A Gênese - Os Milagres e As Predições Segundo o Espiritismo
A Gênese - Os Milagres e As Predições Segundo o Espiritismo
A Gênese - Os Milagres e As Predições Segundo o Espiritismo
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Portal Luz Espírita
3 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
A GÊNESE
OS MILAGRES E AS PREDIÇÕES
SEGUNDO O ESPIRITISMO
Allan Kardec
Tradução:
Ery Lopes
4 – Allan Kardec
Nota do tradutor
Allan Kardec
(1804-1869)
7 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
A GÊNESE
OS MILAGRES E AS PREDIÇÕES
SEGUNDO O ESPIRITISMO
POR
ALLAN KARDEC
Autor de O Livro dos Espíritos
QUINTA EDIÇÃO
REVISADA, CORRIGIDA E AUMENTADA
PARIS, 1869
8 – Allan Kardec
Sumário
Introdução – pag. 12
Os desertos do espaço
Eterna sucessão dos mundos
A vida universal
Diversidade dos mundos
Bodas de Caná
Multiplicação dos pães
Tentação de Jesus
Prodígios na morte de Jesus
Aparições de Jesus após sua morte
Desaparecimento do corpo de Jesus
INTRODUÇÃO
À PRIMEIRA EDIÇÃO, PUBLICADA EM JANEIRO DE 1868
generalidade não pode ser considerado como parte integrante dessa mesma
doutrina, mas como uma simples opinião isolada da qual o Espiritismo não
pode assumir a responsabilidade.
É essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos submetida
também ao critério da lógica que constitui a força da doutrina espírita e lhe
assegura a perpetuidade. Para que ela mudasse, seria preciso que a
universalidade dos Espíritos mudasse de opinião e que um dia eles viessem
dizer o contrário daquilo que eles têm dito; desde que ela tem sua fonte no
ensinamento dos Espíritos, para que ela sucumbisse, precisaria que os
Espíritos deixassem de existir. É isso também o que a fará prevalecer sempre
sobre todas as teorias pessoais, que não têm raízes por toda parte, como ela
tem.
O Livro dos Espíritos só viu sua credibilidade se consolidar por ser a
expressão de um pensamento coletivo geral; no mês de abril de 1867, viu-se
cumprir sua primeira década; nesse intervalo, os princípios fundamentais
sobre os quais pôs suas bases foram sucessivamente completados e
desenvolvidos em virtude do ensino progressivo dos Espíritos, e nenhum
recebeu qualquer desmentido da experiência; todos, sem exceção,
permaneceram de pé, mais fortes do que nunca, ao passo que, de todas as
ideias contraditórias que tentaram lhe opor, nenhuma prevaleceu,
precisamente porque, em todas as partes, o contrário era ensinado. Aqui está
um resultado característico que podemos proclamar sem vaidade, pois que
jamais atribuímos a nós o seu mérito.
As mesmas precauções têm presidido a redação das nossas outras obras,
de modo que, com toda a verdade, podemos dizer segundo o Espiritismo,
porque estávamos certos de sua conformidade com o ensinamento geral dos
Espíritos. O mesmo sucede com esta obra, que, por motivos semelhantes,
podemos dar como complemento das anteriores, com exceção, todavia, de
algumas teorias ainda hipotéticas, que tivemos o cuidado de indicar como tais
e que devem ser consideradas como simples opiniões pessoais, até que elas
sejam confirmadas ou contraditadas, a fim de que a sua responsabilidade não
pese sobre a doutrina.
15 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
1
Revista Espírita (Revue Spirite, no original em francês), de cujo subtítulo "Jornal de Estudos
Psicológicos", era uma publicação mensal, lançada em 1 de janeiro de 1858 por Allan Kardec e
por ele editada até sua morte, passando em seguida (desde a edição de maio de 1869) a ser
redigida por seus continuadores – Nota do Tradutor (N. T.).
16 – Allan Kardec
A GÊNESE
SEGUNDO O ESPIRITISMO
17 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO PRIMEIRO
Características da
revelação espírita
mistérios da natureza são revelações, e podemos dizer que para nós há uma
incessante revelação. A astronomia nos revelou o mundo astral que não
conhecíamos; a geologia revelou a formação da Terra; a química, a lei das
afinidades; a fisiologia, as funções do organismo etc.; Copérnico 2, Galileu3,
Newton4, Laplace5, Lavoisier6 foram reveladores.
6. Desde que se admita a dedicação de Deus para com as suas criaturas, por
20 – Allan Kardec
9. Haverá revelações diretas de Deus aos homens? Esta é uma questão que
não ousaríamos resolver de uma maneira absoluta — nem afirmativamente,
nem negativamente. A coisa não é radicalmente impossível, porém, nada nos
dá prova certa disso. O que não padece duvidoso é que os Espíritos mais
próximos de Deus pela perfeição são penetrados por seu pensamento e
podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados, conforme a ordem
hierárquica a que pertençam e ao grau de sua sabedoria pessoal, eles podem
tirar suas instruções dos seus próprios conhecimentos, ou recebê-las de
Espíritos mais elevados, mesmo de mensageiros diretos de Deus. Estes,
falando em nome de Deus, poderiam às vezes ser tomados pelo próprio Deus.
Esses tipos de comunicações não têm nada de estranho para quem
conhece os fenômenos espíritas e a maneira como se estabelecem as relações
entre os encarnados e os desencarnados. As instruções podem ser
transmitidas por diversos meios: pela inspiração pura e simples, pela audição
da palavra, pela vidência dos Espíritos instrutores nas visões e aparições, seja
em sonho ou desperto, assim como vemos tantos exemplos na Bíblia, no
Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos. Portanto, é rigorosamente
exato dizermos que a maior parte dos reveladores são médiuns inspirados,
22 – Allan Kardec
11. Uma importante revelação se cumpre na época atual: é a que nos mostra a
possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. Esse
conhecimento não é novo, sem dúvidas, mas ficou até os nossos dias, de certo
modo no estado de letra morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A
ignorância das leis que regem essas relações o teria sufocado sob a
12. O Espiritismo — ao nos fazer conhecer o mundo invisível que nos cerca e
no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o
regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que
o habitam, e consequentemente o destino do homem depois da morte — é
uma verdadeira revelação, na concepção científica da palavra.
13. Por sua natureza, a revelação espírita tem um duplo caráter: ela deriva ao
mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Deriva da
primeira naquilo que o seu aparecimento foi providencial, e não o resultado
da iniciativa e de uma intenção premeditada do homem; que os pontos
fundamentais da doutrina são o produto do ensino dado pelos Espíritos
encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles
ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos, mas que eles devem
conhecer, já que hoje estão aptos a compreendê-las. Ela deriva da segunda,
naquilo que esse ensinamento não é privilégio de indivíduo algum, mas dado
a todo o mundo pelo mesmo modo; que aqueles que o transmitem e aqueles
que o recebem não são seres passivos, dispensados do trabalho da
observação e da pesquisa; que eles não renunciaram ao seu raciocínio e livre-
arbítrio; que o exame não lhes é proibido, mas, ao contrário, é recomendado;
enfim, que a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega;
que ela é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os
Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que
ele estuda, comenta, compara e das quais ele próprio tira as consequências e
as aplicações. Em uma palavra, o que caracteriza a revelação espírita é que
a sua origem é divina, que a iniciativa pertence aos Espíritos e que a sua
elaboração é fruto do trabalho do homem.
Fatos de uma nova ordem se apresentam, que não podem ser explicados pelas
leis conhecidas; ele os observa, compara-os, analisa-os e, partindo dos efeitos
às causas, ele chega à lei que os rege; depois, deduz as suas consequências e
busca suas aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida;
assim, não apresentou como hipóteses nem a existência e a intervenção dos
Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos
princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos quando essa
existência ressaltou com evidência da observação dos fatos, da mesma
maneira que os outros princípios. Não foram os fatos que vieram
posteriormente confirmar a teoria, mas a teoria que veio subsequentemente
explicar e resumir os fatos. Portanto, é rigorosamente exato dizer que o
Espiritismo é uma ciência de observação, e não o produto da imaginação. As
ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se
basearam no método experimental; mas até hoje acredita-se que esse método
só seria aplicável à matéria, entretanto ele é igualmente aplicável às coisas
metafísicas.
16. Assim como a ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis
do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das
leis do princípio espiritual; ora, como este último princípio é uma das forças
da natureza, que reage incessantemente sobre o princípio material e
reciprocamente, segue-se daí que o conhecimento de um não pode estar
completo sem o conhecimento do outro. O Espiritismo e a ciência se
completam um ao outro; a ciência sem o Espiritismo fica na impossibilidade
de explicar certos fenômenos somente pelas leis da matéria; o Espiritismo
sem a ciência careceria de apoio e comprovação. O estudo das leis da matéria
tinha que vir antes que o estudo da espiritualidade, porque é a matéria que
primeiro é captada pelos sentidos. Se o Espiritismo tivesse vindo antes das
descobertas científicas teria sido uma obra abortada, como tudo que vem
antes do seu tempo.
por si só é inerte; ela não tem nem vida, nem pensamento nem sentimento;
falta-lhe sua união com o princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu
nem inventou esse princípio, no entanto, foi o primeiro a demonstrá-lo por
provas incontestáveis; ele estudou, analisou e tornou evidente a sua ação. Ao
elemento material ele juntou o elemento espiritual. Elemento material e
elemento espiritual, eis aqui os dois princípios, as duas forças vivas da
natureza. Pela união indissolúvel desses dois elementos facilmente se explica
uma multidão de fatos até então inexplicáveis.12
Tendo como objetivo o estudo de um dos dois elementos constitutivos
do Universo, o Espiritismo toca obrigatoriamente na maior parte das ciências;
ele só podia vir depois da elaboração delas, e nasceu pela força das coisas,
pela impossibilidade de se explicar tudo com o auxílio apenas das leis da
matéria.
22. O CRISTO, tomando da antiga lei o que é eterno e divino, e rejeitando o que
não passava de transitório, puramente disciplinar e de concepção humana,
acrescentou a revelação da vida futura, de que Moisés não havia falado,
como aquela das penas e recompensas que aguardam o homem após a morte.
(Ver Revista Espírita, 1861, páginas 90 e 280.)
25. Toda a doutrina do Cristo está fundamentada sobre o caráter que ele
atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e
misericordioso, ele fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo a
condição expressa da salvação, e diz: Amem a Deus sobre todas as coisas, e
ao próximo como a si mesmos; nisto estão toda a lei e os profetas; não
existe outra lei. Unicamente sobre esta crença ele assentou o princípio da
igualdade dos homens perante Deus e o da fraternidade universal. Mas, teria
sido possível amar aquele Deus de Moisés? Não; só se podia temê-lo.
Essa revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, junto com a da
imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações
mútuas dos homens, impondo-lhes novas obrigações, fazendo-lhes encarar a
vida presente sob uma outra luz; por isso mesmo, ela tinha de reagir sobre os
costumes e as relações sociais. Incontestavelmente, por suas consequências,
esse é o ponto mais importante da revelação do Cristo, e do qual não
compreendemos suficientemente a importância; é lamentável dizer que esse é
também o ponto do qual mais temos nos desviado e o que mais temos
ignorado na interpretação dos seus ensinamentos.
26. Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das coisas que lhes digo vocês
ainda não podem compreender, e eu teria a lhes dizer muitas outras que
vocês não compreenderiam; por isso é que lhes falo em parábolas; mais tarde,
porém, eu lhes enviarei o Consolador, o Espírito de Verdade, que
30 – Allan Kardec
27. Por que ele denomina o novo Messias de Consolador? Este nome —
significativo e sem ambiguidade — é toda uma revelação. Ele previa com isso
que os homens precisariam de consolações, o que implica a insuficiência
daquelas que eles achariam na crença que iam fundar. Talvez o Cristo nunca
tivesse sido tão claro e tão explícito quanto nestas derradeiras palavras, às
quais poucas pessoas deram atenção o bastante, provavelmente porque
evitaram esclarecê-las e aprofundar o seu sentido profético.
28. Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de uma maneira completa,
é que faltavam aos homens conhecimentos que eles só podiam adquirir com o
tempo e sem os quais eles não o poderiam compreender; muitas coisas
pareciam sem sentido no estado dos conhecimentos de então. Completar seu
ensinamento deve ser entendido então no sentido de explicar e desenvolver,
muito mais do que de lhe agregar verdades novas, porque tudo nele se
encontra em germe; faltava somente a chave para extrairmos o sentido das
suas palavras.
29. Mas quem ousa se meter a interpretar as Escrituras sagradas? Quem tem
esse direito? Quem possui as luzes necessárias, senão os teólogos? 15
Quem o ousa? Primeiro, a ciência, que não pede permissão a ninguém
para dar a conhecer as leis da natureza, e que salta sobre os erros e os
15Teólogo: aquele que se ocupa da teologia, que é a ciência que estuda Deus, sua natureza, seus
atributos e as implicações disso com o homem e o universo. – N. T.
31 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
16 Referência à Arca da Aliança, descrita no Antigo Testamento, espécie de baú sagrado onde
foram depositadas as pedras sobre as quais foram escritos os Dez Mandamentos recebidos por
Moisés. – N. T.
17O tribunal da Inquisição, pertencente à Igreja Católica, condenavam defensores da ideia de a
Terra girar em torno do Sol, pois a Igreja defendia que este planeta era o centro do Universo e
que, portanto, tudo girava em torno dele. – N. T.
18 Antípoda: seres que habitam em lugares opostos. Refere-se ao fato de os antigos doutores da
Igreja não terem descoberto a existência de povos de outras regiões, como os do continente
americano. – N. T.
32 – Allan Kardec
31. Pelas relações que o homem hoje pode estabelecer com aqueles que
deixaram a Terra, ele possui não só a prova material da existência e da
individualidade da alma, como também compreende a solidariedade que liga
os vivos e os mortos deste mundo, e os deste mundo com os dos outros
mundos. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos, acompanha-os em
suas migrações, é testemunha das suas alegrias e das suas penas; sabe por
qual razão eles são felizes ou infelizes e a sorte que espera por ele próprio,
conforme o bem ou o mal que tenha feito. Essas relações o iniciam na vida
futura, que ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas
peripécias; o futuro não é mais uma vaga esperança: é um fato real, uma
certeza matemática. Desde então a morte nada mais tem de amedrontador,
porque é para ele a sua libertação, a porta da verdadeira vida.
32. Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a
desventura na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição e de
imperfeição; que cada qual sofre as consequências diretas e naturais de suas
faltas; dita de outra forma, que ele é punido pelo que pecou; que essas
consequências duram tanto quanto a causa que as produziu; que, assim, o
culpado sofreria eternamente caso persistisse no mal, mas que o sofrimento
cessa com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um se
melhorar, cada um, em virtude do seu livre-arbítrio, pode prolongar ou
abreviar seus sofrimentos, como o doente sofre de seus excessos enquanto
não põe um fim neles.
44. Os aflitos são em grande número; por isso, não é surpreendente que tanta
gente acolha uma doutrina que consola em vez daquelas que desesperam,
pois é aos deserdados que o Espiritismo se dirige, mais do que aos felizes do
mundo. O doente vê o médico chegar com maior satisfação do que aquele que
está bem de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o médico.
Vocês que combatem o Espiritismo, se querem que o abandonemos para
segui-los, ofereçam-nos mais e melhor do que ele; curem mais seguramente
as feridas da alma. Deem mais consolações, mais satisfações de coração,
esperanças mais legítimas, certezas maiores; façam do futuro um quadro mais
racional, mais atraente; porém, não creiam vencê-lo com a perspectiva do
nada, com a alternativa das chamas do inferno ou da beatitude e inútil
contemplação perpétua.
24 Nosso papel pessoal, no grande movimento de ideias que se prepara pelo Espiritismo e que já
começa a se operar, é o de um observador atento que estuda os fatos para descobrir suas causas
e delas tirar as consequências. Confrontamos todos os que nos têm sido possível reunir; temos
comparado e comentado as instruções dadas pelos Espíritos em todos os pontos do globo,
depois coordenamos tudo metodicamente; em resumo, temos estudado e dado ao público o
fruto das nossas pesquisas, sem atribuirmos aos nossos trabalhos qualquer outro valor que o de
uma obra filosófica deduzida da observação e da experiência, sem jamais nos considerarmos
chefe da doutrina, nem querermos impor as nossas ideias a ninguém. Publicando essas ideias,
usamos de um direito comum e aqueles que as aceitaram o fizeram livremente. Se essas ideias
acharam numerosas simpatias, é porque tiveram a vantagem de corresponder às aspirações de
um grande número, do qual não podemos nos envaidecer, posto que sua origem não nos
pertence. Nosso maior mérito é o da perseverança e da dedicação à causa que abraçamos. Em
tudo isso, temos feito o que qualquer outro poderia fazer como nós; essa é a razão pela qual
nunca tivemos a pretensão de nos julgarmos profeta ou messias, nem muito menos de nos
apresentarmos como tal.
40 – Allan Kardec
47. Esta circunstância — inédita na história das doutrinas — lhe dá uma força
excepcional e um poder de ação irresistível; de fato, se a reprimem em um
ponto, em num determinado país, é materialmente impossível reprimi-la em
todos os pontos, em todos os países. Para cada lugar onde ela seja entravada,
haverá mil outros ao lado onde ela florescerá. E mais: se a atingirem num
indivíduo, não poderão atingi-la nos Espíritos, que são a sua fonte. Ora, como
os Espíritos estão em toda parte e existirão sempre, se eventualmente
conseguissem sufocá-la em todo o globo, ela reapareceria qualquer tempo
depois, porque ela repousa sobre um fato, e que esse fato está na natureza
— e não se pode suprimir as leis da natureza. É disso que devem se convencer
aqueles que sonham com a aniquilação do Espiritismo. (Revista espírita, fev.
de 1865: Perpetuidade do Espiritismo.)
49. As duas primeiras revelações não podiam ser mais do que o resultado de
um ensinamento direto; elas deviam se impor à fé pela autoridade da palavra
25 Seita: doutrina religiosa ou teoria filosófica separada da opinião geral da qual se originou;
facção, divisão, partido. – N. T.
41 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
do mestre, pois os homens não eram bastante avançados para contribuir com
sua elaboração.
Todavia, notemos entre elas uma diferença bem sensível quanto ao
progresso dos costumes e das ideias, se bem que elas eram feitas entre o
mesmo povo e no mesmo meio, só que depois de dezoito séculos de intervalo.
A doutrina de Moisés é absolutista, autoritária; ela não admite discussão e se
impõe ao povo todo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é
livremente aceita e só se impõe pela persuasão; ela é debatida já desde a vida
do seu fundador, que não deixava de discutir com seus adversários.
52. Além disso, é notável que em nenhuma parte o ensino espírita foi dado de
uma maneira completa; ele diz respeito a tão grande número de observações,
sobre assuntos tão diversos que exigem tanto conhecimentos quanto aptidões
mediúnicas especiais, que seria impossível reunir num mesmo ponto todas as
condições necessárias. Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os
Espíritos dividiram o trabalho, disseminando os objetos de estudo e de
observação, assim como em algumas fábricas a confecção de cada parte de um
mesmo objeto é repartida entre diferentes operários.
A revelação é assim feita parcialmente, em diversos lugares e por uma
multidão de intermediários, e é dessa maneira que prossegue ainda neste
momento, pois que nem tudo foi revelado. Cada centro encontra nos outros
centros o complemento daquilo que obtém, e é o conjunto e a coordenação de
todos os ensinamentos parciais que têm constituído a doutrina espírita.
Portanto, era necessário agrupar os fatos espalhados para ver sua
correlação, reunir os documentos diversos, as instruções dadas pelos
Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os assuntos, para compará-los,
analisá-los e estudar suas semelhanças e diferenças. Sendo as comunicações
dadas por Espíritos de todas as ordens e mais ou menos esclarecidos, era
preciso apreciar o grau de confiança que a razão permitia lhes conceder e
distinguir as ideias sistemáticas individuais e isoladas das que tinham a
aprovação do ensinamento geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas;
afastar aquelas que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência
positiva e da sensata lógica, utilizar igualmente os erros e as informações
fornecidas pelos Espíritos, mesmo os da mais baixa categoria, para o
43 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
53. Desse estado de coisas, resultou uma dupla corrente de ideias: umas,
partindo das extremidades para o centro e as outras retornando do centro à
circunferência. É assim que a doutrina tem caminhado prontamente em
direção à unidade, malgrado a diversidade das fontes de onde ela emanou;
que as teorias divergentes pouco a pouco caem, pelo fato de seu isolamento,
diante da influência da opinião da maioria, na falta de aí encontrar
repercussões simpáticas. Uma comunhão de pensamentos desde então se
estabeleceu entre os diversos centros parciais; falando a mesma linguagem
espiritual, eles se compreendem e se simpatizam de um extremo a outro do
mundo.
Os Espíritos se sentiram mais fortes, lutaram com mais coragem,
26 O Livro dos Espíritos, a primeira obra que fez o Espiritismo entrar na via filosófica, pela
dedução das consequências morais dos fatos, que abordou todas as partes da doutrina, tocando
nas questões mais importantes que ela suscita, tem sido, desde o seu aparecimento, o ponto
para onde convergiram espontaneamente os trabalhos individuais. É notório que da publicação
desse livro data a Era do Espiritismo filosófico, até então conservado no domínio das
experiências da curiosidade. Se esse livro conquistou as simpatias da maioria, é que ele era a
expressão dos sentimentos dessa maioria, e que correspondia às suas aspirações; é assim
também porque cada qual encontrou nele a confirmação e uma explicação racional do que se
obtinha em particular. Se estivesse em desacordo com o ensino geral dos Espíritos, ele não teria
tido nenhum crédito e prontamente teria caído no esquecimento. Ora, para o que convergimos?
Não é para o homem, que não é nada por si mesmo, agente operário que morre e desaparece,
mas para a ideia que não perece quando emana de uma fonte superior ao homem.
Essa concentração espontânea de forças dispersas deu lugar a uma imensa
correspondência, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do
Espiritismo moderno, onde se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos
múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações, os desfalecimentos;
arquivos preciosos para a posteridade, que poderá julgar os homens e as coisas através de
documentos autênticos. Na presença dessas provas irrecusáveis, o que será de agora em diante
de todas as falsas alegações e difamações da inveja e do ciúme?
44 – Allan Kardec
caminharam com passo mais firme, desde que não mais se viram isolados,
desde que perceberam um ponto de apoio, um laço que os reuniu à grande
família; os fenômenos que testemunhavam então não mais lhes pareceram
estranhos, anormais nem contraditórios, desde que puderam vinculá-los às
leis gerais da harmonia, abarcar de um golpe de vista a edificação, e descobrir
em todo esse conjunto um fim grandioso e humanitário.27
Mas como saber se um princípio é ensinado por toda parte ou se não é
apenas o resultado de uma opinião individual? Os grupos isolados não
estando em condições de saber o que se diz noutros lugares, seria necessário
que um centro reunisse todas as instruções para fazer uma espécie de
apanhado das vozes e levar ao conhecimento de todos a opinião da maioria.28
apanhado. Todas as opiniões são discutidas nelas, mas as questões somente são formuladas em
princípios depois de haverem recebido a consagração de todas as comprovações que, só elas,
podem lhes dar força de lei e permitir afirmá-las. Eis por que não defendemos apressadamente
qualquer teoria e é nisso que a doutrina, procedendo do ensino geral, não é o produto de um
sistema preconcebido; é também o que dá a sua força e o que garante o seu futuro.
45 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
54. Não há nenhuma ciência que tenha tirado todas as peças do cérebro de um
só homem; todas — sem exceção — são o produto das observações
sucessivas, apoiando-se em observações precedentes, como em um ponto
conhecido para chegar ao desconhecido. É assim que os Espíritos têm
procedido para com o Espiritismo; daí o fato de o seu ensinamento ser
gradativo; eles não abordam as questões senão à medida que os princípios
sobre os quais devam se apoiar estejam suficientemente elaborados e que a
opinião esteja bastante madura para lhes assimilar. É mesmo notável que
todas as vezes que os centros particulares quiseram tratar de questões
prematuras eles não obtiveram mais do que respostas contraditórias e não
conclusivas. Quando, ao contrário, é chegado o momento favorável, o
ensinamento se generaliza e se unifica na quase universalidade dos centros.
Todavia, entre a marcha do Espiritismo e a das ciências há uma diferença
capital, que é a de que estas só atingiram o ponto que alcançaram após longos
intervalos, ao passo que bastaram alguns anos para o Espiritismo, senão para
alcançar o ponto máximo, pelo menos para recolher uma soma de
observações bastante grande para constituir uma doutrina. Isto se deve à
multidão inumerável de Espíritos que, pela vontade de Deus, manifestaram-se
simultaneamente, trazendo cada qual a sua parcela de conhecimentos.
Resultou daí que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas
sucessivamente durante vários séculos, foram produzidas quase ao mesmo
tempo, em apenas alguns anos, e que bastou reuni-las para formar um todo.
Deus quis que fosse assim, primeiramente para que o edifício chegasse
mais rapidamente ao ápice; em segundo lugar, para que pudéssemos, por
meio da comparação, ter uma comprovação a bem dizer imediata e
permanente da universalidade do ensino, não tendo nenhuma de suas partes
valor e nem autoridade a não ser pela sua conexão com o conjunto, devendo
todas se harmonizar, achar seu lugar no registro geral, e chegar cada qual no
seu tempo.
Não confiando a um único Espírito o encargo da promulgação da
doutrina, Deus quis de outra forma que tanto o mais pequenino quanto o
maior entre os Espíritos e entre os homens trouxessem sua pedra ao edifício,
a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa que
46 – Allan Kardec
29Ver em O Evangelho segundo o Espiritismo, ‘Introdução’, item II, e Revista Espírita, de abril
de 1864: ‘Autoridade da Doutrina Espírita; controle universal do ensino dos Espíritos’.
30Diante de declarações tão nítidas e tão categóricas, quais as que se contêm neste capítulo,
caem todas as alegações de tendências ao absolutismo e à autocracia dos princípios, todas as
47 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
56. Qual é a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, já que ela não é outra
senão aquela do Cristo? O homem carece de uma revelação? Não poderia
encontrá-la em si próprio tudo o que é necessário para se conduzir?
Do ponto de vista moral, sem dúvida, Deus concedeu ao homem um guia
na consciência que lhe diz: “Não faça a ninguém o que não gostaria que te
fizessem”. A moral natural certamente está inscrita no coração dos homens;
porém, todos sabem lê-la? Nunca eles violaram seus sábios preceitos? O que
eles têm feito da moral do Cristo? Como a praticam aqueles mesmos que a
ensinam? Ela não se tornou uma letra morta, uma bela teoria, boa para os
outros e não para si? Vocês repreenderão a um pai por repetir dez vezes ou
cem vezes as mesmas instruções aos seus filhos, se eles não as aproveitarem?
Por que Deus faria menos do que um pai de família? Por que não enviaria, de
tempos em tempos, mensageiros especiais entre os homens para lembrá-los
de seus deveres, para reconduzi-los ao bom caminho quando dele se afastam,
para abrir os olhos da inteligência aos que os têm fechados, assim como os
homens mais adiantados enviam missionários aos selvagens e aos bárbaros?
Os Espíritos não ensinam outra moral senão aquela do Cristo, pela razão
que não há outra moral melhor. Mas então, a quem serve o seu ensinamento,
já que só dizem aquilo que já sabemos? Outro tanto se poderia dizer da moral
do Cristo, que foi ensinada quinhentos anos antes dele por Sócrates e Platão, e
em termos quase idênticos; de todos os moralistas que repetem as mesmas
coisas sobre todos os tons e sobre todas as formas. Pois bem! Os Espíritos
vêm simplesmente aumentar o número dos moralistas, com a diferença
que, manifestando-se em toda parte, eles se fazem ouvir tanto num barraco
quanto num palácio, tanto aos ignorantes quanto aos instruídos.
O que o ensinamento dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o
conhecimento dos princípios que enlaçam os mortos e os vivos, que
completam as noções vagas que se tinham da alma, de seu passado e de seu
futuro, e que dão por sanção à sua doutrina cristã as próprias leis da natureza.
Com a ajuda das novas luzes trazidas pelo Espiritismo e pelos Espíritos, o
homem compreende a solidariedade que liga todos os seres; a caridade e a
fraternidade tornam-se uma necessidade social; faz por convicção o que se
fazia unicamente por dever — e o faz melhor.
Quando os homens praticarem a moral do Cristo, só então poderão dizer
que não mais precisam de moralistas encarnados ou desencarnados; sendo
assim, Deus também não lhes enviará tais moralistas.
57. Uma das questões mais importantes entre as propostas no começo deste
capítulo é a seguinte: qual é a autoridade da revelação espírita, já que ela
emana de seres cujas luzes são limitadas e não são infalíveis?
A objeção seria séria se essa revelação consistisse apenas no ensino dos
Espíritos, se a devêssemos receber exclusivamente deles e aceitá-la de olhos
fechados; essa objeção fica sem valor desde o instante em que o homem dá a
ela a contribuição de sua inteligência e do seu julgamento; que os Espíritos se
limitam a colocar no caminho das deduções que ele pode tirar da observação
dos fatos. Ora, as manifestações e suas inumeráveis variedades são fatos; o
homem os estuda e procura a sua lei; ele é auxiliado nesse trabalho por
Espíritos de todas as categorias, que são mais colaboradores do que
reveladores, no sentido usual da palavra; ele submete os seus dizeres ao
controle da lógica e do bom-senso; dessa maneira, beneficia-se dos
conhecimentos especiais que devem à sua posição, sem abdicar do uso de sua
própria razão.
Não sendo os Espíritos nada além do que as almas dos homens, em se
comunicando com eles nós não deixamos a humanidade — circunstância
capital a considerarmos. Os homens sábios que foram as bandeiras da
humanidade vieram, portanto, do mundo dos Espíritos, e para lá retornaram
quando deixaram a Terra. Desde que os Espíritos podem se comunicar com os
homens, esses mesmos gênios podem lhes dar instruções sob a forma
espiritual, como fizeram sob a forma corporal; podem nos instruir após sua
morte, tal qual faziam quando vivos; eles apenas estão invisíveis, em vez de
visíveis — essa é a única diferença. Sua experiência e sua sabedoria não
podem ser menores, e se palavra deles tinha autoridade, como homens, não
49 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
58. Mas não são apenas os Espíritos superiores que se manifestam, são
também Espíritos de todas as categorias, e isso era necessário para nos
iniciarmos no verdadeiro caráter do mundo espiritual, mostrando-nos aquele
mundo com todas as suas faces; por isso, as relações entre o mundo visível e o
mundo invisível são mais íntimas e a conectividade é mais evidente; vemos
mais claramente de onde viemos e para onde vamos; esse é o objetivo
essencial dessas manifestações. Todos os Espíritos — qualquer que seja o
nível em que se encontrem — nos ensinam então alguma coisa; porém, como
eles são mais ou menos esclarecidos, cabe a nós discernir o que há neles de
bom ou de mau, e tirar o proveito que seus ensinamentos contenham; ora,
sejam eles quem forem, todos podem nos ensinar ou revelar coisas que
ignoramos e que sem eles nunca o saberíamos.
relâmpago; cada qual se diz: “Os nossos entes não morreram!” E rendem
graças a Deus. Eles não podem se ver, mas se correspondem; trocam
demonstrações de afeto e eis que a alegria substitui à tristeza.
Assim é a imagem da vida terrena e da vida de além-túmulo, antes e
depois da revelação moderna; esta, semelhante ao segundo navio, nos traz a
boa-nova da sobrevivência dos que são queridos por nós e a certeza de que a
eles nos juntaremos um dia; a dúvida sobre a sorte deles e a nossa não mais
existe; o desânimo se desfaz diante da esperança.
E outros resultados vêm fertilizar essa revelação. Deus, julgando a
humanidade madura para penetrar os mistérios de sua destinação e
contemplar de sangue frio novas maravilhas, permitiu que o véu que separava
o mundo visível do mundo invisível fosse erguido. O fato das manifestações
nada tem de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem conversar
com a humanidade corporal e lhe dizer:
“Nós existimos, logo o nada não existe; eis o que somos e o que vocês
serão; o futuro é de vocês como é para nós. Vocês caminhavam nas trevas e
nós viemos lhes clarear o caminho e traçar o seu roteiro; vocês andavam ao
acaso e nós mostramos a direção. A vida terrestre era tudo para vocês, porque
nada viam além dela; viemos lhes dizer, mostrando a vida espiritual: A vida
terrestre não é nada. Vossa visão se detinha no túmulo e nós lhes mostramos
para mais adiante um esplêndido horizonte. Não sabiam por que sofrem na
Terra e agora, no sofrimento, vocês enxergam a justiça de Deus; o bem era
sem fruto aparente para o futuro, mas de agora em diante ele terá uma
finalidade e constituirá uma necessidade; a fraternidade não passava de uma
bela teoria, e agora está assentada numa lei da natureza. Sob o império da
crença de que tudo acaba com a vida, a imensidão está vazia, o egoísmo reina
soberano entre vocês e a vossa palavra de ordem é: ‘Cada um por si”; com a
certeza do porvir, os espaços infinitos se povoam ao infinito e o vazio e a
solidão não ocupam nenhum lugar, a solidariedade liga todos os seres aquém
e além da tumba; é o reino da caridade, sob o lema: “Um por todos e todos por
um”. Enfim, ao término da vida vocês davam eterno adeus aos que lhes são
caros e agora dizem: ‘Até breve!’”
Em resumo, estes são os resultados da nova revelação; ela veio
53 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
31 O uso do artigo antes da palavra Cristo (do grego Christos, ungido), uso esse em um sentido
absoluto, é mais correto, posto que essa palavra não é o nome do Messias de Nazaré, mas uma
qualidade tomada como substantivo. Diz-se então: Jesus era Cristo; ele era o Cristo anunciado; a
morte do Cristo e não de Cristo, enquanto dizemos: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus
Cristo, as duas palavras reunidas formam um só nome próprio. É pela mesma razão que se diz: o
Buda; Gautama adquiriu a dignidade de Buda pelas suas virtudes e alteridades; a vida do Buda,
como se diz: o exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do
rei, e não de rei.
Nota do tradutor: o artigo a que Allan Kardec faz referência na nota acima aparece em
português na forma contraída com a preposição (pelo = por + o), conforme lemos em “... o reino
de Deus anunciado pelo Cristo.”; enquanto isso, em francês, esse artigo aparece em destaque e
separado da preposição (par + le): “... le règne de Dieu annocé par le Christe.”
54 – Allan Kardec
CAPÍTULO II
Deus
EXISTÊNCIA DE DEUS – DA NATUREZA DIVINA
– A PROVIDÊNCIA – VISUALIZAÇÃO DE DEUS
EXISTÊNCIA DE DEUS
32Axioma: ideia tão racional e evidente que em geral é tomada como uma verdade, sentença,
máxima, provérbio — N. T.
55 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
vemos uma obra-prima da arte ou da indústria, dizemos que ela deve ser o
produto de um gênio, porque só uma alta inteligência poderia ter presidido a
sua confecção; julgamos que nada menos que um homem deve tê-la feito, pois
sabemos que a coisa não está acima da capacidade humana, mas não virá a
ninguém a ideia de dizer que ela saiu da cabeça de um idiota ou de um
ignorante, e menos ainda que ela é o trabalho de um animal ou produto do
acaso.
revelação, mas pela evidência material dos fatos. Os povos selvagens não
tiveram nenhuma revelação e, entretanto, creem instintivamente na
existência de um poder sobre-humano; eles veem as coisas que estão acima
do poder do humano e deduzem que elas vêm de um ser superior à
Humanidade. Eles não são mais lógicos do que aqueles que acham que elas
são feitas por si mesmas?
DA NATUREZA DIVINA
35Onipotência: qualidade e condição que atribuímos a Deus como única potência e, portanto,
como força soberana, acima de tudo e de todos – N. T.
58 – Allan Kardec
10. Deus é eterno, quer dizer que não teve começo nem terá fim. Se tivesse
tido um começo, ele teria saído do nada; ora, não sendo coisa alguma, o nada
não pode produzir nada; ou ainda, se ele tivesse sido criado por outro ser
anterior, nesse caso, este outro ser é que seria Deus. Se lhe supuséssemos um
começo ou um fim, poderíamos então conceber um ser que tivesse existido
antes dele ou podendo existir depois dele, e assim por diante até o infinito.
11. Deus é imutável. Se ele estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o
Universo não teriam nenhuma estabilidade.
12. Deus é imaterial, isto é, sua natureza difere de tudo o que chamamos
matéria; de outro modo, ele não seria imutável, pois estaria sujeito às
transformações da matéria.
Deus não tem forma apreciável aos nossos sentidos, sem o que seria
matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o
homem — que não conhece nada além de si mesmo — toma a si próprio como
modelo de comparação para tudo o que não compreende. Essas imagens em
que Deus é representado pela figura de um ancião de longas barbas e coberto
de um manto são ridículas; elas têm o inconveniente de rebaixar o Ser
supremo até as mesquinhas proporções da Humanidade; daí, para lhe
atribuírem as paixões humanas e a fazerem dele um Deus colérico e ciumento
não falta um passo.
infinitamente bom não poderia ter a menor parcela de maldade, nem o ser
infinitamente mau poderia ter a menor parcela de bondade; do mesmo modo
que um objeto não poderia ser de um negro absoluto com a mais ligeira
tonalidade de branco, nem de um branco absoluto com o mais pequenino
ponto preto.
Deus então não poderia ser ao mesmo tempo bom e mau, porque, não
possuindo nenhuma dessas duas qualidades no grau supremo, ele não seria
Deus; todas as coisas estariam sujeitas ao capricho e não haveria estabilidade
em nada. Assim sendo, ele não poderia deixar de ser ou infinitamente bom ou
infinitamente mau; ora, como suas obras testemunham sua sabedoria, sua
bondade e sua solicitude, devemos concluir que, não podendo ser ao mesmo
tempo bom e mau sem deixar de ser Deus, ele deve ser infinitamente bom.
A soberana bondade requer a soberana justiça, pois se ele agisse
injustamente ou com parcialidade em uma só circunstância, ou com relação
a uma só de suas criaturas, já não seria soberanamente justo, e por
conseguinte, já não seria soberanamente bom.
18. Em resumo, Deus não pode ser Deus senão sob a condição de não ser
ultrapassado em nada por nenhum outro ser, pois o ser que o superasse no
que quer que fosse, ainda que apenas na espessura de um cabelo, este é que
seria o verdadeiro Deus; por isso, é indispensável que ele seja infinito em
todas as coisas.
É assim que, estando a existência de Deus constatada pela evidência das
suas obras, chegamos, pela simples dedução lógica, a determinar os atributos
que lhe caracterizam.
A PROVIDÊNCIA
20. A providência é o cuidado de Deus para com suas criaturas. Deus está em
toda parte, vê tudo, a tudo preside, mesmo às coisas mais mínimas; é nisto
que consiste a ação providencial.
“Sendo Deus tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, como pode se
imiscuir em detalhes minúsculos, preocupar-se com os menores atos e com os
ínfimos pensamentos de cada indivíduo?” Esta é uma interrogação que o
incrédulo propõe a si mesmo, donde conclui que, em admitindo a existência
de Deus, sua ação não deva se estender além das leis gerais do Universo; que
o Universo funcione de toda a eternidade em virtude dessas leis, às quais toda
criatura está submetida na esfera da atividade, sem que seja preciso a
intervenção incessante da providência.
23. As propriedades do fluido perispiritual podem nos dar uma ideia disso.
Ele não é por si mesmo inteligente, porque é matéria, mas é o veículo do
pensamento, das sensações e das percepções do Espírito.
O fluido perispiritual não é o pensamento do Espírito, mas é o agente e o
intermediário desse pensamento; como é ele quem o transmite, de certo
modo fica impregnado dele, e, na impossibilidade em que estamos de o
isolar, ele parece se confundir com um fluido, como o som parece se confundir
com o ar, de tal modo que, por assim dizer, podemos materializá-lo. Do
mesmo modo que dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos dizer —
tomando o efeito pela causa — que o fluido se torna inteligente.
24. Seja assim ou não o pensamento de Deus, ou seja, que ele atue
diretamente ou por intermédio de um fluido, para a facilidade de nossa
inteligência, vamos representá-lo sob a forma concreta de um fluido
inteligente preenchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da
criação: a natureza inteira está mergulhada no fluido divino; ora, em
virtude do princípio que as partes de um todo são da mesma natureza e têm
as mesmas propriedades que o todo, cada átomo desse fluido, se assim
63 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
26. Temos constantemente sob nossos olhos um exemplo que pode nos dar
uma ideia da maneira como a ação de Deus pode ser exercida sobre as partes
mais íntimas de todos os seres, e conseguintemente como as mais sutis
impressões de nossa alma chegam a ele. Esse exemplo foi tirado de uma
instrução dada por um Espírito sobre tal assunto.
que o compõem, seus músculos, seus nervos e suas articulações são outras
tantas individualidades materiais — se assim podemos dizer — localizadas
em pontos especiais do corpo; se bem que seja considerável o número dessas
partes constitutivas, tão variadas e tão diferentes por natureza, não é
entretanto duvidoso para ninguém que não se possa produzir movimentos ou
que nenhuma impressão possa ocorrer um determinado lugar sem que o
Espírito não tenha consciência disso. Há sensações diversas em muitos
lugares simultaneamente? O Espírito sente todas elas, distingue-as, analisa-as,
atribui a cada uma a sua causa e o seu ponto de ação por intermédio do fluido
perispiritual.
“Um fenômeno semelhante ocorre entre a criação e Deus. Deus está em
toda parte na natureza, como o Espírito está em toda a parte do corpo; todos
os elementos da criação estão em constante relação com ele, como todas as
células do corpo humano se acham em contato imediato com o ser espiritual;
logo, não há razão para que fenômenos da mesma ordem não se produzam da
mesma maneira num e noutro caso.
“Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o
sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são
postos em vibração: o Espírito sente cada manifestação, distingue-o e o
localiza. As diferentes criações e as diferentes criaturas se agitam, pensam,
agem diversamente, e Deus sabe tudo o que se passa e atribui a cada um o que
lhe é particular.
“Daí podemos deduzir igualmente a solidariedade da matéria e da
inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de
todos os mundos e, enfim, das criações e do Criador.” (Quinemant, Sociedade
de Paris, 1867.)
o compreendemos?
VISUALIZAÇÃO DE DEUS
31. Já que Deus está em toda parte, por que não o vemos? Nós o veremos
quando deixarmos a Terra? Tais são as questões que se faz diariamente.
À primeira é fácil responder; nossos órgãos materiais têm percepções
limitadas que os tornam impróprios para ver certas coisas — mesmo coisas
materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente da nossa vista e aos
instrumentos de análise, e, contudo, não duvidamos da existência deles.
Vemos os efeitos da peste, mas não o fluido que a transporta; vemos os corpos
se moverem sob a influência da força da gravidade, mas não vemos essa força.
66 – Allan Kardec
32. As coisas de essência espiritual não podem ser percebidas pelos órgãos
materiais; só com a visão espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas
do mundo imaterial; por isso, somente a nossa alma pode ter a percepção de
Deus. Ela o verá imediatamente após a morte? Isto é o que somente as
comunicações de além-túmulo podem nos ensinar. Por elas, nós sabemos que
a visualização de Deus é privilégio apenas das almas mais purificadas, e, desse
modo, deixando o corpo terreno, bem poucas possuem o grau de
desmaterialização necessária. Uma comparação simples tornará isso
facilmente compreensível.
33. Aquele que esteja no fundo de um vale envolvido por um denso nevoeiro
não vê o Sol; entretanto, pela luz difusa ele percebe a presença solar. Se ele
sobe a montanha, à medida que se eleva, o nevoeiro se dissipa, a luz fica cada
vez mais viva, mas ainda não vê o Sol. Só depois que ele estiver subido
completamente acima da camada brumosa é que, encontrando-se num ar
perfeitamente puro, ele o vê em todo o seu esplendor.
Assim é com a alma. O envoltório perispiritual — embora seja invisível e
impalpável para nós — é para ela uma verdadeira matéria, bastante grosseira
para certas percepções. Esse envoltório se espiritualiza à medida que a alma
se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como camadas
brumosas que obscurecem sua visão; cada imperfeição de que ela se desfaz é
uma mancha a menos; todavia, só depois de ser completamente depurada é
que desfruta da plenitude de suas capacidades.
34. Sendo Deus a essência divina por excelência, não pode ser percebido em
todo o seu esplendor exceto pelos Espíritos que chegaram ao mais alto nível
de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o veem, não é porque
estejam mais distantes dele do que os outros; igual àqueles, como a todos os
seres da natureza, eles se encontram mergulhados no fluido divino, do mesmo
modo que nós estamos mergulhados na luz; só que suas imperfeições são
como vapores que lhes tiram a vista; quando o nevoeiro for dissipado, eles o
verão resplandecer; para isso, eles não precisarão subir nem o procurar nas
profundezas do infinito; estando a visão espiritual desembaraçada dos
67 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
entraves morais que a obscureciam, eles verão Deus de onde quer que
estejam, até mesmo da Terra, porque ele está em toda parte.
36. Portanto, nenhum homem pode ver Deus com os olhos da carne. Se esse
favor fosse concedido a alguns, isso não poderia ser senão em estado de
êxtase, quando a alma estivesse tão desprendida dos laços da matéria quanto
possível durante a encarnação. Tal privilégio, aliás, seria o das almas da elite,
encarnadas em missão, e não em expiação. Mas, como os Espíritos da mais
elevada ordem resplandecem de um brilho deslumbrante, pode ser que
Espíritos menos elevados — encarnados ou desencarnados — atingidos pelo
esplendor que os cerca, suponham ver o próprio Deus. É como às vezes se vê
um soberano ser confundido com seu ministro.
37. Sob qual aparência Deus se apresenta aos que se tornaram dignos dessa
graça? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um
foco resplendente de luz? Isto é o que a linguagem humana é impotente para
descrever, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de
nos dar uma ideia disso; somos como cegos aos quais se procurasse em vão
fazer que eles compreendessem o brilho do Sol. Nosso vocabulário é limitado
pelas nossas necessidades e pelo círculo de nossas ideias; o vocabulário dos
68 – Allan Kardec
CAPÍTULO III
O bem e o mal
ORIGEM DO BEM E DO MAL – O INSTINTO E A INTELIGÊNCIA
– DESTRUIÇÃO MÚTUA DOS SERES VIVOS
36 Na religião zoroástrica (antiga religião dos persas) Ariname significa o princípio do mal,
senhor das trevas, mais ou menos equivalente a Satanás na tradição cristã – N. T.
70 – Allan Kardec
4. O homem recebeu uma cota de inteligência com cujo auxílio ele pode
afastar, ou pelo menos atenuar consideravelmente os efeitos de todos os
flagelos naturais; quanto mais ele adquire sabedoria e avança em civilização,
menos desastrosos são esses flagelos; com uma organização social
sabiamente previdente ele poderá até neutralizar as consequências, quando
elas não puderem ser inteiramente evitadas. Assim, por esses mesmos
flagelos, que têm sua utilidade na ordem geral da natureza e para o futuro,
mas que fere no presente, Deus deu ao homem — pelas qualidades com as
quais seu Espírito foi dotado — os meios de paralisar os efeitos.
Assim é que ele saneia as regiões insalubres, que ele neutraliza os
miasmas pestilentos, que ele fertiliza terras incultas e se esforça para
preservá-las das inundações; é assim que ele constrói habitações mais
seguras, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação
da atmosfera e se coloca ao abrigo das catástrofes; enfim, é assim que pouco a
71 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
pouco a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio das quais melhora as
condições de habitação do globo e aumenta a soma do seu bem-estar.
5. Como o homem deve progredir, os males aos quais está exposto são um
estímulo para o exercício de sua inteligência, de todas as suas capacidades
físicas e morais, forçando-o a buscar meios de diminuir esses malefícios. Se
não tivesse nada a temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o
melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; não inventaria e nem
descobriria nada. A dor é o incentivo que impulsiona o homem para frente
na estrada do progresso.
6. Porém os males mais numerosos são aqueles que o homem cria pelos seus
próprios vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua
ambição, de sua cobiça e de seus excessos em todas as coisas: aí está a causa
das guerras e das calamidades que estas acarretam, dos conflitos, das
injustiças, da opressão do fraco pelo forte, enfim, da maior parte das
enfermidades.
Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria que não tem outro objetivo
senão o bem; o homem encontra em si mesmo tudo o que lhe é necessário
para cumpri-las; sua rota é traçada pela sua consciência; a lei divina está
gravada no seu coração, e, além do mais, Deus lhe faz lembrar delas sem
cessar através dos seus messias e seus profetas, de todos os Espíritos
encarnados que têm recebido a missão de o esclarecer, moralizá-lo e o
melhorar — e nestes últimos tempos, pela multidão de Espíritos
desencarnados que se manifestam em todas as partes. Se o homem se
conformasse rigorosamente com as leis divinas, não há dúvidas de que ele
pouparia a si mesmo dos mais cruciantes males e viveria feliz na Terra. Se
assim não o fizer, é em virtude de seu livre-arbítrio, e então ele sofre as suas
consequências. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, itens 4, 5. 6 e
seguintes.)
não existiria.
Se o homem tivesse sido criado perfeito, ele fatalmente seria inclinado
ao bem; ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem
para o bem nem para o mal. Quis Deus que ele fosse submetido à lei do
progresso e que esse progresso fosse fruto do seu próprio trabalho, a fim de
que ele tivesse o seu mérito, da mesma maneira que lhe cabe a
responsabilidade do mal que for feito por sua vontade. Logo, a questão
consiste em saber qual é, no homem, a fonte de sua tendência para o mal.37
10. Se estudarmos todas as paixões e mesmo todos os vícios, veremos que eles
têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto se encontra com
toda a sua força nos animais e nos seres primitivos que mais se aproximam da
animalidade; apenas aí ele domina, porque ainda não há neles o contrapeso
do senso moral; o ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto, ao
contrário, se enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque
esta domina a matéria.
O destino do Espírito é a vida espiritual; no entanto, nas primeiras fases
da sua existência corpórea ele só tem necessidades materiais a satisfazer, e
para isso o exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da
espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas ultrapassado esse
período, ele tem outras carências, a princípio carências semimorais e
semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina
a matéria; se ele se livrar do jugo, avança pela senda providencial e se
aproxima da sua destinação final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela
matéria, atrasa-se e se assemelha ao bruto. Nessa situação, o que antes era
um bem — porque era uma necessidade da sua natureza — transforma-se
num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, mas porque se
37O erro consiste em se pretender que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando
este, ao contrário, quis que a perfeição fosse o resultado da depuração gradual do Espírito e da
sua própria obra. Deus quis que a alma, em virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o
bem e o mal, e que chegasse a suas finalidades últimas por uma vida ativa e em resistência ao
mal. Se tivesse criado a alma tão perfeita quanto ele, e que, saindo das suas mãos, a tivesse
associado à sua beatitude eterna, Deus teria feito, não à sua imagem, mas semelhante a si
próprio. (Bonnamy, juiz de instrução: La Raison du Spiritisme [A Razão do Espiritismo], cap. VI).
74 – Allan Kardec
O INSTINTO E A INTELIGÊNCIA
15. Nesta ordem de ideias, podemos ir ainda mais longe. Essa teoria, por mais
racional que seja, não resolve todas as dificuldades da questão.
Se observarmos os efeitos do instinto, em primeiro lugar notaremos uma
unidade de vistas e do conjunto, uma segurança de resultados que não existe
mais desde que o instinto seja substituído pela inteligência livre; ademais, à
apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às
necessidades de cada espécie, reconheceremos uma profunda sabedoria. Essa
unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento, e a
unidade de pensamentos é incompatível com a diversidade de aptidões
individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão perfeitamente
harmonioso que se produz desde a origem dos tempos e em todos os climas,
com regularidade e precisão matemáticas, sem jamais causar defeito. A
uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um fato característico
que obrigatoriamente implica a unidade da causa; se essa causa fosse
inerente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos
quantos indivíduos houvesse, desde a planta até o homem. Um efeito geral,
uniforme e constante há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um
efeito que demonstra sabedoria e previdência há de ter uma causa sábia e
previdente. Ora, uma causa sábia e previdente, sendo necessariamente
inteligente, não pode ser exclusivamente material.
Não encontrando nas criaturas encarnadas ou desencarnadas as
qualidades necessárias para produzir tal resultado, temos que subir mais alto,
isto é, ao próprio Criador. Se nos reportamos à explicação que foi dada sobre a
78 – Allan Kardec
maneira como se pode conceber a ação providencial (cap. II, item 24) e se
imaginarmos todos os seres penetrados do fluido divino, soberanamente
inteligente, compreenderemos a previdente sabedoria e a unidade de vistas
que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada
indivíduo. Tanto mais ativa é essa solicitude quanto menos recursos tem o
indivíduo em si mesmo e na sua própria inteligência; é por isso que ela se
mostra maior e mais absoluta nos animais e nos seres inferiores do que no
homem.
A partir dessa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia sempre
seguro. O instinto materno — o mais nobre de todos e que o materialismo
rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria — fica realçado e enobrecido.
Em razão das suas consequências, não seria preciso que ele fosse entregue às
eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Por intermédio
da mãe, o próprio Deus vela pelas suas criaturas que nascem.
16. Esta teoria de modo nenhum anula o papel dos Espíritos protetores, cujo
auxílio é fato observado e comprovado pela experiência; contudo, devemos
notar que a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica
segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido, e que em parte
nenhuma apresenta a uniformidade e a generalidade do instinto. Em sua
sabedoria, o próprio Deus conduz os cegos, porém confia às inteligências
livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a
responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores é um dever
que eles aceitam voluntariamente, e que é para eles um meio de avanço,
conforma a maneira como a cumprem.
19. O homem que agisse constantemente pelo instinto poderia ser muito bom,
mas conservaria adormecida a sua inteligência; seria igual criança que não
deixasse as andadeiras e não soubesse se utilizar de seus membros. Aquele
que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, mas ao mesmo
tempo ser muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões só
são dominadas pelo esforço da vontade.
20. A destruição recíproca dos seres vivos é uma das leis da natureza que, à
primeira vista, menos parecem se conciliar com a bondade de Deus. Pergunta-
80 – Allan Kardec
24. Nos seres inferiores da criação, naqueles em quem o senso moral não
existe e a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não tem outro
propósito senão a satisfação de uma necessidade material; ora, uma das mais
imperiosas dessas necessidades é a da alimentação; eles então lutam
unicamente para viver, isto é, para pegar ou manter uma presa, pois eles não
poderiam ser estimulados por um propósito mais elevado. É nesse primeiro
período que a alma se elabora e ensaia para a vida.
No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do
bruto; nas primeiras fases, o instinto animal domina e a luta ainda tem por
39 Sem nada prejulgar sobre as consequências que podemos tirar desse princípio, queríamos
apenas demonstrar, por essa explicação, que a destruição mútua dos seres vivos não derroga
em nada a sabedoria divina, e que tudo se encadeia nas leis da natureza. Esse encadeamento
seria necessariamente rompido se tirássemos o seu princípio espiritual; eis por que tantas
questões ficam insolúveis se só considerarmos a matéria.
As doutrinas materialistas trazem nelas o princípio de sua própria destruição; elas têm
contra si mesmas não apenas seu antagonismo com as aspirações da universalidade dos
homens e suas consequências morais que lhes farão repelir como dissolventes da sociedade,
mas também a necessidade que sentimos de realizar tudo o que nasce do progresso. O
desenvolvimento intelectual leva o homem à busca das coisas; ora, por pouco que reflita, não
demora a reconhecer a impotência do materialismo para explicar tudo. Como é que poderiam
prevalecer doutrinas que não satisfazem nem o coração, nem a razão e nem a inteligência, e que
deixam sem solução as questões mais vitais? O progresso das ideias aniquilará o materialismo,
como tem aniquilado o fanatismo.
83 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO IV
8. Mas então, alguns dizem: se a Bíblia é uma revelação divina, então Deus se
enganou? Se não é uma revelação divina, ela não tem mais autoridade, e a
religião desmorona por falta de alicerce.
Das duas coisas, uma: ou a ciência está errada, ou tem razão; se tem
razão, ela não pode fazer que uma opinião contrária seja verdadeira; não há
revelação que possa se sobrepor à autoridade dos fatos.
Incontestavelmente, não é possível que Deus — que é todo verdade —
induza os homens ao erro, nem ciente nem inscientemente, senão ele não
seria Deus. Portanto, se os fatos contradizem as palavras que lhe são
atribuídas, devemos concluir logicamente que ele não as pronunciou, ou que
elas palavras foram tomadas em sentido contrário.
Se a religião sofre dano com qualquer parte dessas contradições, a culpa
não é da ciência, que não pode fazer que aquilo que é deixe de ser; a culpa é
dos homens, por haverem prematuramente estabelecido dogmas absolutos,
dos quais fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses
suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.
Há coisas com cujo sacrifício temos de nos resignar, de boa ou má
vontade, quando não consigamos evitá-las. Quando o mundo avança, sem
poder ser detido pela vontade de alguns, o mais sensato é segui-lo e nos
adaptarmos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado
87 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
9. Seria preciso, por respeito aos textos considerados como sagrados, impor
silêncio à ciência? Isso seria uma coisa tão impossível quanto impedir que a
Terra gire. Sejam quais forem as religiões, elas jamais ganharam coisa alguma
por sustentar erros evidentes. A missão da ciência é descobrir as leis da
natureza; ora, como essas leis são obra de Deus, elas não podem ser
contrárias às religiões baseadas na verdade. Lançar anátema40 ao progresso,
como atentar contra a religião, é também ir contra a mesma obra de Deus; é,
além do mais, esforço inútil, pois nem todos os anátemas do mundo
impediriam a ciência de avançar, e a verdade se faz hoje. Se a religião se
recusa a caminhar com a ciência, a ciência avançará sozinha.
42 Expressão latina equivale a “de vista, por ter visto, por ter presenciado” — N. T.
91 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO V
Antigos e modernos
sistemas do mundo
suspeitado disso.
A Terra então era para eles uma superfície plana e circular qual uma mó
de moinho, estendendo-se a perder de vista na direção horizontal; daí a
expressão ainda em uso: ir ao fim do mundo. Seus limites, sua espessura, seu
interior, sua face inferior, o que havia embaixo, tudo era desconhecido.43
3. O céu, aparecendo sob uma forma côncava, era tida, segundo a crença
comum, como uma abóbada44 concreta, cujas bordas inferiores repousavam
sobre a Terra e demarcavam os seus confins; vasto domo cujo ar enchia toda a
capacidade. Sem nenhuma noção do espaço infinito, incapazes até mesmo de
lhe conceberem, os homens imaginavam essa abóbada constituída de uma
matéria sólida, donde vem a denominação firmamento que sobreviveu à
crença e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de
firmus e do grego herma, hermatos, firme, sustentáculo, suporte, ponto de
apoio).
4. As estrelas, cuja natureza eles não podiam suspeitar, eram simples pontos
luminosos, mais ou menos grossos, fixadas na abóbada como lâmpadas
suspensas, dispostas sobre uma única superfície e, consequentemente, todas
43 “A mitologia hindu ensinava que o Sol se despojava de sua luz ao entardecer e atravessava o
céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega figurava o carro de Apolo puxado
por quatro cavalos. Anaximandro de Mileto, ao que refere Plutarco, sustentava que o Sol era um
carrinho repleto de fogo muito vivo, que se escapava por uma abertura circular. Epicuro,
segundo uns, teria emitido a opinião de que o Sol se acendia pela manhã e se apagava à noite
nas águas do Oceano; outros pensam que desse astro se fez uma pedra-pomes [rocha vulcânica]
aquecida até à incandescência. Anaxágoras o tomava por um ferro em brasa, do tamanho do
Peloponeso. Observação estranha! Os antigos eram tão invencivelmente inclinados a considerar
como real a aparente magnitude desse astro que perseguiram a este filósofo imprudente por ter
atribuído aquele tal volume à tocha do dia, fazendo-se necessária toda a autoridade de Péricles
para salvá-lo de uma condenação à morte, e comutar essa pena em uma sentença de exílio.”
(Flammarion, Estudos e leituras sobre a astronomia, pág. 6).
Diante de tais ideias, emitidas no quinto século antes do Cristo, nos tempos mais
florescentes da Grécia, não devem causar espanto aquelas que os homens das primeiras
gerações faziam sobre o sistema do mundo.
44 Abóboda: espécie de cobertura, teto construído em formas curvadas. Na ideia primitiva, a
abóboda celeste seria uma cobertura física semelhante a uma cúpula, domo, metade de uma
esfera – N. T.
93 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
5. A formação das nuvens pela evaporação das águas da Terra era então
igualmente desconhecida; a ninguém podia vir a ideia de que a chuva que cai
do céu tivesse sua origem na Terra, de onde ninguém a via subir. Daí a crença
na existência de águas superiores e de águas inferiores, de fontes celestes e de
fontes terrestres, de reservatórios colocados nas altas regiões, suposição que
concordava perfeitamente com a ideia de uma abóbada sólida, capaz de
sustentá-los. As águas superiores, escapando-se pelas frestas da abóbada,
caíam em chuva e, conforme fossem mais ou menos largas as frestas, a chuva
era suave, torrencial e diluviana.
8. Mais tarde percebeu-se, pela direção do movimento das estrelas e pelo seu
retorno periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser
simplesmente uma metade de uma esfera posta sobre a Terra, mas sim uma
esfera inteira, oca, ao centro da qual se achava a Terra, sempre plana, ou
quando muito convexa, e habitada somente na superfície superior. Isso já era
um progresso.
Mas, sobre o que estava apoiada a Terra? Seria inútil mencionar todas as
suposições ridículas criadas pela imaginação — desde a dos indianos, que a
diziam suportada por quatro elefantes brancos e pousados sobre as asas de
um imenso abutre. Os mais sábios confessavam que nada sabiam a respeito.
10. Sob o céu límpido da Caldeia, da Índia e do Egito, berço das mais antigas
civilizações, pôde-se observar o movimento dos astros com tanta exatidão o
quanto a ausência de instrumentos especiais o permitia. Notou-se
inicialmente que certas estrelas tinham um movimento próprio e
independente da massa, o que não permitia supor que elas estivessem presas
à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas, para distingui-las das
estrelas fixas. Calculou-se seus movimentos e os retornos periódicos.
No movimento diurno da esfera estrelada, observou-se a imobilidade da
Estrela Polar, ao redor das qual as outras descreviam em vinte e quatro horas
círculos oblíquos paralelos, uns maiores e outros menores conforme a sua
distância em relação à estrela central; foi o primeiro passo para o
conhecimento da obliquidade48 do eixo do mundo. Viagens mais longas
permitiram observar a diferença dos aspectos do céu segundo as latitudes e
as estações; a elevação da Estrela Polar, acima do horizonte variando com a
latitude, demonstrou a forma redonda da Terra; foi assim que pouco a pouco
se fez uma ideia mais exata do sistema do mundo.
Por volta do ano 600 antes de Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor)
descobriu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elíptica 49 e a causa dos
eclipses.
Um século depois, Pitágoras de Samos descobre o movimento diurno da
Terra, sobre o próprio eixo, seu movimento anual em torno do Sol, e
incorpora os planetas e os cometas ao sistema solar.
160 anos antes de Cristo, Hiparco de Alexandria (Egito) inventa o
astrolábio50, calcula e prediz os eclipses, observa as manchas do Sol,
determina o ano trópico e a duração das revoluções da Lua.
Por mais preciosas que fossem essas descobertas para o progresso da
ciência, elas levaram perto de 2.000 anos para se popularizar. As ideias novas,
dispondo apenas de raros manuscritos para então se propagar, permaneciam
como patrimônio de alguns filósofos. que as ensinavam a discípulos
privilegiados; as massas — que ninguém cuidava de esclarecer — não tiravam
nenhum proveito delas e continuavam a se nutrir das velhas crenças.
11. Por volta do ano 140 da era cristã, Ptolomeu — um dos homens mais
ilustres da Escola de Alexandria —, combinando suas próprias ideias com as
crenças comuns e com algumas das mais recentes descobertas astronômicas,
compôs um sistema que se pode chamar de misto, que traz o seu nome, e que,
por cerca de quinze séculos, foi o único adotado no mundo civilizado.
Segundo o sistema de Ptolomeu, a Terra é uma esfera posta no centro do
Universo e compõe de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Era a primeira
região, dita elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze céus,
ou esferas concêntricas, girando em torno da Terra, a saber: o céu da Lua, os
de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas
fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo cristalino
e, finalmente, do primeiro móvel que dava movimento a todos os céus
inferiores, e os obrigava a fazer uma revolução em vinte e quatro horas. Para
além dos onze céus estava o Empíreo, habitação dos bem-aventurados, assim
denominada do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se acreditava que
essa região resplandecia de luz como o fogo.
A crença em muitos céus superpostos prevaleceu por longo tempo, mas
variava quanto ao número; o sétimo era geralmente tido como o mais elevado,
donde vem a expressão: Ser arrebatado ao sétimo céu. São Paulo disse que
havia sito elevado ao terceiro céu.
Independentemente do movimento comum, segundo Ptolomeu, os
astros tinham movimentos próprios, uns maiores outros menores conforme
sua distância em relação ao centro. As estrelas fixas faziam uma revolução em
25.816 anos. Esta última avaliação denota o conhecimento da precessão dos
equinócios51, que de fato se realiza a cada 25.868 anos.
51 Equinócios: momento em que o Sol, em seu movimento anual aparente, corta o equador
celeste, fazendo com que o dia e a noite tenham igual duração, mas que, com o fenômeno da
precessão, essa igualdade é desfeita. Ver mais sobre isso no cap. IX, item 6. – N. T.
97 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
14. Desde então estava aberto o caminho em que ilustres e numerosos sábios
iriam entrar para completar a obra delineada. Na Alemanha, Kepler descobre
as famosas leis que conservam o seu nome e por meio das quais se reconhece
99 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
que os planetas descrevem suas órbitas não circulares, mas em elipses, onde o
Sol ocupa um dos focos; Newton, na Inglaterra, descobre a lei da gravidade
universal; Laplace, na França, cria a mecânica celeste; e finalmente a
astronomia deixa de ser um sistema fundado sobre conjeturas ou de
probabilidades e se torna uma ciência estabelecida sobre as mais rigorosas
bases do cálculo e da geometria. Assim se acha assentada uma das pedras
fundamentais da Gênese, cerca de três mil e trezentos anos depois de Moisés.
100 – Allan Kardec
CAPÍTULO VI
Uranografia geral 53 54
O ESPAÇO E O TEMPO – A MATÉRIA – AS LEIS E AS FORÇAS
– A CRIAÇÃO PRIMÁRIA – A CRIAÇÃO UNIVERSAL –
OS SÓIS E OS PLANETAS – OS SATÉLITES – OS COMETAS
– A VIA-LÁCTEA – AS ESTRELAS FIXAS – OS DESERTOS DO ESPAÇO –
ETERNA SUCESSÃO DOS MUNDOS – A VIDA UNIVERSAL
– DIVERSIDADE DOS MUNDOS
O ESPAÇO E O TEMPO
A MATÉRIA
4. A química, cujo progresso tem sido tão rápido depois da minha época, com
a qual seus próprios adeptos ainda a relegavam para o domínio secreto da
magia, essa nova ciência que se pode considerar precisamente como filha do
século da observação e unicamente baseada no método experimental, de
maneira bem mais sólida do que suas irmãs mais velhas; a química, digo, fez
um belo jogo dos quatro elementos primitivos57 que os antigos concordaram
em reconhecer na natureza; ela mostrou que o elemento terrestre não é mais
do que a combinação de diversas substâncias variadas ao infinito; que o ar e a
água são igualmente decomponíveis e produto de certo número de
equivalentes de gás; que o fogo, longe de ser também um elemento principal,
nada mais é do que um estado da matéria resultante do movimento universal
57Quatro elementos primitivos: certos filósofos antigos acreditavam que tudo no Universo era
constituído basicamente de quatro substâncias essenciais, a saber: terra, água, fogo e ar – N. T.
105 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
AS LEIS E AS FORÇAS
9. Já que venho aqui tratar da questão das leis e das forças que regem o
Universo, eu que como vocês sou apenas um ser relativamente ignorante em
face da ciência real, não obstante a aparente superioridade que me dá com
relação aos meus irmãos da Terra a possibilidade de estudar questões
naturais que lhe estão interditadas na sua situação, meu único objetivo é lhes
expor a noção geral das leis universais, sem explicar em detalhes o modo de
ação e a natureza das forças especiais de delas dependente.
10. Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos; esse fluido é
o éter ou matéria cósmica primitiva, geradora do mundo e dos seres. Ao éter
pertencem as forças que presidiram as metamorfoses da matéria e as leis
imutáveis e necessárias que regem o mundo. Essas formas múltiplas —
indefinidamente variadas segundo as combinações da matéria, localizadas
segundo as massas e diversificadas em seus modos de ação, conforme as
circunstâncias e os meios — são conhecidas na Terra sob os nomes de
gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo e eletricidade ativa; os
movimentos vibratórios do agente são os de: som, calor, luz etc. Em outros
mundos, elas se apresentam sob outros aspectos, oferecem outras
características desconhecidas neste mundo, e na imensa amplidão dos céus,
um número indefinido de forças tem se desenvolvido numa escala
inimaginável cuja grandeza somos tão incapazes de avaliar, como o crustáceo
no fundo do oceano é incapaz de apreender a universalidade dos fenômenos
terrestres.63
62 Tal é também a situação dos negadores do mundo dos Espíritos, quando, após haverem se
despojado do envoltório carnal, os horizontes desse mundo se desdobram sob as suas vistas.
Eles compreendem então o vazio das teorias pelas quais pretendiam explicar tudo por meio
exclusivo da matéria. Contudo, esses horizontes ainda lhes escondem mistérios que só lhes
serão desvendados sucessivamente, à medida que eles se elevam pela depuração. Porém, desde
os seus primeiros momentos nesse mundo novo, veem-se forçados a reconhecer a sua cegueira
e o quanto estavam distantes da verdade.
63 Relacionamos tudo ao que conhecemos, e do que os nossos sentidos não captam, só
compreendemos o que o cego de nascença compreende acerca dos efeitos da luz e da utilidade
dos olhos. Pode ser então que em outros ambientes o fluido cósmico tenha propriedades e
108 – Allan Kardec
combinações das quais não fazemos nenhuma ideia, efeitos apropriados a necessidades que
desconhecemos, dando lugar a percepções novas ou a outros modos de percepção. Não
compreendemos, por exemplo, que se possa ver sem os olhos do corpo e sem a luz; mas quem
nos diz que não existam outros agentes fora a luz aos quais os organismos especiais sejam
afetados? A vista sonambúlica — que não é detida nem pela distância, nem pelos obstáculos
materiais e nem pela escuridão — nos oferece um exemplo. Suponhamos que, num mundo
qualquer, os seres sejam normalmente o que os nossos sonâmbulos sejam excepcionalmente;
eles não teriam necessidade nem da nossa luz nem dos nossos olhos, e então eles veriam o que
não podemos ver. É o mesmo caso de todas as outras sensações. As condições de vitalidade e de
perceptibilidade, as sensações e as necessidades variam segundo os ambientes.
109 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
onde quer que eles se executem, assegurando para sempre o eterno esplendor
da criação.
A CRIAÇÃO PRIMÁRIA
14. Deus, sendo por sua natureza de toda a eternidade, tem criado desde toda
a eternidade e isso não poderia ser de outro modo, porque, por mais distante
que seja a época a que recuemos pela imaginação os supostos limites da
criação, sempre restará além desse limite uma eternidade — pensem bem
nessa ideia —, uma eternidade durante a qual as divinas hipóstases, as
vontades infinitas, teriam sido sepultadas numa letargia muda, inativa e
infecunda, uma eternidade de morte aparente para o Pai eterno que dá vida
110 – Allan Kardec
15. O começo absoluto das coisas volta-se então para Deus; suas sucessivas
aparições no domínio da existência constituem a ordem da criação perpétua.
Que mortal poderia contar as magnificências desconhecidas e
soberbamente veladas sob a noite das eras que se desdobraram naqueles
tempos antigos em que nenhuma das maravilhas do Universo atual existia; a
essa época primitiva em que a voz do Senhor se fez ouvir, os materiais que no
futuro haviam de se agregar simetricamente e por si mesmos para formar o
templo da natureza se encontraram de súbito no seio dos vácuos infinitos;
quanto àquela voz misteriosa que toda criatura venera e estima como a de
uma mãe, notas harmoniosamente variadas se produziram para irem vibrar
juntas e modular o concerto dos vastos céus!
No seu berço, o mundo não foi estabelecido na sua virilidade e na
plenitude da sua vida; não: o poder criador nunca se contradiz, e, como todas
as coisas, o Universo nasceu criança. Revestido das leis mencionadas acima e
da impulsão inicial inerente à sua própria formação, a matéria cósmica
primitiva deu origem sucessivamente a turbilhões, a aglomerações desse
fluido difuso, a amontoados de matéria nebulosa que se dividiram entre si e se
modificaram ao infinito para gerar, nas regiões incomensuráveis da amplidão,
diversos centros de criações simultâneas ou sucessivas.
Em razão das forças que predominaram sobre um ou sobre outro, e das
circunstâncias posteriores que presidiram os seus desenvolvimentos, esses
64Fiat lux: expressão latina equivalente a “Faça-se a luz” ou “Que haja luz”, que tradicionalmente
remete à narrativa bíblica (contida no terceiro versículo do primeiro capítulo do livro Gênesis)
de quando Deus iniciou a sua criação e ordenou que a luz existisse. — N. T.
111 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
A CRIAÇÃO UNIVERSAL
17. Após haver retornado, tanto quanto nossa fraqueza o permita, em direção
à fonte oculta de onde fluem os mundos como gotas d’água de um rio,
112 – Allan Kardec
18. Esse fluido penetra os corpos como um imenso oceano. É nele que reside o
princípio vital que dá origem à vida dos seres e a perpetua em cada globo
conforme sua condição, princípio em estado latente que se conserva
adormecido lá onde a voz de um ser não o reclama. Cada criatura mineral,
vegetal, animal ou qualquer outra — pois há muitos outros reinos naturais de
cuja existência vocês nem sequer suspeitam66 — sabe, em virtude desse
princípio vital universal, apropriar-se das condições de sua existência e de sua
duração.
As moléculas do mineral têm sua soma dessa vida, do mesmo modo que
a semente e o embrião, e se grupam, como no organismo, em figuras
65Se se perguntasse qual é o princípio dessas forças e como esse princípio pode estar na própria
substância que o produz, responderíamos que a mecânica nos oferece numerosos exemplos
disso. A elasticidade, que faz com que uma mola se distenda, não está na própria mola e não
depende do modo de agregação das moléculas? O corpo que obedece à força centrífuga recebe a
sua impulsão do movimento primitivo que lhe foi imprimido.
66Segundo a Biologia atual, os seres vivos são classificados em cinco reinos: monera, protista,
fungi, vegetal e animal. — N. T.
113 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
19. Porém, até aqui, temos guardado silêncio sobre o mundo espiritual, que
também faz parte da criação e cumpre seus destinos conforme as augustas
determinações do Senhor.
Não posso dar mais que um ensinamento bem restrito acerca do modo
da criação dos Espíritos, por razão da minha própria ignorância, e devo me
calar também sobre certas questões, ainda que me tenha sido permitido
aprofundá-las.
Aos que estejam religiosamente desejosos de conhecer, e que sejam
humildes perante Deus, direi, rogando-lhes para não levantar nenhuma teoria
prematura acerca das minhas palavras: O Espírito não chega a receber a
iluminação divina que lhe dá, ao mesmo tempo que o livre-arbítrio e a
consciência, a noção de seus altos destinos, sem haver passado pela série
divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais lentamente se elabora a
obra da sua individualidade; somente a partir do dia em que o Senhor lhe
imprime na fronte a sua augusta marca é que o Espírito toma lugar entre as
humanidades.
Mais uma vez: não construam sobre as minhas palavras seus raciocínios,
tão tristemente célebres na história da metafísica; eu preferiria mil vezes
calar-me sobre tão elevadas questões acima das nossas meditações
ordinárias, a lhes expor a desnaturar o sentido de meu ensinamento, e, por
114 – Allan Kardec
OS SÓIS E OS PLANETAS
forma uma nova massa isolada da primeira, mas, todavia, submetida ao seu
império. Essa massa conservou seu movimento equatorial que, modificado,
tornou-se seu movimento de translação em torno do astro solar. Ao demais,
seu novo estado lhe dá um movimento de rotação em torno do próprio centro.
22. A nebulosa geratriz que deu nascimento a esse novo mundo condensou-se
e retomou a forma esférica; mas como o calor primitivo, desenvolvido por
seus movimentos diversos e só se abrandando com extrema lentidão, o
fenômeno que acabamos de descrever se reproduzirá muitas vezes e durante
um longo período, até que essa nebulosa não tenha se tornado bastante densa
e sólida o bastante para oferecer resistência eficaz às modificações de forma
que lhe imprima sucessivamente o seu movimento de rotação.
Então, ela não terá dado nascimento a apenas um astro, mas a centenas
de mundos destacados do foco central, saídos dela pelo modo de formação
mencionado anteriormente. Ora, cada um de seus mundos — revestido, como
o mundo primitivo, das forças naturais que presidem à criação dos universos
— gerará na sequência novos globos doravante gravitando em torno de si,
como ele gravita, juntamente com seus irmãos em torno do foco de sua
existência e de sua vida. Cada um desses mundos será um sol, centro de um
turbilhão de planetas sucessivamente separados do seu equador. Esses
planetas receberão uma vida especial, particular, embora dependente do seu
astro gerador.
OS SATÉLITES
26. O número e o estado dos satélites de cada planeta têm variado de acordo
com as condições especiais nas quais eles se formaram. Alguns não deram
origem a nenhum astro secundário, tal como Mercúrio, Vênus e Marte 71, ao
passo que outros formaram um ou vários, como a Terra, Júpiter, Saturno etc.
OS COMETAS
28. Os cometas — astros errantes, mais ainda do que os planetas, que
conservaram a denominação etimológica — serão os guias que nos ajudarão a
transpor os limites do sistema ao qual a Terra pertence, para nos levar às
regiões longínquas da extensão sideral.
Mas antes de explorarmos os domínios celestes, com a ajuda desses
viajantes do Universo, será bom conhecermos o quanto for possível a
natureza intrínseca deles e o seu papel na organização planetária.
29. Muitas vezes esses astros cabeludos são vistos como planetas nascentes,
elaborando no seu caos primitivo as condições de vida e de existência que são
compartilhadas com as terras habitadas; outros imaginaram que esses corpos
extraordinários eram mundos em estado de destruição, e, para muitos, sua
estranha aparência foi motivo de apreciações errôneas acerca da sua
natureza, a tal ponto que não houve quem — nem mesmo a astrologia
judiciária — não fizesse presságios de infortúnios enviados por decretos
providenciais à Terra espantada e trêmula.
30. A lei de variedade é aplicada com tão larga profusão nos trabalhos da
natureza que é de se perguntar como os naturalistas, os astrônomos ou os
filósofos levantaram tantos sistemas para assimilar os cometas aos astros
planetários e para somente verem neles astros em um grau mais ou menos
adiantado de desenvolvimento ou de degeneração. Entretanto, os quadros da
natureza deveriam bastar amplamente para afastar o observador da
preocupação de investigar relações inexistentes e deixar aos cometas o papel
modesto — porém útil — de astros errantes que servem de exploradores para
os impérios solares. Como os corpos celestes de que tratamos são muito
diferentes dos corpos planetários; eles não estão destinados — assim como os
119 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
A VIA-LÁCTEA
32. Durante as belas noites estreladas e sem luar, todo mundo tem podido
contemplar essa réstia esbranquiçada que atravessa o céu de uma
extremidade a outra, e que os antigos chamaram via láctea, por causa da sua
aparência leitosa. Essa réstia difusa tem sido longamente explorada pela lente
do telescópio nos tempos modernos, e essa estrada de poeira de ouro, ou esse
regato de leite da mitologia antiga, transformou-se num vasto campo de
inconcebíveis maravilhas. As pesquisas dos observadores conduziram ao
conhecimento da sua natureza e tem revelado que, ali, onde o olhar errante
reconheceu apenas uma fraca claridade, milhões de sóis mais luminosos e
mais importantes do que o Sol que nos clareia.
34. Por esse cálculo aproximado, podemos julgar a extensão dessa região
sideral e da relação que une o nosso sistema planetário e a universalidade dos
sistemas que a ocupam. Podemos igualmente julgar a pequenez do domínio
solar e, a fortiori 76, do nada que é a nossa miúda Terra. Que seria então se
75 Mais de 3 trilhões e 400 bilhões de léguas.
76 A fortiori, expressão latina equivalente a “por uma razão mais forte” ou “com muito mais
razão” — N. T.
121 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
35. De certa maneira, conhecemos a posição ocupada pelo nosso Sol ou pela
Terra no mundo das estrelas; estas considerações ganharão peso maior ainda
se refletirmos sobre o próprio estado da Via Láctea que, na imensidade das
criações siderais, não representa propriamente mais do que um ponto
insensível e inapreciável, vista de longe, pois ela não é mais do que uma
nebulosa estelar, entre os milhões das que existem no espaço. Se ela nos
parece mais vasta e mais rica do que outras, é pela única razão de que nos
cerca e se desenvolve em toda a sua extensão sob os nossos olhos, ao passo
que as outras, perdidas nas profundezas insondáveis, mal se deixam entrever.
36. Ora, se sabemos que a Terra não é nada, ou quase nada no sistema solar,
este não é nada ou quase nada na Via Láctea; esta é nada ou quase nada na
universalidade das nebulosas; e esta própria universalidade bem pouca coisa
é dentro do imensurável infinito; então começamos a compreender o que é o
globo terrestre.
AS ESTRELAS FIXAS
no céu recebeu o nome de Via Láctea. Todos os sóis que a constituem são
solidários; suas múltiplas influências reagem perpetuamente umas sobre as
outras, e a gravidade universal as agrupa todas numa mesma família.
38. Entre esses diversos sóis, na sua maioria são como o nosso, cercados de
mundos secundários, que eles iluminam e fertilizam por meio das mesmas
leis que presidem à vida do nosso sistema planetário. Uns como Sirius, são
milhares de milhões de vezes mais magnificentes em dimensões e em
riquezas do que o nosso, e o seu papel no Universo é muito mais importante,
do mesmo modo que são rodeados por planetas em maior quantidade e bem
superiores aos nossos. Outros são muito diferentes pelas suas funções astrais.
É assim que certo número desses sóis — verdadeiros gêmeos da ordem
sideral — são acompanhados de seus irmãos da mesma idade, e formam, no
espaço, sistemas binários aos quais a natureza concedeu funções inteiramente
diversas daquelas funções pertencentes ao nosso Sol77. Lá, os anos não se
medem pelos mesmos períodos, nem os dias pelos mesmos sóis, e esses
mundos iluminados por um duplo facho foram dotados de condições de
existência inimagináveis por aqueles que ainda não saíram deste pequenino
mundo terrestre.
Outros astros, sem cortejo e privados de planetas, receberam elementos
de habitação melhores do que os que foram dados aos demais. Na sua
imensidade, as leis da natureza se diversificam e, se a unidade é a grande
expressão do Universo, a variedade infinita não é menos do que o seu eterno
atributo.
77 É o que se chama, em astronomia, estrelas duplas. São dois sóis em que um gira em torno do
outro, como um planeta em torno de seu sol. De que estranho e magnífico espetáculo devem
desfrutar os habitantes dos mundos que compõem esses sistemas clareados por um duplo sol!
