University of Wisconsin Press Luso-Brazilian Review
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Repensando Canudos: O Jogo das
Oligarquias*
Consuelo Novais Sampaio
Corn uma area equiparivel a da Franca modera, o estado da Bahia tinha, na deca-
da de Canudos, uma populacao rarefeita, espalhada pelos seus 110 municipios. A vida
politico-administrativa concentrava-se em Salvador e, devido a precariedade dos
meios de transporte e de comunicaaco, as popula;6es interioranas viviam pratica-
mente isoladas umas das outras, qual "arquipelago de ilhas humanas," na sempre atual
imagem deJoao Ribeiro.1 Alem de insuficientes, as estradas eram precarias, mesmo
para a passagem dos carros de bois e tropas de burros que levavam a essas regioes os
generos basicos de subsistencia. Tudo contribuia, inclusive a morosa e deficiente cir-
culacao postal e telegrafica, para que o homem do interior fosse praticamente ignora-
do pelo govero do estado-exceto na 6poca das eleio6es, quando os chefes politicos
locais, os famosos coroneis, conduziam as urnas os eleitores de cabresto. A maioria esma-
gadora da populacao baiana (91.5%) era constitituida de analfabetos. A Bahia era, e
continua a ser, o estado lider em analfabetismo no conjunto da federacao brasileira.2
Nesse contexto hist6rico, peregrinos de todos os cantos do Nordeste, acoitados
pela seca e pela mis6ria, estabelecaram-se em Canudos, obedecendo ao bastao de
comando de Ant6nio Conselheiro. Erigido em rival da Igreja Cat6lica, temido pelos
grandes latifundiarios e manipulado pelos grupos oligarquicos dominantes, o
Conselheiro foi identificado como monarquista e acusado de conspirar contra a
Repiblica. Injustamente, porque nao poderia ser outra coisa senao monarquista.
Viveu toda a vida sob a Monarquia e, ainda que o ponto culminante da sua odiss6ia
haja ocorrido na Republica, dela pouco conhecia. Menos ainda os seus romeiros,
alheios a qualquer forma de governo. Mesmo os que governavam a Bahia pouco sabi-
am da Repiblica, pois a ela haviam aderido na 25a hora, quando a queda da
Monarquia era irreversivel. Na verdade, o Conselheiro foi mais contra a escorcha dos
impostos cobrados na Repiblica do que contra o credo republicano em si. A pecha
de monarquista, imputada tanto a ele como a Luis Viana, s6 foi lancada pela oposicao
ap6s o fragoroso rev6s da expedicao de Moreira Cesar. Esse foi mais um recurso para
desacreditar o governo estadual, numa decada em que manifesta?6es monarquistas
pipocavam pelo pais.
Em meio a interesses antag6nicos, surgiu a guerra de Canudos. A luta foi ardua,
durou quatro anos e culminou com a total destruicao daquela comunidade de
romeiros, estimada em 25.000 almas. Nao ficou pedra sobre pedra. Tudo foi destrui-
do, para que nenhum vestigio restasse da rebeldia do sertanejo contra os poderes cons-
tituidos. Hoje, as aguas da barragem de Cocorob6 cobrem o que outrora foi o arraial
de Canudos. Estudos arqueol6gicos, que se iniciavam naquela regiao, visando a recons-
trucao da vida quotidiana dos "conselheiristas", nao mais serao possiveis-pelo menos
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com as tecnicas disponiveis. Enterrou-se, desta vez sob as aguas, preciosa fonte para o
conhecimento da hist6ria brasileira.
Esses dados preliminares ajudam-nos a compreender tanto o processo de for-
macao quanto o de destruicao da comunidade de Canudos. A analise que aqui desen-
volvemos, contudo, nao esta centrada no mundo dos que construiram Canudos, mas no
daqueles que destruiram Canudos. Acreditamos que o fen6meno Canudos s6 pode ser
compreendido a partir das a6ces e do comportamento das classes dirigentes, da elite
goverante, em particular.
