalo
e um revólver. As narrativas se passam em pequenas cidades compostas por
uma rua principal, na qual se destaca o saloon, a delegacia e uma igreja, em
algumas oportunidades. Movidos por ideais patrióticos, os cowboys “bonzinhos”
se deslocam ao oeste em busca de um futuro glorioso.

Em Por um punhado de dólares (Figura 13), temos que o personagem


principal não figura como um patriota americano. Como o título do filme sugere,
Eastwood faz o papel de um mercenário cínico, que tem em mente o benefício
próprio a qualquer custo, visto que sua ocupação é a de caçador de recompensas.
É quase um anti-herói, oscila entre comportamentos antiéticos – como “trabalhar”
para gangues rivais, a custo do seu enriquecimento – e a preocupação com os
demais – a exemplo de Marisol, a “mocinha” do filme. De forma sumária, limito-me
a apontar que o contexto do filme revela que sua produção se deu num momento
de decadência do gênero nos Estados Unidos (uma das razões de sua produção
haver sido teuto-hispano-italiana), cujo declínio fora caracterizado pelo cansaço
do público com as fórmulas do gênero, excessivamente pregadoras. Talvez isso
justifique a opção por um protagonista que não era nem mocinho, nem vilão, mas
um “tipo” social sadicamente ofensivo, conforme as críticas que o filme recebeu
à época de seu lançamento. De qualquer forma, tratava-se de uma abordagem
nova, sem falar nos close ups extremos, demorados e em demasia para o estilo
de Hollywood. Em suma, incontestavelmente inserido no gênero, a produção se
revela pelo momento de sua produção, ficando curta uma análise que o situe
apenas no nível dos diálogos intertextuais.

Além da natureza repetitiva do cinema hollywoodiano clássico –


convencionalmente situando os “estilos” originados no intervalo 1917-1960 –
outra característica comum aos gêneros reside na promoção do chamado sonho
americano, dos mitos e ideologias que se referem ao homem que faz a si mesmo,
numa sociedade que valoriza as instituições e execra o comunismo, que ama
sua pátria e quer vê-la crescer com respeito à propriedade “conquistada”. No
filme western analisado anteriormente, vemos como isso está presente, ainda
que expresso através de sua distorção: a do homem que quer realizar o “sonho
americano” por outras vias. No entanto, a inversão de valores expressos na
concepção do Estado, da polícia e do sistema legal como legitimadores de um
sistema leal, habitado por homens que prosperam no exercício desses valores foi

106
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

melhor do que em qualquer outro gênero abordado pelo gênero noir. Este gênero,
habitado por criminosos, prostitutas, oportunistas e corruptos teve seu ápice nos
Estados Unidos entre os anos 1939 e 1950.

FIGURA 13 – CARTAZ DE A FISTFULL OF DOLLARS, WESTERN


LANÇADO NOS ESTADOS UNIDOS EM 1967

FONTE: < http://moviereviews.s3.amazonaws.com/2015/11/20/19/13/37/823/


y2RW5gCVjRQ7tRkycKqoyLChKbK.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Além de um gênero, os filmes noir possuem um estilo visual característico.


Filmados em preto e branco em alto contraste, foram o resultado de uma estética
visual marcada pela influência do expressionismo alemão dos anos 1930, bem
como dos filmes de terror do mesmo período. Não por acaso os medos, as
paranoias e a insensatez do seu conteúdo coincidem com o período da Grande
Depressão (de 1929), nisto não residindo, obviamente, uma relação direta, mas
constituindo-se numa das formas adquiridas pela manifestação dos receios sociais
que dominavam a época. Num modelar exemplar do gênero, A dama de Shangai,
estrelado e dirigido por Orson Welles, seu personagem se apaixona por uma loira
misteriosa – personagem arquetípico deste gênero fílmico, a “loira fatal” – durante
uma viagem de Shangai à Nova York (Figura 14). No enredo, a loira misteriosa
o convence a forjar a própria morte para receber o seguro de vida. O clímax do
filme origina uma cena clássica do gênero, um tiroteio na sala de espelhos de um
parque de diversões.

107
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 14 – ORSON WELLES E RITA HAYWORTH EM A DAMA DE SHANGAI (1948)

FONTE: <https://letterboxd.com/film/the-lady-from-shanghai/>. Acesso em: 16 dez. 2019.

A abordagem da televisão pelo/a pesquisador/a em História caminha por


uma trajetória diferente desta construída acerca do cinema. De acordo com João
Freire Filho (2004), o primeiro e mais evidente obstáculo na elaboração de uma
história da televisão é a busca e o processamento de dados, documentação e
registros audiovisuais. Diríamos, no linguajar historiográfico, que se trata de um
problema de acesso às fontes. Em primeiro lugar, porque o material televisivo
por muito tempo fora transmitido ao vivo, como ainda hoje ocorre com alguns
programas, inviabilizando a sua salvaguarda – pelo menos até a popularização
dos videocassetes e sua função “gravar”. Em segundo lugar, porque os materiais
que sobreviveram à efemeridade do meio são de propriedade de instituições que
podem disponibilizar seu acervo mediante pagamento do acesso – o que já se
constitui um obstáculo – ou vetá-lo, simplesmente. As salvaguardas caseiras, por
sua vez, podem haver-se perdido dado a gravações posteriores da mesma fita, à
incúria na sua conservação ou ainda, à falta de apreciação de seu valor histórico.

Uma primeira orientação metodológica em relação à História da televisão


e seus produtos, portanto, num cenário de escassez de fontes audiovisuais,
seria recorrer a todo o entorno discursivo de seu objeto de investigação
(além do refinamento das questões que orientarão a análise): resenhas,
críticas, cartas de telespectadores, memorial de realizadores, memorandos
da editora, scripts, fotos e planos de gravação, documentos oriundos
da censura etc. Ou seja, aventurar-se na História da televisão prescinde uma
reflexão sobre como se engajar de maneira crítica, analítica e criativa com aquele

108
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

passado, “com as conjunturas e os processos que assentam as condições de


possibilidade não só para o funcionamento das instituições, como também para
a construção dos discursos, dos imaginários, das representações e das práticas
que circundam, interpretam e interpelam” a indústria da produção televisiva
(FREIRE FILHO, 2004, p. 4).

As linhas de investigação adotadas pelos/as historiadores/as da televisão


para analisar sua natureza multifária, polimorfa podem ser sintetizadas em cinco
aspectos: a televisão como instituição; como realização; como representação
e forma; como fenômeno sociocultural; e como um experimento científico-
tecnológico. Não é demais recordar que a opção por uma, outra ou mais de
uma linha de investigação requer do/a pesquisador/a que ele/a tenha seguido a
mesma “cartilha” indispensável ao historiador/a de outros meios no tratamento
das fontes. Ou seja, neste caso, a decisão por percorrer um caminho investigativo
é precedida pela formulação de hipóteses estruturantes; pela coleta, organização
e sistematização de dados; pela assimilação de eventos relevantes em quadros
de referência coerentes com o objeto e a fonte de estudo; e pela elaboração de
uma cronologia, periodização ou fases significativas relacionadas aos campos
tecnológico, social e institucional. O feeling resultante dessa operação, digamos,
pré-historiográfica, permite que o/a historiador/a se “decida” de forma mais
coerente entre as linhas de investigação possíveis.

Cada uma das abordagens anteriormente mencionadas acerca da televisão


e seus produtos requer do/a historiador/a que ele/a faça questionamentos
diferentes às fontes de mídia televisiva e seus produtos. Em linhas gerais, a
televisão como instituição inquere uma indústria específica e suas organizações,
suas relações com a política governamental, regimes, as concessões e dados
da administração corporativa. Como representação e forma, investiga-se o
enquadramento estético que a televisão toma emprestado da crítica literária, do
teatro e do cinema, sobretudo em relação ao vocabulário e linguagens. A televisão
como realização tem o foco na cultura e na prática profissional, problematizando
como um contexto histórico tende a ser narrado em relatos autobiográficos, por
exemplo. A televisão como fenômeno sociocultural atenta às relações entre
a produção televisiva e a esfera pública, a sociedade civil, a cultura popular, o
caráter mutável das relações familiares e dos valores domésticos. Finalmente,
a televisão como tecnologia, ou como experimento técnico-científico, analisa
como o aparato se tornou um item doméstico, uma fonte crescentemente influente
e poderosa para uma mutação na estética social (FREIRE FILHO, 2004, p. 5).

Para o campo dos estudos midiáticos, no qual a História da televisão se insere,


torna-se importante abordar a complexidade das forças e das mediações sociais,
culturais, econômicas e tecnológicas que envolvem a formação dos programas e
suas transformações. Em que pese o cerne da História da televisão estar centrado

109
Linguagem Visual na HistoriograFia

no produto cultural em si – os programas –, numa perspectiva cultural, a estrutura


e a organização da programação, do fluxo e do “supertexto” também são
importantes parâmetros. Além do conteúdo do programa em si, sua relação com
os demais programas da grade, as substituições do elenco, as alterações nas
pautas, o período de tempo em que foi editado/transmitido, a comparação deste
período com o de outros produtos, para citar alguns exemplos, são indicações
analíticas de praxe para a conformação de periodizações, tão relevantes para os/
as historiadores/as do meio. A análise dessas questões que circundam o produto
cultural televisivo e sua exibição constitui uma segunda orientação metodológica.

Outro elemento de destaque para a construção de conhecimento histórico


a partir de fontes televisivas é a relação entre os produtos e a audiência, como
também já apontamos em relação ao cinema. Neste caso, como a dinâmica da “tv”
é a de um fluxo contínuo, o estudo dos vestígios da construção de vínculos entre
a programação e sua audiência é ainda mais significativo, já que nesta relação
de dependência da primeira em relação à segunda faz-se o meio: o conteúdo, os
programas e produtos audiovisuais podem ser alterados ou excluídos com base
no retorno do público em relação a eles. Finalmente, cabe o destaque para outro
tipo de relação: a que se institui entre a televisão e seu desenvolvimento técnico,
estético e conteudístico e as mudanças nacionais de cunho político. Importa
atentar, neste sentido, às ações político-estatais no desenvolvimento da televisão
e seus produtos, ponderando que eles não podem ser considerados de forma
independente do sistema político e institucional que modela o universo social
como um todo.

No Brasil, uma característica importante a ser considerada em estudos sobre


a televisão se expressa em sua função social agregadora, nisto residindo certa
continuidade em relação ao rádio, instrumento comunicacional predominante
no país durante grande parte do século XX. A televisão contribuiu desde a sua
popularização nos anos 1960 para a construção de imagens da nação, veiculando
discursos acerca de sua integração e consolidando no imaginário social ideias
sobre brasilidade. Nessas “imagens do/sobre o Brasil”, irradiadas a partir dos
maiores centros produtivos do país, consolidavam-se mitos, transformando
episódios e personagens em peças chave da nossa história, que se sedimentavam
no imaginário social do país seja pela forma característica com que a televisão as
utilizava ou pelo poder verbo-narrativo que evocava.

110
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

Sugestão de leitura: Para quem quer adentrar no universo da


produção televisiva, História da televisão brasileira, de Sérgio Mattos
é um ponto de partida interessante. Neste livro o autor analisa a
emergência da televisão no panorama mundial, seus usos e algumas
leituras sociais que dela se fizeram. Em relação ao Brasil, a relevância
do texto está em considerar a produção televisiva como indissociável
do contexto político vivido e dos momentos econômicos do país – as
concessões, a censura, as afinidades político-institucionais – além de
ter servido como uma espécie de termômetro para questões culturais
em pauta na sociedade.

O último ponto de nossa análise sobre História e audiovisual refere-se à


problematização desta linguagem, em dois sentidos: na produção do conhecimento
histórico acadêmico; e na construção de imagens sobre o passado. Em relação a
este par de questionamentos, limitamo-nos a sumariar as polêmicas que suscitam.
Pode a História, uma disciplina acadêmica eminentemente escrita, abrir-se a um
tipo de produção de conhecimento sobre o passado e sua relação com outras
temporalidades que não tenha como suporte a palavra escrita? Noutras palavras,
pode a História “escrever-se” através de produções audiovisuais, por exemplo?
A História como disciplina escolar teria a ganhar com o desenvolvimento destas
possibilidades “alternativas” de produção histórica? Em que medida, pelo caráter
da disciplina, as imagens e os audiovisuais podem contribuir para a apreensão de
distintas experiências do tempo histórico?

A expressão visual e a História têm em comum a característica da formação


de imagens: como não vivenciamos a época dos descobrimentos, por exemplo,
suscitamos através do conhecimento histórico a formação de imagens mentais
sobre ele. A imaginação é um atributo fundamental ao historiador/a porque, ao
narrar o passado, coloca em movimento um conjunto de imagens que constrói
a partir dos indícios que encontra sobre este passado, completando as peças
que faltam. Este “colocar em movimento” nada mais é do que a sua inserção
em uma narrativa. Se imagem, imaginação e História mantêm entre si relações
tão próximas, por que a expressão do conhecimento historiográfico não pode
aproximar-se de outras formas narrativas, como a que se manifesta através dos
audiovisuais?

As ressalvas quanto à produção historiográfica por meio de outras


linguagens que não a escrita se situa na tradição acadêmica da disciplina, que

111
Linguagem Visual na HistoriograFia

é eminentemente letrada e não caberia aqui realizarmos esta discussão. Para


uma defesa da imagem técnica, em qualquer dos suportes nos quais pode ser
produzida, basta apontar que sua utilização – não como fonte histórica, mas
como expressão de conhecimento histórico – é entendida como insuficiente para
informar sobre esse tipo de conhecimento. Ou seja, os detalhes informativos,
os dados, as referências cruzadas, as citações, o debate historiográfico, nada
disso poderia ser comportado por uma narrativa que não fosse escrita. Esse é
um argumento poderoso, pois se funda nas bases do método da História como
disciplina: analisar, comparar, discutir, apontar, referenciar. No entanto, se a
imagem é vigorosa na incorporação que fazemos de experiências em História,
e a discussão da produção historiográfica é um imperativo, justo seria que fosse
possível ao conhecimento histórico, acadêmico ou escolar, poder expressar-se por
meio destes dois suportes, o visual e o escrito. Por exemplo: assim como a seção
introdução, em qualquer trabalho científico, situa o leitor, orientando a leitura que
fará a seguir, a mesma exigência poderia ser feita em relação ao audiovisual:
que fosse “introduzida” a fim de incorporar demandas que a linguagem visual não
comporta.

Por melhor que um/a historiador/a se esforce em descrever, analisar, elaborar


formas de apreensão do conhecimento histórico, nunca o fará tão bem, com tanto
poder de convencimento e fixação entre os seus interlocutores – seus alunos/as,
seus pares ou interessados/as – do que o faria através de uma narrativa visual
ou audiovisual. A construção dessa narrativa, como a de qualquer produção
historiográfica, seguirá os procedimentos teórico-metodológicos ordinários da
profissão, sobretudo aqueles que regulam o ímpeto imaginativo a não afirmar
nada além daquilo que as fontes sugerem, apontam, indiciam.

Quando ainda cursávamos História, no meado da década de 2000, causou-


nos enorme impressão a leitura do livro de Natalie Zemon Davis, O retorno de
Martin Guerre. Conhecíamos pouco sobre o século XVI francês rural, habitado
por homens e mulheres comuns. A genialidade com que a autora descreveu os
afetos, a alimentação, os ambientes, as situações e inclusive, o horizonte no qual
Martin Guerre reaparece, foi responsável por muito tempo pelas imagens que
havíamos criado acerca do período. Muito do que não pudemos imaginar deveu-
se a nossa falta de conhecimento. Tal lacuna não fora empecilho, no entanto,
para que nos apropriássemos desses conhecimentos quando, algumas semanas
depois, assistimos ao filme homônimo (Figura 15): cruzando referências escritas
e pictóricas, nossa compreensão acerca do enredo, contexto e da pesquisa havia
se ampliado enormemente. Eis uma prova irrefutável do poder que as imagens
emanam na produção e na apropriação de conhecimento sobre o passado –
embora hoje entendamos que o filme falava tanto da investigação histórica de
Davis acerca do contexto dos anos 1560, quanto da França do começo da década
de 1980.

112
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

FIGURA 15 – CENA DE O RETORNO DE MARTIN GUERRE (1982)

FONTE: <http://marquinadotempo.blogspot.com/2013/04/a-visao-
da-oficina-3-sobre-o-filme.html>. Acesso em: 16 fev. 2020.

