Infestacao Macica Por Ascaris Lumbricoides Relato

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ARTIGO DOI: http://dx.doi.org/10.18561/2179-5746/biotaamazonia.

v4n4p101-106

Infestação Maciça por Ascaris lumbricoides: Relato de caso


1* 1
Gustavo Barbosa Fernandes de Souza , Talita Nicácia Teles Martins , Thiago Afonso Carvalho Celestino
2,3 2
Teixeira , Thiago Leal Lima

1. Médicos-Residentes do Segundo Ano de Cirurgia Geral do Programa de Residência Médica da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Brasil.
2. Preceptor do Programa de Residência Médica de Cirurgia Geral da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Brasil.
3. Professor do Curso de Medicina da Universidade Federal do Amapá e Preceptor do Programa de Residência Médica de Cirurgia Geral da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP),Brasil.
*Correspondência: Gustavo Barbosa Fernandes de Souza. Av. Ana Nery, número 1221, Residencial Jesus de Nazaré, Apt. 208. Bairro Julião Ramos. CEP: 68908153, Macapá- AP. Fone: (096)
8118-3397. Email: gustavobfernandess@hotmail.com

RESUMO: A ascaridíase é endêmica em países em desenvolvimento e está relacionada a baixas condições socioeconômicas. É a
helmintíase mais prevalente, principalmente nos pacientes pediátricos, sendo assintomática na maioria dos casos. Na infestação
maciça, pode evoluir com complicações tais como obstrução intestinal e invasão das vias biliares. Radiografia abdominal e
ultrassonografia são os principais exames médicos diagnósticos. Inicialmente o tratamento é conservador, no entanto pode se tornar
cirúrgico. O objetivo desse trabalho é analisar a apresentação clínica, o diagnóstico e o tratamento de infestação maciça por
Ascaris lumbricoides através do relato de um caso de ascaridíase maciça em criança de Macapá – AP, que evoluiu com suboclusão
intestinal e invasão da vesícula e das vias biliares. Os dados foram coletados do prontuário médico e foi feita revisão da literatura
nos principais acervos médicos digitais no período de 2000 a 2014. Uma vez conhecendo suas formas de apresentação e
complicações, os médicos estarão aptos a manejá-la apropriadamente, contribuindo para diminuir sua morbimortalidade nas
regiões endêmicas.

Palavras-chaves: Ascaridíase maciça, migração errática, suboclusão intestinal, invasão das vias biliares, invasão da vesícula biliar.

Massive Infestation by Ascaris lumbricoides: Case report


ABSTRACT: Ascariasis is endemic in developing countries and it is related to substandard socioeconomic conditions. It is the most
prevalent helminthiasis, especially in pediatric patients, being asymptomatic in most cases. In massive infestation, it can develop
complications such as intestinal obstruction and invasion of the biliary tract. Abdominal radiography and ultrassonography are
the main medical tests for diagnosis. Initially treatment is conservative but it can change into surgery. The aim of this paper is to
analyze clinical presentation, diagnosis and treatment of massive infestation by Ascaris lumbricoides through the report of a
case of massive ascariasis in a child from Macapá – AP, that developed into intestinal subocclusion and invasion of the biliary
tree and gallbladder. Data was collected from the medical records and it was made a review of the literature in the main
medical database available on digital pile on the period of 2000 to 2014. Once they know its forms of presentation and
complications, doctors will be able to appropriately manage it, contributing to diminishing its morbimortality in endemic regions.

Keywords: Massive ascariasis, erratic migration, intestinal subcclusion; Invasion of the biliary tract, invasion of gallbladder.