Mais especificamente, o principal foco da analise esta na rivalidade entre os dois
maiores grupos oligarquicos da 6poca: o vianista, que reunia os adeptos do entao go-
vemador Luis Viana, e o gonfalvista, os do ex-govemadorJos6 Goncalves. Se a disputa
entre esses dois grupos nao houvesse ocorrido no mesmo tempo hist6rico de
Canudos, ou nao houvesse sido tio aguda e primitiva como se manifestou, 6 possivel
que o holocausto do Conselheiro e seus seguidores nao houvesse acontecido. Em out-
ras palavras, a principal vertente explicativa para a brutal resposta que o govero fed-
eral deu a Canudos deve ser encontrada, nao no Conselheiro, nem tampouco nos seus
romeiros, mas na disputa pelo poder, primaria e mesquinha, que se desenvolvia no
pais e, mais especificamente, no estado.
As manifestacoes de rebeldia de Ant6nio Conselheiro, em relacao a cobranca de
impostos e ao sistema politico vigente, foram instrumentais para o plano de tomada
do poder da faccao gonfalvista. Esse piano consistia em promover, ou agravar, a per-
turbacao da ordem pfiblica no estado, de modo a provocar a intervencao federal que,
em filtima instancia, poderia reverter a situacao politica, dando a oposicao chance de
conquistar o poder. Consubstanciada no artigo VI da Constituicao do pais, a inter-
vencao federal era a principal peca dojogo das oligarquias, posto que os resultados
eleitorais, abertamente manipulados, tanto pela oposicao como pela situacao, favore-
ciam o grupo no poder.
Por isso, ao longo da Primeira Repfiblica, a oposicao recorreu ao artigo VI varias
vezes. As mudancas politicas a nivel federal constituiram-se em forcas atuantes e mo-
dificadoras das situac6es politicas locais, estabelecendo linhas demarcat6rias entre os
grupos oligarquicos. Tambem o problema da escassez de mao-de-obra no campo, que
tanto afetou os interesses dos grandes proprietarios rurais, esta ligado a disputa entre
as oligarquias dominantes. Provavelmente esse problema nao teria assumido dimen-
s6es tao graves se ojogo politico nao houvesse transcorrido numa atmosfera contami-
nada por disputas personalisticas e por rancores decorrentes da insatisfacao de inte-
resses particulares.
Inicialmente, analisaremos a relacao entre forca militar e autonomia federativa, a
fim de melhor entendermos nao s6 os sucessivos desastres das expedi6ces enviadas
para combater Canudos, mas tamb6m a l6gica da estrat6gia de tomada do poder da
oposicao. Alongaremos a analise com referencias as manifestac6es de desordem e vio-
lencia que se disseminavam pelo estado. Elas nos ajudarao a compreender que
Canudos nao se apresentava como prioridade nos pianos de pacificacao do governo
estadual. E muito menos nos do governo federal, a bracos com movimentos mais
serios, como o dos federalistas, no Rio Grande do Sul. Finalmente, centraremos a
atencao na oposicao entre vianistas e gonfalvistas, permitindo que Luis Viana, Jose
Goncalves e o bario deJeremoabo, atraves de entrevistas que concederam ajorais da
6poca, extravasem a rivalidade politica que tanto contribuiu para retardar o desen-
volvimento do estado e, de certo modo, conduziu a destruicao de Canudos.
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Sampaio 99
QUADRO I
EFETIVOS DAS FORCAS POLICIAIS-MILITARES DE ESTADOS BRASILEIROS
SELECIONADOS PARA OS ANOS 1909, 1917 E 1928
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400, inclusive oficiais. Esse efetivo era irris6rio, face ao aumento de incumbencias,
posto que, sob a Repfiblica, as fun6ces que no Imperio eram da competencia da "linha
de frente" do govero central foram assumidas pela forca piblica estadual.5 Nos anos
da "guerra do fim do mundo", o govemador Luis Viana solicitou e obteve do congres-
so estadual recursos destinados a reforcar o efetivo das tropas estaduais.