Sugestão de atividade de estudo: Dentre os gêneros não


inclusos no cinema clássico hollywoodiano consta o da ficção-
científica, que conta atualmente com um público apreciador entre
os mais destacados. Como a característica deste gênero é narrar
histórias imaginativas, proféticas, sobre universos paralelos, que
contradizem tanto as leis da física quanto as evidências históricas
e arqueológicas conhecidas, ele permite atentar para uma relação
histórica específica, aquela que se refere ao futuro-passado ou ao
futuro presente. Ou seja, como se imaginou, no passado, que seria
o futuro? E como hoje o pensamos? De que maneira cada presente
interfere em dada visão do futuro e do passado? Cada um de vocês,
acadêmicos, deve escolher uma obra cinematográfica de ficção-
científica e preparar, junto a um excerto do filme a ser compartilhado
com os/as colegas, um trabalho dissertativo entre 2 e 5 páginas
analisando o filme em perspectiva histórica.

113
Linguagem Visual na HistoriograFia

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao longo deste capítulo, abordamos um roteiro convencional relativo à
temática da arte, da imagem e da reprodutibilidade técnica. Isso significa, por um
lado, que você acadêmico tem nesse material os conteúdos fundamentais para
desenvolver saberes e práticas nesse campo de estudo. Nisso a que chamo
“convencional”, inserem-se alguns conceitos-chave da discussão que envolve arte
e técnica, autores/as com os quais é possível ou necessário dialogar e conteúdos
que é imprescindível que sejam dominados. Por outro lado, dada a complexidade
e amplitude do campo, muito ainda pode ser buscado por vocês. Filmes, livros,
exposições, pesquisas em sites, blogues e mídias, há muito material disponível e
que deve fazer parte do cotidiano do professor-pesquisador em História, já que o
fim de uma disciplina ou um curso não significa que estejamos prontos, completos
em relação a dado conjunto de conhecimentos.

No sentido de indicar caminhos para o aprofundamento de vocês nas


discussões que tiveram lugar nesse capítulo, sugiro três caminhos conectados
de imersão, a começar pela definição de alguns conceitos, como buscamos fazer
em alguns momentos desse capítulo. Moderno, modernidade, modernização,
modernismo; técnica, tecnologia; imagem, visualidade, linguagem visual... cada
conceito designa uma experiência, um momento, um saber situado. Para a
discussão sobre modernidade e tecnologia, é preciso utilizar de forma coerente
um apanhado de conceitos, que podem se confundir seja pela presença de um
mesmo radical na composição de uma palavra, seja porque o uso corriqueiro
desses termos não se dá de forma precisa.

Em segundo lugar, como nenhum conhecimento é vão e nós, como


professores e professoras, estamos sempre em busca de aprimorar nossas
ferramentas didáticas, sugiro que vocês busquem familiarizar-se com produtos
visuais diversos. Assistam a filmes, leiam biografias de artistas, estudem História
da Arte, visitem museus e galerias, tratem, sempre quando possível, de continuar
os estudos acerca das imagens técnicas, sua história, seus instrumentos, seus
usos. Não basta que saibamos uma porção de coisas sobre linguagem visual e
tecnologia, é possível também ampliar nosso leque de conhecimentos através de
uma aproximação afetiva, no sentido de gratuita, sem fins utilitários, dos produtos
culturais que virão a ser apreciados, analisados, instrumentalizados por nós em
sala de aula ou na produção científica.

Finalmente, em qualquer nível de instrução, um esforço intelectual é


necessário e aprimorar-se requer algum grau de dedicação na busca pelo
conhecimento – o que traçamos aqui não foi mais do que uns passos iniciais.
Cada um de vocês pode continuar aproximando-se dos temas de estudo deste

114
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

capítulo conforme as suas afinidades: para os que se apropriam melhor de


saberes através de conteúdos visuais, assistam a documentários sobre os temas,
sobre os autores, sobre suas obras ou também videoaulas e outras produções
que sistematizam os conteúdos. Já para os/as que se relacionam com mais
facilidade com a palavra escrita, além das sugeridas no capítulo e daquelas que
embasaram a sua escrita, a seguir referenciadas, há plataformas de conteúdo
científico nas quais muito do que está sendo discutido agora mesmo nos maiores
centros de produção de conhecimento já está disponível para acesso e download.
Além disso, em ambos os modelos – conteúdo visual ou textual – podemos
encontrar produções que “explicam” as teorias e as ideias complexas dos autores
de referência na temática da imagem técnica. Este encontro pelas margens com
um tipo de conteúdo que parece duro, difícil de apreender, pode ser um caminho
para preparar vocês para um contato direto.

1) Em relação à obra clássica de Walter Benjamin, A obra de


arte da época da possibilidade de sua reprodução técnica,
assinale a alternativa correta:

a) ( ) A obra constitui uma ode à modernidade e um panorama


apaixonado das técnicas e tecnologias que estavam se
popularizando nas primeiras décadas do século XX.
b) ( ) Seu argumento concebe que a possibilidade de reprodução
técnica da obra de arte retirou-lhe a aura, um atributo conferido
pelo instante singular de sua produção, o qual só possui uma
obra original.
c) ( ) O autor acreditava que a arte técnica não poderia produzir
nada que fosse de validade à sociedade.
d) ( ) Para o autor, sua época se caracterizava por haver destruído
“o aqui e o agora” da produção das artes, que havia ficado restrito
às obras do passado.

2) Assinale a questão a seguir que expressa a alternativa


incorreta acerca da fotografia:

a) ( ) Causou, quando de sua popularização, um enorme


entusiasmo, decorrente da possibilidade de representação fiel da
realidade, como era então concebida.
b) ( ) Deu origem a uma técnica chamada pictorialismo, na qual o

115
Linguagem Visual na HistoriograFia

fotógrafo buscava “simular” um retrato pintado, através do tom


sépia e da manipulação do foco.
c) ( ) As fotografias são parte de uma narrativa social e familiar
multitemporal, pois incorporam o tempo do acontecimento, a
rememoração, da exposição etc.
d) ( ) Constitui uma representação fiel da realidade tal qual no
momento em que se produz, já que a diferença do pintor, que
manipula o objeto representado, o olhar do/a fotógrafo/a não
possui a capacidade de dotar a realidade de um sentido subjetivo.

3) No tópico relativo à História e Audiovisual, abordamos a


importância de atentar para os seguintes critérios de análise
acerca do cinema, exceto:
a) ( ) Local e contexto de produção, direção, estúdio e outras
condições de possibilidade da produção cinematográfica.
b) ( ) A análise dos gêneros cinematográficos, dentre os quais os
mais bem caracterizados são aqueles que conformam o estilo
clássico hollywoodiano.
c) ( ) As mensagens subliminares distribuídas ao longo da
narrativa fílmica, que denotam sentido à produção e se vinculam
especialmente ao caráter de comercialização do estilo clássico
hollywoodiano.
d) ( ) Os ruídos, o silêncio e a trilha sonora, as cores e o preto
e branco em alto contraste: todos esses são elementos
comunicacionais, além de estéticos.

REFERÊNCIAS
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obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, pp. 11-25.

BAZIN, André. O que é o cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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FREIRE FILHO, João. História da televisão: Teoria e Prática. In: XXVII Congresso
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116
Capítulo 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA

Porto Alegre: PUC Rio Grande do Sul, 2004. Disponível em: <http://www.portcom.
intercom.org.br/pdfs/119106480770841596670106571215914498247.pdf>.
Acesso em: 16 jan. 2020.

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117
Linguagem Visual na HistoriograFia

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VAINFAS, Ronaldo. (Orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2012, pp. 283-300.

118
C APÍTULO 3
IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

• Assimilar a imagem, em suas diferentes técnicas e


materialidades, enquanto documento que embasa a produção
do conhecimento histórico e também o seu ensinamento.

• Apreender as potencialidades didáticas dos recursos imagéticos


na construção do saber-fazer junto aos educandos.

• Situar a utilização de recursos imagéticos nos estudos históricos.

• Utilizar a imagem como recurso didático em sala de


aula desde o ponto de vista crítico e dinâmico.

• Capacitar os educandos a identificar, analisar e compreender as características


e os usos das manifestações artísticas e imagéticas no tempo presente.
Linguagem Visual na HistoriograFia

120
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Percorrendo a trajetória de estudos desta disciplina sobre Linguagem Visual
na Historiografia, temos que o despontar da noção de que uma imagem poderia ser
lida deu-se no campo de estudos das artes, e mais especificamente, no ensino de
artes. Ao longo do século XX, com ênfase na segunda metade em diante, diferentes
autores e autoras sugeriram estágios ou etapas de apreensão visual pelas quais
alunos e alunas seriam conduzidos/as pelo/a professor/a visando a ampliação de
seus conhecimentos técnicos, formais e estéticos, para que pudessem apropriar-
se de um “informe” contido numa pintura, numa ilustração, numa imagem fixa
qualquer. No Capítulo I, elencamos duas contribuições fundamentais para o
desenvolvimento desses saberes, o formalismo e a semiótica, os quais deram
origem a métodos de ensino-aprendizagem que estiveram centrados no estudo
descritivo da representação visual de símbolos, formas, temas e técnicas que
compõem uma linguagem visual.

Considerando como dada a possibilidade de nos valermos de imagens para a


construção de conhecimento em História, indagamos o método historiográfico em
relação à noção de “fontes”, mas também – e sobretudo – acerca do questionário
ao qual as imagens, como qualquer outra tipologia documental, devem ser
submetidas no decorrer do processo. Problematizamos a concepção de “fonte”
enquanto detentora de respostas ou da verdade histórica em si, preferindo
considerar produtos visuais como testemunhos de um tempo histórico, inquerindo
criticamente tal testemunho quanto aos indícios que aportam para as hipóteses
históricas levantadas. Seja o problema histórico a investigar de ordem visual ou
não, concordamos que a perspectiva metodológica mais adequada à produção de
conhecimento histórico seria a utilização de um conjunto de imagens – ao invés de
uma imagem singular – junto a documentos ou artefatos de outros tipos. Através
do jogo de comparações entre diferentes testemunhos se dá a possibilidade de
construção de saberes mais solidamente confiáveis.

No Capítulo II sumariamos os debates fundamentais para o estudo dos


objetos visuais oriundos da técnica. Ou seja, a técnica como “arte ou modo de
fazer” foi sempre a maneira através da qual um conhecimento fora disseminado.
Contudo, o momento histórico que designamos de segunda revolução industrial
deu origem a uma classe de desenvolvimento que redefiniu a concepção de
técnica, aproximando-a à de tecnologia, à de instrumento, à de máquina. No
campo da sociologia da arte a produção de imagens técnicas – daguerreótipo,
fotografia, cinematógrafo, cinema, etc. – originou debates acerca do estatuto
destas imagens, suas promessas de representação do real e de “alforria” das
artes em relação a esta função (realística). Tais debates são atuais e fundamentais
tanto para o/a historiador/a que trabalha com esta categoria de produção visual,

121
Linguagem Visual na HistoriograFia

quanto para o/a professor/a que pretende utilizar essa produção em sala de aula,
mas também iniciar os/as alunos em práticas de pesquisa em História.

Cada tipo de produto visual, e no interior de um mesmo tipo, cada uma das
formas tomadas pelos critérios de diferenciação (na fotografia, os retratos e as
paisagens, no cinema, a discussão sobre os gêneros, por exemplo) compõem
linguagens específicas que não podem ser compreendidas senão através do
conhecimento acerca de sua produção. Isso porque, conforme a concepção
de linguagem que temos utilizado não se desconsidera o conteúdo veiculado,
mas uma linguagem é um meio através do qual esse conteúdo é materializado.
O professor-pesquisador precisa dos conhecimentos acerca das técnicas de
produção visual e audiovisual para fazer o seu trabalho com qualidade, já que
elas são instrumentos de produção de sentido que atuam em nível muito mais
profundo do que o “dizível”. Por essa razão dedicamos todo um capítulo às
imagens técnicas, ao seu processo de desenvolvimento em diferentes momentos
históricos, ao maquinário do qual resultam seus usos, especificidades etc.

Neste Capítulo III, todos os conhecimentos desenvolvidos serão mobilizados


em torno da relação entre Imagem e Ensino de História. Em um primeiro momento,
discutiremos brevemente o universo imagético como fonte de ludicidade,
criatividade e imaginação histórica, um dispositivo ímpar para a construção de
conhecimentos sobre o tempo histórico. A seguir analisaremos o uso corrente de
imagens na construção do conhecimento histórico escolar – o livro didático e o
inquérito das imagens baseado em práticas de pesquisa. No terceiro momento do
capítulo o foco de nossa abordagem se voltará a propostas didáticas com recursos
imagéticos. Ao apontar a seriação às quais se destinam as propostas, sugerir
conjuntos de imagens para cada tema e destacar, através de um questionário,
os objetivos do saber-fazer a serem alcançados por meio de recursos visuais e
audiovisuais, esperamos não apenas discutir princípios didáticos, mas inspirar a
elaboração de outras propostas por cada acadêmico dessa disciplina.

2 POTENCIALIDADES E USOS DAS


IMAGENS EM SALA DE AULA
A História como disciplina escolar está presente no currículo de crianças,
adolescentes e jovens na faixa etária de seis a 14 anos no Ensino Fundamental; e
de 15 a 17 anos no Ensino Médio. Lidando com conteúdos complexos, que exigem
níveis de abstração, e mesmo imaginação, superiores àqueles demandados em
outras disciplinas, o ensino-aprendizagem do conhecimento histórico escolar
vem requerendo atualizações didáticas cada vez mais constantes e dinâmicas

122
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

neste primeiro quartel do século XXI. As razões dessas demandas são diversas
e relacionam-se ao próprio conteúdo da disciplina, mas também às novas formas
de apropriação do conhecimento histórico disponíveis nos tempos em que
vivemos. Elencamos, para um breve comentário, três fatores interligados que
compõem o quadro situacional da dinâmica escolar em relação à História: 1) o/a
professor/a e a escola não são mais os únicos (ou principais) fontes de irradiação
do conhecimento histórico; 2) o momento de midiatização vivido pelas sociedades
modernas promove a inserção das crianças e dos jovens numa cultura das
“telas”, do imaginativo, do imagético e do ficcional desde muito cedo; 3) como
um conhecimento que está sempre em movimento, a História se vê no centro de
uma polarização política evidenciada a nível mundial, alvo de revisionismos e de
narrativas contestatórias.

A escola como lócus principal de apropriação de conhecimentos por crianças


e jovens não faz mais parte da realidade de grande parte do alunado brasileiro.
Talvez seja, ainda, em parte verdade que algumas disciplinas – como as que
envolvem cálculos – percorram uma trajetória na qual o professor/a continua a ser
considerado indispensável. No caso da História, podemos afirmar que a questão
da dispensabilidade do mediador/a sempre esteve colocada: pelo menos desde
a popularização do livro didático, o conteúdo estava disponível para aqueles que
quisessem reforçar, através da leitura extraescolar, o que fora apontado em sala
pelo/a professor/a. Como tudo estava escrito no livro à disposição do/a aluno/a,
esse/a podia, também, despreocupar-se com as aulas, pois, quando tivesse que
demonstrar o domínio dos conteúdos em provas escritas e outras atividades
avaliativas, poderia recorrer ao livro didático, detentor de todas as informações a
serem memorizadas.

Como parece evidente, o que narramos anteriormente é uma leitura


ultrapassada e mesmo estigmatizada do ensino de História no contexto
escolar. Estigmatizada porque, em que pese diferentes momentos, contextos
e profissionais, o livro didático nunca fora um manual autodidata, requerendo
sempre, como hoje, a mediação do/a professor/a. Ultrapassada, por sua vez,
porque a falta de dinâmica no ensino da disciplina conduz aqueles que estão
em processo de aprendizagem à busca de novas fontes de consulta, que
disponibilizem conteúdos de forma mais acessível, ou seja, sintética, mas também
através de linguagens e recursos que dialoguem melhor com a sua faixa etária
e com as finalidades dos estudos empreendidos. Sem demasiado esforço, hoje
podemos encontrar uma infinidade de atores sociais que se prestam a “ensinar
História”: blogueiros, youtubers, videocasters, curiosos e interessados em temas
históricos que disponibilizam sínteses, narrativas atrativas e ilustradas sobre
fatos, processos e personagens.

123
Linguagem Visual na HistoriograFia

O problema é que essas sínteses não estão sendo oferecidas por professores/
as de fato, ou seja, não são produzidas por profissionais que dominam, para
além dos acontecimentos, o processo de construção de narrativas sobre os
acontecimentos. A absorção de conteúdo pelos/as alunos/as, como sabemos,
não é o objetivo de a disciplina de História constar no currículo escolar. Nisso
residem as ressalvas em relação a “aprender” História através de almanaques
audiovisuais: importa a capacidade de memorização que eles mobilizam ou
o seu fracasso em potencializar o pensamento crítico? Essa “disputa”, na falta
de termo mais adequado, entre a escola e os novos formadores de opinião, que
se apresentam quase exclusivamente através das redes, conduz ao segundo
elemento alvo de nossos comentários: a inserção constante e precoce das
crianças e dos jovens na dinâmica das mídias e dos aparatos tecnológicos.