Mas também quão diferentes devem ser as condições de vitalidade ali!
Em uma comunicação dada posteriormente, o Espírito de Galileu acrescenta: “Existem
sistemas ainda mais complicados nos quais diferentes sóis desempenham o papel de satélites
entre si. Efeitos maravilhosos de luz são então produzidos para os habitantes dos globos que
eles iluminam; tanto mais que, apesar de sua aparente proximidade, mundos habitados podem
circular entre eles e receber, por sua vez, as ondas de luz multicoloridas cuja união recompõe a
luz branca.”
123 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
39. Não obstante o prodigioso número dessas estrelas e seus sistemas, não
obstante as distâncias incomensuráveis que as separam, todas elas pertencem
à mesma nebulosa estelar que os mais possantes telescópios mal conseguem
atravessar, e que as concepções das mais ousadas imaginações mal
conseguem avistar; nebulosa que, entretanto, não é mais do que uma unidade
na ordem das nebulosas que compõem o mundo astral.
41. Vimos que a totalidade dos astros que cintilam na cúpula azulada se acha
contida numa mesma aglomeração cósmica, numa mesma nebulosa que vocês
chamam Via Láctea; mas, por todos pertencerem ao mesmo grupo, esses
astros não são menos animados cada qual de um movimento próprio de
translação no espaço; o repouso absoluto não existe em parte alguma. Eles
são regidos pelas leis universais da gravidade e rolam no espaço sob a
impulsão incessante dessa imensa força; rolam, não segundo roteiros
traçados pelo acaso, mas segundo órbitas fechadas cujo centro é ocupado por
um astro superior. Para tornar mais compreensíveis as minhas palavras por
meio de um exemplo, falarei especialmente do vosso Sol.
42. Pelas modernas observações, sabemos que ele não é fixo nem central,
como se acreditava nos primeiros tempos da nova astronomia; mas que o Sol
avança pelo espaço, arrastando consigo o seu vasto sistema de planetas, de
satélites e de cometas.
Ora, essa marcha não é fortuita e ele não vai vagando pelos vácuos
infinitos, a transviar seus filhos e seus súditos para longe das regiões que lhe
estão atribuídas. Não, sua órbita é determinada, e em concordância com
outros sóis da mesma ordem que ele, e como ele rodeados de certo número de
terras habitadas, ele gravita em torno de um sol central. Seu movimento de
gravitação, como o dos seus irmãos sóis, é inapreciável a observações anuais,
124 – Allan Kardec
44. E esses astros, em números incontáveis, vivem cada qual uma vida
solidária; assim como nada está isolado na organização do seu pequeno
mundo terrestre, nada também está isolado no incomensurável Universo.
De longe, ao olhar investigador do filósofo que pudesse alcançar o
quadro desenvolvido pelo espaço e o tempo, esses sistemas de sistemas
pareceriam uma poeira de pérolas de ouro levantada em turbilhão pelo sopro
divino, que faz os mundos siderais voarem nos céus, como voam os grãos de
areia nas costas do deserto.
Não mais imobilidade, não mais silêncio, não mais noite! O grande
espetáculo que se desenrola ante os nossos olhos seria a criação real, imensa
e plena da vida etérea que abraço no conjunto imenso o olhar infinito do
Criador.
Todavia, até aqui, não temos falado senão de apenas uma nebulosa; seus
milhões de sóis e seus milhões de terras habitadas formam — como já
dissemos — simplesmente uma ilha no arquipélago infinito.
OS DESERTOS DO ESPAÇO
46. No entanto, esse deserto celeste — que envolve nosso universo sideral e
que parece estender-se como sendo os afastados confins do nosso mundo
astral — é abraçado pela visão e pelo poder infinito do Altíssimo, que, além
desses céus dos nossos céus, desenvolveu a trama da sua criação ilimitada.
47. Com efeito, mais além dessas vastas solidões, mundos irradiam em sua
magnificência, bem como nas regiões acessíveis às investigações humanas;
para lá desses desertos, esplêndidos oásis vagam no éter límpido, e renovam
incessantemente as cenas admiráveis da existência e da vida. Lá se
desdobram os agregados longínquos de substância cósmica, que o profundo
olhar do telescópio entrevê através das regiões transparentes do nosso céu —
essas nebulosas a que vocês chamam irresolúveis, e que lhes parecem ligeiras
nuvens de poeira branca perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo.
Lá se revelam e se desenvolvem novos mundos onde as condições variadas e
diversas das que são peculiares ao vosso globo, lhes dando uma vida que as
126 – Allan Kardec
48. Vimos que uma única lei primordial e geral foi dada ao Universo para lhe
assegurar a estabilidade eterna, e que essa lei geral é perceptível aos nossos
sentidos por muitas ações particulares que nomeamos forças diretrizes da
natureza. Vamos agora mostrar que a harmonia do mundo inteiro —
considerada sob o duplo aspecto da eternidade e do espaço — é assegurada
por essa lei suprema.
50. Temos aqui um mundo que desde seu berço primitivo percorreu toda a
extensão dos anos que a sua organização especial lhe permitia percorrer; o
foco interior da sua existência está extinto e seus próprios elementos
perderam sua virtude inicial; os fenômenos da sua natureza — que para sua
tenha rebaixado a tão mesquinhas proporções e que ela tenha rejeitado — como sendo a
concepção do espírito do mal — as descobertas que somente vieram aumentar a nossa
admiração pela sua onipotência, iniciando-nos nos grandiosos mistérios da criação; será ainda
maior o espanto quando souberem que essas descobertas foram repelidas porque
emancipariam o espírito dos homens e tirariam a preponderância daqueles que se diziam
representantes de Deus na Terra.
128 – Allan Kardec
51. Desse modo, a eternidade real e efetiva do Universo fica assegurada pelas
mesmas leis que dirigem as operações do tempo; assim sendo os mundos
sucedem a mundos, sóis sucedem a sóis, sem que o imenso mecanismo dos
vastos céus jamais seja atingido nas suas gigantescas molas.
Lá onde os seus olhos admiram esplêndidas estrelas na abóbada das
noites, lá onde o vosso espírito contempla irradiações magníficas que
resplandecem sobre espaços longínquos, por um longo tempo o dedo da
morte dissipou esses esplendores, por um longo tempo o vazio sucedeu a
esses deslumbramentos e recebeu até novas criações ainda desconhecidas. O
imenso afastamento desses astros — pelo que a luz que eles nos enviam gasta
milhares de anos a chegar até nós — faz com que somente hoje recebamos os
raios que eles nos enviaram muito tempo antes da criação da Terra, e que
129 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
52. Logo, vamos reconhecer aqui, como nos nossos outros estudos, que a
Terra e o homem não são nada em comparação com o que existe, e que as
mais colossais operações do nosso pensamento ainda se estendem apenas
sobre um campo imperceptível diante da imensidade e da eternidade de um
universo que nunca findará.
E quando esses períodos da nossa imortalidade tiverem passado sobre
nossas cabeças, quando a história atual da Terra nos aparecer como uma
sombra vaporosa no fundo da nossa lembrança; quando tivermos habitado
por séculos incontáveis esses diversos degraus da nossa hierarquia
cosmológica; quando os mais distantes domínios das eras futuras tiverem
sido percorridos por inúmeras peregrinações, nós teremos diante de nós a
sucessão ilimitada dos mundos e teremos a eternidade imóvel como
perspectiva.
A VIDA UNIVERSAL
53. Essa imortalidade das almas, cujo sistema de mundo físico é a base,
pareceu imaginária aos olhos de certos pensadores prevenidos; qualificaram-
na ironicamente de imortalidade passageira e não entenderam que só ela é
verdadeira diante do espetáculo da criação. Entretanto, podemos tornar
79Há aqui um efeito do tempo que a luz gasta para atravessar o espaço. Sendo sua velocidade de
70.000 léguas por segundo, ela nos chega do Sol em 8 minutos e 13 segundos. Daí resulta que, se
um fenômeno se passa na superfície do Sol, só o percebemos 8 minutos mais tarde, e pela
mesma razão ainda o veremos 8 minutos depois de seu desaparecimento. Se, em virtude do seu
afastamento, a luz de uma estrela consome mil anos para nos chegar, só mil anos depois da sua
formação veremos essa estrela. (Ver, para explicação e descrição completa desse fenômeno, a
Revista espírita de março e maio de 1867, a resenha de Lúmen, por C. Flammarion.)
130 – Allan Kardec
55. Com efeito, a inteligência humana mal consegue considerar esses globos
radiosos que cintilam na amplidão como simples massas de matéria inertes e
sem vida; ela mal consegue sondar que haja nessas regiões distantes
magníficos crepúsculos e noites esplendorosas, sóis férteis e dias plenos de
luz, vales e montanhas onde as produções múltiplas da natureza têm
desenvolvido toda a sua luxuriante pompa; ela mal consegue imaginar, digo,
que o espetáculo divino em que a alma pode revitalizar-se, como em sua
própria vida, seja farto da existência e carente de qualquer ser pensante que o
possa conhecer.
57. Por qual estranha aberração acreditou-se ser preciso negar à imortalidade
131 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
58. Vocês têm nos acompanhado em nossas excursões celestes, e têm visitado
conosco as regiões imensas do espaço. Sob nossas vistas, sóis sucederam sóis,
sistemas sucederam sistemas, nebulosas sucederam nebulosas; o panorama
esplêndido da harmonia do cosmo se desenrolou diante dos nossos passos e
recebemos uma amostra da ideia do infinito, que não poderemos
compreender em toda a sua extensão senão seguindo nossa perfectibilidade
futura. Os mistérios do éter nos desvendaram seu enigma até aqui
indecifrável e, pelo menos, concebemos a ideia da universalidade das coisas.
Cumpre agora nos determos e refletirmos.
60. Acostumados como estamos a julgar as coisas pela nossa pobre e pequena
habitação, imaginamos que a natureza não poderia ou não deveria agir sobre
os outros mundos exceto segundo as regras que reconhecemos aqui embaixo.
Ora, é precisamente nisto que importa reformularmos a nosso conceito.
132 – Allan Kardec
61. Ora, se tal é a variedade que a natureza nos pôde descrever em todos os
recintos deste pequeno mundo tão acanhado e tão limitado, tanto mais vocês
devem estender esse modo de ação em pensamento às perspectivas dos
vastos mundos! Tanto mais vocês devem desenvolvê-la e reconhecer a
pujante extensão aplicando-a a esses mundos maravilhosos que, muito mais
do que a terra, atestam sua inconcebível perfeição!
Não vejam, pois, em torno de cada um dos sóis do espaço, sistemas
semelhantes ao vosso sistema planetário; não vejam nesses planetas
desconhecidos os três reinos da natureza que brilham ao derredor de vocês;
mas pensem que, da mesma forma que nenhum rosto de homem se assemelha
a outro rosto em todo o gênero humano, também uma prodigiosa e
inimaginável diversidade se acha espalhada pelas moradas eternas que
vogam no seio dos espaços.
Desde que a vossa natureza animada começa no zoófito para terminar
no homem, desde que a atmosfera alimenta a vida terrestre, desde que o
elemento líquido a renova incessantemente, e desde que as vossas estações
fazem suceder nessa vida os fenômenos que as distinguem, não concluam que
os milhões e milhões de terras que rolam pela extensão sejam semelhantes a
vossa terra; longe disso, elas diferem seguindo as diversas condições que lhes
133 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO VII
PERÍODOS GEOLÓGICOS
81 Fóssil, do latim fossilia, fossilis, derivado de fossa, e de fodere, cavar, escavar a terra. Em
geologia, essa palavra designa corpos ou despojos de corpos organizados, provenientes de seres
que viveram anteriormente às épocas históricas. Por extensão, diz-se igualmente das
substâncias minerais que trazem traços da presença de seres organizados, tais como as marcas
de vegetais ou de animais.
O termo petrificado não é aplicado senão aos corpos transformados em pedra pela
138 – Allan Kardec
infiltração de matérias silicosas ou calcárias nos tecidos orgânicos. Todas as petrificações são
necessariamente fósseis, mas nem todos os fósseis são petrificações.
Os objetos que se revestem de uma camada pedregosa, quando mergulhados em certas
águas carregadas de substâncias calcárias (como aquelas do racho de Saint-Allyre, perto de
Clermont, na Auvergne [região central da França] não são petrificações propriamente ditas, mas
simples incrustações.
Os monumentos, inscrições e objetos oriundos de fabricação humana pertencem à
arqueologia.
82 No ponto a que Georges Cuvier levou a ciência paleontológica, frequentemente basta um
único osso para determinar o gênero, a espécie, a forma de um animal, seus hábitos, e para
reconstruí-lo inteiramente.
Nota do tradutor: as pesquisas arqueológicas ficaram muito mais sofisticadas após o
surgimento dos estudos a partir do DNA, desde o final da década de 1960.
139 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
10. Os cascalhos rolados que em certos lugares formam rochas poderosas são
um inequívoco indício da sua origem. Eles são arredondados como os seixos
de beira-mar, sinal certo do atrito que sofreram por efeito das águas. As
regiões onde eles se encontram enterrados em massas consideráveis foram
incontestavelmente ocupadas pelo oceano, ou por águas violentamente
agitadas.
11. Os terrenos de diversas formações, por outro lado, são caracterizados pela
natureza própria dos fósseis que eles trazem; as mais antigas contêm espécies
animais ou vegetais que desapareceram inteiramente da superfície do globo.
Algumas espécies mais recentes também desapareceram, porém conservaram
seus semelhantes, que não diferem da sua estirpe senão pelo porte e por
alguns detalhes de forma. Finalmente, outras — das quais nós ainda vemos
seus últimos representantes — tendem evidentemente a desaparecer num
futuro mais ou menos próximo, tais como os elefantes, os rinocerontes, os
hipopótamos etc. Assim, à medida que as camadas terrestres se aproximam
da nossa época, as espécies animais e vegetais também se aproximam
daquelas que existem hoje.
As perturbações e os cataclismos que se produziram na Terra desde a
sua origem modificaram suas condições de vitalidade e fizeram desaparecer
gerações inteiras de seres vivos.
13. Como já foi dito, o estudo das camadas geológicas atesta formações
sucessivas que mudaram o aspecto do globo e dividem sua história em várias
épocas. Essas épocas constituem os chamados períodos geológicos cujo
conhecimento é essencial para o estabelecimento da Gênese. Contamos seis
principais períodos que designamos pelos nomes de: primário, de transição,
secundário, terciário, diluviano, pós-diluviano ou atual. Os terrenos formados
durante cada período se chamam assim: terrenos primitivos, de transição,
secundários etc. Diz-se então que tal ou tal camada ou rocha, tal ou tal fóssil
se encontram nos terrenos de tal ou tal período.
14. É essencial notarmos que o número desses períodos não é absoluto e que
ele depende dos sistemas de classificação. Nos seis principais mencionados
acima só se compreendem os que estão assinalados por uma mudança notável
e geral no estado do globo; mas a observação prova que muitas formações
sucessivas se operaram no tempo da duração de cada um deles; é por isso que
os dividimos em subperíodos caracterizados pela natureza dos terrenos, e
que elevam para vinte e seis o número das formações gerais bem
caracterizadas, sem contar as que vêm de modificações devidas a causas
puramente locais.
15. O achatamento dos polos e outros fatos conclusivos são indícios certos de
que o estado da Terra na sua origem deve ter ficado num estado de fluidez ou
de flacidez. Esse estado poderia ter como causa a matéria liquefeita pela ação
do fogo ou acharcada pela água.
Diz-se proverbialmente: Não há fumaça sem fogo. Essa proposição
141 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
17. De acordo com isso, torna-se evidente que o estado primitivo de fluidez ou
142 – Allan Kardec
de flacidez da Terra deve ter sido por causa da ação do calor, e não a da água.
Em sua origem, a Terra era então uma massa incandescente. Em consequência
da irradiação do calórico83, ocorreu o que ocorre com toda matéria em fusão:
ela pouco a pouco esfriou e o resfriamento começou naturalmente pela
superfície, que se endureceu, ao passo que o interior se conservou fluido.
Podemos assim comparar a Terra a um bloco de carvão ao sair ardente da
fornalha e cuja superfície se apaga e resfria em contato do ar, ao passo que, se
o quebrássemos, encontraríamos seu interior ainda abrasada.
18. Na época em que o globo terrestre era uma massa incandescente, não
continha nenhum átomo a mais ou a menos do que hoje; apenas sob a
influência dessa alta temperatura, a maior parte das substâncias que a
compõem e que vemos sob a forma de líquidos ou de sólidos, de terras, de
pedras, de metais e de cristais se achavam em estado muito diferente; eles
não sofreram mais que uma transformação; em razão do resfriamento e das
misturas, os elementos formaram novas combinações. O ar, dilatado
consideravelmente, devia se estendia a uma distância imensa; toda a água,
forçosamente transformada em vapor, estava misturada com o ar; todas as
matérias suscetíveis de se volatilizarem, tais como os metais, o enxofre, o
carbono, achavam-se em estado de gás. O estado da atmosfera não tinha,
portanto, nada de comparável ao que é hoje; a densidade de todos esses
vapores lhe dava uma opacidade que nenhum raio de sol poderia atravessar.
Se um ser vivo pudesse existir na superfície do planeta a essa época, ele não
seria iluminado senão pelo brilho sinistro da fornalha colocada sob os pés e
da atmosfera abrasada, e nem sequer suspeitaria da existência do Sol.
83 Valendo-se da ciência do seu tempo, aqui Kardec utiliza a ideia do calórico como substância,
de cuja teoria já caiu em desuso. A chamada teoria calórica supunha a existência de um fluido
invisível e inodoro, chamado calórico, que todos os corpos conteriam em quantidades
determinadas em sua composição, que era denominado como o causador das alterações de
temperatura até meados do século XIX. Segundo a qual, quanto maior fosse a temperatura de
um corpo, maior seria a sua quantidade de calórico, limitada, para cada corpo, a uma
quantidade finita. O calor — que não é uma substância contida nos corpos, como supunha a
teoria calórica — é energia que é transferida entre parcelas de matéria (incluindo sólidos,
líquidos, gases e plasmas) em contato, exclusivamente em virtude da diferença de temperaturas
entre elas. — N. T.
143 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
PERÍODO PRIMÁRIO
84Liquefação: transição ao estado líquido de uma substância que se encontra no estado gasoso
ou sólido. – N. T.
Veios e filões: camadas, riscos, estrias e listras de cores variadas presentes em rochas, pedras,
85
mármores. — N. T.
144 – Allan Kardec
PERÍODO DE TRANSIÇÃO
27. Os restos fósseis da poderosa vegetação daquela época acham-se hoje sob
os gelos das terras polares, bem como na zona tórrida, pelo que é preciso
concluir que, uma vez que a vegetação era uniforme, igualmente a
temperatura havia de ser assim. Portanto, os polos eram cobertos de gelo
como é agora. É que então a Terra tirava o calor de si mesma, do fogo central
que aquecia de igual modo toda a camada sólida ainda pouco espessa. Esse
calor era bem superior ao que podia vir dos raios solares, enfraquecidos de
alguma forma pela densidade da atmosfera. Só mais tarde, quando a ação do
calor central não pode exercer sobre a superfície exterior do globo mais do
que uma ação fraca ou nula, a do Sol se tornou preponderante e as regiões
polares — que apenas recebiam raios curvos, portadores de pouquíssimo
calor — se cobriram de gelo. Compreende-se que na época de que falamos, e
ainda muito tempo depois, o gelo era desconhecido na Terra.
A julgar pelo número e pela espessura das camadas carbonizadas, esse
período deve ter sido muito longo.89
PERÍODO SECUNDÁRIO
88A turfa [massa de tecidos de várias plantas] se formou da mesma maneira: pela decomposição
dos amontoados de vegetais, em terrenos pantanosos; mas com a diferença de ser muito mais
recente, e sem dúvida, noutras condições, ela não tinha tempo de se carbonizar.
89 Na baía de Fundy (Nova Escócia), o Sr. Lyell encontrou sobre uma camada de hulha na
espessura de 400 metros 68 níveis diferentes, apresentando traços evidentes de vários solos de
florestas cujos troncos de árvores ainda estavam guarnecidos de suas raízes. (L. Figuier).
Não supondo mais de mil anos para a formação de cada um desses níveis, já teríamos 68.000
anos só para essa única camada carbonizada.
148 – Allan Kardec
dos terrenos que marcam o fim desse período atesta grandes convulsões
causadas pelos soerguimentos e erupções que derramaram sobre o solo
grandes quantidades de lavas, e, por outro lado notáveis modificações se
operaram nos três reinos.
de carapaça.90
O teleossauro se aproxima mais dos crocodilos atuais, que parecem ser
os diminutivos dele; como os últimos, tinha uma couraça escamosa e vivia ao
mesmo tempo na água e na terra; seu tronco era de cerca de 10 metros, dos
quais 3 ou 4 só para a cabeça; sua enorme boca tinha 2 metros de abertura.
O megalossauro, grande lagarto, espécie de crocodilo de 14 a 15 metros
de comprimento e essencialmente carnívoro, nutria-se de répteis, de
pequenos crocodilos e tartarugas. Sua formidável mandíbula era armada de
dentes em forma de lâmina de podadeira91, de gume duplo e recurvados para
trás, de tal modo que uma vez enfincados na presa, era impossível de esta se
desgarrar.
O iguanodonte, o maior dos lagartos que já apareceram na Terra; tinha
de 20 a 25 metros da cabeça à extremidade da cauda. Seu focinho era dotado
de um chifre ósseo semelhante ao do iguano da atualidade, do qual parece que
não diferir senão pela forma, já que esse último tem apenas 1 metro de
comprimento. O formato dos dentes prova que ele era herbívoro e o dos pés
prova que era um animal terrestre.
O pterodáctilo, animal estranho, do tamanho de um cisne, por sua vez
tomando parte do réptil pelo corpo, do pássaro pela cabeça e do morcego pela
membrana carnuda que lhe religava os dedos de uma espantosa largura e lhe
servia de paraquedas quando se precipitava sobre a presa do alto de uma
árvore ou de um rochedo. Não possuía bico córneo como os pássaros, mas os
ossos dos maxilares, tão longos quanto a metade do corpo e guarnecidos de
dentes, terminando em ponta como um bico.
31. Durante esse período — que há de ter sido muito longo, como atestam o
número e a potência das camadas geológicas — a vida animal teve imenso
desenvolvimento no âmago das águas, tal como ocorreu com a vegetação no
período que anterior. Mais depurado e mais favorável à respiração, o ar
começou a permitir a alguns animais viver sobre a terra. O mar foi várias
90 O primeiro fóssil deste animal foi descoberto na Inglaterra em 1823. Depois, outros dele
foram achados na França e na Alemanha.
91 Espécie de foice usada em jardinagem para podar plantas — N. T.
150 – Allan Kardec
vezes deslocado, porém, ao que parece, sem abalos violentos. Com esse
período desaparecem por sua vez aquelas raças de gigantescos animais
aquáticos, substituídos mais tarde por espécies parecidas, de formas menos
desproporcionadas e de porte bem menor.
32. O orgulho levou o homem a dizer que todos os animais foram criados por
sua causa e para suas necessidades. Mas qual o número dos que lhe servem
diretamente, dos que lhe foi possível submeter, comparado ao número
incalculável daqueles com os quais ele nunca teve nem nunca terá qualquer
contato? Como pode sustentar semelhante tese, em face das inumeráveis
espécies que só povoaram a Terra por milhares e milhares de séculos antes
mesmo que ele aí surgisse e que afinal desapareceram? Pode-se afirmar que
elas foram criadas em seu proveito? Contudo, todas as espécies tinham a sua
razão de ser, sua utilidade. Certamente, Deus não as poderia criar por um
capricho da sua vontade e para em seguida se dar ao prazer de aniquilá-las,
pois que todas tinham vida, instintos, sensação de dor e de bem-estar. Com
que objetivo ele o fez? Esse objetivo deve ter sido soberanamente sábio,
embora ainda o não compreendamos. Talvez um dia seja dado ao homem
conhecê-lo, para confusão do seu orgulho; mas enquanto isso, quanto as
ideias se ampliam diante os novos horizontes dos quais agora lhe é permitido
mergulhar a vista ante o espetáculo imponente dessa criação, tão majestosa
na sua lentidão, tão admirável na sua previdência, tão pontual, tão precisa e
tão invariável nos seus resultados!
PERÍODO TERCIÁRIO
33. Com o período terciário, começa para a Terra uma nova ordem de coisas; a
situação da sua superfície muda completamente de aspecto; as condições de
vitalidade se modificam profundamente e se aproximam do estado atual. Os
primeiros tempos desse período são marcados por uma interrupção da
produção vegetal e animal; tudo revela traços de uma destruição quase geral
dos seres vivos, e depois aparecem sucessivamente novas espécies cuja
151 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
35. Como já foi dito, uma das primeiras consequências desses levantamentos
foi a inclinação das camadas de sedimento primitivamente horizontais e
conservadas nessa última posição onde quer que o solo não fosse abalado. Foi,
portanto, nos flancos e nas proximidades das montanhas que essas
inclinações mais se pronunciaram.
38. Deslocada por efeito dos erguimentos, a massa granítica deixou em alguns
sítios fissuras por onde se escapa o fogo interior e se escoam as matérias em
fusão: os vulcões. Os vulcões são como que chaminés da imensa fornalha, ou,
melhor ainda, válvulas de segurança que, dando vazão ao excesso das
matérias ígneas, preservam de comoções muito mais terríveis; daí podermos
dizer que o número de vulcões em atividade é uma questão de segurança para
o conjunto da superfície do solo.
92 Foram encontradas camadas de calcário de concha nos Andes da América, a 5.000 metros
acima do nível do oceano.
153 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
PERÍODO DILUVIANO
42. Esse período foi marcado por um dos maiores cataclismos que reviraram
155 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
43. Um dos traços mais significativos desse grande desastre são os penedos 93
chamados blocos erráticos. Assim são chamados os rochedos de granito que
se encontram isolados nas planícies, repousando sobre terrenos terciários e
no meio de terrenos diluvianos, algumas vezes a muitas centenas de léguas
das montanhas donde foram arrancados. É evidente que eles só puderam ser
transportados a tão grandes distâncias pela violência das correntes.94
44. Outro fato não menos característico e cuja causa ainda não está explicada
é o de que é nos terrenos diluvianos que encontramos os primeiros aerólitos;
pois foi somente a essa época que eles começaram a cair; a causa que os
produz então não existia anteriormente.
45. Foi também por essa época que os polos começaram a se cobrir de gelo e
que se formaram as geleiras das montanhas, o que indica uma notável
mudança na temperatura da Terra. Essa mudança deve ter sido súbita, porque
se tivesse sido operada gradualmente os animais — como os elefantes, que
hoje só vivem nos climas quentes e que são encontrados no estado fóssil em
tão grande número nas terras polares — teriam tido tempo de se retirar
pouco a pouco para as regiões mais temperadas. Ao contrário, tudo prova que
eles provavelmente foram pegos bruscamente por uma grande friagem e
Penedo: grande massa de rocha expostas nas encostas, no alto de um morro, bem como nos
93
46. Este foi então o verdadeiro dilúvio universal. As opiniões estão divididas
quanto às causas que devam tê-lo produzido, mas quaisquer que elas sejam, o
fato é que ele existiu.
A suposição mais comum é a de que ocorreu uma mudança brusca na
posição do eixo e dos polos da terra: daí uma projeção geral das águas sobre a
superfície. Se a mudança tivesse sido operada lentamente, as águas seriam
deslocadas gradualmente, sem abalos, ao passo que tudo indica uma comoção
violenta e súbita. Pela ignorância quanto à verdadeira causa, não podemos
emitir mais do que hipóteses.
O deslocamento súbito das águas também pode ter sido ocasionado pela
elevação de certas partes da crosta sólida e a formação de novas montanhas
no seio dos mares, assim como se deu no começo do período terciário; mas,
além de que o cataclismo não teria sido geral, isso não explicaria a mudança
subitânea da temperatura dos polos.
ossadas parecem ter sido arrastadas até ali pela correnteza das águas.96
CAPÍTULO VIII
Teorias da Terra
TEORIA DA PROJEÇÃO – TEORIA DA CONDENSAÇÃO
– TEORIA DA INCRUSTAÇÃO – ALMA DA TERRA
TEORIA DA PROJEÇÃO
TEORIA DA CONDENSAÇÃO
100 Encontramos uma dissertação completa e à altura da ciência moderna sobre a natureza do
Sol e dos cometas em Études et lectures sur l’astronomie [Estudos e Leituras sobre a Astronomia],
de Camille Flammarion.
101 Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830) físico e matemático francês. – N. T.
102 Para mais detalhes sobre este assunto e sobre a lei do decrescimento do calor, veja: Lettres
sur les révolutions du globe [Cartas acerca das revoluções do globo], pelo Dr. Bertrand, ex-aluno
da Escola Politécnica, carta II. – Esta obra, à altura da ciência moderna, escrita com simplicidade
e sem espírito de sistema, oferece um estudo geológico de grande interesse.
162 – Allan Kardec
TEORIA DA INCRUSTAÇÃO
resolver. Ela diz bem como a Terra seria formada, mas não diz como foram
formados os quatro mundos reunidos para constituí-la.
Se as coisas tivessem acontecido assim, por que será que não
encontramos em nenhuma parte os traços daquelas imensas soldas, indo até
às entranhas do globo? Cada um daqueles mundos trazendo seus próprios
materiais, Ásia, África, Europa e a América teriam cada qual uma geologia
particular e diferente, o que não é correto. Ao contrário, nós vemos
inicialmente o núcleo granítico uniforme, de uma composição homogênea em
todas as partes do globo, sem solução de continuidade. Depois, as camadas
geológicas de mesma formação, idênticas na sua constituição e em toda parte
superpostas na mesma ordem, continuando sem interrupção de um lado a
outro dos mares, da Europa à Ásia, à África, à América, e reciprocamente.
Essas camadas — testemunhas das transformações do globo — atestam que
tais transformações se operaram em toda a sua superfície e não apenas numa
parte; elas nos mostram os períodos de aparecimento, de existência e de
desaparecimento das mesmas espécies animais e vegetais igualmente nas
diferentes partes do mundo; a fauna e a flora desses períodos recuados
marcham simultaneamente por toda parte sob a influência de uma
temperatura uniforme, mudando de caráter por toda parte à medida que a
temperatura se modifica. Tal estado de coisas é inconciliável com a formação
da Terra pela junção de vários mundos diferentes.
Pergunta-se, aliás, o que seria do mar, que ocupa o vazio deixado pela
Lua, se esta não tivesse relutado em se reunir com suas irmãs; o que viria a
ser da Terra atual se um dia a Lua tivesse a fantasia de vir retomar seu lugar e
daí expulsar o mar?
rápida ela fosse, tanto mais desastrosos teriam sido os cataclismos; então
parece impossível que seres simplesmente mergulhados em sono paralítico
tenham podido resistir-lhes, para em seguida despertarem tranquilamente. Se
fossem unicamente germes, em que consistiam eles? Como é que seres
inteiramente formados teriam sido reduzidos ao estado de gérmens? Restaria
sempre a questão de saber como esses gérmens se desenvolveram
novamente. Ainda aí, teríamos a Terra formada por via miraculosa, mas por
outro processo menos poético e menos grandioso do que o da Gênese bíblica,
ao passo que as leis naturais dão uma explicação da sua formação muito mais
completa e sobretudo mais racional, deduzida da observação.104
ALMA DA TERRA
CAPÍTULO IX
Revoluções do globo
REVOLUÇÕES GERAIS OU PARCIAIS – IDADE DAS MONTANHAS
– DILÚVIO BÍBLICO – REVOLUÇÕES PERIÓDICAS –
CATACLISMOS FUTUROS –
AUMENTO OU DIMINUIÇÃO DO VOLUME DA TERRA
outros terrenos descobertos. Foi assim que surgiram ilhas no meio do oceano,
enquanto outras desapareceram; que porções de continentes foram
separadas e formaram ilhas, que braços de mar, postos a seco, reuniram ilhas
e continentes.
A água: seja por irrupção ou a retraimento do mar em algumas costas;
seja por desmoronamentos que, retendo as correntes d'água, formaram os
lagos; seja por transbordamentos e inundações; seja, enfim, pelos aterros
formados nas embocaduras dos rios. Esses aterros, retendo o mar, criaram
novos territórios: tal é a origem do delta do Nilo ou Baixo Egito, do delta do
Ródano ou Camargo105 e de tantos outros.
DILÚVIO BÍBLICO
águas foi reprimida para o norte, na direção do oceano Boreal; a outra parte
foi ao meio, em direção ao oceano Índico. Estas últimas inundaram e
devastaram precisamente a Mesopotâmia e toda a região habitada pelos
antepassados do povo hebreu. Embora esse dilúvio se tenha estendido por
uma superfície muito grande, um fato atualmente comprovado é o de que ele
foi apenas local; que ele não pode ter sido causado pela chuva, pois, por mais
abundante e prolongada que ela tenha sido por quarenta dias, o cálculo prova
que a quantidade d’água caída não podia ser o bastante para cobrir toda a
terra, até acima das montanhas mais altas.
Para os homens daquela época, que não conheciam mais do que uma
extensão muito limitada da superfície do globo e que não tinham nenhuma
ideia da sua configuração, desde o instante em que a inundação havia
invadido os países conhecidos, para eles a Terra inteira teria sido inundada.
Se juntarmos a essa crença a forma imaginosa e exagerada própria do estilo
oriental, já não nos será surpresa o exagero da narração bíblica.
REVOLUÇÕES PERIÓDICAS
6. Além do seu movimento anual em torno do Sol — que produz as estações
— e do seu movimento de rotação sobre si mesma em 24 horas — que produz
o dia e a noite — a Terra tem um terceiro movimento que se completa em
aproximadamente 25 mil anos (mais exatamente 25.868 anos) e que produz o
fenômeno denominado em astronomia com o nome de precessão dos
equinócios. (cap. V, item 11).
Esse movimento — que seria impossível explicar em poucas palavras,
sem o auxílio de figuras e sem uma demonstração geométrica — consiste em
um tipo de oscilação circular que comparamos com a de um pião se
enfraquecendo, em virtude da qual o eixo da Terra, mudando de inclinação,
descreve um duplo cone cujo vértice está no centro do planeta, abrangendo as
bases desses cones a superfície circunscrita pelos círculos polares, isto é, uma
amplitude de 23 graus e meio de raio.
108 A precessão dos equinócios ocasiona outra modificação: aquela que se opera na posição dos
signos do zodíaco.
Como a Terra gira ao derredor do Sol em um ano, à medida que ela avança, a cada mês o
Sol se encontra diante de uma nova constelação. Estas constelações são em número de doze, a
saber: Carneiro, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Libra, Escorpião, Sagitário, Capricórnio,
Aquário e Peixes. São chamadas constelações zodiacais ou signos do zodíaco e formam um
círculo no plano da linha do equador terrestre. Conforme o mês do nascimento de um indivíduo,
dizia-se que ele era nascido sob um determinado signo: daí as previsões da astrologia. Porém,
em virtude da precessão dos equinócios, acontece que os meses já não correspondem às
mesmas constelações; então, quem nasce no mês de julho já não está no signo do Leão, mas sim
no do Câncer. Cai assim a ideia supersticiosa relativa à influência dos signos. (cap. V, item 12).
173 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
8. Desse movimento cônico do eixo, resulta que os polos da Terra não olham
constantemente os mesmos pontos do céu; que a Estrela Polar não será
sempre estrela polar; que gradualmente os polos são mais ou menos
inclinados para o Sol, dele recebendo raios mais ou menos diretos; donde se
conclui que, por exemplo, a Islândia e a Lapônia — que estão sob o círculo
polar — poderão em dado tempo receber raios solares como se estivessem na
latitude da Espanha e da Itália, e que, na posição do extremo oposto, Espanha
e Itália poderão ter a temperatura da Islândia e da Lapônia, e assim por
diante, a cada renovação do período de 25 mil anos.109
109O deslocamento gradual das linhas isotérmicas — fenômeno reconhecido pela ciência de
uma maneira tão concreta como o deslocamento do mar — é um fato material que sustenta essa
teoria.
174 – Allan Kardec
110 Entre os fatos mais recentes que provam o deslocamento do mar, podemos citar estes:
No golfo da Gasconha [ou Golfo de Biscaia, situado entre a costa sudoeste da França e a
costa norte da Espanha] entre o velho Soulac e a Torre de Cordouan, quando o mar está calmo,
percebe-se no fundo da água partes de muralha: são os restos da antiga e grande cidade de
Noviomagus, invadida pelas ondas em 580. O rochedo de Cordouan, que se achava então ligado à
margem, está agora a 12 quilômetros.
No mar da Mancha, na costa do Havre, o mar dia a dia ganha terreno e minam as falésias de
Sainte-Adresse, que desmoronam pouco a pouco. A dois quilômetros da costa entre Sainte-
Adresse e o cabo de Hève, existe o banco d'Éclat, que outrora se achava descoberto e ligado à
terra firme. Antigos documentos constatam que nesse lugar, onde hoje podemos navegar, existia
a aldeia de Saint-Denis-chef-de-Caux. Tendo o mar invadido o terreno no século XIV, a igreja foi
tragada em 1378. Dizem que, com um tempo bom, pode-se ver os restos dela no fundo da água
em tempo calmo.
Em quase toda a extensão do litoral da Holanda, o mar só é contido pela força de diques,
que de tempos a tempos se rompem. O antigo lago de Flevo, que se reuniu ao mar em 1225,
forma hoje o golfo de Zuyderzée. Essa irrupção do oceano tragou várias cidades.
Segundo isto, o território de Paris e de toda a França seria novamente ocupado pelo mar,
como já o foi muitas vezes, conforme o demonstram as observações geológicas. Então as partes
montanhosas formarão ilhas, como o são agora Jersey, Guernesey e a Inglaterra, outrora
contíguas ao continente.
Poderemos navegaremos por sobre regiões que atualmente se percorre em caminho de
ferro; os navios aportarão a Montmartre, ao monte Valeriano, as encostas de Saint-Cloud e de
Meudon; os bosques e as florestas onde se passeia ficarão sepultados sob as águas, recobertos
de limo e povoados de peixes em lugar de aves.
O dilúvio bíblico não pode ter tido essa causa, pois que a invasão das águas foi repentina e
a sua permanência de curta duração, ao passo que de outro modo essa permanência teria sido
de vários milhares de anos e ainda duraria, sem que os homens percebessem.
175 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CATACLISMOS FUTUROS
11. Grandes abalos da Terra ocorrem na época em que a crosta sólida — pela
sua fraca espessura — oferecia pouca resistência à efervescência das matérias
incandescentes do interior; viu-se essas comoções diminuir de intensidade e
de generalidade à medida que aquela crosta se consolidava. Numerosos
vulcões agora ficaram extintos e outros foram soterrados pelos terrenos de
formação posterior.
Certamente, perturbações locais ainda poderão produzir-se, por efeito
de erupções vulcânicas, da abertura de alguns novos vulcões, de inundações
súbitas de certas regiões; algumas ilhas poderão surgir do mar e outras
poderão ser tragadas por ele; mas o tempo dos cataclismos gerais — como os
que marcaram os grandes períodos geológicos — já passou. A Terra adquiriu
uma estabilidade que, sem ser absolutamente invariável, coloca doravante o
gênero humano ao abrigo de perturbações gerais, exceto por causas
desconhecidas, estranhas ao nosso globo e que de nada pudesse prever.
14. Fisicamente, a Terra teve as convulsões da sua infância; ela entrou agora
num período de relativa estabilidade: no período do progresso pacífico, que
se realiza pelo retorno regular dos mesmos fenômenos físicos e pela
colaboração inteligente do homem. Todavia, ela ainda está em pleno
trabalho de gestação do progresso moral. Aí estará a causa das suas
maiores comoções. Até que a humanidade tenha crescido suficientemente
em perfeição pela inteligência e pela observância das leis divinas, as
maiores perturbações ainda serão causadas mais pelos homens do que
pela natureza; isto é, serão mais morais e sociais do que físicas.
111 Ocometa de 1861 atravessou a órbita da Terra a 20 horas de distância do ponto onde estava
este planeta, que teve que se achar mergulhado na atmosfera daquele cometa, sem que
resultasse daí nenhum acidente.
177 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
112No seu movimento de translação em torno do Sol, a velocidade da Terra é de 400 léguas por
minuto. Sua circunferência sendo de 9 mil léguas, no seu movimento de rotação sobre seu eixo,
cada ponto do equador percorre 9 mil léguas em 24 horas, ou 6,3 léguas por minuto.
179 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO X
Gênese orgânica
FORMAÇÃO PRIMÁRIA DOS SERES VIVOS – PRINCÍPIO VITAL
– GERAÇÃO ESPONTÂNEA – ESCALA DOS SERES ORGÂNICOS –
O HOMEM CORPORAL
1. Houve tempo em que não existiam animais; logo, eles tiveram um começo.
Viu-se cada espécie aparecer à medida que o globo adquiria as condições
necessárias para a existência delas: eis o que é um fato concreto. Como se
formaram os primeiros indivíduos de cada espécie? Compreendemos que,
existindo um primeiro casal, os indivíduos se multiplicaram; mas de onde saiu
esse primeiro casal? Eis aqui um dos mistérios que dependem do princípio
das coisas e sobre os quais nós só podemos levantar hipóteses. Se a ciência
ainda não pode resolver completamente o problema, pelo menos, ela pode
encaminhá-lo para a solução.
2. Uma primeira questão que se apresenta é esta: cada espécie animal saiu de
um casal primário, foram criados de vários casais ou, se o preferirem,
brotaram simultaneamente em diversos lugares?