A absoluta falta de recursos financeiros do estado fez com que esse aumento se
realizasse com prejuizo do soldo que, na epoca, foi comparado ao que ganhava um
pedreiro: mil e seiscentos reis.6 Alem de pequeno, o soldo era frequentemente rece-
bido cor grande atraso, pelo que se agravavam as condi6ces de vida dos soldados. Esta
situacao vinha desde o Imperio, quando pelo menos durante dois anos (1878-1880) a
forca policial nao foi paga.Ja na Repfiblica, o govero do estado pediu ao ministro da
Fazenda abertura de credito para a regularizacao do pagamento, mas nada indica que
tal solicitacao tenha sido atendida. Nos municipios mais distantes, a situacao era ainda
mais dificil, obrigando o governo a recorrer a comerciantes locais para o pagamento
dos seus soldados.7
As precarias condi6ces de saude da populacao baiana, as voltas com a febre
amarela, a tuberculose e a variola, principalmente, foram outro fator que, sem dfivida,
contribuiu para que as forcas estaduais, sempre depauperadas e desmotivadas, fossem
batidas facilmente pelos seguidores de Ant6nio Conselheiro, movidos pela fe e pelo
entusiasmo. Ainda antes de Canudos, e preciso lembrar, o inspetor de Higiene do
Estado comparou policiais-militares a indigentes. Em Comandatuba, "mais de 60 pes-
soas no destacamento foram atacadas de febres de mal carater e estavam baldos de
recursos medicos."8
E bastante conhecido o estado deploravel em que chegaram a Salvador as tropas
vindas de combates em Canudos. Na Camara dos Deputados, o c6nego Novaes
bradou: "Causa dor a quem quer que assista a chegada dos soldados que voltam de
Canudos! Trazem todos estampados em suas pessoas e trajes os profundos sinais das
priva6ces por que acabaram de passar. Eu os vi, Sr. Presidente, ha poucos dias, em um
estado de fazer chorar as pr6prias pedras! Nao pareciam servidores da patria! Tal era o
estado em que desembarcaram nesta Capital."9
As obriga6ces da debilitada forca pfublica da Bahia cresceram muito na decada de
1890, quando a conjugacao das crises econ6mica e politica fez com que a anarquia e
a violencia se espraiassem por todo o estado. A seca prolongada parecia haver revigo-
rado o banditismo, encarnado no temido Volta Grande que, com o seu bando, ater-
rorizava as popula6ces da chapada e dos sert6es da Bahia, na sua marcha de assaltos,
roubos e assassinatos.
Contudo, era a "politicagem desbragada e imoral" o fator que mais contribuia para
a situacao de instabilidade generalizada que arruinava o estado. Osjomais criticavam o
comportamento da classe politica, que "s6 se preocupava cor as discuss6es de peque-
nina politica e em nomeacoes e demissoes de autoridades policiais, para capricho e
vingancas partidarias."'0
Umjuiz de Direito assim avaliou o fator politico no quadro de conturbacao social
disseminado pelo estado: "toda sorte de violencia e de crimes sao praticados para sa-
tisfacao dos caprichos inconfessaveis de uma politicagem sem entranhas e ate sedenta
de sangue. O saque em larga escala e as escancaras, destruicao das planta6ces, princi-
palmente da classe pobre e laboriosa, a expatriacao em massa de milhares de pessoas,
sem distincao de condicao e sexo." Referindo-se a barbaro crime ocorrido numa das
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fazendas da regiao, afirmou que o mesmo fora praticado pela forca piblica, "ao lado
da capangagem dirigida pelo feroz cadete Araujo, a servico dos dominadores.""