Os desenhos infantis, os jogos, as séries, realidades ficcionais e fantásticas


estão disponíveis para meninos e meninas nem bem logram desenvolver a
habilidade de assimilá-los. Ou melhor, desenvolvem com esses produtos tais
habilidades. Atualmente, uma série de estudos vem sendo desenvolvida acerca
dos níveis de inteligência de crianças que receberam estímulos audiovisuais, de
imagens técnicas (sobretudo através da televisão, dos tablets e dos smartphones)
desde bebês em comparação com crianças que não foram submetidas a esses
estímulos até os três anos. Não nos cabe adensar essa discussão, mas sim
apontar, através dela, que as mídias digitais são um fato concreto nas vivências
da infância para grande parte da população mundial. Em comparação com o
entretenimento e com a ludicidade que esses instrumentos aportam, na utilização
que deles fazem os infantojuvenis, a escola torna-se maçante, desinteressante,
fonte de conhecimentos inúteis.

A História, entendida como o compêndio dos feitos humanos, torna-se a


rainha entre as disciplinas sonolentas as quais as crianças e os jovens devem
assistir para aprovar o ano. A questão que colocamos é a seguinte: tendo a História
uma lista de conteúdos a trabalhar, elencados pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais, e tendo a demanda desses conteúdos o perfil anteriormente descrito –
cada vez menos pacientes, mais dinâmicos, instruídos em linguagens variadas –
podemos fazer diferente? Podemos aliar História e ficção, ludicidade, imaginação?
Afinal, como aprendem essas “novas” crianças e jovens? Bem, as crianças e os
jovens, diga-se, podem aprender melhor através de dinâmicas diferentes daquelas
que tradicionalmente embasam o ensino de História – um encadeamento entre
leitura, silêncio, discussão, elaboração escrita e oral. No entanto, a razão pela
qual aprendem continua sendo a mesma: os sujeitos consolidam seu aprendizado
através daquilo que se torna significativo e relevante para eles.

124
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

Como nos recorda Litz (2009), entre os principais objetivos da disciplina


de História está o de desenvolver nos/as alunos/as a capacidade de escrever
e expressar-se acerca dos conteúdos abordados, utilizando-os para melhor
entender ou explicar a sua realidade e posicionando-se em relação a esta
realidade, questionando-a, se preciso, em uma relação entre presente, passado e
futuro. Para que o processo seja satisfatório, deve fazer-se dialeticamente, através
do estímulo do/a professor/a em relação aos conhecimentos que os/as alunos/as
já possuem, já que sua função de mediador requer a mobilização do objeto de
conhecimento em relação ao aluno/a, para que este construa através de suas
experiências um conhecimento elaborado acerca deste objeto. Isso prescinde
que o/a professor se valha de elementos do universo no qual seus alunos/as se
encontram, o que inclui considerações de âmbito geracional: se, talvez, para um
grupo de adultos na faixa etária entre 50 e 60 anos, os jogos eletrônicos não sejam
atrativos como veículo de saberes e para colocar em pauta algumas questões em
relação ao seu contexto de produção, por exemplo, o mesmo não se pode afirmar
acerca da geração que hoje se encontra entre os 15 e os 25 anos, nascidos já na
era dos videogames e da hiper-realidade dos jogos online.

Finalmente, nosso terceiro comentário versa sobre a tendência, inerente


ao conhecimento histórico, de refazer-se, reescrever-se, dando margem a tipos
perigosos de revisionismos. Perigosos porque, na medida em que incitamos
o pensamento crítico, certas narrativas isentas de investigação científica, ou
seja, oriundas de opiniões que manipulam informações propositadamente ou
não, podem vir a ser apropriadas enquanto outros “pontos de vista”. Ora, como
profissionais comprometidos com a aprendizagem para a cidadania, está entre
nossas funções incitar nos/as alunos/as a busca por fontes divergentes, por
conhecimentos que questionem a passividade dos processos históricos. Isto é,
também, uma orientação metodológica basilar do conhecimento em História. No
entanto, o divergente pode, em tempos de polarização política e de acirramento
das disputas em torno da memória histórica de certos acontecimentos, confundir-
se com leituras, análises e narrativas ingênuas, falaciosas e mesmo mal-
intencionadas.

A máxima de que tudo tem dois lados, havendo sempre diversas opiniões
sobre um mesmo tema, é a expressão de um maniqueísmo infértil para o
conhecimento histórico. Se um regime foi bom, mal, quem nele agiu certo ou
errado, por exemplo, são respostas que podem ou não ser respondidas por cada
aluno/a no processo de apropriação de conteúdos e sua significação sempre
subjetiva sobre eles. Não convém ao professor/a respondê-las, mas apresentar
todos os elementos, de forma crítica, ainda que isso não signifique incorporar
a falácia da neutralidade que, sabemos, não pode ser sustentada, já que
professores e professoras são sujeitos com as suas próprias crenças e valores.
Mas o que vemos no material produzido e disseminado à revelia pelas redes –

125
Linguagem Visual na HistoriograFia

com exceções, felizmente – cuja autoria é incerta e muitas vezes propositalmente


anônima, é a utilização de dados convenientes para a confirmação de uma
dada hipótese, remetendo todos os elementos existentes em contrariedade a tal
hipótese a uma “invenção” de grupos supostamente hegemônicos. Esses, por
sua vez, estariam visando finalidades político-ideológicas com a manutenção do
“silêncio” destas outras versões.

Em tudo isso, a função social do/a professor/a se destaca. Como mediador/a


de conhecimentos, importa tanto que aponte a produção de narrativas falsas como
a utilização parcial de evidências históricas por parte de agentes motivados por
interesses difusos que não os que orientam os preceitos científicos. Instigando o
exercício de práticas de pesquisa histórica, o/a professor/a pode, antes mesmo
das vertentes revisionistas aparecerem em sala, trazê-las para a discussão. Ao
fazer esse exercício, as imagens certamente adquirirão um papel de relevo. São
elas o lócus de produção das fake news por exemplo. Dentre as razões desse
fenômeno, como já apontamos, está o seu poder de fixação da realidade ou de
realidades que são mais facilmente acessadas através da visualidade.

Utilizar as imagens como instrumentos do conhecimento histórico significa


inseri-las no contexto escolar com propósitos bem definidos. A ludicidade que
elas aportam à dinâmica da aula, bem como suas potencialidades na construção
de imagens mentais sobre o passado são gatilhos para a atenção, imaginação
e interesse dos alunos, mas o entretenimento não é a sua razão de estarem
no espaço das aulas de História. Noutras palavras, utilizar em sala de aula um
filme, um HQ, um conjunto de imagens fixas não tem a finalidade de ilustrar como
foi dado processo ou a de abordá-lo de maneira mais divertida, mas subsidiar
reflexões sobre esse processo, haja vista a curiosidade, para dizer o mínimo,
que esses produtos culturais suscitam entre as crianças e os jovens. O roteiro
da abordagem de documentos visuais, pelo/a professor/a, deve ser construído
com base nas reflexões e nos debates que se almeja empreender junto aos
educandos/as.

A seguir, faremos uma análise acerca de duas propostas didáticas em


História, com foco no uso de produtos visuais e audiovisuais. Os dois “modelos”
não são contraditórios; antes o inverso, vêm sendo utilizados em concomitância
por grande parte dos/as professores/as de História brasileiros/as. São eles: o
roteiro imagético proposto pelos livros didáticos; e a incorporação de imagens
baseada em práticas de pesquisa.

Em primeiro lugar, cabe a indagação: por que abordar o livro didático?


Porque a utilização desse tipo de material em sala de aula ainda é o recurso
pedagógico mais utilizado em nosso país. Como consequência disso, temos que
as imagens disponíveis nos livros didáticos se constituem as mais acessíveis

126
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

aos/as professores/as e alunos/as. Como apontado por Circe Bittencourt (2012),


em que pese o fato de os livros didáticos do meado do século XIX já possuírem
litografias reproduzidas a título de ilustração ou para fins didáticos – para que
fosse possível “ver” a História, e não apenas memorizá-la – o incremento paulatino
de recursos visuais nos livros da disciplina demonstram a importância que as
imagens foram adquirindo ao longo do século XX e, sobretudo, no XXI. Contudo,
questões de ordem metodológica se impõem mais do que nunca: que abordagens
vêm sendo desenvolvidas em relação às imagens presentes nos livros didáticos?
Qual é a relação entre o conjunto de imagens veiculado acerca de determinado
assunto e o texto que o acompanha? Os livros sugerem propostas didáticas com
as imagens que oferecem apreensão para os/as alunos/as?

A natureza complexa do livro didático é responsável por tê-lo colocado no


centro de celeumas importantes no campo da pesquisa em História, História
da Educação, Didática da História, dentre outros nas últimas duas décadas. Há
docentes que, embora com ressalvas, destacam seu papel norteador do ensino-
aprendizagem, utilizando-o como roteiro. Há aqueles que, por outro lado, acusam-
no pela acomodação gerada entre a classe docente, que ao apoiar-se em sua
função de “manual”, exime-se da responsabilidade da preparação de didáticas
variadas. Entre os elementos de sua complexidade está o fato de ser um produto,
ao mesmo tempo, mercadológico, depositário de conteúdos, um instrumento
pedagógico e um veículo portador de um sistema de valores (BITTENCOURT,
2012).

Enquanto mercadoria, o livro didático está condicionado a diversas lógicas,


como a das técnicas de fabricação e comercialização, que definem o tipo de
papel, a quantidade de páginas, a qualidade da impressão, a faixa de custo do
produto visando a sua competitividade, por exemplo. O livro didático, mesmo
quando escrito por profissionais reconhecidos na área do ensino de História –
supostamente resultando em produtos melhores avaliados pelos pares –, sofre
interferências do editor, do designer, dos programadores visuais e de um conjunto
de artesãos da manufatura que impõem uma forma de leitura organizada do
conteúdo “original”, alterando no mais das vezes a lógica do raciocínio almejado
pelo autor/a. Isto reflete, evidentemente, na reprodução das imagens, sua
disposição, quantidade, qualidade, tamanho etc. Pensar o livro didático como
produto que deve apresentar-se atrativo, acessível em termos de linguagem e de
valores, requer ter em mente que este mercado mobiliza milhões de reais todos os
anos. Embora existam instituições privadas que produzam seu próprio material de
ensino, a maior parte das escolas brasileiras adquire livros didáticos elaborados
por editoras especializadas, seja através de convênios ou de avaliações como o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

127
Linguagem Visual na HistoriograFia

Como depositário de conteúdos selecionados pelas propostas curriculares


como fundamentais em cada época, o livro não pode deixar de ser informativo,
recheado de textos escritos, mas ao mesmo tempo seletivo, porque não caberia
em si o compêndio total dos feitos humanos considerados importantes. O que
dispõe enquanto conhecimentos necessários à formação do/a aluno/a não é o que
importa que eles/as saibam, mas o que foi elencado como conhecimentos que
importam. Como suporte básico e sistematizador de conteúdos, o livro didático
realiza uma transposição dos saberes acadêmicos para o conhecimento escolar.
Isso significa não apenas uma linguagem diferenciada, acessível a cada uma das
etapas de desenvolvimento humano, mas também a elaboração de formas de
comunicação distintas, substituição do vocabulário, construção de sínteses, de
reforços visuais, dentre outros instrumentos pedagógicos. Nessa relação entre
a necessidade de abordagem de determinados conteúdos e a imposição de sua
transposição didática, as imagens costumam apresentar-se como ferramentas
privilegiadas.

O livro didático está inscrito em uma longa tradição na cultura ocidental


enquanto o principal instrumento pedagógico escolar, daí também a vitalidade
das discussões que o cercam. Como sugere Bittencourt (2012), o livro didático é
inseparável das técnicas e das condições de ensino de seu tempo. Sua função é
a de elaborar um roteiro didático que auxilie o processo de ensino-aprendizagem
para ambas as partes envolvidas, professores/as e alunos/as. Enquanto tal,
como instrumento pedagógico, ele oferece técnicas de aprendizagem, como
exercícios, sugestões de trabalho, curiosidades etc., tarefas que os/as alunos/
as devem executar para se apropriar dos conteúdos abordados e, às vezes, para
ressignificá-los. Para o professor/a, o livro aporta sugestões para a condução das
aulas, ou seja, orienta acerca do modo de fazer, de como levar adiante cada uma
das discussões tendo em vista as finalidades inerentes àqueles conteúdos.

Finalmente, o livro didático é um importante veículo portador de um


sistema de crenças, valores e ideologias. Importante, dada a amplitude de sua
utilização, mas também em relação à função de detentor de saberes universais.
Segundo Bittencourt (2012, p. 72), “várias pesquisas demonstram como textos
e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos
dominantes, generalizando temas como, família, criança, etnia, de acordo
com os preceitos da sociedade branca burguesa”. Aqui cabe destacar que por
ideologia não entendemos algo que propositalmente é reproduzido com fins de
convencimento, de alienação de nossos interlocutores/as. Todos e todas nós, ao
nos identificarmos com algum valor, como o cristianismo, por exemplo, podemos
reproduzir juízos de valor acerca dos não cristãos sem nos darmos conta de estar
operando de forma estereotipada ou preconceituosa. Não há remédio senão
uma autovigilância crítica em relação as nossas posturas profissionais, a
fim de ampliar o respeito a todas as formas de existência.

128
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

Ainda em relação ao livro didático como portador de um conjunto de crenças,


importa dizer que ele pode sim ser utilizado como instrumento de reprodução de
saberes impostos por determinados setores de um Estado ou regime. Governos
totalitários alteraram ao gosto de suas ideologias os materiais escolares que
subsidiariam a educação formal de suas crianças e adolescentes por exemplo.
Mesmo em regimes democráticos, o controle do conteúdo reproduzido pode
ser exercido por instâncias de censura que se escondem atrás de argumentos
relacionados aos “costumes” ou acerca do que já mencionamos em relação a
“abordar pontos de vista contraditórios”. Se não vemos com muita frequência
essas categorias de problemas em relação ao livro didático é porque a sua autoria
se perde, em parte, pela inserção de muitas outras mãos, a atuar sobre o produto
final. Também influencia, nesse sentido, o próprio caráter do material didático e
sua demanda por textos simplificados, padronizados, sintéticos. A reprodução de
textos mais autorais, que incitem uma formação intelectual um pouco mais densa
e autônoma por parte dos/as alunos/as não costuma ser evidenciada.

Apresentando as características anteriormente descritas, parece claro que


o consumo que se fará do livro didático em sala de aula está sob a chancela
do/a professor/a. Isso inclui a leitura dos textos escritos, mas também uma leitura
crítica das fontes visuais que compõem o material. Atente-se ainda ao fato de
que, muitas vezes, é o próprio docente da disciplina quem indica para a instituição
onde trabalha o livro didático de sua preferência. Não negamos que exista um
tipo de detalhamento oportunizado pelas imagens, por exemplo, em relação a
um cenário, a objetos, à corporeidade de personagens, que as imagens nos
possibilitam apreender melhor, sobretudo aquelas que aportam um testemunho
histórico. A figuração de noções abstratas também é apontada como motivação
para ilustrações personalizadas constituírem lugares comuns nos livros didáticos.
Da mesma forma, ampliar o repertório cultural imagético dos/as alunos/as trata-se
de uma função em nada irrelevante. No entanto, a atenção conferida às imagens,
aos filmes, às charges, aos mapas e demais tipos de produção visual, se não
vir acompanhada de reflexão pelo/a professor/a e do seu estímulo a que sejam
inqueridas em relação a sua autoria, contexto, as suas funções sociais são
esvaziadas em seu caráter de instrumento pedagógico. Em um cenário ainda mais
problemático, uma utilização “ilustrativa” possibilita incorporações equivocadas
das imagens enquanto substitutivas da realidade histórica, já que tomam o seu
lugar na imaginação do passado.

Em linhas gerais, para oferecer alguma contribuição à dinâmica das imagens


no livro didático, abordaremos os elementos apontados por Circe Bittencourt
(2012), historiadora que se dedica à investigação da história do livro didático
brasileiro. Para a autora, uma peculiaridade da produção dos livros didáticos de
História, no Brasil, é a sua marca francesa. Essa marca se fez presente durante

129
Linguagem Visual na HistoriograFia

grande parte do século XX – ainda se deixando ver em alguns volumes sobre


História Geral ou Universal – por termos nos baseado nas propostas curriculares
francesas para a elaboração das nossas próprias. Por isso e também porque
a disciplina de História ainda é bastante francófona nossos livros reproduzem
muito material imagético dos manuais franceses. Isso influenciou também a
aproximação entre as casas editoriais brasileiras e francesas, o que permitia
àquelas recorrer mais facilmente a permissões para o uso de imagens, mediante o
pagamento dos direitos de reprodução, evidentemente. Por tudo isso, em termos
da quantidade de conteúdo visual, ficamos com a sensação de que a “História
Universal” é demasiadamente francesa.