Esta última suposição é a mais provável; podemos dizer até que ela
resulta da observação. Com efeito, o estudo das conchas geológicas atesta a
presença nos terrenos de mesma formação e isso em enormes proporções, da
mesma espécie sobre os pontos mais longínquos do globo. Essa multiplicação,
tão generalizada e de alguma maneira contemporânea, teria sido impossível
180 – Allan Kardec
3. A formação dos primeiros seres vivos, por analogia, pode ser deduzida pela
mesma lei pela qual foram formados — e se formam todos os dias — os
corpos inorgânicos. Na proporção que aprofundamos as leis da natureza,
vemos as engrenagens — que a princípio pareciam tão complicadas — se
simplificarem e se confundirem na grande lei de unidade que preside toda a
obra da criação. Compreendemos isso melhor quando nos dermos conta da
formação dos corpos inorgânicos, que é o seu primeiro degrau.
12. A lei que rege a formação dos minerais conduz naturalmente à formação
dos corpos orgânicos.
A análise química mostra todas as substâncias vegetais e animais
compostas dos mesmos elementos que os corpos inorgânicos. Desses
elementos, os que desempenham um papel principal são: o oxigênio, o
hidrogênio, o azoto e o carbono; os outros só se acham apenas
ocasionalmente. Como no reino mineral, a diferença de proporções na
combinação desses elementos produz todas as variedades de substâncias
orgânicas e suas diversas propriedades, tais como: os músculos, os ossos, o
sangue, a bílis, os nervos, a matéria cerebral e a gordura, isso nos animais; a
184 – Allan Kardec
113 O quadro a seguir, com a análise de algumas substâncias, mostra a diferença das
propriedades que resulta somente da diferença na proporção dos elementos constituintes.
Sobre 100 partes:
15. O que se passa diariamente aos nossos olhos pode nos colocar na pista do
que se passou na origem dos tempos, pois as leis da natureza são sempre
invariáveis.
Visto que os elementos constitutivos dos seres orgânicos e inorgânicos
são os mesmos e que, sob a força de certas circunstâncias, nós os vemos
incessantemente formar as pedras, as plantas e os frutos, podemos concluir
daí que os corpos dos primeiros seres vivos foram formados como as
186 – Allan Kardec
PRINCÍPIO VITAL
16. Dizendo que as plantas e os animais são formados dos mesmos princípios
que formam os minerais, é preciso entendê-lo no sentido exclusivamente
material: aqui então é só uma questão de corpo.
Sem falar do princípio inteligente, que é uma questão à parte, há na
matéria orgânica um princípio especial, inapreciável e que ainda não pode ser
definido: é o princípio vital. Esse princípio, que é ativo no ser vivente, está
inativo no ser morto, mas não concede à substância menos propriedades
características que a distinguem das substâncias inorgânicas. A química —
que decompõe e recompõe a maior parte dos corpos inorgânicos — pôde
decompor os corpos orgânicos, porém jamais chegou a reconstituir sequer
uma folha morta, o que é uma prova evidente de que há nestes corpos alguma
coisa que não existe nos outros.
17. O princípio vital é alguma coisa distinta que tenha existência própria? Ou
melhor, para retornar no sistema da unidade do elemento gerador, seria
apenas um estado particular, uma das modificações do fluido cósmico
universal que se torna princípio de vida, como ele se torna luz, fogo, calor e
eletricidade? É neste último sentido que a questão é resolvida pelas
comunicações anteriormente reportadas. (ver cap. VI, Uranografia geral).
No entanto, seja qual for a opinião que se tenha sobre a natureza do
princípio vital, ele existe, pois vemos os seus efeitos. Portanto, podemos
logicamente admitir que, ao se formarem, os seres orgânicos assimilaram o
187 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
GERAÇÃO ESPONTÂNEA
20. É natural que se pergunte por que não se formam mais seres vivos nas
mesmas condições que os primeiros que surgiram na Terra.
A questão da geração espontânea — que hoje preocupa a Ciência,
embora ainda diversamente resolvida — não pode deixar de esclarecer esse
assunto. O problema proposto é este: nos tempos atuais, seres orgânicos se
formam espontaneamente pela simples reunião dos elementos constitutivos,
sem germens previamente produzidos da geração comum, ou seja, sem pais
nem mães?
Os partidários da geração espontânea respondem afirmativamente e se
apoiam nas observações diretas que parecem conclusivas. Outros pensam que
todos os seres vivos se reproduzem uns pelos outros apoiando-se sobre esse
fato, constatado pela experiência, de que os germens de certas espécies
vegetais e animais, estando dispersos, podem conservar uma vitalidade
latente durante um tempo considerável, até que as circunstâncias sejam
favoráveis à sua eclosão. Essa opinião deixa sempre viva a questão da
formação dos primeiros tipos de cada espécie.
21. Sem discutir os dois sistemas, convém salientar que o princípio da geração
espontânea evidentemente não pode ser aplicado exceto aos seres das ordens
mais inferiores do reino vegetal e do reino animal, àqueles em quem a vida
começa a despontar e cujo organismo extremamente simples é de certo modo
rudimentar. Esses foram efetivamente os primeiros que apareceram na Terra
e cuja geração teve de ser espontânea. Assistiríamos assim a uma criação
permanente igual àquela que se produziu nas primeiras fases do mundo.
22. Mas então, por que não vemos se formarem da mesma maneira os seres
de organização complexa? Esses seres nem sempre existiram — isso é um fato
concreto; portanto, eles tiveram um começo. Se o musgo, o líquen, o zoófito, o
infusório, os vermes intestinais e outros podem se produzir
espontaneamente, por que não se dá o mesmo com as árvores, os peixes, os
cães e os cavalos?
189 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
23. Se o fato da geração espontânea está demonstrado, por mais limitado que
seja, não deixa de ser um fato capital, um marco estabelecido que pode abrir
caminho para novas observações. Se os seres orgânicos complexos não se
produzem dessa maneira, quem sabe como eles começaram? Quem conhece o
segredo de todas as transformações? Vendo o carvalho e a glande, quem pode
afirmar que não exista um laço misterioso entre o pólipo e o elefante? (Ver
item 25.)
No estágio atual dos nossos conhecimentos, não podemos colocar a
teoria da geração espontânea permanente a não ser como uma hipótese, mas
como uma hipótese provável, e que talvez um dia faça parte das verdades
científicas reconhecidas.114
meio ambiente.
Um degrau acima, o animal é livre e vai procurar sua nutrição: a
princípio, são inúmeras variedades de pólipos em corpos gelatinosos, sem
órgãos bem definidos, e que não diferem das plantas senão pela locomoção;
depois vêm, na ordem do desenvolvimento dos órgãos, da atividade vital e do
instinto: os helmintos ou vermes intestinais; os moluscos, animais carnudos,
sem ossos, alguns deles são nus como as lesmas, poupas ou polvos, outros
providos de conchas como o caracol e a ostra; os crustáceos, cuja pele é
revestida de uma crosta dura como os caranguejos, as lagostas; os insetos, aos
quais a vida assume espantosa atividade e se manifesta o instinto engenhoso,
como a formiga, a abelha e a aranha. Alguns sofrem uma metamorfose, como a
lagarta, que se transforma em elegante borboleta. Vem em seguida a ordem
dos vertebrados, animais de esqueleto ósseo, que abrange os peixes, os
répteis, os pássaros; e por fim, os mamíferos, cuja organização é a mais
completa.
O HOMEM CORPORAL
115Jocó ou jocko: uma variedade de macaco típica do Brasil. O nome provavelmente provém do
romance Jocko ou le Singe du Brésil (Jocko ou o Macaco do Brasil), escrito em 1824 por Charles
192 – Allan Kardec
têm certas semelhanças com o homem, a tal ponto que por muito tempo
foram denominados homens das florestas; como o homem, eles caminham
eretos, usam cajados, constroem cabanas e levam os alimentos à sua boca com
a mão — sinais característicos.
28. Por pouco que se observe a escala dos seres vivos do ponto de vista do
organismo, reconhece-se que, desde o líquen até a árvore, e desde o zoófito
até o homem, há uma cadeia elevando-se gradativamente sem solução de
continuidade e cujos todos os anéis têm um ponto de contato com o anel
precedente; acompanhando passo a passo a série dos seres, diríamos que
cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie
imediatamente inferior. Visto que o corpo do homem está nas condições
idênticas às dos outros corpos, na sua química e constituição física, e que ele
nasce, vive e morre da mesma maneira, ele há de ter sido formado nas
mesmas condições.
29. Ainda que isso possa custar ao seu orgulho, o homem deve se resignar a
não ver no seu corpo material mais do que o último anel da animalidade
sobre a Terra. Aí está o inviolável argumento dos fatos, contra o qual será em
vão protestar.
Todavia, quanto mais o corpo diminui de valor aos seus olhos, mais o
princípio espiritual cresce em importância; se o primeiro o iguala ao bruto, o
segundo o eleva a uma indescritível altura. Nós vemos o círculo onde o animal
se limita, mas não vemos o limite a que o Espírito do homem pode alcançar.
30. Por aí, o materialismo pode ver que o Espiritismo, longe de temer as
descobertas da ciência e seu positivismo, vai ao seu encontro e os provoca,
por ele estar certo de que o princípio espiritual — que tem sua existência
própria — em nada pode sofrer com elas.
de Pougens, que fez grande sucesso na França com a adaptação para o teatro em 1825, sob a
direção de Edmond Rochefort. No enredo, um rico português em viagem ao Brasil captura um
macaco muito esperto e que, numa travessia, salva a vida da filha do português de um naufrágio.
— N. T.
193 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XI
Gênese espiritual
PRINCÍPIO ESPIRITUAL –
UNIÃO DO PRINCÍPIO ESPIRITUAL E DA MATÉRIA
– HIPÓTESE SOBRE A ORIGEM DO CORPO HUMANO –
ENCARNAÇÃO DOS ESPÍRITOS – REENCARNAÇÕES
– EMIGRAÇÕES E IMIGRAÇÕES DOS ESPÍRITOS – RAÇA ADÂMICA –
DOUTRINA DOS ANJOS DECAÍDOS E DO PARAÍSO PERDIDO
PRINCÍPIO ESPIRITUAL
7. Admitido o ser espiritual, e sua fonte não podendo ser a matéria, qual é a
sua origem, seu ponto de partida?
Aqui, os meios de investigação absolutamente se acabam, como em tudo
aquilo que diz respeito ao princípio das coisas. O homem apenas pode
constatar o que existe; sobre todo o resto, ele não faz mais do que emitir
hipóteses; e, seja porque esse conhecimento esteja fora do alcance da sua
inteligência atual, seja porque haja para ele inutilidade ou inconveniência
possuí-lo no momento, Deus não lhe concede esse saber nem mesmo pela
revelação.
O que Deus permite que seus mensageiros lhe digam e o que, aliás, o
homem pode deduzir por si mesmo do princípio da soberana justiça — que é
um dos atributos essenciais da divindade — é que todos têm um mesmo
ponto de partida; que todos são criados simples e ignorantes, com igual
aptidão para progredir pela sua atividade individual; que todos atingirão o
grau de perfeição compatível com a criatura através de seus esforços
pessoais; que todos, sendo filhos do mesmo Pai, são objeto de uma igual
solicitude; que não há ninguém mais favorecido ou melhor dotado do que os
outros, nem dispensado do trabalho imposto aos demais para atingirem o
objetivo.
11. Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito quem modela
o seu envoltório e o apropria às suas novas necessidades; ele o aperfeiçoa,
desenvolve e completa seu organismo na proporção em que experimenta a
necessidade de manifestar novas faculdades; numa palavra, ele o molda
conforme sua inteligência; Deus lhe fornece os materiais: cabe ao homem os
pôr em obra; é assim que as raças adiantadas têm um organismo, ou se
quiserem, uma aparelhagem cerebral mais aperfeiçoada do que as raças
primitivas. Assim se explica igualmente o cunho especial que o caráter do
199 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
Espírito imprime nos traços da fisionomia e nas feições do corpo.117 (cap. VIII,
item 7: A alma da Terra.)
12. Desde que um Espírito nasce para a vida espiritual, para o seu
adiantamento ele deve fazer uso de suas capacidades, que a princípio são
rudimentares; é por isso que ele veste um envoltório corporal adequado ao
seu estado de infância intelectual, envoltório esse que ele abandona para
vestir outro na medida em que suas forças crescem. Ora, como em todos os
tempos houve mundos e esses mundos deram nascimento a corpos
organizados próprios a receber Espíritos, em todos os tempos os Espíritos —
qualquer que fosse o seu grau de adiantamento — encontraram os elementos
necessários para a sua vida carnal.
117Escrevendo em acordo com as convenções científicas de seu tempo, Allan Kardec então leva
em conta a ideia amplamente aceita pelos seus contemporâneos de que, na diversidade típica de
nosso planeta, certas raças ainda eram bastante primitivas e outras já bem adiantadas
(notadamente a dos europeus) correlacionando aí o estágio evolutivo do ser espiritual com o
organismo físico no qual reencarna, o qual — segundo o entendimento da época, fomentado
pela doutrina da Frenologia — imprime em seus traços fisionómicos o seu caráter intelectual e
moral. — N. T.
200 – Allan Kardec
16. Admitindo essa hipótese, podemos dizer que, sob a influência e por efeito
da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou,
embelezou-se nos detalhes, conservando em tudo a forma geral do conjunto
(item 11). Os corpos melhorados, em se procriando, reproduziram-se nas
201 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
19. O Espiritismo nos faz compreendermos — pelos fatos que ele mesmo nos
permite observar — os fenômenos que acompanham essa separação; às vezes
ela é rápida, fácil, suave e insensível; doutras vezes ela é lenta, trabalhosa e
horrivelmente penosa conforme o estado moral do Espírito, e pode durar
meses inteiros.
203 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
23. Tomando a humanidade no seu grau mais baixo da escala espiritual, entre
os selvagens mais atrasados, pergunta-se se este é o ponto inicial da alma
humana.
Na opinião de alguns filósofos espiritualistas, o princípio inteligente —
diferente do princípio material — individualiza-se e se elabora, passando
pelos diversos graus da animalidade; é aí que a alma ensaia para a vida e
desabrocha suas primeiras faculdades pelo exercício; por assim dizer, isso
seria para ela sua fase de incubação. Tendo esse ser chegado ao grau de
desenvolvimento que esse estado comporta, ele recebe as faculdades
especiais que constituem a alma humana. Haveria assim filiação espiritual do
animal ao homem, como há aí filiação corporal.
É preciso convir que essa teoria, fundada na grande lei de unidade que
preside à criação, corresponde à justiça e à bondade do Criador; ela dá uma
saída, uma finalidade, um destino aos animais, que deixam de ser seres
deserdados, mas que encontram no futuro que lhes está reservado uma
compensação a seus sofrimentos. O que constitui o homem espiritual não é a
sua origem, mas os atributos especiais dos quais ele é dotado ao entrar na
humanidade, atributos que o transformam e fazem dele um ser distinto, como
o fruto saboroso é distinto da raiz amarga de onde ele saiu. Por haver passado
pela fieira da animalidade, o homem não se seria menos homem; já não seria
mais animal, como o fruto não é raiz, como o sábio não é o feto sem forma
pelo qual entrou no mundo.
Mas esse sistema levanta inúmeras questões, cujos prós e contras não é
oportuno discutir aqui, nem tampouco é oportuno examinar as diferentes
hipóteses que se têm formulado sobre este assunto. Pois, sem buscarmos a
origem da alma e as fileiras pelas quais ela pudesse passar, vamos tomá-la a
partir da sua entrada na humanidade, no ponto em que, dotada de senso
moral e de livre-arbítrio, ela começa a ficar sujeita à responsabilidade dos
seus atos.
31. Podemos comparar os Espíritos que vieram povoar a Terra a essas tropas
de emigrantes de origens diversas que vão estabelecer-se numa terra virgem.
Ali encontram madeira e pedra para erguer suas habitações, e cada qual lhe
assinala um cunho diferente, de acordo com o grau do seu saber e de sua
inteligência particular. Eles ali se agrupam por analogia de origens e de
gostos; esses grupos acabam por formar tribos, em seguida povos, tendo cada
qual seus costumes e suas características peculiares.
REENCARNAÇÕES
RAÇA ADÂMICA
38. Segundo o ensinamento dos Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações,
ou, se preferem, uma dessas colônias de Espíritos vinda de outra esfera, que
deu origem à raça simbolizada na pessoa de Adão, e, por essa razão mesma,
chamada raça adâmica. Quando ela chegou, a Terra já estava povoada desde
tempos imemoriais, como a América quando lá chegaram os europeus.
A raça adâmica — mais adiantada do que as que a tinham precedido na
Terra — é de fato a mais inteligente; é ela quem arrasta todas as outras ao
progresso. A Gênesis119 nos mostra isso, industriosa desde os seus
primórdios, apta às artes e às ciências, sem haver passado pela infância
intelectual, o que não é próprio das raças primitivas, mas que concorda com a
opinião de que ela se compunha de Espíritos que já tinham progredido. Tudo
prova que ela não é antiga na Terra e nada se opõe a que aqui tenha habitado
há apenas alguns milhares de anos, o que não estaria em contradição nem
com os fatos geológicos, nem com as observações antropológicas, e, ao
contrário, tenderia a confirmá-las.
39. A doutrina segundo a qual todo o gênero humano procede de uma única
individualidade há apenas seis mil anos não é mais admissível no estado atual
dos conhecimentos. As principais considerações que a contradizem — tiradas
da ordem física e moral — se resumem nos seguintes pontos:
Do ponto de vista fisiológico, certas raças apresentam tipos particulares
característicos que não permitem que lhes sejam dadas uma origem comum.
Há diferenças que não são evidentemente efeito do clima, pois os brancos que
se reproduzem nos países dos negros não se tornam negros, e
reciprocamente. O ardor do Sol queima e escurece a pele, porém jamais
transformou um branco em negro, nem lhe achatou o nariz, ou mudou a
forma dos traços da fisionomia, tampouco tornou crespos e encaracolados os
cabelos longos e oleosos. Sabe-se hoje que a cor do negro provém de um
tecido particular subcutâneo que é peculiar à espécie.
Logo, temos de considerar as raças negras, mongólicas e caucásicas
como tendo sua origem própria e tendo nascido simultaneamente ou
sucessivamente em diversas partes do globo; seu cruzamento tem produzido
as raças mistas secundárias. As características fisiológicas das raças
primitivas são o indício evidente que elas procedem de tipos diferentes. As
mesmas considerações existem então tanto para os homens como para os
animais, quanto à pluralidade dos troncos. (cap. X, itens 2 e seguintes.)
Sem falar da cronologia chinesa, que vem — dizem — desde trinta mil
anos, documentos mais autênticos provam que o Egito, a Índia e outros países
já eram povoados e floresciam há pelo menos três mil anos antes da Era
Cristã, portanto mil anos depois da criação do primeiro homem segundo a
cronologia bíblica. Documentos e observações recentes não deixam hoje
dúvida alguma quanto às relações que existiram entre a América e os antigos
egípcios; daí devemos concluir que essa região já era povoada naquela época.
Então seria necessário admitirmos que em mil anos a posteridade de um
único homem pôde povoar a maior parte da Terra; ora, semelhante fertilidade
seria contrária com todas as leis antropológicas.120
42. A impossibilidade torna-se ainda mais evidente desde que se admita, com
a Gênesis, que o dilúvio destruiu todo o gênero humano, com exceção de Noé
e sua família — que não era numerosa, no ano de 1656 do mundo, ou seja:
2.348 anos antes da Era Cristã. Portanto, não seria realmente a partir de Noé
que dataria o povoamento do globo; ora, quando os hebreus se estabeleceram
no Egito, 612 anos após o dilúvio, o Egito já era um poderoso império que —
sem falar de outros países — teria sido povoado há pelo menos seis séculos,
só pelos descendentes de Noé — o que não é admissível.
De passagem, notemos que os egípcios acolheram os hebreus como
estrangeiros; seria espantoso que eles tivessem perdido a lembrança de uma
comunidade de origem tão próxima, uma vez que eles conservaram
religiosamente os monumentos de sua história.
Uma lógica rigorosa, corroborada pelos fatos, demonstra então da
120A exposição universal de 1867 apresentou antiguidades do México que não deixam nenhuma
dúvida quanto às relações que os povos desse país tiveram com os antigos egípcios. O Sr. Léon
Méchedin, numa anotação exposta no templo mexicano da exposição assim se exprime:
“É conveniente não publicar nada antes do tempo as descobertas feitas do ponto de vista
da história do homem para a recente exposição científica do México; contudo, nada impede que
o público saiba, desde agora, que a exploração apontou a existência de um grande número de
cidades apagadas pelo tempo, mas que a picareta e o incêndio podem tirar de sua mortalha. As
escavações revelaram em toda parte três camadas de civilizações que parecem dar ao mundo
americano uma antiguidade fabulosa.”
É assim que cada dia a ciência vem desmentir os fatos da doutrina que limita em 6 mil
anos o aparecimento do homem na Terra, e pretende fazê-lo vir de um único tronco.
216 – Allan Kardec
121 Quando publicamos na Revista Espírita de janeiro de 1862 um artigo sobre a interpretação
da doutrina dos anjos decaídos, apresentamos essa teoria como uma hipótese, não tendo mais
que a autoridade de uma opinião pessoal passível de controvérsia, porque então nos faltavam
elementos completos o bastante para uma afirmação absoluta; nós a expusemos a título de
ensaio, tendo em vista provocar o seu exame, bem determinado a abandoná-la ou a modificá-la
se fosse preciso. Hoje, essa teoria já passou pela prova do controle universal; não só ela foi bem
aceita pela maioria dos Espíritas como a mais racional e a mais concordante com a soberana
justiça de Deus, mas também foi confirmada pela generalidade das instruções dadas pelos
Espíritos sobre o assunto. É o mesmo caso do que concerne à origem da raça adâmica.
217 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
44. Mas ao mesmo tempo em que os maus são retirados do mundo em que
habitavam, eles são substituídos por Espíritos melhores, vindos ou da
erraticidade desse mesmo mundo, ou de um mundo menos adiantado, que
eles mereceram deixar, e para os quais sua nova estadia é uma recompensa. A
população espiritual sendo assim renovada e depurada dos seus piores
elementos, ao fim de algum tempo o estado moral do mundo se encontra
melhorado.
Essas mutações às vezes são parciais, isto é, limitadas a um povo, a uma
raça; doutras vezes, são generalizadas, quando o período de renovação chega
para o globo.
teve razão para lhe dizer: “Tirarás teu alimento do suor do teu rosto”. Na sua
mansidão, ele prometeu que lhe enviaria um Salvador, isto é, aquele que
deveria esclarecer sobre o caminho a seguir para sair desse lugar de miséria,
desse inferno, e alcançar a felicidade dos eleitos. Esse Salvador, Deus lhe
enviou na pessoa do Cristo, que ensinou a lei de amor e de caridade
desconhecida por eles, e que deveria ser a verdadeira âncora de salvação.
É igualmente com o objetivo de fazer a humanidade avançar num
determinado sentido que Espíritos superiores — embora sem as qualidades
do Cristo — encarnam de tempos em tempos na Terra para aqui
desempenhar missões especiais que beneficiam o seu adiantamento pessoal,
se eles as cumprirem de acordo com os desígnios do Criador.
vezes na Terra para a vida corpórea para progredir e se depurar; que o Cristo
veio esclarecer essas mesmas almas não só acerca de suas vidas passadas,
como também sobre suas vidas ulteriores, e só então vocês darão à sua
missão um sentido real e sério, aceitável pela razão.
49. Acredita-se agora que esses homens enviados para a Nova Caledônia vão
se transformar subitamente em modelos de virtude? Que vão abandonar
repentinamente todos os seus erros passados? Seria necessário desconhecer a
humanidade para supor isso. Pela mesma razão, os Espíritos da raça adâmica
— uma vez transplantados para a terra do exílio — não se depuraram
instantaneamente do seu orgulho e de seus maus instintos; ainda por muito
tempo conservaram as tendências de sua origem, um resto do velho fermento;
ora, não é esse o pecado original?
221 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XII
Gênese mosaica
OS SEIS DIAS – O PARAÍSO PERDIDO
OS SEIS DIAS
6. Deus disse também: Que o firmamento seja feito no meio das águas, e que
ele separe as águas das águas. - 7. E Deus fez o firmamento; e separou as
águas que estavam sob o firmamento das que estavam acima do firmamento.
E assim se fez. - 8. E Deus deu ao firmamento o nome de céu; da tarde e da
manhã se fez o segundo dia.
9. Disse Deus ainda: Que as águas que estão sob o céu se reúnam num só
lugar, e que o elemento árido apareça. E assim se fez. - 10. Deus deu ao
elemento árido o nome de terra, e chamou de mar todas as águas recolhidas.
E viu que isso era bom. - 11. Deus disse mais: Que a terra produza a erva
verde que traz a semente e árvores frutíferas que deem frutos cada qual
segundo sua espécie, e que contenham suas sementes em si mesmas para se
reproduzir na terra. E assim se fez. - 12. A terra então produziu a erva verde
que trazia a semente conforme a sua espécie, e árvores frutíferas que
continham suas sementes em si mesmas, cada qual segundo sua espécie. E
Deus viu que isso era bom. - 13. E da tarde e da manhã se fez o terceiro dia.
14. Deus disse assim: Que corpos de luz sejam feitos no firmamento do céu, a
222 – Allan Kardec
fim de que eles separem o dia da noite, e sirvam de sinais para marcar o
tempo e as estações, os dias e os anos. - 15. Que eles brilhem no firmamento
do céu e que iluminem a terra. E assim se fez. - 16. Deus então fez dois
grandes corpos luminosos, um maior para presidir ao dia, o outro menor para
presidir à noite; também fez as estrelas. - 17. E os pôs no firmamento do céu
para brilhar sobre a terra. - 18. Para presidir ao dia e à noite, e para separar a
luz das trevas. E Deus viu que isso era bom. - 19. E da tarde e da manhã se fez
o quarto dia.
20. Deus disse ainda: Que as águas produzam animais vivos que nadem na
água, e pássaros que voem sobre a terra abaixo do firmamento do céu. - 21.
Então Deus criou os grandes peixes e todos os animais que têm vida e
movimento, que as águas produziram cada qual segundo sua espécie, e criou
também todos os pássaros segundo sua espécie. Ele viu que isso era bom. -
22. E os abençoou dizendo: Cresçam e se multipliquem, e encham as águas do
mar; e que os pássaros se multipliquem sobre a terra. - 23. E da tarde e da
manhã se fez o quinto dia.
24. Deus também disse: Que a terra produza animais vivos cada qual segundo
sua espécie, os animais domésticos, os répteis e as feras selvagens da terra
em suas diferentes espécies. E assim se fez. - 25. Deus então fez as feras
selvagens da terra segundo suas espécies, os animais domésticos e todos os
répteis, cada qual segundo sua espécie. E Deus viu que isso era bom.
ornamentos. - 2. Deus concluiu no sétimo dia toda a obra que havia feito e
repousou nesse sétimo dia, após ter concluído todas as suas obras. - 3. Ele
abençoou o sétimo dia e o santificou, porque ele havia cessado nesse dia de
produzir todas as obras que tinha criado. - 4. Essa é a origem do céu e da
terra, e foi assim que eles foram criados no dia que o Senhor fez um e outro. -
5. E que criou todas as plantas dos campos antes que houvessem saído da
terra, e todas as ervas dos campos antes que houvessem germinado. Porque o
Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem
para lavrá-la; - 6. Porém, da terra se elevava uma fonte que lhe regava toda a
superfície.
4. Notamos de início que, assim como já foi dito (cap. VII, item 14), o número
de seis períodos geológicos é arbitrário, pois, conta-se mais de vinte e cinco
formações bem caracterizadas. Esse número marca apenas as grandes fases
gerais; ele só foi adotado, a princípio, para retornar, o máximo possível, no
texto bíblico a uma época — pouco distante, aliás — quando se acreditava que
224 – Allan Kardec
a ciência devia ser controlada pela Bíblia. Essa a razão por que os autores da
maior parte das teorias cosmogônicas, visando se fazer mais facilmente
aceitável, se esforçaram para se colocar em acordo com o texto sagrado.
Quando a ciência se apoiou no método experimental, ela sentiu-se mais forte e
se emancipou; hoje, é a Bíblia que é controlada pela ciência.
De outra forma, a geologia — não tomando por ponto de partida senão a
formação dos terrenos graníticos, na contagem de seus períodos — não
abrange o estado primitivo da Terra. Tampouco ela se ocupa com o Sol, com a
Lua e com as estrelas, nem com o conjunto do Universo — que pertencem à
astronomia. Para enquadrar tudo na Gênesis, convém então acrescentarmos
um primeiro período abrangendo essa ordem de fenômenos, ao qual se
poderia chamar período astronômico. Além disso, o período diluviano não é
considerado por todos os geólogos como formando um período distinto, mas
como um fato transitório e passageiro, que não mudou sensivelmente o
estado climático do globo, nem marcou uma fase nova para as espécies
vegetais e animais, pois, com poucas exceções, as mesmas espécies se
encontram antes e depois do dilúvio. Podemos então fazer abstração desse
período sem nos desviarmos da verdade.
CIÊNCIA GÊNESIS
DILÚVIO UNIVERSAL
7. Quando Moises diz que a criação foi feita em seis dias, queria ele falar de
dias de vinte e quatro horas, ou teria empregado essa palavra no sentido de:
226 – Allan Kardec
8. Um dos pontos que têm sido mais criticados na Gênese é o da criação do Sol
depois da luz. Tentaram explicá-lo, até mesmo com os dados fornecidos pela
geologia, dizendo que, nos primeiros tempos de sua formação, a atmosfera
terrestre — sendo carregada de vapores densos e opacos — não permitia que
se visse o Sol, que, assim, efetivamente não existia para a Terra. Talvez essa
explicação fosse admissível se naquela época já houvesse habitantes para
julgar a presença ou a ausência do Sol; ora, segundo o próprio Moisés,
somente havia plantas, que, contudo, não poderiam crescer e se multiplicar
sem a ação do calor solar.
Portanto, há evidentemente um anacronismo na ordem que Moisés
assinala para a criação do Sol; mas — involuntariamente ou não — ele não
cometeu um erro ao dizer que a luz precedeu o Sol.
O Sol não é o princípio da luz universal, mas uma concentração do
elemento luminoso em um ponto, dita de outra maneira, do fluido que, em
227 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
122Vendidad (Vendedad em francês): um dos livros que compõem o Avesta, os textos sagrados
do Zoroastrismo (religião da antiga Pérsia cujo profeta maior é Zaratustra, também conhecido
como Zoroastro) — N. T.
123Ormuzd (também chamado de Aúra-Masda ou simplesmente Ormuz): é o deus do bem
dentro da dualidade do Zoroastrismo, sendo seu irmão gêmeo Arimã, o deus do mal — N. T.
228 – Allan Kardec
seguintes): “Deus disse: Que o firmamento seja feito no meio das águas e que
se separe as águas das águas. Deus fez o firmamento e separou as águas que
estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento.”
(veja: cap. V, Antigos e modernos sistemas do mundo, itens 3, 4 e 5).
Uma antiga crença considerava a água como o princípio, o elemento
gerador primitivo; também Moisés não fala da criação das águas, que
aparentemente já existiam. “As trevas cobriam o abismo”, quer dizer, as
profundezas do espaço que a imaginação representava vagamente ocupada
pelas águas e em trevas antes da criação da luz; eis aí por que Moisés diz: “O
Espírito de Deus passeava (ou plainava) sobre as águas”. A Terra sendo
supostamente formada no meio das águas, era preciso isolá-la; supôs-se então
que Deus teria feito o firmamento, abóbada sólida que separava as águas de
cima das que estavam sobre a Terra.
Para se compreender certas partes da Gênese, é preciso necessariamente
se colocar no ponto de vista das ideias cosmogônicas da época em que ela
reflete.
11. Moisés está mais com a verdade quando diz que Deus formou o homem
com o barro da terra.125 A ciência nos mostra, de fato (cap. X) que o corpo do
homem é composto de elementos tomados da matéria inorgânica — por
124 Por mais grosseiro que seja o erro de uma crença como essa, ainda se mima como ela as
crianças de nossos dias como se essa crença fosse uma verdade sagrada. Não é senão tremendo
dela que os educadores ousam arriscar uma tímida interpretação. Como querem que isso mais
tarde não faça incrédulos?
125A palavra hebraica haadam, homem, do qual fez Adão (Adam), e o termo haadama, terra, têm
a mesma raiz.
229 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
12. Para Espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis gerais, incapazes de
apreender o conjunto e de conceber o infinito, essa criação miraculosa e
instantânea tinha qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O
quadro do Universo tirado do nada em alguns dias, por um único ato da
vontade criadora, era para eles o sinal mais evidente do poder de Deus. De
fato, que pintura mais sublime e mais poética desse poder do que estas
palavras: “Deus disse: Que a luz se faça e a luz foi feita!”. Deus criando o
Universo pelo cumprimento lento e gradual das leis da natureza teria lhes
parecido menor e menos poderoso; para eles, fazia-se necessário qualquer
coisa de maravilhoso que saísse das vias comuns, do contrário eles teriam
dito que Deus não seria mais hábil do que os homens. Uma teoria científica e
racional da criação os deixaria frios e indiferentes.
Em suma, não rejeitemos a Gênesis bíblica; ao contrário, vamos estudá-la
como estudamos a história da infância dos povos. Trata-se de uma epopeia
rica em alegorias a qual devemos procurar o sentido oculto; que precisamos
comentar e explicar com a ajuda das luzes da razão e da ciência. Tudo nela
fazendo ressaltar a beleza poética e os ensinamentos velados sob a forma
imaginosa, faz-se preciso demonstrar francamente os erros, no próprio
interesse da religião. Nós a respeitaremos melhor quando esses erros não
forem mais impostos pela fé como verdades, e Deus parecerá maior e mais
126Hilota era um tipo de servo na Grécia Antiga que, diferentemente dos escravos, era
propriedade do Estado, que administrava a produção econômica. — N. T.
230 – Allan Kardec
poderoso quando seu nome não for misturado com fatos controversos.
14. CAPÍTULO III — 1. Ora, a serpente era o mais perspicaz de todos os animais
que o Senhor Deus havia criado sobre a Terra. E ela disse à mulher: Por que
Deus te ordenou não comer dos frutos de todas as árvores do paraíso? (E a
serpente [nâhâsch] era mais astuta do que todos os animais terrestres que
Jeová Eloim havia feito; ela disse à mulher [el haïscha]: Eis o que Eloim disse:
Não comerás de nenhuma árvore do jardim?). - 2. A mulher lhe respondeu:
Nós comemos dos frutos de todas as árvores que estão no paraíso. (Ela, a
mulher, disse à serpente, do fruto [miperi] das árvores do jardim nós podemos
comer.) - 3. Mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus
nos ordenou que não comêssemos e nem o tocássemos, para não corrermos o
perigo de morrer. - 4. A serpente retrucou à mulher: Seguramente vocês não
127 Em seguida a alguns versículos, nós colocamos a tradução literal do texto hebreu, que
expressa mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico ressalta assim mais
claramente.
128Paraíso, do latim paradisus, derivado do grego: paradeisos, jardim, vergel, lugar plantado de
árvores. O termo hebreu empregado na Gênese é hagan, que tem a mesma significação.
231 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
morrerão; - 5. Mas é que Deus sabe que assim que tiverem comido desse
fruto, seus olhos se abrirão e vocês serão como deuses, conhecendo o bem e o
mal.
6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer;
que era belo e agradável à vista. E, tomando dele, ela o comeu e o deu ao seu
marido, que também comeu dele. (Ela, a mulher, viu que ela era boa a árvore
como alimento, e que era desejável a árvore para COMPREENDER [leaskil], e ela
comeu de seu fruto etc.)
8. E como se eles tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que passeava pelo
paraíso à tarde, quando sopra um vento suave, eles se retiraram para o meio
das árvores do paraíso para se ocultarem diante da sua face.
9. Em seguida o Senhor Deus chamou Adão, e lhe disse: Onde você está? - 10.
Adão lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu,
eis por que me escondi. - 11. O Senhor lhe retrucou: E como soube que estava
nu, senão por ter comido do fruto da árvore da qual eu os proibi de comer? -
12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deu por companheira me
apresentou o fruto dessa árvore, e eu comi dele. - 13. O Senhor Deus disse à
mulher: Por que você fez isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu
comi desse fruto.
14. Então o Senhor Deus disse à serpente: Por ter feito isso, você será maldita
entre todos os animais e todas as bestas da terra; rastejará sobre o ventre e
comerá terra por todos os dias de tua vida. - 15. Colocarei uma inimizade
entre ti e a mulher, entre a raça dela e a tua. Ela te esmagará a cabeça e você
tentará mordê-la no calcanhar.
16. Deus disse assim à mulher: Eu te afligirei com muitos males durante tua
gravidez; você parirá com dor; ficará sob a dominação de teu marido, e ele te
dominará.
17. Em seguida, disse a Adão: Por ter escutado a voz de tua mulher e ter
comido do fruto da árvore de que eu proibi que vocês comessem, a terra será
maldita por causa do que vocês fizeram e não tirarão dela com o que se
alimentar durante toda a vida senão com trabalho. - 18. Ela lhes produzirá
espinhos e sarças e vocês se alimentarão da erva da terra. - 19. E comerão seu
pão com o suor do seu rosto até que voltem à terra de onde foram tirados,
pois vocês são pó e ao pó voltarão.
232 – Allan Kardec
20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela
era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e para sua mulher roupas de peles
com que os cobriu. - 22. E ele disse: Eis aí Adão feito um de nós, conhecendo o
bem e o mal. Pois então, agora vamos impedir que ele estenda a sua mão à
árvore da vida, que também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto,
ele viva eternamente. (Ele, Jeová Eloim, disse: Eis aí, o homem foi como um de
nós para o conhecimento do bem e do mal; e agora ele pode estender a mão e
tomar da árvore da vida [veata pen ischlach yado velakach mehetz hachayim];
ele comerá dela e viverá eternamente).
23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias a fim de que fosse trabalhar
no cultivo da terra de onde ele havia sido tirado. - 24. E, tendo-o expulsado,
colocou querubins129 diante do jardim de delícias, os quais faziam brilhar
uma espada de fogo, para guardar o caminho que conduzia à árvore da vida.
15. Sob uma imagem infantil e às vezes ridícula — se nos prendermos à forma
— a alegoria frequentemente oculta as maiores verdades. À primeira vista,
haverá fábula mais absurda do que aquela de Saturno, um deus devorando
pedras que ele toma como seus filhos? Mas, ao mesmo tempo, o que há de
mais profundamente filosófico e verdadeiro do que essa figura, quando
procuramos nela o sentido moral! Saturno é a personificação do tempo; sendo
todas as coisas obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe, mas tudo
também se destrói com o tempo. Saturno devorando pedras é o símbolo da
destruição pelo tempo dos corpos mais duros, que são seus filhos, pois eles
são formados com o tempo. E, segundo essa mesma alegoria, quem escapa
dessa destruição? Júpiter, o símbolo da inteligência superior, do princípio
espiritual que é indestrutível. Essa imagem é mesmo tão natural que, na
linguagem moderna, sem alusão à Fábula antiga, assim se diz de uma
deteriorada a longo prazo, que ela é devorada pelo tempo, gasta, devastada
pelo tempo.
Na realidade, toda a mitologia pagã não é mais do que um vasto quadro
alegórico das diversas faces — boas e más — da humanidade. Para quem
129 Do hebreu cherub, keroub, boi; e, charab, lavrar. Anjos do segundo coro da primeira
hierarquia, que são representados com quatro asas, quatro faces e pés de boi.
233 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
16. Ocorre o mesmo com a Gênesis, na qual precisamos ver grandes verdades
morais debaixo das figuras materiais que, presas à letra, seriam tão absurdas
como se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e os
diálogos atribuídos aos animais.
Adão é a personificação da humanidade; sua falta individualiza a
fraqueza do homem, em quem predominam os instintos materiais aos quais
não sabe resistir.130
A árvore, como árvore de vida, é o símbolo da vida espiritual; como
árvore da ciência é a da consciência do bem e do mal que o homem adquire
pelo desenvolvimento da sua inteligência e do seu livre-arbítrio em virtude do
qual ele escolhe entre um e outro; assinala o ponto em que a alma do homem
— deixando de ser guiada unicamente pelos seus instintos — toma posse da
sua liberdade e passa a ter responsabilidade pelos seus atos.
O fruto da árvore é o emblema do objeto dos desejos materiais do
homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; ele resume numa única
figura os motivos do arrastamento ao mal; comer esse fruto significa cair na
tentação. Ele cresce no meio do jardim de delícias para mostrar que a sedução
está no próprio seio dos prazeres, e para lembrar que, se o homem dá
preponderância aos gozos materiais, ele se prende à Terra e se afasta do seu
destino espiritual.131
130Hoje está bem reconhecido que a palavra hebraica haadam não é um nome próprio, mas que
significa o homem em geral, a humanidade, que destrói toda a estrutura construída sobre a
personalidade de Adão.
131 Em nenhum texto o fruto está especificado pela maçã; essa palavra só é encontrada nas
versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções que em francês,
sem determinação de espécie, e pode ser tomado em sentido material, moral, alegórico, em
sentido próprio e figurado. Para os israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma
palavra tem muitas acepções, cada um a entende como queira, contanto que a interpretação não
seja contrária à gramática. A palavra peri foi traduzida em latim por malum, que se aplica tanto
à maçã como a qualquer espécie de fruto. Deriva do grego melon, particípio do verbo melo,
interessar, cuidar, atrair.
234 – Allan Kardec
17. A serpente de hoje está longe de passar pelo tipo da astúcia; consta aqui,
portanto, mais por referência à sua forma do que pelo seu caráter, uma alusão
à perfídia dos maus conselhos que se insinuam como a serpente, e da qual,
por essa razão, muitas vezes não se desconfia dela. Além do mais, por haver
enganado a mulher, se a serpente é que foi condenada a rastejar sobre o
ventre, isso poderia dizer que antes ela tinha pernas — e aí neste caso não
seria uma serpente. Por que então se há de impor à fé ingênua e crédula das
crianças, como se fossem verdades, alegorias tão evidentes e que, falseando
seu juízo, mais tarde se faz que elas olhem a Bíblia como um emaranhado de
fábulas absurdas?