1. Introdução adquiriram maturidade imunológica, estão mais expostas


A ascaridíase tem como agente etiológico o Ascaris ao ambiente contaminado durante seu crescimento e
lumbricoides (A. lumbricoides) e é a helmintíase com maior desenvolvimento, e ainda não adquiriram cuidados de
incidência e prevalência mundial. É endêmica em regiões higiene. (ENCALADA et al., 2003; JESUS et al., 2004;
tropicais e subtropicais, acometendo África, Ásia e KHAN et al., 2007; LANDER et al., 2012; GUTIERREZ-
América do Sul, em que a pobreza, as condições sanitárias JIMENEZ et al., 2013).
precárias, a contaminação da água e os conglomerados A transmissão do Al ocorre através da ingesta de
humanos contribuem para sua perpetuação (WANI et al., alimentos e água contaminados, no contato com material
2006; NIETO; CASTRILLÓN, 2007; SANAI; AL-KARAWI, subungueal ou com o solo contaminado, seja através do
2007; KHANDURI et al., 2014; OJHA et al., 2014). hábito de levar as mãos e objetos à boca, seja com a
Não há uma visão geral da prevalência da ascaridíase prática da geofagia e, raramente, através da inalação ou
no Brasil. Os estudos epidemiológicos são fragmentados, deglutição de ovos presentes em secreção respiratória
compreendendo localidades e populações isoladas. contaminada (MELO et al., 2004; KHAN et al., 2007;
Apenas um estudo contempla o Estado do Amapá, em que MISHRA et al., 2008).
a prevalência de ascaridíase em Macapá foi de 14,62% O ciclo do verme compreende duas fases, uma
(FERRAZ et al., 2014). migratória através dos pulmões como larva e uma crônica
Cerca de 30% dos adultos e 60-70% das crianças no intestino delgado onde o verme se torna adulto. Os ovos
hospedam o verme adulto em áreas endêmicas. Crianças embrionados liberam as larvas que atravessam as
têm maior predisposição a essa parasitose, principalmente paredes intestinais, entram nas vênulas e linfáticos, passam
na idade pré-escolar, e, ao passo que a idade avança, a pela circulação portal para fígado e coração direito e
carga parasitária diminui. Isso ocorre porque ainda não alcançam os alvéolos pulmonares onde amadurecem
Biota Amazônia ISSN 2179-5746 Macapá, v. 4, n. 4, p. 101-106, 2014
Disponível em http://periodicos.unifap.br/index.php/biota
Esta obra está licenciada sob uma Licença
Creative Commons Attribution 4.0 Internacional Submetido em 09 de Outubro de 2014 / Aceito em 27 de Outubro de 2014
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- esse é o ciclo cardiopulmonar ou ciclo de Loss. vias biliares e cirurgias prévias da via biliar,
Posteriormente, ascendem pelos bronquíolos, brônquios, especialmente as esfincterotomias. Há relatos de áscaris
traqueia, laringe e faringe, provocando tosse ao passar errático em boca, narina, orelha externa por perfuração
pela epiglote, podendo ser expelidas pela expectoração do tímpano, ducto nasolacrimal, e apêndice cecal; por
ou deglutidas, quando, então, retornam até o intestino meio da formação de abscessos ou fístulas, na cavidade
delgado. Em 40 dias atingem maturidade sexual, iniciam a peritoneal, vagina, bexiga, uretra e gânglios linfáticos
copulação e oviposição e os ovos são eliminados nas fezes, superficiais; além da migração para a via biliar principal,
contaminando água e alimentos, reiniciando o ciclo que é a mais frequentemente relatada, sendo possível a
(NIETO; CASTRILLÓN, 2007; MISHRA et al., 2008; migração para via biliar intra-hepática, vesícula biliar e
MONTAÑO; BARE, 2011; OJHA et al., 2014). ducto pancreático (ENCALADA et al., 2003; NIETO;
Na maioria das vezes a ascaridíase é assintomática. CASTRILLÓN, 2007; SANAI; AL-KARAWI, 2007; JESUS et
Quando presentes, os sintomas decorrem de três status al., 2008).
principais do parasito no hospedeiro: 1) migração Áscaris é a segunda principal etiologia de obstrução
pulmonar na fase larval durante o ciclo de Loss, quando aguda da via biliar e 77% dos achados de áscaris na
causam uma pneumonite transitória por hipersensibilidade árvore biliar em pediatria ocorrem em áreas endêmicas.
imediata e auto-limitada que se resolve em 2 semanas - a A. lumbricoides na via biliar é responsável por 30% dos