Alem dos focos de violencia generalizada que se espalhavam por todo o estado, as
minguadas tropas goveramentais tinham que desempenhar a hercilea tarefa de paci-
ficar duas das mais importantes regioes da Bahia, agitadas por lutas intestinas: as Lavras
Diamantinas e o Sul cacaueiro. A rica regiao das Lavras, conflagrada pelo banditismo e
por lutas entre coroneis, foi a que primeiro mereceu as aten6ces do governador Luis
Viana. Ao mesmo tempo, ele enviou tropas ao Sul, onde a expansao da lavoura
cacaueira havia estimulado a luta pela terra, principalmente nos municipios de
Canavieiras, Belmonte e Ilheus, fazendo crescer a violencia na regiao. Ai, "a media
diaria de assassinatos era assustadora."'2
A comunidade de romeiros estabelecida em Canudos ocupava lugar secundario
nos pianos de pacificacao do governo. Antes do reduto do Conselheiro, Luis Viana
teve que voltar suas atencoes para a comarca de Maracas, onde reinava o famoso e
famigerado coronel Marcionilo de Sousa. A perturbacao da ordem ali havia atingido
propriedades de colonos italianos. Na verdade, Canudos s6 mereceu as aten6ces do
govero quando as oposi6ces, em Salvador e na Capital Federal, passaram a manipu-
lar a seu favor as atitudes de rebeldia do Conselheiro, tais como a sua recusa em pagar
impostos. A luta pelo poder, revestida de feicao personalista e primaria, na qual
estavam embutidos os interesses de grandes latifundiarios (como o barao de
Jeremoabo, ao qual nos reportaremos com frequencia), esta na origem dos conflitos
que se desencadearam. Conflagrar os sert6es, a fim de provocar a intervencao federal,
era uma das principais estrategias das oposi6ces. Em 1919, as oposi6ces coligadas
lancariam mao do mesmo securso e promoveriam a revoludo sertaneja.'3
A situacao de estagnacao econ6mica em que se afundava o estado, sem perspecti-
vas de uma recuperacao pr6xima, se manifestou na fragilidade e na instabilidade das
institui6ces republicanas, permitindo que a competicao politica se revestisse de uma
feicao odiosa e tumultuada. Para tanto, tambem contribuiram a ausencia ou a
dubiedade de normas legais voltadas para a ordenacao do processo politico.
Na verdade, at6 o govero Rodrigues Lima (1892-1896) existiam apenas, em ter-
mos de legislacao, a Constituicao do Estado, a lei eleitoral e a lei de organizacao muni-
cipal. A votatao e a implementacao desta iltima lei gerou muita agitacao e violencia
politica na decada de 1890. Ao tornar sem efeito a lei do Imp6rio que criara a guarda
municipal, a nova lei tirava das maos dos chefes politicos locals a forca policial, ou seja,
o mais eficiente instrumento de mando que ate entao dispunham. Os municipios
foram submetidos a autoridade maior do executivo estadual.'4
Alem do mais, a cobranca de impostos, que esta lei creditava aos municipios, provo-
cou fortes rea6ces das populac6es locais, entre elas as de abril de 1893. Entao, um
certoJose Honorato, pretensamente autorizado por Ant6nio Conselheiro, conduziu,
na feira livre de Soure, uma manifestacao popular de protesto contra os impostos, de-
sencadeando a depredacao das tabuletas onde os mesmos estavam afixados. As mani-
festac6es de protesto se espalharam por outros municipios eJos6 Honorato foi preso,
julgado e condenado. Para encurtar a hist6ria, basta lembrar que o seu advogado
requereu habeas corpus, que foi concedido pelo Tribunal deJustica, do qual Luis Viana
era presidente. Embora ele nao houvesse participado dojulgamento, quando assumiu
o governo do estado a oposicao valeu-se desse fato para acusa-lo de manipular
Ant6nio Conselheiro, com o objetivo de disseminar a anarquia nos sert6es. Mais adi-
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ante veremos que, embora essa acusacao fosse infundada, Luis Viana nao via no
Conselheiro um elemento perigoso, como desejava a oposicao. Alem do mais, recorde-
se que o pr6prio barao deJeremoabo, que clamava pela destruicao de Canudos, como
breve mostraremos, nao responsabilizou o Conselheiro pelas agitacoes populares
acima referidas.'5
Com excecao das leis acima mencionadas, as demais leis complementares, inclu-
sive ajudiciaria e a das reparticoes publicas, s6 foram elaboradas no governo Rodrigues
Lima. Coube-lhe, portanto, montar a maquina administrativa do estado e organizar a
magistratura, provendo os respectivos cargos. Porque todos queriam gozar as beness-
es do estado, a disputa em torno dos novos cargos providos pelo regime republicano
foi de tal ordem que terminou por retardar o seu preenchimento. Os secretarios de
estado (fazenda, interior, viacao, policia), por exemplo, s6 foram efetivados nos ulti-
mos meses do seu governo.16 Em ultima analise, a falta de ordenamento legal con-
tribuiu para transformar cada chefe politico local num senhor absoluto nos seus redu-
tos-elaborador e implementador de suas pr6prias leis.