Além do mais, é preciso observar que o termo hebreu nâhâsch, traduzido
pela palavra serpente, vem da raiz nâhâsch, que significa: fazer
encantamentos, adivinhar as coisas ocultas, e pode significar: encantador,
adivinho. Nós o encontramos com esta acepção na Gênesis, capítulo 44,
versículos 5 e 15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de
Benjamim: “A taça que vocês roubaram é aquela na qual meu Senhor bebe, e
da qual ele se serve para adivinhar (nâhâsch)132. Ignoram que não há quem
me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?” No livro Números, capítulo 23,
versículo 23: “Não há encantamentos (nâhâsch) em Jacó, nem adivinhos em
israel.” Daí, a palavra nâhâsch tomou também a significação de serpente, réptil
que os encantadores tinham a pretensão de encantar, ou de que eles se
serviam em seus encantamentos.
132 Deste fato se poderá pensar que a mediunidade pelo copo de água seria conhecida dos
egípcios? ( junho de 1868.)
235 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
18. A passagem onde está dito que “O Senhor passeava pelo jardim à tarde,
quando se levanta um vento suave” é uma imagem ingênua e um tanto pueril
133Septuaginta, ou Versão dos Setenta, é a mais antiga versão da Bíblia hebraica traduzida para
o grego coiné entre os séculos III e I a.C. em Alexandria, Egito, a qual serviu de base para outras
diversas traduções. É assim chamada por conta dos relatos (que os estudiosos atuais
consideram fictícios) de que essa versão teria ficado pronto em cerca de setenta dias, graças ao
esforço de cerca de setenta eruditos judeus. — N. T.
134 Francis Hutcheson (1694-1746) foi renomado um teólogo e filósofo finlandês, conhecido
pelas suas teses sobre ética e defesa do progresso comum, rompendo com o puritanismo e
abrindo uma visão religiosa mais liberal e moderna, influenciando outros grandes pensadores,
como o filósofo e economista Adam Smith, que foi seu aluno. — N. T.
135A palavra nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negro, provavelmente
porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da adivinhação. Talvez também por isso é
que as esfinges (de origem assíria) eram representadas por uma figura de negro.
136 Na versão original, esta indicação aponta para o capítulo XII, mas o referido capítulo na
verdade é o XI, da primeira parte, intitulado ‘Da proibição de evocar os mortos’, da obra O Céu e
o Inferno, — N. T.
236 – Allan Kardec
que a crítica não deixou de salientar; mas ela nada tem que deva surpreender
se nos reportamos à ideia que os hebreus dos tempos primitivos faziam da
Divindade. Para aquelas inteligências brutas, incapazes de conceber
abstrações, Deus devia ter uma forma concreta e eles relacionavam tudo com
a humanidade, como único ponto conhecido. Moisés lhes falava então como
que a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso em questão, era a
potência soberana personificada, como os pagãos personificavam, em figuras
alegóricas, as virtudes, os vícios e as ideias abstratas. Mais tarde, os homens
despojaram a ideia da forma, como a criança que se tornou adulta procura o
sentido moral dos contos com os quais foram acalentadas. Deve-se considerar
essa passagem, portanto, como uma alegoria da própria Divindade vigiando
os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue137 a traduziu assim: “Eles
ouviram a voz do Eterno Deus percorrendo o jardim, do lado de onde vem o
dia.”
19. Se o erro de Adão foi literalmente ter comido um fruto, pela sua natureza
quase pueril, esse erro incontestavelmente, não poderia justificar o rigor com
que foi punido. Nem seria racionalmente mais admissível que o fato seja como
geralmente se supõe; doutra forma, considerando esse erro como um crime
irremissível, Deus teria condenado sua própria obra, já que ele teria criado o
homem para a propagação. Se Adão tivesse escutado nesse sentido a
proibição de tocar no fruto da árvore e se o tivesse cumprido rigorosamente,
onde estaria a humanidade e o que teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não havia criado Adão e Eva para ficarem sozinhos na Terra, e a
prova disso está nas próprias palavras que dirige a eles imediatamente após a
sua criação, quando eles ainda estavam no paraíso terrestre: “Deus os
abençoou e lhes disse: Cresçam e se multipliquem, encham a terra e a
submetam a vocês.” (Gênesis, 1:28). Já que a multiplicação do homem era uma
lei desde o paraíso terreno, a expulsão deles não pode ter sido por causa do
fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de vergonha que
137 Lazare Wogue (1817-1897): francês de origem judaica, dito o grande rabino Éléazar. — N. T.
237 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
20. Então, definitivamente, qual é o erro tão grande que mereceu acarretar a
reprovação perpétua de todos os descendentes daquele que o cometeu? Caim,
o fratricida138, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo pode defini-
lo logicamente, porque todos — não saindo da letra — têm girado dentro de
um círculo vicioso.
Hoje sabemos que aquele erro não é um ato isolado e pessoal de um
indivíduo, mas que, sob um fato simbólico único, envolve o conjunto das
irresponsabilidades de que a humanidade da Terra — que ainda é imperfeita
— mal pode ser culpada, e que se resumem nestas palavras: infração da lei
de Deus. Por isso que o erro do primeiro homem — simbolizando a
humanidade — é simbolizado em si mesmo por um ato de desobediência.
21. Ao dizer a Adão que ele tiraria da terra sua alimentação com o suor de seu
rosto, Deus simboliza a obrigação do trabalho; mas por que ele fez do trabalho
uma punição? Que seria da inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse
através do trabalho? Que seria da Terra, se ela não fosse fecundada,
transformada e saneada pelo trabalho inteligente do homem?
Lá está dito (Gênesis, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda não havia feito
chover sobre a terra, e não havia nela homens que a cultivassem. Então o
Senhor formou o homem do barro da terra”. Essas palavras, relacionadas com
estas: Encham a terra, provam que o homem, desde a sua origem, estava
destinado a ocupar toda a Terra e a cultivá-la; além do demais, que o paraíso
não era um lugar circunscrito a um canto do globo. Se a cultura da terra
devesse ser uma consequência do erro de Adão, ocorreria que, se Adão não
tivesse pecado, a Terra não teria sido cultivada e os desígnios de Deus não
teriam sido cumpridos.
138 Fratricida: aquele que mata o seu irmão ou sua irmã (Caim é assim intitulado por ter
assassinado seu irmão Abel) – N. T.
238 – Allan Kardec
Por que ele disse à mulher que, por ela ter cometido tal erro, ela iria
parir com dor? Como a dor do parto pode ser um castigo, se é um efeito do
organismo, e que já está provado fisiologicamente que é uma necessidade?
Como uma coisa que se produz segundo as leis da natureza pode ser punição?
É o que os teólogos ainda não explicaram e que não poderão explicar
enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se colocaram; todavia,
essas palavras — que parecem tão contraditórias — podem ser justificadas.
tornou a ver seu pai e sua mãe, que de novo ficaram a sós; foi somente muito
tempo depois, na idade de cento e trinta anos, que Adão teve um terceiro
filho, chamado Set. Após o nascimento de Set — segundo a genealogia bíblica
— ele ainda viveu oitocentos anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando Caim foi se estabelecer ao oriente do Éden, não havia na Terra
mais que três pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho no seu canto.
Entretanto, Caim teve mulher e um filho; que mulher poderia ser essa e onde
ele pôde desposá-la? O texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade;
e não ele construiu uma cidade, o que indica uma ação presente e não
anterior; porém, uma cidade pressupõe habitantes, pois não é de se presumir
que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que ele pudesse tê-la
construído sozinho.
Portanto, devemos inferir desse referido relato que a região era
povoada; ora, não podia ser pelos descendentes de Adão, pois não havia
ninguém além de Caim.
A presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de
Caim: “Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre me matará”,
e da resposta que Deus lhe deu. De quem ele poderia temer ser morto e que
utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo, se ele não iria
encontrar ninguém? Ora, se havia na Terra outros homens fora a família de
Adão, então é que eles já estavam ali antes dele; daí vem esta consequência,
tirada do mesmo texto da Gênesis: Adão não é nem o primeiro nem o único
pai do gênero humano (Cap. XI, item 34).139
139Essa ideia não é nova. La Peyrère, sábio teólogo do século XVII, em seu livro
escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia — adulterado pelas
traduções — a prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão. Essa opinião
é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.
241 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
OS MILAGRES
SEGUNDO O ESPIRITISMO
243 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XIII
2. A ciência faz milagres todos os dias aos olhos dos ignorantes. Se um homem
realmente morto for chamado à vida por uma intervenção divina, isso seria
um verdadeiro milagre, por ser um fato contrário às leis da natureza. Mas se
esse homem não tivesse mais do que as aparências da morte, se ainda tivesse
nele um resto de vitalidade latente, e que a ciência ou uma ação magnética
conseguisse reanimá-lo, para as pessoas esclarecidas isso seria um fenômeno
natural, embora aos olhos de uma pessoa ignorante o fato passaria por
miraculoso. Que no meio de certos campos um físico lance uma pipa elétrica e
faça cair o raio sobre uma árvore, esse novo Prometeu140 certamente será
considerado como alguém dotado de um poder diabólico; no entanto,
admitindo o fato de Josué141 parar o movimento do Sol — ou, antes, da Terra
—, aí teríamos o verdadeiro milagre, porque não existe nenhum
magnetizador dotado de tão grande poder para operar tal prodígio.
Os séculos de ignorância foram férteis de milagres, porque tudo aquilo
que não tinha uma causa conhecida se passava por sobrenatural. À medida
que a ciência revelou novas leis, o círculo do maravilhoso foi restringido; mas
como a ciência ainda não tinha explorado todo o campo da natureza, uma
larga parte dele ainda ficara reservada ao maravilhoso.
140 Prometeu: na mitologia grega, era um dos titãs (raça de gigantes que convivia com os
deuses) e quem roubou o fogo do Olimpo para levá-lo aos homens; aqui é colocado como
alegoria de alguém que realiza uma grande façanha. – N. T.
141 Josué: foi o sucessor de Moisés na condução do povo de Israel fugindo da escravidão no
Egito. Entre os principais feitos, segundo a tradição bíblica, em uma determinada batalha, ele
contou com a intervenção divina para parar o Sol e a Lua a fim de prolongar o período diurno
(pois, supunha-se que se aquela batalha perdurasse noite adentro, os guerreiros de Israel
tombariam, pois desconheciam a região e estavam em número bem inferior aos inimigos
cananeus) – N. T.
245 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
4. Por sua vez, o Espiritismo então vem fazer o que cada ciência fez no seu
começo: revelar novas leis e consequentemente explicar os fenômenos que
ressaltam dessas leis.
É verdade que esses fenômenos estão ligados à existência dos Espíritos e
à intervenção deles no mundo material; ora, é aqui que dizem que está o
sobrenatural. Mas aí seria preciso provar que os Espíritos e suas
manifestações são contrários às leis da Natureza; que isso não é e nem pode
ser uma dessas leis.
O Espírito não é mais do que a alma que sobrevive ao corpo; é o ser
principal porque não morre, ao passo que o corpo é um simples acessório que
se destrói. Sua existência é, pois, tão natural depois quanto durante a
encarnação; ela está submetida às leis que regem o princípio espiritual como
o corpo está submetido às que regem o princípio material; mas como estes
dois princípios têm uma afinidade necessária, como reagem incessantemente
um sobre o outro, que da ação simultânea deles resultam o movimento e a
harmonia do conjunto, segue-se que a espiritualidade e a materialidade são
duas partes de um mesmo todo, tão natural uma quanto à outra, e que a
primeira não é uma exceção ou uma anomalia na ordem das coisas.
porque então só o diabo seria capaz de andar tão depressa; hoje, no entanto,
não só reconhecemos como possível o fato, como ele parece totalmente
natural. Por que então um fluido desconhecido não teria em certas
circunstâncias a propriedade de contrabalançar o efeito da gravidade, como o
hidrogênio contrabalança o peso do balão? Com efeito, isso é o que acontece
no caso de que tratamos. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. IV).
dos atributos da alma, assim como das leis que regem o princípio espiritual.
tenha criado e que o fanatismo os tenha exagerado muitíssimo? Ele não é mais
solidário com as extravagâncias que se cometam em seu nome do que a
verdadeira ciência o é quanto aos abusos da ignorância, nem a verdadeira
religião com os excessos do fanatismo. Muitos críticos julgam o Espiritismo
apenas pelos contos de fadas e das lendas populares, que são suas ficções;
seria equivalente a julgar a História pelos romances históricos ou pelos
dramas literários.
145 O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. V; Revista Espírita de dezembro de 1865, exemplos:
['Como o Espiritismo vem sem ser procurado']; e Revista Espírita de agosto de 1865 ['Abade
Dégenettes, médium'] – N. K.
146 Taumaturgo: milagreiro, adivinho e vidente – N. T.
250 – Allan Kardec
15. Quanto aos milagres propriamente ditos, nada sendo impossível a Deus,
ele sem dúvidas pode fazê-los; mas será que ele faz? Ou, em outros termos: ele
derroga aquelas leis que ele estabeleceu? Não cabe ao homem prejulgar os
atos da Divindade nem de os subordinar à fraqueza do seu entendimento;
entretanto, diante das coisas divinas, nós temos como critério para o nosso
julgamento os próprios atributos de Deus. Ao soberano poder ele reúne a
soberana sabedoria, donde se deve concluir que não faz nada de inútil.
Por que então ele faria milagres? Para atestar o seu poder — dizem; mas
o poder de Deus não se manifesta de uma maneira muito mais imponente
pelo grandioso conjunto das obras da criação, pela sábia previdência que
preside — desde as partes mais ínfimas quanto as mais gigantescas — e pela
harmonia das leis que regem o Universo, do que por algumas pequenas e
infantis derrogações que todos os ilusionistas sabem imitar? Que se diria de
um sábio mecânico que, para provar a sua habilidade, desmantelasse um
relógio construído pelas suas mãos, obra-prima de ciência, a fim de mostrar
que pode desmanchar o que havia feito? Seu saber, ao contrário, não ressalta
muito mais da regularidade e da precisão do movimento?
A questão dos milagres propriamente ditos não é, portanto, da alçada do
Espiritismo; contudo, apoiando-se sobre esse raciocínio: que Deus não faz
nada de inútil, o Espiritismo emite a seguinte opinião: como os milagres não
são necessários para a glorificação de Deus, nada no Universo se desvia
das leis gerais. Deus não faz milagres, pois suas leis são perfeitas e ele não
tem necessidade de derrogá-las. Se há fatos que não compreendemos, é que
ainda nos faltam os conhecimentos necessários.
252 – Allan Kardec
16. Admitido que Deus — por razões que nós não podemos entender — tenha
podido revogar acidentalmente aquelas leis que ele havia estabelecido, tais
leis já não seriam mais imutáveis; mas pelo menos seria racional pensarmos
que somente ele tem esse poder; sem negar a sua onipotência, não seria
admissível que fosse dado ao Espírito do mal desfazer a obra de Deus
produzindo seus próprios prodígios para seduzir até os eleitos, pois isso
implicaria a ideia de um poder igual ao de Deus; no entanto, é o que ensinam.
Se Satanás tem o poder de interromper o curso das leis naturais — que são a
obra divina — sem a permissão de Deus, então ele é mais poderoso do que
Deus: logo, Deus não teria a onipotência; se Deus delegasse esse poder a
Satanás, como alguns pretendem, para induzir mais facilmente os homens ao
mal, Deus não teria a soberana bondade. Em ambos os casos, isso é a negação
de um dos atributos sem os quais Deus não seria Deus.
Até a Igreja distingue os bons milagres que vêm de Deus dos maus
milagres que vêm de Satanás; mas como fazer a diferença entre eles? Que um
milagre seja satânico ou divino, isso não seria menos uma revogação das leis
que emanam unicamente de Deus; se um indivíduo é curado supostamente
por um milagre — que esse milagre seja operado por Deus ou por Satanás —
ele não estará por isso menos curado. É preciso fazer uma ideia muito pobre
da inteligência humana para esperar que semelhantes doutrinas possam ser
aceitas nos dias de hoje.
Reconhecida a possibilidade de certos fatos reputados milagrosos, é
preciso concluir que, seja qual for a fonte atribuída a esses milagres, são
efeitos naturais de que Espíritos ou encarnados podem usar, como em tudo,
como da sua própria inteligência e dos seus conhecimentos científicos, para o
bem ou para o mal, conforme a sua bondade ou a sua perversidade. Valendo-
se do seu saber, um ser perverso pode assim fazer coisas que passem por
prodígios aos olhos dos ignorantes; mas quando tais efeitos resultam um bem
qualquer, seria ilógico atribuir a eles uma origem diabólica.
17. Mas, dizem que a religião se apoia em fatos que não são nem explicados e
nem explicáveis. Inexplicados, talvez; explicáveis, é outra questão. O que
sabemos das descobertas e dos conhecimentos que o porvir nos reserva? Sem
253 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
O SOBRENATURAL E AS RELIGIÕES
CAPÍTULO XIV
Os Fluidos
I. NATUREZA E PROPRIEDADE DOS FLUIDOS
Elementos fluídicos – Formação e propriedades do perispírito
– Ação dos Espíritos sobre os fluidos; Criações fluídicas;
Fotografia do pensamento – Qualidade dos fluidos
Elementos fluídicos
oferecem à luz.152
Tendo por elemento básico o fluido cósmico etéreo, a matéria tangível
ao se desagregar deve poder voltar ao estado de eterização, como o
diamante — o mais duro dos corpos — pode se vaporizar em gás impalpável.
A solidificação da matéria na realidade não é mais do que um estado
transitório do fluido universal, que pode retornar ao seu estado original
quando as condições de coesão deixam de existir.
Quem sabe até se no estado de tangibilidade a matéria não é suscetível
de adquirir um tipo de eterização que lhe dê propriedades particulares?
Certos fenômenos que parecem autênticos tenderiam a fazer supor isso. Nós
não conhecemos mais do que as beiradas do mundo invisível, e sem dúvida o
futuro nos reserva o conhecimento de novas leis que nos permitirão
compreender o que hoje ainda é um mistério para nós.
152Allan Kardec propõe aqui, de forma inovadora, o que a ciência logo mais confirmaria de
forma categórica: que o átomo não é uma partícula sólida e indivisível como então se pensava,
mas uma unidade composta por elementos subatômicos: elétrons, prótons, nêutrons. — N. T.
261 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
153Exemplos de Espíritos que ainda se julgam deste mundo: Revista Espírita, dezembro de
1859 ["Um Espírito que não acredita estar morto"]; novembro de 1864 ["Sobre Espíritos que
ainda se julgam vivos"]; e abril de 1865 ["Pierre Legay, dito Grand-Pierrot"].
262 – Allan Kardec
10. A camada de fluidos espirituais que envolvem a Terra pode ser comparada
às camadas inferiores da atmosfera, mais pesadas, mais compactas e menos
puras do que as camadas superiores. Esses fluidos não são homogêneos; são
uma mistura de moléculas de diversas qualidades, entre as quais
necessariamente se encontram as moléculas elementares que formam a sua
base, porém mais ou menos alteradas. Os efeitos produzidos por esses fluidos
estarão na razão da soma das partes puras que eles trazem. Assim é, por
comparação, o álcool retificado ou misturado em diferentes proporções com
água ou outras substâncias: seu peso específico aumenta por efeito dessa
mistura, ao mesmo tempo em que diminuem a sua força e a sua capacidade de
se inflamar, embora no todo haja álcool puro.
Os Espíritos chamados a viver nesse ambiente tiram daí seu perispírito;
mas, conforme o Espírito tenha mais ou menos se purificado, seu
perispírito se forma das partes mais puras ou das mais grosseiras do
fluido apropriado ao mundo onde ele se encarna. O Espírito produz aí —
sempre por comparação e não por assimilação — o efeito de um reativo
químico que atrai para ele as moléculas assimiladas à sua natureza.
Resulta disso este fato capital que a composição íntima do perispírito
não é idêntica em todos os Espíritos encarnados ou desencarnados que
povoam a Terra ou o espaço que a envolve. Não é o mesmo que se dá com o
corpo carnal, que, como foi demonstrado, é formado dos mesmos elementos
— qualquer que seja a superioridade ou a inferioridade do Espírito. Além
disso, em todos, os efeitos produzidos pelo corpo são os mesmos, bem como
as necessidades, ao passo que eles diferem em tudo o que diz respeito ao
perispírito.
Daí ainda decorre que: o envoltório perispiritual do mesmo Espírito se
modificar com o progresso moral daquele Espírito a cada encarnação,
embora ele encarne no mesmo meio; que os Espíritos superiores,
encarnando excepcionalmente em missão num mundo inferior, têm um
perispírito menos grosseiro do que o dos nativos desse mundo.
263 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
11. O meio ambiente está sempre em relação com a natureza dos seres que
devem viver nele: os peixes estão na água; os seres terrestres estão no ar; os
seres espirituais estão no fluido espiritual ou etéreo, mesmo sobre a terra. O
fluido etéreo está para as necessidades do Espírito o que a atmosfera está
para as necessidades dos encarnados. Ora, do mesmo modo que os peixes
não podem viver no ar; que os animais terrestres não podem viver numa
atmosfera muito rarefeita para seus pulmões, os Espíritos inferiores não
podem suportar o brilho e a impressão dos fluidos mais etéreos. Eles ali não
morreriam, porque o Espírito não morre, mas uma força instintiva os mantém
afastados dali, como nos afastamos de um fogo muito ardente ou de uma luz
muito deslumbrante. Eis aí por que eles não podem sair do meio apropriado à
sua natureza; para mudarem desse ambiente, é preciso que eles mudem antes
sua natureza e que se despojem dos instintos materiais que os retêm nos
meios materiais; numa palavra, que se purifiquem e se transformem
moralmente; Então, gradualmente, identificam-se com um meio mais
depurado, que se torna para eles uma obrigação, uma necessidade, como os
olhos daquele que viveu longo tempo nas trevas insensivelmente se habituam
à luz do dia e à claridade do Sol.
levava a dizer: “Os deuses estão sumindo!”. Mas a fé nas coisas sérias, a fé em
Deus e na imortalidade, essa está sempre vivaz no coração do homem, e por
mais sufocada que tenha sido pelas histórias tolas com que a
sobrecarregaram, ela se reerguerá mais forte desde que se liberte delas, tal
como a planta reprimida se levanta de novo logo que volta a receber o Sol!
Sim, tudo é milagre na natureza, porque tudo é admirável e dá
testemunho da sabedoria divina! Esses milagres são para todo o mundo, para
todos os que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, e não em proveito
apenas de alguns. Não, não há milagres no sentido que se tem dado a essa
palavra, porque tudo decorre das leis eternas da criação e são leis perfeitas.
envoltório perispirítico como num espelho; ele toma nele corpo e aí de certo
modo se fotografa. Que um homem tenha a ideia, por exemplo, de matar a
outro, embora o seu corpo material se conserve impassível, seu corpo fluídico
é posto em ação pelo pensamento, do qual ele reproduz todos os detalhes; ele
executa fluidicamente o gesto, o ato que planejou praticar; o pensamento cria
a imagem da vítima e a cena inteira é pintada, como num quadro, tal qual se
desenrola no seu espírito.
É assim que os mais secretos movimentos da alma repercutem no
envoltório fluídico e que uma alma pode ler em outra alma como num livro,
para ver o que não é perceptível aos olhos do corpo. Todavia, vendo a
intenção, ela pode pressentir a execução do ato que lhe será a consequência,
mas não pode determinar o instante em que ato será se cumprirá, nem lhe
assinalar os detalhes, nem ainda afirmar que ele vá ocorrer, porque
circunstâncias posteriores podem modificar os planos feitos e mudar as
disposições. A alma não pode ver o que ainda não esteja no pensamento; o
que ela vê é a preocupação habitual do indivíduo, seus desejos, seus projetos,
seus desígnios bons ou maus.
17. Seria impossível fazer uma enumeração ou classificação dos bons e dos
maus fluidos, como é impossível especificar suas respectivas qualidades, uma
vez que a diversidade deles é tão grande quanto a dos pensamentos.
Os fluidos não têm qualidades sui generis, mas aquelas que eles
adquirem no meio onde se elaboram; eles se modificam pelos eflúvios desse
meio, como o ar pelas exalações e a água pelos sais das camadas que ela
atravessa. Conforme as circunstâncias essas qualidades — como as da água e
do ar — são temporárias ou permanentes, o que os tornam mais
especialmente apropriados à produção de tais ou tais efeitos determinados.
Os fluidos também não têm denominações especiais; como os odores,
eles são designados pelas suas propriedades, seus efeitos e seu tipo original.
Sob o ponto de vista moral, eles trazem a impressão dos sentimentos de ódio,
de inveja, de ciúme, de orgulho, de egoísmo, de violência, de hipocrisia, de
bondade, de benevolência, de amor, de caridade, de doçura etc. Sob o aspecto
físico, eles são excitantes, calmantes, penetrantes, constringentes, irritantes,
dulcificantes, soporíficos, narcóticos, tóxicos, reparadores, expulsivos;
tornam-se força de transmissão, de propulsão etc. O quadro dos fluidos seria,
pois, o de todas as paixões, das virtudes e dos vícios da humanidade, e das
propriedades da matéria correspondentes aos efeitos que eles produzem.
não.
Tal é a causa do sentimento de satisfação que experimentamos numa
reunião simpática e animada de pensamentos bons e benévolos; aí ela reina
como uma atmosfera moral salutar, onde respiramos confortavelmente;
saímos daí reconfortado, porque ficamos impregnados de eflúvios fluídicos
salutares; porém, se alguns pensamentos ruins se misturam, eles causam o
efeito de uma corrente de ar glacial em um ambiente morno ou de uma nota
errada num concerto. Desse modo também se explica a ansiedade e o mal-
estar indefinido que sentimos num meio antipático, onde pensamentos
malévolos provocam correntes de ar nauseante.
20. O pensamento produz então uma espécie de efeito físico que reage sobre o
moral; só o Espiritismo poderia tornar isso compreensível. O homem sente
isso instintivamente quando procura as reuniões harmônicas e simpáticas,
onde ele sabe que pode haurir novas forças morais; poderíamos dizer que ali
ele recupera as perdas fluídicas que sofre todos os dias pela irradiação do
pensamento, bem como pelos alimentos ele recupera as perdas do corpo
material. É que, na realidade, o pensamento é uma emissão que ocasiona
perda concreta de fluidos espirituais e, conseguintemente, de fluidos
materiais, de maneira tal que o homem precisa se reconfortar através dos
eflúvios que recebe do exterior.
Quando dizemos que um médico cura seu paciente com boas palavras,
estamos com a absoluta verdade, pois o pensamento bondoso traz consigo
fluidos reparadores que agem sobre o físico tanto quanto sobre o moral.
21. Irão dizer: sem dúvidas é possível evitar os homens que sabemos serem
mal-intencionados, mas como escapar da influência dos maus Espíritos que
povoam em torno de nós e se metem por toda parte sem serem vistos?
O meio é muito simples, porque depende da própria vontade do homem,
que traz consigo a prevenção necessária. Os fluidos se unem em razão da
semelhança de sua natureza; os fluidos dissemelhantes se repulsam; há
incompatibilidade entre os bons e os maus fluidos, como há entre o óleo e a
água.
270 – Allan Kardec
23. Ainda que durante a vida o Espírito se encontre preso ao corpo pelo
perispírito, ele não está tão escravizado nele que não possa alongar sua cadeia
e se transportar para distante — seja na Terra, seja em qualquer ponto no
espaço. O Espírito só tem o que lamentar por estar ligado ao corpo, porque a
sua vida normal é a de liberdade, enquanto a vida corporal é a do servo preso
ao cativeiro.
O Espírito então se sente feliz em deixar o corpo, como o pássaro deixa
sua gaiola; ele aproveita todas as ocasiões para escapar do corpo e por isso
saboreia todos os instantes em que a sua presença não é necessária à vida de
relação. Esse é o fenômeno designado pelo nome de emancipação da alma;
ele sempre se produz durante o sono; todas as vezes que o corpo repousa e
que os sentidos ficam inativos, o Espírito se desprende (O Livro dos Espíritos,
parte 2ª, cap. VIII).
Nesses momentos, o Espírito vive da vida espiritual, enquanto o corpo
vive apenas da vida vegetativa; ele fica parcialmente no estado em que se
achará após a morte: percorre o espaço, conversa com seus amigos e com
outros Espíritos livres ou encarnados como ele.
O laço fluídico que o prende ao corpo só se rompe definitivamente com a
morte; a separação completa somente se dá pela extinção absoluta da
atividade do princípio vital. Enquanto o corpo vive, o Espírito — a qualquer
distância que esteja — é instantaneamente chamado ao corpo, desde que sua
presença seja necessária; então ele retoma o curso da vida exterior de relação.
Por vezes, ao despertar, ele conserva uma lembrança dessas peregrinações,
uma imagem mais ou menos exata, que constitui o sonho; em todos os casos,
ele traz delas intuições que lhe sugerem ideias e pensamentos novos e
justificam o provérbio: A noite é boa conselheira.
Assim igualmente se explicam certos fenômenos característicos do
sonambulismo natural e magnético, da catalepsia, da letargia, do êxtase etc., e
que não são mais do que manifestações da vida espiritual.157
24. Como a visão espiritual não se efetua pelos olhos do corpo, é certo que a
percepção das coisas não se opera pela luz comum: com efeito, a luz material
é feita para o mundo material; para o mundo espiritual, existe uma luz
especial cuja natureza para nós é desconhecida, mas que sem dúvida é uma
das propriedades do fluido etéreo adequada às percepções visuais da alma.
Portanto, há a luz material e a luz espiritual. A primeira tem focos
circunscritos nos corpos luminosos; a segunda tem o seu foco em toda parte:
essa é a razão pela qual não há obstáculo para a visão espiritual; ela não é
embaraçada nem pela distância e nem pela opacidade da matéria; a
obscuridade não existe para ela. O mundo espiritual é então iluminado pela
luz espiritual, que tem seus efeitos próprios, como o mundo material é
157Exemplos de letargia e de catalepsia: Revista Espírita, “Senhora Schwabenhaus”, setembro
de 1858; “A jovem cataléptica da Suábia”, janeiro de 1866.
273 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
25. A alma, envolta no seu perispírito, traz assim consigo seu princípio
luminoso; penetrando a matéria em virtude da sua essência etérea, não há
corpos opacos para a sua visão.
Não obstante, a vista espiritual não tem nem em extensão e nem em
penetração em todos os Espíritos; somente os Espíritos puros a possuem em
toda a sua potência; nos Espíritos inferiores ela é enfraquecida pela grosseria
relativa do perispírito, que se interpõe com uma espécie de nevoeiro.
Nos Espíritos encarnados, ela se manifesta em diferentes graus pelo
fenômeno da segunda vista — tanto no sonambulismo natural ou magnético,
quanto no estado de vigília. Conforme o grau de poder da faculdade, dizemos
que a lucidez é maior ou menor. É com o auxílio dessa aptidão que certas
pessoas veem o interior do organismo humano e descrevem a causa das
enfermidades.
26. A vista espiritual permite enfim percepções especiais que, não estando
sujeitas aos órgãos materiais, se operam nas condições muito diversas da
visão corporal. Por essa razão, não podemos esperar dela efeitos idênticos e
experimentá-la pelos mesmos procedimentos. Efetuando-se fora do
organismo ela tem uma mobilidade que frustra todas as previsões. É preciso
estudá-la nos seus efeitos e nas suas causas, e não por comparação com a
vista comum, à qual ela não está destinada a suprir, salvo em casos
excepcionais e que não poderíamos tomar por regra.
158 Mesmo na nossa dimensão física existem frequências de luz fora do alcance visual do olho
humano, mas visíveis através de determinados aparelhos (por exemplo: raios gamas, raios x
etc.). — N. T.
274 – Allan Kardec
Catalepsia – Reencarnações
162 Revista Espírita, junho de 1866; setembro de 1866; O Livro dos Espíritos, questão 400.
276 – Allan Kardec
30. Em certos estados patológicos, desde quando o Espírito não está mais no
corpo, e que o perispírito só se acha ligado a ele por alguns pontos, o corpo
tem todas as aparências da morte, e se enuncia como uma verdade absoluta
dizendo que a vida aí está por um fio. Esse estado pode durar um tempo mais
ou menos longo; certas partes do corpo podem até entrar em decomposição,
sem que a vida seja definitivamente extinta. Até que o último fio não esteja
rompido, o Espírito pode ser chamado a volver ao corpo — quer seja por uma
ação enérgica da sua própria vontade, quer seja por um influxo fluídico
estranho, igualmente forte. É como se explicam certos prolongamentos da
vida contra todas as probabilidades, e algumas supostas ressurreições. É a
planta que às vezes renascer apenas de um funcho de raiz; mas quando as
derradeiras moléculas do corpo fluídico se desprendem do corpo carnal, ou
quando este último chega a um estado irreparável de degradação, todo
regresso à vida se torna impossível.163
Curas
164 Exemplos; Revista Espírita, fevereiro de 1863: ‘Cura por um Espírito’; abril de 1865: ‘Poder
curativo do magnetismo espiritual - Espírito Doutor Demeure’; setembro de 1865: ‘Cura de uma
fratura pela magnetização espiritual’.
278 – Allan Kardec
34. A capacidade de curar pela influência fluídica é muito comum e pode ser
desenvolvido pelo exercício; entretanto, aquele de curar instantaneamente
pela imposição das mãos é mais rara, e o seu grau máximo pode ser
considerado como excepcional. No entanto, em diversas épocas e no meio de
quase todos os povos, temos visto indivíduos que a possuíam em grau
eminente. Nestes últimos tempos, vemos muitos exemplos notáveis, cuja
autenticidade não pode ser contestada. Uma vez que as curas desse gênero
pertencem a um princípio natural e que o poder de operá-las não é um
privilégio, o que se segue é que elas não saem da Natureza e que só são
miraculosas na aparência.165
Aparições – Transfigurações
35. O perispírito no seu estado normal é invisível para nós; mas como ele é
formado de matéria etérea, em certos casos o Espírito pode — por ato da sua
vontade — fazê-lo passar por uma modificação molecular que o torne
momentaneamente visível. É assim que são produzidas as aparições, que,
mais do que os outros fenômenos, não estão fora das leis da Natureza. Este
fenômeno não tem nada de mais extraordinário do que o do vapor, que é
invisível quando muito rarefeito, mas que se torna visível quando está
condensado.
Dependendo do grau de condensação do fluido perispiritual, a aparição é
às vezes vaga e vaporosa; de outras vezes, é mais nitidamente definida; mas
enfim, algumas vezes ela tem todas as aparências da matéria tangível; pode
até chegar até à tangibilidade real, ao ponto de alguém se enganar com
41. É com a ajuda do seu perispírito que o Espírito atuava sobre o seu corpo
vivo; é ainda com esse mesmo fluido que ele se manifesta agindo sobre a
matéria inerte e que produz os ruídos, os movimentos de mesa e de outros
objetos que ele levanta, derruba ou transporta. Esse fenômeno não tem nada
de surpreendente se considerarmos que entre nós os mais possantes motores
se encontram nos fluidos mais rarefeitos e até imponderáveis, como o ar, o
vapor e a eletricidade.
É igualmente com a ajuda do seu perispírito que o Espírito faz os
médiuns escrever, falar e desenhar; não tendo mais corpo físico para agir
ostensivamente quando quer se manifestar, ele se serve do corpo do médium,
de quem toma emprestado os órgãos, que faz agir como se fosse o seu próprio
corpo, mediante a emissão fluídica que despeja sobre ele.
42. Por esse mesmo processo é que o Espírito age sobre a mesa, seja para
fazê-la se mover sem significação determinada, seja para que dê pancadas
inteligentes indicando letras do alfabeto, para formar palavras e frases —
fenômeno esse denominado tiptologia. Aqui a mesa não é mais do que um
instrumento de que o Espírito se serve, como ele utiliza o lápis para escrever;
ele lhe dá uma vitalidade momentânea por meio do fluido que o penetra, mas
não se identifica com o lápis. As pessoas que — na sua emoção, ao verem um
ente querido se manifestar — abraçam a mesa, praticam um ato ridículo, pois
é exatamente como se abraçassem a bengala de que um amigo se sirva para
bater no chão. O mesmo fazem aqueles que dirigem a palavra à mesa, como se
o Espírito estivesse confinado na madeira, ou como se a madeira tivesse se
tornado Espírito.
Quando as comunicações são transmitidas por esse meio, devemos
imaginar o Espírito, não na mesa, mas ao lado, tal qual ele estaria se
estivesse vivo e tal como seria visto, se nesse momento ele pudesse se tornar
visível. A mesma coisa acontece nas comunicações pela escrita: veríamos o
Espírito ao lado do médium, dirigindo-lhe a mão ou lhe transmitindo seu
pensamento por uma corrente fluídica.
43. Quando a mesa se destaca do solo e flutua no espaço sem ponto de apoio,
283 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
173Esse é o princípio dos fenômenos de transporte, fenômeno muito real, mas que convém não
ser aceito senão com extrema reserva, pois é um dos que mais usados na imitação e na
enganação. A honradez inquestionável da pessoa que os obtém, seu absoluto desinteresse
material e moral, e o auxílio das circunstâncias acessórias devem levados em séria
consideração. Sobretudo é importante desconfiar da excessiva facilidade com que tais efeitos
são produzidos, e tomar como suspeitos os que se renovem com grande frequência e, por assim
dizer, à vontade. Os ilusionistas fazem coisas mais extraordinárias.
A levitação de uma pessoa é um fato não menos real; mas talvez muito mais raro, porque
é mais difícil de ser imitado. É notório que o Sr. Daniel Dunglas Home [célebre médium escocês
contemporâneo de Allan Kardec] se elevou mais de uma vez até ao teto, dando voltas na sala.
Dizem que São Cupertino tinha essa mesma aptidão, não sendo este mais miraculoso do que o
outro.
174Exemplos de manifestações materiais e de perturbações operadas pelos Espíritos: Revista
Espírita, “A jovem filha dos Panoramas”, janeiro de 1858; “Senhorita Clairon”, fevereiro de
1858; “Espírito batedor de Bergzabern” (narração completa), maio, junho e julho de 1858;
“Dibbelsdorf”, agosto de 1858; “Padeiro de Dieppe”, março de 1860; “Fabricante de S.
Petersburgo”, abril de 1860; “Rua das Nogueiras”, agosto de 1860; “Espírito batedor do Aube”,
284 – Allan Kardec
janeiro de 1861; “Flagelo do século dezesseis”, janeiro de 1864; “Poitiers”, maio de 1864 e maio
de 1865; “Irmã Maria”, junho de 1864; “Marselha”, abril de 1865; “Fives”, agosto de 1865; “Os
ratos de Equihem”, fevereiro de 1866.
285 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
Obsessões e possessões
175 A aptidão de certas pessoas para línguas que elas conhecem, por assim dizer, sem as ter
aprendido, não tem outra origem a não ser a lembrança intuitiva do que souberam noutra
existência. O caso do poeta Méry, relatado na Revista Espírita de novembro de 1864: ‘Uma
Lembrança de Existências Passadas’, é uma prova disso. É evidente que se o Sr. Méry tivesse sido
médium na sua mocidade, ele teria escrito em latim tão facilmente como em francês, e todo
mundo teria acreditado ser um prodígio.
286 – Allan Kardec
possessão, porque nesse caso o paciente muitas vezes perde a sua vontade e o
seu livre-arbítrio.
A obsessão é quase sempre uma vingança praticada por um Espírito e
cuja fonte frequentemente vem das relações que o obsidiado manteve com o
obsessor em uma existência anterior.
Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolvido e
impregnado de um fluido pernicioso que neutraliza e repele a ação dos fluidos
saudáveis. É desse fluido pernicioso de que se precisa se desembaraçar; ora,
um fluido mau não pode ser eliminado por outro fluido igualmente mau. Por
uma ação idêntica à do médium curador nos casos de enfermidade, é preciso
expulsar um fluido mau com o auxílio de um fluido melhor.
Essa é a ação magnética, mas que nem sempre basta; é necessário
também — e sobretudo — agir sobre o ser inteligente, ao qual é preciso ter
a prerrogativa de falar com autoridade, e essa autoridade só é dada à
superioridade moral; quanto maior for esta superioridade, tanto maior será a
autoridade.
Mas ainda não é tudo: para assegurar a libertação, é indispensável levar
o Espírito perverso a renunciar aos seus maus costumes; é preciso fazer
brotar nele o arrependimento e o desejo do bem, por auxílio de instruções
habilmente dirigidas, em evocações particularmente feitas com o objetivo de
sua educação moral; pode-se então ter a dupla satisfação de libertar um
encarnado e de converter um Espírito imperfeito.
A tarefa se torna mais fácil quando o obsidiado — compreendendo a sua
situação — dá sua contribuição com a vontade e a prece; isso não acontece
quando o obsidiado, seduzido pelo Espírito que o domina, se ilude com
relação às qualidades do seu dominador e se deleita no erro em que este o
mergulha, porque então, longe de ajudar, ele repele toda a assistência. É o
caso da fascinação, sempre infinitamente mais rebelde do que a mais violenta
subjugação (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII).
Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso auxílio para
agir contra o Espírito obsessor.
que ele identifica com aquele do encarnado; este último fica enlaçado por uma
espécie de teia e constrangido a agir contra a sua vontade.
Na possessão, em vez de agir exteriormente, por assim dizer, o Espírito
livre substitui o Espírito encarnado; toma o seu corpo como domicílio sem
que, no entanto, o encarnado abandone seu corpo definitivamente — o que só
acontece na morte. Portanto, a possessão é sempre temporária e intermitente,
pois um Espírito desencarnado não pode tomar e ocupar definitivamente o
lugar de um Espírito encarnado, visto que a união molecular entre o
perispírito e o corpo não pode se efetivar senão no momento da concepção.
(cap. XI, item 18.)