Síndrome de Löeffler; 2) obstrução intestinal devido a um casos de ascaridíase complicada na infância, dos quais
elevado número de vermes adultos e 3) migração errática 6% necessitarão de intervenção cirúrgica. A migração
dos áscaris adultos (DORIA; ROCHA, 2000; MELO et al., para a via biliar caracteriza-se por cólica biliar, com dor
2004; WANI et al., 2006; MISHRA et al., 2008; abdominal intermitente no quadrante superior direito do
CASTILLO; GONZÁLEZ, 2011). abdome, vômitos, febre e anorexia. Icterícia não é
Na infestação crônica o verme adulto no intestino frequente (JESUS et al., 2004; SANAI; AL-KARAWI, 2007;
delgado, principalmente no jejuno, pode levar a distensão KHAN et al., 2007; NIETO; CASTRILLÓN, 2007; KHAN et
e dor abdominal, anorexia e diarreia. Elevado número de al., 2010; MONTAÑO; BARE, 2011; KHANDURI et al.,
parasitos pode desencadear quadros de abdome 2014).
obstrutivo. Porém, o intestino tem uma imensa capacidade A ascaridíase biliar varia de severidade segundo o
de dilatação e pode acomodar mais de 5000 vermes sem número de parasitos e o tempo de invasão. Normalmente
nenhum sintoma. Por isso, geralmente ocorre obstrução um ou dois vermes entram no ducto biliar principal. Wani et
parcial, ou suboclusão, mas que pode evoluir para al. (2006), encontraram apenas dois casos de invasão
obstrução completa e complicar com volvo, infarto e biliar maciça, dos 198 analisados. Nieto e Castrillón
perfuração intestinal (DORIA; ROCHA, 2000; (2007) relatam um caso de 13 parasitos extraídos do
CHIARPENELLO, 2004; MISHRA et al., 2008; RIOS; colédoco.
LAZARTE, 2010; GUPTA et al., 2012; OJHA et al., 2014). Os exames de imagem são fundamentais para o
O quadro obstrutivo intestinal é a complicação mais diagnóstico. A radiografia abdominal confirma a
frequente na ascaridíase. Geralmente ocorre no íleo presença de áscaris em 90% das crianças e em casos de
terminal, na válvula ileocecal, e tem quatro mecanismos obstrução, pode-se ver sinais obstrutivos gerais (DORIA;
básicos: obstrução mecânica causada por um grande ROCHA, 2000; ÁLVAREZ-SOLÍS et al., 2011).
número de vermes; contração espástica do intestino Na ascaridíase biliar, a ultrassonografia (USG) é o
devido liberação de neurotoxinas pelos parasitos; necrose exame de escolha. Além de sua alta acurácia diagnóstica,
da parede intestinal por reação inflamatória às toxinas e é acessível, de baixo custo e não invasiva. Deve ser
aos fragmentos dos vermes; e por volvo ou invaginação seriada para monitorizar a saída do verme da árvore
intestinal, devido ao peristaltismo aumentado pela biliar (DORIA; ROCHA, 2000; SANAI; AL-KARAWI, 2007;
presença de bolos de áscaris (STEGANI et al., 2001; KHAN et al., 2010; MONTAÑO; BARE, 2011).
MISHRA et al., 2008; HEFNY et al., 2009). Mais de 95% dos pacientes com ascaridíase biliar não
As crianças são mais predispostas a desenvolver complicada responderão bem ao tratamento conservador
obstrução devido ao menor diâmetro do seu lúmen e os vermes retornarão espontaneamente ao intestino
intestinal. Em pediatria, 27% dos episódios de suboclusão (JESUS et al, 2008). No estudo de Khan et al (2010), dos
intestinal por A. lumbricoides ocorre em áreas endêmicas. 98 pacientes apresentando ascaridíase biliar 96,4%
A literatura descreve 4 vermes causando obstrução respondeu ao tratamento conservador; a maioria levou de
intestinal num lactente de 45 dias de vida e mais de 1800 4-5 dias para responder, porém em alguns casos o
vermes em uma jovem coreana (DORIA; ROCHA, 2000; tratamento teve que ser continuado por 14 dias.
JESUS et al., 2004; MISHRA et al., 2008; MONTAÑO; Os objetivos do tratamento conservador são: aliviar a
BARE, 2011). distensão abdominal, corrigir os distúrbios metabólicos e
O áscaris adulto pode apresentar migração errática, remover a obstrução. A princípio institui-se dieta oral zero,
que é a saída do parasito do intestino para outros órgãos. sonda nasogástrica (SNG) para descompressão,
Está relacionada à superinfestação, que é favorecida por hidratação venosa, analgésicos e antiespasmódicos, até
quadros de desnutrição e imunossupressão. Também pode que ocorra alívio dos sintomas, o que ocorre em torno de