Ja vimos em outro estudo que a fraqueza da economia baiana nao permitiu o sur-
gimento de um grupo oligarquico dominante, a exemplo do que ocurreu em Sao
Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e outros estados da federalao.'7
A producao agrfria e a pauta de exportacoes da Bahia eram diversificadas-fumo,
cafe, acucar, cacau-mas nenhum desses produtos tinha peso decisivo. A ausencia de
um setor agro-exportador de ponta explica, em parte, o conflito permanente, as lutas
intestinas, acirradas e primairias, no interior da elite politica baiana. A luta pelo poder
envolveu grupos de interesses equiparaveis, que se nivelavam mais pela debilidade do
que pela forca do poder econ6mico. Foram lutas mesquinhas, destituidas de princi-
pios, voltadas para a defesa de interesses pessoais. Algumas vezes, o confronto no plano
politico p6s a descoberto interesses econ6micos dos litigantes; outras vezes, as pelejas
foram defensivas e voltadas contra as investidas regulat6rias do estado. E o que vere-
mos a seguir, centrando a atencao na rivalidade entre gonfalvistas e vianistas.
Como bem se sabe, os sucessivos fracassos das expedic6es enviadas a Canudos
foram explorados pela oposicao, na Bahia e na Capital Federal. Ap6s a fragorosa der-
rota do ate entao imbativel coronel Moreira Cesar, a oposicao se tornou mais ousada
e violenta, chegando um senador federal a declarar, ameacadoramente: "E preciso que
acabemos com o Sr. Conselheiro Luis Viana, para acabarmos depois com Canudos."'8
A oposicao acusava o goverador Luis Viana de por em pratica o mesmo plano do
seu antecessor, Rodrigues Lima, que era "assanhar os bandidos de Antonio
Conselheiro 1I no seu antro de Canudos, para alarmar as populac6es da circunvizi-
nhanca", de modo a impedir que os eleitores do 5? distrito, sob o controle politico da
oposicao, comparecessem as umas.19 Deste modo, o governo teria condic6es de "for-
gicar atas falsas, em que s6 aparecessem votados os seus tres candidatos."20 Para tanto,
acreditava a oposicao, Luis Viana teria removido o seu correligionario ejuiz de Direito,
Arlindo Leoni, da comarca do Bom Conselho para a deJoazeiro, onde Ant6nio
Conselheiro deveria comprar as madeiras que precisava para concluir as obras da igre-
ja nova que construia em Canudos.21 Segundo a oposicao, esse plano do govemador
teria falhado porque os seguidores de Ant6nio Conselheiro enfrentaram, com suces-
so, o pequeno contingente de 100 homens enviado para destruir o arraial.
Acusava-se tambem o governador da Bahia de negligencia, de deliberadamente
haver permitido a expansao dos "fanaticos" de Ant6nio Conselheiro, "de perseguir e
aniquilar" os dois chefes do partido oposicionista: o ex-governadorJose Goncalves e o
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Sampaio 105
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No processo, le-se que no inicio de 1897 a fazenda Cocorobo tinha 466 cabecas
de gado bovino e 242 de gado lanigero. Depois da guerra, esse contingente ficou
reduzido a apenas noventa e dois bovinos e nenhum lanigero. Essa reducao teria sido
conseqfincia de ataques das tropas goveramentais, submetidas a varios periodos de
fome absoluta.40 A principio, os assaltos eram feitos sem nenhuma ordem mas, dada
a freqfincia, passaram a ser preparados de vespera, escalando-se, por ordem superi-
or, os batalhoes que procederiam a caca de alimentos.41 Essa desapropriacao forcada
foi feita, a principio, na fazenda Canudos, estendendo-se a fazenda Cocorob6 e a out-
ras mais distantes, a medida que o gado escasseava.42 Respaldado no depoimento de
testemunhas citadas no processo, Vital Soares diz que nao pediria ressarcimento de
danos causados pelosjaguncos do Conselheiro, porque estes nao haviam cometido
dano algum a propriedades privadas.43 E facil compreender que a acusacao de invasao
e devastacao de fazendas, feita ao Conselheiro e sua gente, era fruto do medo de que
tal viesse a acontecer. Por outro lado, essa acusacao era importante instrumento de
mobilizacao da oposicao contra o governo constituido-numa sociedade em que a
maioria dos membros das classes dominantes era composta de grandes (embora deca-
dentes) proprietarios de terras.