Na posse momentânea do corpo do encarnado, o Espírito se serve dele
como se fosse o seu: fala pela boca dele, vê pelos seus olhos e age com seus
braços conforme o faria se estivesse vivo. Não é como na mediunidade falante,
em que o Espírito encarnado fala transmitindo o pensamento de um
desencarnado; é este último mesmo quem fala e quem age, e quem o tiver
conhecido em vida reconhecerá nele a sua linguagem, a sua voz, os seus
gestos e até a expressão da fisionomia.
49. A obsessão e a possessão são muitas vezes individuais, mas não raro elas
são epidêmicas. Quando um bando de Espíritos perversos se lança sobre uma
localidade, é como se uma tropa de inimigos a invadisse. Nesse caso, o
número dos indivíduos atacados pode ser considerável.177
CAPÍTULO XV
Os Milagres do Evangelho
SUPERIORIDADE DA NATUREZA DE JESUS – SONHOS
– ESTRELA DOS MAGOS – DUPLA VISTA – CURAS –
POSSESSOS – RESSURREIÇÕES – JESUS CAMINHA SOBRE A ÁGUA
– TRANSFIGURAÇÃO – TEMPESTADE ACALMADA –
BODAS DE CANÁ – MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES
– TENTAÇÃO DE JESUS – PRODÍGIOS NA MORTE DE JESUS –
APARIÇÃO DE JESUS APÓS SUA MORTE
– DESAPARECIMENTO DO CORPO DE JESUS
2. Sem nada prejulgar sobre a natureza do Cristo — cujo exame não entra no
escopo desta obra — considerando-o, por hipótese, apenas um Espírito
superior, não podemos deixar de reconhecer nele um daqueles da ordem mais
elevada e, por suas virtudes, colocado muitíssimo acima da humanidade
terrestre. Pelos imensos resultados que ele produziu, sua encarnação neste
mundo não poderia deixar de ser uma dessas missões que só são confiadas
aos mensageiros diretos da Divindade para o cumprimento de seus desígnios.
Supondo que ele não fosse o próprio Deus, mas um enviado de Deus para
transmitir sua palavra, ele seria mais do que um profeta, pois seria um
Messias divino.
Como homem, ele tinha o organismo dos seres carnais; porém como
Espírito puro, desprendido da matéria, devia viver mais da vida espiritual do
que da vida corporal — da qual ele não tinha as fraquezas. A superioridade
de Jesus em relação aos homens não vinha das qualidades particulares do
seu corpo, mas das qualidades do seu Espírito, que dominava a matéria de
um modo absoluto, e das qualidades do seu perispírito, tirado da parte
mais quintessenciada dos fluidos terrestres (cap. XIV, item 9). Sua alma
devia estar ligada ao corpo apenas pelos laços estritamente indispensáveis;
constantemente desprendida, ela certamente lhe dava uma dupla vista não
apenas permanente, mas de uma penetração excepcional e muito superior
àquela que vemos nos homens comuns. Devia ser o mesmo com todos os
fenômenos que dependem dos fluidos perispirituais ou psíquicos. A qualidade
desses fluidos lhe dava uma imensa força magnética, fortificada pelo
incessante desejo de fazer o bem.
Nas curas que operava, agia ele como médium? Poderíamos considerá-lo
291 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
SONHOS
3. Diz o Evangelho que José foi avisado por um anjo que lhe apareceu em
sonho e lhe disse para fugir para o Egito com o Menino (Mateus, 2:19 a 23).
Advertências por meio de sonhos cumprem um grande papel nos livros
sagrados de todas as religiões. Sem garantir a exatidão de todos os fatos
registrados e sem os discutir, o fenômeno em si mesmo nada tem de anormal
quando sabemos que o período do sono é aquele em que o Espírito —
desprendendo-se dos laços da matéria — penetra momentaneamente na vida
espiritual, onde se encontra com aqueles que ele conheceu. É frequentemente
nessa ocasião que os Espíritos protetores aproveitam para se manifestar aos
seus protegidos e lhes dar conselhos mais diretos. Os exemplos autênticos de
advertência via sonho são numerosos, entretanto não se deve inferir daí que
todos os sonhos sejam avisos, nem muito menos que tudo o que se vê em
sonho tem uma significação. Devemos incluir entre as crenças supersticiosas
e absurdas a arte de interpretar os sonhos. (cap. XIV, itens 27 e 28.)
4. Dizem que uma estrela apareceu aos magos que vieram adorar Jesus e que
ela seguia à frente deles para lhes indicar o caminho, e se deteve quando eles
haviam chegado (Mateus, 2:1 a 12).
292 – Allan Kardec
DUPLA VISTA
Beijo de Judas
6. "Levantem-se, vamos, aquele que há de me trair já está perto daqui!" Ainda não
293 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
tinha acabado de dizer essas palavras e eis que chegou Judas, um dos doze, e com
ele uma tropa de gente armada de espadas e paus, que havia sido enviada pelos
príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. Ora, aquele que o traíra havia
dado um sinal para o reconhecerem, dizendo-lhes: "Aquele a quem eu beijar é
aquele mesmo a quem vocês procuram; apoderem-se dele!" Logo mais, ele
aproximou-se de Jesus e lhe disse: "Mestre, eu te saúdo!"; e o beijou. Jesus lhe
respondeu: "Meu amigo, o que você veio fazer aqui?" E ao mesmo tempo, todos os
outros avançaram e se lançaram a Jesus e dele se apoderaram. (Mateus, 26:46 a
50.)
Pesca milagrosa
8. Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado
Pedro, e André, seu irmão, que lançavam suas redes ao mar, pois eram pescadores;
e disse a eles: "Sigam-me e eu os farei pescadores de homens!" Prontamente eles
deixaram suas redes e o seguiram.
Daí, avançando, ele viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e João,
seu irmão, que estavam numa barca com Zebedeu, pai deles, os quais estavam
remendando suas redes; e ele os chamou. Naquela mesma hora eles deixaram as
suas redes e o seu pai e o seguiram. (Mateus, 4:18 a 22.)
Jesus, saindo dali, ao passar, viu um homem sentado à banca dos impostos,
chamado Mateus, a quem disse: "Segue-me!" E o homem logo se levantou e o
seguiu. (Mateus, 4:9.)
9. Estes fatos não têm nada de surpreendente desde que se conheça o poder
294 – Allan Kardec
da dupla vista e a causa bem natural dessa faculdade. Jesus a possuía no grau
supremo, e podemos dizer que ela era o seu estado normal, conforme atesta
um grande número de atos da sua vida e que explicam hoje os fenômenos
magnéticos e o Espiritismo.
A pesca qualificada de miraculosa igualmente se explica pela dupla vista.
Jesus não produziu espontaneamente peixes onde não havia; ele viu, como
poderia ter visto um lúcido desperto, com a vista da alma, o lugar onde os
peixes se concentravam, e pôde dizer com segurança aos pescadores que
lançassem ali suas redes.
A penetração do pensamento, e, por conseguinte, certas previsões, são o
efeito da vista espiritual. Quando Jesus chama consigo Pedro, André, Tiago,
João e Mateus, é que ele conhecia suas disposições íntimas para saber que eles
o acompanhariam e que eram capazes de desempenhar a missão que devia
lhes confiar. E se fazia necessário que eles próprios tivessem a intuição dessa
missão para se entregarem a ele. O mesmo se deu quando, por ocasião da
Ceia, ele anunciou que um dos doze o trairia e o apontou, dizendo ser aquele
que punha a mão no prato; e o mesmo quando disse que Pedro o renunciaria.
Em muitas passagens do Evangelho é dito: “Porém Jesus, conhecendo os
pensamentos deles, lhes diz...” Pois bem, como Jesus poderia conhecer os
pensamentos deles se não fosse pelas irradiações fluídicas que lhe transmitia
esse pensamento e a vista espiritual que lhe permitia ler no foro íntimo dos
indivíduos?
Tantas vezes quando acreditamos que um pensamento esteja
profundamente escondido nos recônditos da alma, não suspeitamos que
trazemos conosco um espelho que reflete aquele pensamento, um revelador
na sua própria irradiação fluídica que está impregnada dele. Se
enxergássemos o mecanismo do mundo invisível que nos rodeia, as
ramificações dos fios condutores do pensamento que ligam todos os seres
inteligentes — corporais e incorpóreos —, os eflúvios fluídicos carregados
das marcas do mundo moral, os quais, como correntes aéreas, atravessam o
espaço, então ficaríamos muito menos surpresos diante de certos efeitos que
a ignorância atribui ao acaso. (Cap. XIV, itens 15, 22 e seguintes.)
295 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CURAS
Hemorragia
10. Então uma mulher, enferma de uma hemorragia há doze anos — que havia
sofrido bastante nas mãos de vários médicos e que, tendo gastado todos os seus
bens sem ter conseguido nenhum alívio, mas sempre piorando — tendo ouvido
falar de Jesus, veio com a multidão atrás dele e tocou a roupa dele, pois ela dizia:
"Se eu conseguir ao menos tocar sua roupa, eu ficarei curada." No mesmo instante,
a fonte da hemorragia cessou, e ela sentiu em seu corpo que estava curada daquela
enfermidade.
No mesmo instante Jesus, conhecendo em si mesmo a virtude que havia
saído dele, voltou-se no meio da multidão e disse: "Quem tocou minhas vestes?"
Seus discípulos lhe disseram: "Vê que a multidão te aperta de todos os lados e
pergunta quem te tocou?" Ele olhava em torno de si para ver aquela que o havia
tocado.
Mas aquela mulher, que sabia o que se passava consigo, tomada de medo e
pavor, lançou-se aos seus pés e lhe declarou toda a verdade. E Jesus disse a ela:
"Minha filha, tua fé te salvou! Vá em paz e fique curada da tua enfermidade."
(Marcos, 5:25 a 34.)
Cego de Betsaida
12. Tendo chegado a Betsaida, trouxeram-lhe um cego e lhe pediam que o tocasse.
E pegando o cego pela mão, ele o levou para fora da aldeia; passou-lhe a
saliva nos olhos e impondo as mãos sobre ele, perguntou se ele via alguma coisa. O
homem, enxergando, lhe disse: "Vejo homens caminhando que se parecem para
mim como árvores." Jesus lhe colocou de novo as mãos sobre os olhos e ele
começou a enxergar melhor; por fim, ficou tão perfeitamente curado que via todas
as coisas distintamente.
Em seguida o mandou de volta para casa, dizendo-lhe: "Vai para tua casa; e se
entrar na aldeia, não diga a ninguém o que aconteceu contigo." (Marcos, 8:22 a 26.)
13. Aqui o efeito magnético está evidente; a cura não foi instantânea, mas
gradual e proporcional a uma ação prolongada e repetida — se bem que mais
rápida do que na magnetização comum. A primeira sensação daquele homem
foi exatamente a que os cegos experimentam ao recobrarem a vista; por um
efeito de ótica, os objetos lhes parecem de tamanho exagerado.
Paralítico
14. Tendo subido numa barca, Jesus atravessou o lago e veio à sua cidade
(Cafarnaum). E como lhe apresentaram um paralítico deitado em uma maca, Jesus,
notando sua fé, disse a ele: "Meu filho, tenha confiança! Teus pecados estão
redimidos!"
Com isso alguns escribas disseram entre si: "Este homem blasfema". Porém
Jesus, tendo percebido o que eles pensavam, lhes perguntou: "Por que vocês
conservam maus pensamentos em seus corações? Pois, o que é mais fácil: dizer
297 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
'Teus pecados estão perdoados’ ou dizer ‘Levanta-te e anda'? Ora, para que saibam
que o Filho do homem tem na Terra o poder de redimir os pecados: ‘Levanta-te! —
disse então ao paralítico — Pegue a tua maca e vai para tua casa!’"
O paralítico levantou-se imediatamente e foi para sua casa. E o povo, vendo
aquele milagre, encheu-se de temor e rendeu graças a Deus por haver concedido tal
poder aos homens. (Mateus, 9:1 a 8.)
15. O que poderia significar essas palavras “Teus pecados estão redimidos” e
em que elas podiam servir para a cura? O Espiritismo lhes dá a explicação,
como a uma infinidade de outras palavras incompreendidas até hoje; ele
ensina que pela lei da pluralidade das existências os males e as aflições da
vida são muitas vezes expiações do passado, e que sofremos na vida presente
as consequências das faltas que cometemos numa existência anterior: as
diversas existências são solidárias umas com as outras, até que tenhamos
quitado a dívida de nossas imperfeições.
Portanto, se a moléstia daquele homem era uma punição pelo mal que
ele tinha cometido, Jesus ao dizer-lhe “Teus pecados estão redimidos” era
como lhe dizer “Você pagou a tua dívida; a causa da tua enfermidade está
cessada pela tua fé presente; conseguintemente, você merece ficar livre da tua
moléstia”. Daí o fato de ele haver dito aos escribas: “É tão fácil dizer ‘Teus
pecados estão perdoados’, quanto ‘Levanta-te e anda.’”; cessada a causa, o
efeito deve cessar. É exatamente o mesmo caso do prisioneiro a quem se vem
dizer: “Teu crime está expiado e perdoado”, o que equivaleria a lhe dizermos
“Pode sair da prisão”.
Os dez leprosos
16. Um dia, indo para Jerusalém, ele passava pelos confins da Samaria e da Galileia,
estando prestes a entrar numa aldeia, dez leprosos vieram ao seu encontro e,
mantendo-se afastados, elevaram suas vozes lhe dizendo: "Jesus, nosso Mestre, tem
piedade de nós!" Logo que os percebeu, disse a eles: "Vão e se apresentem aos
sacerdotes!" E enquanto iam lá, eles ficaram curados.
Um deles, vendo que estava curado, refez seus passos, glorificando a Deus em
voz alta; e vindo se lançar aos pés Jesus, com o rosto em terra, rendendo-lhe
graças; e este era samaritano.
Então Jesus disse: "Todos os dez não ficaram curados? Onde estão, pois, os
298 – Allan Kardec
outros nove? Não se acha nenhum deles que tenha voltado e rendido glória a Deus,
a não ser este estrangeiro." E disse a esse: "Levante-se e vá; tua fé te salvou!"
(Lucas, 17:11 a 19.)
Mão seca
18. Jesus entrou novamente na sinagoga e ali encontrou um homem que tinha uma
das mãos seca. E eles o observavam para ver se ele o curaria num dia de sábado,
para terem um motivo de acusá-lo. Então, ele disse ao homem que tinha uma mão
seca: "Levante-se e se coloque ali no meio!" Depois, disse àqueles: "É permitido em
dia de sábado fazer o bem ou mal, salvar a vida ou tirá-la?" E eles permaneceram
em silêncio. Ele, porém, encarando-os com indignação, afligido que estava com a
dureza dos corações deles, disse ao homem: "Estende a tua mão!" Ele a estendeu e
ela ficou sarada.
Imediatamente os fariseus saíram e tramaram contra ele junto aos
herodianos sobre o meio de prendê-lo. Mas, Jesus se retirou com seus discípulos
para o mar, onde uma grande multidão o seguia da Galileia e da Judeia, de
Jerusalém, da Idumeia e de além do Jordão; e os das cercanias de Tiro e de Sídon,
tendo ouvido falar das coisas que ele fazia, vieram em grande número lhe
178 Cismático: relativo à cisma, discórdia, separação (por exemplo, por questão de crenças). De
fato, entre os judeus e os samaritanos havia uma extrema cisma. — N. T.
179 Ortodoxo: tradicional, rigoroso, intransigente em sua crença. — N. T.
299 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
A mulher curvada
19. Jesus ensinava numa sinagoga todos os dias de sábado. E um dia, ele viu ali uma
mulher possuída de um Espírito que a deixava doente há dezoito anos; e ela era tão
curvada que não podia olhar para cima. Vendo-a, Jesus a chamou e lhe disse:
"Mulher, você está livre da tua enfermidade!" Ao mesmo tempo, ele impôs as mãos
sobre ela; e na mesma hora ficando endireitada, ela rendeu graças a Deus.
Porém, o chefe da sinagoga, indignado por Jesus haver curado num dia de
sábado, disse ao povo: "Há seis dias destinados ao trabalho; venham nesses dias
para serem curados e não nos dias de sábado!"
O Senhor, tomando a palavra, disse-lhe: "Hipócrita, há algum de vocês que
não desamarre da manjedoura seu boi ou seu jumento no dia de sábado e não o
leve para beber água? Por que então não se deveria, num dia de sábado, libertar
dos laços que a prendiam esta filha de Abraão, que Satanás mantinha presa durante
dezoito anos?"
A estas palavras, todos os seus adversários permaneceram confusos e todo o
povo ficou encantado de vê-lo praticar tantas ações gloriosas. (Lucas, 13:10 a 17.)
20. Este fato prova que naquela época a maior parte das enfermidades era
atribuída ao demônio e que, como ainda hoje, todos confundiam os possessos
com os doentes, mas em sentido inverso, isto é, hoje, os que não acreditam
nos maus Espíritos confundem as obsessões com as moléstias patológicas.
Paralítico da piscina
21. Depois disso, tendo chegado a festa dos judeus, Jesus foi a Jerusalém. Ora, havia
em Jerusalém a piscina das ovelhas, que em hebreu se chama Betesaida, a qual
tinha cinco galerias — onde se encontravam deitados um grande número de
doentes, cegos, coxos e os que tinham os membros ressecados, todos à espera de
que a água fosse agitada, pois, em determinada época o anjo do Senhor descia
àquela piscina e agitava sua água; e aquele que primeiro entrasse na piscina depois
que a água fosse agitada ficava curado — qualquer que fosse a doença que ele
tivesse.
Pois bem, havia lá um homem que era doente há trinta e oito anos. Jesus,
tendo-o visto deitado e sabendo que ele era doente desde longo tempo, indagou-
lhe: "Quer ser curado?" O enfermo respondeu: "Senhor, não tenho ninguém que me
lance na piscina depois da água ser agitada, e antes que eu chegue lá, outro desce à
frende de mim." Jesus lhe diz: "Levante-se, toma a tua maca e caminha!" No mesmo
300 – Allan Kardec
instante o homem ficou curado; e pegando a sua maca, pôs-se a andar. Ora, aquele
dia era um sábado.
Então os judeus disseram àquele que havia sido curado: "Hoje é sábado; não
te é permitido carregar tua maca." O homem lhes respondeu: "Aquele que me
curou disse: toma a tua maca e anda!" Indagaram-lhe então: "Quem foi esse homem
que te disse: Toma a tua maca e anda?" Mas nem mesmo o homem que tinha sido
curado sabia quem era aquele, pois Jesus tinha se retirado do meio da multidão que
lá estava.
Depois, Jesus encontrou aquele homem no templo e lhe disse: "Veja que foi
curado; não peque mais no futuro, para que não te aconteça coisa pior!"
Esse homem foi se encontrar com os judeus e lhes disse que foi Jesus quem o
havia curado. E por essa razão os judeus perseguiam Jesus, porque ele fazia aquelas
coisas em um dia de sábado. Então, Jesus lhes disse: "Meu Pai não para de trabalha
até ao presente e eu também trabalho incessantemente." (João, 5:1 a 17).
22. Entre os romanos, piscina (da palavra latina piscis, peixe) significava
reservatórios ou tanques de água onde se criavam peixes. Mais tarde, a
acepção desse termo foi estendida às bacias onde se tomava banho coletivo.
A piscina de Betesaida em Jerusalém era uma cisterna, próxima ao
Templo, alimentada por uma fonte natural, cuja água parece ter tido
propriedades curativas. Sem dúvida, era uma fonte intermitente, que em
certas épocas jorrava com força e agitava a água. Segundo a crença comum,
esse era o momento mais propício às curas; na realidade, no momento de sua
saída, talvez a água tivesse uma propriedade mais ativa, ou que a agitação
produzida pela água jorrante fizesse remoer o lodo salutar contra algumas
moléstias. Esses efeitos são muito naturais e perfeitamente conhecidos hoje;
mas então as ciências estavam pouco adiantadas e todos viam uma causa
sobrenatural na maioria dos fenômenos incompreendidos. Os judeus
atribuíam a agitação daquela água à presença de um anjo, e essa crença lhes
parecia tanto mais fundamentada quanto naquele momento a água era mais
salutar.
Após ter curado aquele homem, Jesus lhe disse “Não peque mais no
futuro, para que não te aconteça coisa pior”. Por essas palavras, deu-lhe a
entender que a sua doença era uma punição, e que, se ele não se melhorasse,
poderia ser punido de novo e ainda mais rigorosamente. Essa doutrina é
inteiramente conforme aquela que o Espiritismo ensina.
301 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
23. Jesus parecia fazer questão de operar suas curas no dia de sábado, para
ter ocasião de protestar contra o rigor dos fariseus no tocante à observação
desse dia.180 Ele queria mostrar a eles que a verdadeira piedade não consiste
na observância das práticas exteriores e das formalidades, mas que a piedade
está nos sentimentos do coração. Ele se justificava declarando: “Meu Pai não
cessa de trabalhar até ao presente e eu também trabalho incessantemente”;
quer dizer: “Deus não suspende suas obras nem sua ação sobre as coisas da
natureza nos dias de sábado; continua a produzir tudo quanto é necessário à
alimentação e à saúde de vocês; e eu sou seu exemplo.”
Cego de nascença
24. Quando Jesus passou, viu um homem que era cego de nascença; e seus
discípulos lhe interrogaram: "Mestre, foi o pecado desse homem ou o pecado
daqueles que o puseram no mundo que deu causa a que ele nascesse cego?"
Jesus lhes respondeu: "Não é porque ele pecou, nem pelo pecado dos que o
puseram no mundo; mas para que as obras do poder de Deus se evidenciem nele. É
preciso que eu faça as obras daquele que me enviou enquanto é dia; a noite vem, na
qual ninguém pode agir. Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo."
Após ter dito isso, cuspiu no chão, e tendo feito lama com a sua saliva, ungiu
com essa lama os olhos do cego, e lhe diz: "Vai lavar-te na piscina de Siloé!", que
significa Enviado. Ele então foi, lavou-se e voltou vendo claramente.
Seus vizinhos e aqueles que o tinham visto antes a pedir esmolas diziam:
"Este não é aquele que estava assentado e que pedia esmola?" Uns respondiam: "É
ele"; outros diziam: "Não, é alguém que se parece com ele". Porém o homem lhes
dizia: "Sou eu mesmo". Perguntaram-lhe então: "Como seus olhos se abriram?" Ele
respondeu: "Aquele homem que se chama Jesus fez um pouco de lama e passou nos
meus olhos, dizendo ‘Vai à piscina de Siloé e lava-te’. Fui, lavei-me e agora
enxergo." Retrucaram-lhe: "Onde está ele?" O homem respondeu: "Não sei."
Depois, levaram aos fariseus aquele homem que era cego. Ora, foi num dia de
sábado que Jesus havia feito aquela lama e tinha aberto os olhos do cego.
Os fariseus também o interrogaram para saber como ele havia recobrado a
visão. E ele lhes disse: "Ele me pôs lama nos olhos, eu me lavei e enxergo." Ao que
alguns fariseus retrucaram: "Esse homem não é enviado de Deus, pois que não
180 Para a lei judaica, o sétimo dia — sábado, ou sabbath — é o dia do descanso e recolhimento
sagrado (porque, segundo os textos do Antigo Testamento, Deus descansou no sétimo dia da
criação) sendo proibido qualquer tipo de trabalho, senão o mínimo para a subsistência e louvor
a Deus. – N. T.
302 – Allan Kardec
guarda o sábado." Outros, porém, diziam: "Como poderia um homem mau fazer tais
prodígios?" E a respeito disso, surgiu ali desacordo entre eles.
Disseram de novo ao cego: "E tu, o que diz desse homem que te abriu os
olhos?" Ele respondeu: "Digo que é um profeta." Mas, os judeus não creram que
aquele homem tivesse sido cego e que tivesse recobrasse a vista enquanto não
fizessem vir o pai e a mãe dele, a quem interrogaram assim: "É este o filho de vocês,
que dizem ter nascido cego? Como é que ele agora vê?" O pai e a mãe responderam:
"Sabemos que esse é nosso filho e que nasceu cego; porém, não sabemos como
agora vê e tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos. Interroguem-no; ele já tem
idade, que responda por si mesmo."
Seu pai e sua mãe falavam desse modo porque temiam os Judeus, visto que
estes já haviam resolvido juntos que qualquer um que reconhecesse Jesus como
sendo o Cristo seria expulso da sinagoga. Foi o que obrigou o pai e a mãe a
responderem: “Ele já tem idade; interroguem ele mesmo.”
Então chamaram pela segunda vez aquele homem que era cego e lhe
disseram: "Glorifique a Deus; sabemos que esse homem é um pecador!" Ele lhes
respondeu: "Se é um pecador, eu não sei; mas tudo o que sei é que eu era cego e
agora vejo." Tornaram a lhe perguntar: "O que ele te fez e como ele abriu os teus
olhos?" Respondeu o homem: “Eu já lhes disse isso e vocês me ouviram bem; por
que querem ouvir uma segunda vez? Será que querem se tornar discípulos dele?"
Ao que eles o encheram de injúrias e lhe disseram: "Seja você discípulo dele!
Quanto a nós, somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés, mas
quanto a este, não sabemos de onde saiu."
Aquele homem lhes retrucou: "É de espantar que não saibam donde ele é, e
nem que ele tenha aberto os meus olhos. Ora, sabemos que Deus não exalta os
pecadores; mas sim àquele que o honra e faz a sua vontade; é a esse que Deus
exalta. Desde que o mundo existe, jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto
os olhos a um cego de nascença. Se esse homem não fosse um enviado de Deus, ele
não poderia fazer nada de tudo o que tem feito."
Os fariseus lhe responderam: "Você não passa de um pecado desde o ventre
de tua mãe, e quer nos ensinar?" E o expulsaram. (João, 9:1 a 34)
25. Esta narrativa tão simples e tão ingênua traz em si o cunho evidente de
uma verdade. Nada de fantasista nem de maravilhoso; é uma cena da vida real
apanhada em flagrante. A linguagem daquele cego é exatamente a desses
homens simples nos quais o saber é suprido pelo bom senso, e que retrucam
aos argumentos de seus adversários com bondade, e por razões a que não
falta nem justeza nem propósito. O tom dos fariseus não é o daqueles
orgulhosos que nada admitem acima de suas inteligências, e se indignam da
simples ideia de que um homem do povo possa lhes corrigir? Salvo a
303 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
26. Jesus ia por toda a Galileia ensinando nas sinagogas, pregando o Evangelho do
reino e curando todas as fraquezas e todas as enfermidades no meio do povo. E
como sua fama havia se espalhado por toda a Síria, traziam-lhe todos os que
estavam enfermos e afligidos por diversos males e dores, os possessos, os
lunáticos, os paralíticos, e ele curava a todos; – e uma grande multidão de povo o
seguia da Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judeia e de além Jordão (Mateus,
4:23 a 25.)
27. De todos os fatos que dão testemunho do poder de Jesus, sem dúvidas que
os mais numerosos são as curas; ele queria provar dessa forma que o
verdadeiro poder é aquele que faz o bem, que o seu objetivo era ser útil, e não
satisfazer à curiosidade dos indiferentes por coisas extraordinárias.
Aliviando o sofrimento, ele prendia a si as pessoas pelo coração e fazia
seus adeptos mais numerosos e sinceros do que se apenas os encantasse com
espetáculos para os olhos. Por esse modo, fazia-se amado, ao passo que se
ficasse limitado a produzir fatos materiais surpreendentes — como os
fariseus lhes pediam — a maioria das pessoas não teria visto nele senão um
feiticeiro ou um mágico hábil que os desocupados quisessem ver para se
distraírem.
Assim, quando João Batista envia seus discípulos para lhe perguntar se
ele era o Cristo, ele não respondeu “Eu sou o Cristo”, como qualquer impostor
teria dito; tampouco ele lhes fala de prodígios ou de coisas maravilhosas, mas
responde simplesmente: “Vão dizer a João: os cegos veem, os doentes são
curados, os surdos escutam, o Evangelho é anunciado aos pobres”. Era o
mesmo que dizer: “Reconheçam-me pelas minhas obras; julguem a árvore
pelo seu fruto”, porque esse era o verdadeiro caráter da sua missão divina.
28. É também pelo bem que faz que o Espiritismo prova sua missão
305 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
providencial. Ele cura os males físicos, mas sobretudo cura as doenças morais,
e esses são os maiores prodígios pelos quais se afirma. Seus adeptos mais
sinceros não são os que se sentem encantados pela observação de fenômenos
extraordinários, mas aqueles que foram tocados no coração pela consolação;
aqueles que foram libertos das torturas da dúvida; aqueles cuja coragem foi
levantada nas aflições, que depositaram a força na certeza no futuro que ele
veio trazer, no conhecimento do seu ser espiritual e no seu destino. Esses são
aqueles cuja fé é inabalável, pois sentem e compreendem.
Aqueles que enxergam no Espiritismo unicamente efeitos materiais não
podem compreender sua força moral; assim como os incrédulos — que não o
conhecem exceto pelos fenômenos dos quais eles não admitem a causa
primária — não enxergam nos Espíritas além de mágicos e charlatões. Pois
não será por meio de prodígios que o Espiritismo triunfará sobre a descrença:
mas será pela multiplicação dos seus benefícios morais, porque se os
incrédulos não admitem os prodígios, eles conhecem — como todo o mundo
— o sofrimento e as aflições, e ninguém recusa alívio e consolação.
Possessos
31. Quando chegou ao lugar onde estavam os outros discípulos, ele viu em torno
destes uma grande multidão de pessoas e muitos escribas que com eles
disputavam. Logo, percebendo a chegada de Jesus, todo o povo foi tomado de
espanto e de temor; então correram e o saudaram.
Ele então perguntou: "Pelo que estão disputando?" E um homem do meio do
povo, tomando a palavra, respondeu-lhe: "Mestre, eu trouxe a ti meu filho que está
possesso de um Espírito mudo; e em todo lugar onde se apossa dele, atira-o por
terra e o menino espuma, range os dentes e fica todo seco. Pedi a teus discípulos
que o expulsassem, mas eles não puderam."
Jesus lhe respondeu: "Ó gente incrédula! Até quando estarei com vocês? Até
quando os suportarei? Traga-me o menino!" Trouxeram-no e antes que visse Jesus,
o Espírito começa a agitá-lo violentamente; ele caiu no chão, onde se rolou
espumando.
Jesus perguntou ao pai do menino: "Desde quando isto acontece com ele?" O
pai respondeu: "Desde a infância. E o Espírito muitas vezes o tem lançado ora à
água, ora ao fogo, para fazê-lo perecer; mas se puder fazer alguma coisa, tenha
compaixão de nós e nos socorra!"
Respondeu-lhe Jesus: "Se puder crer, tudo é possível àquele que crê!" Logo, o
pai do menino, banhado em lágrimas, exclamou: "Senhor, eu creio! Ajuda-me na
minha incredulidade."
E Jesus, vendo que o povo acorria em multidão, falou com ameaça ao Espírito
impuro, dizendo-lhe: "Espírito surdo e mudo: saia desse menino, eu te ordeno, e
não entre mais nele!" Então esse Espírito saiu, soltando grande grito e agitando o
menino em violentas convulsões, e o menino ficou como morto, de modo que
muitos diziam que ele estava morto. Mas, Jesus tendo tomado as mãos do menino e
segurando-o, levantou o menino.
Quando Jesus entrou na casa, seus discípulos lhe perguntaram em particular:
"Por que nós não pudemos expulsar aquele demônio?" Ele lhes explicou: "Os
demônios desta espécie não podem ser expulsos por outro meio senão pela prece e
pelo jejum." (Marcos, 9:13 a 28.)
32. Apresentaram-lhe então um possesso cego e mudo e ele o curou, de modo que
aquele começou a falar e a ver. Todo o povo ficou repleto de admiração e dizia:
"Não é este o filho de Davi?"
Mas os fariseus, ouvindo isso, disseram: "Este homem não expulsa os
demônios se não por virtude de Belzebu, príncipe dos demônios!"
Ora, conhecendo os pensamentos deles, Jesus lhes disse: "Todo reino dividido
contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa que se divide contra si
mesma não pode subsistir. Se Satanás expulsa Satanás, ele está dividido contra si
mesmo; como então o seu reino poderá sobreviver? E, se é por Belzebu que eu
expulso os demônios, por quem seus filhos os expulsarão? Por isso eles serão os
seus próprios juízes. Se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é que o
reino de Deus veio até vocês." (Mateus, 12:22 a 28.)
307 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
36. Jesus era acusado pelos fariseus de expulsar os demônios pelos demônios;
segundo eles, até o bem que Jesus fazia era obra de Satanás, sem refletir que
Satanás expulsando a si mesmo praticaria um ato de insensatez. É notável que
os fariseus de seu tempo já pretendessem que toda faculdade transcendente
— e por esse motivo, reputada sobrenatural — fosse obra do demônio, pois,
segundo eles, o próprio Jesus recebia seu poder daquele; esse é mais um
ponto de semelhança com a época atual, e essa doutrina é aquela que ainda
hoje a Igreja procura fazer prevalecer contra as manifestações espíritas.181
181 Todos os teólogos estão longe de professar opiniões tão absolutas sobre a doutrina
demoníaca. Aqui está uma, de um eclesiástico da qual o clero não poderá contestar o valor.
Encontramos a passagem seguinte nas Conferências sobre a religião, do Monsenhor Freyssinous,
bispo de Hermópolis, tomo II, pág. 341, Paris, 1825:
“Se Jesus tivesse operado seus milagres pela virtude do demônio, então o demônio teria
trabalhado pela destruição do seu império e teria empregado o seu poder contra si próprio.
Certamente, um demônio que procurasse destruir o reino do vício para estabelecer o da
virtude seria um estranho demônio. Eis por que Jesus, para repelir a acusação absurda dos
judeus, lhes dizia: 'Se eu realizo prodígios em nome do demônio, o demônio está então dividido
consigo mesmo; portanto, procura se destruir a si próprio'; resposta que não admite réplica.”
É exatamente o argumento que os Espíritas opõem aos que atribuem ao demônio os bons
conselhos que eles recebem dos Espíritos. O demônio agiria então como um ladrão profissional
que restituísse tudo o que houvesse roubado e exortasse os outros ladrões a se tornarem
pessoas honestas.
309 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
RESSURREIÇÕES
A filha de Jairo
37. Tendo Jesus subido novamente no barco do outro lado, quando estava perto do
mar, uma grande multidão se reuniu ao redor dele. E um chefe da sinagoga
chamado Jairo veio ao seu encontro; e o encontrando, lançou-se aos pés e lhe
suplicou com grande fervor, dizendo-lhe: "Tenho uma filha que está morrendo;
venha lhe impor as mãos para curá-la e salvar a vida dela!"
Jesus foi com ele até lá, e estava acompanhado de uma grande multidão que o
pressionava.
Enquanto Jairo ainda falava, vieram pessoas do chefe da sinagoga, que lhe
disseram: "Tua filha está morta; por que deseja dar ao Mestre o incômodo de ir
mais longe?" Mas Jesus, tendo ouvido isso, disse ao chefe da sinagoga: "Não tenha
medo, apenas creia!" E não permitiu que ninguém o acompanhasse, exceto Pedro,
Tiago e João, irmão de Tiago.
Chegando na casa do chefe da sinagoga, ele viu uma aglomeração confusa de
pessoas que choravam e soltavam fortes gritos; e entrando, disse a eles: "Por que
fazem tanto alarido e por que choram? Esta menina não está morta, ela está apenas
adormecida." E zombavam dele. Tendo feito que todos saíssem, ele chamou o pai e
mãe da menina e os que tinham vindo com ele, e entrou no lugar onde a menina
estava deitada. Ele a pegou pela mão e lhe disse: "Talitha cumi!" — isto é: "Minha
filha, levanta-te, eu te ordeno!" No mesmo instante a menina se levantou e se pôs a
andar, pois ela tinha doze anos; e todos ficaram maravilhosamente espantados.
(Marcos, 5:21 a 43.)
38. No dia seguinte, Jesus foi a uma cidade chamada Naim, e seus discípulos o
acompanhavam com uma grande multidão. Quando estava perto da porta da
cidade, aconteceu que levavam a sepultar um morto, que era filho único de sua
mãe, e essa mulher era viúva; e com ela ali havia uma grande quantidade de
pessoas da cidade. Vendo-a, o Senhor ficou tomado de compaixão por ela e lhe
disse: "Não chore!" Depois, aproximando-se, tocou o caixão e aqueles que o
conduziam pararam. Então ele disse: "Jovem, levanta-te, eu te ordeno!"
Imediatamente o morto se levantou de sua maca e começou a falar; e Jesus o
devolveu à sua mãe.
Todos que estavam presentes ficaram tomados de espanto e glorificavam a
Deus dizendo: "Um grande profeta surgiu no meio nós, e Deus visitou o seu povo!"
O rumor desse milagre que ele fez se espalhou por toda a Judeia e por todas as
regiões da vizinhança. (Lucas, 7:11-17.)
310 – Allan Kardec
182Uma prova desse costume se encontra em Atos dos Apóstolos, 5:5 e seguintes.
“Ananias, tendo ouvido aquelas palavras, caiu e entregou o Espírito; e todos os que
ouviram falar disso foram tomados de um grande temor. Rapidamente, alguns rapazes vieram
buscar o seu corpo e, tendo-o levado, o enterraram. Passadas umas três horas, entrou sua
mulher (Safira) — que nada sabia do que havia se passado — e Pedro lhe disse (...). No mesmo
instante, ela caiu aos pés e entregou o Espírito. Aqueles rapazes entraram e a encontraram
morta; e levando-a, eles a enterraram junto do seu marido.”
183 Síncope: perda dos sentidos devido deficiência de irrigação sanguínea no cérebro. – N. T.
184Letargia: estado de profunda e prolongada inconsciência, semelhante ao sono profundo, do
qual a pessoa pode ser despertada, mas ao qual retorna logo a seguir. – N. T.
311 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
185O fato seguinte prova que a decomposição algumas vezes antecede a morte. No Convento do
Bom Pastor (fundado em Toulon pelo padre Marin, capelão dos cárceres, para as filhas
arrependidas) encontrava-se uma moça que suportara os mais terríveis sofrimentos com a
calma e a impassibilidade de uma vítima expiatória. Em meio de suas dores, ela parecia sorrir
para uma visão celestial; como santa Teresa, ela pedia para sofrer mais, sua carne estava se
despedaçando, a gangrena se espalhando por seus membros; por sábia previdência, os médicos
tinham recomendado que fizessem a inumação do corpo dela imediatamente após a morte.
Coisa estranha! Mal ela deu seu último suspiro, todo o processo de decomposição cessou; as
exalações cadavéricas desapareceram; durante trinta e seis horas ela permaneceu exposta às
orações e à veneração da comunidade.
186 O lago de Genesaré ou de Tiberíades.
312 – Allan Kardec
TRANSFIGURAÇÃO
43. Seis dias depois, Jesus tendo levado com ele Pedro, Tiago e João, levou-os a sós
a um alto monte afastado,187 e ficou transfigurado diante deles. E enquanto ele fazia
sua oração, seu rosto pareceu inteiramente outro; suas vestes se tornaram todas
radiantes de luz, e brancas como a neve, de maneira que não há nenhum alvejante
na Terra que possa fazer algo tão branco. E eles viram aparecer Elias e Moisés, que
conversavam com Jesus.
Então Pedro disse a Jesus: "Mestre, estamos bem aqui; vamos fazer três
tendas: uma para ti, outra para Moisés e mais uma para Elias.", pois ele não sabia o
que dizia, de tão espantado que estava.
Ao mesmo tempo, apareceu uma nuvem que os cobriu; e dessa nuvem saiu
uma voz que se fez ouvir estas palavras: "Este é meu Filho bem-amado; ouçam o
que ele diz!"
Logo, olhando para todos os lados, eles não viram mais ninguém além de
Jesus, que permaneceu a sós com eles.
Quando desciam do monte, ele lhes ordenou que não falassem a ninguém
sobre o que tinham visto, até que o Filho do homem fosse ressuscitado dentre os
mortos. E eles conservaram o fato em segredo, inquirindo uns aos outros o que ele
teria querido dizer com estas palavras: "Até que o Filho do homem fosse
ressuscitado dentre os mortos." (Marcos, 9:1 a 9.)
metros de altura.
313 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
TEMPESTADE ACALMADA
45. Certo dia, tendo subido num barco com seus discípulos, Jesus disse a eles:
"Vamos à outra margem do lago." Então eles partiram. E enquanto passeavam Jesus
adormeceu. Nisso, um grande turbilhão de vento veio subitamente desabar sobre o
lago, de maneira que a barca deles se encheu d’água e eles estavam em perigo.
Então se aproximaram de Jesus e, despertando-o, lhe disseram: "Mestre, estamos
morrendo!" Levantando-se, Jesus falou com ameaça aos ventos e às ondas agitadas
e eles se acalmaram, e se fez uma grande calmaria. Depois disse a eles: "Onde está a
fé de vocês?" Eles, porém, repletos de temor e admiração, perguntavam uns aos
outros: "Quem é este que dá ordens desse modo ao vento e às ondas e eles lhe
obedecem?" (Lucas, 8:22 a 25.)
BODAS DE CANÁ
fluidos.
48. A multiplicação dos pães é um dos milagres que mais têm intrigado os
comentadores, ao mesmo tempo em que tem despertado o ânimo dos
descrentes. Sem se darem ao trabalho de lhe examinar o sentido alegórico,
estes últimos não têm visto nisso mais do que um conto pueril; mas a maioria
das pessoas sérias tem visto na narrativa desse fato — embora sob uma forma
diferente da maneira comum — uma parábola comparando o alimento
espiritual da alma ao alimento do corpo.
No entanto, podemos ver nela mais do que uma alegoria e, de certo
ponto de vista, admitir a realidade de um fato real, sem para isso recorrer ao
prodígio. Sabemos que uma grande preocupação do espírito, estando a
atenção presa a uma coisa, faz esquecer a fome. Ora, os que acompanhavam
Jesus eram pessoas ávidas por ouvi-lo; pois, nada há de espantar que,
fascinadas pela sua palavra e talvez também pela poderosa ação magnética
que ele exercia sobre aqueles, as pessoas não tenham experimentado a
necessidade material de comer.