O mesmo não se pode afirmar acerca dos volumes destinados à História


do Brasil. Dada a ausência de modelos que servissem de padrão em relação
à História nacional, desde muito cedo, como nos informa Bittencourt (2012),
autores e editores se engajaram na construção de acervos imagéticos próprios.
Isso confluiu na reprodução de um conjunto em parte limitado de produtos
visuais, os quais tiveram nos livros didáticos seus principais divulgadores. Veja-
se, por exemplo, obras como o 7 de setembro de 1822 de Pedro Américo ou A
Primeira Missa no Brasil de Vitor Meirelles. Independentemente do valor artístico
ou histórico dessas obras, a reprodução delas nos livros didáticos se disseminou,
sendo hoje inviável que um livro de História do Brasil seja elaborado sem a
presença dessas imagens. E por que razão se deu a eleição por elas? Dentre
muitas outras razões possíveis está a de que, como obras de grandes dimensões
e repletas de elementos figurativos, elas permitem imaginar com detalhamento
os contextos aos quais se reportam. Serviam e servem, igualmente, ao propósito
ufanista de representar os começos da nação de forma heroica e ritualística.

Outra característica marcante da produção de livros didáticos no Brasil


é a presença de retratos e fotografias de personagens históricos, numa clara
manifestação da preferência conferida à História Política até recentemente no
Brasil. Talvez aqui haja um exemplo das críticas mais contundentes à reprodução
de imagens enquanto mera ilustração. Sem entrar no mérito da relevância dos/as
alunos/as conhecerem figuras como Pedro Alvares Cabral, Maurício de Nassau
ou Getúlio Vargas, os retratos de personagens considerados importantes para
nossa história político-administrativa costumam ser reproduzidos na forma de
uma naturalização da História como o relato de feitos de homens do passado,
o que vai de encontro à perspectiva da História como uma disciplina que incita
o pensamento crítico. Como bem observa Bittencourt, como a História Política
optou por “biografar os feitos de chefes políticos, reis e presidentes republicanos,
seus retratos constituíram-se em uma espécie de galeria de pessoas ilustres
com características aristocráticas” (BITTENCOURT, 2012, p. 79-80) que, longe
de elucidar as experiências da nação, acabava servindo aos alunos/as para
que exercitassem a arte da caricatura – bigodes, chifrinhos e metanarrativas.

130
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

Quer dizer que sementes são jogadas ao solo da imaginação histórica


dos alunos com a construção de narrativas sobre um passado habitado
apenas por homens da elite e que se dedicavam a administrar o país? E, no
extremo, o que aporta às experiências daqueles que estão em processo de
aprendizagem formal conhecer essas figuras e esses feitos?

Na medida em que o inquérito das imagens presentes nos livros didáticos se


relaciona, ou requer que assim o façamos como mediadores/as, com os métodos
de investigação em História, vejamos agora outra forma de operar, a saber, as
propostas levadas pelo/a professor/a para serem trabalhadas em diálogo ou à
parte do livro didático. Trata-se de algumas considerações sobre a relação entre
ensino e pesquisa em História.

Há cerca de uma década, a estrutura dos cursos de História no Brasil sofreu


alterações em relação à habilitação de seus profissionais. Até a primeira década
do século XXI, o currículo das universidades se organizava, obrigatoriamente,
tendo em vista uma dupla formação: a de bacharel/a em História – historiador-
pesquisador, que se dedica à produção de conhecimento em História – e a de
licenciado/a em História – cuja atuação se dá no ensino da disciplina de História
em contexto escolar. Longe de discutir o mérito dessa divisão, parece-nos que,
na prática, ambas as formações continuam em parte vinculadas. Por um lado, a
formação do/a bacharel/a, com a ausência das disciplinas de didática e de estágio,
por exemplo, constitui uma perda significativa. Por outro lado, a formação do/a
licenciado/a, em que pese a ausência de trabalho final de curso, continua a dar
conta da produção de conhecimento em História em diferentes momentos, bem
como dos métodos de produção desses conhecimentos. Esses saberes estão
concentrados, em grande parte, nas disciplinas de Teoria da História, comum a
ambas as formações.

Uma questão inicial, porém, basilar do ensino de História, refere-se à


possibilidade de construção de conhecimentos acerca do tempo histórico sem
que o processo de ensino-aprendizagem disponha também sobre como aquele
conhecimento que está sendo oferecido à apreciação foi construído. A razão
de incitarmos a discussão sobre a História produzida e a História ensinada com
a questão da formação do profissional não é à toa, ela se estende também à
formação/ensinamento de crianças e jovens – obviamente, numa escala reduzida
e numa dinâmica diferente. Assim como o/a professor/a de História, durante a
sua trajetória de formação profissional, necessita se apropriar de discussões e
debates acerca da produção de conhecimento em História, embora não esteja
sendo preparado para fazê-lo (ou seja, para escrever História), para os alunos e
alunas também é fundamental compreender qual é o contexto de produção
das fontes, o tratamento conferido a elas na elaboração dos saberes e,
afinal, o processo de construção das narrativas como um todo.

131
Linguagem Visual na HistoriograFia

Nesse sentido, apontamos a necessidade de que o conhecimento histórico


escolar se aproxime de práticas de pesquisa, de investigação histórica, seja para
que o aprendizado em História seja mais qualificado, seja porque a incursão do
alunado pelo processo dota de sentido àquelas experiências estudadas. De que
maneira o/a professor/a pode fazer isso? Realizando uma abordagem crítica do
material didático, por exemplo, elucidando o processo de construção dos saberes
ali reproduzidos ou elaborando propostas didáticas em que os/as alunos/as
possam provar o método de pesquisa em História. No decorrer das aulas,
por exemplo, o professor/a pode e deve levantar questionamentos acerca de
“como sabemos isso que está no livro”, ou ainda, em relação à produção das
fontes que subsidiaram tal conhecimento que nos chega “pronto”: quem escreveu
dado documento, com que finalidade? Por que foi salvaguardado, por que foi
destruído? Que leituras ao longo da História se fizeram deste documento? Como
o/a historiador/a os acessou e que relação mantém com este tema ou com o
lugar da produção da fonte? Que momento histórico vivia a sociedade de origem
do documento? E sob que contexto ele foi utilizado e subsidiou a escrita deste
conhecimento que então estudamos?

Finalmente, inserir as práticas de pesquisa no contexto escolar pode também


ser uma proposta avaliativa interessante. Conduzir os/as alunos a elaborar
uma hipótese acerca do presente em relação ao passado, a levantar fontes de
consulta, analisá-las de forma crítica, através da realização de um questionário,
a elencar um produto final que expresse os resultados alcançados parece-nos
um excelente método demonstrativo de como se dá a produção do conhecimento
em História. No campo da visualidade, crianças e adolescentes demonstram
enorme interesse por fotografias antigas da cidade, por obras de arte figurativas,
por cartazes, charges e Histórias em Quadrinhos, por exemplo. São exímios em
reelaborar alguns desses produtos visuais, com seus traços característicos da
época, mas como suas lógicas próprias.

3 PROPOSTAS DIDÁTICAS COM


RECURSOS IMAGÉTICOS
Os recursos imagéticos ou visuais no tempo presente são vastos e estão em
grande medida à disposição do/a professor/a que queira inseri-los no processo de
ensino-aprendizagem. Diversas seriam as possibilidades de abordagem de um
tema ou processo em História, a partir do aporte conferido pelas imagens fixas
ou em movimento. Nossa intenção neste último apartado da disciplina Linguagem
Visual na Historiografia é oferecer modelos propositivos à incorporação visual nos
estudos de História no contexto escolar. Para isso elencamos cinco tipologias de

132
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

produtos visuais, ou conjuntos de produtos, em relação aos quais construímos


fichas técnicas que informam sobre o conteúdo da aula, a série a que se destina,
os objetivos almejados, o questionário a orientar o/a professor/a na condução
dos debates e uma proposta avaliativa. Em alguns casos, sugerimos leituras que
podem contribuir para qualificar a abordagem docente em relação ao produto
utilizado.

Como parece evidente, as propostas que seguem não são estáticas e


podem ser alteradas conforme o perfil da turma, as didáticas já provadas, os
conhecimentos prévios etc. Seria interessante que, para cada categoria de
produtos visuais ou audiovisuais vocês, que cursam esta disciplina, pudessem
elaborar a sua própria proposta: elencar outros filmes, fotografias, pinturas e
charges, por exemplo, para debater temáticas diferentes daquelas elencadas a
seguir. As imagens dos produtos visuais serão reproduzidas, nessas propostas,
com duas finalidades: a de contribuir para a ampliação dos conhecimentos visuais
de vocês; e a de permitir apreciar as propostas com as respectivas referências
visuais. Finalmente, cabe destacar que talvez tenhamos nos desviado daqueles
produtos visuais mais amplamente difundidos no âmbito do ensino de História;
considerando que o livro didático também aporta propostas visuais, tratamos de
oferecer análises alternativas àquelas que podem já constar no material de apoio
docente.

3.1 CINEMA
Ficha técnica
 Ano: 2º ano do Ensino Médio
 Tema: marginalização social no Brasil
 Produto: cinema
 Sugestões: 1) Cinco vezes favela (1962). Dir.: Marcos Farias, Miguel
Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman;
2) 5x favela – agora por nós mesmos (2010). Dir.: Manaíra Carneiro,
Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu
Barcelos.
 Objetivo: realizar uma leitura crítica das representações da
marginalização social no Brasil em dois tempos.
 Questionário: em que contextos históricos estas obras foram produzidas?
Que lugares sociais ocupam os que realizaram essas produções? Há
estereótipos representados? Há personagens ou relações idealizadas?
Quais são as causas da marginalização social no Brasil? Quais são os
obstáculos para a superação desta condição? Quais os efeitos técnicos,
visuais ou sonoros utilizados para expressar a angústia, a tristeza e o
desespero nas duas obras? Por que o cinema brasileiro aborda a favela

133
Linguagem Visual na HistoriograFia

com tanta frequência? Qual é o espaço ocupado por ela no imaginário


social? Os filmes contribuem para reforçar este imaginário?
 Proposta avaliativa: exposição oral coletiva. Em duplas, os/as alunos/
as devem atentar em ambas as produções para as diferenças e
aproximações entre as temáticas, as abordagens e os recursos
utilizados; devem conseguir descrever o espaço da favela num e
noutro filme; apontar como está formado o grupo familiar e comunitário
retratado; analisar criticamente o modo de vida das pessoas, sobretudo
em relação à violência; relacionar a formação destes espaços com
contextos sócio-históricos específicos; refletir sobre as possibilidades
de superação da sua condição social; propor maneiras de resolver os
conflitos apresentados.

Na abordagem de temas sociais, a favela ocupa um lugar de destaque.


O modelo de favela tipicamente brasileiro, situado nos morros das granddes
cidades, é palco para a construção de imaginários acerca da pobreza, da
marginalização, da figura do excluído social como um “outro” oposto àqueles
que habitam a “planície”. Para quem não é morador de favela, ela pode significar
perigo, criminalidade e violência ou o lugar do desconhecido. Para quem a habita,
engloba uma comunidade com as suas especificidades, onde residem famílias,
trabalhadores e outros tipos sociais, gente com distintos perfis, como em qualquer
lugar. Seja qual for o caso, a temática social se deixa observar na favela de
forma privilegiada. O cinema nacional analisou-a em diferentes momentos, que
resultaram em imagens que permitem abordar questões como as moradias,
o trabalho, as vivências da infância, as sociabilidades juvenis, as relações
comunais, os papéis sociais pautados nas relações de gênero, as dificuldades,
as solidariedades, enfim. Pobreza e marginalização social são temas transversais
que costumam ser trabalhados de forma interdisciplinar, junto a conteúdos
situados no meado do século XX em diante (ou na passagem do século XIX para
o XX).

Abordar a temática da marginalização social através de duas produções


cinematográficas brasileiras, separadas temporalmente por 50 anos, apresenta
as seguintes vantagens para a análise da questão social no Brasil: permite que
se discuta a origem e as motivações da colocação de dado perfil social à margem
da sociedade, bem como alguns resultados desse modelo de não gestão da
pobreza; elucida o aspecto dinâmico da favela, que não é um depósito de gente
marginalizada, estática, mas uma comunidade que estabelece relações com a
polícia e com o crime organizado diferentes daquela experenciada pelos demais
cidadãos, por exemplo; e como a percepção sobre a favela vem sendo alterada
pela reivindicação desse espaço pelos seus moradores e suas práticas culturais.
A partir dos eixos temático, histórico e formal, propomos analisar como o cinema

134
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

brasileiro abordou a exclusão social e a miséria em dois momentos históricos.

Como produtos que serão submetidos a um questionário, o qual, por sua


vez, está pautado pelos objetivos da aula, é necessário que o/a professor/a situe
Cinco vezes favela e 5x favela – agora por nós mesmos, dentro da produção
cinematográfica brasileira: o primeiro pertencendo ao movimento designado de
Cinema Novo e o segundo, ao Cinema de Retomada. Antes de abordar esses
momentos da história do cinema nacional, destacamos a sugestão de que os
filmes sejam reproduzidos apenas em parte, no caso, uma parte de cada um
deles, seguindo a ordem cronológica (primeiro o de 1962, depois o de 2010).
Em que pese relações evidentes entre eles, o segundo filme não se trata de um
remake, mas de uma visão que mantém com a anterior um jogo intertextual de
referências, além de transitarem em um mesmo universo social. Ambos os filmes
são compostos por cinco “capítulos” , dirigidos por diretores diferentes e que
abordam temas igualmente distintos.

Uma opção interessante seria elencar um capítulo inteiro de cada uma das
produções. Couro de gato (de 1962) e Arroz com feijão (de 2010), por exemplo,
são capítulos que abordam dilemas morais vividos por personagens infantis. Couro
de gato faz uma etnografia da prática da caça a gatos de rua, com a aproximação
do Carnaval, para a confecção de instrumentos de percussão. Isso gerava algum
recurso econônimo para as crianças, que se divertiam ao fazê-lo. No enredo, um
dos meninos furta um gato de uma mansão, afeiçoando-se a ele. No entanto,
acoçado pela fome, acaba vendendo o felino ao fabricante de instrumentos,
dotando ainda mais a história de um aspecto triste. Feijão com arroz, por sua
vez, conta a história de Wesley, um menino que deseja “presentear” o pai com
um frango no dia de seu aniversário. Tendo ouvido a reclamação paterna de que
em casa só se comia arroz com feijão, Wesley realizou diversas atividades, sem
poder, no entanto, adquirir o frango almejado, roubando-o com o auxílio de seu
amigo Orelha. O tom mais divertido dessa história em relação à Couro de gato
resulta também no acirramento de seu teor moral: se na anterior vigora a lógica
da privação, a “explicar” o delito, aqui prevalece a ideia de que o ilícito é errado
mesmo que a intenção seja nobre. Trata-se de histórias que permitem pensar as
formas de viver a infância na favela, suas práticas de sobrevivência e o modo
como a materialidade da vida vai construindo padrões de conduta que articulam
frustração, privações e ilegalidade.

O movimento do Cinema Novo originou-se sob duas influências oriundas


do cenário internacional, que aqui se evidenciaram em meados dos anos 1950.
A primeira, aquela exercida pelo cinema hollywoodiano: fosse no sentido de
reproduzir o seu glamour, a sua estética, ou submetê-lo à crítica paródica, a
produção nacional acompanhava de perto o cinema dos Estados Unidos porque
ele era entendido como o caminho a ser seguido para o nosso desenvolvimento

135
Linguagem Visual na HistoriograFia

na sétima arte (SANTOS, 2011). A outra influência foi a produção do chamado


Neorrealismo italiano, uma proposta oposta àquela de Hollywood: produções de
baixo orçamento, pautadas pelo estilo documentário, porém ficcionais, filmadas
em locações reais, com o emprego de atores e de não atores etc. O Neorrealismo
emprestou aos cineastas brasileiros uma espécie de atitude moral na sua
representação da realidade social tal como se apresentava, com o predomínio da
ética sob a técnica.

De acordo com Roberto Elísio dos Santos (2011), o acirramento das posições
políticas oriundas da Guerra Fria marcou a produção cinematográfica do início dos
anos 1960. No Brasil, o Cinema Novo surgiu como um movimento estético e
político que se caracterizou pela denúncia da miséria e das desigualdades
sociais e regionais do país. Seus membros buscaram construir uma
proposta artística que fosse nacional, popular e engajada na transformação
da sociedade. Deste período e proposta resultam algumas das obras mais
importantes do cinema nacional, tais como Deus e o Diabo na terra do Sol (1964),
de Glauber Rocha, e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. A marca
dessa produção – que à exceção de Cinco vezes favela traz como cenário a
região mais pobre do Brasil, o Nordeste – foi o desenvolvimento de uma “Estética
da Fome”, uma proposta de emprego da realidade não produzida para dar cabo
da representação visual e estética do povo brasileiro, que em sua grande maioria
era assediado pela violência enquanto manifestação cultural da pobreza e das
privações.

O movimento durou, no entanto, apenas alguns anos. Com o advento


do regime militar, da censura e da perseguição política, inclusive em suas
manifestações culturais, como sabemos, o movimento dissolveu-se, tomou outros
rumos. A fim de controlar a produção cinematográfica nacional e mantê-la sob
vigilância, a ditadura dos militares criou a Embrafilme, uma entidade de fomento
responsável por financiar durante duas décadas o cinema nacional. No período
da redemocratização, em meados da década de 1980, a entidade agonizava,
tendo de fato a indústria do cinema no Brasil se extinguido. Por essa razão o
movimento em torno do cinema nacional, na segunda metade da década de
1990, inspirado pela “visão de mercado” decorrente da postura neoliberal vigente
nos anos 1990 foi designado “de retomada”. Nele tiveram destaque corporações
estabelecidas no âmbito das comunicações, como o grupo O Globo, mas também
se evidenciaram experiências regionais em menor medida ditadas pelo apelo
comercial ou mercadológico. De qualquer forma, a permanência das questões
sociais na produção do Cinema de Retomada foi evidenciada, resultando, por
exemplo, em obras aclamadas como Cidade de Deus (2002) e Carandiru (2003),
e, mais recentes, como o polêmico Tropa de Elite (2007) e 5x favela – agora por
nós mesmos (2010).

136
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

Enquanto síntese dos aspectos temáticos, temos que ambas as produções


têm a favela e suas relações como objeto central. O primeiro filme, no entanto,
aborda-a desde uma perspectiva externa: a produção foi realizada por membros
de uma classe média intelectualizada, cujo olhar para a população marginalizada
é crítico, denunciativo, triste, afinal. Já o segundo filme foi produzido por membros
da própria comunidade, embora orientados por cineastas e atores do Cinema
Novo. Desse olhar de dentro resultaram histórias mais alegres, por um lado –
demonstrando que a condição social marginal não elimina o riso e as traquinagens
infantis, por exemplo, que são inerentes à condição humana – e complexas, por
outro lado – evidenciando o contínuo acirramento das questões sociais no Brasil
e a consequente complexificação das relações entre favela e sociedade.

O eixo histórico contribui para a compreensão dessas diferenças de


abordagem. Enquanto o Cinema Novo encarava o cinema como uma forma
de arte essencial para promover as transformações sociais desejadas pelos
grupos progressistas, no século XXI, a sétima arte serve tanto ao entretenimento
quanto à reflexão, sendo utilizada para dar voz a grupos cujas experiências são
costumeiramente narradas a partir da concepção que outros atores sociais têm
sobre eles. As diferenças dos eixos histórico e temático se expressam também no
eixo formal. Em que pese a linearidade de ambas as narrativas e o predomínio
de uma estética documental, o tom e a apreciação dos filmes são distintos entre
si: no primeiro, prevalece a seriedade dotada pela filmagem em P&B e o aspecto
precário e angustiante da vida na favela; no segundo, o humor alivia o peso da
pobreza ao mesmo tempo em que as cores parecem destacar a complexidade
das relações e das tensões.

Atividade de estudo: Os acadêmicos devem assistir a outras


produções que abordem temáticas afins, porém com maior
disseminação entre as mídias, por exemplo, os filmes Cidade de
Deus (2002) e Pixote (1987). A partir de uma síntese dos temas e
abordagens do filme, o/a professor pode criar um roteiro que vincule
os conhecimentos prévios dos/as alunos/as aos debates que deseja
realizar com base nos audiovisuais sugeridos nesta atividade (Cinco
vezes favela e 5x favela – agora por nós mesmos. Façam, a exemplo
da ficha técnica anteriormente reproduzida, questionamentos
norteadores para a introdução da abordagem sobre marginalização
social no Brasil.

137
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 1 – COURO DE GATO, CINCO VEZES FAVELA (1962)

FONTE: <https://guia.folha.uol.com.br/cinema/2015/04/1620775-filmes-raros-de-
movimento-iconico-sao-exibidos-em-sessoes-gratis.shtml>. Acesso em: 21 jan. 2020.

FIGURA 2 – ARROZ COM FEIJÃO, 5X FAVELA –


AGORA POR NÓS MESMOS (2010)

FONTE: <https://www.flickr.com/photos/5xfavela/4741170808/>. Acesso em: 21 jan. 2020.

138
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

3.2 CHARGES
Ficha técnica
 Ano: 3º ano do Ensino Médio
 Tema: Ditadura Militar
 Produtos: charges
 Sugestões: no site <https://www.chargeonline.com.br/> pode-se realizar
buscas por charges organizadas por autoria e data.
 Objetivo: analisar o período da ditadura militar brasileira segundo fatores
econômicos, sociais, culturais e políticos; problematizar a memória
acerca do período e os argumentos tendentes ao revisionismo do
conhecimento histórico sobre ele.
 Questionário: quais elementos são responsáveis pelo humor em cada
uma das charges reproduzidas? De que forma poderíamos sintetizar
o que foi a ditadura militar em termos políticos, através das charges
reproduzidas? Qual é a relação entre arquivos, ossadas e a ditadura
militar? O que foram as Comissões da Verdade e por que elas foram
instituídas? Por que há escárnio em relação ao ímpeto dos militares em
“virar essa página da História”? Como explicar os números oriundos do
“milagre econômico”? Por que a Anistia “à brasileira” dá lugar atualmente
a um sentimento de injustiça em relação aos civis e de privilégio em
relação aos militares? O que poderia significar que uma parte da
população brasileira esteja a requisitar uma intervenção militar “avulsa”
no tempo presente?
 Proposta avaliativa: como se trata de um tema recente da História do
Brasil, para o qual há muita documentação disponível, há igualmente
muitos elementos a serem trabalhados: os personagens, períodos,
principais características, acontecimentos etc. Estas informações são
relevantes para a compreensão de fenômenos sociais recentes, mas
também costumam ser objeto dos exames de admissão para o Ensino
Superior. Por isso sugerimos que a avaliação desse tema seja a
construção de um mapa mental individual, material de estudo elaborado
pelos próprios alunos que permite a incorporação de informações e
nuances contínuas, além daquelas abordadas em aula.

O humor é um campo de atuação histórico da crítica social. Através da veia


humorística o teatro zomba das convenções sociais, a televisão faz chacota com
a política, o stand up parodiza personagens e acontecimentos da vida pública.
Uma das manifestações mais populares do humor no Brasil são as charges,
veiculadas pela mídia impressa periódica nacional desde o final do século XIX.
Atualmente sua produção ainda se dá nos jornais impressos, mas vem cada
vez mais sendo apropriada pelas mídias eletrônicas, mais ágeis na produção e

139
Linguagem Visual na HistoriograFia

difusão de conteúdos e mais adaptadas à dinâmica da vida moderna. As charges


se caracterizam por uma produção visual cujo conteúdo é político, crítico e
humorístico, que ilustra uma percepção da realidade baseada em algum fato novo
recente, por sua vez incluído em um fenômeno ou contexto mais amplo – uma
declaração polêmica de parte de uma autoridade, uma saia justa vivida por um
dirigente de futebol, por exemplo.

Para os estudos históricos, as charges são chaves de apreensão da


realidade, de uma realidade tal qual se mostra em perspectiva crítica. Nos
últimos dez anos, a quantidade de charges que se produziu acerca da ditadura
militar demonstra como o tema está envolto em polêmicas, sendo sua memória
disputada por grupos sociais que a vivenciaram desde diferentes lugares. O
Estado brasileiro tem sido, ao mesmo tempo, alvo e objeto desse tipo de críticas
humoradas; ao passo que se decidiu pela abertura de investigações acerca das
violências, torturas e assassinatos cometidos pelos gestores do Estado ditatorial,
entre 1964 e 1985, os responsáveis por esses crimes não foram submetidos a
sanções, como ocorreu em outros países latino-americanos. Temas como a
Anistia, as Comissões da Verdade, a censura e as contranarrativas que colocam
os militares no lugar de salvadores ou inocentes, ao invés de perpetradores de
violências, foram os mais abordados por esse tipo de produção visual.

Em relação ao lugar de produção das charges, seria interessante abordar


com os/as alunos/as a questão da autoria, para além do veículo no qual a imagem
é reproduzida. A maior parte dos chargistas e ilustradores brasileiros trabalha com
contrato de liberdade produtiva, já que as corporações midiáticas ressaltam que
as colunas assinadas não refletem necessariamente a opinião dos proprietários/
editores dos jornais. Assim, um jornal de orientação liberal pode ter entre seus
colaboradores tanto um chargista politicamente identificado como conservador,
como um de viés comunista, por exemplo, sem que isso signifique que o veículo
compartilha dos sentimentos e das impressões desses colaboradores. No entanto,
parece necessário pontuar que as perspectivas críticas em relação à ditadura
militar e às narrativas revisionistas são um consenso entre setores progressistas
de direita, de centro e de esquerda, já que estão sustentadas por evidências
históricas e documentais inquestionáveis (Figura 3)

À medida que a ditadura militar se encontra entre os temas principais dos


revisionismos históricos – junto ao Nazismo e aos fascismos – o/a professor/a,
ao abordar esse período, deve saber lidar com a contraditoriedade que o tema
suscita no tempo presente. Recorremos muitas vezes a análises maniqueístas
da História com vias a salvaguardar uma dada concepção acerca de uma
experiência do passado. Um exemplo disso seria demonstrar como o período da
ditadura foi ruim na sua totalidade, a fim de não deixar lugar a dúvidas quanto
à impossibilidade de revisitá-lo positivamente. Ora, mesmo quando lidamos com

140
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

períodos históricos marcados por grandes tragédias, como as guerras ou as


catástrofes ambientais, as pessoas que ali viveram seguiram com as suas vidas,
estando esse viver certamente permeado por uma infinidade de sentimentos que
não cabem no “bom ou ruim”. Conseguir distinguir processos de crescimento,
desenvolvimento ou que geraram resultados satisfatórios não é incompatível com
a reiteração da repressão vivida no período, da censura, do cerceamento das
liberdades e das práticas de extermínio de alguns grupos por parte do Estado
ditatorial.

Outro problema para o qual as charges comportam valiosas contribuições


– por apresentarem um cenário complexo a partir de uma única imagem e sua
breve narrativa – é a comparação que se faz atualmente entre os números do
crescimento do país durante o regime militar e as práticas autoritárias, que alguns
grupos têm associado numa relação de condicionalidade. Ou seja, desqualificando
os grupos que se mobilizaram em torno da retomada da democracia, alguns
setores sociais buscam legitimar o uso da violência como condição através da
qual se conquistaram números positivos, por exemplo, na economia, durante o
período do chamado Milagre Econômico (1969-1973). No entanto, assim como
esse dado é falacioso, também o “milagre” fora desmentido e “explicado” por
economistas. De qualquer forma, visões de conjunto do que foram os anos sob
o comando dos generais-presidentes são necessárias para que se compreenda
o projeto de país levado a cabo pela ditadura e para que se desenvolva um olhar
crítico em relação ao chamamento das forças armadas a atuar em questões
políticas ou de segurança (Figura 4).

Faz-se de suma importância, portanto, ao abordar o período da ditadura


militar, situá-lo enquanto momento histórico de gestão do Estado brasileiro pelas
forças armadas, que corresponde ao recorte de vinte e um anos, sumariados da
seguinte forma: regime orientado discursivamente à oposição do comunismo;
conservador nos costumes; vinculado à setores da Igreja Católica, civis e
empresariais que promoveram sua ascensão; regido por apelos ao nacionalismo,
à construção de obras que simbolizassem o “Brasil Grande”, mas empenhado
na sua abertura ao capital estrangeiro; utilizou a censura, a tortura, a repressão
e outras práticas que feriam as liberdades individuais como instrumentos de
controle social; fortaleceu setores empresariais através de subsídios, incentivos
e isenções que contribuíram para o sentimento de que a economia crescia como
em um “milagre”; operou a precarização das condições de vida dos trabalhadores
mais pobres através da alteração das modalidades de pagamento de benefícios
por tempo de serviço; concentrou riquezas dos cofres públicos sob a justificativa
de “fazer crescer o bolo para depois repartir”; arquitetou instituições e programas
de auxílio e assistência social que não davam conta de abarcar mais do que
uma pequena parte das famílias que a cada ano ingressavam nas fileiras da
marginalização social etc.

141
Linguagem Visual na HistoriograFia

Importa que abordemos com os/as alunos o contexto de produção da Anistia


como um novo pacto social, o qual possibilitou a saída dos generais do cenário
político e a retomada da democracia representativa. No entanto, sob condições
históricas desfavoráveis e no ímpeto de colocar um fim no período ditatorial,
acedeu-se a uma proposta de Anistia favorável aos militares, perpetradores
de violências institucionalizadas pela máquina do Estado, que tiveram seus
crimes “perdoados”. A existência de grupos organizados, armados ou não, que
se levantaram contra a ditadura e que também seriam perdoados pelas ações
cometidas foi a justificativa da Anistia ampla, geral e irrestrita. Mas, mensurando
as práticas de ambos os lados, fica claro que eles não eram equivalentes, seja
em quantidade, seja em força, o que justifica o sentimento de injustiça de parte
das inúmeras famílias cujos membros “desapareceram” durante a ditadura e que
ainda aguardam o reconhecimento de que elas foram, de fato, assassinadas
pelas forças a cargo do Estado (Figura 5).

As conclusões das comissões da verdade criadas em todo Brasil durante a


segunda década do século XXI, por exemplo, são fontes interessantes de serem
abordadas em complementariedade às charges. Os testemunhos coletados,
cruzados com fontes documentais de diferentes tipos que sobreviveram a sua
sistemática destruição por parte das Forças Armadas possibilitaram a construção
de dados confiáveis em relação ao número de desaparecidos, mortos, torturados
e a sua vinculação ou não com grupos de resistência (Figura 6). Seria interessante
que o/a professor/a discutisse o mérito da existência dessas organizações, já que
a liberdade é um dos preceitos fundamentais dos Direitos Humanos. Ainda mais
importante seria situar a repressão, a censura e os desaparecimentos enquanto
práticas oriundas das forças do Estado que não se voltaram exclusivamente
àqueles que estiveram envolvidos com atividades “subversivas” - conforme eram
designadas as organizações contrárias ao regime.

Atividade de estudo: Seria interessante que os acadêmicos


pudessem elaborar o próprio mapa mental acerca do conteúdo
abordado: a Ditadura Militar. Esse esboço serve tanto de modelo “do
professor” para avaliar aquele confeccionado pelos alunos, quanto
síntese que pode orientar a aula sobre a temática. Outra proposta
seria a realização de uma pesquisa que mapeie quais são os temas
mais recorrentes no universo social acerca da Ditadura; quais são os
veículos que abordam a temática de forma crítica; quais sugerem a
sua relativização; como as charges aparecem e com que frequência
em relação a essa temática etc. De forma a se organizar a totalidade

142
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

dos acadêmicos, para que não repitam as mesmas pesquisas, os


resultados podem ser compartilhados. Dessa atividade pode resultar
ainda um pequeno acervo coletivo de charges e seu lugar de
produção para serem trabalhadas em sala de aula.

Sugestão de leitura: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre


o golpe de 1964 e a Ditadura Militar. Revista Brasileira de História,
v. 24, n. 47, pp. 29-60, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/
pdf/rbh/v24n47/a03v2447.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2020. Nesse
texto o historiador expõe algumas das mais importantes correntes
historiográficas acerca da ditadura, confrontando essa produção em
relação a questões como consenso, censura e repressão política.

FIGURA 3 – O NEGACIONISMO DEMAGÓGICO


DOS MILITARES E SEUS APOIADORES

FONTE: <https://descomplica.com.br/artigo/ditadura-4-charges-
que-te-ajudam-a-entender-a-abertura-politica-nos-governos-
geisel-e-figueiredo/430/>. Acesso em: 21 jan. 2020

143
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 4 – TEMPO PRESENTE E DISPUTAS DE


MEMÓRIA EM RELAÇÃO À DITADURA MILITAR

FONTE: <https://www.otempo.com.br/charges/charge-o-
tempo-26-09-2017-1.1524296>. Acesso em: 21 jan. 2020.

FIGURA 5 – AS COMISSÕES DA VERDADE NO BRASIL

FONTE: <https://descomplica.com.br/artigo/ditadura-4-charges-
que-te-ajudam-a-entender-a-abertura-politica-nos-governos-
geisel-e-figueiredo/430/>. Acesso em: 21 jan. 2020.
144
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

FIGURA 6 – A CONTROVERSA LEI DA ANISTIA NO BRASIL

FONTE: <https://www.ocafezinho.com/2016/12/01/grupo-que-financiou-ditadura-
adquire-distribuidora-de-gas-da-petrobras/>. Acesso em: 21 jan. 2020.

3.3 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


Ficha técnica
 Ano: 9º ano do Ensino Fundamental
 Tema: Guerras Mundiais
 Produtos: Histórias em Quadrinhos (HQs) + Cinema
 Sugestões: 1) ORIGENS DOS HERÓIS. Rio de Janeiro: Ebal, n. 03. jul./
ago. 1975 (quadrinhos protagonizados pela Mulher Maravilha, Batman e
Capitão América); 2) Mulher Maravilha (2017). Dir.: Patty Jekins (cinema).
 Objetivos: analisar de forma crítica as duas guerras mundiais e o período
entre guerras, problematizando parte da produção cultural oriunda
do período e aquela que o aborda: os simbolismos, os instrumentos
de persuasão e as narrativas vencedoras irradiadas/inerentes às HQs
e ao cinema que as apropriou. Atentar para os desdobramentos dos
personagens ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI,
trajetórias que abordam visões, por um lado, acerca do lugar ocupado
pelos Estados Unidos nesses processos históricos, e por outro, sobre o
cinema de massas produzido no país.
 Questionário: quais fenômenos podemos elencar como decisórios para
a consolidação da hegemonia norte-americana no século XX? Qual é a

145
Linguagem Visual na HistoriograFia

relação entre a escalada estado-unidense no panorama internacional e a


Primeira Guerra Mundial? Que acontecimentos marcaram cada uma das
Guerras Mundiais e quais foram as suas características? Quais questões
prevalecem na memória histórica contemporânea como determinantes
para o estopim da Primeira Guerra, em 1914, e da Segunda Guerra, em
1939? Há traços de continuidade entre estas questões? De que maneira
os super-heróis criados pelas HQs norte-americanas contribuíram para a
consolidação de uma perspectiva da História em que os EUA possuem
papel protagônico? Como podemos relacionar a alteração do cenário
em que se passa o filme da Mulher Maravilha (2017) e os quadrinhos
originais da personagem (1942)? Que problemas podemos evidenciar na
utilização isolada seja das HQs, seja do cinema da franquia Marvel, para
a compreensão dos períodos históricos abordados por esses produtos?
 Proposta avaliativa: Pode-se lançar mão justamente da grande
quantidade de conteúdos sobre os super-heróis, assim como de
comentários e críticas dessas obras disponíveis em diversos tipos de
mídia, para elaborar um roteiro de estudos dirigidos com questões e
atividades que, através do auxílio de textos e outros materiais de apoio
indicados pelo/a professor/a, possam conduzir uma análise das HQs e
suas releituras fílmicas. Esse instrumental avaliativo tem a vantagem
de estabelecer objetivos bastante definidos ao mesmo tempo em que
consegue conservar um caráter “aberto”, com pesquisas e utilização de
outras fontes e produções que sejam da preferência ou do conhecimento
dos/as alunos/as.

Por se tratar de produções visuais diversas, que foram criadas há quase um


século e ainda seguem sendo produzidas e reproduzidas até os dias de hoje, as
HQs como recurso didático nas aulas de História se inserem em dois sentidos:
como fonte através da qual podemos conhecer aspectos do período histórico em
que o quadrinho foi criado e como testemunho das leituras que os fenômenos
históricos em questão suscitaram em períodos posteriores. Nesse sentido
podemos utilizar, por exemplo, as HQs de super-heróis para abordar conteúdos
como o período que envolve as guerras mundiais e, conforme temos proposto,
de maneira aliada a outro tipo de linguagem – o cinema – refletir sobre o lugar
ocupado no tempo presente por temas como imperialismo, nazismo, socialismo,
capitalismo, dentre outros.

146
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

FIGURA 7 – MULHER MARAVILHA ATRAVESSA AS TRINCHEIRAS


DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, EM FILME DE 2017

FONTE: <https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/mulher-maravilha-se-
esconde-na-trincheira-em-nova-foto/>. Acesso em: 21 fev. 2020.

Tomemos a personagem da Mulher Maravilha, que foi originalmente criada


no contexto da Segunda Guerra Mundial. Se as fontes históricas utilizadas em
sala de aula forem as primeiras HQs da personagem, elas remeterão a esse
período. No entanto, quando da sua adaptação para as telas de cinema em
2017, os/as produtores/as resolveram modificar a trama para a Primeira Guerra
Mundial, com a justificativa de que tal cenário seria mais semelhante ao momento
global atual. Essa perspectiva vai ao encontro das ideias de pensadores como
o filósofo Alan Badiou, que no mesmo ano concedeu uma entrevista em que
comparava a geopolítica atual ao contexto da véspera da Primeira Guerra Mundial
(veja-se a seguinte matéria: Geopolítica atual lembra véspera da Primeira Guerra
Mundial, Folha de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.
br/ilustrissima/2017/04/1875585-geopolitica-atual-lembra-vespera-da-primeira-
guerra-mundial-diz-filosofo.shtml>. Acesso em: 21 fev. 2020).

Temos aqui não apenas uma possibilidade de abordar um tema específico em


História, mas ao mesmo tempo nos aproximarmos de questões como geopolítica
contemporânea (em diálogo com a disciplina de Geografia). Sobre o filme em si,
há a interessante representação de alguns elementos que marcaram o conflito em
questão, com destaque para a guerra de trincheiras, oportunidade ímpar para que
os/as alunos/as criem uma imagem mental sobre algo tão abstrato. Além disso,
o enredo se desenrola através de uma suposta perda da fé na humanidade por
parte da heroína. A partir dessa reflexão, podemos conduzir uma interpretação da
Primeira Guerra Mundial através da leitura que o historiador Eric Hobsbawn (1995)

147
Linguagem Visual na HistoriograFia

faz acerca do período. Para Hobsbawn, esse fenômeno histórico representou o


fim da Belle Époque, período de crença no progresso universal e de otimismo
em relação ao futuro, que marcou o final do século XIX e o início de uma Era de
Extremos, com as grandes guerras e conflitos radicais que se desdobrariam ao
longo do século XX.

As HQs do Batman e do Superman, por sua vez, permitem abordar a Crise


de 1929 e a Grande Depressão econômica vivenciada no período entre guerras,
momento em que esses personagens foram originalmente criados. O Superman
pode ser utilizado para discutir a descrença no sistema capitalista e a tentativa,
em contraposição, de construção de um imaginário de solidez da economia
dos EUA; certamente uma solidez mais almejada do que disponível naquela
ocasião, mas que também exercia a função de recuperar a autoestima dos norte-
americanos. Já o personagem Batman é construído a partir dos dilemas entre
desigualdade social e criminalidade, especialmente das divergentes perspectivas
de compreensão da relação entre indivíduo e sociedade, ensejando um diálogo
interdisciplinar com a Sociologia – no caso de o tema ser trabalhado no Ensino
Médio.

Até que ponto Batman é um simples justiceiro – à margem da lei – que pune
outros criminosos e até que ponto é um filantropo milionário que compreende
os condicionamentos negativos a que estão submetidas as pessoas menos
abastadas ou até excluídas da sociedade, é um dilema que perpassa o
personagem em várias HQs, mas também as adaptações do personagem para
o cinema, como na trilogia dirigida pelo cineasta Christopher Nolan ou no filme
Batman Vs. Superman (2016). Em termos de currículo escolar pode-se trabalhar
ainda, nesse sentido, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social como
alternativa ao liberalismo econômico, assim como o desmantelamento neoliberal
contemporâneo, tema cuja abordagem pode ser realizada através de recortes do
filme Coringa (2019).

148
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

FIGURA 8 – BATMAN E CORINGA EM “A PIADA MORTAL”


(2011), DE ALAN MOORE E BRIAN BOLAND

FONTE: <http://baixarquadrinhos.com/Hq-Quadrinho/ler-hq-online-
a-piada-mortal-alan-moore/>. Acesso em: 21 fev. 2020.

Em relação ao Nazifascismo e à Segunda Guerra Mundial, as HQs do Capitão


América representam um dos materiais mais privilegiados. Historicamente,
o próprio herói nasce com a função de ser também uma propaganda de
guerra durante o conflito contra os nazistas, muitas vezes representados pela
organização fictícia da Hydra. No entanto, o mais interessante de Capitão
América é o seu caráter reflexivo propiciado pela reprodução continuada dos
mesmos personagens ao longo da história. No filme O primeiro vingador (2011),
por exemplo, o super soldado aprimorado em laboratório é inicialmente utilizado
apenas nas campanhas de alistamento, até que um dado acontecimento o
coloca de fato na guerra. Esse é um aspecto em relação às HQs que deve ser
explorado em sala de aula, em especial essa do Capitão América: elas podem ser
concebidas como fonte histórica, mas como uma fonte que requer um questionário

149
Linguagem Visual na HistoriograFia

crítico na medida em que seu surgimento está ligado a todo um esforço de guerra
que envolvia inclusive propaganda junto à população civil e justificativas perante a
comunidade internacional.

O exposto acima não significa que haja uma correlação direta e contínua
entre a indústria cultural e os interesses de Estado. Até recentemente, um link
no site oficial da Hydra, mantido pela editora Marvel, conduzia o/a internauta
diretamente para a página oficial do presidente Donald Trump, insinuando que o
inimigo/nazista agora seria o próprio líder dos EUA (ver: Marvel alfineta Trump em
ação promocional da saga, Jovem Nerd, 2017. Disponível em: <https://jovemnerd.
com.br/nerdbunker/secret-empire-marvel-alfineta-trump-em-acao-promocional-
da-saga/>. Acesso em: 21 fev. 2020). Da mesma forma, as últimas HQs do Capitão
América, um dos super-heróis que melhor representa o patriotismo estadunidense,
vem levantando questionamentos sobre uma suposta identificação com o ideário
nazista (ver a seguinte matéria: Capitão América sempre foi um vilão, confirma
Marvel Comics, Zero Hora, 2017. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.
br/cultura-e-lazer/noticia/2017/04/capitao-america-sempre-foi-um-vilao-confirma-
marvel-comics-9777492.html>. Acesso em: 21 fev. 2020).

Em suma, as possibilidades de utilização das HQs nas aulas de História,


em particular a dos super-heróis, são vastas. Elencamos aqui algumas
possibilidades, mas o número de elementos que não foram mencionados, seja
pela quantidade ou pela longevidade das obras, seja pela abrangência de temas
e contextos históricos que os envolvem, são praticamente infinitos. Cabe ressaltar
que, em termos interdisciplinares, pode-se estabelecer ainda uma rica articulação
com a disciplina de Filosofia e a temática da indústria cultural, por exemplo.
Interdisciplinarmente, ainda, um paralelo com a cultura de massa característica
de períodos como a Era Vargas certamente proporcionará significativas reflexões
sobre a conjuntura política e econômica da sociedade brasileira e mundial de
meados do século XX, se a aula for conduzida de maneira crítica em relação a
essa produção.

150
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

FIGURA 9 – HITLER E O CAPITÃO AMÉRICA EM QUADRINHO DE 1941

FONTE: <https://www.torredevigilancia.com/o-nazismo-em-quadrinhos-
conheca-otimas-hqs-sobre-a-segunda-guerra/>. Acesso em: 21 fev. 2020.

Os acontecimentos que constituem o período 1914-1945 – as duas guerras


mundiais e o período entre guerras – estão entre os mais importantes para a
compreensão do mundo na segunda metade do século XX. São fenômenos que
abrangem fatores econômicos, políticos e culturais, e que se vinculam à noção
de geopolítica, absolutamente transformada pelas guerras. Seria interessante
que vocês, acadêmicos, pudessem fazer uma “descrição” do mundo antes
de 1914 e depois, pontuando como ele se encontrava reconfigurado no pós-
1945. Esse exercício objetiva que construamos uma síntese didática do cenário
internacional que subsidiará a preparação das aulas e do questionário com o qual
as conduziremos acerca do período.

Por mais preparados que estejamos para realizar uma leitura crítica de
produtos culturais como aqueles oriundos do cinema hollywoodiano, por exemplo,
nunca é demais lembrar que a imagem em movimento, super produzida, que
envolve nossos sentidos e nossas emoções, tem o poder de nos convencer e,
inclusive, fazer com que questionemos nosso olhar enquanto críticos de uma
hegemonia econômica, cultural e simbólica que é a razão pela qual os Estados
Unidos e o seu modo de vida suscitam encanto e admiração entre alguns de
nós. Estamos sendo demasiadamente críticos com aqueles que, afinal de
contas, cumpriram papéis tão importantes nos acontecimentos chave do século
XX? Não seria, de fato, a produção cultural norte-americana a maior e a mais
adequada a ser seguida, como um guia que nos conduzirá a um novo estágio
civilizatório? É claro que as respostas para essas questões, propositadamente
estereotipadas, não são afirmativas. Os Estados Unidos, lembremos, atuaram
nas Grandes Guerras Mundiais segundo uma lógica e interesses próprios. Sua
versão da História e sua filosofia ideológica, expressas de maneira naturalizada
pelo cinema de heróis e heroínas, não são senão olhares subjetivos e parciais

151
Linguagem Visual na HistoriograFia

acerca de acontecimentos nos quais se colocam como tal – salvadores, bem


feitores, condutores da democracia e da paz mundial.

Atividade de estudo: Como as HQs são produtos visuais de


linguagem e suportes específicos, sugerimos que os acadêmicos
leiam e resenhem o livro Como usar as histórias em quadrinhos na
sala de aula de Angela Barbosa et al., 2014. Além de um capítulo
específico sobre o ensino de História, o livro contempla a utilização de
HQs em outras disciplinas, como língua portuguesa, artes e geografia,
além de fornecer insights sobre propostas interdisciplinares. Essa
atividade pode abarcar o período da disciplina Linguagem Visual na
Historiografia e além. As propostas resultantes dessa leitura podem
ser compartilhadas pelos acadêmicos nos fóruns e/ou grupos nas
redes sociais.

Sugestões de sites: Os sites sugeridos a seguir podem ser


utilizados como ferramentas pelo/a professor/a no momento da
elaboração de aulas com recursos visuais, sobretudo HQs. Além de
referências às obras originais, edições brasileiras e diversas HQs
para download, as páginas webs também disponibilizam resenhas
de livros, filmes e notícias veiculadas pela imprensa brasileira,
relacionada às HQs. As sugestões são as seguintes páginas: Guia
dos quadrinhos - <http://www.guiadosquadrinhos.com/> e Plano
Crítico - <https://www.planocritico.com/>.

152
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

3.4 MAPAS
 Ano: 7º ano do Ensino Fundamental
 Tema: Grandes Navegações
 Produtos: mapas históricos
 Objetivo: compreender o empreendimento realizado pelas nações
que impulsionaram as grandes navegações entre o final do século XV
e começo do XVI, as visões de mundo dos homens e mulheres que
habitavam este espaço-tempo e como elas foram transformadas pelo
encontro com novos territórios e populações.
 Questionário: sob quais perspectivas cada um dos mapas foi elaborado?
Qual é a relação entre as visões de mundo da época da produção
dos mapas e a representação dos territórios? Quais são os elementos
pictóricos representados em cada uma das imagens? O que esses
elementos informam sobre o seu lugar de produção? Quais eram as
possíveis funções exercidas pelos mapas quando foram produzidos,
além da sua utilidade evidente? Há equívocos, por exemplo, de forma ou
escala nos mapas reproduzidos? Por quais possíveis razões?
 Proposta avaliativa: a atividade prevista para essa temática deve ser
realizada em conjunto com a disciplina de Geografia e consiste na
elaboração de um mapa cartográfico que aborde elementos físicos,
geográficos, históricos e simbólicos da espacialidade retratada. Na
avaliação do produto final, devemos levar em consideração tanto o
correto uso da escala, coordenadas e posição quanto a imaginação e a
criatividade dos elementos incorporados. O espaço-tempo representado
pode ser real ou fictício.

Ainda que a especialidade da disciplina de História seja o tempo, uma


dada temporalidade sempre está relacionada também, necessariamente, a
uma certa espacialidade. Por isso, as representações espaciais, sobretudo os
mapas, constituem um importante tipo de linguagem que pode ser utilizado em
sala de aula. É certo que as técnicas cartográficas não se restringem apenas
à representação de uma imagem. No caso dos mapas históricos, eles aportam
elementos que podem contribuir para a compreensão do período no qual ele foi
produzido e acerca da visão de mundo daquela sociedade. Além disso, é uma
ótima possibilidade de realizar diálogos interdisciplinares com a professora ou o
professor de Geografia.

Já nos primeiros conteúdos do currículo, que via de regra estão organizados


cronologicamente, pode-se utilizar mapas para representar, por exemplo, que a
expansão territorial dos homo sapiens é um fenômeno de dimensões globais,

153
Linguagem Visual na HistoriograFia

mesmo que observando particularidades como o fato da África ser considerada o


“berço da humanidade” e a América, o último continente a ser povoado. Também
na passagem para a Antiguidade, o longo processo que vai da Revolução Agrícola
ao surgimento das primeiras civilizações ocorre no interior de uma temporalidade
semelhante em lugares tão distantes como o norte da África, o Oriente Médio, a
Europa, o Extremo Oriente, a América Central e os Andes. Contudo, é importante
ressaltar junto aos alunos/as que se datações que muitas vezes conservam
milênios de diferença podem ser classificadas como pertencentes a um mesmo
período histórico é porque as escalas de tempo utilizadas na chamada “Pré-
história” ou na Idade Antiga são muito diferentes daquelas empregadas em
tempos mais recentes, como a Idade Contemporânea – cujos processos podem
ser acompanhados mais “de perto”, ano a ano, por exemplo. Nesse ponto, uma
analogia com as escalas espaciais estudadas pelos/as alunos/as em cartografia
costuma ser um recurso interessante para conceber as várias dimensões
temporais da História.

FIGURA 10 – MAPA O-T, DE LA FLEUR DES HISTOIRES, 1459-1463

FONTE: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/eduardo-marandola-
jr/sobre-antipodas-mapas-e-terra-plana>. Acesso em: 23 fev. 2020.

154
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

É especialmente na passagem da Idade Média para a Idade Moderna que


podemos recorrer aos mapas históricos enquanto recurso visual que oferece
possibilidades didáticas de destaque. Em primeiro lugar, deve-se chamar a
atenção para o fato de que, nesse momento, os mapas sobre a Idade Média ou já
desde a Antiguidade Clássica deixam de ser globais e começam a se concentrar
cada vez mais na Europa e nos entornos do Mar Mediterrâneo, oportunizando
abordar as limitações da abrangência geográfica de fenômenos históricos como
o feudalismo, acusando a tendência ao eurocentrismo na medida em que nos
aproximamos da Era Moderna. Em segundo lugar, podemos aproveitar esses
documentos históricos para abordar as transformações radicais na visão e no
conhecimento do mundo ocorridas na sociedade europeia nesse curto intervalo
de tempo.

Na Figura 10, temos um mapa do século XV, por exemplo, no qual estão
apenas os três continentes conhecidos pelos europeus até então. Além disso, há
uma representação plana da Terra e não esférica. A visão teocêntrica do mundo
fica evidenciada pela presença de vários elementos mítico-religiosos, como a
Arca de Noé e a narrativa do repovoamento do mundo pelos seus três filhos: Sem
(Ásia/alto), Jafé (Europa/esquerda) e Can (África/direita). O/a professor/a pode
ponderar que se trata de uma interpretação muito particular e preconceituosa da
passagem bíblica na qual Noé teria condenado os descendentes de Can a serem
servos dos seus irmãos. Esse foi um dos argumentos utilizado durante muito
tempo para legitimar a escravidão moderna dos povos africanos, tema abordado
mais adiante no currículo escolar.

Já no planisfério do início do século XVI (Figura 11) temos uma representação


global da Terra, possibilitada ao mesmo tempo pela experiência das Grandes
Navegações – nesse caso portuguesas – e pelo desenvolvimento das técnicas
cartográficas. Atentemos, no entanto, para o fato de que se trata de um ponto
de vista europeu sobre as demais partes do mundo por eles “descobertas”,
produzindo uma imagem condicionada por relações de poder que se refletem na
centralidade e no destaque que o continente europeu possui nesse mapa. É claro
que o tempo não é linear, tampouco a história pode ser vista como uma sucessão
de distintas etapas com fronteiras rígidas. A visão religiosa do mundo continuou
sendo utilizada para significar o mundo durante muito tempo e, de certa forma,
podemos dizer que ela segue importante até os dias atuais. Porém, observe-se
como a comparação entre os dois mapas pode ilustrar aquilo que frequentemente
é descrito como o “desencantamento do mundo” que ocorre na modernidade,
na medida em que uma concepção teocêntrica dá lugar a uma representação
racional do espaço.

155
Linguagem Visual na HistoriograFia

FIGURA 11 – O PLANISFÉRIO DE CANTINO, 1502 (PORTUGAL)

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Planisf%C3%A9rio_de_Cantino#/
media/Ficheiro:Cantino_planisphere_(1502).jpg>. Acesso em: 23 fev. 2020.

O mapa Terra Brasilis de 1519 – também conhecido como Mapa Miller, nome
do seu último proprietário – por sua vez, é uma fonte visual que traz informações
importantes sobre diversos aspectos do início do período colonial. Dentre eles
podemos destacar a exportação da cultura e das instituições modernas europeias
para outras partes do mundo, mas que se dá de modo muito desigual, através
de exploração colonial, como fica evidente na representação do pau-brasil
como mercadoria obtida pelo trabalho forçado dos povos ameríndios. Mais
especificamente, esse mapa remete a um período particular da História do
Brasil, muitas vezes chamado de pré-colonial, anterior à fixação definitiva dos
portugueses na América, o que está simbolizado na restrição das caravelas ao
oceano. Além de recursos comerciais, a curiosidade pelo caráter exótico da fauna
e pela flora também se destacam.

É interessante abordar junto aos alunos/as aquela que é a característica


singular dos mapas produzidos no período marcado pelas Grandes Navegações: a
sua provisoriedade. A produção de mapas constituía o conjunto de conhecimentos
cartográficos, que abrangia elementos físicos, geográficos e culturais, e requeria
uma formação específica. Traduzindo as coordenadas topográficas daqueles
que empreenderam viagens de reconhecimento, encargadas pelos monarcas
dos Estados Absolutistas, os cartógrafos produziam mapas condicionados
aos informes e às descrições resultantes dessas viagens. Assim, na Figura 10
podemos verificar a estabilidade do período medieval em relação à abertura
dos horizontes espaciais. O mapa não apenas expressa, como há séculos, o
conhecimento acerca de três continentes, como também está pautado em uma
perspectiva teológica do território do mundo. Há, ainda, o predomínio do caráter

156
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

artístico em detrimento do geográfico, além de uma evidente desproporcionalidade


da terra firme em relação aos oceanos.

O mapa da Figura 11, nesse sentido, foi produzido em perspectiva


oposta à medieval: datado de 1502, auge da expansão marítima, a terra foi
representada como um planisfério com fronteiras abertas no caso do território
da América do Sul; incompletas, no caso da parte superior da América do
Norte; ou inexistentes, o que podemos observar pela união da África e da Ásia
em um único supercontinente. O Planisfério de Cantino apresenta já algumas
referências à flora e fauna nativa americana, expressa pela coloração em verde
abundante (referência às florestas) e pelas araras. No mapa da Terra Brasillis a
representação pictórica dos ameríndios, das onças, do pau-Brasil, bem como a
já avançada designação do litoral brasileiro demonstra um conhecimento mais
concreto acerca do território. No entanto, a imagem reproduz a fração conhecida
do território como um todo homogêneo, denotando um equívoco seja porque a
parte mais ao centro da “Terra Brasilis” não possuía as mesmas características
daquelas encontradas no litoral, seja porque naquele momento os portugueses
sequer haviam chego àqueles territórios.

FIGURA 12 – MAPA TERRA BRASILIS, 1519 (PORTUGAL)

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Atlas_Miller#/media/
Ficheiro:Brazil_16thc_map.jpg>. Acesso em: 23 fev. 2020.

157
Linguagem Visual na HistoriograFia

Os mapas são documentos visuais interessantes para trabalhar com os/as


alunos/as também a questão da conquista dos territórios encontrados no Novo
Mundo. Ou seja, não passa despercebido que, sobretudo em Terra Brasilis, mas
também noutros mapas encomendados pelos portugueses, a parte do território
americano representada corresponde quase exatamente ao que havia ficado
determinado pelo Tratado de Tordesilhas como posse da Coroa Portuguesa.
Representar as novas terras da Coroa de acordo com o tratado era uma forma
simbólica de dispor sobre uma propriedade de direito para a qual não havia, no
entanto, iniciativas que a assegurassem de fato. A exuberância dos elementos
representados, seu caráter exótico ou o imaginário social presente nos elementos
pictóricos dos mapas históricos geram muito interesse entre a faixa etária dos
12-13 anos, daí que atividades que incorporem esse tipo de produtos visuais
resultem em aulas dinâmicas e muito participativas.

Sugestão de site: Em <http://www.mapas-historicos.com/> é


possível encontrar uma grande quantidade de mapas de diferentes
procedências e períodos históricos. Cada mapa está acompanhado
de uma breve descrição e contextualização, que oferece indícios ao
professor/a para empreender pesquisas mais densas sobre eles.

Sugestão de filme: A franquia Piratas do Caribe (2003, 2006,


2007, 2011, 2017) ilustra uma representação do mundo permeada
pelos seres fantásticos que habitavam o imaginário europeu no
período das grandes navegações, oferecendo também imagens
acerca da produção de mapas e da consolidação ulterior do sistema
colonial nas Américas.

158
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

FIGURA 13 – DAVY JONES NO PÔSTER DE PIRATAS


DO CARIBE 2, O BAÚ DA MORTE (2006)

FONTE: <http://tudomonster.blogspot.com/2011/08/piratas-do-
caribe-2-o-bau-da-morte.html>. Acesso em: 23 fev. 2020.

3.5 FOTOGRAFIAS
 Ano: 8º ano do Ensino Fundamental ou 2º ano do Ensino Médio
 Tema: Crise da monarquia e Proclamação da República
 Produtos: fotografias
 Sugestões: o site Brasiliana Fotográfica reúne acervos fotográficos de
várias instituições, podendo-se realizar buscas temáticas, por exemplo,
pesquisando-se por “D. Pedro II” (ver: <http://brasilianafotografica.bn.br/
brasiliana/visualizar-grupo-trabalho/66>. Acesso em: 23 fev. 2020).
 Objetivo: analisar a derrocada do Império brasileiro sob perspectiva
cultural, atentando para as especificidades do monarca e sua situação à
frente do regime; situar o lugar das “questões” no advento da República,
bem como seu caráter oportuno no contexto do final da década de 1880.
 Questionário: qual é a representação predominante de Pedro II na
memória histórica acerca dos anos finais da monarquia brasileira? Em
que medida seu acervo pessoal de fotos revela um perfil diferente ou

159
Linguagem Visual na HistoriograFia

uma outra face do imperador brasileiro? Que testemunhos oferecem


essas imagens à compreensão do momento histórico vivido na década
de 1880? Quais foram as questões decisivas ou relevantes para o
advento da República no Brasil? E quais acontecimentos parecem haver
sido o resultado de um contexto favorável a uma mudança cujos passos
seguintes não haviam sido planejados? Há relações possíveis entre as
imagens construídas – inclusive pela oposição – acerca de D. Pedro II e
o imaginário da República como condição para o progresso?
 Proposta avaliativa: a sugestão de proposta avaliativa para esse tema
consiste em duas etapas. A primeira, a cargo do/a professor/a, avaliará
o domínio dos conteúdos e da perspectiva crítica das fontes, o que os/
as alunos terão a oportunidade de demonstrar através de seminários
em que o tema central será subdividido em pontos específicos, sob
responsabilidade dos grupos formados para esse fim. A segunda parte
da avaliação se dará através de uma autoavaliação, em que os/as
alunos poderão pontuar os pontos fracos de seu desempenho coletivo
e individual, tomando a apresentação dos demais colegas/grupos como
ponto de apoio para suas considerações pessoais.

Um dos temas mais importantes entre os conteúdos de História do Brasil,


a crise da monarquia – que resultou na Proclamação da República – pode ser
abordado de forma mais dinâmica do que como um conjunto de acontecimentos
políticos encadeados. Não ignoramos o fato de que a importância desse processo
histórico faz com que ele seja objeto de provas de admissão, como vestibulares
e afins, mas também de concursos e testes seletivos para cargos variados.
Há personagens, processos e fenômenos dos quais não podemos, portanto,
prescindir nas aulas de História. No entanto, semeamos a seguinte proposta:
podemos realizar uma leitura desse momento, que é fundamentalmente político,
também pela perspectiva cultural e além, através de uma abordagem biográfica
de um dos seus protagonistas. Nesse ímpeto, propomos analisar a crise do
Império brasileiro através de fotografias do acervo particular de D. Pedro II,
podendo ser incorporados à análise outros documentos, como todo um conjunto
de representações simbólicas que envolveu o imaginário de parte significativa da
sociedade brasileira no contexto de passagem do Império para a República.

Mesmo antes de abordar as “questões” políticas que tradicionalmente


são apontadas como as responsáveis pela Proclamação da República, uma
abordagem cultural das fotografias do período, sobretudo ligadas à família
imperial, pode ser interessante para demonstrar que o regime experimentava
um longo processo de desgaste. Por um lado, as críticas ao monarca se
acumulavam e o Império que ele regia parecia não ter herdeiros ao trono que
gozassem de grande legitimidade, como era o caso tanto do conde D’Eu quanto

160
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

da princesa Isabel. Por outro lado, o reinado de Pedro II parecia ter características
aparentemente contraditórias. Por um lado, era “esclarecido”, amante das artes,
das viagens, da história, da tecnologia e possuía tendências políticas liberais,
como fica evidente na criação do Conselho de Ministros em 1847, inspirado no
regime parlamentarista inglês. Por outro lado, mantinha intactas as prerrogativas
absolutistas do Poder Moderador, do qual frequentemente se utilizava para
controlar as disputas de poder entre os partidos Liberal e Conservador. Alguns
dos biógrafos de Pedro II, como Lilia Schwarcz (2014), chegam a sugerir que,
se não fosse ele próprio o titular do trono, bem poderia haver sido republicano.
Talvez esse descompasso entre seus posicionamentos políticos, seu espírito e o
lugar que ocupava tenha se demonstrado no desdém que emanava do regime em
relação aos seus símbolos e signos, já que a pompa e o requinte que caracterizava
o Império – bandeiras, vestimenta, ornamentos em ouro, carruagens etc. – tudo
andava um tanto desleixado nos últimos anos do monarca nos trópicos.

A historiografia tradicionalmente costuma apontar que foram três questões


específicas a contribuir simultaneamente para o descrédito da instituição
da monarquia. Em primeiro lugar está a relação entre republicanismo e
abolicionismo. Os partidos republicanos vinham ganhando força na última
década, com destaque para o Partido Republicano Paulista, fundado em 1873.
Talvez então um aglomerado pouco significativo de homens descontentes com
o Império, além daqueles idealistas, mas de qualquer forma se tratava de uma
força política que contestava pelas vias da legalidade o regime em curso. Alguns
historiadores defendem que, não por acaso, o Partido Republicano fora criado
pelos cafeicultores paulistas após e aprovação da Lei do Ventre Livre, dois anos
antes, em meio às discussões sobre o processo de abolição da escravatura que
já vinha se arrastando durante todo o século XIX, mas que se intensificou na
década de 1870.

O movimento abolicionista representava um enorme desgaste para o


Império, pressionado que era pelos grandes produtores de café – a maior
atividade econômica brasileira até então – a ressarci-los pelos milhares de
africanos e afrodescendentes escravizados que seriam “expropriados”. Isso se
deu justamente quando o Vale do Paraíba perdia força enquanto região produtora
de café, dando lugar à ascensão dos cafeicultores do oeste paulista, que estavam
no centro dos enfrentamentos com o Império. A cisão definitiva, por assim dizer,
deu-se em 1888 com a abolição da escravatura, quando muitos senhores de
escravos, contrariados, passaram a engrossar as fileiras do republicanismo.

A nomeação do Visconde de Ouro Preto para a chefia do gabinete


ministerial, em meados de 1889, foi decisiva para a perda de apoio do Império
entre setores conservadores da sociedade. As hostilidades crescentes entre o
regime monarquista e o Exército, que não se sentia valorizado à altura de seus

161
Linguagem Visual na HistoriograFia

esforços na Guerra do Paraguai, acirraram-se com as punições sofridas por


alguns militares, já que estavam proibidos por lei de se manifestarem em relação
a assuntos políticos. Frente às tensões crescentes, o Visconde respondeu com o
aumento dos poderes e das funções da Guarda Nacional – então uma força militar
tímida, resquício dos tempos da regência – o que foi recebido como uma afronta
entre as altas patentes militares. Estava colocada a “questão militar”, transmutada
em questão política e social que pode ser sintetizada pela desconformidade do
Exército em relação aos seus lugares e papéis sociais no regime monarquista.

A outra “questão”, a religiosa, possui hoje menos aceitação entre os/


as historiadores/as, mas continua a ser abordada com frequência pelos livros
didáticos (BUENO, 2003). A tensão com a Igreja Católica surgiu de uma aparente
banalidade, que se referia à vinculação do imperador Pedro II com a Maçonaria.
A “questão” acabou envolvendo a figura do papa Pio XII em pessoa e gerou um
desgaste significativo à imagem do monarca. Contudo, o conflito ocorrera cerca
de 15 anos antes da Proclamação da República, sendo pouco provável que tenha
galgado papel decisivo na derrocada do regime. Nesse âmbito, as fotografias
podem servir como gatilhos para pensar a relação entre homens bem relacionados
na sociedade imperial e sua dupla identificação, como católicos e como maçons,
e como isso, longe de representar um paradoxo, era uma prática ordinária.

As representações vitoriosas acerca da imagem de Pedro II como um velho,


em que pese sua idade avançada no alvorecer da República, situam-no como
um homem sonolento, de barbas longas, com hábitos antiquados; uma perfeita
representação do passado do país, que se queria alterar. A oposição republicana
soube bem utilizar essas imagens através de charges e acalorados debates na
imprensa da época. Sabendo disso, nos cabe questionar junto aos alunos qual
é o testemunho oferecido pelas fotografias que compunham seu acervo pessoal,
por exemplo: figura nelas um monarca ultrapassado, à imagem da falta de
dinamicidade? Em parte, sim. Mas também podemos perceber, ao analisá-las,
que o monarca se vestia com relativa simplicidade, ou melhor, com sobriedade.
Não vemos que costumasse ostentar joias ou elementos que o identificassem
como ocupante de um trono. Suas vestimentas são pretas na quase totalidade
das fotografias disponíveis. Na Figura 14 observamos sua preferência, nos
últimos anos, pelas fotografias informais, pelos retratos familiares, em detrimento
dos protocolos com os quais conviveu toda a sua vida. Ainda assim, predomina
sua postura costumaz: expressão séria, de pé, com as mãos para dentro do
colete, essa última uma atitude ainda hoje utilizada por membros da monarquia.

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Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

FIGURA 14 – FAMÍLIA IMPERIAL BRASILEIRA NA QUINTA


DA BOA VISTA, RIO DE JANEIRO, 1889

FONTE: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/
reportagem/o-que-aconteceu-com-a-familia-imperial-brasileira-apos-
queda-da-monarquia.phtml>. Acesso em: 23 fev. 2020.

A Figura 15 faz parte de um conjunto de retratos oriundos de uma das viagens


que o imperador fez ao Egito, em comitiva, em 1871. Entre as suas atividades
favoritas estava viajar, mas também ser eternizado por fotografias junto a cenários
e artefatos culturais. Como se sabe, em meio à vasta coleção que foi tomada pelo
fogo no Museu Nacional, em setembro de 2018, estava uma coleção de relevo
de artefatos, objetos e inclusive, múmias, trazidas dessas expedições. A última
de suas viagens como imperador fora um tour pela Europa e pela África que
durou meses. Não foi uma viagem isolada, aliás, viajar era uma prática que há
muito vinha deixando descontentes alguns setores sociais e políticos brasileiros,
que reclamavam das ausências e da falta de iniciativa do monarca para resolver
os conflitos internos – essa é outra nuance possível de abordar por meio das
fotografias de cunho pessoal do imperador.

A identificação de Pedro II com o Brasil, inquestionável inclusive para


seus críticos, pode ser situada através da análise de um conjunto de retratos
produzidos ao longo da vida. As pinturas são um tanto mais engessadas, com
uma postura e símbolos específicos do gênero artístico, mas as fotografias, por
sua vez, costumavam conter elementos de autoidentificação do imperador com a
sua pátria, a exemplo da Figura 16. Nela percebemos que foi montado um cenário
“típico” de floresta tropical para o registro fotográfico. Nessa oportunidade, em

163
Linguagem Visual na HistoriograFia

1883, D. Teresa Cristina fora fotografada no mesmo ambiente. Não se trata do


único retrato da família real com esse motivo, já que ao longo dessa década foram
produzidas fotografias individuais e coletivas em jardins e outros cenários ao ar
livre. Sobre esta relação entre as tentativas de construção de uma identidade
nacional brasileira ao longo do século XIX através da valorização de algumas
paisagens naturais, o professor ou a professora de História podem fazer uma
aproximação interdisciplinar com a disciplina de Língua Portuguesa e as aulas
sobre o estilo literário do Romantismo.

FIGURA 15 – HÉLIOS (FOTÓGRAFO), COMITIVA IMPERIAL EM VIAGEM AO EGITO,


COM D. PEDRO II AO CENTRO, APOIADO EM SEU GUARDA-CHUVA, 1871

FONTE: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/
reportagem/o-que-aconteceu-com-a-familia-imperial-brasileira-apos-
queda-da-monarquia.phtml>. Acesso em: 23 fev. 2020.

Em suma, as fotografias de D. Pedro II em particular e as da família real de


modo geral podem ser uma ótima oportunidade para utilizar esse tipo de recurso
imagético como material didático. Até porque, em termos cronológicos, esse é um
dos primeiros conteúdos curriculares de História do Brasil em que se pode recorrer
a esse tipo de mídia, já que a própria técnica do registro fotográfico é também
uma novidade do século XIX que vai sendo apenas aprimorada nos períodos
seguintes. Cabe lembrar ainda que essa abordagem é apenas uma das possíveis,
apontando para uma dimensão cultural que, como vimos, atua em simultâneo às
questões políticas mais comumente descritas pelos livros didáticos. Além disso, é
preciso ressaltar que produções historiográficas mais recentes têm demonstrado,

164
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

numa perspectiva de cunho mais socioeconômico, a relação estruturante entre o


sistema escravista e o regime político da monarquia que por ele era sustentado,
colocando assim a crise do Império e de Proclamação da República no bojo
de um processo maior e de longo prazo que culminou na Abolição em 1888. O
mesmo site que sugerimos para consulta fotográfica acerca de Pedro II, Brasiliana
Fotográfica, por exemplo, possui igualmente um rico acervo sobre a temática
“escravidão” que poderá ser utilizado na sala de aula. Nesse sentido, pode vir
a ser interessante trabalhar de forma casada ambas as temáticas, a da crise do
Império.

FIGURA 16 – JOAQUIM INSLEY PACHECO (FOTÓGRAFO),


PEDRO II, IMPERADOR DO BRASIL, 1883

FONTE: <http://brasilianafotografica.bn.br/?p=7183>. Acesso em: fev. 2020.

165
Linguagem Visual na HistoriograFia

Sugestão de leitura: CHIARELLI, Tadeu. História da arte/


História da fotografia no Brasil - séc. XIX: algumas considerações.
São Paulo: ARS, v. 03, n. 06, 2005. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S1678-53202005000200006&script=sci_
arttext>. Acesso em: 23 fev. 2020. Neste texto o autor propõe uma
leitura da arte brasileira do século XIX em conexão com as culturas
da modernidade, com destaque para as tecnologias da imagem.
Realiza, nesse sentido, uma análise da imagem de Pedro II, que
pode vir a embasar propostas de aula como a descrita acima.

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao longo deste capítulo, que se dedicou a fazer diálogos entre imagens e
ensino de História, reforçamos o postulado segundo o qual desaconselha-se o uso
meramente ilustrativo de produtos visuais em sala de aula: se as consideramos
linguagens, isso requer que estejamos atentos/as às maneiras pelas quais e
através das quais apreendemos seu enunciado. Essa análise crítica das imagens
como produtos oriundos de uma cultura, um lugar, um período e uma autoria,
específicos ou indiciários, pode embasar nosso planejamento das aulas de
História, dos anos iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Médio e além, no
Ensino Superior.

As propostas didáticas que utilizam produtos visuais como instrumentos na


produção do conhecimento histórico escolar não são novas, vêm pelo menos
há um século sendo implantadas, a título experimental, nas escolas brasileiras.
Começamos a discussão desse capítulo por essa razão, tecendo comentários
sobre alguns desafios atuais enfrentados pela disciplina e pelos/as professores/
as que a conduzem. Na sequência, já que nos últimos vinte e cinco anos, para
estabelecermos um recorte mais ou menos preciso, historiadores/as têm se
dedicado a analisar a história do ensino de História através das imagens,
analisamos, ainda que brevemente, como o livro didático costumou e costuma
incorporar esses produtos ao processo de ensino-aprendizagem.

Lecionar a disciplina de História em contexto escolar é hoje qualquer coisa


menos o intento de transposição de um conjunto de conteúdos do/a professor/a
aos alunos, a fim de fazê-los reproduzir esses conhecimentos. A História é uma
disciplina que faz pensar a realidade, que exercita a criticidade, além, é claro,
do seu caráter erudito, mas também poderoso em suscitar a curiosidade por

166
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

outras experiências humanas na Terra. Propusemos, ao longo desta disciplina de


Linguagem Visual na Historiografia, que as imagens, como produção humana que
aporta um testemunho, inserem-se nas aulas segundo didáticas que “simulam”
práticas de pesquisa. Simulam, entre aspas, porque nem sempre instigamos os
alunos para que façam investigações sui generis. Mas conduzimos as aulas,
isso sim, sempre, de forma que todo conhecimento e todo testemunho seja
inquerido em relação a sua produção: se um filme, pintura ou retrato fotográfico,
questionamos quem produziu, com que finalidade, em que momento e contexto,
quem financiou, quais foram as influências, se há intertextualidade, quais são os
lugares “de fala” etc. Assim demonstramos aos alunos/as, na prática, como os
historiadores/as produzem conhecimento em História.

Na última parte do capítulo, propusemos temas e abordagens que podem ser


trabalhados pelo/a professor/a a partir de produtos visuais específicos: cinema,
charges, HQs, mapas e fotografias. Para cada um desses produtos, sugerimos
a confecção de uma ficha técnica que tem por objetivo, a princípio, mapear o
conteúdo, os instrumentos e o roteiro das aulas. Nesse exercício acabamos,
como professores/as, construindo um guia de muita valia para o nosso exercício
profissional. Acerca das propostas apresentadas, gostaríamos de fazer, ainda,
alguns comentários.

Em primeiro lugar, recordamos que o conteúdo curricular de História


é trabalhado no Ensino Fundamental e em seguida retomado, com maior
profundidade, no Ensino Médio, já que na faixa etária dos 15 aos 17 anos os/
as adolescentes possuem habilidades mais desenvolvidas, como o potencial
de abstração, para lidar com os conhecimentos em discussão. Dessa forma,
cada uma das aulas sugeridas pode ser adaptada, sobretudo em relação
aos questionamentos norteadores, para um ou outro público. Nesse capítulo,
preferimos apontar questões gerais e claro – nunca será demais dizer – as opções
pelos produtos e pelas questões foram subjetivas e pautaram-se nas experiências
vividas e compartilhadas com professores/as de História.

Em segundo lugar, como se trata de propostas, elas podem e devem


ser aprimoradas pelo/a professor/a de acordo com o perfil da turma, com as
dinâmicas já provadas e com a eleição daqueles produtos visuais com os quais
têm maior familiaridade. Nas propostas didáticas desse capítulo prevaleceram
ora os comentários sobre o produto, ora as abordagens historiográficas. Seria
interessante que cada uma dessas sugestões pudesse ser analisada por você,
acadêmico, no seguinte sentido: o produto visual recomendado seria o mais
adequado para abordar esta temática? Os questionamentos norteadores dão
conta dos objetivos da aula? A proposta avaliativa é executável para a faixa etária
indicada?

167
Linguagem Visual na HistoriograFia

Em terceiro lugar e finalmente, sugerimos alguns textos, sites e filmes que


podem tanto subsidiar a proposta das aulas quanto aperfeiçoar a abordagem do/a
professor/a em relação a determinados temas. Há, para cada uma das sugestões,
outras tantas, que não foram incorporadas para não os aturdir de tanto conteúdo.
É importante que esse exercício seja reproduzido pelo/a professor/a em sala de
aula. Como formadores de opinião e mediadores do conhecimento, por um lado,
e por outro, dado o escasso tempo de que dispomos para cada um dos conteúdos
trabalhados, é imprescindível que deixemos migalhas de pão para serem guias
de nossos Joãos, Marias, Josés...

1) Acerca da utilização do cinema e demais produções


audiovisuais em sala de aula, selecione a alternativa
incorreta:

a) ( ) A escolha da obra e as formas de abordá-la se vinculam a um


objetivo didático previamente estabelecido.
b) ( ) Dentre os objetivos da seleção de um produto audiovisual
pode estar o entretenimento da turma e uma dinâmica
diferenciada, mas não deve ser esse o objetivo a inspirar o/a
professor/a a levá-lo para a sala de aula.
c) ( ) O produto audiovisual pode ser passado em sala para ilustrar
ou complementar um tema já abordado, já que nesse caso
serviria para cimentar conteúdos.
d) ( ) Ampliar os conhecimentos culturais dos/as alunos/as através
de excertos de audiovisuais é uma proposta interessante,
sempre que o produto seja problematizado e inquerido por um
questionário qualificado.

2) Analise as seguintes afirmações sobre a utilização de


recursos imagéticos em sala de aula, assinalando aquela que
melhor representa os conteúdos abordados nesta disciplina
de Linguagem Visual na Historiografia:

a) ( ) Produtos visuais chamam a atenção de meninos e meninas


em idade escolar, esta é a principal razão pela qual o/a professor/a
de História deve buscar inserir a visualidade nos estudos de
História.
b) ( ) Utilizar imagens em sala de aula apenas para ilustrar vem
perdendo lugar entre as propostas de professores e professoras
de História, que se inclinam a propostas mais dinâmicas, como

168
Capítulo 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA

aquelas que envolvem imagens em movimento.


c) ( ) O/a professor/a pode utilizar as imagens presentes no livro
didático de forma mais qualificada do que a proposta presente
neste material, mas convém limitar a utilização de fontes diversas
e polêmicas, que podem dar lugar ao contraditório e gerar
tensões desnecessárias no ambiente escolar.
d) ( ) Como aliados do/a professor/a no planejamento de aulas
dinâmicas e com recursos didáticos variados, produtos visuais
têm uma importante contribuição a dar para as aulas de História,
mas a perspectiva de análise deve sempre atentar para o lugar
de produção, tipo de produto e outros critérios que conformam
um questionário crítico e uma proposta didática definida.

3) Através da mediação do/a professor/a nas aulas de História,


a visualidade pode ser abordada por meio de propostas
diferenciadas, exceto:

a) ( ) O/a professor/a pode qualificar o debate trazido pelo livro


didático em relação a um conjunto de imagens.
b) ( ) O/a professor pode sugerir um filme e deixar que os/as
alunos se apropriem de seu conteúdo de forma a desenvolverem
conhecimentos da maneira mais livre possível.
c) ( ) O/a professor/a pode inserir propostas com produtos visuais
que se aproximem de práticas de investigação em História.
d) ( ) O/a professor/a pode sugerir que os/as alunos elenquem
segundo critérios de afinidade aqueles produtos visuais que
querem incorporar aos debates em História, mas a mediação
fica a cargo, de qualquer forma, do/a docente e das finalidades
desses recursos na condução das aulas.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Angela et al. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na
sala de aula. 4. ed. (Coleção Como usar na sala de aula). São Paulo: Contexto,
2014.

BITTENCOURT, Circe Maria. Livros didáticos entre textos e imagens. In:


BITTENCOURT, C. M. (Org.). O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São
Paulo: Contexto, 2012. pp. 69-90.

169
Linguagem Visual na HistoriograFia

BUENO, Eduardo. Brasil: uma História. A incrível saga de um país. São Paulo:
Ática, 2003.

CHIARELLI, Tadeu. História da arte/História da fotografia no Brasil – séc.


XIX: algumas considerações. São Paulo: ARS, v. 03, n. 06, 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-53202005000200006&script=sci_
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FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre o golpe de 1964 e a Ditadura Militar.


Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, pp. 29-60, 2004. Disponível em:
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HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das
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LITZ, Valesca Giordano. O uso da imagem no ensino de História. Caderno


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SANTOS, Roberto Elísio dos. 2 Vezes 5 Vezes Favela: aproximações e


distanciamentos do cinema brasileiro. Intercom – RBCC, São Paulo, v. 34, n. 02,
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. Dom Pedro II, um monarca


nos Trópicos. São Paulo: Cia das Letras, 2014.

170

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