A inseguranca e as afli6oes dos grandes proprietarios se agravaram a medida em
que a comunidade de Canudos crescia em detrimento da disponibilidade de
mao-de-obra no campo, fazendo com que-conforme se expressou o barao de
Jeremoabo-"nem os proprietarios, nem os fazendeiros (pudessem) contar cor os
agregados e vaqueiros." Identificando a causa do seu infortinio com Ant6nio
Conselheiro, observou que "o povo em massa abandonava as suas casas e afazeres para
acompanha-lo. A populacao vivia como se estivesse em extase." Em seguida concluiu
"Assim, foi escasseando o trabalho agricola e e atualmente cor suma dificuldade que
uma ou outra propriedade funciona, embora sem a precisa regularidade."44
Aos olhos do barao deJeremoabo, o problema crescia na medida em que aumen-
tava a influencia do Conselheiro, nao s6 junto as classes subalternas, mas tambem junto
a setores intermediarios da sociedade, que se deixavam atrair por suas palavras e por
seu carisma. Assim o barao descreveu o poder de atracao do Conselheiro: "com
excecao da minha, posso dizer, sem receio, que nao houve familia que nao assistisse a
suas ora6oes. O fervor chegou ao excesso de convidarem-no para as suas casas aque-
las que, em quaisquer circunstancias, nao podiam comparecer nos pontos de
reuniao."45
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tando fatos que nunca se passaram", como o de suas preferencias pelo regime
monarquico.6 Corn a saida do comandante do distrito militar, os pianos da oposicao
de tomar o poder perderam sustentacao. A intervencao federal, que tinha a sua prin-
cipal peca estrategica na alianca corn o general, ficou impossivel.
Em filtima analise, a liquidacao da comunidade de Canudos contribuiu para o for-
talecimento do poder central. A vit6ria final das forcas legalistas e a confirmacao da
morte de Ant6nio Conselheiro foram efusivamente comemoradas pelas classes domi-
nantes. De varios pontos do pais partiram manifesta6ces de regozijo pelo exterminio
daquela fortaleza de "fanaticosjaguncos" identificados com a monarquia.67
Mal assentada a poeira levantada pela "guerra do fim do mundo", as forcas politi-
cas dominantes reorganizaram-se em nivel nacional na Capital Federal, em torno da
convencao do Partido Republicano Federal (PRF), que apontou, oficialmente, os
nomes de Campos Sales e de Rosa e Silva para as eleicoes presidenciais. Depois de reti-
rar o Federal do nome, passando a ser simplesmente Partido Republicano, os conven-
cionais declararam, solenemente, que o partido era constituido pelo que havia de
"mais acentuadamente conservador na opiniao republicana do pais." Garantiram re-
presentar "os principios estaticos da sociedade brasileira" e trabalhar pela preservacao
da ordem social.68
O partido gonfalvista (Partido Republicano Constitucional), que atraves do seu
6rgao de divulgacao, O Republicano, fazia os mais ferrenhos ataques ao governo do pres-
idente Prudente de Morais, manifestou maior desejo de colaboracao e enfatizou suas
aspira6ces de paz e de ordem social.69 Ao nivel estadual, uma colaboracao entre vian-
istas e gonfalvistas provou ser impossivel. A oposicao continuou a acusar o goverador
de promover outros Canudos, com o objetivo de, disseminando a desordem e a vio-
lencia nos redutos politicos dos seus inimigos, leva-los a fracassar nas eleic6es presi-
denciais de 1 de marco de 1898.70
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Sampaio III
NOTAS
'Com uma area de 561,026 km2, a Bahia tinha, em 1890, cerca de 1,919,802 habitantes. Bahia,
Recenseamento realizado em 1? setembro 1920, p. XIII. Os dados sobre a populacao da Bahia n
Primeira Repiblica nao sao precisos. Katia M.Q. Mattoso, Bahia seculo XIX: umaprovincia do Imper
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992), pp. 100-115 analisa esses dados, particularmente os rela-
tivos a Salvador.
2Depois da Bahia, os estados com maior indice de analfabetismo eram Sergipe (89.75%),
Minas Gerais (89.7%) e Goias (89%). Bahia, Recenseamento 1920, pp. XIII-XV.
30 Regionalismo gauicho (Sao Paulo: Perspectiva, 1975), p. 122.
4Love, Regionalismo, p. 123.
5Bahia, Anais da Cdmara dosDeputados da Bahia, 1891, v.l, pp. 222-23.
6Bahia, Anais da Cdmara dos Deputados p. 227. Ver tabela de vencimentos do Corpo de Policia
(16 ago. 1889), Arquivo do Estado da Bahia-Secao Presidencia da Republica (daqui em diante
citado como AEBa/SPR), maco 1964.
7Oficio do governador Hermes E. da Fonseca ao ministro da Fazenda, 26 maio 1890,
AEBa/SPR, caixa 46, maco 1879-A; Oficio do governador Manoel Vitorino Pereira ao Inspetor
do Tesouro, 30jan. 1890; Oficio do goverador a Inocencio Cangussu, 6 maio 1890, AEBa/SPR,
caixa 18, maco 1804.
8Oficio do Inspetor Eduardo Godilho Costa ao Governador do Estado, 13 nov. 1890,
AEBa/SPR, maco 1873; Oficio do governador do estado ao comandante das Armas, 17 fev. 1890,
AEBa/SPR, caixa 18, maco 1804, doc. 164.
9A fala do c6nego 6 de 9 de agosto de 1897. Bahia, Anais da Cdmara dos Deputados da Bahia,
1897, p. 204.
'?Gazeta de Noticias, citado pelo deputado Ant6nio Bahia, in Anais da Cdmara dos senhores de-
putados do estado da Bahia, sess6es do ano de 1894, v. IV, sessao de 20 dejulho de 1894 (daqui por
diante citado como ACDBa.), pp. 6 e 7.
"Oficio dojuiz da comarca de Urubu ao goverador Manoel Vitorino Pereira, 23 dez. 1889,
AEBa/SPR, maco 1873.
'Ant6nio Moniz de Aragao, A Bahia e os seus governadores na Repiblica (Bahia: Imprensa Oficial
do Estado, 1923), p. 120; Luis Viana, Mensagem, 1897, pp. 3-4.
"3Eventualmente unidas por objetivo comum, as faccoes oposicionistas manipularam a seu
favor os movimentos grevistas dejunho e setembro de 1919, bem como as acirradas disputas entre
os coron6is do interior. Fomentando a agitacao social, a oposicao procurava forcar a intervencao
federal, que poderia impedir o reconhecimento de Seabra, ja eleito governador, e dar lugar a
novas eleicoes. Promoveram, assim, a chamada Revolurao Sertaneja, anunciando pelosjornais que
varios coron6is do interior mobilizavam as suas for:as privadas (jaguncos) em direcao a Capital,
com o objetivo de depor o governador em exercicio, Ant6nio Muniz. O enfrentamento s6 termi-
nou corn a intervencao do governo federal. Eul-Soo Pang, 'The Revolt of the Bahian Coroneis
and the Federal Intervention of 1920", in Luso Brazilian Review, VIII (2) (Dec. 1971), pp. 3-25.
Veja tambem do mesmo autor Coronelismo e oligarquias 1889-1943 (Rio de Janeiro: Civilizacao
Brasileira, 1979).
14Para a forte reacao do municipio de Salvador, que inclui protestos emjomais da capital fe-
deral, veja Didrio de Noticias, 7 fev. 1895, p. 1.
5Conferencia "Centenario do choque de Masset6", pronunciada pelo ProfessorJose Calazans
Brandao da Silva, Salvador, 26 maio 1993. Para ele, a entrevista do barao deJeremoabo 6 o
primeiro depoimento de carater historiogrifico a respeito daquela agitacao popular.
'Aragao, A Bahia, pp. 93-94.
'7Consuelo Novais Sampaio, 0 poder legislativo da Bahia, Primeira Reptiblica (1889-1930)
(Salvador: ALEBa., 1985), p. 49.
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112 Luso-Brazilian Review 30:2
'8Citado pelo senador estadual Carlos Leitao, Bahia, Anais do senado do estadofederado da Bahia,
1897, v. 1, p. 42.
O90s municipios de Monte Santo,Jeremoabo, Tucano, Itapicuru, Amparo e Bom Conselho,
no sertao baiano, faziam parte do 5? distrito eleitoral.
20Discurso do deputado Leovigildo Filgueira, in Anais da cdmara dos deputados, primeira sessdo
da terceira legislatura, sess6es de 2 a 31 de agosto de 1897 (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1898) (daqui por citado como diante ACD), p. 263.
1ACD, p. 263
22ACD, p. 263
'2Nao confundir com o partido da propaganda republicana que, na maioria dos estados, mas
nao na Bahia, assumiu o poder, ap6s a proclamacao do novo regime politico.
24Artigo escrito pelo barao deJeremoabo, no seu engenho Camuciata, em 24 de fevereiro de
1897 e publicado noJoral de Noticias da Bahia, nos dias 4 e 5 de marco de 1897. Esse artigo, datilo-
grafado, se encontra tambrm no Nucleo do Sertdo. Aqui deixo registrado o meu agradecimento ao
ProfessorJose Calazans Brandao da Silva-autoridade maior em Canudos, que generosamente
doou o seu acervo de documentos a UFBa., permitindo que ela constituisse o Nzicleo do Sertdo-
pela indicacao desta preciosa fonte de dados, bem como das entrevistas com Luis Viana eJose
Goncalves, adiante referidas.
25Aragao, A Bahia ..., p. 36.
26Consuelo Novais Sampaio, Os partidos politicos da Bahia na Primeira Reptiblica: uma politica de
acomodafdo (Salvador: Centro Editorial e Didatico da UFBa., 1975), pp. 39-40.
27Aragao, A Bahia, pp. 48-60.
28Aragao, A Bahia, pp. 48-60.
2Leovigildo Filgueiras, ACD, p. 279.
3Aragao, A Bahia, pp. 101-113; Sampaio, Os partidos, pp. 41-42.
3Aragao, A Bahia, pp. 101-113; Sampaio, Os partidos, pp. 41-42.
'2Aragao, A Bahia, pp. 101-113; Sampaio, Os partidos, pp. 41-42. Em mensagem dirigida a
Camara dos Deputados, o presidente Prudente de Moraes declarou que ao Congresso Nacional, e
nao ao poder executivo ou ojudiciario, e que competia, por meio de uma lei regulamentar do
artigo 69 da Constituicao, autorizar o governo a intervir nos negocios dos estados. Leovigildo
Filgueiras, ACD, p. 282.
3Resultados dessas pesquisas serao publicados no nimero especial da Revista da FAEEBA,
jan-jul 1993, da Universidade do Estado da Bahia, dedicado ao centenario da instalacao do ar-
raial de Canudos. Veja tambem depoimento do barao de Jeremoabo, Joral de Noticias, Bahia, 5
mar. 1897, e discurso de Leovigildo Filgueiras, ACD, p. 278.
4Conferencia deJose Calazans, Salvador, 26 maio 1993.
35Vital Henriques Batista Soares, Apelacdo Civel nr 1122, apelante Dr. Paulo Martins Fontes,
apelada a Fazenda Nacional, Supremo Tribunal Federal (Bahia: Litho-Typ e Encad. Reis & C.,
1905) (daqui por diante citado como Apelado), pp. 37-38.
'Filgueiras, ACD, p. 263.
37Jomal de Noticias, 5 mar. 1897.
3Filgueiras, ACD, p. 278.
39Relat6rio do comandante da expediato,Joao Camilo de Souza Seixas, ao comandante do 39
distrito militar, Bahia, 15jun. 1893, citado por Filgueiras, ACD, p. 275.
"4Vital Soares, Apelado, pp. 10 e 32.
"Vital Soares, Apelacdo, p. 24.
4Vital Soares, Apelafdo, p. 25.
4Vital Soares, Apelafdo, pp. 34-38.
4Barao deJeremoabo,Jornal de Noticas, Bahia, 4 mar. 1897.
45Barao deJeremoabo,Jornal de Noticas, Bahia, 4 mar. 1897.
46Sampaio, O poder legislativo, pp. 69-75, analisa o problema da falta de mao-de-obra nos
primeiros anos da Repfiblica.
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Sampaio 113
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