Jesus, que previu esse resultado, então pôde tranquilizar seus discípulos
dizendo a eles, na linguagem figurada que lhe era habitual, admitido que
realmente tivessem trazido alguns pães, que estes pães bastariam para saciar
a multidão. Ao mesmo tempo, ele dava aos referidos discípulos uma lição,
dizendo-lhes: “Deem vocês mesmos de comer a eles”; ensinava-lhes assim que
também eles poderiam alimentar por meio da palavra.
Sendo assim, ao lado do sentido alegórico moral, pôde-se produzir um
efeito fisiológico natural e bem conhecido. O prodígio nesse caso está na
superioridade da palavra de Jesus, poderosa o bastante para cativar a atenção
de uma multidão imensa ao ponto de fazê-la esquecer-se de comer. Esse
poder moral comprova a superioridade de Jesus, muito mais do que o fato
puramente material da multiplicação dos pães, que deve ser considerada
como alegoria.
316 – Allan Kardec
49. Ora, seus discípulos tinham passado para o outro lado do mar, tendo se
esquecido de levar pães. Jesus lhes diz: "Tenham o cuidado de se guardarem do
fermento dos fariseus e dos saduceus!" Mas eles pensavam e diziam entre si: "É
porque nós não trouxemos pães".
Pelo que Jesus, conhecendo os seus pensamentos, disse a eles: "Homens de
pouca fé, por que estão conversando entre si a respeito de não terem trazido pães?
Ainda não compreendem e não se lembram de que cinco pães foram suficientes
para cinco mil homens, e quantos lhes sobraram na cesta? Como não compreendem
que não é do pão de que eu lhes falava, quando lhes disse para se guardarem do
fermento dos fariseus e saduceus?"
Eles então compreenderam que Jesus não havia dito para se guardarem do
fermento que se põe no pão, mas sim da doutrina dos fariseus e dos saduceus.
(Mateus, 16:5 a 12.)
O pão do céu
50. No dia seguinte, o povo, que havia permanecido do outro lado do mar, notou
que não havia chegado lá outra barca e que Jesus não havia entrado nela com seus
discípulos, mas que somente os discípulos haviam partido; e como depois haviam
chegado outras barcas de Tiberíades, perto do lugar onde o Senhor, após render
graças, os havia alimentado com cinco pães; e que eles souberam finalmente que
Jesus não estava lá, nem tampouco seus discípulos, entraram naquelas barcas e
foram para Cafarnaum à procura de Jesus. E, tendo-o encontrado além do mar,
disseram-lhe: "Mestre, quando chegaste aqui?"
Jesus lhes respondeu: "Na verdade, na verdade eu lhes digo que me
procuram, não por causa dos milagres que viram, mas por eu lhes ter dado pão de
comer e ficaram saciados. Trabalhem por ter, não o alimento que perece, mas
aquele que dura para a vida eterna e que o Filho do homem lhes dará, porque foi
nele que Deus, o Pai, imprimiu seu selo e seu caráter."
Eles lhe indagaram: "Que faremos para produzir as obras de Deus?"
Respondeu-lhes Jesus: "A obra de Deus é que vocês creiam naquele que ele enviou."
Questionaram-lhe então: "Que milagre então fará a fim de que nós, vendo-o,
acreditemos em ti? Que fará de extraordinário? Nossos pais comeram o maná188 no
188 Maná: o livro bíblico Êxodo descreve o maná como sendo um alimento que caiu
milagrosamente do céu, pela graça de Deus, para alimentar o povo israelita que, liderado por
Moisés, atravessava o deserto em direção à terra prometida, depois da fuga do Egito. — N. T.
317 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
deserto, conforme está escrito: 'Ele lhes deu de comer o pão do céu'.”
Jesus lhes respondeu: "Na verdade, digo a vocês que Moisés não lhes deu o
pão vindo do céu; mas é meu Pai quem dá o verdadeiro pão do céu, porque o pão
de Deus é aquele que desceu do céu e que dá vida ao mundo."
Então eles disseram: "Senhor, dá-nos sempre desse pão!"
Jesus lhes respondeu: "Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá
fome e aquele que crê em mim não terá mais sede! Mas, eu já lhes disse: vocês me
têm visto e não creem.
Na verdade, na verdade eu digo a vocês: aquele que crê em mim tem a vida
eterna. Eu sou o pão da vida. Seus pais comeram o maná do deserto, e eles estão
mortos. Mas aqui está o pão que desceu do céu, a fim de que aquele que comer
deste pão não morra." (João, 6:22 a 36 e 47 a 50.)
TENTAÇÃO DE JESUS
52. Jesus, transportado pelo diabo ao topo do Templo, depois ao cume de uma
montanha, e tentado por ele, é uma daquelas parábolas que lhe eram
familiares e que a crença pública transformou em fatos materiais.189
53. “Jesus não foi levado, mas quis fazer que os homens compreendessem que a
humanidade está sujeita a falir e que ela deve estar sempre em guarda contra as
más inspirações às quais sua natureza fraca é tentada a ceder. Portanto, a tentação
de Jesus é uma simbologia e seria preciso ser cego para tomá-la ao pé da letra.
Como se pretende que o Messias — o Verbo de Deus encarnado — tenha sido
submetido às sugestões do demônio por algum tempo, por muito curto que fosse, e
que, como diz o Evangelho de Lucas, o demônio o tivesse deixado por algum
tempo, o que daria a supor que ele ainda continue submetido ao seu poder? Não;
compreendam melhor os ensinamentos que lhes foram dados. O Espírito do mal
nada poderia sobre a essência do bem. Ninguém diz ter visto Jesus no cume da
montanha nem no topo do Templo; de certo, tal fato teria sido daqueles que se
espalha entre todos os povos. Logo, a tentação não foi um ato material e físico.
Quanto ao ato moral, vocês podem admitir que o Espírito das trevas pudesse dizer
àquele que conhecia sua própria origem e o seu poder: ‘Adore-me e te darei todos
os reinos da Terra’? O demônio teria ignorado então aquele a quem fazia tais
propostas; o que não é provável; se o conhecia, suas propostas eram uma
insensatez, pois ele bem sabia que seria repelido por aquele que viera arruinar o
seu império sobre os homens.
“Compreendam então o sentido dessa parábola, pois é um só, tanto quanto
189A explicação seguinte é textualmente tirada de um ensino dado por um Espírito para essa
questão.
319 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
nos casos da parábola do Filho pródigo e do Bom Samaritano. Esse sentido nos
mostra os perigos que os homens correm se não resistirem àquela voz íntima que
lhes clama sem cessar: ‘Você pode ser mais do que é; pode possuir mais do que
possui; pode se engrandecer, adquirir muito; ceda à voz da ambição e todos os teus
desejos serão satisfeitos". Mostra-nos o perigo e o meio de evitá-lo, dizendo às más
inspirações: Retira-te, Satanás! — ou, de outra forma: Vá embora, tentação!
“As duas outras parábolas de que me lembrei mostram o que ainda pode
esperar aquele que, muito fraco para expulsar o demônio, tenha cedido às suas
tentações. Mostram a misericórdia do pai de família estendendo a sua mão sobre a
fronte do filho arrependido e, com amor, concedendo-lhe o perdão implorado.
Mostram o culpado, o cismático, o homem repelido por seus irmãos, valendo mais
aos olhos do Juiz supremo do que os que o desprezam, por ele praticar as virtudes
ensinadas pela lei de amor.
“Pesem bem os ensinamentos dados nos Evangelhos; saibam distinguir o que
está em sentido próprio ou em sentido figurado, e os erros que lhes tem cegado
durante séculos se apagarão pouco a pouco para dar lugar à brilhante luz da
Verdade.” (Bordeaux, 1862. João, Evangelista.)
mas vá se encontrar com meus irmãos e diga a eles meu recado: Subo a meu Pai e
seu Pai, a meu Deus e seu Deus."
Maria Madalena foi então dizer aos discípulos que ela havia visto o Senhor, e
que este lhe havia dito aquelas coisas. (João, 20:14 a 18.)
57. Naquele mesmo dia, dois deles iam para uma vila chamada Emaús, distante de
Jerusalém sessenta estádios, falando entre si de tudo o que se passara. E aconteceu
que enquanto conversavam e conferenciavam sobre isso, o próprio Jesus veio se
juntar a eles, e se pôs a caminhar com eles; mas seus olhos estavam cobertos, a
fim de que não pudessem reconhecê-lo. E ele lhes disse: "De que vinham falando
enquanto caminhavam, e por que vocês estão tão tristes?"
Um deles, chamado Cleofas, tomando a palavra lhe disse: "Serás em
Jerusalém o único estrangeiro que não saiba do que aconteceu lá estes dias?". "E o
que foi?" — perguntou ele. Eles responderam: "A respeito de Jesus de Nazaré, que
foi um poderoso profeta diante de Deus e diante de todo o povo; e acerca do modo
como os príncipes dos sacerdotes e os nossos senadores o entregaram para ser
condenado à morte e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que fosse ele quem
resgataria Israel, e, no entanto, apesar de tudo isso, já é o terceiro dia depois que
essas coisas aconteceram. É verdade que algumas mulheres das que estavam
conosco nos surpreenderam, pois, tendo ido ao seu sepulcro antes do amanhecer, e
não tendo encontrado lá o corpo dele, elas vieram nos dizer que anjos mesmos lhes
apareceram, dizendo a elas que ele está vivo. E alguns dos nossos, tendo ido
também ao sepulcro, encontraram todas as coisas conforme as mulheres haviam
contado; e quanto a ele, não o encontraram."
Então Jesus lhes disse: "Ó insensatos, cujo coração está atrasado a crer em
tudo aquilo que os profetas disseram! Não era preciso que o Cristo sofresse todas
essas coisas e que assim entrasse na glória? E começando por Moisés, passando em
seguida por todos os profetas, ele lhes explicara o que em todas as Escrituras havia
sido dito dele!"
Quando se aproximaram da cidade para onde eles iam, ele fez parecer que ia
mais adiante. Contudo, eles o forçaram a deter-se dizendo-lhe: "Fique conosco,
porque já é tarde e o dia está em declínio.”; e ele entrou com os dois. Estando com
eles à mesa, ele pegou o pão, abençoou-o, partiu-o e distribuiu a eles. No mesmo
instante os olhos deles se abriram e o reconheceram; ele, porém, desapareceu
diante das vistas deles.
Depois disso, eles disseram um ao outro: "Não é verdade que o nosso coração
ardia dentro de nós quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as
Escrituras?" E, erguendo-se na mesma hora, eles retornaram a Jerusalém e viram
que os onze apóstolos e os que continuavam com eles estavam reunidos, e
disseram: "O Senhor realmente ressuscitou e apareceu a Simão." Então, também
eles narraram o que lhes acontecera em caminho e como o tinham reconhecido ao
partir o pão.
Enquanto assim conferenciavam, Jesus se apresentou no meio deles e lhes
322 – Allan Kardec
disse: "A paz esteja convosco! Sou eu, não tenham medo!" Mas, na perturbação e no
medo de que foram tomados, eles imaginaram estar vendo um Espírito.
E Jesus lhes disse: "Por que estão perturbados? E por que se elevam tantos
pensamentos nos seus corações? Olhem minhas mãos e meus pés e reconheçam
que sou eu mesmo. Toquem-me e considerem que um Espírito não tem carne, nem
osso, como podem ver que eu tenho." Após dizer isso, mostrou-lhes as mãos e os
pés.
Mas como eles ainda não acreditavam, tão transportados de alegria e de
admiração que estavam, ele lhes disse: "Vocês têm aqui alguma coisa de comer?"
Eles lhe apresentaram um pedaço de peixe assado e um favo de mel. Ele comeu
diante deles e tomando os restos, distribuiu a eles dizendo: "Eis o que eu lhes disse,
estando ainda com vocês; que era necessário que se cumprisse tudo o que de mim
estava escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos."
Ao mesmo tempo ele abriu o espírito deles, a fim de que entendessem as
Escrituras, e lhes disse: "É assim que está escrito e assim era que se fazia
necessário que o Cristo sofresse, e que ressuscitasse dentre os mortos no terceiro
dia; e que se pregasse em seu nome a penitência e a remissão dos pecados em
todas as nações, começando por Jerusalém. Ora, vocês são testemunhas dessas
coisas. E eu vou enviá-los o dom de meu Pai, que lhes foi prometido; mas, por
enquanto, permaneçam na cidade até que vocês sejam revestidos da força do Alto."
(Lucas, 24:13 a 49.)
58. Ora, Tomé, um dos doze apóstolos, chamado Dídimo, não estava com eles
quando Jesus aparecera. Os outros discípulos então lhe disseram: "Nós vimos o
Senhor!" Mas ele lhes disse: "Se eu não vir nas suas mãos as marcas dos cravos que
as atravessaram e não puser o dedo no buraco feito pelos cravos e minha mão no
rasgão do seu lado, eu não acreditarei!"
Oito dias depois, os discípulos ainda estavam no mesmo lugar, e com eles
Tomé, Jesus veio, as portas estando fechadas, e ele se colocando no meio deles,
disse-lhes: "A paz esteja com vocês!"
Disse em seguida a Tomé: "Põe aqui o teu dedo e olha minhas mãos; estende
também a tua mão e coloca-a no meu lado, e não seja assim incrédulo, mas fiel!"
Tomé lhe respondeu: "Meu Senhor e meu Deus!" Jesus lhe disse: "Você acreditou,
Tomé, porque você viu; felizes aqueles que creram sem ter visto!" (João, 20:20 a
29.)
59. Jesus também se mostrou depois aos seus discípulos à margem do mar de
Tiberíades, e ele se fez visto desta forma:
Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo, Natanael, que era de Caná na Galileia,
os filhos de Zebedeu e dois outros de seus discípulos estavam juntos. Simão Pedro
lhes disse: "Vou pescar." Os outros disseram: "Nós também vamos contigo." Então
foram e entraram numa barca; mas nada apanharam naquela noite.
Tendo amanhecido, Jesus apareceu na margem, sem que seus discípulos
323 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
reconhecessem que era ele. Jesus então lhes disse: "Filhos, vocês não têm nada
para comer?" Responderam-lhe: "Não." Ele replicou: "Lancem a rede do lado
direito da barca e encontrarão!" Eles lançaram a rede imediatamente e quase não
puderam retirá-la, tão carregada estava de peixes.
Então o discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: "É o Senhor!" E Simão
Pedro, ao descobrir que era o Senhor, vestiu seu hábito (pois estava nu) e se atirou
ao mar. Os outros discípulos vieram com a barca, e, como não estavam distantes da
praia mais de duzentos côvados, eles daí puxaram a rede cheia de peixes. (João,
21:1 a 8.)
60. Depois disso, ele os levou em direção a Betânia; e tendo lavado as mãos, ele os
abençoou, e os bendizendo, separou-se deles e foi arrebatado ao céu.
Quanto a eles, depois de o terem adorado, retornaram a Jerusalém repletos
de alegria; e estavam constantemente no templo, louvando e bendizendo a Deus.
Amém. (Lucas, 24:50 a 53.)
61. As aparições de Jesus após sua morte são reportadas por todos os
evangelistas com detalhes circunstanciados que não nos permitem duvidar da
realidade do fato. Aliás, elas se explicam perfeitamente pelas leis fluídicas e
pelas propriedades do perispírito, e não apresentam nada de anormal com os
fenômenos do mesmo gênero, cuja história antiga e contemporânea oferece
numerosos exemplos, sem fazer exceção da tangibilidade. Se observarmos as
circunstâncias em que se deram as suas diversas aparições, reconheceremos
em Jesus, nesses momentos, todas as características de um ser fluídico. Ele
aparece instantaneamente e do mesmo modo desaparece; ele é visto por uns
e por outros não, sob aparências que não o tornam reconhecível nem sequer
pelos seus discípulos; ele se mostra em recintos fechados, onde um corpo
carnal não poderia penetrar; até sua linguagem não tem a vivacidade daquela
de um ser corpóreo; fala em tom breve e sentencioso — peculiar aos Espíritos
que se manifestam dessa maneira; em resumo, todas as suas atitudes têm
alguma coisa que não é do mundo terreno. Sua visualização causa
simultaneamente surpresa e pavor; ao vê-lo, seus discípulos não lhe falam
com a mesma liberdade; sentem que já não é mais o homem.
Portanto, Jesus se mostrou com o seu corpo perispiritual — o que
explica que ele não tenha sido visto senão por aqueles por quem quis ser
visto; se estivesse com o seu corpo carnal, ele teria sido visto pelo primeiro
324 – Allan Kardec
62. Já que a incredulidade rejeita todos os fatos realizados por Jesus, tendo
uma aparência sobrenatural, e os considera — sem exceção — lendários, o
Espiritismo dá à maior parte desses fatos uma explicação natural; prova a
possibilidade deles, não somente pela teoria das leis fluídicas, como pela sua
identidade com fatos semelhantes produzidos por uma imensidade de
pessoas nas condições mais comuns. Por tais fatos estarem de certo modo no
domínio público, eles nada provam, em princípio, com relação à natureza
excepcional de Jesus.191
63. O maior dos milagres que Jesus operou, aquele que verdadeiramente
atesta a sua superioridade, é a revolução que seus ensinamentos produziram
no mundo, malgrado a simplicidade dos seus meios de ação.
Com efeito, Jesus — obscuro, pobre, nascido na mais humilde condição,
no seio de um pequeno povo, quase ignorado e sem preponderância política,
artística ou literária — não pregou mais do que por três anos; durante esse
curto espaço de tempo ele é desacreditado e perseguido pelos seus
concidadãos, caluniado, tratado como impostor; ele é obrigado a fugir para
não ser apedrejado; é traído por um de seus apóstolos, renegado por outro,
abandonado por todos no momento em que cai nas mãos de seus inimigos. Ele
só fez o bem, mas isso não o livrou da malevolência, que voltou contra ele os
191Os inúmeros fatos contemporâneos de curas, aparições, possessões, dupla vista e outros, que
se encontram relatados na Revista Espírita e reportados aqui nas observações dos itens
anteriores, oferecem até nas circunstâncias dos detalhes uma analogia tão flagrante com
aqueles que o Evangelho narra, que a semelhança dos efeitos e das causas permanece evidente.
Pergunta-se então por que o mesmo fato teria hoje uma causa natural e sobrenatural outrora;
diabólica com uns e divina com outros. Se fosse possível pô-los aqui em confronto uns com os
outros, a comparação se tornaria mais fácil; porém, o número deles e os desenvolvimentos que a
maior parte necessita não o permitem.
325 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
64. O desaparecimento do corpo de Jesus após sua morte tem sido objeto de
inúmeros comentários; ele é atestado pelos quatro evangelistas, sob a
narrativa das mulheres que estiveram presentes ao sepulcro no terceiro dia e
não o encontraram lá. Alguns viram nesse desaparecimento um fato
miraculoso, outros supunham uma remoção clandestina.
Segundo outra opinião, Jesus não teria se revestido de um corpo carnal,
mas apenas de um corpo fluídico; durante toda a sua vida, ele não teria sido
mais do que uma aparição tangível — em numa palavra, uma espécie de
agênere. Seu nascimento, sua morte e todos os atos materiais de sua vida não
teriam sido senão uma aparência. Foi assim que — como dizem — seu corpo
teria voltado ao estado fluídico, que pôde desaparecer do sepulcro, e com esse
mesmo corpo é que ele teria se mostrado após sua morte.
Sem dúvida, um fato como esse não é radicalmente impossível, desde
que hoje se conhece as propriedades dos fluidos; mas isso seria pelo menos
um fato inteiramente excepcional e em formal oposição ao caráter dos
agêneres (Cap. XIV, item 36). A questão, portanto, é sabermos se tal hipótese é
192 O historiador judeu Flávio Josefo, é o único que fala dele, e diz muita pouca coisa.
326 – Allan Kardec
68. Essa ideia sobre a natureza do corpo de Jesus não é nova. No quarto
século, Apolinário de Laodiceia, chefe da seita dos Apolinaristas, pretendia
que Jesus não tinha tomado um corpo como o nosso, mas um corpo
328 – Allan Kardec
impassível, que havia descido do céu ao ventre da santa Virgem, e que não
havia nascido dela; que então Jesus não teria nascido, nem sofrido e nem
morrido a não ser em aparência. Os apolinaristas foram anatemizados no
concílio de Alexandria em 360, no de Roma em 374 e no de Constantinopla
em 381.
Os Docetas (do grego dokein, aparecer) — seita numerosa dos
Gnósticos, que subsistiu durante os três primeiros séculos — tinham a
mesma crença.
329 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
AS PREDIÇÕES
SEGUNDO O ESPIRITISMO
330 – Allan Kardec
CAPÍTULO XVI
Teoria da presciência
desconhecido, o futuro, porque a sua vista não vai além da pequena área que o
cerca. Quanto à duração, ele a mede pelo tempo que gasta para percorrer o
caminho; tirem dele os pontos de referência e a duração desaparecerá. Para o
homem que está em cima da montanha e que o acompanha com o olhar, tudo
aquilo é o presente. Suponhamos que esse homem desça ao encontro do
viajante lhe diga “Em tal momento, você encontrará tal coisa, será atacado e
socorrido”, ele lhe prediz o futuro; o futuro é para o viajante, mas para o
homem da montanha, esse futuro é o presente.
9. Além disso, devemos imaginar que essa percepção não se limita à extensão,
mas que ela abrange a penetração de todas as coisas; repetimos: esta é uma
faculdade natural e proporcional ao estado de desmaterialização. Essa
faculdade é amortizada pela encarnação, mas não está completamente
anulada, porque a alma não está trancada no corpo como numa caixa. O
encarnado a possui, embora sempre num grau menor do que quando se acha
335 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
14. O resultado final de um evento pode então ser certo, por ele este estar nos
desígnios de Deus; porém, quase sempre, como os detalhes e o modo de
337 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
inúteis para ele; e mais ainda: aquele que jamais houvesse encarnado em
nenhum mundo não teria nenhuma noção das frações da duração. Quando um
Espírito estranho à Terra vem aqui se manifestar, ele não pode assinar datas
dos acontecimentos senão identificando-se com os nossos usos, o que sem
dúvida está ao seu alcance, porém, na maioria das vezes, ele julga não ser útil
fazer isso.
17. A forma geralmente muito empregada até agora para as predições faz
delas verdadeiros enigmas frequentemente indecifráveis. Essa forma
misteriosa e cabalística — de que Nostradamus194 nos oferece o tipo mais
completo — lhe dá certo prestígio aos olhos do ignorante, que lhe atribui um
valor maior quanto mais sejam incompreensíveis. Pela sua ambiguidade, elas
194 Michel de Nostradame (1503-1566): médico francês célebre por suas previsões. — N. T.
339 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XVII
Predições do Evangelho
NINGUÉM É PROFETA EM SUA TERRA – MORTE E PAIXÃO DE JESUS
– PERSEGUIÇÃO AOS APÓSTOLOS – CIDADES IMPENITENTES –
RUÍNA DO TEMPLO E DE JERUSALÉM – MALDIÇÃO CONTRA AOS
FARISEUS – MINHAS PALAVRAS NÃO PASSARÃO
– A PEDRA ANGULAR – PARÁBOLA DOS VINHATEIROS HOMICIDAS –
UM SÓ REBANHO E SÓ PASTOR - ADVENTO DE ELIAS
– ANUNCIAÇÃO DO CONSOLADOR – SEGUNDO ADVENTO DO CRISTO
– SINAIS PRECURSORES – VOSSOS FILHOS E VOSSAS FILHAS
PROFETIZARÃO – JUÍZO FINAL
1. E tendo vindo à sua terra, ele os instruía nas sinagogas, de sorte que, tomados de
espanto, eles diziam: "Donde lhe vieram essa sabedoria e esses milagres? Este não
é o filho daquele carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria e não são seus irmãos
Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não estão todas entre nós? Donde então
lhe vêm todas essas coisas?" E assim faziam dele objeto de escândalo. Mas Jesus
lhes disse: "Um profeta só não é honrado em sua terra e na sua casa". E ele não
fez muitos milagres lá devido à descrença deles. (Mateus, 13:54-58.)
2. Jesus ali enunciou uma verdade que se tornou provérbio, que é de todos os
tempos e à qual poderíamos dar maior amplitude dizendo que ninguém é
profeta em vida.
Na linguagem atual, essa máxima se aplica ao crédito de que alguém goza
entre os seus conhecidos e entre aqueles com quem vive da confiança que
lhes inspira pela superioridade do saber e da inteligência. Se essa máxima tem
342 – Allan Kardec
sua morte do que quando estavam vivos. Eles são julgados com mais
imparcialidade porque, já tendo desaparecido os seus invejosos e ciumentos,
os antagonismos pessoais já não existem mais. A posteridade é um juiz
desinteressado que aprecia a obra de espírito, que a aceita sem entusiasmo
cego se for uma boa obra, e a rejeita sem rancor se ela for má, abstração feita
da individualidade que a produziu.
Muito menos Jesus podia escapar das consequências desse princípio
inerente à natureza humana, porque viveu num ambiente pouco esclarecido e
entre pessoas votadas inteiramente à vida material. Seus compatriotas não
viam nele mais do que o filho do carpinteiro, o irmão de homens tão
ignorantes quanto eles, e assim se perguntavam o que poderia torná-lo
superior a eles e lhe dava o direito de censurá-los; assim, vendo que a sua
palavra tinha menos crédito sobre os seus próximos — que o desprezavam —
do que sobre os estranhos, ele preferiu ir pregar entre os que o escutavam e
no meio daqueles em quem ele encontrava simpatia.
Podemos fazer uma ideia de quais sentimentos seus conterrâneos
estavam animados em relação a ele pelo fato de que seus próprios irmãos,
acompanhados de sua mãe, vieram a uma reunião em que ele estava, para
buscá-lo, dizendo que ele havia perdido o juízo. (Marcos, 3:20-21 e 31 a 35 –
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIV.)
Desta maneira, de um lado, os sacerdotes e os fariseus acusavam Jesus
de agir através do demônio; de outro, ele era tachado de louco pelos seus
parentes mais próximos. Não é o que ocorre em nossos dias com relação aos
Espíritas? E estes deverão se queixar de não serem mais bem tratados pelos
seus concidadãos do que foi Jesus? O que não tinha nada de surpreendente há
dois mil anos, no meio de um povo ignorante, é mais estranho em pleno
século dezenove, entre as nações civilizadas.
homem deve ser entregue às mãos dos homens". Mas eles não entendiam essa
linguagem; para eles, ela era de tal modo oculta que nada compreendiam daquilo e
temiam até interrogá-lo a respeito. (Lucas, 9:44-45.)
4. A partir de então, Jesus começou a revelar a seus discípulos que era preciso que
ele fosse a Jerusalém; que ali ele sofreria muito da parte dos senadores, dos
escribas e dos príncipes dos sacerdotes; que seria levado à morte e que
ressuscitaria no terceiro dia. (Mateus, 16:21.)
5. Quando eles estavam na Galileia, Jesus lhes disse: "O Filho do homem deve ser
entregue nas mãos dos homens; e estes lhe levarão à morte, e ele ressuscitará no
terceiro dia.": o que os afligiu extremamente. (Mateus, 17:21-22.)
6. Ora, Jesus indo a Jerusalém, chamou seus doze discípulos em particular e disse a
eles: "Nós iremos a Jerusalém e o Filho do homem será entregue aos príncipes dos
sacerdotes e aos escribas, que o condenarão à morte; e o entregarão aos gentios196,
a fim de que o tratem com zombarias, o açoitem e crucifiquem; e ele ressuscitará
no terceiro dia." (Mateus, 20:17 a 19.)
7. Em seguida, chamando em particular os doze apóstolos, Jesus lhes disse: "Eis que
nós vamos a Jerusalém e irá se cumprir tudo o que foi escrito pelos profetas acerca
do Filho do homem; porque ele será entregue aos gentios, zombarão dele e o
açoitarão, escarrando no seu rosto. E depois que o tiverem açoitado, eles o matarão
e ele ressuscitará no terceiro dia."
Mas, eles nada compreenderam de tudo aquilo; aquela linguagem lhes era
oculta e não entendiam o que ele lhes dizia. (Lucas, 18:31 a 34.)
8. Ora, tendo concluído todos esses discursos, Jesus disse a seus discípulos: "Vocês
sabem que a Páscoa se fará daqui a dois dias e que o Filho do homem será entregue
para ser crucificado."
Ao mesmo tempo, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo se
reuniram na corte do sumo-sacerdote, chamado Caifás, e se puseram a debater
para procurar um meio de se apoderarem habilmente de Jesus e de levá-lo à morte.
E eles diziam: "É preciso que não seja durante a festa, para que não se levante
qualquer tumulto no meio do povo." (Mateus, 26:1 a 5.)
9. No mesmo dia, alguns fariseus vieram lhe dizer: "Vá embora, saia deste lugar,
pois Herodes quer te matar." Ele lhe respondeu: "Vá dizer a essa raposa: Ainda
tenho que expulsar os demônios e restituir a saúde aos doentes hoje e amanhã; no
196 Gentio: para os hebreus, aquele que não é da sua religião judaica nem do seu povo,
estrangeiro, estranho. Neste caso, refere-se ao fato de os doutores da lei submeter Jesus ao
julgamento perante Pilatos, numa corte romana. — N. T.
345 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
10. "Tenham cuidado com os homens, pois eles lhes farão comparecer nas suas
assembleias, e lhes farão serem açoitados nas sinagogas deles; e por minha causa
vocês serão levados aos governadores e aos reis, para lhes servir de testemunhas,
bem como às nações." (Mateus, 10:17 e 18.)
11. "Eles lhes expulsarão das sinagogas; e virá o tempo em que aquele que lhes
levar à morte julgará fazer uma coisa agradável a Deus. Tratarão vocês desse modo
porque eles não conhecem nem a meu Pai nem a mim. Ora, digo-lhes estas coisas a
fim de que, quando tiver chegado o tempo, lembrem-se de que eu lhes disse isso."
(João, 16:1 a 4.)
12. "Vocês serão traídos e entregues aos magistrados pelos seus pais e suas mães,
por seus irmãos, por seus parentes e amigos, e levarão muitos de vocês à morte. E
vocês serão odiados por todo mundo por causa de meu nome. Entretanto, não se
perderá um só cabelo de sua cabeça. Pela vossa paciência é que possuirão suas
almas." (Lucas, 21:16 a 19.)
13. (Martírio de são Pedro) "Na verdade, na verdade eu digo a vocês que, quando
eram mais jovens, vocês vestiam a si mesmos e iam para onde queriam; mas
quando forem velhos, estenderão as mãos e outro os vestirá e os conduzirá para
onde não quererão ir." Ora, ele dizia isso para assinalar por qual morte Pedro
haveria de glorificar a Deus. (João, 21:18-19.)
CIDADES IMPENITENTES
14. Então ele começou a censurar as cidades onde havia feito muitos milagres, por
eles não terem feito penitência:
"Ai de ti, Corozaim, ai de ti Betsaida, porque, se os milagres que foram feitos
no meio de vocês tivessem sido feitos em Tiro e em Sídon, há muito tempo elas
teriam feito penitência com saco e cinzas. Eis por que declaro a vocês que no dia do
julgamento Tiro e Sídon serão tratadas menos rigorosamente do que vocês.
"E tu, Cafarnaum, sempre ficará elevada até o céu? Será abaixada até o fundo
do inferno, porque se os milagres que foram feitos no meio de ti tivessem sido
feitos em Sodoma, esta talvez ainda teria sobrevivido até hoje. Eis por que te
declaro que no dia do julgamento o país de Sodoma será tratado menos
346 – Allan Kardec
17. "No entanto, é preciso que eu continue a andar hoje, amanhã e no dia seguinte,
porque é necessário que nenhum profeta sofra a morte noutra parte que não em
Jerusalém."
"Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas e apedreja os são enviados a ti,
quantas vezes tenho desejado reunir teus filhos, como uma galinha reúne seus
pintainhos sob as suas asas, e você não os quis! Aproxima-se o tempo em que tua
casa ficará deserta. Então, em verdade, eu digo a vocês que não me verão mais de
agora em diante, até que digam: Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor."
(Lucas, 13:33 a 35.)
18. "Quando virem um exército cercando Jerusalém, saibam que a sua desolação
está próxima. Então, que aqueles que estiverem na Judeia fujam para as
montanhas; que aqueles que se encontrarem no meio dela daí se retirem, e que os
que estiverem nas redondezas dessa região não entrem mais. Porque esses dias
serão os da vingança, a fim de que tudo o que está na Escritura seja cumprido. Ai
daquelas que estiverem grávidas ou amamentando nesses dias, pois esta cidade
será acabrunhada de males e a cólera do céu recairá sobre esse povo. Passarão pelo
fio de espada; serão feitos prisioneiros em todas as nações, e Jerusalém será
calcada aos pés pelos gentios, até que o tempo das nações tenha se comprido."
(Lucas, 21:20- 24.)
19. (Jesus caminhando para o suplício) Ora, ele era seguido de uma grande multidão
de povos e de mulheres se batiam no peito e choravam. Mas Jesus, voltando-se,
disse-lhes: "Filhas de Jerusalém, não chorem por mim, mas chorem por vocês
347 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
mesmas e pelos seus filhos, pois virá um tempo em que se dirá: ‘Felizes as estéreis,
as entranhas que não geraram filhos e os seios que não amamentaram’. Todos
começarão a dizer às montanhas ‘Caia sobre nós!’ e às colinas ‘Cobram-nos!’ Pois,
se deste modo eles tratam o lenho verde, como será tratado o lenho seco?" (Lucas,
23:27 a 31.)
21. Tanto mais devia ser assim com Jesus, que, tendo consciência da missão
que vinha desempenhar, sabia que a morte pelo suplício era para ele a
consequência necessária. A visão espiritual — que era permanente nele,
assim como a penetração do pensamento — devia lhe mostrar as
circunstâncias e a época fatal de sua morte. Pela mesma razão ele podia
prever a ruína do Templo, a queda de Jerusalém, as desgraças que iam recair
sobre seus habitantes e a dispersão dos judeus.197
22. (João Batista) Vendo vários fariseus e saduceus que vinham para seu batismo,
197 De fato, as profecias de Jesus se cumpriram. O Templo de Jerusalém foi construído por
Salomão em 970 a.C., depois saqueado e destruído em 586 a.C. pelos soldados babilônicos do rei
Nabucodonosor. Ele foi reerguido e embelezado por Herodes por volta de 20 a.C. e então
completamente destruído no ano 70 d.C. pelas tropas do general Tito, sob o reinado do
imperador Vespasiano, em resposta à grande revolta judaica contra o Império Romano. Entre
132 e 135 d.C. uma nova revolta dos judeus, desta vez liderada por Simão Barcoquebas,
ameaçou o domínio romano em Jerusalém, tendo como resposta um impiedoso massacre do
qual os poucos judeus que sobreviveram ainda foram proibidos de habitar a região, causando
assim sua grande dispersão (diáspora). — N. T.
348 – Allan Kardec
ele lhes disse: "Raça de víboras, quem lhes ensinou a fugir da ira que há de cair
sobre vocês? Produzam então frutos dignos de penitência; e não pensem em dizer a
si mesmos: ‘Nós temos Abraão por pai’, pois eu lhes declaro que Deus pode fazer
que até destas pedras nasçam filhos a Abraão; pois o machado já está posto à raiz
das árvores e toda árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo."
(Mateus, 3:7 a 10.)
23. "Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, porque fecham o reino dos céus aos
homens; pois vocês mesmos não entrarão lá, e ainda se opõem àqueles que lá
desejam entrar!"
"Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que, a pretexto das suas longas
preces, devoram as casas das viúvas; é por isso que receberão um julgamento mais
rigoroso!"
"Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que percorrem o mar e a terra
para fazer um seguidor e que, depois de o terem conseguido, o tornam duas vezes
mais digno do inferno do que vocês mesmos!"
"Ai de vocês, condutores cegos que dizem: ‘Se um homem jura pelo templo,
isso não é nada; mas qualquer um que jure pelo ouro do templo fica obrigado a
cumprir o seu juramento!’ Insensatos e cegos que são! A que se deve mais estimar:
ao ouro, ou ao templo que santifica o ouro? E se um homem — vocês dizem — jura
pelo altar, isso não é nada; mas, aquele que jurar pela oferta que esteja sobre o
altar, este fica obrigado a cumprir o seu juramento. Cegos que são! A qual se deve
mais estimar, à oferta ou ao altar que santifica a oferta? Pois aquele que jura pelo
altar jura não só pelo altar, como por tudo o que está sobre o altar; e aquele que
jura pelo templo jura por aquele que o habita; e aquele que jura pelo céu jura pelo
trono de Deus e por aquele que ali se assenta."
"Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que pagam o dízimo da hortelã,
do endro e do cominho, e que têm abandonado o que há de mais importante na lei,
a saber: a justiça, a misericórdia e a fé! Essas são as coisas que devem praticar, sem,
contudo, omitir as outras. Guias cegos, que têm grande cuidado em coar o que
bebem por medo de engolir um mosquito, mas que engolem um camelo!"
"Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que limpam o copo e o prato por
fora, mas que por dentro estão cheios de rapina e impureza! Fariseus cegos!
Limpem primeiro o interior do copo e do prato, a fim de que também o exterior
fique limpo."
"Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que se assemelham a sepulcros
caiados, que por fora parecem belos aos olhos dos homens, mas que por dentro
estão cheios de ossadas de mortos e de toda espécie de podridão! Assim, por fora
parecem justos, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e de maldade."
"Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que levantam túmulos aos
profetas e ornamentam os monumentos dos justos, e que dizem: ‘Se existíssemos
no tempo de nossos pais, não teríamos nos juntado a eles para derramar o sangue
dos profetas!’ Dessa forma, acabam de completar a medida de seus pais. Serpentes,
349 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
raça de víboras! Como podem evitar serem condenados ao inferno? Eis por que eu
vou lhes enviar profetas, sábios e escribas, e vocês matarão a uns, crucificarão a
outros e açoitarão outros tantos nas suas sinagogas, e os perseguirão de cidade em
cidade, a fim de que recaia sobre vocês todo o sangue inocente que tem sido
derramado na Terra, desde o sangue de Abel, o justo, até o de Zacarias, filho de
Baraquias, que vocês mataram entre o templo e o altar! Digo a vocês, na verdade,
que tudo isso virá recair sobre esta raça que existe hoje." (Mateus, 23:13-36.)
25. "O Céu e a Terra passarão, mas minhas palavras não passarão." (Mateus, 24:35.)
A PEDRA ANGULAR
27. "A pedra que foi rejeitada pelos edificadores se tornou a principal pedra
angular — vocês não leram isto nas Escrituras? Foi o que o Senhor fez, e nossos
olhos o veem com admiração. Eis por que eu lhes declaro que o reino de Deus lhes
será tirado e será dado a um povo que produzirá os seus frutos. Aquele que se
deixar cair sobre essa pedra se despedaçará e ela esmagará aquele sobre quem ela
cair."
Tendo ouvido essas palavras de Jesus, os príncipes dos sacerdotes
reconheceram que era deles de quem Jesus falava. Quiseram então se apoderar
dele, mas tiveram medo do povo, pois ele era considerado um profeta. (Mateus,
21:42 a 46.)
cerca; e cavando a terra, tinha construído uma torre; depois arrendou essa vinha a
uns vinhateiros e partiu dali para um lugar distante."
"Então, estando próximo o tempo dos frutos, ele enviou seus servos aos
vinhateiros para recolher o fruto da sua vinha. Mas os vinhateiros apoderaram-se
dos servos, bateram num, mataram outro e apedrejaram a mais um. Ele lhes enviou
outros servos, em maior número do que os primeiros, e eles os trataram da mesma
maneira. Por fim, enviou-lhes seu próprio filho, dizendo para si mesmo: ‘Eles terão
algum respeito pelo meu filho’. Mas os vinhateiros, ao verem o filho, disseram entre
si: ‘Aqui está o herdeiro: vamos matá-lo e seremos donos da sua herança’. E com
isso, pegaram-no e o lançaram fora da vinha e o mataram."
"Quando o dono da vinha vier, como tratará esses vinhateiros?" Eles
responderam: "Fará perecer miseravelmente esses malvados e arrendará a vinha a
outros vinhateiros que lhe entreguem os frutos na sua estação." (Mateus, 21:33 a
41.)
30. O pai de família é Deus; a vinha que ele plantou é a lei que ele estabeleceu;
os vinhateiros a quem arrendou a sua vinha são os homens que devem
ensinar e praticar a sua lei; os servos que ele enviou aos arrendatários são os
profetas que estes massacraram; seu filho, enviado por último, é Jesus, a quem
eles igualmente fizeram perecer. Como então o Senhor tratará os seus
mandatários desobedientes da lei? Ele irá tratá-los da forma como foram
tratados os seus enviados e chamará outros arrendatários que lhe prestem
melhores contas de sua propriedade e da condução do seu rebanho.
Assim aconteceu com os escribas, com os príncipes dos sacerdotes e com
os fariseus; assim será, quando ele vier de novo para pedir contas a cada um
do que foi feito da sua doutrina; retirará a autoridade daquele que tiver
abusado dela, pois ele quer que seu campo seja administrado conforme sua
vontade.
Após dezoito séculos, tendo chegado à idade adulta, a humanidade já
está madura para compreender aquilo que o Cristo não desfolhou porque
então — como ele próprio disse — não teria sido compreendido. Ora, a que
resultado chegaram aqueles que durante esse longo período estavam
encarregados de sua educação religiosa? Basta ver a indiferença suceder a fé e
a descrença se erguer em doutrina. Com efeito, em nenhuma outra época o
ceticismo e o espírito de negação estiveram mais espalhados em todas as
classes da sociedade.
352 – Allan Kardec
Mas, se algumas das palavras do Cristo são vistas sob a alegoria, em tudo
o que se refere à regra de conduta, às relações de homem para com o homem
e aos princípios morais — a que ele expressamente condicionou a salvação —
ele é claro, explícito e sem ambiguidade (O Evangelho segundo o
Espiritismo, capítulo XV.)