ser desencadeada por febre, uso de drogas, anestesia 48 horas. Alguns autores indicam o uso de óleo mineral via
geral, jejum prolongado, estresse, manipulação do SNG para facilitar a eliminação dos vermes. (JESUS et al,
intestino durante cirurgia, anormalidades anatômicas das 2004; MELO et al., 2004; SANAI; AL-KARAWI, 2007).
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O uso de antibióticos se justifica pela provável de uma paciente com diagnóstico de infecção maciça por
contaminação dos vermes erráticos com a flora do Ascaris lumbricoides que apresentou quadro de
intestino delgado (JESUS et al., 2004; SANAI; AL- suboclusão intestinal com invasão de vias biliares e
KARAWI, 2007). vesícula biliar. Após o estudo do caso e sua descrição foi
A utilização de anti-helmínticos na conduta inicial é realizada revisão de literatura sobre parasitismo por
controversa. Albendazol e mebendazol, que inibem a A.lumbricoides e suas complicações. Foram acessados 65
utilização da glicose pelo verme, causando sua morte artigos, no período de agosto a outubro de 2014, dos
lenta, poderiam estimular a migração, pois o verme sairia bancos de periódicos LILACS, MedLine e PubMed,
em busca de alimento. Piperazina, pamoato de pirantel e incluindo as palavras chaves ascaridíase, infestação
levimasol promovem paralisia do verme, o que maciça por Ascaris lumbricoides, epidemiologia e
dificultaria sua saída dos ductos biliopancreáticos, uma tratamento, com limites de língua espanhol, inglês e
vez que isso ocorre espontaneamente por seus português e publicados nos últimos 14 anos, sendo
movimentos ativos, causando retenção na via biliar e utilizados 28 para a confecção deste trabalho.
maiores complicações, além de poder agravar o quadro
de abdome obstrutivo ao paralisarem elevado número 4. Relato do Caso
de vermes. Baseados nisso, vários autores recomendam Paciente do sexo feminino, 04 anos de idade, 18 kg,
que os anti-helmínticos devem ser administrados apenas moradora de zona de periferia da cidade de Macapá,
quando houver visualização das vias biliares livres, Amapá, foi admitida no Pronto Atendimento Infantil de
através de acompanhamento com USG (JESUS et al., Macapá com história de dor abdominal de moderada
2004; NIETO; CASTRILLÓN, 2007; SANAI; AL-KARAWI, intensidade, vômitos repetitivos, aumento do volume
2007; KHAN et al., 2007; MISHRA et al., 2008; abdominal, parada de eliminação de gazes e fezes
ÁLVAREZ-SOLÍS et al., 2011; OJHA et al., 2014). havia três dias e relato de eliminação oral de vários A.
Alguns estudos indicam a CPRE para retirada de A. lumbricoides. Ao exame físico apresentava estado geral
lumbricoides da via biliar. Porém é um método caro, regular, desnutrição e desidratação moderadas, com
invasivo, mais demorado e requer anestesia geral em distensão abdominal e dor à palpação do abdome
pediatria, por isso fica reservada para os casos de falha difusamente, sem sinais de irritação peritoneal. O perfil
no tratamento conservador, na presença de estenose ou hidroeletrolítico estava alterado. Radiografia abdominal
cálculos nos ductos e nas complicações como colangite, em ortostatismo no momento da admissão (Figura 1)
obstrução persistente da via biliar e pancreatite, devendo- evidenciou imagens em “miolo de pão”, intensa distensão
se sempre que possível evitar a esfincterotomia, pois ela de alças de delgado, ausência de níveis hidroaéreos e
facilitaria nova migração (DORIA; ROCHA, 2000; JESUS pneumoperitônio, com presença de ar na ampola retal.
et al., 2004; SANAI; AL-KARAWIet al., 2007; KHAN et al.,
2007; JESUS et al., 2008; KHAN et al., 2010).
Laparotomia está indicada nos casos de falha da
CPRE ou do tratamento conservador, quando houver
abdome agudo obstrutivo, nos casos de verme morto ou
calcificado na via biliar ou ducto pancreático, este último
com prognóstico pobre (JESUS et al., 2004; WANI et al.,
2006; SANAI; AL-KARAWI, 2007; HEFNY et al., 2009).
Por fim, os pacientes recebem tratamento anti-
helmíntico por via oral após o retorno pós-operatório a
uma peristalse normal e acompanhamento após alta
hospitalar (JESUS et al, 2004).

2. Objetivo
O objetivo deste trabalho é analisar a apresentação
clínica, o diagnóstico e o tratamento de infestação maciça
por A. lumbricoides através do estudo de um caso de
ascaridíase maciça em criança atendida no Hospital da
Criança e do Adolescente de Macapá, Amapá, que
evoluiu com suboclusão intestinal e invasão de vesícula e
vias biliares.

3. Material e Método
Trata-se de um relato de caso de infecção maciça por
A. lumbricoides atendido no Hospital da Criança e do
Adolescente de Macapá-AP, em agosto de 2014. Os
Figura 1. Radiografia de abdome em ortostase evidenciando
dados foram coletados através dos registros do intensa distensão de alças de delgado e imagem em “miolo de pão”.
prontuário, análise de exames laboratoriais e de imagem Não se observam níveis hidroaéreos e existe ar na ampola retal.
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Foi iniciada hidratação venosa, com reposição


hidroeletrolítica, passagem de sonda nasogástrica de alívio,
dieta zero e tratamento com mebendazol (100mg) e óleo
mineral. Dez horas após o início do tratamento houve piora
da distensão abdominal, queda do estado geral da
paciente e episódios de vômitos com eliminação de três
vermes vivos.
A criança foi transferida para o Hospital da Criança e do
Adolescente com o diagnóstico de obstrução intestinal por
ascaridíase. No hospital de referência deu-se continuidade
ao tratamento com dieta zero, sonda nasogástrica,
mebendazol (100mg) e óleo mineral. Os primeiros exames
ultrassonográficos de abdome evidenciaram grande
quantidade de A. lumbricoides apenas em alças de delgado,
formando “bolos de áscaris”.
No 5˚ dia de internação hospitalar (DIH) uma nova USG
do abdome ainda mostrava grande quantidade de áscaris
em delgado, porém verificou-se áscaris vivo dentro da
vesícula biliar (Figura 2). Nesse momento, o mebendazol foi
substituído por levamisol (80mg).

Figura 3. Ultrassonografia evidenciando áscaris dentro da via


biliar intra-hepática esquerda.

A paciente não apresentava sinais de colestase,


bilirrubina total e aspartato aminotransferase (AST) normais
e alanina aminotransferase (ALT) pouco elevada (125,0 U⁄L).
No 11˚ dia de internação, foi avaliada pelo serviço de
cirurgia pediátrica que indicou colecistectomia com
exploração de vias biliares após melhora do estado geral
da paciente.
No 15˚ DIH, durante a realização da USG de abdome,
não foram mais observados vermes no interior da vesícula
biliar, no ducto intra-hepático esquerdo e nem no interior
do delgado. Após mais quatro dias de internação e
acompanhamento seriado com USG verificou-se a
resolução espontânea da ascaridíase biliar.
Assim, no 19° DIH a paciente recebeu alta hospitalar
em bom estado geral e sua responsável foi orientada
quanto à necessidade de mudança dos hábitos de higiene
Fiigura 2. USG evidenciando áscaris dentro da vesícula biliar.
e a dar continuidade ao tratamento da criança com
Por volta do 8˚ DIH a paciente ainda apresentava albendazol (400mg) por mais dois dias, além de fazer
vômitos com eliminação de áscaris, período em que houve acompanhamento semanal nos ambulatórios de Pediatria
evacuação de grande quantidade de vermes. Diariamente e de Cirurgia Pediátrica.
eram solicitados exames ultrassonográficos, sendo que no
10˚ DIH a USG visualizou áscaris na via biliar intra-hepática 5. Discussão
esquerda (Figura 3). No caso em estudo, a infestação maciça por A. lumbricoides
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foi imediatamente suposta como causa do quadro biliares e/ou pancreáticos, ou mesmo sem provocar
obstrutivo da paciente, devido à história de ter eliminado sintomatologia evidente (ROCHA et al., 2006; KHAN et
vermes por via oral, o que caracteriza a infestação maciça al., 2007; SANAI; AL-KARAWI, 2007).
(JESUS et al., 2008). No presente caso, a paciente obteve sucesso com o
A radiografia de entrada apresentou nitidamente a tratamento clínico ocorrendo a eliminação dos vermes
imagem em “miolo de pão” característica do “bolo de tanto da via biliar intra-hepática e vesícula biliar, quanto
áscaris” na infestação maciça. Os outros sinais do intestino delgado, não sendo necessário lançar mão de
radiológicos indicavam suboclusão intestinal. (DORIA; intervenção cirúrgica.
ROCHA, 2000; ÁLVAREZ-SOLÍS et al., 2011).
Foi iniciado mebendazol (100mg) no início do 6. Conclusão
tratamento e a paciente evoluiu com piora após dez horas. Devido à endemicidade da ascaridíase no Brasil e no
Questionamos se houve correlação com o uso do anti- Amapá e ao fato de as complicações constituírem
helmíntico (JESUS et al., 2004; NIETO; CASTRILLÓN, emergências na pediatria, é fundamental a familiarização
2007; SANAI; AL-KARAWI, 2007; KHAN et al., 2007; com os achados clínicos e imaginológicos presentes nos
NIETO et al., 2007; JESUS et al., 2008; ÁLVAREZ-SOLÍS et casos de ascaridíase complicada, para que seja instituído
al., 2011; OJHA et al., 2014; OJHA et al., 2014). tratamento clínico-cirúrgico adequado em tempo hábil.
O ducto cístico, que já tem diâmetro pequeno, é ainda Uma vez conhecendo sua apresentação e complicações
mais estreito nas crianças e a migração para a vesícula o médico está apto a manejar adequadamente essa
que já é rara em adultos, devido ao pequeno diâmetro e à morbidade, contribuindo para diminuir a morbimortalidade
tortuosidade do ducto cístico, é mais rara ainda nas infantil nas regiões endêmicas.
crianças, em que a luz do cístico é bem mais estreita, porém
este fato foi visualizado no 5° DIH através de USG, o que 7. Referências Bibliográficas
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