O que estão fazendo das suas máximas de caridade, de amor e de
tolerância; das recomendações que ele fez a seus apóstolos para converter os
homens pela doçura e pela persuasão; da simplicidade, da humildade, do
desinteresse e de todas as virtudes das quais ele deu o exemplo? Em seu
nome, os homens se lançaram ao anátema e à maldição; estrangularam-se em
nome daquele que disse “Todos os homens são irmãos”. Fizeram um Deus
ciumento, cruel, vingativo e parcial daquele que Jesus proclamou
infinitamente justo, bom e misericordioso; em nome daquele Deus de paz e de
verdade, milhares de vítimas foram sacrificadas nas fogueiras, pelas torturas
e perseguições, muito mais do que os pagãos jamais sacrificaram por falsos
deuses; venderam orações e favores do céu em nome daquele que expulsou os
vendilhões do Templo e que disse a seus discípulos “Deem gratuitamente o
que receberam gratuitamente”.
O que diria o Cristo se vivesse nos dias de hoje entre nós? Se visse seus
representantes a ambicionar as honras, as riquezas, o poder e o luxo dos
príncipes do mundo, ao passo que ele — mais rei do que todos os reis da
Terra — fez sua entrada em Jerusalém montado num jumento? Não teria o
direito de lhes dizer “O que fizeram dos meus ensinamentos, vocês que
incensam o bezerro de ouro, que dão a maior parte das suas preces aos ricos e
uma parte insignificante aos pobres, quando eu lhes disse que os primeiros
serão os últimos e os últimos serão os primeiros no reino dos céus?”. Mas, se
ele não está carnalmente entre nós, está em Espírito e, como o senhor da
parábola, virá pedir contas aos seus vinhateiros do produto da sua vinha,
quando chegar o tempo da colheita.
UM SÓ REBANHO E UM SÓ PASTOR
31. "Tenho ainda outras ovelhas que não são desse redil; é preciso que eu
353 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
também as conduza; elas escutarão a minha voz e não haverá mais que um só
rebanho e um só pastor." (João, 10:16.)
32. Por essas palavras, Jesus claramente anuncia que um dia os homens se
unirão em uma única crença; mas, como essa unificação poderá se efetuar?
Isso parece difícil, considerando as diferenças que existem entre as religiões,
o antagonismo que elas alimentam entre seus respectivos adeptos e a
teimosia em crer na posse exclusiva da verdade. Bem que todas querem a
unidade, mas cada uma se lisonjeia de que essa unidade se faça em seu
proveito e nenhuma admite fazer concessões às suas crenças.
Entretanto, a unidade se fará em religião como tende a se fazer
socialmente, politicamente, comercialmente, pelo abatimento das barreiras
que separam os povos, pela assimilação dos costumes, dos usos, da
linguagem; os povos do mundo inteiro já se confraternizam, como os das
províncias de um mesmo império; pressentimos essa unidade e a desejamos.
Ela se fará pela força das coisas, porque há de se tornar uma necessidade,
para estreitar os laços de fraternidade entre as nações; ela virá pelo
desenvolvimento da razão humana que compreenderá a infantilidade dessas
dissidências; virá pelo progresso das ciências que demonstra cada dia mais os
erros materiais sobre os quais elas se apoiam, e destaca pouco a pouco as
pedras estragadas das suas fiadas. Se a ciência demolir nas religiões aquilo
que é obra dos homens e fruto de sua ignorância das leis da Natureza, ela não
poderá — ao contrário da opinião de alguns — destruir o que é obra de Deus
e eterna verdade; afastando os acessórios, ela prepara as vias da unidade.
Para chegarem a esta unidade, as religiões deverão se encontrar num
terreno neutro, embora comum a todas; para isso, todas terão que fazer
concessões e sacrifícios mais ou menos grandes, conforme à multiplicidade
dos seus dogmas particulares. Mas, em virtude do processo de imutabilidade
que todas professam, a iniciativa das concessões não poderá vir do campo
oficial; em lugar de tomarem o ponto de partida do alto, tomarão de baixo por
iniciativa individual. Desde algum tempo se opera um movimento de
descentralização que tende a adquirir uma força irresistível. O princípio da
imutabilidade, que as religiões têm considerado até hoje como uma égide
354 – Allan Kardec
ADVENTO DE ELIAS
33. Então, seus discípulos lhe perguntaram: "Por que então os escribas dizem ser
preciso que Elias venha antes?" Mas Jesus respondeu: “É verdade que Elias deve vir
355 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
34. Elias já havia voltado na pessoa de João Batista. Seu novo advento é
anunciado de um modo explícito; ora, como ele não pode voltar senão com um
novo corpo, aí temos a consagração formal do princípio da pluralidade das
existências. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IV, item 10.)
ANUNCIAÇÃO DO CONSOLADOR
35. "Se vocês me amam, guardem meus mandamentos e eu pedirei a meu Pai e ele
lhes enviará outro Consolador, a fim de que permaneça eternamente convosco: O
Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê; porém
vocês, vocês o conhecerão, porque permanecerá com vocês e estará em vocês. Mas
o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, ele lhes
ensinará todas as coisas e fará com que relembrem de tudo o que lhes tenho
dito." (João, 14:15 a 17 e 26 – O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. VI.)
36. "Entretanto, eu lhes digo a verdade: Convém a vocês que eu vá, pois se eu não
for, o Consolador não virá até vocês; então eu vou e o enviarei a vocês; e quando ele
tiver vindo, convencerá o mundo no que diz respeito ao pecado, à justiça e ao
julgamento: no que diz respeito ao pecado, por não terem acreditado em mim; no
que diz respeito à justiça, porque eu vou para meu Pai e vocês não mais me verão;
no que diz respeito ao julgamento, porque o príncipe deste mundo já foi julgado."
"Tenho ainda muitas coisas a lhes dizer, mas vocês não podem suportá-
las agora."
“Quando esse Espírito de Verdade tiver chegado, ele lhes ensinará toda a
verdade, porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tenha escutado e
lhes anunciará as coisas que estão por vir."
"Ele me glorificará, porque receberá daquilo que está em mim e ele o
anunciará a vocês." (João, 16:7 a 14.)
37. Essa previsão é sem contestação uma das mais importantes do ponto de
vista religioso, pois ela constata da maneira menos equivocada que Jesus não
disse tudo o que tinha a dizer, porque eles não o teriam compreendido, nem
mesmo seus apóstolos, já que era a eles a quem Jesus se dirigia. Se ele lhes
356 – Allan Kardec
38. Quando esse novo revelador deve vir? É bem evidente que se na época em
que Jesus falava os homens não estavam em condições de compreender as
coisas que lhe restavam a dizer, não seria em alguns poucos anos que eles
poderiam adquirir as luzes necessárias para tal. Para a compreensão de certas
partes do Evangelho — exceção feita aos preceitos morais — faziam-se
necessários conhecimentos que só o progresso das ciências permitiria e que
tinham de ser obra do tempo e de várias gerações. Portanto, se o novo
Messias tivesse vindo pouco tempo depois do Cristo, teria encontrado o
terreno ainda pouco propício e não teria feito mais do que ele. Ora, desde o
Cristo até nossos dias, não se produziu nenhuma grande revelação que tenha
completado o Evangelho e que tenha elucidado suas partes obscuras —
indício certo de que o Enviado ainda não havia aparecido.
39. Qual deve ser esse Enviado? Ao dizer “Pedirei a meu Pai e ele lhes enviará
outro Consolador”, Jesus claramente indica que esse não é ele, do contrário
diria “Eu voltarei para completar o que lhes tenho ensinado”. Depois
357 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
acrescentou: “A fim de que ele fique eternamente com vocês e ele estará em
vocês”. Essa afirmação não poderia referir-se a uma individualidade
encarnada, que não poderia demorar-se eternamente conosco, nem ainda
menos estar em nós, mas compreendemos muito bem que seja uma doutrina
que, com efeito, quando a tivermos assimilado, poderá estar eternamente em
nós. Segundo o pensamento de Jesus, o Consolador é de fato a personificação
de uma doutrina soberanamente consoladora, cujo inspirador há de ser o
Espírito de Verdade.
40. Como ficou demonstrado (cap. I, item 30) o Espiritismo preenche todas as
condições do Consolador prometido por Jesus. Ele não é uma doutrina
individual, uma concepção humana; ninguém pode se dizer ser o criador dele.
Ele é fruto do ensino coletivo dos Espíritos presidido pelo Espírito de
Verdade. Ele não suprime nada do Evangelho: ele o completa e o elucida; com
a ajuda das novas leis que ele revela, unidas com as da ciência, ele faz
inteligível o que era incompreensível e admite a possibilidade daquilo que a
descrença considerava inadmissível. Ele teve seus precursores e profetas, que
pressentiram sua vinda. Pela sua força moralizadora, ele prepara o reino do
bem na Terra.
A doutrina de Moisés — que era incompleta — ficou restrita ao povo
judeu; a de Jesus — mais completa — se expandiu por toda a Terra pelo
Cristianismo, mas não converteu todo o mundo; o Espiritismo — que é ainda
mais completo e que tem raízes em todas as crenças — este converterá a
humanidade.198
41. Dizendo a seus apóstolos “Outro virá mais tarde e lhes ensinará o que não
posso ensinar agora”, Jesus proclamava com isso mesmo a necessidade da
reencarnação. Como aqueles homens poderiam se beneficiar do ensino mais
completo que seria ministrado posteriormente? Como estariam aptos a
199 Pentecostes: festa dos judeus em memória do dia em que Moisés recebeu de Deus as tábuas
da lei (os Dez Mandamentos), cinquenta dias depois da fuga dos hebreus da escravidão no Egito;
para os cristãos, data que marca os cinquenta dias após o domingo da Páscoa de ressurreição,
sendo esta versão a que Allan Kardec aqui aponta, fazendo menção às “línguas de fogo” que
caíram sobre os discípulos enquanto estavam reunidos nesta ocasião. – N. T.
359 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
Filho do homem há de vir na glória de seu Pai com seus anjos, e então
recompensará a cada um segundo suas obras."
"Na verdade, digo a vocês que alguns daqueles que aqui se encontram não
sofrerão a morte sem que tenham visto o Filho do homem vir no seu reinado."
(Mateus, 16:24 a 28.)
45. Jesus anuncia seu segundo advento, mas não diz que voltará à Terra com
um corpo carnal, nem que o Consolador será personificado nele. Apresenta-
se como devendo vir em Espírito, na glória de seu Pai, para julgar o mérito e o
demérito, e recompensar a cada um segundo as suas obras, quando o tempo
se cumprir.
Estas palavras “alguns daqueles que aqui se encontram não sofrerão a
morte sem que tenham visto o Filho do homem vir no seu reinado” parecem
uma contradição, pois é certo que ele não veio durante a vida de nenhum
daqueles que estavam presentes. Entretanto Jesus não podia se enganar numa
previsão daquela natureza e, sobretudo, com relação a uma coisa
contemporânea e que lhe dizia respeito pessoalmente; primeiro, temos que
indagar se suas palavras foram sempre reproduzidas fielmente. É de
duvidarmos, desde que se considere que ele nada escreveu; que elas só foram
registradas depois de sua morte; e quando vemos o mesmo discurso quase
sempre reproduzido em termos diferentes em cada um dos evangelistas — o
que é uma prova evidente de que aquelas não eram as expressões textuais de
Jesus. Além disso, é provável que o significado tenha sido alterado ao passar
pelas traduções sucessivas.
Por outro lado, é certo que se Jesus tivesse dito tudo o que poderia dizer,
ele teria se expressado sobre todas as coisas de modo claro e preciso, sem dar
lugar a qualquer equívoco — conforme o fez com relação aos princípios de
360 – Allan Kardec
moral — ao passo que foi obrigado a velar seu pensamento acerca dos
assuntos que não julgou apropriado aprofundar. Convencidos de que a
geração presente devia ser testemunha do que ele anunciava, os discípulos
tiveram que interpretar o pensamento de Jesus de acordo com suas ideias;
consequentemente, eles puderam redigi-las do ponto de vista do presente de
maneira mais absoluta do que talvez ele próprio o teria feito. Seja como for, o
fato é que as coisas não se passaram como eles imaginaram.
46. Um ponto capital que Jesus não pôde desenvolver — porque os homens de
seu tempo não estavam suficientemente preparados para essa ordem de
ideias e suas consequências, embora ele tenha posto o princípio, como o fez
com todas as coisas — é o da grande e importante lei de reencarnação. Essa
lei, estudada e posta em evidência nos dias atuais pelo Espiritismo, é a chave
para muitas passagens do Evangelho que, sem ela, parecem contrassensos.
É por meio dessa lei que podemos encontrar a explicação racional das
palavras acima, em as admitindo textualmente. Uma vez que elas não podem
ser aplicadas às pessoas dos apóstolos, é evidente que elas se referem ao
reino futuro do Cristo, isto é, ao tempo em que a sua doutrina, mais bem
compreendida, será a lei universal. Dizendo que alguns daqueles que
estavam presentes veriam o seu retorno, isso só poderia ser entendido no
sentido de que eles reviveriam nessa época. Mas os judeus imaginavam que
eles iriam ver tudo o que Jesus anunciava, e tomavam suas alegóricas
literalmente.
Aliás, algumas de suas predições se realizaram no seu tempo, tais como a
ruína de Jerusalém, as desgraças que se seguiram àquela ruína e a dispersão
dos judeus; mas Jesus projetava sua visão mais adiante, e ao falar do presente,
ele constantemente fazia alusão ao futuro.
SINAIS PRECURSORES
47. “Vocês também ouvirão falar de guerra e de rumores de guerra; mas cuidem
bem para não se perturbarem, pois é preciso que essas coisas aconteçam; mas isso
ainda não será o fim, porque vocês verão povo contra povo e reino contra reino; e
361 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
haverá pestes, fomes e terramotos em diversos lugares; todas essas coisas serão
apenas o começo das dores.” (Mateus, 24:6 a 8.)
48. “Então o irmão entregará o irmão à morte, e o pai entregará o filho; os filhos se
levantarão contra seus pais e suas mães e os levarão à morte. E vocês serão
odiados por todo o mundo por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até
ao fim será salvo.” (Marcos, 13:12 a 13.)
49. “Quando virem que a abominação da desolação, que foi predita pelo profeta
Daniel, estiver no lugar santo (que aquele que lê ouça bem o que lê); então, os que
estiverem na Judeia, retirem-se para as montanhas200; aquele que estiver no alto do
telhado, não desça para pegar nada de sua casa; e aquele que estiver no campo, não
volte para apanhar suas roupas. Mas ai das mulheres que estiverem grávidas ou
amamentando nesses dias. Peçam a Deus que a sua fuga não chegue durante o
inverno, nem no dia de sábado, pois a aflição nesses tempos será tão grande, como
ainda não houve igual desde o começo do mundo até o presente, e como nunca
haverá. E se esses dias não fossem abreviados, nenhum homem teria se salvado;
mas esses dias serão abreviados em favor dos eleitos.” (Mateus, 24:15 a 22.)
50. “Logo depois desses dias de aflição, o Sol se obscurecerá e a Lua não dará mais
sua luz; as estrelas cairão do céu e as potências dos céus serão abaladas.
“Então, o sinal do Filho do homem aparecerá no céu e todos os povos da
Terra estarão em prantos e em gemidos; e eles verão o Filho do homem que virá
sobre as nuvens do céu com uma grande majestade.
“Ele enviará seus anjos, que farão ouvir a voz retumbante de suas trombetas,
e que reunirão seus eleitos dos quatro cantos do mundo, de uma extremidade a
outra do céu.
“Aprendam uma comparação tirada da figueira: quando seus ramos já estão
verdes e brotam folhas, vocês sabem que o verão está próximo. Do mesmo modo
quando virem todas essas coisas, saibam que o Filho do homem está perto, e que
ele está quase como se estivesse à porta.
“Digo a vocês de verdade, que essa raça não passará sem que todas essas
coisas tenham se cumprido." (Mateus, 24:29 a 34.)
“E acontecerá na vinda do Filho do homem o que aconteceu ao tempo de
200 Essa expressão a abominação da desolação não só não faz sentido, como se presta ao
ridículo. A tradução de Ostervald diz: “A abominação que causa a desolação”, o que é muito
diferente; o significado torna-se então perfeitamente claro, pois se entende que as abominações
devem trazer desolação como punição. Quando, diz Jesus, a abominação vier no lugar santo, a
desolação também ali virá, e será um sinal de que os tempos estão próximos.
Nota da Tradução: a menção feita nesta nota de Kardec refere-se a Jean-Frédéric
Osterwald (1663-1747), pastor protestante natural de Neuchâtel, Suíça, que completou sua
tradução da Bíblia para o francês em 1724.
362 – Allan Kardec
Moisés201, pois como nos últimos tempos antes do dilúvio, os homens comiam e
bebiam, casavam-se e casavam seus filhos, até ao dia em que Noé entrou na arca; e
assim como eles não conheceram o momento do dilúvio, senão quando este
sobreveio e arrebatou todo mundo, assim também será no advento do Filho do
homem.” (Mateus, 24:37 e 38.)
51. “Quanto a esse dia ou a essa hora, ninguém o sabe, nem os anjos que estão no
céu, nem o Filho, mas somente o Pai.” (Marcos, 13:32.)
52. “Na verdade, na verdade eu lhes digo: vocês chorarão e gemerão, e o mundo se
alegrará; vocês estarão tristes, porém sua tristeza se mudará para alegria. Uma
mulher está em dor quando dá à luz, porque é chegada a sua hora; mas depois que
ela dá à luz um filho, não mais se lembra de todos os seus males, pela alegria que
sente de haver posto no mundo um homem. É assim que agora estão em tristeza;
mas eu os verei de novo e o seu coração rejubilará e ninguém tirará a alegria de
vocês.” (João, 16:20 a 22.)
54. Este quadro do fim dos tempos é evidentemente alegórico, como a maior
parte dos quadros que Jesus figurou. Pela sua energia, as imagens que ele
contém são de natureza a impressionar inteligências ainda rudes. Para tocar
aquelas imaginações pouco sutis, eram necessárias pinturas vigorosas, de
cores fortes. Jesus se endereçava principalmente ao povo, aos homens menos
esclarecidos, incapazes de compreender as abstrações metafísicas e de captar
a delicadeza das formas. Para chegar ao coração deles, carecia falar aos olhos
com o auxílio de sinais materiais, e aos ouvidos pelo vigor da linguagem.
Por uma consequência natural daquela disposição de espírito, segundo a
crença de então, a potência suprema não poderia manifestar-se a não ser por
coisas extraordinárias, sobrenaturais; quanto mais fossem impossíveis, mais
201 Pelo contexto, é de se supor ter havido um equívoco aqui quanto ao personagem citado,
Moisés, que nesta tradução conservamos em acordo com o texto original de Allan Kardec, e que
provavelmente deveria se referir a Noé, que inclusive é citado no mesmo parágrafo. Por outro
lado, não considerando o suposto equívoco, a menção a Moisés pode ter relação com o fato de a
ele ser atribuída a autoria do livro Gênesis, que narra a célebre história da arca de Noé. — N. T.
363 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
57. Quando se realizarão essas coisas? “Ninguém o sabe, nem mesmo o Filho”
— disse Jesus. Porém, quando o momento chegar, os homens serão advertidos
disso por meio de sinais precursores. Esses indícios não estarão nem no Sol
nem nas estrelas, mas no estado social e nos fenômenos mais morais do que
físicos, e que em parte podemos deduzir das suas referências.
É muito certo que essa mudança não poderia se dar durante a vida dos
apóstolos, pois do contrário Jesus não poderia ignorar o seu momento, e aliás,
tal transformação não poderia se cumprir em apenas alguns anos. Não
obstante, ele lhes fala como se eles devessem ser testemunhas daquelas
coisas; é que, de fato, eles poderão reviver a essa época e eles mesmos
poderão trabalhar para a transformação. Às vezes ele fala do destino próximo
de Jerusalém e noutras vezes ele toma esse fato como comparação para o
futuro.
58. Quando Jesus diz: “Quando o Evangelho for pregado por toda a Terra,
então é que o fim chegará”, será que é o fim do mundo que ele anuncia com a
sua a sua nova vinda?
Não é racional supor que Deus destrua o mundo exatamente quando o
mundo entrará no caminho do progresso moral pela prática dos ensinos
evangélicos; aliás, nada nas palavras do Cristo indica uma destruição
universal que, em tais condições, não se justificaria.
Como a prática geral do Evangelho deve trazer um melhoramento no
estado moral dos homens, trará por isso mesmo o reinado do bem e causará a
queda do reino do mal. É, pois, o fim do velho mundo, do mundo governado
pelos preconceitos, pelo orgulho, egoísmo, fanatismo, pela incredulidade, pela
ambição e por todas as más paixões a que o Cristo fazia alusão ao dizer:
“Quando o Evangelho for pregado por toda a Terra, então é que o fim
chegará”; mas esse fim trará uma luta, e é dessa luta que virão os males que
ele prevê.
365 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
59. Nos últimos tempos, diz o Senhor, eu espalharei do meu espírito por sobre toda
a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; os jovens terão visões e os
anciões terão sonhos. Nesses dias, espalharei do meu espírito sobre os meus
servidores e sobre as minhas servidoras e eles profetizarão. (Atos dos Apóstolos,
2:17 a 18. – Joel, 2:28 e 29.)
JUÍZO FINAL
62. “Ora, quando o Filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos
os anjos, ele se sentará no trono de sua glória; e estando todas as nações reunidas à
sua frente, ele separará uns dos outros, como um pastor separa as ovelhas dos
bodes, e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. Então, o Rei
dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, vocês que foram abençoados pelo
meu Pai’, etc.” (Mateus, 25:31 a 46 – O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XV).
63. Como o bem deve reinar na Terra, é necessário que dela sejam excluídos
os Espíritos endurecidos no mal e que poderiam lhe provocar perturbações.
Deus permitiu que eles aí permanecessem o tempo necessário para o seu
melhoramento; mas, tendo chegado o momento em que o globo deve se elevar
na hierarquia dos mundos, pelo progresso moral de seus habitantes, essa
estadia — como Espíritos e como Encarnados — será interditada àqueles que
não tiverem aproveitado as instruções que aí puderam receber. Eles serão
exilados em mundos inferiores, como certa vez foram exilados na Terra
aqueles da raça adâmica, uma vez que foram substituídos por Espíritos
melhores. Essa separação — que será presidida por Jesus — é aquela que está
figurada por estas palavras do juízo final: “Os bons passarão à minha direita e
os maus à minha esquerda.” (Cap. XI, itens 31 e seguintes.)
64. A doutrina de um julgamento final, único e universal, pondo fim para todo
o sempre à humanidade é repugnada pela razão no sentido de que ela
implicaria na inatividade de Deus durante a eternidade que antecedeu à
criação da Terra e durante a eternidade que se seguirá à sua destruição.
Perguntamos então que utilidade teriam o Sol, a Lua e as estrelas que —
segundo a Gênesis — foram feitos para clarear o mundo? Causa espanto que
uma obra assim tão imensa tenha sido produzida para tão pouco tempo e a
benefício de seres que, em sua maioria, foram destinados de antemão aos
suplícios eternos.
367 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
Que conservem essas crenças aqueles cuja razão se contentam com elas,
é seu direito, e ninguém aponta aí erros; mas que não achem ruim também
que nem todo mundo esteja de acordo com eles!
67. Conforme ficou explicado anteriormente (item 63), pela via da emigração,
o julgamento é racional e se fundamenta na mais rigorosa justiça, já que deixa
eternamente ao Espírito o seu livre-arbítrio; que não constitui privilégio para
ninguém; que Deus concede a todas as suas criaturas — sem exceção — a
mesma capacidade para progredir; que o próprio aniquilamento de um
mundo, causando a destruição do corpo, não acarretaria nenhuma
interrupção à marcha progressiva do Espírito. Estas são as consequências da
pluralidade dos mundos e da pluralidade das existências.
Segundo essa interpretação, a qualificação de juízo final não é exata,
pois os Espíritos passam por semelhantes julgamentos a cada renovação dos
mundos onde habitam, até que tenham alcançado certo grau de perfeição.
Portanto, não há juízo final propriamente dito, mas há julgamentos gerais
em todas as épocas de renovação parcial ou total da população dos mundos,
por efeito das quais se operam as grandes emigrações e imigrações de
Espíritos.
369 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XVIII
Os tempos chegaram
SINAIS DOS TEMPOS – A NOVA GERAÇÃO
chegaram.
6. Neste tempo aqui, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação
limitada a certa região, nem um povo ou a uma raça; é um movimento
universal que se efetua no sentido do progresso moral. Uma nova ordem de
coisas tende a se estabelecer, e até os homens que mais se opõem a esse
progresso trabalham para ela, mesmo sem consciência disso; a geração futura
— desembaraçada da escória do velho mundo e formada de elementos mais
depurados — se achará motivada por ideias e sentimentos totalmente
diferentes que a geração atual, que se vai a passos de gigante. O velho mundo
estará morto e ficará só na História, como ocorre hoje com os tempos da
Idade Média, com seus costumes bárbaros e suas crenças supersticiosas.
Aliás, cada um sabe quanto a ordem atual de coisas ainda deixa a
desejar; de qualquer modo, depois de termos esgotado todo o bem-estar
material que é fruto da inteligência, conseguimos compreender que o
complemento desse bem-estar somente não pode estar senão no
desenvolvimento moral. Quanto mais se avança, mais se sente o que falta, sem
que, entretanto, possamos ainda o definir claramente: isso é efeito do
trabalho íntimo que se opera em prol da regeneração; temos desejos,
aspirações que são como que o pressentimento de um estado melhor.
7. Mas uma mudança tão radical como a que está sendo elaborada não pode se
produzir sem comoções; há luta inevitável entre as ideias. Desse conflito
forçosamente nascerão perturbações temporárias até que o terreno seja
aplanado e o equilíbrio restabelecido. Com efeito, é da luta das ideias que
surgirão os graves eventos anunciados, e não de cataclismos ou catástrofes
puramente materiais. Os cataclismos gerais foram a consequência do estado
de formação da Terra: hoje, não são mais as entranhas do planeta que se
agitam: são as da humanidade.
8. Se a terra já não tem que temer os cataclismos gerais, nem por isso ela
deixa de estar sujeita às revoluções periódicas, cujas causas são explicadas —
do ponto de vista científico — pelas instruções seguintes fornecidas por dois
373 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
eminentes espíritos:202
“Cada corpo celeste, além das leis simples que presidem à divisão dos
dias e das noites, das estações etc., experimenta as revoluções que demandam
milhares de séculos para sua realização completa, mas que, como revoluções
mais breves, passam por todos os períodos, desde o nascimento até um
máximo de efeito, após o qual há decrescimento até o último limite, para em
seguida recomeçar o percurso das mesmas fases.
“O homem não compreende mais do que as fases de uma duração
relativamente e das quais ele pode constatar a periodicidade; mas há algumas
que abrangem longas gerações de seres, e até sucessões de raças, revoluções
essas cujos efeitos conseguintemente têm para as aparências de novidade e
de espontaneidade, ao passo que, se seu olhar pudesse se projetar para
alguns milhares de séculos atrás, ele veria, entre aqueles mesmos efeitos e
suas causas uma correlação de que ele nem suspeita. Esses períodos que, pela
sua extensão relativa, confundem a imaginação dos humanos, não são,
contudo, mais do que instantes na duração eterna.
“Num mesmo sistema planetário, todos os corpos que dele dependem
reagem uns sobre os outros; todas as influências físicas são nele solidárias e,
dos efeitos que vocês designam pelo nome de grandes perturbações, não há
um só que não seja consequência da componente das influências de todo esse
sistema.
“Vou mais longe: digo que os sistemas planetários reagem uns sobre os
outros, na razão da proximidade ou do distanciamento resultantes dos seus
movimentos de translação através das miríades de sistemas que compõem a
nossa nebulosa. Eu vou mais longe ainda: digo que a nossa nebulosa, que é
um como arquipélago na imensidade, tendo também seu movimento de
translação através das miríades de nebulosas, sofre a influência das
nebulosas de que ela se aproxima.
“Assim as nebulosas reagem sobre as nebulosas, os sistemas reagem
sobre os sistemas, como os planetas reagem sobre os planetas, como os
elementos de cada planeta reagem uns sobre os outros e assim, de elemento
em elemento, até o átomo; daí as revoluções locais ou gerais em cada mundo,
que parecem perturbações apenas porque a brevidade da vida não permite
que se veja mais do que os efeitos parciais.
“A matéria orgânica não poderia escapar dessas influências; as
perturbações que ela sofre podem então alterar o estado físico dos seres
vivos e determinar algumas dessas enfermidades que atacam de uma
maneira geral as plantas, os animais e os homens; essas enfermidades, como
todos os flagelos, são para a inteligência humana um estimulante que, por
força da necessidade, a arrasta a procurar os meios de lhes combater e à
descoberta das leis da natureza.
“Mas, por sua vez, a matéria orgânica reage sobre o Espírito; este, pelo
seu contato e sua ligação íntima com os elementos materiais, também sofre as
influências que modificam suas disposições, sem, no entanto, privar o seu
livre-arbítrio, sobre-excitando ou atenuando sua atividade, e que, por isso
mesmo, contribuem para o seu desenvolvimento. A efervescência que às
vezes se manifesta em toda uma população, entre os homens de uma mesma
raça, não é uma coisa fortuita nem o resultado de um capricho; ela tem a sua
causa nas leis da natureza. Essa efervescência — inconsciente a princípio,
não passando de um vago desejo, uma de aspiração indefinida por alguma
coisa melhor, uma necessidade de mudança — se traduz por uma surda
agitação, depois por atos que conduzem as revoluções sociais, as quais —
acreditem! — também têm sua periodicidade, como as revoluções físicas, pois
que tudo se encadeia. Se a visão espiritual não fosse circunscrita pelo véu
material, vocês veriam as correntes fluídicas que, como milhares de fios
condutores, conectam as coisas do mundo espiritual e as do mundo material.
“Quando lhe dizem que a humanidade chegou a um período de
transformação e que a Terra deve se elevar na hierarquia dos mundos, não
vejam nada de místico nessas palavras, mas ao contrário, vejam o
cumprimento de uma das grandes leis fatais do Universo, contra as quais toda
a má vontade humana se quebra.”
Arago
“Uma coisa que lhes parecerá estranha, mas que nem por isso deixa de
ser uma rigorosa verdade, é que o mundo dos Espíritos que lhes rodeia sofre
o contrachoque de todas as comoções que abalam o mundo dos encarnados;
digo mesmo que aquele toma parte ativa nessas comoções. Isso não tem nada
de surpreendente para quem sabe que os Espíritos formam um só corpo com
a humanidade; que eles saem dela e a ela retornam; então é natural que eles
se interessem pelos movimentos que se operam entre os homens. Portanto,
fiquem certos de que quando uma revolução social se produz na terra, ela
abala igualmente o mundo invisível; todas as boas e más paixões são lá
superexcitadas como são entre vós; uma indizível efervescência reina entre
os Espíritos que ainda fazem parte do vosso mundo e que a ele aguardam o
momento de regressar.
“À agitação dos encarnados e desencarnados às vezes — e muito
frequentemente mesmo, já que tudo se encadeia na natureza — se juntam as
perturbações dos elementos físicos; ocorre então, por algum tempo, uma
verdadeira confusão geral, mas que passa como um furacão, após o qual o céu
volta a ficar sereno, e a humanidade — reconstituída sobre novas bases e
imbuída de novas ideias — percorre uma nova etapa de progresso.
“É no período que se inicia que veremos o espiritismo florescer e dar
seus frutos. Pois, é mais para o futuro do que para o presente que vocês
trabalham; porém, era necessário que esses trabalhos fossem elaborados
antes, porque eles preparam os caminhos da regeneração pela unificação e
racionalidade das crenças. Felizes aqueles que deles se beneficiam desde já;
isso será para eles bastante ganho e dores poupadas.”
Doutor Barry
fora das leis comuns. Essas gerações veem uma causa sobrenatural,
maravilhosa, miraculosa no que, na realidade, não é mais do que o
cumprimento das leis da natureza.
Pelo encadeamento e a solidariedade das causas e dos efeitos, se os
períodos de renovação moral da humanidade coincidem — como tudo leva a
crer — com as revoluções físicas do globo, esses períodos podem ser
acompanhados ou precedidos de fenômenos naturais, inusitados para quem
não está habituado com eles, fenômenos de meteoros que parecem estranhos,
de um aumento e de uma intensidade incomum de pragas destrutivas. Esses
flagelos não são nem uma causa nem presságios sobrenaturais, mas apenas
uma sequência do movimento geral que se opera no mundo físico e no mundo
moral.
Anunciando a época de renovação que havia de abrir para a humanidade
e marcar o fim do velho mundo, Jesus pode então dizer que ela seria
sinalizada por fenômenos extraordinários, terramotos, flagelos diversos,
sinais no céu que não são mais do que meteoros, sem sair das leis naturais;
mas o homem comum e ignorante viu nessas palavras o anúncio de fatos
miraculosos.203
203 A terrível epidemia de 1866 a 1868 que dizimou a população da Ilha Maurício, foi precedida
de uma tão extraordinária e tão abundante chuva de estrelas cadentes, em novembro de 1866,
que os habitantes daquela ilha ficaram aterrorizados. Foi a partir desse momento que a doença
que já durava alguns meses de uma forma muito benigna, transformou-se em um verdadeiro
flagelo devastador. Foi de fato um sinal no céu e talvez seja nesse sentido que se deva entender
estrelas caindo do céu, de que fala o Evangelho, como um dos sinais dos tempos. (Detalhes
sobre a epidemia da Ilha Maurício na Revista Espírita, julho de 1867, e novembro de 1868.)
377 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
idade viril; o passado já não pode satisfazer às suas novas aspirações e às suas
novas necessidades; ela não pode mais ser conduzida pelos mesmos modos;
não mais se deixa levar por ilusões e por seduções: sua razão amadurecida
requer alimentos mais substanciais. O presente é bastante efêmero; ela sente
que a sua destinação é mais vasta e que a vida corpórea é muito restrita para
contê-lo inteiramente; por isso ela mergulha seus olhares no passado e no
futuro a fim de aí descobrir o mistério da sua existência e aí adquirir uma
certeza consoladora.
E é no momento em que ela se encontra muito apertada na esfera
material, em que a vida intelectual transborda e o sentimento da
espiritualidade se desabrocha, que os homens que se dizem filósofos esperam
preencher o vazio através das doutrinas do nada e do materialismo! Estranha
aberração! Esses mesmos homens, que pretendem impelir a humanidade de
avançar, esforçam-se por limitá-la no estreito círculo da matéria, de onde ela
deseja sair; eles lhe encobrem o aspecto da vida infinita e lhe dizem,
apontando para o túmulo: Nec plus ultra! 204
204 Nec plus ultra: expressão em latim equivalente a “nada mais além”. – N. T.
379 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
que é hoje; e: daquilo que o homem faz para si mesmo hoje, pode concluir o
que ele será um dia.
17. A fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social; mas não há
fraternidade real, sólida e efetiva se ela não for assentada sobre uma base
inabalável; essa base é a fé; não a fé nesses ou naqueles dogmas particulares
que mudam com os tempos e com os povos e que mutuamente se apedrejam,
pois amaldiçoando uns aos outros elas alimentam o antagonismo; mas sim a
380 – Allan Kardec
fé nos princípios fundamentais que todo mundo pode aceitar: Deus, a alma, o
futuro, O PROGRESSO INDIVIDUAL SEM FIM, A PERPETUIDADE DAS RELAÇÕES ENTRE
OS SERES. Quando todos os homens estiverem convictos de que Deus é o
mesmo para todos, que esse Deus — soberanamente justo e bom — não pode
querer nada de injusto, e que o mal vem dos homens e não de Deus, então
todos se considerarão filhos do mesmo Pai e se darão as mãos.
É essa fé que o Espiritismo oferece e que de agora em diante será o eixo
em torno do qual o gênero humano se moverá, quaisquer que sejam seus
meios de adoração e suas crenças particulares.
18. O progresso intelectual realizado até nossos dias nas mais vastas
proporções é um grande passo e marca a primeira fase da humanidade, mas
sozinho ele é impotente para regenerá-la; enquanto o homem for dominado
pelo orgulho e pelo egoísmo, ele utilizará sua inteligência e os seus
conhecimentos em benefício das suas paixões e dos seus interesses pessoais;
eis por que ele aplica seus conhecimentos para o aperfeiçoamento dos meios
de prejudicar os seus semelhantes e de destruí-los.
21. Essa fase já se revela por sinais inequívocos, pelas tentativas de reformas
úteis através de ideias robustas e generosas que se concretizam hoje e que
começam a encontrar eco. Assim é que vemos ser fundada uma imensidade de
instituições protetoras, civilizadoras e libertadoras, sob a impulsão e a
iniciativa de homens evidentemente predestinados à obra da regeneração;
que as leis penais a cada dia vão sendo impregnadas de um sentimento mais
humano. Os preconceitos de raça se enfraquecem, os povos começam a se
verem membros de uma grande família; pela uniformidade e facilidade dos
meios de transação, eles suprimem as barreiras que os separavam; de todas
as partes do mundo os povos se reúnem em comícios universais para os
torneios pacíficos da inteligência.
Porém, falta a essas reformas uma base para se desenvolverem,
completarem-se e se consolidarem; falta uma predisposição moral mais
generalizada para frutificar e ser aceita pelas massas. Pelo menos, isso tudo é
um sinal característico do tempo, o prelúdio daquilo que se efetuará em uma
escala mais larga, à medida que o terreno se torne mais propício.
26. O número dos atrasados ainda é grande, sem dúvidas, mas o que eles
podem fazer contra a maré que se agiganta senão lhe atirar algumas pedras?
Essa maré é a geração que se levanta, enquanto os atrasados desaparecem
junto com a geração que segue a cada dia a passos largos. Até lá, eles
defenderão o terreno palmo a palmo; portanto, há uma luta inevitável, mas
uma luta desigual, porque é a do passado decrépito caindo em frangalhos
contra o futuro juvenil; é a luta da estagnação contra o progresso; da criatura
contra a vontade de Deus, uma vez que os tempos determinados por ele já
chegaram.
A NOVA GERAÇÃO
27. Para que os homens sejam felizes na Terra, é preciso que ela seja povoada
somente por bons Espíritos — encarnados e desencarnados — que só
queiram o bem. Tendo chegado esse tempo, uma grande emigração se realiza
nesse momento entre aqueles que a habitam; os que praticam o mal pelo mal,
e a quem o sentimento do bem não toca, já não sendo mais dignos da terra
transformada, estes serão excluídos dela, porque novamente eles trariam
perturbação e confusão a ela e seriam um obstáculo ao progresso. Eles irão
expiar o seu endurecimento — uns em mundos inferiores, outros em raças
terrestres ainda atrasadas, que seriam equivalentes a mundos inferiores, para
onde eles levarão os conhecimentos adquiridos e que eles teriam por missão
384 – Allan Kardec
fazê-los avançar. Eles serão substituídos por Espíritos melhores que farão
reinarem eles a justiça, a paz e a fraternidade.
No dizer dos Espíritos, a Terra não deverá ser transformada por um
cataclismo que aniquile subitamente uma geração. A atual geração
desaparecerá gradualmente e a nova lhe sucederá do mesmo modo, sem que
haja nenhuma mudança na ordem natural das coisas.
Tudo se passará então exteriormente como de costume, com a única
diferença — mas uma diferença capital — que uma parte dos Espíritos que
encarnavam na Terra não mais encarnará nela. Em cada criança que nascer,
em vez de um Espírito atrasado e inclinado ao mal, quem nela irá encarnar
será um Espírito mais evoluído e propenso ao bem.
Não se trata, portanto, de uma nova geração corpórea, mas sim de uma
nova geração de Espíritos; é nesse sentido, sem dúvidas, que Jesus entendia
quando dizia: “Eu lhes digo, em verdade, que essa geração não passará sem
que esses fatos sejam cumpridos.” Assim, aqueles que esperam ver a
transformação se processar por efeitos sobrenaturais e fantásticos ficarão
decepcionados.
29. Por dessa emigração de Espíritos, não devemos entender que todos os
Espíritos atrasados serão expulsos da Terra e abandonados nos mundos
inferiores. Muitos, ao contrário, aqui retornarão, pois vários deles cederam ao
arrastamento das circunstâncias e do exemplo; nesses, a casca era pior do que
o interior. Uma vez retirados da influência da matéria e dos preconceitos do
mundo corporal, a maioria enxergaria as coisas de uma maneira inteiramente
diferente daquela como quando estavam vivos, assim como temos numerosos
exemplos deles. Para isso, eles são ajudados pelos Espíritos benévolos que se
interessam por eles e se apressam em lhes esclarecer e lhes mostrar o falso
caminho que eles percorriam. Nós mesmos, pelas nossas preces e exortações,
podemos contribuir para o melhoramento deles, uma vez que há perpétua
solidariedade entre os mortos e os vivos.
A maneira como se opera a transformação é bastante simples, e como se
vê, ela é toda de ordem moral e não se afasta em nada das leis da Natureza.
32. As grandes partidas coletivas não têm por único objetivo efetivar as
saídas, mas o objetivo de transformar mais rapidamente o caráter do povo,
livrando-o das más influências, e de dar maior peso às ideias novas.
Por estarem muitos maduros para essa transformação — apesar de suas
imperfeições — é que muitos partem, a fim de se fortalecerem em uma fonte
mais pura. Enquanto permanecessem no mesmo ambiente e sob as mesmas
influências, eles persistiriam nas suas opiniões e nas suas maneiras de ver as
coisas. Uma estadia no mundo dos Espíritos bastará para abrir os seus olhos,
porque eles enxergam ali o que não podiam ver na Terra. Então o incrédulo, o
fanático e o absolutista poderão voltar com ideias inatas de fé, tolerância e
liberdade. Ao regressarem, eles encontrarão as coisas modificadas e
experimentarão a influência do novo meio onde tiverem nascido. Em vez de
387 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
FIM
389 – A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo