O Evangelho Segundo o Espiritismo Luzespirita

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2 – Allan Kardec

O Evangelho segundo o Espiritismo


Allan Kardec (1804-1869)

Título original em francês:


L’Évangile selon le Spiritisme

Originalmente publicada em abril de 1864


Paris, França

Tradução: Ery Lopes


com base na 4ª edição, 1868 - Ebook

Versão digital: 1.1


Atualizado em 16 de outubro., 2024
São Paulo, Brasil

Não nos importamos com os direitos autorais.


Esta tradução pode ser copiada e reproduzida, impressa e até comercializada,
sem prévia autorização ou mesmo sem citar a fonte.
Apenas pedimos que seja mantida a fidelidade do texto.

Distribuição gratuita:
Portal Luz Espírita
3 – O Evangelho segundo o Espiritismo

O EVANGELHO
SEGUNDO O
ESPIRITISMO

Allan Kardec
Tradução:
Ery Lopes

Não nos importamos com os direitos autorais.


Esta tradução pode ser copiada e reproduzida, impressa e até comercializada,
sem prévia autorização ou mesmo sem citar a fonte.
Apenas pedimos que seja mantida a fidelidade do texto.
4 – Allan Kardec

Nota do tradutor

A necessidade de estudar constantemente a obra de Allan Kardec, para


aprender e fortalecer nossos aprendizados doutrinários espíritas — o que,
aliás, constitui uma satisfação para nós — serviu de ensejo para cuidarmos
desta tradução, que também é motivada pelo desejo de ofertarmos mais uma
opção aos nossos confrades e demais estudiosos do Espiritismo,
especialmente aqueles que não disponham da fluência na leitura em francês,
cumprindo assim o papel essencial do tradutor, qual seja a de ser um
facilitador.
Não se ignora a dificuldade natural no trabalho de verter para outro
idioma qualquer uma obra de fôlego, tal como esta; acrescente-se aí a
gravidade das implicações de uma tradução de O Evangelho segundo o
Espiritismo, posto que se trata de um livro que contém fundamentos de uma
doutrina de cunho científico, filosófico e religioso, doutrina essa tão complexa
quanto importante para toda a humanidade. Em face disso, não ousaríamos
propor uma tradução perfeita, mas tratamos tanto quanto nos é possível de
buscar a máxima fidelidade da mensagem iluminadora e consoladora contida
nesta obra monumental.
A revisão desta tradução é contínua, portanto, correções e sugestões de
melhorias são bem-vindas. Por conseguinte, solicitamos que o leitor consulte
periodicamente a possível existência de uma edição mais atualizada.
É então ciente desta responsabilidade que este trabalho vem para
contribuir com a propagação desta doutrina que abraçamos com amor.
Ery Lopes

Observação: as notas de rodapé de autoria do tradutor estão sinalizadas no final com a inscrição “N.
T.”; as demais, sem sinalização, correspondem à tradução das notas de Allan Kardec contidas na obra
original.
5 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Apresentação da obra

“São chegados os tempos em que todas as coisas devem ser


restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas,
confundir os orgulhosos e glorificar os justos”
Espírito da Verdade

Mais uma obra fundamental de Allan Kardec foi traduzida para o


vernáculo pátrio, dessa feita, O Evangelho Segundo o Espiritismo, publicada
no ano de 1864. Uma obra singular da Doutrina dos Espíritos, ponto de
inflexão no arcabouço literário espírita, quando o Espiritismo se cristianiza e
adquiri caráter universal: “Esta obra é para o uso de todos”, seu lema, que
traduz o espaço aberto para todos os cultos e quaisquer crença, onde “cada
qual pode dela tirar os meios de conformar sua conduta à moral do Cristo”. Seu
objetivo primeiro é apresentar a Ética Cristã sob as instruções dos Espíritos,
que são verdadeiramente as vozes do céu que vêm esclarecer a humanidade e
convidá-la à prática do Evangelho. Depois de concluir os princípios
fundamentais do Espiritismo, em obras anteriores, Allan Kardec aplica-os na
análise de textos selecionados da Bíblia, numa exegese bíblica espírita.
A Introdução do livro é um convite à reflexão. Estruturada com o
formalismo aplicado aos estudos exegéticos bíblicos. Esclarece o tema central
da obra — explicar o ensino moral contido nos Evangelhos para uso de
qualquer culto, indiscriminadamente, com explicações dos princípios éticos,
extraídos das “passagens obscuras” dos textos bíblicos e, de forma figurativa,
afirmar que o Espiritismo é “a chave” que dá o verdadeiro sentido à diversas
“passagens do Evangelho, da Bíblia e dos autores sagrados”. No seu entender,
é através do Espiritismo que as máximas do Evangelho serão acessíveis a
todos para aplicá-las na vida cotidiana. E para isso, contou com a ajuda dos
Espíritos Superiores que o assessoraram. Portanto, essa exegese bíblica visa o
6 – Allan Kardec

uso utilitário da mensagem cristã, numa aproximação com o ocorrido na


China milenar com o Confucionismo.
A Introdução também apresenta o argumento de Autoridade da Doutrina
Espírita; sua âncora está na universalidade do ensino dos Espíritos, que
revelam à humanidade essas verdades. Mas, as revelações devem passar
primeiro pelo controle da razão, pelo bom senso, utilizando-se de uma lógica
rigorosa. O segundo critério é o da concordância desses ensinos vindos
espontaneamente por meio de grande número de médiuns, de diversos
lugares — aqui é a aplicação da lei dos grandes números.
E, após colocar um sucinto dicionário com palavras de significados
históricos, adentra na parte mais crível, ao fazer de Sócrates e de Platão —
leia-se pagãos — precursores da ideia cristã e do Espiritismo. Portanto,
elaborou um estudo comparativo entre os ensinos de filósofos da Grécia
Clássica, com o Cristianismo e o Espiritismo, similar ao realizado por
Agostinho de Hipona, com os filósofos gregos e o Cristianismo nascente, no
séc. V d.C.
A partir dessa Introdução, o corpo da obra se desenvolve numa série de
análise de textos evangélicos, onde os capítulos, em sua maioria, seguem a
estrutura com textos bíblicos, a maioria do Novo Testamento, selecionados
por máximas de mesma natureza, seguida da dissertação de Kardec sobre o
tema, e, por fim, colocou mensagens explicativas dos Espíritos. Encerrou a
obra com uma coletânea de Preces Espíritas.
Numa visão geral, é uma obra que contém a exegese do Sermão do
Monte — o cerne da Ética Cristã; um livro de doutrina que analisa passagens
dos livro revelados do Judaísmo e do Cristianismo para ser utilizado por todas
as pessoas, um Código de Moral Universal, um código de conduta para a vida
pública e privada.
A tradução desse livro proporciona a divulgação da mensagem de paz e
de equilíbrio emocional, evidenciada na forma como Allan Kardec construiu
suas obras fundamentais, um presente, que se faz presente na humanidade
terrena encarnada e desencarnada.
Luís Jorge Lira Neto
7 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Allan Kardec
(1804-1869)
8 – Allan Kardec

Folha de rosto da 4ª edição francesa, de 1868, obra-base desta tradução.


Ebook disponível no portal Gallica
9 – O Evangelho segundo o Espiritismo

O EVANGELHO
SEGUNDO O
ESPIRITISMO
CONTENDO

A EXPLICAÇÃO DAS MÁXIMAS MORAIS DO CRISTO


SUA CONCORDÂNCIA COM O ESPIRITISMO
E SUA APLICAÇÃO ÀS DIVERSAS SITUAÇÕES DA VIDA

POR ALLAN KARDEC


Autor de O Livro dos Espíritos

Não há fé inabalável senão aquela que


pode encarar a razão face a face, em todas as
épocas da humanidade.

QUARTA EDIÇÃO

PARIS, 1867
10 – Allan Kardec

SUMÁRIO
PREFÁCIO – pág. 15

INTRODUÇÃO – pág. 16
I. OBJETIVO DESTA OBRA – II. AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA: Controle universal
do ensino dos Espíritos – III. NOTÍCIAS HISTÓRICAS – IV. SÓCRATES E PLATÃO,
PRECURSORES DA IDEIA CRISTÃ E DO ESPIRITISMO: Resumo da doutrina de Sócrates e de
Platão.

I – NÃO VIM DESTRUIR A LEI – pág. 42


As três revelações: Moisés, Cristo e o Espiritismo – Aliança da ciência e da religião –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A nova era.

II – MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO – pág. 51


A vida futura – A realeza de Jesus – O ponto de vista – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS:
Uma realeza terrestre.

III – HÁ MUITAS MORADAS NA CASA DE MEU PAI – pág. 57


Diferentes estados da alma na erraticidade – Diferentes categorias de mundos
habitados – Destinação da Terra. Causas das misérias humanas – INSTRUÇÕES DOS
ESPÍRITOS: Mundos inferiores e mundos superiores – Mundos de expiações e de
provas – Mundos regeneradores – Progressão dos mundos.

IV – NINGUÉM PODE VER O REINO DE DEUS SE NÃO NASCER DE NOVO – pág. 68


Ressurreição e reencarnação – Laços de família, fortalecidos pela reencarnação e
rompidos pela unicidade da existência – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Limites da
encarnação – Necessidade da encarnação.

V – BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS – pág. 81


Justiça das aflições – Causas atuais das aflições – Causas anteriores das aflições –
Esquecimento do passado – Motivos de resignação – O suicídio e a loucura –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Bem e mal sofrer – O mal e o remédio – A felicidade não
é deste mundo – Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras – Se fosse um
11 – O Evangelho segundo o Espiritismo

homem de bem, ele teria morrido – Os tormentos voluntários – A verdadeira


infelicidade – A melancolia – Provações voluntárias – O verdadeiro cilício –
Devemos dar fim às provas do próximo? – É permitido abreviar a vida do doente
que sofre sem esperança de cura? – Sacrifício da própria vida – Proveito dos
sofrimentos para outrem

VI – O CRISTO CONSOLADOR – pág. 109


O jugo leve – Consolador prometido – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Advento do
Espírito de Verdade

VII – BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO – pág. 114


O que se deve entender por pobres de espírito – Aquele que se eleva será rebaixado
– Mistérios ocultos aos sábios e doutores – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: O orgulho e a
humildade – Missão do homem inteligente na Terra

VIII – BEM-AVENTURADOS AQUELES QUE TÊM O CORAÇÃO PURO – pág. 126


Deixem vir a mim as criancinhas – Pecado por pensamento. Adultério – Verdadeira
pureza. Mãos não lavadas – Escândalos. Se a tua mão for motivo de escândalo,
corte-a – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Deixem vir a mim as criancinhas – Bem-
aventurados aqueles que têm os olhos fechados

IX – BEM-AVENTURADOS AQUELES QUE SÃO MANSOS E PACÍFICOS – pág. 138


Injúrias e violências – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A afabilidade e a doçura – A
paciência – Obediência e resignação – A cólera.

X – BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSOS – pág. 145


Perdoem para que Deus lhes perdoe – Reconciliar-se com os adversários – O
sacrifício mais agradável a Deus – O cisco e a trave no olho – Não julguem para não
serem julgados. Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra – INSTRUÇÕES DOS
ESPÍRITOS: Perdão das ofensas – A indulgência – É permitido repreender os outros,
notar as imperfeições de outrem e divulgar o mal alheio?

XI – AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO – pág. 158


O maior mandamento. Fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos
fizessem. Parábola dos credores e dos devedores – Dar a César o que é de César –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A lei de amor – O egoísmo – A fé e a caridade – Caridade
para com os criminosos – Devemos expor a vida por um malfeitor?
12 – Allan Kardec

XII – AMEM SEUS INIMIGOS – pág. 171


Retribuir o mal com o bem – Os inimigos desencarnados – Se alguém lhes bater na
face direita, apresentem-lhe também a outra – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A
vingança – O ódio – O duelo

XIII – QUE SUA MÃO ESQUERDA NÃO SAIBA O QUE SUA MÃO DIREITA DÁ – pág. 184
Fazer o bem sem ostentação – Infortúnios ocultos – O óbolo da viúva – Convidar os
pobres e os estropiados. Doar sem esperar retribuição – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS:
Caridade material e caridade moral – A beneficência – A piedade – Os órfãos –
Benefícios pagos com a ingratidão – Beneficência exclusiva

XIV – HONREM SEU PAI E SUA MÃE – pág. 205


Piedade filial – Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? – Parentesco corporal
e parentesco espiritual – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Ingratidão dos filhos e os laços
de família

XV – FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO – pág. 215


O que é preciso para ser salvo. Parábola do Bom Samaritano – O maior
mandamento – Necessidade da caridade segundo Paulo – Fora da Igreja não há
salvação. Fora da verdade não há salvação – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Fora da
caridade não há salvação

XVI – NÃO PODEMOS SERVIR A DEUS E A MAMON – pág. 223


Salvação dos ricos – Preservar-se da avareza – Jesus na casa de Zaqueu – Parábola
do mau rico – Parábola dos talentos – Utilidade providencial da fortuna. Provas da
riqueza e da miséria – Desigualdade das riquezas – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A
verdadeira propriedade – Emprego da riqueza – Desprendimento dos bens
terrenos – Transmissão da fortuna

XVII – SEJAM PERFEITOS – pág. 239


Características da perfeição – O homem de bem – Os bons espíritas – Parábola do
Semeador – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: O dever – A virtude – Os superiores e os
inferiores – O homem no mundo – Cuidem do corpo e do espírito

XVIII – MUITOS SÃO CHAMADOS E POUCOS SÃO ESCOLHIDOS – pág. 253


Parábola do festim de núpcias – A porta estreita – Nem todos que dizem “Senhor!
Senhor!” entrarão no reino dos céus – Muito se pedirá a quem muito recebeu –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Será dado mais àquele que tem – Reconhece-se o cristão
pelas suas obras
13 – O Evangelho segundo o Espiritismo

XIX – A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS – pág. 265


Poder da fé – A fé religiosa. Condição da fé inabalável – Parábola da figueira seca –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A fé, mãe da esperança e da caridade – A fé divina e a fé
humana

XX – OS TRABALHADORES DA ÚLTIMA HORA – pág. 273


INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Os últimos serão os primeiros – Missão dos espíritas –
Os obreiros do Senhor

XXI – HAVERÁ FALSOS CRISTOS E FALSOS PROFETAS – pág. 280


Conhece-se a árvore pelo seu fruto – Missão dos profetas – Prodígios dos falsos
profetas – Não creiam em todos os Espíritos – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Os falsos
profetas – Características do verdadeiro profeta – Os falsos profetas da
erraticidade – Jeremias e os falsos profetas

XXII – NÃO SEPAREM O QUE DEUS JUNTOU – pág. 292


Indissolubilidade do casamento – O divórcio

XXIII – MORAL ESTRANHA – pág. 296


Quem não odiar seu pai e sua mãe – Deixar pai, mãe e filhos – Deixem aos mortos o
cuidado de enterrar seus mortos – Eu não vim trazer a paz, mas a divisão

XXIV – NÃO PONHAM A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE – pág. 306


Candeia debaixo do alqueire. Por que Jesus fala por parábolas – Não vão ao
encontro dos gentios – Não são os que estão com saúde que precisam de médico –
A coragem da fé – Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida vai perdê-la

XXV – PROCUREM E ENCONTRARÃO – pág. 315


Ajuda-te e o céu te ajudará – Olhem os pássaros no céu – Não se preocupem em ter
ouro

XXVI – DEEM GRATUITAMENTE O QUE RECEBERAM GRATUITAMENTE – pág. 321


Dom de curar – Preces pagas – Vendilhões expulsos do templo – Mediunidade
gratuita

XXVII – PEÇAM E VOCÊS OBTERÃO – pág. 326


Qualidades da prece – Eficácia da prece – Ação da prece - Transmissão do
pensamento – Preces inteligíveis – Prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores
– INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Maneira de orar – Felicidade da prece
14 – Allan Kardec

XXVIII – COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS – pág. 340


Preâmbulo
I – PRECES GERAIS
Oração dominical – Reuniões espíritas – Para os médiuns
II – PRECES PARA SI MESMO
Aos anjos guardiões e aos Espíritos protetores – Para afastar os maus
Espíritos – Pedir para se corrigir de um defeito – Pedir para resistir a uma
tentação – Ação de graças pela vitória obtida sobre uma tentação – Para pedir
um conselho – Nas aflições da vida – Ação de graças por um favor obtido –
Ato de submissão e de resignação – Diante de um perigo iminente – Ação de
graças por ter escapado de um perigo – Quando for dormir – Prevendo a
morte próxima
III – PRECES PELOS OUTROS
Por alguém que esteja em aflição – Ação de graças por um benefício
concedido a outro alguém – Pelos nossos inimigos e pelos que nos querem
mal – Ação de graças pelo bem concedido aos nossos inimigos – Pelos
inimigos do Espiritismo – Por uma criança que acaba de nascer – Por um
agonizante
IV – PRECES POR AQUELES QUE NÃO ESTÃO MAIS DA TERRA
Por alguém que acaba de morrer – Pelas pessoas a quem tivemos afeição –
Pelas almas sofredoras que pedem preces – Por um inimigo que morreu –
Por um criminoso – Por um suicida – Pelos Espíritos arrependidos – Pelos
Espíritos endurecidos
V – PRECES PELOS ENFERMOS E PELOS OBSIDIADOS
Pelos enfermos – Pelos obsidiados

Anexo: Citações bíblicas – pág. 389


15 – O Evangelho segundo o Espiritismo

PREFÁCIO

Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos céus, como um imenso


exército que se move assim que recebe a ordem, espalham-se por toda a
superfície da Terra; semelhantes a estrelas que caem do céu, eles vêm iluminar o
caminho e abrir os olhos dos cegos.
Eu digo a vocês, em verdade, que chegou o tempo em que todas as coisas
devem ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissolver as trevas,
desmascarar os orgulhosos e glorificar os justos.
As grandes vozes do céu ressoam como o som de uma trombeta e os coros
dos anjos se reúnem. Homens, nós lhes convidamos para o divino concerto; que
vossas mãos peguem a lira, que vossas vozes se unam e que em um só hino
sagrado elas se estendam e vibrem de um extremo a outro do Universo.
Homens, irmãos a quem amamos, estamos junto de vocês; amem-se
também uns aos outros e digam do fundo do coração, fazendo a vontade do Pai
que está no céu: “Senhor! Senhor!” e vocês poderão entrar no reino dos céus.
O ESPÍRITO DE VERDADE

Nota – A instrução acima, transmitida por via medianímica, resume de


uma só vez o verdadeiro caráter do Espiritismo e a finalidade desta obra; eis por
que foi colocada aqui como prefácio.
16 – Allan Kardec

INTRODUÇÃO

I – OBJETIVO DESTA OBRA


Podemos dividir as matérias contidas nos Evangelhos em cinco partes:
os atos comuns da vida do Cristo, os milagres, as predições, as palavras
que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja e o
ensinamento moral. Se as quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias,
a última parte permaneceu inatacável. Diante desse código divino, até a
própria incredulidade se curva; este é o terreno onde todos os cultos podem
se reunir, a bandeira sob a qual todos podem se abrigar. quaisquer que sejam
suas crenças, pois ele jamais foi pretexto de disputas religiosas — que sempre
e por toda a parte foram levantadas por questões dogmáticas. Aliás, se o
discutissem, as seitas teriam aí encontrado a sua própria condenação, porque
a maioria está mais apegada à parte mística do que à parte moral — que exige
a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, esse código é uma
regra de conduta que abrange todas as circunstâncias da vida privada ou
pública, o princípio de todas as relações sociais fundadas sobre a mais
rigorosa justiça; enfim, e acima de tudo, é o caminho infalível para a felicidade
futura, uma ponta do véu levantada sobre a vida futura. Essa parte é o tema
exclusivo deste livro.
Tudo mundo admira a moral evangélica; todos proclamam a sua
sublimidade e necessidade, mas muitos assim o fazem por fé, com base no que
ouviram dizer ou na confiança em certos provérbios que se tornaram comuns;
porém, poucos a conhecem profundamente e menos ainda são os que a
compreendem e sabem deduzir as suas consequências. A razão disso está
principalmente na dificuldade apresentada na leitura do Evangelho —
incompreensível para a grande maioria. A forma alegórica e o misticismo
17 – O Evangelho segundo o Espiritismo

intencional da linguagem fazem com que a maioria o leia por desencargo de


consciência e por obrigação, como leem as preces sem entendê-las, ou seja,
sem proveito. Os preceitos morais — espalhados aqui e ali, misturados no
meio de outras narrativas — passam desapercebidos; então, torna-se
impossível compreender o seu conjunto e fazer desses preceitos o objeto de
uma leitura e de uma meditação em separado.
É verdade que vários tratados já foram escritos sobre a moral
evangélica, mas o arranjo em estilo literário moderno lhes tira a pureza
original, que a ela confere ao mesmo tempo o encanto e a autenticidade. O
mesmo ocorre com as citações isoladas, reduzidas à sua mais simples
expressão proverbial; então, não passam de aforismas que perdem parte do
seu valor e do seu interesse, pela ausência de acessórios e das circunstâncias
nas quais foram proferidos.
Para evitar esses inconvenientes, reunimos nesta obra os artigos que
podem constituir — propriamente falando — um código de moral universal,
sem distinção de culto; nas citações, nós conservamos tudo que fosse útil ao
desenvolvimento da ideia, eliminando apenas as coisas estranhas ao assunto.
Além disso, respeitamos escrupulosamente a tradução de Sacy1, assim como a
divisão em versículos. Contudo, em vez de nos prendermos a uma ordem
cronológica impossível e sem vantagem real para em tal caso, as máximas
foram agrupadas e classificadas metodicamente conforme sua natureza, de
modo que sejam deduzidas umas das outras, tanto quanto possível. A
marcação dos números ordenados dos capítulos e dos versículos nos permite
recorrer à classificação comum, quando julgarmos oportuno.
Tratava-se apenas de um trabalho material que, por si só, teria sido de
utilidade secundária, pois o essencial era colocá-lo ao alcance de todos, pela
explicação das passagens obscuras e o desenvolvimento de todas as
consequências, tendo em vista a aplicação diante das diversas situações da
vida. Foi o que procuramos fazer, com a ajuda dos bons Espíritos que nos
auxiliam.

1Menção ao sacerdote católico francês Louis-Isaac Lemaistre de Sacy (1613-1684) cuja tradução bíblica
(Bíblia de Port-Royal) tornou-se a mais difundida versão francesa em sua época. — N. T (Nota do
Tradutor).
18 – Allan Kardec

Muitos pontos do Evangelho, da Bíblia e dos autores sacros em geral são


incompreensíveis; muitos deles até parecem irracionais, por falta de uma
chave para que se compreenda o seu verdadeiro significado; essa chave está
inteiramente no Espiritismo, assim como já puderam se convencer aqueles
que o estudaram seriamente, e como o reconhecerão melhor ainda mais tarde.
O Espiritismo se encontra por toda a parte na Antiguidade e em todas as
épocas da humanidade; em toda a parte encontramos vestígios dele nos
escritos, nas crenças e nos monumentos; é por isso que tanto ele abre novos
horizontes para o futuro quanto projeta luz não menos viva sobre os
mistérios do passado.
Como complemento de cada preceito, acrescentamos algumas instruções
escolhidas entre as que foram ditadas pelos Espíritos em diversos países e
através de diferentes médiuns. Se essas instruções fossem tiradas de uma
única fonte, elas poderiam ter sofrido uma influência pessoal ou do ambiente
local, ao passo que a diversidade de origens prova que os Espíritos dão seus
ensinos em toda parte, e que não há ninguém privilegiado a esse respeito.2
Esta obra é para o uso de todos; cada qual pode colher dela os meios de
adequar sua conduta à moral do Cristo. Os espíritas aqui encontrarão, além
disso, as aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às
comunicações estabelecidas doravante de uma maneira permanente entre os
homens e o mundo invisível, a lei evangélica ensinada a todas as nações pelos
próprios Espíritos já não será mais uma letra morta, porque cada um a
compreenderá e será incessantemente convocado a colocá-la em prática,
pelos conselhos de seus guias espirituais. As instruções dos Espíritos são

2 Sem dúvidas, nós poderíamos ter dado sobre cada assunto um número maior de comunicações obtidas
numa multidão de outras cidades e centros espíritas além das que citamos, mas quisemos, antes de
tudo, evitar a monotonia de repetições inúteis e limitar a nossa escolha àquelas que — pela essência e
pela forma — se enquadram mais especialmente no formato dessa obra, reservando para as publicações
posteriores as comunicações que não couberam aqui.
Quanto aos médiuns, preferimos não nomear nenhum; na maior parte dos casos, foi a pedido
deles mesmos para que não fossem designados, e desde então não convinha fazer exceções. Os nomes
dos médiuns, aliás, não acrescentariam nenhum valor à obra dos Espíritos; portanto, a menção deles
não seria mais do que uma satisfação do amor-próprio, à qual os médiuns verdadeiramente sérios não
dão a menor importância; eles compreendem que, como o seu papel é puramente passivo, o valor das
comunicações não realça em nada o mérito pessoal deles, e que seria pueril se envaidecerem de um
trabalho intelectual ao qual eles prestam apenas um auxílio mecânico.
19 – O Evangelho segundo o Espiritismo

verdadeiramente as vozes do céu que vêm esclarecer os homens e os


convidar à prática do Evangelho.

II – AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA


Controle universal do ensino dos Espíritos

Se a doutrina espírita fosse uma concepção puramente humana, ela só


teria como garantia as luzes daquele que a tivesse concebido; ora, ninguém
neste mundo poderia ter a pretensão bem fundamentada de possuir
exclusivamente nele a verdade absoluta. Se os Espíritos que a revelaram
tivessem se manifestado a um só homem, nada garantiria a sua origem, pois
seria preciso acreditar na palavra daquele que dissesse ter recebido o
ensinamento deles. Admitindo de sua parte uma perfeita sinceridade, no
máximo ele poderia convencer as pessoas do seu entorno; ele poderia
conseguir sectários, mas ele jamais chegaria a unificar o mundo.
Deus quis que a nova revelação chegasse aos homens por uma via mais
rápida e mais autêntica; eis por que ele encarregou os Espíritos de levá-la de
um polo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem conceder a ninguém o
privilégio exclusivo de ouvir a sua palavra. Uma pessoa pode ser iludida e
pode iludir a si mesmo, mas isso não aconteceria quando milhões de pessoas
veem e ouvem a mesma coisa: essa é uma garantia para cada um e para todos.
Ademais, pode-se fazer que um homem desapareça, mas não se pode fazer
desaparecer multidões; pode-se queimar os livros, mas não se pode queimar
os Espíritos; ora, mesmo que todos os livros fossem queimados, a fonte da
doutrina ainda seria inesgotável, pelo fato de ela não estar na Terra, de ela
surgir de toda parte e de que cada pessoa pode usufrui-la. Na falta de homens
para propagá-la, sempre haverá os Espíritos, que alcançam a todos e a quem
ninguém pode atingir.
Na realidade, portanto, são os próprios Espíritos que fazem a
propaganda, com a ajuda dos incontáveis médiuns que eles suscitam de todos
os lados. Se tivesse havido apenas um intérprete, por mais favorecido que ele
fosse, o Espiritismo mal seria conhecido; até mesmo esse intérprete, seja qual
20 – Allan Kardec

fosse a classe a que ele pertencesse, teria sido objeto de prevenções de muita
gente e nem todas as nações o teriam aceitado, enquanto os Espíritos —
comunicando-se em toda parte, a todos os povos, a todas as seitas e a todos os
partidos — são aceitos por todos. O Espiritismo não tem nacionalidade, está
além de todos os cultos particulares, nem é imposto por nenhuma classe da
sociedade, posto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus
parentes e amigos de além-túmulo. Era preciso que fosse assim para que ele
pudesse conclamar todos os homens à fraternidade; se ele não fosse colocado
em um terreno neutro, teria mantido as dissensões em vez de apaziguá-las.
Essa universalidade no ensinamento dos Espíritos faz a força do
Espiritismo; nela também reside a causa de sua propagação tão rápida;
enquanto a voz de um único homem — mesmo com o auxílio da imprensa —
levaria séculos antes de chegar ao ouvido de todos, eis que milhares de vozes
se fazem ouvir simultaneamente em todos os pontos da Terra, para proclamar
os mesmos princípios e os transmitir aos mais ignorantes, assim como aos
mais instruídos, a fim de que ninguém seja deserdado. Essa é uma vantagem
da qual nenhuma das doutrinas que já surgiram até hoje ainda não desfrutou.
Logo, se o Espiritismo é uma realidade, ele não teme o malquerer dos homens
nem as revoluções morais, nem as convulsões físicas do globo, porque
nenhuma dessas coisas pode atingir os Espíritos.
Mas é essa não é a única vantagem que resulta dessa excepcional
posição; o Espiritismo encontra aí uma garantia toda poderosa contra os
cismas que pudessem ser suscitados — quer seja pela ambição de alguns,
quer seja pelas contradições de certos Espíritos. Tais contradições são
certamente um escolho, mas que traz consigo o remédio ao lado do mal.
Sabe-se que os Espíritos, por consequência da diferença que existe nas
suas capacidades, estão longe de possuir individualmente toda a verdade; que
não é permitido a todos penetrar determinados mistérios; que o saber deles é
proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares não sabem mais que
os homens, e até menos que certos homens; que há entre eles, como há entre
os homens, presunçosos e pseudossábios que creem saber o que não sabem;
que há sistemáticos que tomam as suas próprias ideias como verdades; enfim,
que os Espíritos da ordem mais elevada — aqueles que já estão
21 – O Evangelho segundo o Espiritismo

completamente desmaterializados — são os únicos que já depuraram as


ideias e os preconceitos terrenos. Mas, sabe-se também que os Espíritos
enganadores não têm o escrúpulo de se esconder sob nomes alheios, para
impor suas utopias. Disso resulta que, para tudo o que esteja fora do ensino
exclusivamente moral, as revelações que cada um pode obter têm um caráter
individual, sem autenticidade; que devem ser consideradas como opiniões
pessoais de tal ou qual Espírito, e que seria imprudente aceitá-las e propagá-
las levianamente como verdades absolutas.
O primeiro controle é incontestavelmente o da razão, ao qual é preciso
submeter — sem exceção — tudo o que venha dos Espíritos; toda teoria em
flagrante contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os
dados positivos que se possui — qualquer que seja o nome respeitável com
que ela seja assinada — deve ser rejeitada. Porém, esse controle em muitos
casos é incompleto, devido a insuficiência dos conhecimentos de certas
pessoas e da tendência de muitos em tomar seu próprio julgamento como o
único árbitro da verdade. Em semelhante caso, o que fazem os homens que
não têm confiança absoluta em si mesmos? Eles tomam o conselho do máximo
possível de pessoas e a opinião da maioria é o seu guia. Assim deve ser com
relação ao ensino dos Espíritos, cujos meios eles mesmos nos fornecem.
A concordância no ensinamento dos Espíritos é então o melhor controle,
mas é preciso ainda que ocorra em certas condições. A menos segura de todas
é quando o próprio médium interroga vários Espíritos acerca de uma questão
duvidosa. É muito evidente que, se ele estiver sob o domínio de uma obsessão
ou lidando com um Espírito enganador, este Espírito pode lhe dizer a mesma
coisa sob diferentes nomes. Também não há garantia suficiente na
concordância que se possa obter por médiuns de um mesmo centro, pois
todos eles podem estar sob a mesma influência.
A única garantia séria do ensino dos Espíritos está na concordância
que exista entre as revelações feitas espontaneamente, por meio de um
grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em diversos
lugares.
Compreende-se que não se trata aqui das comunicações relativas a
interesses secundários, mas daquelas que se referem aos próprios princípios
22 – Allan Kardec

da doutrina. A experiência prova que quando um princípio novo deve receber


a sua solução, ele é ensinado espontaneamente em diversos pontos ao mesmo
tempo e de maneira idêntica — se não na forma, pelo menos na essência.
Portanto, se agrada a um Espírito formular um sistema excêntrico, baseado
somente nas suas ideias e fora da verdade, podemos estar certos de que esse
sistema ficará circunscrito e tombará diante da unanimidade das instruções
dadas em todas as outras partes, assim como já tivemos numerosos exemplos.
Foi essa unanimidade que fez cair todos os sistemas parciais que surgiram no
começo do Espiritismo, quando cada um explicava os fenômenos à sua
maneira e antes que conhecêssemos as leis que regem as relações do mundo
visível e do mundo invisível.
Tal é a base sobre a qual nós nos apoiamos quando formulamos um
princípio da doutrina; não é porque esteja de acordo com as nossas ideias que
o damos como verdadeiro; não nos colocamos absolutamente como juiz
supremo da verdade, e a ninguém dizemos: “Creia em tal coisa, porque somos
nós que estamos afirmando.” Aos nossos próprios olhos, a nossa opinião não é
mais do que uma opinião pessoal, que pode estar correta ou falsa, porque nós
não somos mais infalíveis do que outra pessoa qualquer. Também não é
porque um princípio nos foi ensinado que para nós ele é a verdade, mas sim
porque recebeu a sanção da concordância.
Na nossa posição, recebendo comunicações de cerca de mil centros
espíritas sérios e disseminados pelos diversos pontos do globo, estamos em
condições de enxergar os princípios sobre os quais essa concordância se
estabelece; é essa observação que nos tem guiado até hoje e é igualmente ela
que nos guiará nos novos campos que o Espiritismo é chamado a explorar. É
assim que, estudando atentamente as comunicações vindas de diversos
cantos — tanto da França quanto do exterior — nós reconhecemos, pela
natureza toda especial das revelações, que há uma tendência para ele entrar
num novo caminho e que chegou o momento de dar um passo adiante. Essas
revelações, às vezes formuladas com palavras veladas, com frequência têm
passado desapercebidas a muitos daqueles que as obtiveram; outros tantos
acreditaram ser os únicos a tê-las. Tomadas isoladamente, elas ficaram sem
valor para nós; só a coincidência lhes dá a gravidade; depois, quando chegou o
23 – O Evangelho segundo o Espiritismo

momento de serem lançadas à publicidade, cada qual então se lembrará de ter


recebido instruções no mesmo sentido. É esse movimento generalizado que
nós observamos e que estudamos, com a assistência dos nossos guias
espirituais, e que nos ajuda a julgar a oportunidade que temos para fazermos
uma coisa ou para nos abstermos.
Esse controle universal é uma garantia para a unidade futura do
Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. É aí que, no porvir, se
procurará o critério da verdade. O que determinou o sucesso da doutrina
formulada em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns foi que em
toda parte todos puderam receber diretamente dos Espíritos a confirmação
do que esses livros contêm. Se de todas as partes os Espíritos tivessem vindo
contradizê-los, essas publicações desde há muito já teriam sofrido a sorte de
todas as concepções fantásticas. Nem o apoio da imprensa os teria salvado do
naufrágio, ao passo que, privados desse apoio, não deixaram de trilhar um
caminho rápido, porque tiveram o apoio dos Espíritos, cuja boa vontade
compensou — e muito — a má vontade dos homens. Assim será com todas as
ideias emanadas dos Espíritos ou dos homens que não possam suportar a
prova desse controle, do qual ninguém pode contestar a força.
Suponhamos, pois, que agrade a certos Espíritos ditar, sob um título
qualquer, um livro em sentido contrário; suponhamos até mesmo que, numa
intenção hostil e visando desacreditar a doutrina, a malevolência suscitasse
comunicações apócrifas: que influência poderiam ter esses escritos, se eles
fossem desmentidos de todos os lados pelos Espíritos? É da adesão destes
últimos que devemos nos assegurar antes de lançar um sistema em seu nome.
Do sistema de um só diante do de todos há a distância da unidade ao infinito.
De que valem todos os argumentos dos detratores diante da opinião das
massas, quando milhões de vozes amigas provindas do Espaço vêm de todos
os cantos do Universo e no seio de cada família para derrogá-los? A respeito
disso, a experiência já não confirmou a teoria? O que aconteceu com todas
essas publicações que — conforme afirmavam — deveriam aniquilar o
Espiritismo? Qual delas pelo menos lhe deteve a marcha? Até hoje não se
tinha encarado a questão sob esse ponto de vista, incontestavelmente um dos
mais graves; cada um contou consigo, mas sem contar com os Espíritos.
24 – Allan Kardec

O princípio da concordância é ainda uma garantia contra as alterações


que pudessem ser feitas no Espiritismo pelas seitas que quisessem se
apoderar dele, para o proveito particular delas, adaptando-o como bem
pretendessem. Quem tentasse desviá-lo do seu objetivo providencial
fracassaria, pela razão bem simples de que os Espíritos, através da
universalidade de seus ensinamentos, derrubarão qualquer modificação que
se afaste da verdade.
Ressalta de tudo isso uma verdade capital: a de que quem quisesse
atravessar a corrente de ideias estabelecida e sancionada poderia até causar
uma pequena perturbação local e momentânea, mas nunca dominar o
conjunto — ainda que no presente, e menos ainda no futuro.
Disso também ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os
pontos da doutrina ainda não esclarecidos não constituirão lei enquanto elas
permanecerem isoladas; que elas não devem, consequentemente, ser aceitas
senão sob todas as reservas e a título de informação.
Daí a necessidade da aplicar à sua publicidade a maior prudência, e no
caso em que se acredite dever publicá-las, é importante que elas sejam
apresentadas apenas como opiniões individuais, mais ou menos prováveis,
porém, em todos os casos, carecendo uma confirmação. É essa confirmação
que se deve aguardar antes de apresentar um princípio como verdade
absoluta, se não quiser ser acusado de leviandade ou de credulidade
irracional.
Os Espíritos superiores procedem em suas revelações com uma extrema
sabedoria; eles não abordam as grandes questões da doutrina senão
gradualmente, à medida que a inteligência está apta a compreender verdades
de uma ordem mais elevada e quando as circunstâncias são propícias para a
emissão de uma ideia nova. É por isso que eles não disseram tudo desde o
começo, e até hoje ainda não disseram tudo, jamais cedendo à impaciência de
pessoas muito apressadas que desejam colher os frutos antes de
amadurecerem. Portanto, seria supérfluo querer avançar o tempo assinalado
para cada coisa pela Providência, pois então os Espíritos verdadeiramente
sérios recusam firmemente sua assistência; por outro lado, pouco se
preocupando com a verdade, os Espíritos levianos respondem a tudo; é por
25 – O Evangelho segundo o Espiritismo

essa razão que, sobre todas as questões prematuras, sempre há respostas


contraditórias.
Os princípios aqui citados não são o resultado de uma teoria pessoal,
mas a consequência natural das condições nas quais os Espíritos se
manifestam. Fica bem evidente que, se um Espírito diz uma coisa num lugar,
enquanto milhões de dizem o contrário noutro lugar, a presunção de verdade
não pode pertencer àquele que está só ou quase só em sua opinião. Ora,
pretender ter razão sozinho contra todos seria tão ilógico da parte de um
Espírito quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente sábios,
quando não se sentem suficientemente esclarecidos sobre uma questão,
nunca a decidem de uma maneira absoluta; eles declaram que a tratam
somente do seu ponto de vista e eles mesmos aconselham que se aguarde a
confirmação.
Por maior, mais bela e mais justa que seja uma ideia, é impossível que
ela reúna desde o início todas as opiniões. Os conflitos que dela resultam são a
consequência inevitável do movimento que se opera; eles são até necessários
para melhor fazer ressaltar a verdade, e é útil que ocorram no começo, para
que as falsas ideias sejam rapidamente descartadas. Os espíritas que tiverem
qualquer receio disso podem então ficar perfeitamente despreocupados.
Todas as pretensões isoladas cairão, pela força das coisas, diante do grande e
poderoso critério do controle universal.
Não será pela opinião de um homem que nos reuniremos, mas pela
voz unânime dos Espíritos; não será um homem — nem nós, mais do que
qualquer outro — que fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um
Espírito que venha se impor a quem quer que seja: será a universalidade dos
Espíritos se comunicando em toda a Terra, por ordem de Deus; eis o caráter
essencial da doutrina espírita; eis a sua força e a sua autoridade. Deus quis
que sua lei fosse assentada sobre uma base inabalável, e foi por isso que ele
não a fez repousar sobre a cabeça frágil de uma só pessoa.
É diante desse poderoso areópago3 — que não tem nem as tramas, nem
as rivalidades ciumentas, nem as seitas, nem as facções — que irão se quebrar

3Areópago: célebre tribunal de justiça de Atenas, na Grécia Antiga, reconhecido pela honestidade e pela
retidão dos seus julgamentos. — N. T.
26 – Allan Kardec

todas as oposições, todas as ambições, todas as pretensões de supremacia


individual; que nos quebraríamos nós mesmos se quiséssemos substituir
pelas nossas próprias ideias os seus decretos soberanos; só ele resolverá
todas as questões litigiosas, silenciará as dissidências e declarará errado ou
certo a quem tenha direito. Diante desse imponente acordo de todas as vozes
do céu, que poder tem a opinião de um único homem ou Espírito? Menos do
que uma gota d’água que se perde no oceano, menos do que a voz de uma
criança abafada pela tempestade.
A opinião universal — eis o juiz supremo, aquele que se pronuncia em
última instância. Ela se forma de todas as opiniões individuais; se uma delas
for verdadeira, não terá mais do que o seu peso relativo na balança; se for
falsa, não poderá prevalecer sobre as demais. Nesse imenso concurso, as
individualidades desaparecem, e isso constitui um novo baque para o orgulho
humano.
Esse conjunto harmonioso já se desenha; ora, este século não passará
sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a solucionar todas as
incertezas, porque, daqui até lá, potentes vozes terão recebido a missão de se
fazerem ouvir para congregar os homens sob a mesma bandeira, desde que o
campo se ache suficientemente lavrado. Enquanto isso, aquele que flutuar
entre dois sistemas opostos poderá observar em que sentido se forma a
opinião geral: este é o indício certo do sentido em que se pronuncia a maioria
dos Espíritos, nos diversos pontos onde se eles comunicam; é um sinal não
menos certo de qual dos dois sistemas prevalecerá.

III – NOTÍCIAS HISTÓRICAS


Para bem compreender certas passagens dos Evangelhos, é necessário
conhecer o valor de várias palavras neles empregadas frequentemente, e que
caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia naquela época. Essas
palavras, já não tendo para nós o mesmo significado, muitas vezes têm sido
mal interpretadas, e por isso mesmo tem causado uma espécie de incerteza.
Além disso, a compreensão de sua significação explica o verdadeiro sentido
de certas máximas que parecem estranhas à primeira vista.
27 – O Evangelho segundo o Espiritismo

SAMARITANOS – Após o cisma das dez tribos, Samaria tornou-se a capital do


reino dissidente de Israel. Destruída e reconstruída várias vezes, ela foi, sob o
domínio romano, a sede administrativa da Samaria — uma das quatro
divisões da Palestina. Herodes, dito o Grande, a embelezou com suntuosos
monumentos e, para lisonjear Augusto, deu-lhe o nome de Augusta, em grego
Sébaste.
Os samaritanos quase sempre estiveram em guerra com os reis de Judá;
uma aversão profunda, datando da separação, perpetuou-se entre os dois
povos, que evitavam todas as relações recíprocas. Os samaritanos, para tornar
a cisão mais profunda e não ter que vir a Jerusalém para a celebração das
festas religiosas, construíram para si um templo particular e adotaram
algumas reformas; eles só admitiam o Pentateuco4 contendo a lei de Moisés e
rejeitavam todos os livros que nele foram anexados depois. Seus livros
sagrados eram escritos em caracteres hebraicos da mais alta antiguidade. Aos
olhos dos judeus ortodoxos eles eram heréticos e, por isso mesmo,
desprezados, anatematizados e perseguidos. O antagonismo das duas nações
então tinha por único princípio a divergência de opiniões religiosas, embora
suas crenças tivessem a mesma origem. Os samaritanos eram os protestantes
daquele tempo.
Ainda hoje se encontram samaritanos em algumas regiões do Oriente
Médio, particularmente em Nablus e em Jafa. Eles seguem a lei de Moisés com
mais rigor do que os outros judeus e só se casam entre si.

NAZARENOS – Nome dado, na antiga lei, aos judeus que faziam voto —
perpétuo ou temporário — de conservar uma perfeita pureza; eles se
devotavam à castidade, à abstinência de bebidas alcoólicas e à conservação da
cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram nazarenos.
Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros cristãos, por
alusão a Jesus de Nazaré.
Esse também foi o nome de uma seita herética dos primeiros séculos da
Era Cristã, a qual — assim como os ebionitas, de quem adotavam certos
4 Pentateuco: os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio)
cuja autoria é atribuída a Moisés; também é conhecida como Torá (Lei, em hebraico). — N. T.
28 – Allan Kardec

princípios — misturava as práticas mosaicas com dogmas cristãos. Essa seita


desapareceu no quarto século.

PUBLICANOS – Chamavam-se assim, na antiga Roma, os cavalheiros


arrendatários das taxas públicas, incumbidos da coleta dos impostos e das
rendas de toda natureza — tanto na própria Roma quanto nas outras partes
do Império. Eram semelhantes aos arrendatários gerais e contratantes do
antigo regime na França, ainda existem em algumas regiões. Os riscos que eles
corriam faziam que fechassem os olhos para a riqueza que muitas vezes eles
adquiriam e que, para muitos deles, era fruto de abusos e lucros escandalosos.
O nome publicano se estendeu posteriormente a todos os que administravam
os recursos públicos e aos agentes subalternos. Hoje, esse termo é empregado
em sentido pejorativo para designar os financistas e negociantes pouco
escrupulosos; diz-se, às vezes: “Ávido como um publicano; rico como um
publicano”, sobre uma fortuna de má procedência.
Da dominação romana, o imposto foi aquilo que os judeus aceitaram com
mais dificuldade e o que mais causou irritação entre eles; surgiram várias
revoltas, fazendo do imposto uma questão religiosa, porque ele era visto
como contrário à lei. Formou-se até um partido poderoso à frente do qual
estava um certo Judá — dito o Golanita — que tinha como princípio a recusa
do imposto. Os judeus, portanto, tinham horror ao imposto e, por conseguinte,
a todos os que eram encarregados de arrecadá-lo; daí a aversão deles aos
publicanos de todas as categorias, entre os quais podiam encontrar-se
pessoas muito estimáveis, mas que, em virtude de suas funções, eram
desprezadas, tal como as pessoas que se relacionavam com eles, incluídas na
mesma reprovação. Os judeus distintos achavam que seria se comprometer
caso tivessem relações próximas com eles.

PORTAGEIROS – Eram os cobradores de baixa categoria, encarregados do


recolhimento principalmente dos pedágios na entrada das cidades. Suas
funções correspondiam mais ou menos à dos aduaneiros e coletores de
alfândega; eles compartilhavam da mesma reprovação aos publicanos em
geral. É por essa razão que, no Evangelho, encontramos frequentemente o
nome de publicano associado ao de gente de má vida; essa qualificação não
29 – O Evangelho segundo o Espiritismo

se referia aos debochados e aos vagabundos; era um termo de desprezo,


sinônimo de gente de má companhia, indignas de se relacionar com pessoas
decentes.

FARISEUS (do hebraico Parasch: divisão, separação.) – A tradição formava


uma parte importante da teologia judia; consistia numa coletânea de
interpretações sucessivas dadas sobre o sentido das Escrituras e que eram
transformadas em artigos de dogma. Entre doutores, isso era um tema de
intermináveis discussões, muitas das vezes a respeito de simples questões de
palavras ou de formalidades, no gênero das disputas teológicas e das sutilezas
da escolástica da Idade Média. Daí nasceram diferentes seitas, cada qual
pretendendo ter o monopólio da verdade e — como quase sempre acontece
— todas se detestando cordialmente umas às outras.
Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus, que tinha como
chefe Hillel, doutor judeu nascido na Babilônia, fundador de uma famosa
escola, onde se ensinava que só se devia ter fé nas Escrituras. Sua origem
remonta ao ano 180 ou 200 a. C. Os fariseus foram perseguidos em diversas
épocas, notadamente no tempo de Hircano — soberano pontífice e rei dos
judeus —, de Aristóbulo e de Alexandre, rei da Síria; entretanto, tendo este
último lhes restituído as honras e os bens, os fariseus recuperaram seu poder
e o conservaram até a ruína de Jerusalém, no ano 70 da Era Cristã, época na
qual o nome deles desapareceu em consequência da dispersão dos judeus.
Os fariseus assumiam uma participação ativa nas controvérsias
religiosas. Fiéis observadores das práticas exteriores do culto e das
cerimônias, repletos de um zelo ardente de proselitismo e inimigos dos
inovadores, eles fingiam grande severidade de princípios; mas, sob as
aparências de uma devoção meticulosa, eles escondiam hábitos dissolutos,
muito orgulho e sobretudo um amor excessivo pela dominação. Para eles, a
religião era mais um meio de alcançar seus objetivos do que uma fé sincera.
Tinham só as aparências e a ostentação da virtude; todavia, através disso,
exerciam uma grande influência sobre o povo, aos olhos dos quais eles
passavam por sagradas personagens. Eis por que eram muito poderosos em
Jerusalém.
30 – Allan Kardec

Eles acreditavam — ou, pelo menos, fingiam acreditar — na Providência,


na imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos
mortos. (Cap. IV, item 4.) Jesus, que prezava antes de tudo a simplicidade e as
qualidades do coração, que preferia na lei o espírito que vivifica à letra que
mata, dedicou-se durante toda a sua missão a desmascarar a hipocrisia deles;
consequentemente, eles se transformaram em ferrenhos inimigos. É por isso
que os fariseus se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para incitar o povo
contra Jesus e sacrificá-lo.

ESCRIBAS – Nome inicialmente dado aos secretários dos reis de Judá e a certos
intendentes dos exércitos judeus. Mais tarde, essa designação foi aplicada
especialmente aos doutores que ensinavam a lei de Moisés e a interpretavam
para o povo. Faziam causa comum com os fariseus, de quem partilhavam os
princípios e a antipatia contra os inovadores; por isso Jesus os incluiu na
mesma reprovação.

SINAGOGA (do grego Sunagógê: assembleia, congregação.) – Não havia na


Judeia senão um único templo, o de Salomão, em Jerusalém, onde eram
celebradas as grandes cerimônias do culto. Os judeus se dirigiam para lá
todos os anos em peregrinação para as festas principais, como as da Páscoa,
da Dedicação e dos Tabernáculos. Foi nessas ocasiões que Jesus fez várias
viagens para lá. As outras cidades não dispunham de templos, mas sim de
sinagogas — edifícios onde os judeus se reuniam todo sábado (sabbat) para
fazer preces públicas, sob a direção dos anciãos, dos escribas ou doutores da
lei; nelas se faziam também leituras tiradas dos livros sagrados, que eram
explicadas e comentadas. Qualquer homem podia participar; foi por isso que
Jesus, mesmo sem ser sacerdote, ensinava nas sinagogas nos dias de sabbat.
Desde a ruína de Jerusalém e a diáspora dos judeus, as sinagogas, nas
cidades onde eles habitam, lhes servem de templos para a celebração do culto.

SADUCEUS – Seita judia que se formou por volta do ano 248 a.C.; assim
nomeada por causa de Sadoc, seu fundador. Os saduceus não acreditavam
nem na imortalidade da alma, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e
maus. No entanto, eles acreditavam em Deus; mas, como não esperavam nada
31 – O Evangelho segundo o Espiritismo

após a morte, só o serviam em vista de recompensas temporais, ao que,


segundo eles, limitava-se à sua providência. Assim, a satisfação dos sentidos
representava para eles a finalidade essencial da vida. Quanto às Escrituras,
atinham-se ao texto da lei antiga, não admitindo nem a tradição nem qualquer
interpretação; eles colocavam as boas obras e a observância pura e simples da
lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como se vê, os materialistas,
os deístas5 e os sensualistas da época. Essa seita era pouco numerosa, mas
contava com personagens importantes, tornando-se um partido político
oposto constantemente aos fariseus.

ESSÊNIOS – Seita judia fundada por volta do ano 150 a.C., no tempo dos
macabeus, e cujos membros, que habitavam uma espécie de monastério,
formavam entre si um tipo de associação moral e religiosa. Eles se
distinguiam pelos costumes brandos e pelas virtudes austeras, ensinavam o
amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na
ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra,
compartilhavam seus bens e se dedicavam à agricultura. Opostos aos
saduceus sensualistas, que negavam a imortalidade, e aos fariseus rigorosos
pelas práticas exteriores e nos quais a virtude era só aparente, os essênios
nunca participavam das querelas que dividiam essas duas seitas. Seu gênero
de vida parecia com a dos primeiros cristãos, e os princípios da moral que eles
professavam levaram algumas pessoas a pensarem que Jesus fizera parte
dessa seita antes do começo de sua missão pública. O que é certo é que ele
deve ter conhecido essa seita, mas nada prova que ele tivesse sido filiado a
ela, e tudo que foi escrito sobre esse assunto é hipotético.6

TERAPEUTAS (do grego therapeutés, formado de therapeuein: servir, cuidar;


5 Os deístas — a quem Kardec compara os saduceus da época de Jesus — formam a corrente filosófica
conhecida como Deísmo, que considera a razão como a única via capaz de explicar a existência de Deus,
rejeitando assim qualquer revelação espiritual e, por conseguinte, condenando toda religião organizada.
Um dos conceitos mais comuns dos deístas é o de que: Deus, caso exista, Não interfere nem na natureza
nem nos acontecimentos da vida humana. Essa doutrina foi difundida por grande parte dos filósofos
iluministas e enciclopedistas, século XVIII, e foi o precursor do ateísmo moderno. — N. T.
6A Morte de Jesus, que se diz escrita por um irmão essênio, é um livro completamente apócrifo, escrito
com o propósito de servir a uma determinada opinião e que traz nele mesmo a prova de sua origem
moderna.
32 – Allan Kardec

quer dizer. servidores de Deus ou curadores.) – Sectários judeus


contemporâneos do Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no
Egito. Tinham boa relação com os essênios, cujos princípios eles professavam;
igual a esses últimos, eles se entregaram à prática de todas as virtudes. Sua
alimentação era extremamente frugal; devotados ao celibato, à contemplação
e à vida solitária, eles formaram uma verdadeira ordem religiosa. Fílon de
Alexandria, filósofo judeu platônico, foi o primeiro a falar dos terapeutas,
fazendo deles uma seita do judaísmo. Eusébio, São Jerônimo e outros Pais da
Igreja pensavam que eles eram cristãos. Que eles fossem judeus ou cristãos, é
evidente que, do mesmo modo que os essênios, eles formavam o traço de
união entre o judaísmo e o cristianismo.

IV – SÓCRATES E PLATÃO,
PRECURSORES DA IDEIA CRISTÃ E DO ESPIRITISMO

Do fato de que Jesus devia conhecido a seita dos essênios, seria errôneo
concluir que ele tirou a sua doutrina dessa seita e que, se ele tivesse vivido
noutro meio, teria professado outros princípios. As grandes ideias jamais
surgem subitamente; aquelas que tem por base a verdade sempre têm
precursores que lhes preparam parcialmente os caminhos; ademais, quando é
chegado o tempo, Deus envia um homem com a missão de resumir, coordenar
e completar os elementos esparsos e formar a unidade deles; desse modo, não
surgindo bruscamente, a ideia encontra já no seu aparecimento espíritos
bastante dispostos a aceitá-la. Assim aconteceu com a ideia cristã que foi
pressentida vários séculos antes de Jesus e dos essênios, e da qual Sócrates e
Platão foram os principais precursores.
Sócrates, bem como o Cristo, nada escreveu, ou pelo menos não deixou
nenhum escrito. Como ele, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo,
por ter atacado as crenças conhecidas e por ter colocado a virtude real acima
da hipocrisia e do simulacro das formalidades — numa palavra, por ter
combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus foi acusado
pelos fariseus de corromper o povo com os seus ensinamentos, Sócrates
também foi acusado pelos fariseus do seu tempo — pois sempre houve
33 – O Evangelho segundo o Espiritismo

fariseus em todas as épocas — de corromper a juventude ao proclamar o


dogma da unidade de Deus, da imortalidade da alma e da vida futura. E assim
como só conhecemos a doutrina de Jesus pelos escritos de seus discípulos, nós
conhecemos a de Sócrates somente pelos escritos de seu discípulo Platão.
Cremos ser conveniente resumir aqui os pontos mais salientes para mostrar
sua concordância com os princípios do cristianismo.
Aos que encararem essa comparação como uma profanação e pretendam
que não pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo,
responderemos: que a doutrina de Sócrates não era pagã, pois tinha como
propósito combater o paganismo; que a doutrina de Jesus, mais completa e
mais depurada que a de Sócrates, nada tem a perder com a comparação; que a
grandeza da missão divina do Cristo não poderia com isso ser diminuída; que,
além disso, é um fato da História, que não pode ser abafada. O homem chegou
a um ponto em que a luz eclode por si mesma de debaixo do alqueire; ele está
maduro o bastante para encará-la; tanto pior para os que não ousem abrir os
olhos. Chegou a hora de considerarmos as coisas largamente e de modo
elevado, e não mais do ponto de vista mesquinho e limitado dos interesses de
seitas e de castas.
Essas citações provarão também que, se Sócrates e Platão pressentiram
a ideia cristã, encontram-se igualmente em sua doutrina os princípios
fundamentais do Espiritismo.

Resumo da doutrina de Sócrates e de Platão

I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, ela existia


unida aos tipos primordiais, às ideias do verdadeiro, do bem e do belo; ela se
separa deles ao encarnar e, recordando o seu passado, fica mais ou menos
atormentada pelo desejo de lá voltar.

Não se pode enunciar mais claramente a distinção e a independência


entre o princípio inteligente e o princípio material; é, além disso, a doutrina
da preexistência da alma, da vaga intuição que ela conserva de um outro
mundo ao qual ela aspira, da sua sobrevivência ao corpo, da sua saída do
34 – Allan Kardec

mundo espiritual para encarnar e do seu retorno a esse mesmo mundo após a
morte; é, enfim, a semente da doutrina dos anjos decaídos.

II. A alma se desvia e se perturba quando se serve do corpo para considerar


qualquer objeto; tem vertigem como se estivesse ébria, porque se apega a
coisas que, por sua natureza, são sujeitas a mudanças; em vez que, quando ela
contempla a sua própria essência, então caminha em direção ao que é puro,
eterno, imortal, e, sendo ela da mesma natureza, permanece ligada nisso pelo
tempo que ela puder; logo suas inconstâncias cessam, pois ela fica unida ao
que é imutável e é a esse estado da alma que chamamos sabedoria.

Assim, o homem que considera as coisas de baixo, terra a terra, do ponto


de vista material, torna-se iludido; para apreciá-las com justeza, é preciso
enxergá-las do alto, isto é, do ponto de vista espiritual. A verdadeira sabedoria
deve, portanto, de algum modo isolar a alma do corpo, para ver com os olhos
do Espírito. É o que ensina o Espiritismo. (Cap. II, item 5.)

III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhada nessa


corrupção, jamais possuiremos o objeto dos nossos desejos: a verdade. De
fato, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade que temos de cuidar
dele; no mais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil
quimeras e de mil tolices, de maneira que com ele é impossível ser sábio um
só instante. Todavia, se nada for possível conhecer puramente enquanto a
alma estiver ligada ao corpo, então é preciso uma de duas coisa: ou jamais
conheceremos a verdade ou só a conheceremos após a morte. Libertos da
loucura do corpo, então é de se esperar que conversaremos com homens
igualmente livres e assim conheceremos, por nós mesmos, a essência das
coisas. Eis por que os verdadeiros filósofos se preparam para morrer e a
morte não lhes parece nada terrível. (O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. II; 2ª
parte, cap. I.)

Aí está o princípio das faculdades da alma obscurecidas em função dos


órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades após a morte. Mas não se
trata aqui senão de almas da elite, já depuradas; não é o mesmo caso das
almas impuras.
35 – O Evangelho segundo o Espiritismo

IV. A alma impura, nesse estado, fica oprimida e é arrastada novamente para
o mundo visível pelo horror do que é invisível e imaterial; então ela vaga —
como se diz — em torno dos monumentos e dos túmulos, junto aos quais já se
têm visto algumas vezes fantasmas tenebrosos, como devem ser as imagens
das almas que deixaram o corpo sem estarem inteiramente puras e que ainda
conservam alguma coisa da forma material — o que faz com que o olho possa
percebê-las. Não são as almas dos bons, mas as dos maus, que são forçadas a
vagar nesses lugares, onde trazem consigo a punição da sua vida anterior e
onde continuam a errar até que os apetites inerentes à forma material — que
eles mesmos se deram — as recoloquem num corpo; e com isso, sem dúvidas,
retomam os mesmos costumes que durante a vida anterior representavam o
objeto de suas predileções.

Não somente o princípio da reencarnação se encontra claramente


expresso aí, mas também o estado das almas que ainda estão sob o império da
matéria é descrito tal como o Espiritismo mostra nas evocações. E tem mais: é
dito que a reencarnação num corpo material é uma consequência da impureza
da alma, enquanto as almas purificadas estão livres disso. O Espiritismo não
diz outra coisa; apenas acrescenta que a alma que tomou boas resoluções na
erraticidade e que adquiriu conhecimentos traz consigo ao renascer menos
defeitos, mais virtudes e mais ideias intuitivas do que tinha na sua existência
precedente; desse modo, cada existência marca para a alma um progresso
intelectual e moral. (O Céu e o Inferno, 2ª parte, Exemplos.)

V. Após a nossa morte, o gênio (daïmon, demônio), que nos tinha sido
designado durante a nossa vida, nos encaminha a um lugar onde se reúnem
todos os que deviam ser conduzidos ao Hades7, para ali serem julgados.
Depois de terem estado no Hades o tempo necessário, as almas são
reconduzidas a esta vida nos numerosos e longos períodos.
Essa é a doutrina dos anjos guardiões, ou Espíritos protetores, e das
reencarnações sucessivas após intervalos mais ou menos longos de
erraticidade.
7Hades: o mundo inferior, segundo a mitologia grega; mais ou menos equivalente ao inferno da tradição
bíblica. — N. T.
36 – Allan Kardec

VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; eles formam o
laço que une o Grande Todo consigo mesmo. Como a divindade jamais entra
em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os
deuses se relacionam e conversam com ele — quer seja durante a vigília, quer
seja durante o sono.

A palavra daïmon, da qual fizeram o termo demônio, não era tomada em


sentido negativo na Antiguidade, como é nos tempos modernos; não se referia
exclusivamente aos seres malfazejos, mas a todos os Espíritos em geral, entre
os quais se distinguiam os Espíritos superiores, chamados de deuses, e os
Espíritos menos elevados, ou demônios propriamente ditos, que se
comunicavam diretamente com os homens. O Espiritismo também afirma que
os Espíritos povoam o espaço; que Deus não se comunica com os homens
senão pelo intermédio dos Espíritos puros incumbidos de transmitir as
vontades dele; que os Espíritos se comunicam com os homens durante a
vigília e durante o sono. Substitua a palavra demônio pela palavra Espírito e
vocês terão a doutrina espírita; ponham a palavra anjo e terão a doutrina
cristã.

VII. A preocupação constante do filósofo (tal como Sócrates e Platão


entendiam) é a de tomar o maior cuidado com a alma, menos para esta vida —
que não dura mais que um instante — do que tendo em vista a eternidade. Já
que a alma é imortal, não é prudente viver visando a eternidade?

O Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa.

VIII. Já que a alma é imaterial, ela deve passar, após esta vida, para um mundo
igualmente invisível e imaterial, do mesmo modo que o corpo ao se decompor
retorna à matéria. Importa somente distinguir bem a alma pura —
verdadeiramente imaterial e que, como Deus, se nutre de ciência e
pensamentos — da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais,
que a impedem de se elevar rumo ao divino e a retêm nos lugares de sua
passagem terrestre.

Como se vê, Sócrates e Platão compreendiam perfeitamente os diversos


37 – O Evangelho segundo o Espiritismo

graus de desmaterialização da alma; eles insistem na diferença de situação


que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O que eles diziam por
intuição o Espiritismo o prova pelos numerosos exemplos que ele põe sob os
nossos olhos. (O céu e o inferno, 2ª parte.)

IX. Se a morte fosse a dissolução total do homem, isso seria uma grande
vantagem para os ímpios após a sua morte, por ficarem livres ao mesmo
tempo do corpo, da alma e dos vícios. Aquele que adornou sua alma — não
com enfeites estranhos, mas sim com aquilo que lhe é próprio —, só esse
poderá esperar tranquilamente a hora da sua partida para o outro mundo.

Em outros termos, isso é dizer que o materialismo — que proclama o


nada após a morte — seria a anulação de toda responsabilidade moral
ulterior e, por conseguinte, um estímulo ao mal; que o mau tem tudo a ganhar
como o nada; que apenas o homem despojado dos seus vícios e enriquecido
de virtudes pode esperar tranquilamente o despertar na outra vida. O
Espiritismo nos mostra, pelos exemplos que ele diariamente põe sob os
nossos olhos, quão penoso é para o ímpio o passamento de uma vida para a
outra, isto é, a entrada na vida futura. (O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. I.)

X. O corpo conserva bem marcados os vestígios dos cuidados que lhe foram
dispensados ou dos acidentes que sofreu. Ocorre o mesmo com a alma; uma
vez despojada do corpo ela traz os traços evidentes do seu caráter, de suas
afeições e as impressões que cada um dos atos de sua vida deixou nela. Assim,
a maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com
uma alma carregada de crimes. Veja, Cálicles, que nem tu nem Pólux, nem
Górgias poderiam provar que se deva seguir outra vida que nos seja útil
quando estivermos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única que
permanece inabalável é a de que mais vale sofrer do que cometer uma
injustiça e que, antes de todas as coisas, devemos cuidar, não de parecer um
homem de bem, mas de ser um homem de bem. (Diálogos de Sócrates com
seus discípulos na prisão.)

Aqui nós encontramos esse outro ponto capital, confirmado hoje pela
experiência: que a alma não depurada conserva as ideias, as tendências, o
38 – Allan Kardec

caráter e as paixões que ela tinha na Terra. Esse ditado: mais vale sofrer do
que cometer uma injustiça, não é completamente cristão? É o mesmo
pensamento que Jesus exprimiu através desta alegoria: “Se alguém te bater
numa face, ofereça-lhe a outra.” (Cap. XII, itens 7 e 8.)

XI. De duas coisas, uma: ou a morte é uma destruição absoluta ou é a


passagem da alma para outro lugar. Se tudo deve se extinguir, a morte será
como uma dessas raras noites que passamos sem sonhar e sem nenhuma
consciência de nós mesmos. Mas se a morte é apenas uma mudança de
estadia, a passagem para um lugar onde os mortos devem se reunir, que
felicidade é encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! Meu maior prazer
seria examinar de perto os habitantes dessa outra morada e de distinguir lá,
tal como aqui, aqueles que são sábios dos que acreditam sê-lo e não o são.
Contudo, é tempo de nos separarmos, eu para morrer, você para viver.
(Sócrates aos seus juízes.)

Segundo Sócrates, os homens que viveram na Terra se reencontram após


a morte e se reconhecem. O Espiritismo nos mostra isso continuando as
relações que existentes entre eles, de tal sorte que a morte não é nem uma
interrupção nem a cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de
continuidade.
Se Sócrates e Platão tivessem conhecido os ensinamentos que o Cristo
daria quinhentos anos mais tarde e os que estão sendo dado atualmente pelos
Espíritos, eles não teriam falado de outro jeito. Quanto a isso, não há nada que
deva surpreender, se considerarmos que as grandes verdades são eternas e
que os Espíritos avançados devem tê-las conhecido antes de virem à Terra,
para onde eles as trouxeram; se considerarmos que Sócrates, Platão e os
grandes filósofos daqueles tempos puderam estar mais tarde entre aqueles
que auxiliaram o Cristo na sua missão divina, e que tenham sido escolhidos
precisamente porque eles estavam, mais do que outros, em condições de
compreender as suas sublimes lições; se, enfim, considerarmos que eles hoje
podem fazer parte da plêiade dos Espíritos encarregados de vir ensinar aos
homens as mesmas verdades.
39 – O Evangelho segundo o Espiritismo

XII. Nunca se deve pagar injustiça com injustiça, nem fazer mal a
ninguém, qualquer que seja o mal que nos tenham feito. Entretanto,
poucos admitirão esse princípio, e os que discordarem dele naturalmente só
desprezarão uns aos outros.
Não está aí o princípio da caridade que nos ensina a não retribuir o mal
com o mal e a perdoar os nossos inimigos?

XIII. É pelos frutos que se conhece a árvore. É preciso qualificar cada ação
conforme aquilo que ela produz: chamá-la de má, quando dela vem o mal, e
de boa, quando dela nasce o bem.
Esta máxima: “É pelos frutos que se conhece a árvore”, encontra-se
textualmente repetida várias vezes no Evangelho.

XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama
nem a si mesmo nem ao que é seu, mas sim a uma coisa que lhe é ainda mais
estranha do que aquilo que lhe pertence. (Cap. XVI.)

XV. As mais belas orações e os mais belos sacrifícios agradam menos à


Divindade do que uma alma virtuosa que se esforça para se assemelhar a ela.
Seria uma coisa grave se os deuses tivessem mais consideração pelas
oferendas do que pela nossa alma; se fosse assim, os mais culpados poderiam
se beneficiar disso. Mas não; não há verdadeiramente justos e sábios exceto
aqueles que, por suas palavras e por seus atos, cumprem o que devem para
com os deuses e para com os homens. (Cap. X, itens 7 e 8.)

XVI. Chamo de homem vicioso a esse amante vulgar que ama o corpo mais do
que a alma. O amor está por toda parte na natureza, convidando-nos a
exercer nossa inteligência; nós o encontramos até no movimento dos astros.
É o amor que ornamenta a natureza com os seus ricos tapetes; ele se enfeita e
fixa sua morada lá onde encontra flores e perfumes. É também o amor que dá
paz aos homens, a calma ao mar, o silêncio aos ventos e o sono à dor.

O amor, que deve unir os homens por um laço fraternal, é uma


consequência dessa teoria de Platão sobre o amor universal, como a lei da
natureza. Em razão de Sócrates ter dito que “o amor não é nem um deus nem
40 – Allan Kardec

um mortal, mas um grande demônio”, ou seja, um grande Espírito que preside


o amor universal, essa afirmação especialmente lhe foi imputada como crime.

XVII. A virtude não pode ser ensinada; ela vem por um dom de Deus aos que a
possuem.
Isso é quase a doutrina cristã sobre a graça; mas, se a virtude for um
dom de Deus, seria um favor, e então podemos perguntar por que essa virtude
não seria concedida a todo mundo; por outro lado, se for um dom, não haverá
mérito para aquele que a possui. O Espiritismo é mais explícito ao dizer que
aquele que possui virtude a adquiriu por seus esforços, nas suas existências
sucessivas em se despojando pouco a pouco de suas imperfeições. A graça é a
força com a qual Deus favorece todo homem de boa vontade para se depurar
do mal e para fazer o bem.

XVIII. Existe uma disposição natural em cada um de nós, que é a de


percebermos bem menos os nossos defeitos do que os defeitos de outrem.

O Evangelho diz: “Vocês enxergam um cisco no olho do vizinho e não


enxergam a trave que está no vosso olho.” (Cap. X, itens 9 e 10.)

XIX. Se os médicos fracassam na maior parte das enfermidades, é porque eles


tratam do corpo sem a alma, e porque, se o todo não estiver em bom estado,
é impossível que uma parte esteja bem.

O Espiritismo dá a chave das relações existentes entre a alma e o corpo, e


prova que há uma reação incessantemente de um sobre o outro. Assim, ele
abre um novo caminho para a ciência; ao lhe mostrar a verdadeira causa de
certas afecções, ele lhe fornece os meios de combatê-las. Quando a ciência
levar em conta a ação do elemento espiritual no organismo, ela fracassará
com menos frequência.

XX. Todos os homens, a partir da infância, fazem muito mais mal do que bem.
Essa afirmação de Sócrates toca na grave questão da predominância do
mal na Terra, questão insolúvel sem o conhecimento da pluralidade dos
41 – O Evangelho segundo o Espiritismo

mundos e da destinação da Terra, onde estão habitando apenas uma fração


muito pequena da humanidade. Só o Espiritismo dá a solução para essa
questão, que está desenvolvida logo adiante nos capítulos II, III e IV.

XXI. Há sabedoria em não achar que sabe aquilo que você não sabe.

Essa vai endereçada às pessoas que criticam aquilo de que muitas vezes
elas não sabem absolutamente nada. Platão completa esse pensamento de
Sócrates, dizendo: “Primeiro, tentemos tornar essas pessoas — se for possível
— mais honestas nas palavras; se não for possível, não nos preocupemos
com elas e vamos procurar somente a verdade. Tratemos de nos instruir, mas
não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os espíritas com relação
aos seus contraditores de boa ou má-fé. Se Platão revivesse hoje, ele
encontraria as coisas mais ou menos como no seu tempo e poderia usar da
mesma linguagem. Sócrates também toparia com gente que zombaria da sua
crença nos Espíritos e que o trataria como louco, assim como ao seu discípulo
Platão.
Por ter professado esses princípios, primeiro Sócrates foi ridicularizado
e depois acusado de impiedade, sendo condenado a beber da cicuta;8 tanto é
assim que as grandes verdades novas — suscitando contra si os interesses e
os preconceitos que elas ferem — não podem se estabelecer sem luta e sem
fazer mártires.

8 Cicuta: veneno fatal que Sócrates foi obrigado a ingerir para cumprir sua pena de morte. — N. T.
42 – Allan Kardec

CAPÍTULO I

NÃO VIM DESTRUIR A LEI


As três revelações: Moisés, o Cristo e o Espiritismo
– Aliança da ciência e da religião –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A Nova Era

1. Não pensem que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas; não os vim
destruir, mas sim cumpri-los, pois eu lhes digo em verdade que o céu e a
Terra não passarão até que tudo o que consta na lei esteja perfeitamente
cumprido, desde um único jota até um único ponto. (São Mateus, 5: 17 e 18)

Moisés
2. Há duas partes distintas na lei mosaica: a lei de Deus, promulgada no monte
Sinai, e a lei civil, ou disciplinar, estabelecida por Moisés. Uma é invariável; a
outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o
tempo.
A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes:
I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirou do Egito, da casa da servidão. –
Não tenham diante de mim outros deuses estrangeiros. – Não façam imagem
esculpida e nem figura alguma de tudo o que está acima no céu e embaixo, na
Terra, nem de tudo o que está nas águas, sob a terra. Não os adorem e nem
lhes prestem nenhum o soberano culto.
II. Não tomem em vão o nome do Senhor, vosso Deus.
III. Lembrem-se de santificar o sábado (dia do sabbat).
IV. Honrem o vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverem longo tempo na terra
que o Senhor vosso Deus vos dará.
V. Não matem.
43 – O Evangelho segundo o Espiritismo

VI. Não cometam adultério.


VII. Não roubem.
VIII. Não prestem falso testemunho contra o vosso próximo.
IX. Não cobicem a mulher do vosso próximo.
X. Não cobicem a casa do vosso próximo, nem o seu servo, nem a sua serva,
nem o seu boi, nem o seu jumento, nem qualquer outra coisa que lhe
pertença.9
Essa lei é de todos os tempos e de todos os países, e por isso mesmo tem
um caráter divino. Todas as outras são leis estabelecidas por Moisés, obrigado
a manter pelo temor um povo naturalmente turbulento e indisciplinado, no
qual ele tinha que combater arraigados abusos e preconceitos adquiridos
durante a escravidão do Egito. Para impor autoridade às suas leis, ele
precisou atribuir a elas uma origem divina, assim como fizeram todos os
legisladores dos povos primitivos. A autoridade do homem precisava se
apoiar na autoridade de Deus, mas só a ideia de um Deus terrível podia
impressionar homens ignorantes, em quem o senso moral e o sentimento de
uma requintada justiça estavam ainda pouco desenvolvidos. É evidente que
aquele que tivesse colocado entre os seus mandamentos: “Não matam; não
façam mal ao teu próximo”, não poderia se contradizer ao fazer da
exterminação um dever. As leis mosaicas propriamente ditas tinham, pois, um
caráter essencialmente transitório.

O Cristo

3. Jesus não veio destruir a lei, quer dizer, a lei de Deus; ele veio cumpri-la,
isto é, desenvolvê-la, dar a ela o seu verdadeiro sentido e a adequar ao grau de
adiantamento dos homens. É por isso que encontramos nessa lei o princípio
dos deveres para com Deus e para com o próximo, que constitui a base da sua
doutrina. Quanto às leis de Moisés propriamente ditas, ele, ao contrário, as
modificou profundamente — tanto na sua essência quanto na sua forma: ele

9 Êxodo, 20: 2 a 17. — N. T.


44 – Allan Kardec

combateu constantemente o abuso das práticas exteriores e as falsas


interpretações, e não podia fazê-las passar por uma reforma mais radical do
que as reduzindo a estas palavras: “Amar a Deus acima de todas as coisas e ao
teu próximo como a si mesmo”, e dizendo: aí está toda a lei e os profetas.
Por estas palavras: “O céu e a Terra não passarão até que tudo esteja
cumprido, desde um único jota”, Jesus quis dizer que era necessário que a lei
de Deus recebesse seu cumprimento — quer dizer, que fosse praticada sobre
toda a Terra, em toda a sua pureza, com todos os seus desenvolvimentos e
todas as suas consequências, pois, de que serviria ter estabelecido essa lei, se
ela devesse manter o privilégio de alguns homens ou mesmo de um único
povo? Como todos os homens são filhos de Deus, então todos — sem exceção
—- são objeto de uma mesma solicitude.

4. Mas o papel de Jesus não foi simplesmente o de um legislador moralista,


sem outra autoridade além da sua palavra; ele veio cumprir as profecias que
haviam anunciado o seu advento; ele detinha sua autoridade da natureza
excepcional do seu Espírito e da sua missão divina; veio ensinar aos homens
que a verdadeira vida não é na Terra, e sim no reino dos céus; veio lhes
ensinar o caminho que conduz a esse reino, os meios de se reconciliar com
Deus e lhes intuir sobre a marcha das coisas por vir, para a cumprimento do
destino humano. Entretanto, ele não disse tudo, e com relação a muitas
questões ele se limitou a plantar o germe de verdades que ele mesmo
declarou que ainda não podiam ser compreendidas. Ele falou de tudo, mas em
termos mais ou menos explícitos; para entender o sentido oculto de certas
palavras, era preciso que novas ideias e novos conhecimentos viessem dar a
chave desse entendimento, e essas ideias não podiam vir antes de um
determinado grau de maturidade do espírito humano. A ciência devia
contribuir poderosamente para a eclosão e o desenvolvimento dessas ideias;
fazia-se necessário, portanto, dar tempo para a ciência progredir.

O Espiritismo
5. O espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de
provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas
45 – O Evangelho segundo o Espiritismo

relações com o mundo corpóreo; ele no-lo mostra não mais como coisa
sobrenatural, mas ao contrário, como uma das forças vivas e incessantemente
atuantes da natureza, como a fonte de uma multidão de fenômenos até hoje
incompreendidos e, por essa razão, relegados ao domínio do fantástico e do
maravilhoso. É a essas relações que o Cristo faz alusão em muitas
circunstâncias, e é por isso que muitas coisas que ele disse permaneceram
ininteligíveis ou foram falsamente interpretadas. O espiritismo é a chave pela
qual tudo se explica com facilidade.

6. A Lei do Antigo Testamento está personificada em Moisés; a do Novo


Testamento está no Cristo; o Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus,
mas não está personificada em nenhum indivíduo, porque é produto do
ensinamento dado, não por um homem, e sim pelos Espíritos, que são as
vozes do céu, em todos os cantos da Terra e por uma multidão inumerável de
intermediários; é, de certa maneira, um ser coletivo, formado pelo conjunto
dos seres do mundo espiritual, cada qual trazendo aos homens a contribuição
de suas luzes, para fazê-los conhecer esse mundo e a sorte que lá os espera.

7. Assim como o Cristo disse: “Eu não vim destruir a lei, mas cumpri-la”, o
espiritismo diz igualmente: “Não venho destruir a lei cristã, mas cumpri-la”.
Ele não ensina nada contrário ao que o Cristo ensinou; ele desenvolve,
completa e explica, em termos claros para todo mundo, o que foi dito apenas
sob uma forma alegórica; ele vem realizar, nos tempos preditos, aquilo que o
Cristo anunciou, e vem preparar a concretização das coisas futuras.10 Em
suma, ele é a obra do Cristo, que preside pessoalmente — assim como ele
igualmente anunciou — a regeneração que se opera e prepara o reino de Deus
na Terra.

Aliança da ciência e da religião


8. A ciência e a religião são as duas alavancas da inteligência humana; uma

10Esta predição feita por Jesus, que o Espiritismo vem realizar, está bem desenvolvida no capítulo VI: O
Cristo Consolador, nesta obra. — N. T.
46 – Allan Kardec

revela as leis do mundo material e a outra as leis do mundo moral; porém,


ambas, tendo o mesmo princípio, que é Deus, não podem se contradizer; se
fossem a negação uma da outra, uma necessariamente estaria certa e a outra
estaria errada, pois Deus não pode querer destruir a sua própria obra. A
incompatibilidade que alguns acreditam ver entre essas duas ordens de ideias
deriva de uma falta de observação e de um grande exclusivismo da parte de
um e de outro; daí surge um conflito do qual nasceram a incredulidade e a
intolerância.
Chegou o tempo em que os ensinamentos do Cristo devem receber o seu
complemento; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes
desse ensino há de ser levantado; em que a ciência, deixando de ser
exclusivamente materialista, há de levar em conta o elemento espiritual, e em
que a religião, deixando de desconhecer as leis orgânicas e imutáveis da
matéria, essas duas forças — apoiando-se uma na outra e marchando em
harmonia — se prestarão mútuo apoio. Então, não mais desmentida pela
ciência, a religião adquirirá uma força inabalável, porque estará de acordo
com a razão e já não será mais possível se opor à irresistível lógica dos fatos.
A ciência e a religião não puderam se entender até o presente porque,
como cada uma delas tem encarado as coisas do seu ponto de vista exclusivo,
elas se repeliram mutuamente. Faltava alguma coisa para preencher o vazio
que as separava, faltava um traço de união que as aproximasse; esse traço de
união está no conhecimento das leis que regem o mundo espiritual e suas
relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o
movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez constatadas essas
relações, através da experiência, fez-se uma nova luz: a fé dirigiu-se à razão, a
razão nada encontrou de ilógico na fé, e o materialismo foi vencido. Mas nisso,
como em todas as coisas, há pessoas que permanecem retraídas, até que elas
sejam arrastadas pelo movimento geral que as esmaga, se elas quiserem
resisti-lo em vez de o acompanhar. É toda uma revolução moral que se opera
neste momento e trabalha as disposições; após ser elaborada durante mais de
dezoito séculos, essa revolução chega à sua efetivação e vai marcar uma nova
era para a humanidade. As suas consequências são fáceis de se prever; ela
deve trazer inevitáveis modificações nas relações sociais, às quais ninguém
47 – O Evangelho segundo o Espiritismo

tem o poder de se opor, porque elas fazem parte dos desígnios de Deus e
resultam da lei do progresso, que é uma lei de Deus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A Nova Era

9. Deus é único, e Moisés é o Espírito que Deus enviou em missão para torná-
lo conhecido, não só dos hebreus como também dos povos pagãos. O povo
hebreu foi o instrumento de que Deus se serviu para sua revelação através de
Moisés e dos profetas, e as vicissitudes desse povo ocorrem para
impressionar os olhos dos homens e derrubar o véu que lhes ocultava a
divindade.
Os mandamentos de Deus dados através de Moisés contêm o germe da
mais extensa moral cristã; os comentários sobre a Bíblia restringiram seu
significado porque, se essa moral tivesse sido implementada em toda a sua
pureza, ela então não teria sido compreendida. Mas nem por isso os dez
mandamentos de Deus deixavam de ser uma espécie de frontispício brilhante,
tal qual um farol que devesse iluminar a humanidade no caminho a percorrer.
A moral ensinada por Moisés era apropriada ao estado de adiantamento
no qual se encontravam os povos a quem ela foi chamada a regenerar, e esses
povos — semisselvagens quanto ao aperfeiçoamento da alma — não teriam
compreendido que era possível adorar a Deus de outro modo que não por
meio de holocaustos, nem que se devesse perdoar um inimigo. A inteligência
deles — que era notável do ponto de vista da matéria e até mesmo das artes e
das ciências — era bastante atrasada em moralidade, e não teria se
convertido sob a ordem de uma religião inteiramente espiritual; faltava para
eles uma representação semimaterial tal como a religião hebraica então a
oferecia. Era assim que os sacrifícios falavam aos seus sentidos, enquanto a
ideia de Deus falava ao seu espírito.
O Cristo foi o iniciador da moral mais pura e da mais sublime: da moral
evangélico-cristã que deve renovar o mundo, aproximar os homens e os
48 – Allan Kardec

tornar irmãos; que deve fazer brotar de todos os corações humanos a


caridade e o amor ao próximo, além de criar entre todos os homens uma
solidariedade comum; de uma moral, enfim, que há de transformar a Terra e a
tornar uma morada para Espíritos superiores aos que a habitam hoje. Esta é a
lei do progresso, à qual a natureza está submetida, que se cumpre, e o
espiritismo é a alavanca que Deus utiliza para fazer a humanidade avançar.
Chegaram os tempos em que as ideias morais devem se desenvolver
para realizar o progresso contido nos desígnios de Deus; elas devem seguir o
mesmo trajeto percorrido pelas ideias de liberdade — que foram suas
precursoras. Mas não devemos acreditar que esse desenvolvimento se faça
sem lutas; não, pois para chegar à maturidade, essas ideias precisam de
abalos e de discussões, a fim de que atraiam a atenção das massas. Uma vez
despertada a atenção, a beleza e a santidade da moral tocarão as disposições,
e elas se dedicarão a uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e lhes
abre as portas da felicidade eterna. Foi Moisés quem abriu o caminho; Jesus
continuou a obra; o espiritismo a concluirá.
UM ESPÍRITO ISRAELITA (Mulhouse, 1861)

10. Um dia, Deus, em sua inesgotável caridade, permitiu ao homem ver a


verdade penetrar nas trevas; esse dia foi o do advento do Cristo. Depois da
viva luz, as trevas voltaram; o mundo, após as alternâncias entre a verdade e a
obscuridade, novamente se perdia. Então, semelhantes aos profetas do Antigo
Testamento, os Espíritos se puseram a falar e a lhes advertir; o mundo está
abalado em seus alicerces; o trovão rugirá. Sejam firmes!
O espiritismo é de ordem divina, pois se fundamenta sobre as próprias
leis da natureza, e creiam bem que tudo o que é de ordem divina tem um
propósito grande e útil. O vosso mundo se perdia; a ciência — desenvolvida às
custas do que é de ordem moral e vos conduzindo somente ao bem-estar
material — convertia-se em proveito do espírito das trevas. Vocês sabem
disso, cristãos: o coração e o amor devem caminhar unidos à ciência. O reino
do Cristo — ah! —, após dezoito séculos e malgrado o sangue de tantos
mártires, ainda não veio. Cristãos, voltem-se para o Mestre, que quer salvar
vocês. Tudo é fácil àquele que crê e que ama; o amor o enche de uma inefável
49 – O Evangelho segundo o Espiritismo

alegria. Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos dizem isso
com frequência. Curvem-se ao sopro precursor da tempestade, para que não
sejam derrubados; quer dizer, preparem-se e não se assemelhem às virgens
loucas que foram apanhadas desprevenidas pela chegada do esposo.11
A revolução que se prepara é antes moral do que material, e os grandes
Espíritos, mensageiros divinos, sopram a fé, para que todos vocês, obreiros
esclarecidos e ardorosos, façam ouvir vossa humilde voz, pois vocês são o
grão de areia, mas sem grãos de areia não haveria montanhas. Assim, pois,
que esta afirmação “Somos pequenos” não façam sentido para vocês. Cada um
com sua missão, cada um com o seu trabalho. Não é a formiga que constrói o
seu formigueiro? Não são os animálculos imperceptíveis que elevam os
continentes? A nova cruzada já começou; apóstolos da paz universal e não de
uma guerra, modernos são Bernardos:12 olhem e marchem avante, pois a lei
dos mundos é a lei do progresso.
FÉNELON (Poitiers, 1861)

11. Santo Agostinho é um dos maiores divulgadores do espiritismo; ele se


manifesta quase por toda parte e a razão disso nós encontramos na vida desse
grande filósofo cristão. Ele pertence à vigorosa falange dos Pais da Igreja, aos
quais a cristandade deve os seus mais sólidos alicerces. Como muitos outros,
ele foi arrancado do paganismo, ou melhor, da impiedade mais profunda, pelo
clarão da verdade. Quando ele, em meio aos seus excessos, sentiu na sua alma
aquela estranha vibração que o fez voltar a si mesmo e lhe fez compreender
que a felicidade estava alhures, e não nos prazeres enervantes e efêmeros;
quando ele, no seu caminho de Damasco, enfim também ouviu a voz santa lhe
clamar: “Saulo, Saulo, por que me persegue?”, ele exclamou: “Meu Deus, meu
Deus! Perdoa-me, pois eu creio, eu sou cristão!” E desde então se tornou um
dos mais firmes sustentáculos do Evangelho. Podemos ler, nas marcantes
confissões que esse eminente Espírito nos deixou, as palavras características
e ao mesmo tempo proféticas que ele pronunciou após ter perdido santa
11 Referência à parábola contada por Jesus, segundo o Evangelho de Mateus, 25: 1 a 13. — N. T.
12Alusão a São Bernardo de Claraval (1090-1153), o organizador da Segunda Cruzada, uma expedição
armada dos cristãos ocidentais que tentou reconquistar o condado de Edessa (atualmente, Şanlıurfa -
Turquia), tomada pelos mulçumanos. — N. T.
50 – Allan Kardec

Mônica: “Estou convencido de que minha mãe virá me visitar e me dar


conselhos, revelando-me o que nos espera na vida futura.” Quanto
ensinamento nessas palavras e que brilhante previsão da futura doutrina! É
por isso que, hoje, vendo chegada a hora para a divulgação da verdade que ele
outrora tinha pressentido, ele se constituiu um ardoroso propagador e, por
assim dizer, se multiplica para responder a todos que o chamam.
ERASTO, discípulo de são Paulo (Paris, 1863)

Nota – Será que santo Agostinho vem demolir o que edificou? Não, certamente;
mas como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o que não via como homem;
sua alma desprendida entrevê novas claridades e compreende o que antes não
compreendia. Novas ideias lhe revelaram o verdadeiro sentido de certas palavras; na
Terra, ele julgava as coisas conforme os conhecimentos que possuía, mas quando uma
nova luz brilhou para ele, então pôde julgá-las mais claramente; foi assim que ele teve
que reconsiderar sua crença a respeito dos Espíritos íncubos e súcubos,13 além do
anátema14 que ele havia lançado contra a teoria dos antípodas. Agora, que o
cristianismo lhe aparece em toda a sua pureza, ele pode, sobre alguns pontos, pensar
de modo diverso de quando estava vivo, sem deixar de ser o apóstolo cristão; ele
pode, sem renegar sua fé, fazer-se o propagador do espiritismo, porque vê nele a
realização das coisas preditas. Proclamando-o hoje, ele não faz mais do que nos
conduzir a uma interpretação mais sã e mais lógica dos textos. Assim acontece com
outros Espíritos que se encontram numa posição análoga.

13 Segundo a crença vulgar, típica da Era Medieval, íncubos e súcubos eram os demônios que vinham
durante o sono tentar sexualmente os cristãos, com o objetivo de desviá-los do caminho religioso, sendo
o primeiro um diabo na forma masculina, para tentar as mulheres, e o outro na forma feminina, para
levar os homens à perdição. — N. T.
14Anátema: sentença de maldição aplicada pela religião católica contra os seus hereges, que então são
excomungados da igreja. — N. T.
51 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO II

MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO


A vida futura – A realeza de Jesus – O ponto de vista –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Uma realeza terrestre

1. Pilatos, tendo retornado ao palácio e tendo feito vir Jesus, disse-lhe: És tu o


rei dos judeus? — Jesus lhe respondeu: Meu reino não é deste mundo. Se o
meu reino fosse deste mundo, o meu povo teria combatido para impedir que
eu caísse nas mãos dos judeus; mas o meu reino não é aqui.”
Em seguida, disse-lhe Pilatos: Você é um rei? — Jesus lhe respondeu: Tu
o dizes; eu sou rei; eu nasci e vim a este mundo apenas para dar testemunho
da verdade; quem pertence à verdade escuta a minha voz.” (São João, 18: 33,
36 a 37.)

A vida futura

2. Por essas palavras, Jesus designa claramente a vida futura, que ele
apresenta em todas as circunstâncias como o término para o qual se
encaminha a humanidade e como devendo ser o objeto das principais
preocupações do homem na Terra; todas as suas máximas se reportam a esse
grande princípio. Com efeito, sem a vida futura, a maior parte dos seus
preceitos de moral não teriam nenhuma razão de ser; é por isso que aqueles
que não creem na vida futura — imaginando que ele só falava da vida
presente — não compreendem tais preceitos ou os acham infantis.
Portanto, esse dogma pode ser considerado como o ponto central do
ensinamento do Cristo; eis por que é colocado entre os primeiros lugares à
frente desta obra, pois ele deve ser o alvo de todos os homens; só ele pode
52 – Allan Kardec

justificar as anomalias da vida terrena e se harmonizar com a justiça de Deus.

3. Os judeus tinham ideias muito imprecisas no tocante à vida futura; eles


acreditavam nos anjos — que eles consideravam como seres privilegiados da
criação — mas não sabiam que os homens pudessem um dia se tornar anjos e
participar da felicidade destes. Segundo eles, a obediência às leis de Deus era
recompensada com os bens terrenos, com a supremacia de seu povo e com a
vitória sobre os seus inimigos; as calamidades públicas e as derrotas eram o
castigo da sua desobediência. Moisés não poderia dizer nada mais do que isso
a um povo pastor, ignorante, que precisava ser tocado antes de tudo pelas
coisas deste mundo. Mais tarde, Jesus viria lhe revelar que há outro mundo,
onde a justiça de Deus segue o seu curso; é esse mundo que ele promete aos
que observam os mandamentos de Deus e onde os bons encontrarão sua
recompensa. Esse mundo é o seu reino; é lá que Jesus está em toda a sua
glória e para onde ele retornaria ao deixar a Terra.
Entretanto, Jesus, adequando seu ensino ao estado dos homens de sua
época, não achou que devia lhes dar uma luz completa, que os teria
deslumbrado sem esclarecer, pois eles não a teriam compreendido; limitou-se
a apresentar, de algum modo, a vida futura como um princípio, como uma lei
da natureza da qual ninguém pode escapar. Logo, todo cristão acredita
necessariamente na vida futura, mas a ideia que muitos fazem dela é vaga,
incompleta e por isso mesmo falsa em diversos pontos; para grande parte
deles, não passa de uma crença sem nenhuma certeza absoluta; daí as dúvidas
e até mesmo a incredulidade.
O espiritismo veio completar nesse ponto, como em vários outros, o
ensinamento do Cristo, quando os homens estivessem maduros para
compreender a verdade. Com o espiritismo, a vida futura não é mais um
simples artigo de fé, uma hipótese; é uma realidade material demonstrada
pelos fatos, pois são as testemunhas oculares que vêm descrevê-la em todas
as suas fases e em todas as suas peripécias, de tal sorte que não somente a
dúvida já não é mais possível, como também a inteligência mais vulgar é
capaz de imaginá-la sob o seu verdadeiro aspecto, como se imagina um país
do qual se lê uma descrição detalhada. Ora, essa descrição da vida futura é tão
53 – O Evangelho segundo o Espiritismo

minudenciada e as condições de existência — feliz ou infeliz — dos que nela


se encontram são tão racionais, que nós somos obrigados a dizer que não
poderia ser de outro jeito, e que ela realmente é a verdadeira justiça de Deus.

A realeza de Jesus

4. O reino de Jesus não é deste mundo — isso é o que todos compreendem.


Contudo, será que na Terra ele também não teria uma realeza? O título de rei
nem sempre requer o exercício do poder temporal; ele é dado, por um
consentimento unânime, àquele cuja genialidade o coloca na primeiro classe
numa ordem qualquer de ideias, que domina a sua época e que influencia o
progresso da humanidade. É nesse sentido que se diz: o rei ou o príncipe dos
filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores etc. Essa realeza, nascida do
mérito pessoal, consagrada pela posteridade, muitas vezes não tem uma
preponderância bem maior do que aquela que tem uma coroa real? Ela é
imperecível, enquanto a outra é joguete das circunstâncias; ela é sempre
abençoada pelas gerações futuras, enquanto a outra às vezes é amaldiçoada. A
realeza terrestre termina com a vida; a realeza moral continua governando,
sobretudo após a morte. Nesse sentido, Jesus não é um rei mais poderoso do
que muitos soberanos? Foi com razão, então, que ele disse a Pilatos: Eu sou
rei, mas o meu reino não é deste mundo.

O ponto de vista

5. A ideia nítida e precisa que se faz da vida futura concede uma fé inabalável
no futuro, e essa fé tem consequências imensas sobre a moralização dos
homens, porque ela muda completamente o ponto de vista sob o qual as
pessoas encaram a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na
vida espiritual que é indefinida, a vida corpórea não é mais do que uma
passagem, uma breve estadia num país ingrato. As vicissitudes e tribulações
da vida são só incidentes que ele enfrenta com paciência, pois sabe que elas
têm curta duração e devem ser seguidas de uma situação mais feliz; a morte
54 – Allan Kardec

nada tem de apavorante; ela não é mais a porta do nada, e sim a porta da
libertação que abre ao exilado a entrada numa morada de felicidade e de paz.
Sabendo que está num lugar temporário e não definitivo, o homem encara as
preocupações da vida com mais indiferença e disso resulta para ele uma
calma de espírito que suaviza as suas amarguras.
Pela simples dúvida sobre a vida futura, o homem dirige todos os seus
pensamentos para a vida terrestre; sem a certeza do futuro, ele se dedica só
na vida presente; sem entrever os bens mais preciosos que os da Terra, ele se
comporta igual uma criança que não vê nada além de seus brinquedos; para
obtê-los, não há nada que ele não faça e a perda do menor desses bens é um
doloroso desgosto; uma decepção, uma esperança desiludida, uma ambição
não realizada, uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos
são outros tantos tormentos que fazem da sua vida uma angústia perpétua,
entregando-se assim voluntariamente a uma verdadeira tortura a todo
instante. Tomando seu ponto de vista a partir da vida terrena, no centro do
qual ele está colocado, tudo ao seu redor assume grandes proporções; o mal
que o atinja, assim como o bem que incumba aos outros, tudo aos seus olhos
adquire uma grande importância. Da mesma forma, para aquele que está no
interior de uma cidade, tudo parece grande: tanto os homens que ocupam o
topo da escala quanto os monumentos; mas se ele se transportar para uma
montanha, as pessoas e as coisas parecerão bem pequenos para ele.
Assim acontece com a pessoa que encara a vida terrestre do ponto de
vista da vida futura: a humanidade, bem como as estrelas do firmamento,
perde-se na imensidão; ela então percebe que grandes e pequenos estão
misturados como as formigas sobre um monte de terra; que proletários e
potentados são da mesma estatura; então ela tem pena dessas pessoas
efêmeras que se preocupam tanto em conquistar aí um lugar que as eleva tão
pouco e que elas conservam por tão pouco tempo. É assim que a importância
dada aos bens terrenos está sempre na razão inversa da fé na vida futura.

6. Alguém poderá dizer: Se todo mundo pensasse dessa maneira, e ninguém


mais se ocupasse com as coisas na Terra, então tudo estaria ameaçado. Mas
não é assim, pois instintivamente o homem sempre procura o seu bem-estar,
55 – O Evangelho segundo o Espiritismo

e, mesmo com a certeza de que só ficará num lugar por pouco tempo, ainda
assim ele quer estar o melhor ou o menos mal possível; não há ninguém que,
encontrando um espinho na sua mão, não o retire, para não se machucar. Ora,
a procura pelo bem-estar força o homem a melhorar todas as coisas, já que ele
é impulsionado pelo instinto do progresso e da conservação — que está nas
leis da natureza. Portanto, ele trabalha por necessidade, por gosto e por
dever, e dessa maneira ele cumpre os desígnios da Providência, que o colocou
na Terra para essa finalidade. Somente aquele que considera o porvir dá à
vida presente a sua relativa importância, e facilmente ele se consola de seus
fracassos justamente pensando na destinação que o espera.
Consequentemente, Deus não condena os gozos terrenos, mas sim o
abuso desses gozos em prejuízo das coisas da alma; é contra esse abuso que
está prevenido quem aplica a si mesmo estas palavras de Jesus: Meu reino
não é deste mundo.
Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se ao rico que
perde uma pequena soma sem se alterar com isso; aquele que concentra seus
pensamentos na vida terrena parece o homem pobre que perde tudo o que
possui e se desespera.

7. O espiritismo alarga o pensamento e lhe abre novos horizontes; ao invés


dessa visão estreita e mesquinha que o concentra na vida presente e que faz
do instante que se passa na Terra o único e frágil suporte do futuro eterno, ele
mostra que essa vida não passa de um elo no conjunto harmonioso e
grandioso da obra do Criador; ele mostra a solidariedade que religa todas as
existências do mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de
todos os mundos; ele dá, dessa forma, uma base e uma razão de ser à
fraternidade universal, enquanto a doutrina da criação da alma no momento
do nascimento de cada corpo torna todos os seres estranhos uns aos outros.
Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que é
inexplicável quando só uma única parte é considerada. É esse conjunto que na
época do Cristo os homens não poderiam compreender, e foi por isso que ele
reservou esse conhecimento para mais tarde.
56 – Allan Kardec

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Uma realeza terrestre

8. Quem poderia compreender a verdade desta afirmação do Nosso Senhor:


“Meu reino não é deste mundo”, melhor do que eu? O orgulho me desvirtuou
na Terra; quem, pois, compreenderia o vazio dos reinos deste mundo se eu
não o compreendesse? O que eu trouxe comigo da minha realeza terrena?
Nada, absolutamente nada; e, como que para tornar a lição mais terrível, ela
nem mesmo me acompanhou até o túmulo! Rainha eu fui entre os homens e
como rainha eu achava que entraria no reino dos céus! Que desilusão! Que
humilhação quando, em vez de ser recebida como uma soberana, eu vi acima
de mim — mas muito acima — pessoas que eu julgava bem pequenas e que eu
desprezava, por eles não terem sangue nobre! Oh, só então compreendi a
inutilidade das honras e das grandezas que buscamos com tanta avidez na
Terra!
Para se conquistar um lugar neste reino é preciso abnegação, humildade,
caridade em toda a sua prática celeste e benevolência para com todos;
ninguém te pergunta o que você foi nem que posição ocupou, mas o bem que
você fez, as lágrimas que enxugou.
Oh, Jesus! Tu disseste que teu reino não é deste mundo, porque é preciso
sofrer para chegar ao céu, e os degraus do trono não levam a ele; só as trilhas
mais penosas da vida conduzem até lá. Então, procurem a rota através das
sarças e dos espinhos, e não por entre as flores.
Os homens correm atrás dos bens terrenos como se pudessem guardá-
los para sempre; mas aqui já não há ilusão, pois logo eles percebem que só se
agarraram a uma sombra e que negligenciaram os únicos bens sólidos e
duradouros, os únicos que lhes beneficiam na morada celeste, os únicos que
podem lhes dar acesso a essa morada.
Tenham piedade dos que não ganharam o reino dos céus; ajudem-lhes
com as vossas preces, pois a prece aproxima o homem do Altíssimo e é o traço
de união entre o céu e a Terra: não se esqueçam disso.
UMA RAINHA DA FRANÇA (Le Havre, 1863)
57 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO III

HÁ MUITAS MORADAS
NA CASA DE MEU PAI
Diferentes estados da alma na erraticidade – Diferentes categorias
de mundos habitados – Destinação da Terra. Causa das misérias
humanas – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Mundos inferiores e mundos
superiores – Mundos de expiações e de provas – Mundos
regeneradores – Progressão dos mundos

1. Que o vosso coração não se perturbe. Vocês creem em Deus, creiam


também em mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se não fosse
assim, eu já lhes teria dito isso, pois lá vou eu para preparar o lugar, e depois
que eu tiver ido e que tenha preparado o lugar de vocês, eu voltarei e os
levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, lá também vocês estejam. (São
João, 14: 1 a 3)

Diferentes estados da alma na erraticidade

2. A casa do Pai é o Universo; as diferentes moradas são os mundos que


circulam no espaço infinito e oferecem aos Espíritos neles encarnados
estadias apropriadas ao seu adiantamento.
Independente da diversidade dos mundos, essas palavras também
podem se referir à situação feliz ou infeliz do Espírito na erraticidade15.
Conforme ele esteja mais ou menos depurado e desprendido das amarras
15Erraticidade; condição em que o Espírito em evolução se encontra no plano espiritual entre uma e
outra encarnação, sendo então um Espírito errante. — N. T.
58 – Allan Kardec

materiais, o ambiente onde ele se encontre, o aspecto das coisas, as sensações


que ele experimente, as percepções que ele tenha vão variar ao infinito;
enquanto uns não podem se afastar da esfera onde tenham vivido, outros se
elevam e percorrem o espaço e os mundos; enquanto alguns Espíritos
culpados vagueiam nas trevas, os Espíritos venturosos desfrutam de uma
claridade resplendente e do sublime espetáculo do infinito; enfim, o ímpio
geme, atormentado de remorsos e pesares, muitas vezes isolado, sem
consolação e separado dos objetos de sua afeição, sob a opressão dos
sofrimentos morais, enquanto o justo, junto com aqueles a quem ele ama,
saboreia as delícias de uma indizível felicidade. Lá também há, portanto,
moradas diversas — embora não sejam circunscritas nem localizadas.

Diferentes categorias de mundos habitados

3. Do ensino dado pelos Espíritos, resulta que os diversos mundos estão em


condições muito diferentes uns dos outros quanto ao grau de avanço ou de
inferioridade de seus habitantes. Nesse número, há mundos onde seus
habitantes são ainda mais inferiores do que os da Terra — tanto fisicamente
quanto moralmente. Noutros, eles são do mesmo nível, e há mundos em que
que os habitantes são mais ou menos superiores, em todos os aspectos. Nos
mundos inferiores a existência é toda material e as paixões reinam soberanas,
a vida moral é quase nula. Na medida em que a moralidade se desenvolve, a
influência da matéria diminui, de tal sorte que nos mundos mais adiantados a
vida é, por assim dizer, toda espiritual.

4. Nos mundos intermédios há uma mistura do bem e do mal, predominando


um ou outro conforme o grau de adiantamento. Conquanto não se possa fazer
dos diversos mundos uma classificação absoluta, pelo menos nós podemos —
em virtude da sua situação e da sua destinação, baseando-nos pelas
características mais marcantes — dividi-los de uma maneira geral, tal como a
seguir: mundos primitivos, destinados às primeiras encarnações da alma
humana; mundos de expiação e de provas, onde o mal predomina; mundos
regeneradores, onde as almas que ainda têm que expiar haurem novas forças,
59 – O Evangelho segundo o Espiritismo

enquanto repousam das fadigas da luta; mundos felizes, nos quais o bem se
sobrepõe ao mal; mundos celestes ou divinos, morada dos Espíritos
depurados onde o bem reina completamente. A Terra pertence à categoria
dos mundos de expiação e de provas; eis por que neste mundo o homem está
exposto a tantas misérias.

5. Os Espíritos encarnados em um mundo não ficam confinados nele


indefinidamente nem realizam nele todas as fases progressivas que eles
devem percorrer para chegar à perfeição. Quando eles alcançaram num
determinado mundo o nível de avanço que esse mundo comporta, então eles
passam para outro mais avançado, e assim por diante, até que alcancem o
estado de Espíritos puros. São outras tantas estações, em cada uma das quais
eles encontram elementos de progresso proporcionais ao seu avanço. Para
eles, é uma recompensa passar a um mundo de uma ordem mais elevada,
como é um castigo prolongar sua permanência num mundo desventuroso ou
ser relegados a outro ainda mais infeliz do que aquele mundo do qual eles
sejam forçados a sair, quando teimarem no mal.

Destinação da Terra. Causa das misérias humanas


6. Muitos se admiram de haver na Terra tanta maldade e paixões negativas,
tantas misérias e enfermidades de todo tipo; daí alguns concluem que a
espécie humana é uma coisa triste. Esse julgamento decorre do ponto de vista
limitado de onde a pessoa se situa e que dá uma falsa ideia do conjunto. É
preciso considerar que na Terra não se encontra toda a humanidade, mas
apenas uma pequena fração dela. De fato, a espécie humana significa todos os
seres dotados de razão que povoam os inumeráveis mundos do Universo; ora,
o que é a população da Terra diante da população total desses mundos? Bem
menos que a de uma aldeia em relação à população de um grande império. A
situação material e moral da humanidade terrena não tem nada de espantoso,
desde que se leve em conta a destinação da Terra e a natureza daqueles que a
habitam.

7. Nós faríamos uma ideia muito falsa dos habitantes de uma grande cidade se
60 – Allan Kardec

os julgássemos pela população de seus bairros mais pobres e sórdidos. Num


hospital, só vemos doentes e estropiados; numa penitenciária, vemos todas as
torpezas, todos os vícios; nas regiões insalubres, a maioria dos habitantes são
pálidos, franzinos e sofredores. Pois bem: imaginemos a Terra como sendo
um subúrbio, um hospital, uma penitenciária, uma país insalubre, pois ela é ao
mesmo tempo tudo isso, e então compreenderemos por que as aflições
sobrepujam os alegrias, já que não se manda para o hospital quem está com
boa saúde, nem para as casas de correção quem não fez o mal; e nem os
hospitais nem as detenções são lugares de delícias.
Ora, da mesma forma como numa cidade a população não se encontra
toda nos hospitais ou nas prisões, a humanidade inteira também não está na
Terra; da mesma forma que a pessoa sai do hospital quando se cura e sai da
prisão quando cumpre a pena, o homem troca a Terra por mundos mais
felizes quando se cura de suas enfermidades morais.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Mundos inferiores e mundos superiores

8. A qualificação de mundos inferiores e de mundos superiores é mais relativa


do que absoluta; tal mundo é inferior ou superior com relação aos que estão
acima ou abaixo dele numa escala progressiva.
Tomando a Terra como ponto de comparação, podemos fazer uma ideia
do estado de um mundo inferior, supondo que ali o homem esteja no nível das
raças selvagens ou dos povos bárbaros que ainda se encontram na sua
superfície, e que são resquícios do seu estado primitivo. Nos mundos mais
atrasados, os seres que lá habitam são de certo modo rudimentares; eles têm
a forma humana, mas sem nenhuma beleza; seus instintos não são
abrandados por nenhum sentimento de delicadeza ou de benevolência, nem
pelas noções do justo e do injusto; a força bruta nesse lugar é a única lei. Sem
indústrias e sem invenções, seus habitantes passam a vida na busca por
alimento. Entretanto, Deus não abandona nenhuma de suas criaturas; no
fundo das trevas da inteligência jaz, latente, a vaga intuição mais ou menos
61 – O Evangelho segundo o Espiritismo

desenvolvida de um Ser supremo. Esse instinto é suficiente para torná-los


superiores uns aos outros e para preparar a sua ascensão a uma vida mais
completa, pois não são seres degredados, e sim crianças em crescimento.
Entre os níveis inferiores e os mais elevados há inúmeras etapas, e entre
os Espíritos puros, desmaterializados e resplandecentes de glória, é difícil
reconhecer aqueles que animaram aqueles seres primitivos, do mesmo modo
que no homem adulto é difícil reconhecer o embrião.

79. Nos mundos que alcançaram um grau superior, as condições da vida


moral e material são totalmente diferentes das condições da Terra. A forma
do corpo é sempre a humana, como em toda parte, só que embelezada,
aperfeiçoada e sobretudo purificada. O corpo nada tem da materialidade
terrestre e, por conseguinte, não está sujeito às necessidades, nem às doenças
ou às deteriorações engendradas pela predominância da matéria; os sentidos,
mais apurados, têm percepções que no nosso mundo são sufocadas pela
rudeza dos órgãos; a leveza específica do corpo torna a locomoção rápida e
fácil: em vez de se arrastar penosamente sobre o solo, o corpo — por assim
dizer — desliza na superfície ou plana na atmosfera, sem outro esforço além
do da vontade, da mesma maneira como os anjos são representados ou como
os nossos antepassados imaginavam os manes nos Campos Elíseos.16 Os
homens conservam, com bem queiram, os traços de suas migrações passadas
e aparecem a seus amigos tais como estes os conheceram, mas iluminados por
uma luz divina, transfigurados pelas impressões interiores — que são sempre
elevadas. Em vez de semblantes pálidos, abatidos pelos sofrimentos e paixões,
a inteligência e a vida irradiam daquele brilho que os pintores traduziram
pelo nimbo ou auréola dos santos.
A pouca resistência que a matéria oferece a Espíritos bastante avançados
torna o desenvolvimento dos corpos rápido, torna a infância curta ou quase
nula; a vida, isenta de preocupações e de angústias, é proporcionalmente
muito mais longa do que na Terra. Em princípio, a longevidade depende do
grau de adiantamento dos mundos. A morte nada tem dos horrores da

16 Campos Elíseos: na mitologia greco-romana, lugar para onde iam as almas (manes) dos heróis e dos
justos após a morte; mais ou menos equivalente ao céu, ou paraíso, da tradição bíblica. — N. T.
62 – Allan Kardec

decomposição; longe de ser um motivo de temor, ela é considerada como uma


transformação venturosa, porque lá a dúvida sobre o futuro já não existe.
Durante a vida, como a alma não fica confinada numa matéria compacta, ela
irradia e goza de uma lucidez que a coloca num estado quase permanente de
emancipação, permitindo a livre transmissão do pensamento.

10. Nesses mundos ditosos, as relações sempre amistosas entre um povo e


outro jamais são perturbadas pela ambição de subjugar o vizinho, nem pela
guerra — que é a consequência dessa ambição. Não existem senhores nem
escravos, nem privilegiados de nascença; somente a superioridade moral e
intelectual estabelece diferença entre as condições e dá a superioridade. A
autoridade é sempre respeitada, porque ela não é conferida senão pelo mérito
e exercida sempre com justiça. O homem não procura se elevar acima do
homem, mas acima de si mesmo, aperfeiçoando-se. Seu objetivo é alcançar
a classe dos Espíritos puros, e esse desejo não significa um tormento, mas
uma nobre ambição que o faz estudar com ardor para igualar-se a eles. Todos
os sentimentos delicados e elevados da natureza humana lá se encontram
engrandecidos e purificados; os ódios, os ciúmes mesquinhos, as cobiças
baixas da inveja lá são desconhecidos; um laço de amor e fraternidade une
todos os homens; os mais fortes socorrem aos mais fracos. Eles têm posses,
tanto mais ou tanto menos, de acordo com o que tenham adquirido, tanto
mais ou tanto menos, por meio da sua inteligência; todavia, ninguém sofre
pela falta do necessário, porque ali ninguém se encontra em expiação. Em
suma, o mal não existe nos mundos felizes.

11. Neste mundo, vocês precisam do mal para sentir o bem; da noite, para
admirar a luz; da enfermidade, para apreciar a saúde. Mas naqueles outros,
esses contrastes não são necessários; a eterna luz, a eterna beleza, a eterna
calma da alma proporcionam um eterna alegria, que não é perturbada nem
pelas angústias da vida material nem pelo contato com os maus, que lá não
têm acesso. Eis o que o espírito humano tem a maior dificuldade em
compreender; ele foi engenhoso para pintar os tormentos do inferno, mas
nunca pôde imaginar as alegrias do céu. E Por quê? Porque, sendo inferior, ele
só tem experimentado dores e misérias; ele jamais entreviu as claridades
63 – O Evangelho segundo o Espiritismo

celestes, pois ele só pode falar do que conhece. Contudo, à medida que ele se
eleva e se depura, o horizonte se amplia e então ele compreende o bem que
está diante dele, como compreendeu o mal que ele deixou para trás.

12. Entretanto, esses mundos afortunados não são mundos privilegiados, pois
que Deus não é parcial com nenhum de seus filhos; ele dá a todos os mesmos
direitos e as mesmas facilidades para chegarem até lá; ele faz todos partirem
do mesmo ponto e não dota nenhum melhor do que aos outros; os primeiros
postos são acessíveis a todos: cabe-lhes conquistá-los pelo seu próprio
trabalho; cabe-lhes alcançá-los o mais cedo possível ou definhar durante
séculos e séculos nas profundezas da humanidade.
Resumo do ensino de todos os Espíritos superiores

Mundos de expiações e de provas

13. O que lhes direi sobre os mundos de expiações que vocês já não saibam?
Pois então, basta considerar a Terra em que habitam. A superioridade da
inteligência em grande número dos seus habitantes indica que ela não é um
mundo primitivo, destinado à encarnação dos Espíritos que acabaram de sair
das mãos do Criador. As qualidades inatas que eles trazem consigo
constituem a prova de que já viveram e que já realizaram um certo progresso;
mas também os numerosos vícios aos quais estão inclinados são o indício de
uma grande imperfeição moral. Por isso, Deus os colocou num mundo ingrato
para aí expiarem suas faltas, através de um trabalho penoso e das misérias da
vida, até que eles tenham merecido ir para um mundo mais feliz.

14. No entanto, nem todos os Espíritos encarnados na Terra estão aqui em


expiação. As raças que vocês chamam de selvagens são formadas por
Espíritos que mal saíram da infância e que se encontram neste mundo — por
assim dizer — em aprendizado, e se desenvolvem pelo contato com Espíritos
mais avançados. Em seguida, vêm as raças semicivilizadas, formadas por
esses mesmos Espíritos em progresso. Estas são, de algum modo, as raças
indígenas da Terra, que têm crescido pouco a pouco na passagem dos longos
64 – Allan Kardec

períodos dos séculos, sendo que algumas delas puderam alcançar o


aperfeiçoamento intelectual dos povos mais esclarecidos.
Os Espíritos em expiação neste mundo são — se assim podemos nos
exprimir — estrangeiros; eles já viveram em outros mundos dos quais foram
expulsos em consequência da sua obstinação no mal e porque eles estavam
sendo lá uma causa de perturbação para os bons. Eles foram banidos, por
algum tempo, para o meio de Espíritos mais atrasados — a quem eles têm a
missão de fazer avançar, pois levaram consigo a inteligência desenvolvida e o
germe dos conhecimentos adquiridos. É por isso que os Espíritos punidos se
encontram entre as raças mais inteligentes; são também essas raças para as
quais as misérias da vida têm maior amargura, porque há nelas mais
sensibilidade e porque elas são mais colocadas à prova pelas perturbações do
que as raças primitivas, cujo senso moral é mais rude.

15. A Terra, portanto, oferece um dos tipos de mundos expiatórios, cujas


variedades são infinitas, mas que têm como característica comum o fato de
servir de lugar de exílio aos Espíritos rebeldes à lei de Deus. Nela, esses
Espíritos têm que lutar ao mesmo tempo contra a perversidade dos homens e
contra a inclemência da natureza — duplo trabalho penoso que desenvolve ao
mesmo tempo as qualidades do coração e as da inteligência. É assim que, na
sua bondade, Deus torna o próprio castigo em proveito do progresso do
Espírito.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)

Mundos regeneradores

16. Entre essas estrelas que cintilam na abóbada azulada, quantos mundos há
iguais ao de vocês, destinados pelo Senhor para a expiação e a provação! Mas,
entre eles há também mundos mais miseráveis e mundos melhores, como há
os transitórios, que podemos chamar de regeneradores. Cada turbilhão
planetário, correndo no espaço em torno de um centro comum, arrastando
consigo seus mundos primitivos, de exílio, de provação, de regeneração e de
felicidade. Já lhes foi falado desses mundos onde a alma recém-nascida é
65 – O Evangelho segundo o Espiritismo

colocada, até então ainda ignorante do bem e do mal; mas ela pode caminhar
rumo a Deus, sendo ela senhora de si mesma, na posse do livre-arbítrio.
Também já lhes foi revelado de que largas faculdades a alma é dotada para
fazer o bem; mas, infelizmente, existem aquelas que sucumbem, e Deus, não
querendo aniquilá-las, permite que possam ir para esses mundos onde, de
encarnação em encarnação, elas se depuram, regeneram e retornam dignas da
glória a elas destinada.

17. Os mundos regeneradores servem de transição entre os mundos de


expiação e os mundos felizes; neles a alma que se arrepende encontra a calma
e o repouso, conseguindo assim se depurar. Sem dúvidas, nesses mundos o
homem ainda fica sujeito às leis que regem a matéria; a humanidade
experimenta as suas sensações e desejos, mas fica livre das paixões
desordenadas das quais vocês são escravos; lá não há mais o orgulho que
emudece o coração, nem a inveja que o tortura, nem o ódio que o sufoca; a
palavra amor está escrita em todas as frontes e uma perfeita equidade rege os
relacionamentos sociais; todos reconhecem Deus e tentam caminhar rumo a
ele obedecendo as suas leis.
Em resumo, nos mundos regeneradores ainda não existe a felicidade
perfeita, mas já é a aurora da felicidade. Neles o homem ainda é de carne e,
por isso mesmo, está sujeito às vicissitudes das quais só estão isentos os seres
completamente desmaterializados; lá ele ainda tem provas a sofrer, mas essas
provações não são as pungentes angústias da expiação. Comparados à Terra,
esses mundos são muito felizes e muitos de vocês ficariam satisfeitos em
morar lá, pois é como a calma após a tempestade, a convalescença após uma
cruel enfermidade; menos absorvido pelas coisas materiais, seu habitante
entrevê o futuro melhor do que vocês, pois ele compreende que há outras
alegrias que o Senhor promete àqueles que dele se tornarem dignos delas,
quando a morte novamente tiver ceifado os corpos para lhes dar a verdadeira
vida. É então que a alma libertada planará sobre todos os horizontes; não
mais os sentidos materiais e grosseiros, e sim os sentidos de um perispírito
puro e celeste, aspirando as emanações do próprio Deus nos aromas de amor
e de caridade que se expande do seu seio.
66 – Allan Kardec

18. Ah, mas nesses mundos o homem ainda é falível e o Espírito do mal não
perdeu completamente o seu império. Não avançar é recuar, e se o homem
não estiver firme na senda do bem, ele pode recair nos mundos de expiação
— onde o aguardam novas e mais terríveis provações.
Então, contemplem essa abóbada azulada, à noite, na hora do repouso e
da prece, e, diante dessas incontáveis esferas que brilham sobre as vossas
cabeças, indaguem a vocês mesmos quais delas levam a Deus e peçam a ele
para que um mundo regenerador se abra para vocês, após a expiação na
Terra.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)

Progressão dos mundos

19. O progresso é uma das leis da natureza; todos os seres da Criação —


animados e inanimados — estão submetidos a essa lei pela bondade de Deus,
que quer que tudo cresça e prospere. Até a própria destruição — que, para os
homens, parece o fim das coisas — não é mais do que um meio de chegar a
um estado mais perfeito através da transformação, pois tudo morre para
renascer e nada se perde.
Ao mesmo tempo que os seres viventes progridem moralmente, os
mundos que eles habitam progridem materialmente. Quem pudesse
acompanhar um mundo em suas diversas fases, desde o instante em que se
aglomeraram os primeiros átomos que serviram para constituí-lo, iria ver
esse mundo percorrer uma escala incessantemente progressiva, mas através
de degraus imperceptíveis para cada geração e oferecendo aos seus
habitantes uma morada cada vez mais agradável na proporção em que eles
próprios avançam na via do progresso. Assim, marcham paralelamente o
progresso do homem, o dos animais (seus auxiliares), o dos vegetais e o da
habitação, porque nada fica estacionário na natureza. Quão grandiosa e digna
é essa ideia da majestade do Criador! E, ao contrário, quão mesquinha e
indigna do seu poder é aquela ideia que concentra a solicitude e a providência
divina no imperceptível grão de areia que é a Terra, restringindo a
67 – O Evangelho segundo o Espiritismo

humanidade a alguns homens que a habitam!


Segundo essa lei, a Terra esteve num estado material e moral inferior ao
estado em que se encontra hoje, e ela atingirá, sob esse duplo aspecto, um
grau mais elevado. Ela chegou a um dos seus períodos de transformação em
que, de mundo expiatório, vai se tornar um mundo regenerador; então aí os
homens serão felizes, porque nela a lei de Deus reinará.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)
68 – Allan Kardec

CAPÍTULO IV

NINGUÉM PODE VER O REINO DE


DEUS SE NÃO NASCER DE NOVO
Ressurreição e reencarnação – Laços de família, fortalecidos pela
reencarnação e rompidos pela unicidade da existência
– INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Limites da encarnação
– Necessidade da encarnação

1. Jesus, tendo vindo aos arredores de Cesareia de Filipe, interrogou seus


discípulos lhes dizendo: O que os homens dizem com relação ao Filho do
Homem? Quem eles dizem que eu sou? — Eles lhe responderam: Uns dizem
que és João Batista; outros, que és Elias; alguns mais, que és Jeremias ou
algum dos profetas. — Jesus lhes indagou: E vocês, quem vocês dizem que eu
sou? — Simão Pedro, tomando a palavra, lhe disse: Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo. — Jesus lhe replicou: “Bem-aventurado é você, Simão, filho de
Jonas, porque não foi a carne e o sangue que te revelaram isso, mas meu Pai,
que está nos céus. (São Mateus, 16: 13 a 17; são Marcos, 8: 27 a 30)
2. Entretanto, Herodes, o tetrarca, ouviu falar de tudo o que Jesus fazia, e seu
espírito ficou apreensivo, porque uns diziam que João Batista ressuscitara
dentre os mortos; outros, que Elias havia aparecido, e outros mais, que um
dos antigos profetas tinha ressuscitado. Então Herodes disse: Eu mandei
cortar a cabeça de João; então quem é esse de quem ouço dizer tão grandes
coisas? E ficou com vontade de vê-lo. (São Marcos, 6: 14 a 15; são Lucas, 9: 7 a 9)

3. (Após a transfiguração) Seus discípulos então o interrogaram lhe dizendo:


Por que então os escribas dizem que é preciso que Elias venha primeiro? —
Mas Jesus lhes respondeu: É verdade que Elias há de vir e restabelecer todas
as coisas; mas eu declaro a vocês que Elias já veio, e eles não o reconheceram
69 – O Evangelho segundo o Espiritismo

e o trataram como bem como o quiseram. É assim que eles farão sofrer o
Filho do Homem. — Então os discípulos compreenderam que era de João
Batista que ele lhes havia falado. (São Mateus, 17: 10 a 13; são Marcos, 9: 11 a
1317)

Ressurreição e reencarnação

4. A reencarnação fazia parte dos dogmas judeus, sob o nome de


ressurreição; somente os saduceus (que pensavam que tudo termina com a
morte) não acreditavam nisso. As ideias dos judeus acerca desse ponto —
como de muitos outros — não eram claramente definidas, porque eles só
tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e da sua ligação com o corpo.
Eles acreditavam que um homem que tinha vivido podia reviver, sem saberem
precisamente de que maneira isso deveria ocorrer; designaram pela palavra
ressurreição aquilo que o espiritismo chama mais acertadamente de
reencarnação. Com efeito, a ressurreição pressupõe o retorno à vida do corpo
que já está morto, o que a ciência demonstra ser materialmente impossível,
sobretudo quando os elementos desse corpo já estão desde muito tempo
dispersos e absorvidos. A reencarnação é o retorno da alma — ou Espírito —
à vida corpórea, mas em outro corpo, novamente formado para ele e que nada
tem em comum com o corpo anterior. O termo ressurreição podia assim ser
aplicada a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto,
segundo a crença deles, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o
de Elias, já que João tinha sido visto como criança e seus pais eram
conhecidos. Logo, João podia ser Elias reencarnado, mas não ressuscitado.

5. Ora, havia um homem entre os fariseus, chamado Nicodemos, senador dos


judeus, que certa noite veio se encontrar com Jesus, e lhe disse: Mestre,
sabemos que o senhor veio da parte de Deus para nos instruir, como um

17 Ao logo desta obra, encontramos alguns equívocos no texto original com relação à marcação das
passagens bíblicas padronizadas atualmente; por exemplo, para esta passagem do Evangelho segundo
Marcos, assinalando os versículos de 10 a 12 do capítulo 9, sendo que a referência exata corresponde
apenas aos versículos 11 e 12, tal como escrevemos aqui. Esta ocorrência nos enseja informar que
cuidamos de corrigir nesta tradução as marcações equivocadas subsequentes; veja a lista dessas
ocorrências no anexo no final desta obra. — N. T.
70 – Allan Kardec

doutor, pois ninguém poderia fazer os milagres que o senhor faz se Deus não
estivesse com ele.
Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade eu te digo: Ninguém
pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.
Nicodemos lhe disse: Como um homem pode nascer, já sendo velho? Por
acaso ele pode tornar a entrar no ventre de sua mãe para nascer uma
segunda vez?
Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade eu te digo: Se um homem
não renasce da água e do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus. O
que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não
fique admirado por eu te ter dito que é preciso que vocês nasçam de novo. O
Espírito sopra onde quer, e vocês ouvem a sua voz, mas não sabem de onde
ele vem nem para onde vai; o mesmo acontece com todo homem que é
nascido do Espírito.
Nicodemos lhe respondeu: Como isso pode ser feito? — Jesus lhe disse:
O quê?! Você é um mestre em Israel e ignora essas coisas? Em verdade, em
verdade eu te digo que nós não dizemos senão o que nós sabemos e só damos
testemunho do que temos visto; e, no entanto, vocês não aceitam o nosso
testemunho. Mas, se vocês não creem em mim quando eu lhes falo das coisas
da Terra, como acreditarão em mim quando eu lhes falar das coisas do céu?
(São João, 3: 1 a 12)

6. A ideia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na
Terra se encontra em muitas passagens dos Evangelhos, principalmente
naquelas recém-relatadas (itens 1 a 3). Se essa crença fosse um erro, Jesus
não teria deixado de combatê-la, como combateu tantas outras; longe disso,
ele a sanciona com toda a sua autoridade e a colocou como um princípio e
uma condição necessária, quando diz: Ninguém pode ver o reino de Deus se
não nascer de novo; e insiste, acrescentando: Não fique admirado por eu te
ter dito que É PRECISO que vocês nasçam de novo.

7. Estas palavras “Se um homem não renasce da água e do Espírito” têm


sido interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo; mas o
texto primitivo trazia simplesmente: “Não renasce da água e do Espírito”, ao
passo que em algumas traduções a expressão “do Espírito” foi substituída por:
71 – O Evangelho segundo o Espiritismo

“do Santo Espírito” — o que já não corresponde ao mesmo pensamento. Esse


ponto capital ressalta dos primeiros comentários feitos sobre o Evangelho,
assim como um dia será constatado sem nenhum equívoco cabível.18

8. Para compreendermos o sentido verdadeiro dessas palavras, é preciso


igualmente nos dirigirmos à significação do termo água, que ali não foi
empregado na sua acepção própria.
Os conhecimentos dos antigos sobre as ciências físicas eram muito
imperfeitos; eles acreditavam que a Terra havia saído das águas e por isso
consideravam a água como o elemento gerador absoluto; tanto é que no
Gênesis se lê: “O Espírito de Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as
águas. — Que o firmamento seja feito no meio das águas. — Que as águas que
estão debaixo do céu se reúnam em um só lugar e que apareça o elemento
árido. — Que as águas produzam animais vivos que nadem na água e
pássaros que voem sobre a terra e sob o firmamento”.19
Segundo essa crença, a água havia se tornado o símbolo da natureza
material, como o Espírito era o símbolo da natureza inteligente. Estas
palavras: “Se o homem não renasce da água e do Espírito, ou em água e em
Espírito”, então significam: “Se o homem não renasce com seu corpo e sua
alma”. É nesse sentido que foram compreendidas desde o princípio.
Aliás, tal interpretação se justifica por estas outras palavras: O que é
nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Aqui Jesus
estabelece uma distinção concreta entre o Espírito e o corpo. O que é nascido
da carne é carne indica claramente que só o corpo procede do corpo, e que o
Espírito é independente do corpo.

9. “O Espírito sopra onde quer; vocês ouvem a sua voz, mas não sabem
nem de onde ele vem nem para onde ele vai” pode ser entendido como: O
Espírito de Deus, que dá a vida a quem ele quer, ou como: a alma do homem;
nesta última acepção, “vocês não sabem de onde ele vem nem para onde ele vai”
significa que ninguém conhece nem o que foi nem o que será o Espírito. Se o
18A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo; ela traz o seguinte: não renasce da água e
do Espírito; a tradução de Sacy diz: do Santo Espírito; na de Lamennais consta: do Espírito Santo.
19 Gênesis, 1: 2, 6, 7 e 20. — N. T.
72 – Allan Kardec

Espírito — ou a alma — fosse criado ao mesmo tempo que o corpo, então nós
saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso,
essa passagem é a consagração do princípio da preexistência da alma e, por
conseguinte, o da pluralidade das existências.

10. Ora, desde o tempo de João Batista até a atualidade, o reino dos Céus é
tomado pela violência e são os violentos que se apoderam dele; pois, até João,
todos os profetas, assim como a lei, profetizaram; e se querem saber o que eu
lhes digo, ele mesmo é o Elias que há de vir. Quem tiver ouvidos para ouvir,
que ouça. (São Mateus, 11: 12 a 15)

11. Se o princípio da reencarnação expresso em João podia, a rigor, ser


interpretado em sentido puramente místico, já não seria o mesmo com esta
passagem de são Mateus, que está sem equívoco possível: ELE MESMO é o
Elias que há de vir. Aqui, não há nem figuração nem alegoria: é uma
afirmação concreta. — “Desde o tempo de João Batista até a atualidade, o
reino dos céus é tomado pela violência.” O que essas palavras significam, visto
que João Batista ainda estava vivo naquele momento? Jesus as explica,
dizendo: “Se querem saber o que eu digo, ele mesmo é o Elias que há de vir.”
Ora, João não sendo outro senão o próprio Elias, Jesus faz alusão à época em
que João vivia com o nome de Elias. “Até o presente, o reino dos céus é
tomado pela violência” é outra alusão à violência da lei mosaica, que ordenava
o extermínio dos infiéis a fim de ganhar a Terra Prometida, Paraíso dos
Hebreus, ao passo que, segundo a nova lei, o céu é ganho pela caridade e pela
brandura.
Depois, ele acrescenta: Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. Essas
palavras — tantas vezes repetidas por Jesus — dizem claramente que nem
todo mundo estava em condições de compreender certas verdades.

12. Aqueles do vosso povo que foram mortos viverão de novo; aqueles que
morreram em meio a mim ressuscitarão. Despertem do seu sono e cantem os
louvores a Deus, vocês que habitam no pó; porque o orvalho que tomba sobre
vocês é um orvalho de luz e porque vocês arruinarão a Terra e o reino dos
gigantes. (Isaías, 26: 19)
73 – O Evangelho segundo o Espiritismo

13. Esta passagem de Isaías também é toda explícita: “Aqueles do vosso povo
que foram mortos viverão de novo”. Se o profeta quisesse ter falado da vida
espiritual, se quisesse ter falado que aqueles que tinham sido mortos não
estavam mortos em Espírito, então ele teria dito: ainda vivem, e não: viverão
de novo. No sentido espiritual, essas palavras seriam um contrassenso, pois
implicariam uma interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração
moral, elas seriam a negação das penas eternas, já que elas estabelecem o
princípio de que todos aqueles que estão mortos reviverão.

14. Mas quando o homem morre uma vez, quando seu corpo, separado do seu
espírito, é consumido, o que acontece com ele? — Uma vez tendo morrido o
homem, poderia ele reviver de novo? Nessa guerra em que me acho todos os
dias da minha vida, eu espero que chegue a minha mutação. (Jó, 14: 10, 14.
Tradução de Lemaistre de Sacy.)
Quando o homem morre, ele perde toda a sua força, ele expira; depois,
onde está ele? — Se o homem morre, reviverá? Esperarei todos os dias do
meu combate, até que chegue alguma mutação? (Idem. Tradução protestante
de Osterwald.)

Quando o homem está morto, ele vive sempre; acabando os dias da


minha existência terrestre, esperarei, porque a ela voltarei de novo. (Idem.
Versão da Igreja grega.)

15. O princípio da pluralidade das existências está claramente expresso


nessas três versões. Ninguém poderá supor que Jó quis falar da regeneração
pela água do batismo, que certamente ele não conhecia. “Uma vez tendo
morrido o homem, poderia ele reviver de novo?” A ideia de morrer uma vez e
de reviver implica a de morrer e reviver várias vezes. A versão da Igreja grega
é ainda mais explícita, se é que isso é possível: “Acabando os dias da minha
existência terrestre, esperarei, porque a ela voltarei de novo”, quer dizer,
voltarei à existência terrena. Isso é tão claro quanto se alguém dissesse: “Eu
saio da minha casa, mas a ela voltarei.”
“Nessa guerra em que me encontro todos os dias da minha vida, eu
espero que chegue a minha mutação.” Jó evidentemente quis se referir à luta
74 – Allan Kardec

que sustentava contra as misérias da vida; ele espera a sua mutação, isto é,
que ele se resigne. Na versão grega, esperarei parece mais se aplicar à nova
existência. “Quando a minha existência estiver acabada, eu esperarei, porque
a ela voltarei.” Jó parece se colocar, após a morte, no intervalo que separa uma
existência de outra, e diz que lá aguardará o seu retorno.

16. Não há dúvidas, portanto, de que, sob o nome de ressurreição, o princípio


da reencarnação era uma das crenças fundamentais dos judeus, e que foi
confirmado por Jesus e pelos profetas de maneira formal; donde se segue que
negar a reencarnação é negar as palavras do Cristo. Suas palavras um dia
serão autoridade sobre este ponto, assim como sobre muitos outros, quando
forem meditadas sem preconceitos.

17. Mas a essa autoridade, do ponto de vista religioso, vem se juntar, do ponto
de vista filosófico, a das provas que resultam da observação dos fatos; quando
dos efeitos se quer remontar às causas, a reencarnação aparece como uma
necessidade absoluta, como condição inerente à humanidade; numa palavra,
como uma lei da natureza. Pelos seus resultados, ela se revela de uma
maneira — por assim dizer — material, como o motor oculto se revela pelo
movimento. Só a reencarnação pode dizer ao homem de onde ele vem, para
onde vai, por que está na Terra, e justificar todas as anomalias e todas as
injustiças aparentes que a vida apresenta.20
Sem o princípio da preexistência da alma e da pluralidade das
existências, a maioria das máximas do Evangelho são ininteligíveis; é por isso
que elas têm dado margem a interpretações tão contraditórias; esse princípio
é a chave que deve lhes restituir o verdadeiro sentido.

Laços de família, fortalecidos pela reencarnação e rompidos pela


unicidade da existência
18. Os laços de família não são destruídos pela reencarnação, como algumas

20Para os desenvolvimentos sobre o dogma da reencarnação, veja em O Livro dos Espíritos: cap. IV e V
[do Livro Segundo]; O Que é o Espiritismo: cap. II, por Allan Kardec; Pluralidade das existências, por
[André] Pezzani.
75 – O Evangelho segundo o Espiritismo

pessoas pensam; ao contrário, eles são fortalecidos e apertados: o princípio


oposto é que os destrói.
Os Espíritos formam no espaço grupos ou famílias unidos pela afeição,
pela simpatia e pela similaridade das tendências; felizes por estarem juntos,
esses Espíritos procuram uns aos outros. A encarnação só os separa
momentaneamente, pois, após seu retorno à erraticidade, eles se
reencontram como amigos que retornam de uma viagem. Muitas vezes,
inclusive, eles seguem juntos numa encarnação, na qual ficam reunidos numa
mesma família ou num mesmo círculo de amizade, trabalhando unidos pelo
seu mútuo avanço. Se uns estão encarnados e outros não, nem por isso
deixam de estar unidos pelo pensamento; aqueles que estão livres velam
pelos que estão em cativeiro; os mais adiantados se esforçam para ajudar os
retardatários a progredirem. Após cada existência, eles dão mais um passo no
caminho da perfeição; cada vez menos apegados à matéria, sua afeição é mais
forte, pela mesma razão de ela ser mais purificada e não ser atrapalhada pelo
egoísmo, nem pelas sombras das paixões. Portanto, eles podem percorrer
juntos um número ilimitado de existências corporais sem causar nenhum
dano à mútua afeição entre eles.
Está bem entendido que aqui se trata de afeição real, de alma para alma,
única que sobrevive à destruição do corpo, pois os seres que se unem neste
mundo apenas pelos sentidos não têm nenhum motivo para se procurarem no
mundo dos Espíritos. Não há afetos duráveis senão os espirituais; os afetos
carnais se extinguem com a causa que lhes originou; ora, essa causa deixa de
existir no mundo dos Espíritos, enquanto a alma existe sempre. Quanto às
pessoas que se unem somente por motivo de interesse, essas realmente não
significam nada umas para as outras: a morte as separa na Terra e no céu.

19. A união e a afeição que existem entre parentes são o indício da simpatia
anterior que os aproximou; assim se diz ao falar de uma pessoa cujo caráter,
gostos e inclinações não têm nenhuma semelhança com os dos seus parentes
mais próximos, que ela não é da família. Dizendo isso, enuncia-se uma
verdade maior do que se imagina. Deus permite essas encarnações de
Espíritos antipáticos ou estranhos numa mesma família, com o duplo objetivo
76 – Allan Kardec

de servir de provação para uns, e de progresso para outros. Então, os maus se


melhoram pouco a pouco através do contato dos bons e pelos cuidados que
recebem destes; seu caráter se abranda, seus costumes se requalificam, as
antipatias se apagam: é assim que se estabelece a fusão entre as diferentes
categorias de Espíritos, como ela se estabelece na Terra entre as raças e os
povos.

20. O temor do aumento indefinido da parentela em consequência da


reencarnação é um temor egoísta, que demonstra que não se sente um amor
bastante amplo para abranger um grande número de pessoas. Por acaso um
pai que tem muitos filhos os ama menos do que amaria se tivesse só um? Mas,
que os egoístas se tranquilizem, pois esse temor não tem fundamento. Do fato
de um homem ter tido dez encarnações, não significa que ele vá encontrar no
mundo dos Espíritos dez pais, dez mães, dez mulheres e um número
proporcional de filhos e de parentes novos; lá ele sempre encontrará os
mesmos que foram objeto da sua afeição, a quem esteve ligado na Terra, por
diversas títulos, e talvez sob o mesmo título.

21. Vejamos agora as consequências da doutrina da não reencarnação. Essa


doutrina necessariamente anula a preexistência da alma; sendo as almas
criadas ao mesmo tempo que o corpo, não existe entre elas nenhum laço
anterior; elas são completamente estranhas umas às outras; o pai é estranho a
seu filho; a filiação das famílias se encontra assim reduzida apenas à filiação
corporal, sem qualquer laço espiritual. Então, não há nenhum motivo para se
glorificar de haver tido por antepassados estes ou aqueles personagens
ilustres. Com a reencarnação, ascendentes e descendentes podem ser
conhecidos, ter vivido juntos, ter se amado e podem se reunir mais tarde, para
apertarem seus laços de simpatia.

22. Isso quanto ao passado. Quanto ao futuro, segundo um dos dogmas


fundamentais que decorem da não reencarnação, o destino das almas está
irrevogavelmente fixado após uma única existência. A fixação definitiva do
destino implica a cessação de todo progresso, porque, se houver qualquer
progresso, já não há destino definitivo. Conforme tenham vivido bem ou mal,
77 – O Evangelho segundo o Espiritismo

elas vão imediatamente parar na morada dos ditosos ou no inferno eterno;


desta forma, elas ficam imediatamente separadas para sempre e sem
esperança de jamais se reencontrarem, de tal maneira que pais, mães e
filhos, maridos e mulheres, irmãos, irmãs e amigos nunca estão certos se vão
se rever: isso é a mais absoluta ruptura dos laços de família.
Com a reencarnação e o progresso, que é a sua consequência, todos
aqueles que se amaram se reencontram na Terra e no espaço, gravitando
juntos rumo a Deus. Se alguns fracassam no caminho, eles retardam o seu
adiantamento e a sua felicidade, mas a esperança não está toda perdida;
ajudados, encorajados e amparados por aqueles que os amam, um dia eles
emergirão do atoleiro em que estão envolvidos. Enfim, com a reencarnação há
uma perpétua solidariedade entre os encarnados e os desencarnados, e daí o
estreitamento dos laços de afeição.

23. Em resumo, quatro alternativas se apresentam ao homem com relação ao


seu futuro no além-túmulo: 1ª) o nada, conforme a doutrina materialista; 2ª)
a absorção no todo universal, de acordo com a doutrina panteísta; 3ª) a
individualidade, com fixação definitiva do destino, segundo a doutrina da
Igreja; 4ª) a individualidade com progressão indefinita, em harmonia com a
doutrina espírita. Pelas duas primeiras, os laços de família são rompidos após
a morte e não há nenhuma esperança de reencontro; com a terceira, há
chance das almas se reverem, contanto que estejam no mesmo ambiente, e
esse ambiente tanto pode ser o inferno como o paraíso; com a pluralidade das
existências — que é inseparável da progressão gradual — existe a certeza na
continuidade das relações entre os que se amaram, e isso é o que constitui a
verdadeira família.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Limites da encarnação

24. Quais são os limites da encarnação?


A encarnação não tem — propriamente falando — limites claramente
78 – Allan Kardec

traçados, se com isso nos referirmos ao envoltório que constitui o corpo do


Espírito, visto que a materialidade desse envoltório diminui na medida em
que o Espírito se purifica. Em certos mundos mais avançados que a Terra, o
corpo já é menos compacto, menos pesado e menos grosseiro, e por
conseguinte, sujeito a menos vicissitudes; em grau mais elevado, ele é diáfano
e quase fluídico; de degrau por degrau, ele se desmaterializa e termina por se
confundir com o perispírito. Conforme o mundo no qual ele é chamado a
viver, o Espírito se apossa de um envoltório apropriado à natureza desse
mundo.
O próprio perispírito passa por transformações sucessivas; ele se eteriza
mais e mais, até à depuração completa que constitui os Espíritos puros. Se
mundos especiais são destinados como estações para Espíritos muito
adiantados, estes não ficam presos nesses mundos, como nos mundos
inferiores; o estado de desprendimento em que se encontram lhes permite se
transportar para toda parte onde quer que sejam chamados pelas missões
que lhes sejam confiadas.
Se considerarmos a encarnação do ponto de vista material, tal como
acontece na Terra, podemos dizer que ela se limita aos mundos inferiores;
consequentemente, depende de o Espírito se libertar dela mais ou menos
rapidamente, trabalhando pela sua purificação.
É de se considerar também que, no estado errante — quer dizer, no
intervalo das existências corpóreas — a situação do Espírito é proporcional à
natureza do mundo a que se liga o seu grau de avanço; assim, na erraticidade
ele é mais ou menos venturoso, livre e esclarecido, conforme seja mais ou
menos desmaterializado.
SÃO LUÍS (Paris, 1859)

Necessidade da encarnação

25. A encarnação é uma punição e somente os Espíritos culpados estão sujeitos


a ela?
A passagem dos Espíritos pela vida corpórea é necessária para que eles
possam, com a ajuda de uma ação material, cumprir os desígnios dos quais
79 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Deus lhes confia a execução; ela é necessária para eles mesmos, porque a
atividade que são obrigados a empregar lhes auxilia o desenvolvimento da
inteligência. Sendo soberanamente justo, Deus deve dar uma parte igual a
todos os seus filhos; é por isso que ele concede a todos o mesmo ponto de
partida, a mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma
liberdade de agir; qualquer privilégio seria uma preferência e qualquer
preferência seria uma injustiça. Mas a encarnação, para todos os Espíritos,
não passa de um estado transitório; é uma tarefa que Deus lhes impõe no
começo da vida deles, como primeira prova do uso que farão do livre-arbítrio.
Aqueles que desempenham essa tarefa com zelo passa rapidamente e menos
penosamente esses primeiros degraus da iniciação, e desfrutam mais cedo do
fruto do seu trabalho. Aqueles que, ao contrário, fazem um mau uso da
liberdade que Deus lhes concede retardam o seu progresso; é assim que, pela
sua teimosia, eles podem prolongar indefinidamente a necessidade de
reencarnar, e é então que a encarnação se torna um castigo.
SÃO LUÍS (Paris, 1859)

26. Observação – Uma comparação simples fará que se compreenda melhor


essa diferença. O estudante não chega aos graus superiores da ciência sem
antes ter percorrido a série das classes que o conduzem até lá. Essas classes,
seja qual for o trabalho que exijam, são um meio de chegar ao objetivo, e não
uma punição. O aluno esforçado abrevia o caminho e nele encontra menos
espinhos; algo diferente acontece com aquele cuja negligência e preguiça o
obrigam a repetir certas classes. Não é o trabalho da classe que constitui uma
punição, mas sim a obrigação de recomeçar o mesmo trabalho.
Assim ocorre com o homem na Terra. Para o Espírito do selvagem, que
está quase que no início da vida espiritual, a encarnação é um meio de
desenvolver a sua inteligência; porém, para o homem esclarecido, em quem o
senso moral está largamente desenvolvido e que é obrigado a refazer as
etapas de uma vida corpórea cheia de angústias, quando ele já poderia ter
chegado ao fim, a encarnação é um castigo, pela necessidade que ele tem de
prolongar sua estadia nos mundos inferiores e infelizes. Aquele que, ao
contrário, trabalha ativamente pelo seu progresso moral, não somente pode
80 – Allan Kardec

abreviar a duração da encarnação material, mas também pode passar de uma


só vez os degraus intermediários que o separam dos mundos superiores.
Poderiam os Espíritos encarnar uma única vez num mesmo globo e
cumprir suas diferentes existências em esferas diferentes? Essa opinião só
seria admissível se todos os homens na Terra estivessem exatamente no
mesmo nível intelectual e moral. As diferenças que existem entre eles —
desde o selvagem até o homem civilizado — mostram os níveis pelos quais
eles são chamados a passar. A encarnação, aliás, deve ter um propósito útil;
agora, qual seria o propósito das encarnações efêmeras das crianças que
morrem em tenra idade? Elas teriam sofrido sem proveito para si e para os
outros: Deus, cujas leis são todas soberanamente sábias, nada faz de inútil.
Pela reencarnação no mesmo globo, ele quis que os mesmos Espíritos,
estando novamente em contato, tivessem oportunidade de reparar seus erros
recíprocos; por meio das suas relações anteriores, ele quis, além disso, fundar
os laços de família sobre base espiritual e apoiar sobre uma lei da natureza os
princípios da solidariedade, da fraternidade e da igualdade.
81 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO V

BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS
Justiça das aflições – Causas atuais das aflições –
Causas anteriores das aflições – Esquecimento do passado
– Motivos de resignação – O suicídio e a loucura –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Bem e mal sofrer – O mal e o remédio
– A felicidade não é deste mundo – Perda de pessoas amadas.
Mortes prematuras – Se fosse um homem de bem, ele teria morrido
– Os tormentos voluntários – A verdadeira infelicidade – A melancolia –
Provações voluntárias. – O verdadeiro cilício – Devemos dar fim às
provas do próximo? – É permitido abreviar a vida do doente que sofre
sem esperança de cura? – Sacrifício da própria vida
– Proveito dos sofrimentos para outrem

1. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Bem-


aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão saciados.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus. (São Mateus, 5: 4, 6 e 10)

2. Bem-aventurados são vocês que são pobres, porque o reino dos céus é de
vocês. Bem-aventurados são vocês que agora têm fome, porque serão
saciados. Felizes são vocês que agora choram, porque vocês hão de rir. (São
Lucas, 6: 20 e 21)

Mas ai de vocês, os ricos, porque vocês têm a sua consolação no mundo. Ai de


vocês que estão saciados, porque hão de ter fome. Ai de vocês que agora riem,
porque serão reduzidos a choro e lágrimas. (São Lucas, 6: 24 e 25)

Justiça das aflições


3. As compensações que Jesus promete aos aflitos da Terra não podem
acontecer senão na vida futura; sem a certeza do futuro, estas afirmações
82 – Allan Kardec

seriam um contrassenso — ou bem mais: seriam um engodo. Até mesmo com


essa certeza, dificilmente se compreende a utilidade de sofrer para ser feliz. É
— dizem — para se ter mais mérito; mas então, seria de se perguntar por que
uns sofrem mais do que outros? Por que alguns nascem na miséria e outros na
opulência, sem nada terem feito para justificar essa posição? Por que uns
nada conseguem, ao passo que a outros tudo parece sorrir? Mas o que se
compreende menos ainda é ver os bens e os males tão desigualmente
repartidos entre o vício e a virtude; e ver que os homens virtuosos sofram, ao
lado dos maus que prosperam. A fé no futuro pode consolar e dar paciência,
mas não explica essas anomalias que parecem desmentir a justiça de Deus.
Entretanto, desde quando admitimos Deus, não podemos concebê-lo
sem o infinito das perfeições; ele deve ser todo poder, todo justiça, todo
bondade, sem o que ele não seria Deus. Se é soberanamente justo e bom, ele
não pode agir por capricho nem com parcialidade. Portanto, as vicissitudes
da vida têm uma causa, e já que Deus é justo, essa causa há de ser justa.
Eis aquilo de que cada um deve bem se convencer. Deus colocou os homens
no caminho dessa causa pelos ensinamentos de Jesus, e hoje, julgando-os
suficientemente maduros para compreendê-la, Deus lhes revela inteiramente
pelo espiritismo, quer dizer, pela voz dos Espíritos.

Causas atuais das aflições

4. As vicissitudes da vida são de duas espécies, ou, se quisermos, têm duas


fontes bem diferentes que importa distinguir; umas têm sua causa na vida
presente e outras, fora desta vida.
Remontando à fonte dos males terrestres, reconheceremos que muitos
são a consequência natural do caráter e da conduta dos que os suportam.
Quantos homens tombam por sua própria culpa! Quantos são vítimas de
sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição!
Quanta gente se arruína por falta de ordem, de perseverança, por má
condução ou por não terem sabido controlar os seus desejos!
Quantas uniões infelizes, por se constituírem num cálculo de interesse
ou de vaidade, e porque o coração não tem nada a ver com isso!
83 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Quantas dissensões e disputas funestas se poderia evitar com mais


moderação e menos suscetibilidade!
Quantas doenças e enfermidades derivam da intemperança e dos
excessos de todos os gêneros!
Quantos pais são infelizes com seus filhos, porque não lhe combateram
as más tendências desde o princípio! Por fraqueza ou indiferença, eles
deixaram desenvolver neles os germes do orgulho, do egoísmo e da tola
vaidade que ressecam o coração; então, mais tarde, colhendo o que eles
semearam, os pais se admiram e se afligem com a falta de respeito e a
ingratidão dos filhos.
Que todos os que são feridos no coração pelas vicissitudes e decepções
da vida interroguem friamente suas consciências; que eles remontem passo a
passo à origem dos males que os afligem, e então verão se, na maior parte das
vezes, não podem dizer: Se eu tivesse feito ou deixado de fazer tal coisa,
então eu não estaria em semelhante situação.
Logo, a quem responsabilizar por todas essas aflições, senão a si mesmo?
Pois o homem é assim, em grande número de casos, o artífice de seus próprios
infortúnios; todavia, ao invés de reconhecer isso, ele acha mais simples e
menos humilhante para a sua vaidade acusar a sorte, a Providência, a situação
desfavorável, a má estrela — enquanto sua má estrela está na sua incúria.
Os males dessa natureza formam seguramente um contingente muito
notável nas vicissitudes da vida; o homem as evitará quando trabalhar pelo
seu melhoramento moral tanto quanto o faz pelo seu melhoramento
intelectual.

5. A lei humana atinge certas faltas e as pune; o condenado pode então dizer
que sofre a consequência do que ele tenha feito. Mas a lei não atinge nem
pode alcançar todas as faltas; ela incide mais especialmente sobre as que
trazem prejuízo à sociedade, e não sobre as que só prejudicam os que as
cometem. No entanto, Deus quer o progresso de todas as suas criaturas; é por
isso que ele não deixa impune qualquer desvio do caminho reto; não existe
uma só falta — por mais leve que seja —, nenhuma infração da sua lei, que
não acarrete consequências forçosas e inevitáveis, mais ou menos
84 – Allan Kardec

desagradáveis, donde se segue que — nas pequenas coisas, como nas grandes
— o homem é sempre punido por aquilo em que pecou. Os sofrimentos que
decorrem disso são para ele uma advertência de que agiu mal e lhe dão
experiência, fazendo-lhe sentir a diferença entre o bem e o mal, assim como a
necessidade de se melhorar, para evitar posteriormente o que foi para ele
numa fonte de amarguras; sem isso, ele não teria motivo algum para se
emendar; confiante na impunidade, ele retardaria o seu avanço e, por
conseguinte, a sua felicidade futura.
Mas a experiência algumas vezes chega um pouco tarde; quando a vida já
foi desperdiçada e perturbada, quando as forças estão gastas e o mal já é
irremediável, então o homem se põe a dizer: “Se no começo da vida eu
soubesse o que sei agora, quantas faltas eu teria evitado! Se tivesse que
recomeçar, eu me comportaria de outra maneira; mas não há mais tempo!”
Como diz o operário preguiçoso: “Perdi o meu dia”, também o homem diz
consigo: “Perdi a minha vida”. Porém, assim como para o operário o Sol se
levanta no dia seguinte e começa uma nova jornada que lhe permite reparar o
tempo perdido, também para o homem, após a noite do túmulo, raiará o sol de
uma nova vida na qual ele poderá aproveitar a experiência do passado e suas
boas resoluções para o porvir.

Causas anteriores das aflições

6. Mas se há males nesta vida de que o homem é a causa principal, há outros


para os quais ele é — pelo menos na aparência — completamente estranho e
que parecem atingi-lo como que por fatalidade. Tal é, por exemplo, a perda de
entes queridos e a dos que amparam a família. Tais são, ainda, os acidentes
que nenhuma previdência poderia impedir; os reveses da fortuna que
frustram todas as medidas de prudência; os flagelos naturais, as enfermidades
de nascença, sobretudo as que tiram dos infelizes os meios de ganhar a vida
através do trabalho: as deformidades, doenças mentais etc.
Com certeza, aqueles que nascem em semelhantes condições nada
fizeram nesta existência para merecer uma sorte tão triste, sem compensação,
e que eles não podiam evitar, estando eles impotentes para mudar por si
85 – O Evangelho segundo o Espiritismo

mesmos e que os põe à mercê da comiseração pública. Por que então seres tão
desgraçados, enquanto ao lado deles, sob o mesmo teto, na mesma família,
outros são favorecidos em todos os sentidos?
O que dizer, enfim, dessas crianças que morrem com pouca idade e da
vida só conheceram sofrimentos? Problemas que nenhuma filosofia pôde
resolver ainda, anomalia que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a
negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, na hipótese de a
alma ser criada ao mesmo tempo que o corpo e de que a sua sorte estar fixada
irrevogavelmente após a permanência de alguns instantes na Terra. O que
teriam feito essas almas que acabam de sair das mãos do Criador, para
sofrerem tantas misérias neste mundo e para merecerem no futuro uma
recompensa ou uma punição qualquer, já que não puderam praticar nem o
bem nem o mal?
Entretanto, em virtude do axioma que todo efeito tem uma causa, essas
misérias são efeitos que devem ter uma causa; e desde quando admitimos um
Deus justo, esta causa também deve ser justa. Ora, como a causa sempre
precede o efeito, se a causa não estiver na vida atual, ela há de ser anterior a
esta vida, ou seja, deve pertencer a uma existência precedente. Por outro lado,
Deus não podendo punir pelo bem que fizemos nem pelo mal que não
fizemos, se somos punidos, é porque fizemos o mal; se não fizemos esse mal
nesta vida, é que o fizemos em outra. Esta é uma alternativa da qual é
impossível escapar e na qual a lógica diz de que lado está a justiça de Deus.
Portanto, nem sempre o homem é punido ou punido completamente na
sua existência atual, mas ele jamais escapa jamais das consequências de suas
faltas. A prosperidade do mau é só momentânea, e se ele não expiar hoje,
expiará amanhã, enquanto aquele que sofre está expiando o seu passado. A
infelicidade que à primeira vista parece imerecido, de fato tem sua razão de
ser, e aquele que sofre pode dizer sempre: “Perdoe-me, Senhor, porque eu
pequei!”

7. Muitas vezes, os sofrimentos pelas causas anteriores são — como aqueles


pelas faltas atuais — a consequência natural do erro cometido; isso significa
que, por uma justiça distributiva rigorosa, o homem sofre o que fez sofrer aos
86 – Allan Kardec

outros; se foi duro e desumano, ele poderá, por sua vez, ser tratado
duramente e com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em condição
humilhante; se foi avaro, egoísta ou se fez mau uso da sua fortuna, poderá
ficar privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer com seus filhos etc.
Assim fica explicado, pela pluralidade das existências e pela destinação
da Terra como mundo expiatório, as anomalias que apresenta a repartição da
felicidade e da infelicidade entre os bons e os maus neste mundo. Essa
anomalia só existe na aparência, porque a tomamos apenas do ponto de vista
da vida presente; mas se nos elevarmos, através do pensamento, de modo a
abrangermos uma série de existências, nós veremos que a cada é dado a parte
que merece, sem prejuízo da parte que lhe cabe no mundo dos Espíritos, e que
a justiça de Deus jamais é interrompida.
O homem jamais deve perder de vista que está num mundo inferior,
onde ele só é mantido pelas suas imperfeições. A cada vicissitude ele deve
dizer a si mesmo que, se pertencesse a um mundo mais adiantado, isso não
aconteceria e que só depende dele não mais voltar a esse mundo, trabalhando
para a sua melhoria.

8. As tribulações da vida podem ser impostas a Espíritos endurecidos ou


muito ignorantes, para levá-los a fazer uma escolha com conhecimento de
causa; porém, são livremente escolhidas e aceitas por Espíritos arrependidos,
que querem reparar o mal que fizeram e tentar fazer melhor. Tal é com aquele
que, tendo realizado mal a sua tarefa, pede para recomeçá-la, a fim de não
perder o fruto de seu trabalho. Desse modo, essas tribulações são ao mesmo
tempo expiações do passado, que elas punem, e provas para o futuro, que elas
preparam. Agradeçamos a Deus, que, em sua bondade, concede ao homem a
faculdade da reparação e não o condena irrevogavelmente por uma primeira
falta.

9. Não se deve crer, contudo, que todo sofrimento suportado neste mundo
seja necessariamente o indício de uma determinada falta; muitas vezes são
simples provas escolhidas pelo Espírito para concluir a sua depuração e
acelerar o seu avanço. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas nem
sempre a prova é uma expiação; ainda assim, provas ou expiações, são sempre
87 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sinais de uma relativa inferioridade, porque o que é perfeito não precisa ser
provado. Um Espírito pode então ter adquirido certo grau de elevação, mas,
desejando avançar mais, ele solicita uma missão, uma tarefa a executar, pela
qual será tanto mais recompensado, se dela sair vitorioso, quanto mais
penosa tenha sido a luta. Tais são, mais especialmente, essas pessoas de
instintos naturalmente bons, de alma elevada, de nobres sentimentos inatos,
que parecem nada ter trazido de mau de suas existências anteriores, e que
sofrem com resignação cristã as maiores dores — pedindo a Deus para
suportá-las sem murmurar. Podemos, ao contrário, considerar como
expiações as aflições que incitam os murmúrios e levam o homem à revolta
contra Deus.
O sofrimento que não provoca murmúrios pode ser sem dúvidas uma
expiação, mas é o indício de que ela foi antes escolhida voluntariamente do
que imposta, e que constitui a prova de uma forte resolução, o que é um sinal
de progresso.

10. Os Espíritos não podem aspirar à completa felicidade até que estejam
puros: qualquer impureza interdita a sua entrada nos mundos felizes. Tais são
como os passageiros de um navio atingido pela peste, aos quais a entrada em
uma cidade é interditada até que eles estejam purificados. É nas diversas
existências corpóreas que os Espíritos se depuram pouco a pouco de suas
imperfeições. As provações da vida nos fazem avançar, quando as suportamos
bem; como expiações, elas apagam nossas faltas e as purificam; são o remédio
que limpa as feridas e cura o doente. Quanto mais grave for o mal, mais o
remédio deverá ser enérgico. Em suma, aquele que sofre muito deve
reconhecer que muito tinha a expiar e se alegrar de ser curado logo; depende
dele, pela sua resignação, tornar esse sofrimento proveitoso, e não perder o
fruto com suas reclamações, sem o que ele terá de recomeçar.

Esquecimento do passado
11. É em vão apontar o esquecimento como um obstáculo para que se possa
aproveitar a experiência das existências anteriores. Se Deus julgou
88 – Allan Kardec

conveniente lançar um véu sobre o passado, é que isso devia ser útil. De fato,
essa recordação teria inconvenientes gravíssimos; em certos casos, ela
poderia nos humilhar estranhamente, ou então exaltar o nosso orgulho e por
isso mesmo entravar nosso livre-arbítrio. Em todo caso, ela poderia provocar
uma perturbação inevitável nos relacionamentos sociais.
O Espírito renasce frequentemente no mesmo meio em que já viveu e se
relaciona com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes tenha feito.
Se ele reconhecesse nelas as pessoas a quem odiou, talvez o seu ódio se
despertaria outra vez; em todos os casos, ele se sentiria humilhado diante de
quem ele tivesse ofendido.
Para nos melhorarmos, Deus nos deu justamente o que nos é necessário
e suficiente: a voz da consciência e as tendências instintivas; ele tira de nós o
que poderia nos prejudicar.
Ao nascer, o homem traz aquilo que adquiriu; ele nasce como se fez.
Cada existência para ele é um novo ponto de partida; pouco lhe importa saber
o que ele foi: se é punido, é porque fez o mal; suas más tendências atuais
indicam o que lhe resta corrigir em si mesmo e é nisso que deve concentrar
toda a sua atenção, pois, daquilo do que ele se corrigiu completamente, não
restará mais nenhum traço. As boas resoluções que ele tomou são a voz da
consciência, que o adverte do que é bem e do que é mal, dando-lhe a força
para resistir às más tentações.
De resto, esse esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea.
Retornando à vida espiritual, o Espírito recobra a lembrança do passado: o
esquecimento não é mais do que uma interrupção momentânea, igual àquela
que se dá na vida terrena durante o sono, e que no dia seguinte não nos
impede de lembrar o que fizemos na véspera e nos dias precedentes.
Não é somente depois da morte que o Espírito recobra a lembrança do
seu passado; podemos dizer que ele jamais a perde, e a experiência prova que
na encarnação — durante o sono do corpo, quando ele desfruta de uma certa
liberdade — o Espírito tem a consciência de seus atos anteriores; ele sabe por
que sofre e que ele sofre com justiça; a lembrança só se apaga no curso da
vida exterior de relações. Mas, na falta de uma reminiscência exata, que lhe
poderia ser penosa e prejudicar suas relações sociais, ele haure novas forças
89 – O Evangelho segundo o Espiritismo

nesses instantes de emancipação da alma — se souber aproveitá-los.

Motivos de resignação

12. Por estas palavras: Bem-aventurados os aflitos, porque eles serão


consolados, Jesus indica ao mesmo tempo a compensação que espera os que
sofrem e a resignação que abençoa o sofrimento como um prelúdio da cura.
Essas palavras ainda podem ser traduzidas assim: Vocês devem se
considerar felizes por sofrerem, porque as suas dores deste mundo são a
dívida das suas faltas passadas, e essas dores, quando suportadas
pacientemente na Terra, poupam vocês de séculos de sofrimentos na vida
futura. Vocês devem, pois, estar felizes por Deus reduzir a dívida de vocês ao
lhes permitir que a quitem agora, o que lhes garantirá a tranquilidade no
porvir.
O homem que sofre é semelhante a um devedor de uma grande quantia e
a quem o credor diz: “Se você me pagar hoje pelo menos a centésima parte do
que me deve, eu te darei a quitação do restante e você ficará livre; se não o
fizer, eu te perseguirei até que pague o último centavo.” O devedor não ficaria
feliz em suportar todo tipo de privações para se libertar, pagando apenas a
centésima parte do que deve? Em vez de se queixar do seu credor, não ficaria
agradecido a ele?
Tal é o sentido destas palavras: “Bem-aventurados os aflitos, porque
serão consolados”. São felizes porque saldaram suas dívidas e, após o
pagamento, ficam livres. Mas se, quitando a dívida de um lado, eles se
endividam de outro, jamais se libertarão. Ora, cada nova falta aumenta o
débito, porque todo débito — qualquer que seja ele — carrega consigo a
própria punição, forçosa e inevitável; se não for hoje, será amanhã; se não for
nesta vida, será em outra. Entre essas faltas, devemos colocar em primeiro
lugar a falta de submissão à vontade de Deus; por isso, se murmurarmos nas
aflições, se não as aceitarmos com resignação e como algo que devemos ter
merecido, se acusarmos Deus de ser injusto, então contraímos nova dívida,
que nos faz perder o fruto que poderíamos colher do sofrimento. Eis por que é
preciso recomeçar, absolutamente como se, a um credor que te atormente,
90 – Allan Kardec

você pagasse uma quantia ao mesmo tempo em que novamente a tomasse


emprestada.
Na sua entrada no mundo dos Espíritos, o homem ainda está como o
operário que se apresenta no dia do pagamento: a uns, o patrão dirá: “Aqui
está o prêmio dos teus dias de trabalho”; a outros, aos felizes da Terra, aos
que tenham vivido na ociosidade, que tenham colocado sua felicidade nas
satisfações do amor-próprio e nos gozos mundanos, ele dirá: “A você, não
devo nada, porque você já recebeu o seu salário na Terra. Vá e recomece a tua
tarefa”.

13. O homem pode suavizar ou agravar o amargor de suas provações pela


maneira como ele encare a vida terrena. Tanto mais ele sofre quanto mais
longa ele considera a duração do sofrimento; agora, aquele que se coloca do
ponto de vista da vida espiritual, este alcança a vida corporal de um só golpe
de vista; ele a vê como um ponto no infinito, compreende a sua brevidade e
reconhece que esse momento penoso passa bem depressa; a certeza de um
futuro próximo mais feliz o sustenta e o encoraja, e então, em vez de se
queixar, ele agradece ao céu as dores que o fazem avançar. Por outro lado,
para aquele que não vê além da vida corporal, esta lhe parece interminável e a
dor pesa sobre ele com todo o seu peso. O resultado daquela maneira de
encarar a vida é o de diminuir a importância das coisas deste mundo, de levar
o homem a moderar os seus desejos e de se contentar com a sua posição, sem
invejar a dos outros, atenuando a impressão moral dos contratempos e das
decepções que ele experimenta; daí ele tira uma calma e uma resignação tão
úteis à saúde do corpo quanto à da alma, enquanto pela inveja, pelo ciúme e
pela ambição ele se entrega voluntariamente à tortura e assim aumenta as
misérias e as angústias da sua curta existência.

O suicídio e a loucura

14. A calma e a resignação adquiridas na maneira de ver a vida terrestre e na


fé no futuro dão ao espírito uma serenidade que é o melhor preservativo
contra a loucura e o suicídio. Com efeito, é certo que a maioria desses casos
91 – O Evangelho segundo o Espiritismo

de loucura se deve à comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não


tem coragem de suportar; portanto, pela maneira com que o espiritismo o faz
encarar as coisas deste mundo, se ele recebe com indiferença — até mesmo
com alegria — os reveses e as decepções que o teriam desesperado em outras
circunstâncias, é evidente que essa força, que o coloca acima dos
acontecimentos, preserva sua razão dos abalos que, sem isso, a teriam
debilitado.

15. É o mesmo que acontece com o suicídio; fazendo exceção dos caso que se
dão na embriaguez e na loucura, aos quais nós podemos chamar de
inconscientes, é certo que — quaisquer que sejam os motivos particulares —
o suicídio sempre tem como pretexto um descontentamento. Ora, aquele que
tem certeza de que só é infeliz por um dia e que estará melhor nos dias
seguintes, então este facilmente adquire paciência; ele não se desespera, a não
ser quando ele não vê o fim dos seus sofrimentos. O que é então a vida
humana em comparação com a eternidade, senão bem menos que um dia?
Mas para aquele que não crê na eternidade e julga que tudo nele se acaba com
a vida, se estiver sobrecarregado pela tristeza e pelo infortúnio, então ele só
enxerga o fim desse sofrimento na morte; nada esperando, ele acha muito
natural — muito lógico mesmo — encurtar as suas misérias pelo suicídio.

16. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as ideias materialistas


enfim, são os maiores incitantes ao suicídio: elas dão a covardia moral. E
quando vemos homens de ciência se apoiar na autoridade do seu saber se
esforçarem em provar aos seus ouvintes ou aos seus leitores que estes nada
têm a esperar após a morte, então isso não é os levar à essa consequência de
que, já que são infelizes, não há nada melhor a fazer do que se matar? O que
lhes poderiam dizer para desviá-los dessa consequência? Que compensação
poderiam lhes oferecer? Que esperança poderiam lhes dar? Nenhuma outra
além do nada. Disso é preciso concluir que se o nada é o único remédio
heroico, a única perspectiva, então mais vale entregar-se a ele imediatamente
do que mais tarde, e assim sofrer por menos tempo.
A propagação das ideias materialistas é, pois, o veneno que inocula na
maioria dos homens a ideia do suicídio, e os que se fazem apóstolos dessa
92 – Allan Kardec

propagação assumem para si uma terrível responsabilidade. Já que com o


espiritismo a dúvida não é possível, o aspecto da vida se modifica; o crente
sabe que a vida se prolonga indefinidamente para além do túmulo, mas em
condições muito diversas; daí a paciência e a resignação que afastam muito
naturalmente o pensamento do suicídio; daí, enfim, a coragem moral.

17. O espiritismo ainda produz, sob esse aspecto, outro resultado igualmente
positivo — e talvez mais decisivo: ele nos mostra os próprios suicidas vindo
nos informar sobre sua situação infeliz, provando que ninguém viola
impunemente a lei de Deus, que proíbe ao homem abreviar sua vida. Entre os
suicidas estão aqueles cujos sofrimentos — mesmo sendo temporários, em
vez de eternos — não deixam de ser menos terríveis, de modo a fazer refletir
qualquer um que fosse tentado a partir deste mundo antes da ordem de Deus.
Logo, o espírita tem vários motivos como contrapeso à ideia do suicídio: a
certeza de uma vida futura, na qual ele sabe que será tanto mais feliz quanto
mais infeliz e mais resignado ele tenha sido na Terra; a certeza de que
abreviando a sua vida ele chega a um resultado totalmente oposto ao que
esperava; que ele foge de um mal para cair noutro pior, mais demorado e mais
terrível; que ele se engana ao crer que, ao se matar, ele vá mais rápido para o
céu; que o suicídio é um obstáculo para ele se ajuntar no outro mundo aos que
foram objeto de suas afeições e aos quais ele esperava lá encontrar. Daí vem a
consequência de que o suicídio, não lhe dando mais do que decepções, é
contrário aos seus próprios interesses. Com isso, o número dos suicídios
impedidos pelo espiritismo é considerável, e podemos concluir que quando
todo mundo for espírita, não haverá mais suicídios conscientes. Então,
comparando os resultados das doutrinas materialistas e espíritas sob o ponto
de vista do suicídio, verificamos que a lógica das materialistas conduz a ele,
enquanto a lógica espírita o evita, o que é confirmado pela experiência.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS


Bem e mal sofrer
18. Quando Cristo disse: “Bem-aventurados os aflitos, o reino dos céus é
93 – O Evangelho segundo o Espiritismo

deles”, não se referia aos que sofrem em geral, pois todos aqueles que estão
nesse mundo sofrem — que eles estejam sobre um trono ou sobre uma palha.
Ah, mas são poucos os que sofrem bem; poucos compreendem que só as
provações bem suportadas são as que podem conduzi-los ao reino de Deus. O
desencorajamento é uma falta; Deus lhes nega consolações, quando falta
coragem a vocês. A prece é um suporte para a alma, mas não é suficiente: é
necessário que ela se apoie numa fé viva na bondade de Deus. Já lhes foi dito
muitas vezes que ele não coloca um fardo pesado em ombros fracos; mas sim
que o fardo é proporcional às forças, como a recompensa será proporção à
resignação e à coragem. A recompensa será mais magnífica quanto mais a
aflição for penosa; porém, essa recompensa deve ser merecida, e é por isso
que a vida está repleta de tribulações.
O militar que não é mandado para as linhas de fogo não fica contente,
porque o repouso no campo não lhe rende nenhuma promoção; então, sejam
como o militar e não desejem um repouso no qual o corpo enfraqueceria e a
alma se entorpeceria. Fiquem satisfeitos quando Deus lhes enviar à luta. Essa
luta não é o fogo da batalha, e sim as amarguras da vida, em que às vezes é
preciso mais coragem do que num combate sangrento, pois aquele que se
mantém firme diante do inimigo pode fraquejar sob a pressão de uma pena
moral. O homem não recebe nenhuma recompensa por esse tipo de coragem,
mas Deus lhe reserva a coroa da vitória e um lugar glorioso. Quando lhes
surgir uma causa de dor ou de contrariedade, tratem de superá-la, e quando
tiverem conseguido dominar os impulsos da impaciência, da cólera ou do
desespero, então digam para vocês mesmos com justa satisfação: “Eu fui o
mais forte”.
Bem-aventurados os aflitos pode então ser traduzido assim: Bem-
aventurados os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua
perseverança e sua submissão à vontade de Deus, pois eles terão centuplicada
a alegria que lhes falta na Terra, porque após o labor vem o repouso.
LACORDAIRE (Le Havre, 1863)

O mal e o remédio
19. Será que a Terra é um lugar de alegrias, um paraíso de delícias? Será que a
94 – Allan Kardec

voz do profeta não mais ressoa aos ouvidos de vocês? Ela não proclamou que
haveria choro e ranger de dentes para os que nascessem nesse vale de dores?
Vocês, que nela vieram viver, esperem então lágrimas ardentes e sofrimentos
amargos, e quanto mais agudas e profundas forem suas dores, olhem para o
céu e bendigam o Senhor por lhes ter querido testá-los... Ó homens! Vocês não
reconhecem o poder do seu Senhor senão quando ele cura as chagas do corpo
e coroa seus dias de bênçãos e felicidade! Vocês não reconhecem o seu amor
senão quando ele tenha adornado o corpo de vocês com todas as glórias e lhe
haja restituído o brilho e a alvura? Imitem aquele que lhes foi dado como
exemplo; tendo chegado ao último grau da abjeção e da miséria, ele se deita
sobre um esterco e diz a Deus: “Senhor, conheci todas as alegrias da opulência
e o Senhor me reduziu à mais absoluta miséria; obrigado, obrigado, meu Deus,
por ter querido experimentar o teu servo!”21 Até quando a visão de vocês irá
se deter nos horizontes demarcados pela morte? Quando, afinal, a vossa alma
vai querer se lançar para além dos limites de um túmulo? Mas ainda que
chorassem e sofressem por toda uma vida, o que isso significa em comparação
com a eternidade da glória reservada àquele que tenha sofrido a prova com fé,
amor e resignação? Portanto, procurem consolações para os males no futuro
que Deus lhes prepara, e reconheçam a causa dos seus males no passado de
vocês; e vocês, que sofrem mais, considerem-se os bem-aventurados da Terra.
Na condição de desencarnados, quando planavam no espaço, vocês
escolheram as próprias provas, porque acreditaram serem bastante fortes
para as suportar; por que murmurar a essa hora? Vocês que pediram a
fortuna e a glória, era para sustentar a luta contra a tentação e vencê-la. Vocês
que pediram para lutar de corpo e espírito contra o mal moral e físico, já
sabiam que, quanto mais a prova fosse forte, mais a vitória seria gloriosa, e
que, se vocês saíssem triunfantes, mesmo que sua carne fosse atirada num
monturo, ao morrer, essa carne deixaria se desprender uma alma
deslumbrante de brancura, repurificada pelo batismo da expiação e do
sofrimento.
Que remédio então prescrever àqueles que são atacados pelas obsessões

21 Menção a Jó, personagem do Antigo Testamento bíblico, conforme a narrativa do livro intitulado
justamente com o seu nome. — N. T.
95 – O Evangelho segundo o Espiritismo

cruéis e pelos males cruciantes? Só um é infalível: a fé, o olhar para o céu. Se


suas vozes, no auge dos seus sofrimentos mais cruéis, cantarem ao Senhor,
então o anjo que está ao lado de vocês lhes apontará com a mão o sinal da
salvação e o lugar que deverão ocupar um dia... A fé é o remédio correto para
o sofrimento; ela sempre mostra os horizontes do infinito diante dos quais
desaparecem os poucos dias sombrios do presente. Por isso, não nos
perguntem qual remédio é preciso empregar para curar tal úlcera ou tal
ferida, para tal tentação ou tal prova; lembrem-se de que aquele que crê se
fortalece com o remédio da fé e que aquele que duvida um segundo da sua
eficácia é punido na hora, porque no mesmo instante ele sente as pungentes
angústias da aflição.
O Senhor marcou com o seu selo todos aqueles que nele creem. Cristo
lhes disse que com a fé nós transportamos montanhas, e eu lhes digo que
aquele que sofre e tem a fé como amparo, este será colocado sob a sua égide e
não sofrerá mais; os momentos das mais fortes dores serão para ele as
primeiras notas de júbilo da eternidade. Sua alma se desprenderá do corpo de
tal maneira que, enquanto este se contorce em convulsões, ela planará nas
regiões celestes, entoando com os anjos os hinos de reconhecimento e de
glória ao Senhor.
Felizes os que sofrem e que choram! Que suas almas se alegrem, pois
elas serão plenamente recompensadas por Deus.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1863)

A felicidade não é deste mundo


20. Não sou feliz! A felicidade não foi feita para mim! — exclama geralmente o
homem em todas as posições sociais. Isso, meus caros filhos, prova melhor do
que todos os raciocínios possíveis a verdade desta máxima do Eclesiastes: “A
felicidade não é deste mundo”.22 Com efeito, nem a fortuna, nem o poder, nem
mesmo a juventude florescente são condições essenciais à felicidade; eu digo
mais: nem mesmo a junção dessas três condições tão desejadas — porque nós
ouvimos constantemente, no seio das classes mais privilegiadas, pessoas de
22 Esta máxima está nas entrelinhas da narração bíblica do livro Eclesiastes, 2: 4 a 11. — N. T.
96 – Allan Kardec

todas as idades se queixarem amargamente da situação em que se encontram.


Diante de tal resultado, é inconcebível que as classes trabalhadoras e
batalhadoras invejem com tanta avidez a posição daqueles que parecem
favorecidos pela fortuna. Neste mundo, por mais que se faça, cada um tem a
sua parte de labor e de miséria, sua cota de sofrimentos e de decepções, razão
pela qual é fácil chegar a esta conclusão: que a Terra é um lugar de provas e
de expiações.
Sendo assim, os que pregam que a Terra é a única morada do homem e
que somente nela e numa única existência lhe é permitido alcançar o mais alto
grau de felicidade que a sua natureza comporta, estes se iludem e enganam
aqueles que os escutam, visto que já está demonstrado, por uma experiência
multissecular, que só excepcionalmente este globo apresenta as condições
necessárias à completa felicidade do indivíduo.
Em tese geral, podemos afirmar que a felicidade é uma utopia em busca
da qual as gerações se lançam sucessivamente sem jamais conseguirem
alcançá-la; pois se o homem sábio é uma raridade neste mundo, o homem
absolutamente feliz também não se encontra aqui.
O consiste a felicidade na Terra é algo tão efêmero para aquele que não é
guiado pela sabedoria, senão por um ano, um mês ou uma semana de
completa satisfação, todo o resto passa numa série de amarguras e de
decepções. E notem, meus caros filhos, que estou falando aqui dos sortudos da
Terra, daqueles que são invejados pelas multidões.
Consequentemente, se a estadia terrena é destinada às provações e à
expiação, é de se admitir que noutros lugares existam estadias mais
favorecidas onde o Espírito do homem — embora ainda aprisionado na carne
material — possui os prazeres inerentes à vida humana em sua plenitude. É
por isso que Deus semeou no vosso turbilhão esses belos planetas superiores,
para os quais os esforços e as tendências de vocês um dia lhes farão gravitar,
quando estiverem suficientemente purificados e aperfeiçoados.
No entanto, não deduzam das minhas palavras que a Terra esteja
destinada para sempre a ser uma penitenciária; não, certamente! Dos
progressos já realizados vocês podem facilmente deduzir os progressos
futuros e, dos melhoramentos sociais conquistados, novas e mais fecundas
97 – O Evangelho segundo o Espiritismo

melhorias. Essa é a tarefa imensa a ser cumprida pela nova doutrina que os
Espíritos lhes revelaram.
Assim sendo, meus queridos filhos, que uma santa emulação lhes anime
e que cada um de vocês se despoje energicamente do velho homem. Todos
vocês têm uma dívida com a propagação desse espiritismo que já deu inicia à
sua própria regeneração. É um dever fazer que os seus irmãos participem dos
raios dessa luz sagrada. Então, mãos à obra, meus queridos filhos! Que nesta
reunião solene todos os corações aspirem a esse grandioso objetivo de
preparar para as futuras gerações um mundo em que a felicidade não seja
mais uma palavra vã.
FRANÇOIS-NICOLAS MADELEINE, cardeal MORLOT (Paris, 1863)

Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras

21. Quando a morte chega nas famílias de vocês, sem fazer distinção, ceifando
os mais jovens em vez dos idosos, vocês costumam dizer: Deus não é justo,
porque ele sacrifica o que está forte e cheio de futuro e conserva os que já
viveram longos anos fartos de decepções; porque ele leva os que são úteis e
deixa os que já não servem para mais nada, e porque ele parte o coração de
uma mãe ao privá-la da criatura inocente que era toda a sua alegria.
Humanos, é sobre isso que vocês precisam se elevar acima do terra a
terra da vida para compreender que o bem muitas vezes está onde vocês
acham ver o mal, e a sábia previdência onde vocês acham ver a cega fatalidade
do destino. Por que medir a justiça divina pela medida de vocês? Por acaso
vocês acham que, por um simples capricho, o Senhor dos mundos quer lhes
infligir penas cruéis? Nada se faz sem um propósito inteligente e, seja o que
for que aconteça, cada coisa tem a sua razão de ser. Se vocês perscrutassem
melhor todas as dores que lhes atingem, sempre encontrariam nelas a razão
divina, razão regeneradora, e os miseráveis interesses de vocês significariam
uma consideração tão secundária que os jogariam para o último plano.
Acreditem em mim, é melhor a morte, por uma encarnação de vinte
anos, do que esses desregramentos vergonhosos que desolam as famílias
98 – Allan Kardec

respeitáveis, que partem o coração de uma mãe e fazem com que os cabelos
dos pais embranqueçam antes do tempo. A morte prematura muitas vezes é
um grande benefício que Deus concede àquele que se vai e que, assim, fica
preservado das misérias da vida ou das seduções que poderiam tê-lo
arrastado à perdição. Aquele que morre na flor da idade não é uma vítima da
fatalidade; é porque Deus julga que não é conveniente ele permanecer por
mais tempo na Terra.
É uma terrível desgraça — vocês dizem — que uma vida tão plena de
esperanças seja ceifada tão cedo! Mas de que esperanças estão querendo
falar? Daquelas da Terra, onde aquele que se foi poderia brilhar, fazer a sua
carreira e a sua fortuna? Vocês sempre com essa visão estreita, incapaz de se
elevar acima da matéria! Sabem qual teria sido a sorte dessa vida tão plena de
esperanças, segundo vocês? Quem lhes diz que ela não estaria carregada de
amarguras? Por acaso não levam em conta as esperanças da vida futura, que
vocês trocam por aquelas da vida efêmera que arrastam na Terra? Pensam
então que mais vale ter uma posição elevada entre os homens do que entre os
Espíritos bem-aventurados?
Regozijem-se, em vez de se queixarem, quando agradar a Deus retirar
um de seus filhos deste vale de misérias. Não seria egoísmo desejar que ele aí
continuasse para sofrer convosco? Ah, essa dor é compreensível naquele que
não tem fé e que vê na morte uma separação eterna; mas vocês, espíritas,
sabem que a alma vive melhor quando desembaraçada do seu invólucro
corporal. Mães, saibam que seus filhos bem-amados estão perto de vocês; sim,
estão muito perto, e seus corpos fluídicos lhes envolvem, seus pensamentos
lhes protegem e a lembrança de vocês os enchem de alegria; mas também, as
vossas dores sem razão os afligem, porque elas denotam uma falta de fé e
representam uma revolta contra a vontade de Deus.
Vocês que compreendem a vida espiritual, escutem as pulsações do
coração chamando esses entes bem-amados e, se vocês pedirem a Deus para
os abençoar, então sentirão intimamente consolações poderosas, dessas que
secam as lágrimas; dessas aspirações grandiosas que lhes mostrarão o futuro
prometido pelo soberano Mestre.
SANSON, antigo membro da Sociedade Espírita de Paris (1863)
99 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Se fosse um homem de bem, ele teria morrido

22. Vocês dizem frequentemente, ao falar de um homem mau que escapa de


um perigo: Se fosse um homem de bem, ele teria morrido. Pois bem, ao dizer
isso vocês estão com a verdade, porque realmente acontece que Deus muitas
vezes conceda a um Espírito, ainda jovem na senda do progresso, uma prova
mais longa do que a um bom, que receberá como recompensa pelo seu mérito
a graça de sua provação ser tão curta quanto possível. Sendo assim, quando
vocês se servem dessa axioma, nem suspeitam de que estão proferindo uma
blasfêmia.
Se morre um homem de bem, tendo ao lado de casa um vizinho malvado,
vocês se apressam a dizer: Teria sido muito melhor se tivesse morrido esse
aqui. Pois estão muitíssimo errados, porque aquele que parte concluiu a sua
tarefa e aquele que fica talvez não tenha começado a sua. Por que, então,
vocês iriam querer que o homem mau não tivesse tempo para conclui-la e que
o outro permanecesse preso à gleba terrestre? O que diriam de um
prisioneiro que tivesse cumprido sua pena e que fosse retido na prisão,
enquanto fosse dada a liberdade a um que não tivesse esse direito? Portanto,
saibam que a verdadeira liberdade consiste no rompimento dos laços do
corpo e que, enquanto permanecerem na Terra, vocês estarão em cativeiro.
Habituem-se a não censurar o que não podem compreender e creiam
que Deus é justo em todas as coisas; não raro, o que lhes parece um mal é um
bem; mas as capacidades de vocês são tão limitadas que o conjunto do grande
todo escapa aos seus sentidos obtusos. Esforcem-se, pelo pensamento, para
escapar da sua acanhada esfera e, à medida que se elevarem, a importância da
vida material diminuirá aos seus olhos, pois ela só lhes aparecerá como
simples incidente na duração infinita da sua existência espiritual, a única
existência verdadeira.
FÉNELON (Sens, 1861)

Os tormentos voluntários

23. O homem vive incessantemente à procura da felicidade, que dele escapa


100 – Allan Kardec

sem parar, porque a felicidade sem mescla não existe na Terra. Entretanto,
malgrado as vicissitudes que formam o cortejo inevitável dessa vida, ele
poderia pelo menos desfrutar de uma relativa felicidade; mas ele a procura
nas coisas perecíveis e sujeitas às mesmas vicissitudes, isto é, nos gozos
materiais, em vez de procurá-la nos prazeres da alma, que são uma
antecipação das alegrias celestes imperecíveis; em vez de procurar a paz do
coração, única felicidade real neste mundo, ele é ávido por tudo que o possa
agitar e perturbar; e — que coisa curiosa! — ele parece criar para si,
deliberadamente, os tormentos que lhe caberia evitar.
Haverá tormentos maiores do que aqueles causados pela inveja e pelo
ciúme? Para o invejoso e o ciumento, não há repouso; estão perpetuamente
febris; o que eles não têm e os outros possuem lhes causa insônias; os
sucessos dos seus rivais lhes dão vertigem; sua motivação só funciona para
eclipsar seus vizinhos, toda a sua alegria consiste em excitar nos insensatos
como eles a fúria do ciúme de que são possuídos. Pobres insensatos, de fato,
que não pensam que amanhã talvez tenham de deixar todas essas futilidades
cuja cobiça lhes envenena a vida! Não é a eles que se aplicam estas palavras:
“Bem-aventurados os aflitos, porque eles serão consolados”, pois as suas
preocupações não são aquelas que têm as suas compensações no céu.
Por outro lado, quantos tormentos consegue evitar aquele que sabe se
contentar com aquilo que tem, que vê sem inveja o que não possui, que não
procura parecer mais do que é! Esse é sempre rico, porque, se ele olha para
baixo de si em vez de olhar para cima, sempre vai ver gente que tem menos do
que ele; é calmo, porque não cria para si necessidades quiméricas; ora, a
calma em meio às tempestades da vida já não será uma felicidade?
FÉNELON (Lyon, 1860)

A verdadeira infelicidade

24. Todo mundo fala da infelicidade, todo mundo já a experimentou e acha


que conhece o seu caráter múltiplo. Eu, eu venho lhes dizer que quase todo
mundo se engana e que a verdadeira infelicidade não é absolutamente o que
101 – O Evangelho segundo o Espiritismo

os homens — quer dizer, os infelizes — supõem. Eles a veem na miséria, na


lareira sem fogo, no credor ameaçador, no berço vazio do anjo que antes
sorria, nas lágrimas, na urna mortuária que acompanhamos com a cabeça
descoberta e com o coração partido, na angústia da traição, no desnudamento
do orgulho, que desejava se vestir de púrpura e mal oculta a sua nudez sob os
trapos da vaidade; tudo isso, e muitas coisas mais, chama-se infelicidade na
linguagem humana. Sim, é desgraça para os que não veem mais do que o
presente; porém, a verdadeira infelicidade está mais nas consequências de
uma coisa do que na coisa em si mesma. Digam-me se o acontecimento mais
feliz do momento, mas que traga consequências funestas, não é, na realidade,
mais infeliz do que aquele que a princípio causa uma viva contrariedade e
acaba produzindo o bem. Digam-me se a tempestade que arranca as árvores,
mas que purifica o ar ao dissipar os miasmas insalubres que causariam a
morte, não é uma felicidade em vez de uma infelicidade.
Portanto, para julgarmos uma coisa, nós precisamos ver as suas
consequências; é assim que para apreciarmos bem o que é realmente ditoso
ou desditoso para o homem, precisamos nos transportar para além desta vida,
porque é lá que as consequências se revelam. Ora, tudo o que se chama
infelicidade — segundo a curta visão de vocês — cessa com a vida corpórea e
encontra a sua compensação na vida futura.
Eu vou lhes revelar a infelicidade sob uma nova forma, sob a forma bela
e florida que vocês acolhem e desejam com todas as forças de suas almas
iludidas. A infelicidade é a alegria, é o prazer, é o barulho, é a vã agitação, é a
satisfação da vaidade que fazem calar a consciência, que comprimem a ação
do pensamento, que atordoam o homem quanto ao seu futuro; a infelicidade é
o ópio do esquecimento que vocês desejam com toda a sua força.
Esperem, vocês que choram! Tremem, vocês que riem, pois seus corpos
estão saciados! Ninguém engana Deus; ninguém escapa do destino; quanto às
provações, credoras mais impiedosas do que a matilha que a miséria
desencadeia, elas espreitam o repouso ilusório de vocês para lhes mergulhar
subitamente na agonia da verdadeira infelicidade, daquela que surpreende a
alma enfraquecida pela indiferença e pelo egoísmo.
Que o Espiritismo então lhes ilumine e recoloque sob a sua verdadeira
102 – Allan Kardec

luz a verdade e o erro, tão estranhamente desfigurados pela cegueira de


vocês! Então, vocês vão agir como bravos soldados que, longe de fugir do
perigo, preferem as lutas dos combates arriscados à paz que não lhes pode
dar nem glória, nem promoção. Que importa ao soldado perder as armas,
bagagens e uniforme na luta, contanto que saia vencedor e com glória?! Que
importa àquele que tem fé no futuro deixar no campo de batalha da vida a
riqueza e o manto de carne, contanto que sua alma entre radiosa no reino
celeste?!
DELFINA DE GIRARDIN (Paris, 1861)

A melancolia

25. Sabem por que uma vaga tristeza às vezes se apodera dos seus corações e
os faz achar a vida tão amarga? É que o Espírito de vocês — aspirando à
felicidade e à liberdade, mas preso ao corpo que lhe serve de prisão — se
esgota em vãos esforços para sair do corpo. Porém, vendo que os esforços são
inúteis, o Espírito cai no desencorajamento, e como o corpo sofre sua
influência, então a fraqueza, o desânimo e uma espécie de apatia tomam conta
de vocês, que por isso se acham infelizes.
Acreditem em mim, resistam energicamente a essas impressões que lhes
enfraquecem a vontade. Essas aspirações a um mundo melhor são inatas no
espírito de todos os homens, mas não as procurem neste mundo; e agora que
Deus lhes envia os seus Espíritos para lhes instruírem acerca da felicidade
que reserva para vocês, então aguardem pacientemente o anjo da libertação
que deve lhes ajudar a romper os laços que prendem vosso Espírito cativo.
Lembrem-se de que, durante a sua provação na Terra, vocês têm uma missão
de que nem suspeitam — quer seja se dedicando à família, quer seja
realizando os diversos deveres que Deus lhes confiou. E se no curso dessa
provação, cumprindo a sua tarefa, vocês virem caindo sobre vocês as
preocupações, inquietações e desgostos, então sejam fortes e corajosos para
os suportar. Enfrentem-lhes francamente, pois eles têm curta duração e hão
de lhes conduzir para perto dos amigos por quem choram, que se rejubilam
103 – O Evangelho segundo o Espiritismo

com a sua chegada entre eles e lhes estenderão os braços para levá-los a um
lugar onde as tristezas da Terra não têm acesso.
FRANÇOIS DE GENEBRA (Bordeaux)

Provas voluntárias. O verdadeiro cilício

26. Vocês perguntam se é permitido suavizar as suas próprias provações; essa


questão nos remete a essa outra: É permitido a quem está se afogando tentar
se salvar? A quem está com um espinho tentar retirá-lo? A quem está doente
chamar um médico? As provações têm por finalidade exercitar a inteligência,
tanto quanto a paciência e a resignação; uma pessoa pode nascer numa
posição penosa e complicada, precisamente para obrigá-la a procurar os
meios de vencer as dificuldades. O mérito consiste em suportar sem
murmurar as consequências dos males que não podemos evitar e em
perseverar na luta sem se desesperar, enquanto não conseguimos vencê-la;
mas não em nos descuidarmos — o que seria mais preguiça do que virtude.
Essa questão nos leva naturalmente a outra. Desde que Jesus disse:
“Bem-aventurados os aflitos”, será que existe algum mérito em procurar
aflições, agravando suas provas por meio de sofrimentos voluntários? A isso
eu responderei muito claramente: Sim, há um grande mérito quando os
sofrimentos e as privações têm por objetivo o bem do próximo, porque é a
caridade pelo sacrifício; porém, não quando eles têm somente um objetivo
particular, porque isso é o egoísmo pelo fanatismo.
Há aqui uma grande distinção a ser feita; para vocês, pessoalmente,
contentem-se com as provas que Deus lhes envia e não aumentem a carga,
que às vezes já é bastante pesada; aceitem-nas sem reclamar e com fé; eis
tudo o que ele lhes pede. Não enfraqueçam o corpo com privações inúteis e
macerações sem razão, pois vocês têm necessidade de todas as suas forças
para cumprir sua missão de trabalho na Terra. Torturar e martirizar
voluntariamente o corpo é transgredir a lei de Deus, que lhes dá os meios de o
sustentar e fortalecer; enfraquecê-lo sem necessidade é um verdadeiro
suicídio. Usem, mas não abusem: tal é a lei; o abuso das melhores coisas traz a
104 – Allan Kardec

sua punição nas consequências inevitáveis.


Muito diferente é a situação dos sofrimentos que nos impomos em favor
do alívio do próximo. Se suportarem o frio e a fome para aquecer e alimentar
aquele que tem necessidade, e se seus corpos padecem com isso, então aí
temos um sacrifício que é abençoado por Deus. Vocês que deixam os seus
aposentos perfumados para irem ao sótão infecto levar consolação; vocês que
sujam as mãos delicadas curando feridas; que se privam do sono para velar à
cabeceira de um enfermo que é apenas seu irmão em Deus; vocês enfim, que
gastam a saúde na prática de boas obras, aí está o seu cilício, verdadeiro
cilício de bênçãos, pois as alegrias do mundo não ressecaram seus corações;
vocês não adormeceram no seio das volúpias enervantes da fortuna, mas se
tornaram anjos consoladores dos pobres deserdados.
Porém vocês, que se afastam do mundo para evitar suas seduções e viver
no isolamento, que utilidade vocês têm na Terra? Onde está sua coragem nas
provações, já que fogem da luta e desertam do combate? Se querem um cilício,
apliquem-no nas suas almas, e não nos seus corpos; mortifiquem o Espírito, e
não a carne; fustiguem o orgulho, recebam as humilhações sem lamentar;
martirizem o amor-próprio; fortaleçam-se contra a dor da injúria e da calúnia
mais pungente do que a dor corporal. Eis o verdadeiro cilício cujas feridas
lhes beneficiarão, porque elas atestarão a coragem e a submissão de vocês
perante a vontade de Deus.
UM ANJO GUARDIÃO (Paris, 1863)

Devemos dar fim às provas do próximo? 23

27. Devemos dar fim às provas do próximo, quando possível, ou, por respeito aos
desígnios de Deus, devemos deixá-las seguir seu curso?
Nós temos dito e repetido muitas vezes que vocês estão nesta Terra de
expiação para completar suas provações e que tudo o que lhes acontece é uma
consequência das suas existências anteriores — os juros da dívida que vocês

23 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
105 – O Evangelho segundo o Espiritismo

têm a pagar. Mas esse pensamento provoca em certas pessoas reflexões que é
necessário parar, pois poderiam acarretar funestas consequências.
Alguns pensam que do momento em que vem à Terra para expiar, é
preciso que as provas sigam o seu curso. Há outros que chegam a acreditar
que não somente não devem fazer coisa alguma para as atenuar, mas que, ao
contrário, é preciso contribuir para que elas sejam mais proveitosas,
tornando-as mais fortes. Isso é um grande erro. Sim, suas provas devem
seguir o curso que Deus traçou para elas; contudo, acaso vocês conhecem esse
curso? Sabem até que ponto elas devem ir, e se o seu Pai misericordioso não
terá dito ao sofrimento desse ou daquele entre os irmãos de vocês: “Não vá
mais longe”? Por acaso vocês sabem se a Providência não lhes escolheu, não
como instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas
sim como o bálsamo de consolação que deve cicatrizar as feridas que a sua
justiça tenha aberto? Então, quando virem atingido um dos seus irmãos, não
digam: É a justiça de Deus, é preciso que siga o seu curso. Digam, de outra
forma: Vejamos que meios nosso Pai misericordioso colocou ao meu alcance
para suavizar o sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações
morais, o meu amparo material ou meus conselhos não poderão ajudá-lo a
atravessar essa prova com mais força, paciência e resignação. Vejamos mesmo
se Deus não pôs em minhas mãos os meios de cessar esse sofrimento; se ele
não me deu — também como prova para mim, talvez até como expiação —,
cessar o mal e substituí-lo pela paz.
Portanto, ajudem-se sempre em suas respectivas provações, e nunca se
considerem instrumentos de tortura; esse pensamento deve revoltar todo
homem de coração, todo espírita principalmente, porque o espírita, melhor do
que qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de
Deus. O espírita deve pensar que a sua vida inteira deve ser um ato de amor e
de devotamento; deve pensar que tudo o que ele fizer para contrariar as
decisões do Senhor, sua justiça seguirá o seu curso. Assim, ele pode, sem
receio, fazer todos os esforços para atenuar o amargor da expiação, sendo que
somente Deus pode cessá-la ou prolongá-la, conforme julgar a propósito.
Não haveria um orgulho muito grande da parte do homem acreditar-se
no direito de — por assim dizer — revolver a arma na ferida? De aumentar a
106 – Allan Kardec

dose do veneno no peito daquele que está sofrendo, sob o pretexto de que
essa é a sua expiação? Oh, considerem-se sempre como um instrumento
escolhido para fazê-la cessar. Vamos resumir assim: todos estão na Terra para
expiar; mas todos — sem exceção — devem empregar todos os esforços para
amenizar a expiação dos seus irmãos, segundo a lei de amor e de caridade.
BERNARDIN, Espírito protetor (Bordeaux, 1863)

É permitido abreviar a vida do doente que sofre


sem esperança de cura? 24

28. Um homem está em agonia, vítima de cruéis sofrimentos; sabe-se que seu
estado é irreversível: será que é permitido lhe poupar alguns instantes de
angústias apressando o seu fim?
Quem lhes daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Será que ele
não pode conduzir o homem até a beira da cova, para daí o retirar, a fim de
fazê-lo voltar a si e conduzi-lo a outros pensamentos? Não importa em que
extremo esteja um moribundo, ninguém pode afirmar com certeza que a sua
derradeira hora já chegou. Será que a ciência nunca se enganou em suas
previsões?
Sei bem que existem casos que podemos considerar com razão como
desesperadores; mas, se não houver nenhuma esperança concreta de um
retorno definitivo à vida e à saúde, não há inúmeros exemplos em que, no
momento de dar o último suspiro, o enfermo se reanime e recupere suas
faculdades por alguns instantes? Pois bem! Essa hora de graça que lhe é
concedida pode ser para ele da maior importância, porque vocês ignoram as
reflexões que seu Espírito pôde fazer nas convulsões da agonia, e quantos
tormentos lhe podem poupar um clarão de arrependimento.
O materialista — que só vê o corpo e não leva conta a alma — não pode
compreender essas coisas; mas o espírita, que já sabe o que se passa no além-
túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Amenizem os derradeiros
sofrimentos o quanto puderem, mas cuidem para não abreviar a vida, nem

24 Mesmo caso da nota sobre o subtítulo anterior. — N. T.


107 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que fosse um minuto, porque esse minuto pode poupar muitas lágrimas no
futuro.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

Sacrifício da própria vida 25

29. Aquele que está desgostoso da vida, mas não quer se matar, será culpado se
procurar a morte num campo de batalha, com a intensão de tornar sua morte
útil?
Que o homem se mate ou que ele provoque sua morte, o propósito é
sempre abreviar a vida, e, consequentemente, há um suicídio intencional —
quando não de fato. O pensamento de que sua morte servirá para alguma
coisa é ilusória; não é mais do que um pretexto para colorir sua ação e
desculpá-lo aos seus próprios olhos. Se ele tivesse seriamente o desejo de
servir ao seu país, ele procuraria viver para defendê-lo, e não morrer, já que
morto ele não serviria para mais nada. O verdadeiro devotamento, quando se
trata de alguém ser útil, consiste em não temer a morte, em enfrentar o
perigo, em fazer de antemão e sem hesitar o sacrifício da vida, se isso for
necessário; mas a intenção premeditada de procurar a morte expondo-se a
um perigo — ainda que para prestar um serviço — anula o mérito da ação.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

30. Se um homem se expõe a um perigo iminente para salvar a vida de um dos


seus semelhantes, sabendo previamente que ele mesmo sucumbirá: isso pode ser
considerado um suicídio?
Desde que não haja a intenção de buscar a morte, não há suicídio, mas
sim devotamento e abnegação, mesmo que tenha a certeza de que morrerá.
Aliás, quem pode ter essa certeza? Quem poderá dizer que a Providência não
reserva um meio inesperado de salvação no momento mais crítico? Ela não
poderia salvar até mesmo quem estivesse na boca de um canhão? Muitas
vezes a Providência pode querer levar a provação da resignação até o último
25 Mesmo caso da nota dos dois subtítulos anteriores. — N. T.
108 – Allan Kardec

limite e, então, uma circunstância inesperada desvia o golpe fatal.


SÃO LUÍS (Paris, 1860.)

Proveito dos sofrimentos para outrem 26

31. Aqueles que aceitam seus sofrimentos com resignação, por submissão à
vontade de Deus e com vista à sua felicidade futura: estes não trabalham apenas
para si mesmos? Poderão tornar seus sofrimentos proveitosos para outros?
Esses sofrimentos podem ser proveitosos para outros — material e
moralmente. Materialmente se, pelo trabalho, pelas privações e pelos
sacrifícios que se imponham, eles estiverem contribuindo para o bem-estar
material de seus semelhantes; moralmente, pelo exemplo que dão de sua
submissão à vontade de Deus. Esse exemplo do poder da fé espírita pode
induzir os infelizes à resignação e salvá-los do desespero e suas funestas
consequências.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

26 Mesmo caso da nota dos três subtítulos anteriores. — N. T.


109 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO VI

O CRISTO CONSOLADOR
O jugo leve – Consolador prometido –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Advento do Espírito de Verdade

O jugo leve

1. Venham a mim, todos vocês que estão aflitos e sobrecarregados, e eu os


aliviarei. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam comigo, que sou manso
e humilde de coração, e vocês encontrarão o repouso para suas almas, pois o
meu jugo é suave e meu fardo é leve. (São Mateus, 11: 28 a 30)

2. Todos os sofrimentos: misérias, decepções, dores físicas, perda de entes


queridos, encontram sua consolação na fé no futuro, na confiança na justiça
de Deus que o Cristo veio ensinar aos homens. Sobre aquele que, ao contrário,
nada espera após esta vida, ou simplesmente que duvida, as aflições pesam
com toda a sua força e nenhuma esperança vem amenizar o seu amargor. Foi
por isso que Jesus disse: Venham a mim todos vocês que estão fatigados e eu
os aliviarei.
Entretanto, Jesus coloca uma condição para a sua assistência e para a
felicidade que ele promete aos aflitos; essa condição está na lei que ele ensina.
Seu jugo é a obediência a essa lei; mas esse jugo é leve e a lei é suave, porque
só impõe como dever o amor e a caridade.

Consolador prometido
3. Se vocês me amam, guardem meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai, e
ele lhes enviará outro consolador, a fim de que ele fique eternamente com
110 – Allan Kardec

vocês: — O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não
o vê e que absolutamente não o conhece. Mas quanto a vocês, vocês o
conhecerão, porque ele ficará com vocês e estará em vocês. Mas o consolador,
que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, lhes ensinará
todas as coisas e os fará lembrar de tudo o que eu lhes tenho dito. (São João,
14: 15 a 17 e 26)

4. Jesus promete outro consolador: é o Espírito de Verdade, que o mundo


ainda não conhece, por não estar maduro para compreendê-lo, e que o Pai
enviará para ensinar todas as coisas e para relembrar aquilo que Cristo disse.
Então, se o Espírito de Verdade devia vir mais tarde ensinar todas as coisas, é
que Cristo não havia dito tudo; se ele vem relembrar o que Cristo disse, é que
ele foi esquecido ou mal compreendido.
O espiritismo vem no tempo marcado cumprir a promessa do Cristo: o
Espírito de Verdade preside o seu estabelecimento; ele chama os homens à
observância da lei e ensina todas as coisas fazendo compreender o que o
Cristo só disse através de parábolas. O Cristo falou: “Que ouçam os que têm
ouvidos para ouvir”; o espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porque
fala sem figuras e sem alegorias; ele levanta o véu intencionalmente lançado
sobre certos mistérios; ele vem, enfim, trazer a suprema consolação aos
deserdados da Terra e a todos os que sofrem, dando uma causa justa e uma
finalidade útil a todas as dores.
O Cristo disse: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”.
Todavia, como se sentir feliz por sofrer, sem saber por que está sofrendo? O
espiritismo mostra a causa dos sofrimentos nas existências anteriores e na
destinação da Terra onde o homem expia o seu passado; ele mostra o objetivo
dos sofrimentos como crises salutares que levam à cura e como a depuração
que assegura a felicidade nas existências futuras. O homem compreende que
ele mereceu sofrer e então considera o sofrimento justo; ele sabe que esse
sofrimento auxilia o seu avanço e o aceita sem murmurar, como o operário
aceita o trabalho que deverá render o seu salário. O espiritismo lhe dá uma fé
inabalável no futuro e a dúvida pungente não mais se apossa de sua alma; ao
lhe mostrar as coisas do alto, a importância das vicissitudes terrenas se perde
no vasto e esplêndido horizonte que ele alcança, e a perspectiva da felicidade
111 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que o espera lhe dá a paciência, a resignação e a coragem de ir até o fim do


caminho.
Assim, o Espiritismo realiza o que Jesus disse do consolador prometido:
conhecimento das coisas, que faz com que o homem saiba de onde vem, para
onde vai e por que ele está na Terra; um chamamento aos verdadeiros
princípios da lei de Deus e consolação pela fé e pela esperança.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Advento do Espírito de Verdade

5. Eu venho, como outrora, entre os filhos desgarrados de Israel, trazer a


verdade e dissipar as trevas. Ouçam-me. O espiritismo, como a minha palavra
antigamente, deve lembrar aos incrédulos que acima deles reina a imutável
verdade: o Deus bom, o Deus grande que faz germinar a planta e levanta as
ondas. Eu revelei a doutrina divina; eu, como um ceifeiro, amarrei em feixes o
bem que estava esparso na humanidade, e disse: Venham a mim, todos vocês
que sofrem!
Mas os homens ingratos se transviaram do caminho reto e largo que
conduz ao reino de meu Pai, perdendo-se nas ásperas veredas da impiedade.
Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; ele quer que, ajudando-se uns aos
outros, mortos e vivos — quer dizer, mortos segundo a carne, pois a morte
não existe —, vocês se socorram mutuamente, e que, não mais a voz dos
profetas e dos apóstolos, mas a voz daqueles que já não mais se fazem ouvir,
para clamar a vocês: Orem e creiam, pois a morte é a ressurreição e a vida é a
prova escolhida, durante a qual as virtudes que vocês cultivaram devem
crescer e se desenvolver como um cedro.
Homens fracos, que compreendem as trevas das suas inteligências, não
afastem a tocha que a clemência divina coloca em suas mãos para lhes clarear
o caminho e os reconduzi, filhos perdidos, ao colo do Pai de vocês.
Estou muito tocado de compaixão pelas suas misérias, pela sua imensa
fraqueza, o suficiente para não deixar de estender uma mão em socorro aos
infelizes desgarrados que, vendo o céu, tombam nos abismos do erro. Creiam,
112 – Allan Kardec

amam, meditem sobre as coisas que são reveladas a vocês; não misturem o
joio com o trigo, as utopias com as verdades.
Espíritas, amem-se! Eis o primeiro ensinamento; instruam-se, eis o
segundo. Todas as verdades se encontram no Cristianismo; os erros que nele
se enraizaram são de origem humana, e eis que do além-túmulo, que vocês
pensavam ser um nada, as vozes lhes clamam: Irmãos, nada perece! Jesus
Cristo é o vencedor do mal; sejam os vencedores da impiedade.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Paris, 1860)
6. Eu venho ensinar e consolar os pobres deserdados; venho lhes dizer que
elevem sua resignação ao nível de suas provas; que chorem, pois a dor foi
sacralizada no Jardim das Oliveiras, mas que esperem, porque os anjos
consoladores virão também lhes enxugar as lágrimas.
Obreiros, cumpram o seu dever; recomecem no dia seguinte a rude
jornada da véspera; o labor das suas mãos fornece o pão terrestre para seus
corpos, mas suas almas não estão esquecidas; e eu, o divino jardineiro, eu as
cultivo no silêncio dos seus pensamentos. Quando soar a hora do repouso,
quando a trama escapar de suas mãos e seus olhos se fecharem para a luz,
então sentirão surgir e germinar em vocês a minha preciosa semente. Nada
fica perdido no reino de nosso Pai, e os seus suores e suas misérias formam o
tesouro que deve lhes tornar ricos nas esferas superiores, onde a luz substitui
as trevas e onde o mais desprovido dentre todos vocês será talvez o mais
resplandecente.
Em verdade eu digo a vocês: os que carregam seus fardos e que ajudam
seus irmãos são meus bem-amados; instruam-lhes na preciosa doutrina que
dissipa o erro das revoltas e que lhes ensina o objetivo sublime da provação
humana. Como o vento varre a poeira, que o sopro dos Espíritos dissipe em
vocês a inveja dos ricos do mundo, que muitas vezes são bastante miseráveis,
pois as suas provações são mais perigosas do que as suas. Eu estou com vocês,
e meu apóstolo lhes ensina. Bebam na fonte viva do amor e se preparem,
cativos da vida, para se lançar um dia, livres e alegres, no seio d’Aquele que
criou vocês fracos para torná-los perfectíveis e deseja que vocês mesmos
moldem a sua argila, a fim de serem os artífices da sua imortalidade.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Paris, 1861)
113 – O Evangelho segundo o Espiritismo

7. Eu sou o grande médico das almas, e eu venho lhes trazer o remédio que há
de curá-las; os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos
prediletos, e eu venho salvá-los. Então, venham a mim, todos vocês que
sofrem e que estão sobrecarregados, e vocês serão aliviados e consolados; não
procurem noutro lugar a força e a consolação, pois o mundo é impotente para
lhes dar isso. Deus faz um apelo supremo aos seus corações, por meio do
espiritismo; Escutem-no. Que a impiedade, a mentira, o erro e a incredulidade
sejam extirpados de suas almas doloridas; esses são os monstros que sugam o
seu mais puro sangue e que lhes criam feridas quase sempre mortais. Que no
futuro, humildes e submissos ao Criador, vocês pratiquem a sua lei divina.
Amem e orem; sejam dóceis aos Espíritos do Senhor; invoquem-no do fundo
do coração; então, ele lhes enviará seu Filho bem-amado, para instrui-los e
lhes dizer estas boas palavras: Eis-me aqui; eu venho a vocês, porque vocês
me chamaram.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Bordeaux, 1861)

8. Deus consola os humildes e dá a força aos aflitos que lhe pedem força. Seu
poder cobre a Terra e por toda parte, ao lado de uma lágrima, ele colocou um
bálsamo que consola. O devotamento e a abnegação são uma prece contínua e
contêm um ensinamento profundo; a sabedoria humana reside nessas duas
palavras. Que todos os Espíritos sofredores possam compreender essa
verdade em vez de bradar contra suas dores, seus sofrimentos morais, que
lhes são devidos neste mundo. Portanto, tomem por divisa estas duas
palavras: devotamento e abnegação, e serão fortes, porque elas resumem
todos os deveres que a caridade e a humildade impõem a vocês. O sentimento
do dever cumprido lhes dará o repouso de espírito e a resignação. O coração
bate melhor, a alma se acalma e o corpo já não tem mais desfalecimentos,
porque o corpo sofre mais na medida em que o espírito é atingido mais
profundamente.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Le Havre, 1863)
114 – Allan Kardec

CAPÍTULO VII

BEM-AVENTURADOS
OS POBRES DE ESPÍRITO
O que se deve entender por pobres de espírito – Aquele que se eleva
será rebaixado – Mistérios ocultos aos sábios e doutores –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: O orgulho e a humildade
– Missão do homem inteligente na Terra

O que se deve entender por pobres de espírito

1. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.


(São Mateus, 5: 3)

2. A incredulidade se divertiu com esta máxima: Bem-aventurados os pobres


de espírito, da mesma forma que com muitas outras coisas, sem a
compreender. Por pobres de espírito Jesus não se refere aos homens
desprovidos de inteligência, mas aos humildes: ele diz que o reino dos céus é
para estes, e não para os orgulhosos.
Os homens de saber e de espírito — conforme o mundo — geralmente
têm um conceito tão alto de si mesmos e de sua superioridade que eles
consideram as coisas divinas como indignas de sua atenção; suas
considerações, concentradas na sua própria pessoa, não podem se elevar até
Deus. Essa tendência de se acharem acima de tudo muito frequentemente os
leva a negar aquilo que, estando acima deles, poderia rebaixá-los — negando
até mesmo a Divindade; ou, se eles consentem em admiti-la, contestam um de
seus mais belos atributos: sua ação providencial sobre as coisas deste mundo,
convencidos de que eles são suficientes para bem governá-lo. Tomando sua
115 – O Evangelho segundo o Espiritismo

inteligência como a medida da inteligência universal e se julgando aptos a


compreender tudo, eles não podem crer na possibilidade daquilo que não
compreendem; quando eles se pronunciam, seu julgamento é — para eles —
sem apelação.
Quando se recusam a admitir o mundo invisível e uma potência extra-
humana, não é, entretanto, que isso esteja fora do alcance deles, mas porque o
seu orgulho se revolta contra a ideia de uma coisa acima da qual eles não
possam se colocar e que os faria descer do seu pedestal. Eis por que eles só
têm risos de desdém para tudo o que não pertence ao mundo visível e
tangível; eles se atribuem muita inteligência e conhecimento para acreditar
em coisas — segundo eles — boas para as pessoas simples, considerando
como pobres de espírito aqueles que levam essas coisas a sério.
Entretanto, digam o que disserem, eles terão que entrar, assim como os
outros, nesse mundo invisível que ridicularizam; é lá que seus olhos serão
abertos e que eles reconhecerão seus erros. Mas Deus, que é justo, não pode
receber da mesma forma aquele que não reconheceu o seu poder e aquele que
humildemente se submeteu às suas leis, nem lhes dar uma parte igual.
Dizendo que o reino dos céus é dos simples, Jesus deu a entender que
ninguém é admitido nesse reino sem a simplicidade do coração e a
humildade de espírito; que o ignorante, que possui essas qualidades, será
preferido ao sábio que crê mais em si do que em Deus. Em todas as
circunstâncias, ele põe a humildade na categoria das virtudes que nos
aproximam de Deus e o orgulho entre os vícios que nos afastam dele; e isso
por uma razão muito natural: a humildade é um ato de submissão a Deus,
enquanto o orgulho é uma revolta contra Ele. Portanto, para a felicidade
futura, mais vale para o homem ser pobre em espírito — no conceito do
mundo — e ser rico em qualidades morais.

Aquele que se eleva será rebaixado

3. Nessa mesma hora, os discípulos se aproximaram de Jesus e lhe


perguntaram: Quem é o maior no reino dos céus? — Jesus, tendo chamado
uma criancinha, colocou-a no meio deles e lhes respondeu: Em verdade eu
116 – Allan Kardec

lhes digo que, se vocês não se converterem e não se tornarem pequeninos,


não entrarão no reino dos céus. Portanto, aquele que se humilhar e se
tornar pequeno como esta criança, então este será o maior no reino dos
céus, e aquele que recebe em meu nome a uma criança, tal como acabo de
dizer, é a mim mesmo que ele recebe. (São Mateus, 18: 1 a 5)

4. Então, a mãe dos filhos de Zebedeu se aproximou dele com seus dois filhos
e o adora, insinuando-lhe que ela queria pedir alguma coisa. Ele diz a ela: O
que você quer? Ela responde: “Ordene que meus dois filhos que estão aqui
sejam assentados no teu reino, um à tua direita e o outro à tua esquerda. —
Mas Jesus lhes respondeu: Você não sabe o que está pedindo; porventura,
vocês poderiam beber o cálice que eu vou beber? — Eles responderam:
Podemos. — Jesus lhes replicou: É verdade que vocês beberão o cálice que eu
beberei; mas, quanto a sentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não
cabe a mim lhes conceder isso, mas será para aqueles a quem meu Pai tiver
preparado. — Os dez outros apóstolos tendo ouvido isso, ficaram indignados
com os dois irmãos. — E Jesus, chamando-os para perto de si, lhes disse:
Vocês sabem que os príncipes dos povos os dominam e que os maiorais os
tratam com autoridade. Que não aconteça a mesma coisa entre vocês; mas
que aquele que quiser se tornar o maior seja o seu servo; e que aquele que
quiser ser o primeiro dentre vocês seja seu escravo, como o Filho do
homem não veio para ser servido, mas sim para servir e dar sua vida pela
redenção de muitos. (São Mateus, 20: 20 a 28)

5. Jesus entrou em dia de sábado na casa de um dos principais fariseus para aí


fazer a sua refeição, e aqueles que lá estavam o observavam. Então, notando
que os convidados escolhiam os primeiros lugares, ele lhes propôs uma
parábola, dizendo-lhes: Quando você for convidado para um banquete, não
ocupe o primeiro lugar, para que não haja entre os convidados uma pessoa
mais importante do que você e que aquele que te convidou venha te dizer: Dê
o teu lugar a este, para que então você não seja constrangido a ocupar,
envergonhado, o último lugar. De outro modo, quando for convidado,
coloque-se no último lugar, a fim de que, quando chegar aquele que te
convidou, ele te diga: Meu amigo, venha mais para cima. E então isso será um
motivo de glória diante daqueles que estiverem à mesa contigo; pois aquele
117 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que se eleva será rebaixado e aquele que se abaixa será elevado. (São
Lucas, 14: 1 e 7 a 11)

6. Essas máximas são as consequências do princípio de humildade que Jesus


não cessa de apresentar como condição essencial da felicidade prometida aos
eleitos do Senhor, e que ele formulou com estas palavras: “Bem-aventurados
os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Ele toma uma criança
como o tipo da simplicidade de coração e diz: Será o maior no reino dos céus
aquele que se humilhar e se fizer pequeno como uma criança; quer dizer,
quem não tiver nenhuma pretensão à superioridade ou à infalibilidade.
A mesma ideia fundamental se encontra nesta outra máxima: Aquele
que quiser se tornar o maior, que seja o servo dentre vocês, e nesta outra:
Quem se humilhar será exaltado e quem se elevar será rebaixado.
O espiritismo vem sancionar a teoria pelo exemplo, mostrando-nos que
os grandes no mundo dos Espíritos são aqueles que foram pequenos na Terra,
e que muitas vezes os bem pequenos são aqueles que na Terra foram os
maiores e os mais poderosos. É que os primeiros, ao morrerem, levaram a
única coisa que constitui a verdadeira grandeza no céu e que jamais se perde:
as virtudes; enquanto isso, os outros tiveram de deixar o que constituía a sua
grandeza na Terra, e que eles não podem levar: a fortuna, os títulos, a glória, a
nacionalidade; não tendo mais outra coisa, eles chegam ao outro mundo
desprovidos de tudo, como náufragos que perderam tudo, até as próprias
roupas; eles não conservaram mais do que o orgulho, que torna sua nova
posição ainda mais humilhante, pois eles veem acima deles, e resplandecentes
de glória, aqueles em quem eles pisaram na Terra.
O espiritismo nos mostra outra aplicação desse princípio nas
encarnações sucessivas, em que aqueles que eram os mais elevados numa
existência são rebaixados até a última categoria numa existência seguinte, se
eles tiverem sido dominados pelo orgulho e pela ambição. Então, não
procurem ocupar o primeiro lugar na Terra, nem se colocar acima dos outros,
se não quiserem ser obrigados a descer; ao contrário, procurem o lugar mais
humilde e o mais modesto, pois Deus saberá bem lhes dar um lugar mais
elevado no céu — se o merecerem.
118 – Allan Kardec

Mistérios ocultos aos sábios e aos doutores

7. Então, Jesus disse estas palavras: Eu te rendo glória, meu Pai, Senhor do
céu e da terra, por ter ocultado estas coisas aos sábios e aos doutores, e por
tê-las revelado aos simples e aos pequenos. (São Mateus, 11: 25)

8. Pode parecer estranho que Jesus renda graças a Deus por ter revelado estas
coisas aos simples e aos pequenos, que são os pobres de espírito, e por tê-las
escondido aos sábios e aos doutores, mais aptos — aparentemente — a
compreendê-las. É que devemos entender pelos primeiros, os humildes,
aqueles que se humilham diante de Deus e não se consideram superiores a
todo o mundo; e pelos segundos, os orgulhosos, envaidecidos de sua
sabedoria mundana, que se julgam instruídos, porque negam Deus, tratando-o
de igual para igual — quando não o repudiam; porque, na Antiguidade, sábio
era sinônimo de douto; é por isso que Deus lhes deixa a pesquisa dos
segredos da Terra e revela os do céu aos simples e aos humildes que se
inclinam diante dele.

9. Assim é hoje com as grandes verdades reveladas pelo espiritismo. Alguns


incrédulos se admiram de que os Espíritos façam tão poucos esforços para os
convencer; é que os Espíritos se ocupam com aqueles que procuram a luz de
boa-fé e com humildade, de preferência aos que acham que já têm toda a luz e
parece que pensam que Deus deveria ficar muito feliz de os conduzir a ele,
provando-lhes que ele existe.
O poder de Deus se manifesta tanto nas pequeninas coisas quanto nas
maiores; ele não põe a luz debaixo do alqueire, mas a espalha em torrentes
por toda parte; portanto, cegos são aqueles que não o veem. Deus não quer
abrir os olhos deles à força, já que lhes convêm mantê-los fechados. A vez
deles chegará, mas é preciso que antes eles sintam as angústias das trevas e
reconheçam Deus, e não o acaso, na mão que lhes fere o orgulho. Para
vencer a incredulidade, Deus emprega os meios que a ele convêm, conforme
os indivíduos; não cabe ao incrédulo indicar o que Deus deva fazer, nem dizer:
“Se quiser me convencer, faça desse ou daquele jeito, em tal momento e não
em tal outro, porque esse momento é o que mais me convém.”
119 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Que os incrédulos então não se espantem se nem Deus nem os Espíritos,


que são os agentes da sua vontade, se submetam às suas exigências. Que eles
se perguntem o que diriam se o último de seus empregados quisesse se impor
a eles. Deus impõe condições, mas não se submete a elas; ele escuta com
bondade os que se dirigem a ele com humildade, e não aqueles que se julgam
mais do que ele.

10. Deus — irão dizer — não poderia tocá-los pessoalmente, por meio de
sinais claros, na presença dos quais deveria se inclinar o incrédulo mais
endurecido? Sem dúvidas que ele poderia, mas então onde estaria o mérito
deles? Além disso, para que isso serviria? Não vemos todos os dias alguém
recusar as evidências e até dizer: “Ainda que eu visse, eu não acreditaria,
porque sei que é impossível”?! Se eles se recusam a reconhecer a verdade, é
porque seu espírito ainda não está maduro para compreendê-la, nem o
coração para senti-la. O orgulho é a venda que obscurece a sua visão; de
que serve apresentar a luz a um cego? É preciso, pois, antes curar a causa do
mal; é por isso que, como médico hábil, Deus castiga primeiramente o
orgulho. Ele realmente não abandona seus filhos perdidos; ele sabe que cedo
ou tarde os olhos deles se abrirão, mas ele quer que isso acontece pela
própria vontade deles, e até que, vencidos pelos tormentos da incredulidade,
se atirem por si mesmos em seus braços e, como o filho pródigo, lhe peçam
perdão.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

O orgulho e a humildade
11. Que a paz do Senhor esteja com vocês, meus caros amigos! Eu venho até
vocês para lhes encorajar a seguir o bom caminho.
Aos pobres de espírito que outrora habitaram a Terra, Deus dá a missão
de vir lhes esclarecer. Bendito seja ele pela graça que nos concede de
podermos contribuir com o melhoramento de vocês. Que o Espírito Santo me
ilumine e ajude a tornar compreensível a minha palavra, e que ele me conceda
a graça de colocá-la ao alcance de todos! Vocês todos, encarnados, que estão
120 – Allan Kardec

em sofrimento e procuram a luz, que a vontade de Deus venha em meu auxílio


para fazê-la brilhar aos vossos olhos!
A humildade é uma virtude muito esquecida entre vocês; os grandes
exemplos que lhes foram dados são pouco seguidos; no entanto, sem
humildade, vocês poderiam ser caridosos para com o próximo? Oh, não! Pois
esse sentimento nivela os homens, dizendo-lhes que são irmãos, que devem
se ajudar mutuamente, e os conduz ao bem. Sem a humildade, vocês apenas se
enfeitam de virtudes que não possuem, como se vestissem uma roupa para
esconder as deformidades do corpo. Recordem Aquele que nos salvou;
lembrem-se de sua humildade, que o fez tão grande e o colocou acima dos
profetas.
O orgulho é o terrível adversário da humildade. Se o Cristo prometia o
reino dos céus aos mais pobres, é porque os grandes da Terra acham que os
títulos e as riquezas são recompensas dadas aos seus méritos, e que sua
essência é mais pura que a do pobre; eles creem que isso lhes seja devido, e
por isso, quando Deus lhes retira essas recompensas, eles o acusam de
injustiça. Oh, escárnio e cegueira! Será que Deus faria distinção entre vocês
pelo corpo? O envoltório do pobre não é da mesma essência que o do rico?
Será que o Criador teria feito duas espécies de homens? Tudo o que Deus faz é
grande e sábio; jamais atribuam a ele as ideias que seus cérebros orgulhosos
engendram.
Ó rico! Enquanto você dorme em seus aposentos dourados, protegido do
frio, não sabe que milhares de seus irmãos, que valem tanto quanto você,
estão deitados sobre a palha? O infeliz que passa fome não é igual a ti? Ao
ouvires isso, eu sei bem, o teu orgulho se revolta; concordaria em dar uma
esmola a ele, mas em lhe apertar a mão fraternalmente, jamais! Então, diria:
“O quê?! Eu, vindo de um sangue nobre, um grande da Terra, seria igual a este
miserável vestido de trapos? Vã utopia de pretensos filósofos! Se fôssemos
iguais, por que Deus o teria colocado tão baixo e me colocado tão alto?” É
verdade que as suas roupas não se assemelham; mas, se vocês dois ficarem
despidos, que diferença haveria entre vocês? A nobreza do sangue, você diria;
mas a química ainda não encontrou nenhuma diferença entre o sangue de um
nobre e o de um plebeu, nem entre o do senhor e o do escravo. Quem te
121 – O Evangelho segundo o Espiritismo

garante que também você já não tenha sido um miserável e infeliz como ele?
Que você também não tenha pedido esmola? Que não a pedirá um dia a esse
mesmo a quem hoje você despreza? Será que as riquezas são eternas? Elas
não se acabam com a extinção do corpo, esse envoltório perecível do teu
Espírito? Oh! Olhe com um pouco de humildade para si mesmo! Olhe enfim
para a realidade das coisas deste mundo, sobre o que constitui a grandeza e o
rebaixamento no outro; lembre-se de que a morte não te poupará mais do que
qualquer outra pessoa; que os teus títulos não te preservarão da morte; que
ela pode te pegar amanhã, hoje, daqui a uma hora; e se você se enterrar no teu
orgulho, ah, então eu lamento por você, porque você será digno de piedade.
Orgulhosos! Quem foram vocês antes de serem nobres e poderosos?
Talvez tenham sido até inferiores ao último dos seus criados. Portanto, as
curvem suas frontes altivas, que Deus pode abaixar no momento que vocês
mais as elevarem mais alto. Todos os homens são iguais na balança divina; só
as virtudes os distinguem aos olhos de Deus. Todos os Espíritos são da mesma
essência e todos os corpos são feitos com a mesma massa; seus títulos e seus
nomes não os modificam em nada; eles ficam no túmulo e não são eles que
darão a felicidade prometida aos eleitos; a caridade e a humildade são os seus
títulos de nobreza.
Pobre criatura! Você é mãe, teus filhos sofrem; eles sentem frio e fome, e
você vai, curvada ao peso da tua cruz, se humilhar para lhes conseguir um
pedaço de pão. Oh, eu me inclino diante de ti; como você é nobremente santa
e grande aos meus olhos! Espere e ore, pois a felicidade ainda não é deste
mundo. Aos pobres oprimidos e confiantes nele, Deus dá o reino dos céus.
E você, minha jovem, pobre criança lançada ao trabalho e às privações;
por que esses tristes pensamentos? Para que chorar? Que o teu olhar se erga
piedoso e sereno para Deus: aos passarinhos ele dá o alimento; tenha confia
nele e ele não te abandonará. O barulho das festas e dos prazeres do mundo
faz bater o teu coração; você também gostaria de adornar sua cabeça de flores
e se juntar aos sortudos da Terra; você diz a si mesma que bem poderia ser
rica também, como essas mulheres que vê passar, loucas e risonhas. Oh, não
diga isso, criança! Se você soubesse quantas lágrimas e dores indescritíveis se
escondem sob esses vestidos bordados, quantos soluços são abafados pelo
122 – Allan Kardec

barulho dessa orquestra animada, então você preferiria o teu humilde retiro e
a tua pobreza. Conserve-se pura aos olhos de Deus, se não quiser que o teu
anjo guardião volte para ele, cobrindo o rosto com as suas brancas asas e te
deixando com os teus remorsos, sem guia, sem amparo neste mundo, onde
você ficaria perdida, esperando ser punida no outro.
E vocês todos, que sofrem as injustiças dos homens, sejam indulgentes
para com as faltas dos seus irmãos, dizendo a si mesmos que também vocês
não estão isentos de culpas: isso é caridade, e é igualmente humildade. Se
sofrem com calúnias, curvem a cabeça sob essa prova. Que importa para vocês
as calúnias do mundo? Se a sua conduta é pura, Deus não pode lhes
recompensar por isso? Suportar com coragem as humilhações dos homens é
ser humilde e reconhecer que somente Deus é grande e poderoso.
Oh, meu Deus! Será preciso que o Cristo volte uma segunda vez à Terra
para ensinar aos homens as tuas leis, que eles esquecem? Será que ele ainda
deverá expulsar os vendilhões do templo que corrompem a tua casa, que é
exclusivamente um lugar de oração? E, quem sabe — Ó homens! —, se Deus
lhes concedesse essa graça, talvez não o renegariam como outrora; talvez o
chamariam de blasfemador, porque ele abateria o orgulho dos fariseus
modernos; talvez o fizessem recomeçar o caminho do Gólgota.
Quando Moisés subiu ao Monte Sinai para receber os mandamentos de
Deus, o povo de Israel, entregue a si mesmo, abandonou o verdadeiro Deus;
homens e mulheres deram o seu ouro e suas joias para que se fizesse um ídolo
que eles adoraram. Homens civilizados, vocês estão agindo como aqueles; o
Cristo lhes deixou a sua doutrina, dando-lhes o exemplo de todas as virtudes,
e vocês abandonaram os exemplos e os preceitos; carregando suas paixões,
vocês fizeram para si um Deus de acordo com a sua própria vontade; segundo
uns, um Deus terrível e sanguinário; segundo outros, um Deus indiferente aos
interesses do mundo. O Deus que vocês fizeram para si ainda é o bezerro de
ouro que cada um adapta ao seu gosto e às suas ideias.
Despertem, meus irmãos, meus amigos. Que a voz dos Espíritos toque
seus corações; sejam generosos e caridosos, sem ostentação, isto é, façam o
bem com humildade; que cada um destrua pouco a pouco os altares que vocês
ergueram ao orgulho. Numa palavra, sejam verdadeiros cristãos e terão o
123 – O Evangelho segundo o Espiritismo

reino da verdade. Não duvidem mais da bondade de Deus, enquanto ele lhes
dá tantas provas dela. Nós viemos preparar os caminhos para o cumprimento
das profecias. Quando o Senhor lhes der uma manifestação mais clara de sua
clemência, que o enviado celeste encontre em vocês uma grande família; que
seus corações mansos e humildes sejam dignos de ouvir a palavra divina que
ele vem lhes trazer; que o eleito só encontre em seu caminho as palmas
estendidas pelo seu retorno ao bem, à caridade e à fraternidade; então, o este
mundo se tornará o paraíso terrestre. Mas se permanecerem insensíveis à voz
dos Espíritos enviados para depurar e renovar esta sociedade civilizada —
rica em ciências e, contudo, tão pobre de bons sentimentos — ah, então não
nos restará senão chorar e gemer pela sorte de vocês. Mas não, não será
assim; voltem para Deus, o Pai de vocês, e aí todos nós que tivermos servido
ao cumprimento da vontade de Deus entoaremos o cântico de ação de graças,
para agradecer ao Senhor por sua inesgotável bondade e para glorificá-lo por
todos os séculos dos séculos. Assim seja.
LACORDAIRE (Constantina, 1863)
12. Homens, por que se queixam das calamidades que vocês mesmos
amontoaram sobre as suas cabeças? Vocês violaram a santa e divina moral do
Cristo; sendo assim, não se surpreendam que o cálice da iniquidade tenha
transbordado de todos os lados.
O mal-estar se generalizou; a quem devemos culpar senão a vocês que
incessantemente procuram se esmagar uns aos outros? Vocês não podem ser
felizes sem mútua benevolência, mas como a benevolência pode existir com o
orgulho? Orgulho, eis a fonte de todos os seus males; portanto, cuidem em
destruí-lo, se não quiserem perpetuar suas funestas consequências. Vocês só
têm um meio para isso, mas esse meio é infalível: é tomar a lei do Cristo como
a regra de conduta invariável — lei essa que vocês têm ou repelido ou
falseado em sua interpretação.
Por que vocês têm em tão grande estima o que brilha e encanta os olhos,
em vez daquilo que toca o coração? Por que o vício na opulência é o objeto das
suas adulações, enquanto só tendes um olhar de desdém para o verdadeiro
mérito na obscuridade? Que se apresente um rico debochado, perdido de
corpo e alma, e em qualquer parte todas as portas lhe serão abertas e todas as
124 – Allan Kardec

considerações se voltam para ele, ao passo que mal se dignam de fazer uma
saudação ao homem de bem que vive do seu trabalho. Quando a consideração
dispensada às pessoas é medida pelo peso do ouro que elas possuem ou pelo
nome que carregam, que interesse eles podem ter em se corrigirem de seus
defeitos?
Tudo seria bem diferente se o vício dourado fosse fustigado pela opinião
pública tanto quanto o vício em andrajos; mas o orgulho é indulgente para
tudo o que o lisonjeia. Século de cupidez e de dinheiro — vocês dizem. Sem
dúvida, mas por que deixaram as necessidades materiais se sobreporem ao
bom senso e a razão? Por que cada um quer se elevar acima de seu irmão?
Hoje a sociedade sofre as consequências disso.
Não esqueçam que tal estado de coisas é sempre um sinal de decadência
moral. Quando o orgulho chega aos derradeiros limites, isso é um indício de
queda próxima, porque Deus sempre castiga os soberbos. Se ele às vezes os
deixa subir, é para lhes dar um tempo para refletir e de se emendar, sob os
golpes que de vez em quando lhes desfere no orgulho para adverti-los; mas,
ao invés de se humilharem, eles se revoltam, e então, quando a medida está
completa, Deus os revira completamente e a queda deles é tão mais terrível
quanto mais alto tenham subido.
Pobre raça humana, cujo egoísmo corrompeu todos os caminhos; tomem
coragem, mesmo assim! Na sua infinita misericórdia, Deus te envia um
poderoso remédio contra os teus males, um inesperado socorro na tua agonia.
Abra os olhos para a luz: aqui estão as almas dos que já se foram e que vêm te
alertar para os teus verdadeiros deveres; eles te dirão, com a autoridade da
experiência, o quanto as vaidades e as grandezas da sua passageira existência
são mesquinhas em comparação com a eternidade; eles te dirão que no Além
o maior é aquele que foi o mais humilde entre os pequenos deste mundo; que
aquele que mais amou os seus irmãos é também o mais amado no céu; que os
poderosos da Terra, caso tenham abusado da sua autoridade, serão forçados a
obedecer aos seus servos; que, enfim, a caridade e a humildade — essas duas
irmãs que se dão as mãos — são os títulos mais eficazes para se obter graça
diante do Eterno.
ADOLFO, bispo de Argel (Marmande, 1862)
125 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Missão do homem inteligente na Terra


13. Não se envaideçam do que sabem, porque esse saber tem fronteiras bem
limitadas no mundo em que vocês habitam. Mas, supondo que vocês sejam
uma das sumidades inteligentes desse globo, mesmo assim vocês não têm
nenhum direito de se envaidecer disso. Se Deus, em seus desígnios, os fez
nascer num meio em que vocês puderam desenvolver a inteligência, é que ele
quer que vocês a utilizem para o bem de todos; pois essa é uma missão que
ele lhes dá, colocando nas suas mãos o instrumento com o qual vocês podem
desenvolver ao mesmo tempo as inteligências retardatárias e as conduzir até
ele. A natureza do instrumento não indica o uso que dele deve ser feito? A pá
que o jardineiro põe nas mãos do seu ajudante não indica que este deve usá-la
para cavar? E o que vocês diriam se esse ajudante, em vez de trabalhar,
erguesse sua pá para atacar seu patrão? Vocês diriam que isso é horrível e
que ele merece ser expulso. Pois bem: não é o mesmo caso daquele que se
serve da sua inteligência para destruir a ideia de Deus e da Providência entre
seus irmãos? Isso não é levantar contra o seu patrão a pá que lhe foi dada
para cavar a terra? Teria ele direito ao salário prometido? Não merece, ao
contrário, ser banido do jardim? Pois ele será, não duvidem, e arrastará
existências miseráveis e cheias de humilhações, até que se curve diante
daquele a quem ele deve tudo.
A inteligência é rica de méritos para o futuro, mas sob a condição de ser
bem empregada; se todos os homens que são dotados da inteligência se
servissem dela conforme os desígnios de Deus, a tarefa dos Espíritos de fazer
a humanidade avançar seria fácil; infelizmente, muitos fazem dela um
instrumento de orgulho e de perdição contra si mesmos. O homem abusa da
inteligência assim como abusa de todas as suas outras faculdades e, no
entanto, não lhe faltam lições para adverti-lo de que uma mão poderosa pode
retirar aquilo que lhe foi concedido.
FERDINAND, Espírito protetor (Bordeaux, 1862)
126 – Allan Kardec

CAPÍTULO VIII

BEM-AVENTURADOS AQUELES
QUE TÊM O CORAÇÃO PURO
Deixem vir a mim as criancinhas – Pecado por pensamento.
Adultério – Verdadeira pureza. Mãos não lavadas
– Escândalos. Se a tua mão for motivo de escândalo, corte-a –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Deixem vir a mim as criancinhas
– Bem-aventurados aqueles que têm os olhos fechados

Deixem vir a mim as criancinhas

1. Bem-aventurados aqueles que têm o coração puro, porque eles verão a


Deus. (São Mateus, 5: 8)

2. Então lhe apresentaram algumas criancinhas, a fim de que ele as tocasse; e,


como seus discípulos estavam repreendendo com palavras rudes aqueles que
as apresentavam, Jesus, vendo isso, ficou irritado e disse aos seus discípulos:
Deixem vir a mim as criancinhas, e não as impeçam, pois o reino dos céus é
para aqueles que se assemelham a elas. Eu lhe digo, em verdade, que aquele
que não receber o reino de Deus como uma criança, nele não entrará. — E
depois de abraçar as criancinhas, ele as abençoou impondo-lhes as mãos. (São
Marcos, 10: 13 a 16)

3. A pureza de coração é inseparável da simplicidade e da humildade; ela


exclui toda ideia de egoísmo e de orgulho; é por isso que Jesus toma a infância
como o emblema dessa pureza, como a tomou como o emblema da humildade.
Essa comparação poderia não parecer justa, se considerássemos que o
Espírito da criança pode ser muito antigo, e que, ao renascer para a vida
127 – O Evangelho segundo o Espiritismo

corpórea, ele traz as imperfeições de que não tenha se despojado em suas


existências precedentes; só um Espírito que já chegou à perfeição poderia nos
oferecer o modelo da verdadeira pureza. Mas a comparação é exata do ponto
de vista da vida presente, porque a criancinha, não tendo ainda podido
manifestar nenhuma tendência perversa, nos oferece a imagem da inocência e
da candura. Além disso, Jesus não disse de uma maneira absoluta que o reino
dos céus é para elas, mas para quem se assemelhem a elas.

4. Já que o Espírito da criança já viveu, por que não se mostra, desde o


nascimento, tal como é? Tudo é sábio nas obras de Deus. A criança necessita
de cuidados delicados que somente a ternura materna pode lhe proporcionar,
e essa ternura se intensifica devido à fragilidade e à ingenuidade da criança.
Para uma mãe, seu filho é sempre um anjo, e era preciso que ele fosse assim
para cativar a dedicação dela; ela não poderia ter tido o mesmo zelo para com
ele se, em vez de uma graciosidade ingênua, ela encontrasse nele, sob traços
infantis, um caráter viril e as ideias de um adulto — e ainda menos se ela
conhecesse o passado do filho.
Era necessário, aliás, que a atividade do princípio inteligente fosse
proporcional à fragilidade do corpo, que não poderia resistir a uma atividade
muito grande do Espírito, assim como se vê nos indivíduos muito precoces. É
por essa razão que o Espírito, desde a aproximação da reencarnação, entra em
perturbação e perde pouco a pouco a consciência de si mesmo; ele
permanece, durante um certo período, num tipo de sono em que todas as suas
faculdades ficam em estado latente. Esse estado transitório é imprescindível
para dar ao Espírito um novo ponto de partida e para lhe fazer esquecer, em
sua nova existência terrestre, as coisas que pudessem lhe entravar.
Entretanto, seu passado reage sobre ele, que renasce melhor e mais forte,
moral e intelectualmente, sustentado e ajudado pela intuição que conserva da
experiência adquirida.
A partir do nascimento, suas ideias recuperam gradualmente a sua
expansão na medida do desenvolvimento dos órgãos; daí, pode-se dizer que
durante os primeiros anos o Espírito é verdadeiramente uma criança, porque
as ideias que fundamentam o seu caráter ainda estão adormecidas. Durante o
128 – Allan Kardec

tempo em que seus instintos dormem, ele é mais flexível e por isso mesmo
mais acessível às impressões que podem modificar a sua natureza e fazê-lo
progredir — o que torna mais fácil a tarefa imposta aos pais.
O Espírito, portanto, veste temporariamente a túnica da inocência, e
assim Jesus está com a verdade quando — apesar da anterioridade da alma —
toma a criança como um símbolo da pureza e da simplicidade.

Pecado por pensamento. Adultério

5. Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: Não cometam adultério. Mas eu
lhes digo que aquele que tiver olhado uma mulher com mau desejo para com
ela, este já cometeu adultério com ela em seu coração. (São Mateus, 5: 27 e 28)

6. A palavra adultério não deve ser aqui entendida no sentido exclusivo da


sua acepção própria, mas num sentido mais geral; frequentemente Jesus a
empregava por extensão, para designar o mal, o pecado e todo e qualquer
pensamento mau, como, por exemplo, nesta passagem: “Pois se alguém se
envergonhar de mim e das minhas palavras entre essa raça adúltera e
pecadora, o Filho do Homem também se envergonhará dele, quando vier
acompanhado dos santos anjos, na glória de seu Pai.” (São Marcos, 8:38)
A verdadeira pureza não está unicamente nos atos; está também no
pensamento, pois aquele que tem o coração puro nem sequer pensa no mal.
Foi isso o que Jesus quis dizer: Ele condena o pecado, mesmo em pensamento,
porque isso é um sinal de impureza.

7. Esse princípio conduz naturalmente à seguinte questão: Nós podemos


sofrer as consequências de um mau pensamento que não colocamos em
prática?
Aqui há uma importante distinção a fazer. À medida que a alma
envolvida no mau caminho avança na vida espiritual, ela se esclarece e se
despoja pouco a pouco de suas imperfeições, conforme a maior ou menor boa
vontade que ela traz consigo, em virtude do seu livre-arbítrio. Desse modo,
todo pensamento mau é o resultado da imperfeição da alma; porém,
129 – O Evangelho segundo o Espiritismo

dependendo do desejo que ela tiver concebido de se depurar, até mesmo esse
mau pensamento se torna para ela uma ocasião de avançar, pois ela o repulsa
com energia; isso é o indício de uma mancha que a alma se esforça para
apagar; então, caso surja uma ocasião de satisfazer a um mau desejo, ela não
cederá, e depois que tiver resistido, vai se sentir mais forte e feliz com a sua
vitória.
Por outro lado, a alma que não tiver tomado boas resoluções, esta fica
procurando uma ocasião, e se ela não realiza a má ação, não é por efeito da
sua vontade, mas por falta de oportunidade; nesse caso, a alma é culpada
tanto quanto se tivesse cometido essa má ação.
Em resumo, na pessoa que nem concebe a ideia do mal, o progresso já se
realizou; naquela a quem vem essa ideia, mas ela a repulsa, o progresso está
se realizando; finalmente, naquela que tem esse pensamento mal e nele se
compraz, o mal ainda existe com toda a sua força. Numa, o trabalho está feito;
nas outras almas, está por fazer. Deus, que é justo, leva em conta todos esses
diferentes graus na responsabilidade dos atos e dos pensamentos do homem.

Verdadeira pureza. Mãos não lavadas

8. Então os escribas e os fariseus, que tinham vindo de Jerusalém, se


aproximaram de Jesus e lhe disseram: Por que os teus discípulos violam a
tradição dos antigos? Pois eles não lavam as mãos quando fazem suas
refeições.
Mas Jesus lhes respondeu: E por que vocês também violam o
mandamento de Deus para seguir suas próprias tradições? Pois Deus
estabeleceu este mandamento: Honrem o seu pai e a sua mãe; e estabeleceu
este outro: Que aquele que disser palavras ultrajantes ao seu pai ou à sua mãe
seja punido com a morte. Mas vocês, por sua vez, dizem: Quem tiver dito ao
seu pai ou à sua mãe: Toda oferenda que faço a Deus é proveitosa para vocês,
então este está obedecendo à lei, ainda que depois não honre nem auxilie ao
seu pai ou à sua mãe. Assim, vocês tornam inútil o mandamento de Deus,
pelas suas próprias tradições.
Hipócritas, bem que Isaías profetizou sobre vocês quando disse: Este
130 – Allan Kardec

povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim; é em vão
que me honram ensinando preceitos e ordenações humanas”.
Depois, convocando o povo, ele disse: Escutem e compreendam bem
isso: Não é o que entra na boca que contamina o homem; o que sai da boca do
homem é que o macula. O que sai da boca vem do coração e é isso o que torna
o homem impuro, porque é do coração que partem os maus pensamentos, os
assassínios, os adultérios, as fornicações, os roubos, os falsos testemunhos, as
blasfêmias e as maledicências. São essas as coisas que tornam o homem
impuro, mas comer sem ter lavado as mãos não é o que o torna impuro.
Então, seus discípulos se aproximaram dele, dizendo: Sabia que,
ouvindo o que o Senhor acaba de dizer, os fariseus ficaram escandalizados
com isso? — Mas ele respondeu: Toda planta que meu Pai celestial não
plantou será arrancada. Deixem-lhes; são cegos que conduzem cegos; se um
cego conduz outro, ambos caem no poço. (São Mateus, 15: 1 a 20)

9. Enquanto ele falava, um fariseu lhe pedia que fosse jantar na casa dele;
então Jesus, lá chegando, sentou-se à mesa. O fariseu começou logo a dizer
consigo mesmo: Por que ele não lavou as mãos antes de jantar? — Porém, o
Senhor lhe disse: Vocês, fariseus, por sua vez, têm bastante zelo em limpar o
exterior do copo e do prato; contudo, o interior de seus corações está cheio de
ganância e de iniquidades. Que insensatos vocês são! Aquele que fez o
exterior não é o que faz também o interior? (São Lucas, 11: 37 a 40)

10. Os judeus haviam negligenciado os verdadeiros mandamentos de Deus


para se apegarem à prática dos regulamentos estabelecidos pelos homens e
dos quais os rígidos observadores tinham consciência. A essência, muito
simples, terminou desaparecendo sob o exagero da formalidade. Como era
mais fácil observar atos exteriores do que se reformar moralmente — isto é,
lavar as mãos do que limpar o coração — os homens iludiram-se a si
mesmos, julgando-se quites para com Deus, porque se conformaram com
aquelas práticas, permanecendo exatamente como eram, já que lhes
ensinaram que Deus não pedia nada mais do que isso. Eis por que o profeta
havia dito: É em vão que esse povo me honra com os lábios, ensinando
preceitos e ordenações humanas.
Assim também aconteceu com a doutrina moral do Cristo, que terminou
131 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sendo colocada em segundo plano, fazendo com que muitos cristãos — a


exemplo dos antigos judeus — achem que sua salvação seja mais assegurada
pelas práticas exteriores do que pelas práticas morais. É a essas adições à lei
de Deus, feitas pelos homens, que Jesus faz alusão quando diz: Toda planta
que meu Pai celestial não plantou será arrancada.
O objetivo da religião é conduzir o homem a Deus; ora, o homem não
chega a Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não
torna o homem melhor não alcança o seu objetivo; aquela sobre a qual o
homem acha que pode se apoiar para fazer o mal, ou é falsa, ou foi falseada
em seu princípio. Tal é o resultado de todas aquelas em que a forma sobrepõe
o seu fundamento. A crença na eficácia dos sinais exteriores é nula, se ela não
impedir que se cometam assassínios, adultérios, espoliações, que se levantem
calúnias e que se causem dano ao próximo, seja no que for. Essa crença faz
supersticiosos, hipócritas e fanáticos, mas não faz homens de bem.
Não basta, portanto, ter as aparências da pureza; é preciso, antes de
tudo, ter a pureza do coração.

Escândalos. Se tua mão for motivo de escândalo, corte-a

11. Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que haja
escândalos; mas aí do homem através de quem vem o escândalo.
Se alguém escandalizar a um destes pequenos que creem em mim, seria
melhor para ele que lhe pendurassem no pescoço uma dessas mós27 que um
jumento gira, e que o lançassem ao fundo do mar.
Tomem muito cuidado para não desprezar um destes pequenos; eu lhes
declaro que no céu seus anjos observam incessantemente a face de meu Pai
que está nos céus, porque o Filho do homem veio salvar o que estava perdido.
Se a sua mão ou o seu pé for um motivo de escândalo para vocês,
cortem-no e o lancem para longe de vocês; será bem melhor vocês entrarem
na vida tendo um só pé ou uma única mão do que terem dois e serem
lançados no fogo eterno. E se o seu olho for motivo de escândalo para vocês,
27 Pedra usada nos moinhos para triturar os grãos ou para espremer a azeitona na extração do azeite,
girando-a sobre outra pedra mediante um grande esforço físico, por exemplo, de um jumento. — N. T.
132 – Allan Kardec

arranquem-no e o lancem para longe de vocês; será melhor vocês entrarem


na vida tendo um só olho do que terem dois olhos e serem precipitados no
fogo do inferno. (São Mateus, 18: 6 a 9; 5: 29 e 30)

12. No sentido vulgar, chama-se escândalo toda ação que choca a moral ou a
decência de uma maneira ostensiva. O escândalo não está na ação em si
mesma, mas na repercussão que ela pode causar. A palavra escândalo implica
sempre a ideia de uma certa confusão. Muitas pessoas se contentam em evitar
o escândalo, porque seu orgulho sofreria com ele e sua consideração ficaria
diminuída entre os homens; mas desde que as suas torpezas sejam ignoradas,
isso lhes basta e sua consciência repousa tranquila. São, segundo as palavras
de Jesus: “Sepulcros caiados no exterior, mas cheios de podridão no interior;
vasos limpos por fora e sujos por dentro.”
No sentido evangélico, a acepção do vocábulo escândalo — tão
frequentemente empregada — é muito mais genérica; eis por que o seu
significado não é compreendido em certos casos. Não é somente o que ofende
a consciência alheia, é tudo o que resulta dos vícios e das imperfeições dos
homens, toda reação má de indivíduo para indivíduo, com ou sem
repercussão. O escândalo, neste caso, é o resultado efetivo do mal moral.

13. É preciso que haja escândalo no mundo, disse Jesus, porque os homens,
sendo imperfeitos na Terra, estão inclinados a fazer o mal, e porque as más
árvores dão maus frutos. Com isso, devemos entender por essas palavras que
o mal é uma consequência da imperfeição dos homens, e não que eles tenham
obrigação de praticá-lo.

14. É necessário que o escândalo venha, porque, como os homens estão em


expiação na Terra, eles se punem a si mesmos pelo contato de seus vícios, dos
quais eles são as primeiras vítimas e cujos inconvenientes eles acabam por
compreender. Quando estiverem cansados de sofrer o mal, então buscarão o
remédio no bem. A reação desses vícios serve então, ao mesmo tempo, de
castigo para uns e de provações para outros; é assim que do mal Deus faz
surgir o bem e que os próprios homens aproveitam as coisas más ou inúteis.

15. Se for assim — dirão — o mal é necessário e durará para sempre, pois se
133 – O Evangelho segundo o Espiritismo

ele desaparecesse, Deus ficaria privado de um poderoso meio de castigar os


culpados; portanto, é inútil tentar melhorar os homens. Mas se não houvesse
mais culpados, já não haveria mais necessidade de castigos. Suponhamos que
a humanidade se transforme em homens de bem, nenhum procuraria fazer
mal ao seu próximo, e todos serão felizes, porque eles serão bons. Tal é o
estado dos mundos avançados, de onde o mal está excluído; tal será a situação
da Terra quando ela tiver progredido suficientemente. Mas enquanto alguns
mundos avançam, outros se formam, povoados de Espíritos primitivos e
servindo de habitação, de exílio e de lugar de expiação para os Espíritos
imperfeitos, rebeldes, obstinados no mal e que foram rejeitados pelos mundos
que se tornaram felizes.

16. Mas ai daquele por quem o escândalo venha; quer dizer que o mal
sendo sempre o mal, aquele que involuntariamente serviu de instrumento à
Justiça divina, aquele cujos maus instintos foram utilizados, nem por isso
deixou de praticar o mal e deve ser punido. É assim, por exemplo, que um
filho ingrato é uma punição ou uma prova para o pai que sofre com isso,
porque talvez esse pai tenha sido também um filho mau que fez seu pai sofrer,
e que está sofrendo a pena de talião; mas esse filho não é mais desculpável
por isso, e deverá ser castigado na sua vez pelos seus próprios filhos ou de
uma outra maneira.

17. Se a sua mão for motivo de escândalo para vocês, cortem-na; figura
enérgica, que seria absurdo tomarmos ao pé da letra, e que significa
simplesmente que é preciso destruir em si mesmo toda causa de escândalo,
isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e todo princípio
vicioso; significa ainda que seria melhor para o homem ter uma das mãos
cortada do que se essa mão tivesse sido para ele o instrumento para uma má
ação; assim como seria melhor ficar privado da vista do que se os seus olhos
tivessem lhe dado maus pensamentos. Jesus não disse nenhum absurdo, para
aquele que compreende o sentido alegórico e profundo de suas palavras;
porém, muitas coisas não podem ser compreendidas sem a chave que o
espiritismo oferece.
134 – Allan Kardec

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Deixem vir a mim as criancinhas

18. O Cristo disse: “Deixem vir a mim as criancinhas.” Essas palavras,


profundas em sua simplicidade, não traziam consigo o simples apelo às
crianças, mas também às almas que gravitam nos círculos inferiores em que o
infeliz desconhece a esperança. Jesus chamava para si a infância intelectual da
criatura formada: os fracos, os escravos, os viciosos; ele nada podia ensinar à
infância física, envolvida pela matéria, submetida ao jugo do instinto, ainda
não pertencente à ordem superior da razão e da vontade que se exercem em
torno dela e por ela.
Jesus queria que os homens viessem a ele com a confiança desses
pequenos seres de passos vacilantes, cujo apelo de todas as mulheres que são
mães lhe conquistou o coração; desse modo, ele submetia as almas à sua terna
e misteriosa autoridade. Ele foi o facho que ilumina as trevas, o clarim matinal
que soou o despertar; foi o iniciador do espiritismo que, por sua vez, deve
chamar para si, não as criancinhas, mas os homens de boa vontade. A ação
viril já está em andamento; não se trata de crer instintivamente e de obedecer
maquinalmente, mas sim que o homem siga a lei inteligente que se revela
para ele na sua universalidade.
Meus bem-amados, este é o tempo em que os erros, agora explicados,
constituirão as verdades; ensinaremos a vocês o sentido exato das parábolas e
lhes mostraremos a forte correlação que liga aquilo que foi e aquilo que é. Eu
lhes digo, em verdade: a manifestação espírita se estende no horizonte, e aqui
está o seu enviado que vai resplandecer como o Sol no cume dos montes.
JOÃO EVANGELISTA (Paris, 1863)

19. Deixem vir a mim as criancinhas, pois eu tenho o leite que fortifica os
fracos. Deixem vir a mim aqueles que, tímidos e frágeis, necessitam de apoio e
de consolação. Deixem vir a mim os ignorantes, para que eu os esclareça;
deixem vir a mim todos os que sofrem, a multidão dos aflitos e dos infelizes:
eu lhes ensinarei o grande remédio que ameniza os males da vida e lhes darei
o segredo da cura de suas feridas! Qual é, meus amigos, esse bálsamo
135 – O Evangelho segundo o Espiritismo

soberano, que possui a virtude por excelência, esse bálsamo que se aplica a
todas as feridas do coração e as cicatriza? É o amor, é a caridade! Se vocês
tiverem esse fogo divino, o que poderão temer? Vocês dirão, em todos os
instantes de vida: Meu Pai, que seja feita a tua vontade, e não a minha; se te
apraz me experimentar pela dor e pelas tribulações, bendito seja, porque é
para o meu bem — eu sei disso — que a tua mão pesa sobre mim. Se te
convier, Senhor, ter piedade desta tua frágil criatura e conceder a este coração
as alegrias lícitas, bendito seja também; mas faça com que o amor divino não
adormeça nesta alma, e que ela incessantemente faça subir aos teus pés a voz
do seu reconhecimento!
Se vocês tiverem amor, então terá tudo o que se pode desejar na Terra,
possuirão a pérola por excelência, que nem os circunstâncias, nem as
maldades daqueles que lhes odeiam e perseguem poderão encantar. Se
tiverem amor, então terão colocado seu tesouro lá onde os vermes e a
ferrugem não o podem atacar, e verão se apagar insensivelmente da alma
tudo o que possa contaminar sua pureza; sentirão o peso da matéria diminuir
dia a dia, e assim, igual ao pássaro que plana nos ares e não se lembra mais da
Terra, vocês subirão ininterruptamente, subirão sempre, até que a alma
inebriada possa se saciar do seu elemento de vida no seio do Senhor.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1861)

Bem-aventurados aqueles que têm os olhos fechados28

20. Meus bons amigos, vocês me chamaram, por quê? Será que foi para eu
impor as mãos sobre a pobre sofredora que está aqui, para que eu a cure? Ah,
que sofrimento, bom Deus! Ela perdeu a vista e as trevas se fizeram para ela.
Pobre criança! Que ela ore e espere; eu não sei fazer milagres, eu, sem a
vontade do bom Deus. Todas as curas que eu pude obter, e de que vocês
tiveram conhecimento, não as atribuam senão àquele que é o Pai de todos
nós. Em suas aflições, olhem então sempre para o céu e digam do fundo do

28 Esta comunicação foi dada a pedido de uma pessoa cega, para quem foi evocado o Espírito de J. B.
VIANNEY, Cura de Ars.
136 – Allan Kardec

coração: “Meu pai, cura-me, mas faça com que minha alma enferma seja
curada antes das enfermidades do meu corpo; que minha carne seja castigada,
se preciso for, para que minha alma se eleve até o Senhor, com a brancura que
ela tinha quando foi criada por ti.” Após essa prece, meus bons amigos, que o
bom Deus sempre ouvirá, a força e a coragem lhes serão dadas e, talvez
também, aquela cura que vocês pediram timidamente, como recompensa pela
abnegação de vocês.
Mas já que estou aqui, numa assembleia em que se trata principalmente
de estudos, eu vou lhes dizer que aqueles que estão privados da vista
deveriam se considerar como os bem-aventurados de expiação. Lembrem-se
de que o Cristo disse que era preciso arrancar o próprio olho se ele fosse mau,
e que seria melhor lançá-lo ao fogo do que ele se tornar a causa da sua
condenação. Ah, quantos há nesta Terra que um dia lamentarão nas trevas
por terem visto a luz! Oh, sim! Como são felizes aqueles que, na expiação, são
feridos através visão! Seus olhos não serão motivo de escândalo ou de queda;
eles podem viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que
você que enxergam claramente... Quando Deus me permite ir abrir as
pálpebras de algum desses pobres sofredores e lhes restituir a luz, eu digo a
mim mesmo: Alma querida, por que você não conhece todas as delícias do
Espírito que vive de contemplação e de amor? Você não pediria para ver
imagens menos puras e menos suaves do que as que te é permitido
vislumbrar na tua cegueira!
Oh, sim! Bem-aventurado o cego que quer viver com Deus; mais feliz do
que vocês que estão aqui, ele sente a felicidade, toca-a, vê as almas e pode se
lançar com elas às esferas espirituais que nem mesmo os predestinados da
Terra conseguem ver. O olho aberto está sempre pronto para fazer a alma
falir; o olho fechado, ao contrário, está sempre pronto a fazê-la se elevar a
Deus. Acreditem em mim, meus bons e caros amigos, a cegueira dos olhos
frequentemente é a verdadeira luz do coração, enquanto muitas vezes a vista
é o anjo tenebroso que conduz à morte.
E agora, algumas palavras para ti, minha pobre sofredora: aguarde e
tenha coragem! Se eu te dissesse: Minha filha, teus olhos vão se abrir, como
você ficaria contente! Mas quem sabe se esse contentamento não te levaria à
137 – O Evangelho segundo o Espiritismo

perdição? Tenha confiança no bom Deus, que fez a felicidade e permite a


tristeza! Farei tudo o que me for permitido por ti; mas, por tua vez, ore e
sobretudo pense em tudo quanto acabo de te dizer.
Antes que eu me afaste, todos vocês que estão aqui, recebam a minha
bênção.
VIANNEY, cura de Ars. (Paris, 1863)

21. Observação – Quando uma aflição não é uma consequência dos atos da vida
presente, deve-se procurar sua causa numa vida anterior. Aquilo que se chama de
capricho da sorte não é outra coisa senão o efeito da justiça de Deus. Deus não aplica
punições arbitrárias; ele quer que entre a falta e a penitência sempre haja uma
correlação. Se ele, em sua bondade, lançou um véu sobre os nossos atos passados, por
outro lado ele nos coloca no caminho ao dizer: “Quem matou com a espada, pela
espada perecerá”; palavras que podem ser traduzidas assim: “Sempre somos punidos
por aquilo que pecamos”. Portanto, se alguém é afligido com a perda da visão, é que a
visão foi para ele uma causa de queda; quem sabe alguém tenha ficado cego pelo
excesso de trabalho que lhe imposto por ele, ou por consequência de maus-tratos,
pela falta de cuidados etc., e agora ele sofre pela pena de talião. Ele mesmo, em seu
arrependimento, pode ter escolhido essa expiação, aplicando a si estas palavras de
Jesus: “Se o teu olho for motivo de escândalo para ti, arranca-o.”
138 – Allan Kardec

CAPÍTULO IX

BEM-AVENTURADOS AQUELES
QUE SÃO MANSOS E PACÍFICOS
Injúrias e violências – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A afabilidade e a
doçura – A paciência – Obediência e resignação – A cólera

Injúrias e violências

1. Bem-aventurados aqueles que são mansos, porque eles possuirão a Terra.


(São Mateus, 5: 5)

2. Bem-aventurados os pacíficos, porque eles serão chamados filhos de Deus.


(São Mateus, 5: 9)

3. Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: Não matem, e quem matar
merecerá ser condenado pelo julgamento. Mas eu digo a vocês que quem se
puser em cólera contra seu irmão merecerá ser condenado pelo julgamento;
que aquele que disser ao seu irmão: Raca, merecerá ser condenado pelo
sinédrio; e aquele que lhe disser: Você é louco, merecerá ser condenado ao
fogo do inferno. (São Mateus, 5: 21 e 22)

4. Por estas máximas, Jesus constituiu uma lei de doçura, de moderação, de


mansidão, de afabilidade e de paciência; consequentemente ele condena a
violência, a cólera e até mesmo qualquer expressão indelicada com relação
aos semelhantes. Raca, entre os hebreus, era um termo de desprezo que
significava homem de nada, e se pronunciava cuspindo e virando a cabeça
para o lado. Jesus vai até mais longe, já que ameaça com o fogo do inferno
aquele que disser a seu irmão: Você é louco.
139 – O Evangelho segundo o Espiritismo

É evidente que aqui, como em qualquer circunstância, a intenção agrava


ou atenua a falta; mas, em que sentido uma simples palavra pode ter
gravidade o bastante para merecer uma reprovação tão severa? É que toda
palavra ofensiva é a expressão de um sentimento contrário à lei de amor e de
caridade, que deve reger as relações entre os homens e manter entre eles a
concórdia e a união; é que isso representa um atentado contra a benevolência
recíproca e a fraternidade; é que ela mantém o ódio e a animosidade; é que,
enfim, depois da humildade para com Deus, a caridade para com o próximo é
a primeira lei de todo cristão.

5. Mas o que Jesus entende por estas palavras: “Bem-aventurados os que são
mansos, porque eles possuirão a Terra”, já que ele diz para renunciarmos aos
bens deste mundo, prometendo os bens do céu?
Enquanto espera os bens do céu, o homem tem necessidade dos bens da
Terra para viver; Jesus recomenda apenas que não se dê a estes últimos mais
importância do que aos primeiros.
Por aquelas palavras, ele quis dizer que até hoje os bens da Terra são
acumulados pelos violentos, em prejuízo daqueles que são mansos e pacíficos;
que a estes muitas vezes falta o necessário, enquanto os outros dispõem do
supérfluo; ele promete que a justiça lhes será feita, assim na Terra como no
céu, porque eles serão chamados filhos de Deus. Quando a lei de amor e de
caridade for a lei da humanidade, não haverá mais egoísmo; os fracos e os
pacíficos não serão mais explorados nem esmagados pelos fortes e violentos.
Tal será a situação da Terra quando, de acordo com a lei do progresso e a
promessa de Jesus, a Terra tiver se transformado em um mundo feliz, pela
expulsão dos ímpios.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A afabilidade e a doçura
6. A benevolência para com seus semelhantes — fruto do amor ao próximo —
produz a afabilidade e a doçura, que são a sua manifestação. Entretanto, nem
140 – Allan Kardec

sempre se deve confiar nas aparências; a educação e etiqueta podem dar ao


homem o verniz dessas qualidades. Quantos existem cuja bondade fingida não
passa de uma máscara para o exterior, uma roupagem cujo corte calculado
disfarça as deformidades escondidas! O mundo está cheio dessas pessoas que
têm o sorriso nos lábios e o veneno no coração; que são mansas, desde que
nada as ofenda, mas que mordem com o menor contrariedade; pessoas
que têm uma língua dourada quando falam pela frente e que se transforma
em dardo envenenado quando estão por detrás.
A essa classe pertencem também aqueles homens que são benignos com
os de fora e em casa são tiranos domésticos, fazendo suas famílias e seus
subordinados sofrerem com o peso do seu orgulho e do seu despotismo;
parece que eles querem compensar o constrangimento que lhes é imposto
fora de casa; não se atrevendo a usar de autoridade para com os estranhos,
que os colocariam no seu lugar, eles querem pelo menos se fazer temidos por
aqueles que não podem lhe desafiar; sua vaidade gosta de poder dizer: “Aqui
eu mando e sou obedecido”, sem imaginar que poderiam acrescentar, com
mais certeza: “E sou detestado”.
Não basta que dos lábios escorram leite e mel; se não for de coração, isso
será hipocrisia. Aquele cuja afabilidade e doçura não são fingidas nunca se
desmente; ele é a mesma pessoa na sociedade e na intimidade; ele sabe, aliás,
que se é possível enganar os homens pelas aparências, não é possível enganar
a Deus.
LÁZARO (Paris, 1861)

A paciência
7. A dor é uma bênção que Deus envia aos seus eleitos; então, não se aflijam
quando estiverem sofrendo, mas ao contrário, bendigam ao Deus todo-
poderoso que lhes marcou pela dor neste mundo, para a glória no céu.
Sejam pacientes; a paciência também é uma caridade, e vocês devem
praticar a lei de caridade ensinada pelo Cristo, enviado de Deus. A caridade
que consiste na esmola dada aos pobres é a mais fácil das caridades; porém,
existe uma bem mais penosa e consequentemente bem mais meritória: é a de
141 – O Evangelho segundo o Espiritismo

perdoar aqueles que Deus colocou no nosso caminho para serem os


instrumentos de nossos sofrimentos e colocarem nossa paciência à prova.
A vida é difícil, eu sei; ela se compõe de mil ninharias, que são alfinetadas
e terminam machucando; mas é preciso observar os deveres que nos são
impostos, as consolações e compensações que por outro lado nós temos, e
então veremos que as bênçãos são muito mais numerosas do que as dores. O
fardo parece menos pesado quando olhamos para o alto do que quando
curvamos a fronte para o chão.
Coragem, amigos; o Cristo é o seu modelo. Ele sofreu mais do que
qualquer um de vocês e não tinha nada a ser censurado, ao passo que vocês,
vocês têm o próprio passado a ser expiado e têm que se fortalecer para o
futuro. Portanto, sejam pacientes, sejam cristãos — essa palavra resume tudo.
UM ESPÍRITO AMIGO (Le Havre, 1862)

Obediência e resignação
8. A doutrina de Jesus ensina em toda parte a obediência e a resignação —
duas virtudes companheiras da doçura e muito efetivas, embora os homens as
confundam erradamente com a negação do sentimento e da vontade. A
obediência é o consentimento da razão; a resignação é o consentimento
do coração; ambas são forças ativas, pois elas carregam o fardo das
provações que a revolta insensata deixa cair. O covarde não pode ser
resignado, assim como o orgulhoso e o egoísta não podem ser obedientes.
Jesus foi a encarnação dessas virtudes desprezadas pela Antiguidade
materialista. Ele veio no momento em que a sociedade romana perecia nos
desfalecimentos da corrupção; veio fazer brilhar no seio da humanidade
enfraquecida os triunfos do sacrifício e da renúncia carnal.
Cada época é assim marcada pelo cunho da virtude ou do vício que deve
salvá-la ou levá-la à perdição. A virtude desta geração de vocês é a atividade
intelectual; seu vício é a indiferença moral. Eu digo apenas atividade, porque a
inteligência surge repentinamente e descobre de uma só vez os horizontes
que a multidão só verá depois dela, enquanto a atividade é a reunião dos
142 – Allan Kardec

esforços de todos para atingir um objetivo menos deslumbrante, mas que


prova a elevação intelectual de uma época. Submetam-se ao impulso que nós
viemos dar aos seus espíritos; obedeçam à grande lei do progresso, que é a
palavra da sua geração. Ai do Espírito preguiçoso, daquele que fecha o seu
entendimento! Ai dele, porque nós — que somos os guias da humanidade em
marcha — vamos chicoteá-los e forçaremos a sua vontade rebelde pelo duplo
esforço do freio e da espora; toda resistência orgulhosa deverá ceder, cedo ou
tarde. todavia, bem-aventurados aqueles que são mansos, pois eles prestarão
ouvidos dóceis aos ensinamentos.
LÁZARO (Paris, 1863)

A cólera
9. O orgulho os leva a se acharem mais do que vocês são; leva-os a não tolerar
uma comparação que possa rebaixá-los; leva-os a se considerarem, por outro
lado, tão acima dos seus irmãos — seja em inteligência, em posição social e
até em vantagens pessoais — que o menor paralelo irrita e ofende vocês. O
que acontece então? Vocês se entregam à cólera.
Procurem a origem desses surtos de demência momentânea que os
tornam semelhantes aos brutos, fazendo-os perder o sangue-frio e a razão;
procurem, e quase sempre vocês encontrarão como base o orgulho ferido.
Não é o orgulho ferido por uma contradição que os faz repelir as mais justas
observações e os faz rejeitar com raiva os mais sábios conselhos? Até mesmo
a impaciência — causada por contrariedades muitas vezes infantis — se deve
à importância que as pessoas dão à sua personalidade, diante da qual elas
acham que todos devem ceder.
Em seu frenesi, o homem encolerizado se atira a tudo: à natureza bruta,
aos objetos inanimados que ele quebra, porque eles não lhe obedecem. Ah, se
nesses momentos ele pudesse se ver a sangue-frio, ele teria medo de si
mesmo, ou se acharia muito ridículo! Que ele julgue por isso a impressão que
deve causar aos outros. Quando não fosse pelo respeito por si próprio, ele
deveria se esforçar para vencer essa inclinação que faz dele um objeto de
piedade.
143 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Se ele pensasse que a cólera não resolve nada, que ela altera a sua saúde
e compromete até mesmo a sua vida, então ele veria que ele é a sua primeira
vítima. Mas outra consideração deveria contê-lo principalmente: é a ideia de
que ele torna infelizes todos aqueles que o rodeiam. Se ele tiver coração, não
será motivo de remorso para ele fazer sofrer os seres a quem ele mais ama? E
que arrependimento mortal se, num acesso de fúria, ele cometesse um ato do
qual ele tivesse que lastimar por toda a sua vida!
Em suma, a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede
que se faça muito bem e pode fazer muito mal; isso deve bastar para instigar
que se faça esforços para dominar a cólera. O espírita, aliás, é convocado a
fazer isso por outro motivo: é que a cólera é contrária à caridade e à
humildade cristãs.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1863)

10. De acordo com a ideia muito falsa de que não é possível reformar a
própria natureza, o homem se acha dispensado de fazer esforços para se
corrigir dos defeitos nos quais ele se compraz voluntariamente, ou que
exigiriam bastante perseverança; é assim, por exemplo, que a pessoa
inclinada à cólera quase sempre se desculpa pelo seu temperamento; ao invés
de se confessar culpada, ela joga a culpa no seu organismo, acusando assim a
Deus das próprias faltas dela. Isso também é uma consequência do orgulho
que se encontra misturado com todas suas imperfeições da pessoa.
Sem contradição, há temperamentos que se prestam mais do que outros
a atos violentos, como há músculos mais flexíveis que se prestam melhor aos
atos de força; mas não creiam que aí esteja a causa primordial da cólera, e
fiquem certos de que um Espírito pacífico — mesmo que ele esteja num corpo
bilioso — será sempre pacífico, e que um Espírito violento — mesmo num
corpo linfático — não será mais dócil; a violência apenas tomará outro
caráter; não tendo um organismo apropriado para favorecer sua violência, a
cólera ficará concentrada, enquanto no outro caso será expansiva.
O corpo não dá cólera àquele que não a tem, assim como não dá os
outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito;
sem isso, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem que é
144 – Allan Kardec

deformado não pode se endireitar, porque o Espírito não tem relação com
isso, mas ele pode modificar o que é do Espírito, quando tem vontade firme
para isso. A experiência não lhes mostra, espíritas, até onde pode ir o poder
da vontade, através de transformações verdadeiramente miraculosas que
vocês veem se realizar? Reconheçam, pois, que o homem só continua vicioso
porque quer continuar vicioso; porém, aquele que quiser se corrigir sempre
poderá se corrigir; de outro modo, a lei do progresso não existiria para o
homem.
HAHNEMANN (Paris, 1863)
145 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO X

BEM-AVENTURADOS AQUELES
QUE SÃO MISERICORDIOSOS
Perdoem para que Deus lhes perdoe – Reconciliar-se com os
adversários. – O sacrifício mais agradável a Deus – O cisco e a trave
no olho – Não julguem para não serem julgados. Quem estiver sem
pecado atire a primeira pedra – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Perdão
das ofensas – A indulgência – É permitido repreender os outros,
notar as imperfeições de outrem e divulgar o mal alheio?

Perdoem para que Deus lhes perdoe


1. Bem-aventurados aqueles que são misericordiosos, porque eles mesmos
obterão misericórdia. (São Mateus, 5: 7)

2. Se perdoarem aos homens as faltas que eles cometerem contra vocês, então
o seu Pai celestial também perdoará os pecados de vocês; mas se não
perdoarem aos homens quando eles lhes ofenderem, seu Pai também não
perdoará os pecados de vocês. (São Mateus, 6: 14 e 15)

3. Se o seu irmão pecou contra vocês, vá e lhe repreenda pelo erro dele em
particular, entre vocês e ele; se ele lhes atender, vocês terão ganho um irmão.
Então, aproximando-se dele, Pedro lhe disse: Senhor, quantas vezes devo
perdoar a meu irmão, quando ele tiver pecado contra mim? Até sete vezes? —
Jesus lhe respondeu: Eu não lhes digo que perdoem até sete vezes, mas até
setenta vezes sete. (São Mateus, 18: 15, 21 e 22)

4. A misericórdia é o complemento da mansidão, porque aquele que não for


misericordioso não poderá ser manso e pacífico; ela consiste no esquecimento
146 – Allan Kardec

e no perdão das ofensas. O ódio e o rancor denotam uma alma sem elevação e
sem grandeza; o esquecimento das ofensas é a característica da alma elevada
que está acima dos ataques que lhe possam ser dirigidos. Uma está sempre
ansiosa, de uma suscetibilidade melindrosa e cheia de fel; a outra é calma,
plena de mansidão e de caridade.
Ai daquele que diz: “Eu não perdoarei jamais”, pois esse, se não for
condenado pelos homens, certamente será condenado por Deus. Com que
direito ele reclamaria o perdão de suas próprias faltas, se ele mesmo não
perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter
limites, quando ele diz para perdoar o irmão, não sete vezes, mas setenta
vezes sete.
No entanto, há duas maneiras bem diferentes de perdoar: uma é grande,
nobre, verdadeiramente generosa, sem segunda intenção, que trata com
delicadeza o amor-próprio e o melindre do adversário — mesmo que este
esteja totalmente errado; a segunda é aquela pela qual o ofendido — ou
aquele que sente ofendido — impõe ao outro condições humilhantes e lhe faz
sentir o peso de um perdão que irrita, em vez de acalmar; se estende a mão,
não é com benevolência, e sim com ostentação, a fim de poder dizer a todo
mundo: “Vejam o quanto eu sou generoso!” Em tais circunstâncias, é
impossível que a reconciliação seja sincera de parte a parte. Não, aí não há
generosidade; isso é uma maneira de satisfazer ao orgulho. Em toda
contestação, aquele que se mostra ser o mais conciliador e que prova ter mais
desinteresse, caridade e verdadeira grandeza de alma conquistará sempre a
simpatia das pessoas imparciais.

Reconciliar-se com os adversários


5. Reconciliem-se o mais cedo possível com o seu adversário, enquanto estão a
caminho com ele, para que o adversário de vocês não lhes entregue ao juiz, e
que o juiz não lhes entregue ao ministro da justiça, e que vocês não sejam
colocados na prisão. Eu lhe digo, em verdade, que vocês não sairão de lá
enquanto não tenham pago até o último centavo. (São Mateus, 5: 25 e 26)

6. Na prática do perdão, e na prática do bem em geral, há mais do que um


147 – O Evangelho segundo o Espiritismo

efeito moral: há também um efeito material. A morte, como sabemos, não nos
livra dos nossos inimigos; muitas vezes, no além-túmulo, os Espíritos
vingativos perseguem com seu ódio aqueles contra os quais eles guardam
rancor; é por isso que é falso aquele provérbio que diz: “Morto o animal,
morto o veneno”, quando aplicado ao homem. O Espírito mau espera que
aquele a quem ele quer mal esteja preso ao corpo e menos livre, para
atormentá-lo mais facilmente e feri-lo nos seus interesses ou nas suas
afeições mais caras. É preciso ver nesse fato a causa da maioria dos casos de
obsessão, sobretudo dos que apresentam uma certa gravidade — como a
subjugação e a possessão. O obsidiado e o possesso, portanto, são quase
sempre vítimas de uma vingança anterior, à qual provavelmente provocaram
pela sua conduta. Deus assim permite para os punir pelo mal que eles
mesmos fizeram, ou, se eles não o fizeram, por terem faltado com a
indulgência e a caridade, não perdoando. Nesse caso, do ponto de vista da sua
tranquilidade futura, importa que ele repare o mais rápido possível os erros
que tenha praticado contra o próximo, que ele perdoe aos seus inimigos, a fim
de que apagar — antes de morrer — todo motivo de dissensão, toda causa
fundamentada de aversão posterior; por esse meio, de um inimigo implacável
neste mundo pode-se fazer um amigo no outro mundo, ou pelo menos ficar do
lado certo, e Deus não deixa que aquele que perdoou seja alvo de qualquer
vingança. Quando Jesus recomenda chegar a um acordo o quanto antes com o
adversário, não é somente com vista a apaziguar as discórdias durante a atual
existência, mas para evitar que elas se perpetuem nas existências futuras.
Vocês não sairão da prisão — diz ele — enquanto não tiverem pago até o
último centavo, quer dizer, enquanto não satisfizerem completamente a
Justiça de Deus.

O sacrifício mais agradável a Deus


7. Portanto, quando apresentarem a sua oferenda no altar, se vocês se
lembrarem de que seu irmão tem alguma coisa contra vocês, deixem o
donativo aos pés do altar e vão primeiramente se reconciliar com o seu
irmão, e voltem depois para oferecer a sua oferta. (São Mateus, 5: 23 e 24)
148 – Allan Kardec

8. Quando Jesus diz: “Vão se reconciliar com o seu irmão, antes de


apresentarem a sua oferenda no altar”, ele está ensinando que o sacrifício
mais agradável ao Senhor é o do seu próprio ressentimento; que, antes de se
apresentar a ele para ser perdoado, a pessoa também precisa ter perdoado, e
que, se ela tiver feito algo contra um de seus irmãos, ela precisa reparar seu
erro; só então a oferenda será aceita, porque ela terá vindo de um coração
purificado de qualquer pensamento mau. Ele materializou esse preceito
porque os judeus ofereciam sacrifícios materiais; então era necessário
adequar suas palavras aos costumes deles. O cristão não oferece donativos
materiais; ele já espiritualizou o sacrifício, mas o preceito ganha mais força
ainda; ele oferece sua alma a Deus, e essa alma deve ser purificada; ao entrar
no templo do Senhor, ele deve deixar de fora todo sentimento de ódio e de
aversão, todo mau pensamento contra seu irmão; só então sua oração será
levada pelos anjos aos pés do Eterno. Eis o que ensina Jesus com estas
palavras: “Deixem sua oferenda aos pés do altar e vão primeiro se reconciliar
com o seu irmão, se quiserem ser agradáveis ao Senhor.”

O cisco e a trave no olho

9. Por que observam um cisco no olho do seu irmão e não enxergam uma
trave no olho de vocês? Ou, como podem dizer ao seu irmão: “Deixem-nos
tirar um cisco do teu olho”, vocês que têm uma trave no próprio olho?
Hipócritas, tirem primeiramente a trave do olho de vocês, e vejam depois
como poderão tirar o cisco do olho do seu irmão. (São Mateus, 7: 3 a 5)

10. Um dos defeitos da humanidade é o de ver o mal de outrem antes de ver o


mal que está em si. Para julgar a si mesmo, seria preciso se olhar num espelho
e, de algum modo, se transportar para fora de si e se considerar como outra
pessoa, perguntando-se: O que eu pensaria se visse alguém fazer o que eu
faço? Incontestavelmente, é o orgulho que leva o homem a dissimular para si
mesmo os seus próprios defeitos — tanto morais quanto físicos. Esse defeito é
essencialmente contrário à caridade, porque a verdadeira caridade é modesta,
simples e indulgente; a caridade orgulhosa é um contrassenso, já que esses
149 – O Evangelho segundo o Espiritismo

dois sentimentos se neutralizam um ao outro. De fato, como um homem


presunçoso o bastante para acreditar na importância da sua personalidade e
na supremacia das suas qualidades poderia ter ao mesmo tempo tanta
abnegação para fazer ressaltar em outrem o bem que poderia eclipsá-lo, em
vez do mal que poderia exaltá-lo? Se o orgulho é o pai de muitos vícios, ele é
também a negação de muitas das virtudes; ele se encontra na base e como o
motor de quase todas as ações. Foi por isso que Jesus se propôs a combatê-lo
como o principal obstáculo ao progresso.

Não julguem para não serem julgados.


Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra

11. Não julguem, a fim de não serem julgados, porque vocês serão julgados
conforme tiverem julgado os outros; e será usada com vocês a mesma medida
que vocês tiverem usado com os outros. (São Mateus, 7: 1 e 2)
12. Então os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher que havia sido
surpreendida em adultério e a fizeram ficar de pé no meio do povo; e
disseram a Jesus: Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em
adultério; ora, pela lei, Moisés nos ordena apedrejar as adúlteras. Qual é a tua
opinião sobre isso? — Eles disseram isso para tentá-lo, a fim de ter de que o
acusar. Mas Jesus, abaixando-se, escreveu com o dedo no chão. Como eles
continuaram a interrogá-lo, ele se levantou e lhes respondeu: Que aquele
dentre vocês que estiver sem pecado, atire a primeira pedra. Em seguida,
abaixando-se de novo, ele continuou a escrever no chão. Quanto a eles,
ouvindo-o falar daquele modo, retiraram-se um após o outro, os mais velhos
saindo primeiro; e assim Jesus ficou a sós com a mulher, que estava no meio
da praça.
Então Jesus, levantando-se, perguntou a ela: Mulher, onde estão os teus
acusadores? Ninguém te condenou? — Ela lhe respondeu: Não, Senhor. —
Jesus lhe retrucou: Eu também não te condenarei. Vá e no futuro não peque
mais. (São João, 8: 3 a 11)

13. “Que aquele que estiver sem pecado lhe atire a primeira pedra” — disse
Jesus. Esta máxima faz da indulgência um dever para nós, porque não há
150 – Allan Kardec

ninguém que não necessite dela para si mesmo. Ela nos ensina que não
devemos julgar os outros mais severamente do que julgamos a nós mesmos,
nem condenar nos outros aquilo que desculpamos em nós. Antes de
acusarmos um erro de alguém, vejamos se a mesma acusação não poderia
recair sobre nós.
Jogar a culpa na conduta alheia pode ter dois motivos: reprimir o mal ou
desqualificar a pessoa cujos atos estão sendo criticados; este último motivo
não tem desculpa jamais, porque é um caso de maledicência e de maldade. O
primeiro pode ser louvável, e até se torna um deve em certas situações,
porque daí deve resultar um bem e porque, sem isso, o mal nunca seria
reprimido na sociedade. Aliás, o homem não deve ajudar no progresso do seu
semelhante? Então, não poderíamos tomar em sentido absoluto este
princípio: “Não julguem, se não quiserem ser julgados”, pois a letra mata e o
espírito vivifica.
Jesus não podia proibir de culpar aquele que é o mal, já que ele mesmo
nos deu o exemplo, e o fez em termos enérgicos; mas ele quis dizer que a
autoridade da culpar está na razão da autoridade moral daquele que a
pronuncia; tornar-se culpado daquilo que condena nos outros significa
abdicar dessa autoridade; e mais ainda, é privar-se do direito de repressão.
Além disso, a consciência íntima recusa todo respeito e toda submissão
voluntária àquele que, estando investido de um poder qualquer, viola as leis e
os princípios que está encarregado de aplicar. Não há autoridade legítima
aos olhos de Deus senão aquela que se apoia no bom exemplo; é isso o que
ressalta igualmente das palavras de Jesus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Perdão das ofensas


14. Quantas vezes perdoarei o meu irmão? Não o perdoarei apenas sete vezes,
e sim setenta vezes sete. Eis uma daquelas falas de Jesus que mais devem
sensibilizar a inteligência de vocês e falar mais alto ao coração. Comparem
essas palavras de misericórdia com a oração tão simples, tão resumida e tão
151 – O Evangelho segundo o Espiritismo

grande em suas aspirações, que Jesus ensinou aos seus discípulos, e vocês
encontrarão sempre o mesmo pensamento. Jesus, o justo por excelência,
responde a Pedro: Perdoe, mas sem limites; perdoe cada ofensa quantas vezes
te ofenderem; ensine aos teus irmãos esse esquecimento de si mesmo, que o
torna invulnerável ao ataque, aos maus procedimentos e às injúrias; seja
brando e humilde de coração, não medindo jamais a tua mansuetude; faça,
enfim, o que você deseja que o Pai celestial faça a teu valor. Ele não tem
muitas vezes do que te perdoar? Será que ele conta o número de vezes que o
perdão dele desce para apagar as tuas faltas?
Ouça então essa resposta de Jesus e, como Pedro, apliquem-na a vocês
mesmos; perdoem, usem de indulgência, sejam caridosos, generosos,
pródigos até do seu amor. Doem, pois o Senhor lhes restituirá; perdoem, pois
o Senhor lhes perdoará; abaixem-se, pois o Senhor lhes elevará; sejam
humildes, pois o Senhor lhes assentará à direita dele.
Vão, meus bem-amados, estudem e comentem estas palavras que eu lhes
dirijo da parte d’Aquele que, do alto dos esplendores celestes, sempre olha
para vocês e continua com amor a tarefa ingrata que ele começou há dezoito
séculos. Então, perdoem seus irmãos, assim como vocês necessitam que os
outros lhes perdoem. Se os atos deles têm sido prejudiciais para vocês, isso é
um motivo a mais para serem indulgentes, pois o mérito do perdão é
proporcional à gravidade do mal; não haveria nenhum mérito em desculpar
os erros dos seus irmãos se eles lhes causassem apenas ferimentos leves.
Espíritas, nunca se esqueçam de que, tanto em palavras como em ações,
o perdão das injúrias não deve ser uma vã expressão. Se vocês se dizem
espíritas, então sejam espíritas; esqueçam o mal que lhes possam ter feito e
não pensem senão numa coisa: no bem que vocês possam dar em troca.
Aquele que entrou por esse caminho não deve se afastar dele nem por
pensamento, pois vocês são responsáveis pelos seus pensamentos — que
Deus conhece. Façam, portanto, que eles sejam desprovidos de todo
sentimento de rancor; Deus sabe o que existe no fundo do coração de cada
um. Feliz daquele que toda noite pode adormecer dizendo: Nada tenho
contra o meu próximo.
SIMEÃO (Bordeaux, 1862)
152 – Allan Kardec

15. Perdoar os inimigos é pedir perdão a si mesmo; perdoar os amigos é dar a


eles uma prova de amizade; perdoar as ofensas é mostrar que nos tornamos
melhor. Então, perdoem, meus amigos, a fim de que Deus lhes perdoe, porque
se vocês forem duros, exigentes, inflexíveis e se tiverem rigor até por uma
leve ofensa, como vão querer que Deus esqueça de que cada dia vocês têm
maior necessidade de indulgência? Oh, ai daquele que diz: “Não perdoarei
jamais”, pois está pronunciando a sua própria condenação. Quem sabe, aliás,
se procurando em si mesmos, vocês não encontrariam o agressor? Quem sabe
se, nessa disputa que começa com uma alfinetada e acaba por uma fratura,
não foram vocês quem deu o primeiro golpe? Se não uma palavra ofensiva
não escapou de vocês? Se deixaram de usar toda moderação necessária? Sem
dúvida, o seu adversário está errado ao se mostrar excessivamente suscetível;
mas isso é mais uma razão para vocês serem indulgentes e para não
merecerem a reprovação que vocês remetem a ele. Vamos admitir que, numa
determinada circunstância, vocês realmente tenham sido a parte ofendida;
quem disse que vocês não tenham envenenado as coisas através de
represálias, e que não transformou em uma séria querela aquilo que
facilmente poderia ter caído no esquecimento? Se dependia de vocês impedir
as consequências dessa querela e se vocês não as impediram, então vocês são
culpados. Admitamos, enfim, que vocês não tenham absolutamente nenhuma
reprovação a fazer a si mesmos: então vocês teriam ainda mais mérito em
mostrar que são clementes.
Todavia, existem duas maneiras bem diferentes de perdoar: o perdão
dos lábios e o perdão do coração. Muita gente diz do seu adversário: “Eu lhe
perdoo”, enquanto interiormente sentem um secreto prazer pelo mal que
ocorre com seu adversário, dizendo consigo que ele não tem mais do que
merece. Quantos dizem: “Eu perdoo”, e acrescentam: “mas jamais me
reconciliarei; nunca mais o verei na minha vida.” Será esse o perdão segundo
o Evangelho? Não; o verdadeiro perdão, o perdão cristão, é aquele que lança
um véu sobre o passado; esse é o único perdão que lhes será levado em conta,
pois Deus não se contenta com as aparências; ele sonda o fundo dos corações
e os mais secretos pensamentos; ninguém se impõe a ele por meio de palavras
e simulações vãs. O completo e absoluto esquecimento das ofensas é próprio
153 – O Evangelho segundo o Espiritismo

das grandes almas; o rancor é sempre sinal de baixeza e de inferioridade. Não


se esqueçam de que o verdadeiro perdão é reconhecido muito mais pelos atos
do que pelas palavras.
PAULO, apóstolo (Lyon, 1861)

A indulgência

16. Espíritas, hoje nós queremos lhes falar da indulgência, esse sentimento
tão doce e tão fraternal que todo homem deve ter para com seus irmãos, mas
do qual bem poucos fazem uso.
A indulgência não vê os defeitos alheios, ou, quando vê, evita comentá-
los e divulgá-los; ao contrário, ela os oculta, a fim de que não sejam
conhecidos senão apenas dela, e se a malevolência os descobre, a indulgencia
sempre tem uma desculpa pronta para compensá-los, isto é, uma desculpa
plausível, séria, e não daquelas que — tendo a aparência de atenuar a falta —
a evidenciam, com uma pérfida artimanha.
A indulgência jamais se ocupa com os maus atos dos outros, a menos que
seja para prestar um serviço, mas, ainda assim, ela tem o cuidado de os
atenuar tanto quanto possível. Ela não faz observações constrangedoras nem
traz censura nos lábios, mas somente conselhos e quase sempre velados.
Quando vocês lançam uma crítica, que consequência se deve tirar das suas
palavras? A de que vocês, que acusam, não fariam o que estão reprovando;
que vocês valem mais do que o culpado. Ó homens! Quando será que vocês
julgarão os seus próprios corações, seus próprios pensamentos, seus próprios
atos, sem se ocuparem com o que seus irmãos estão fazendo? Quando abrirão
os seus olhos severos apenas para si mesmos?
Desse modo, sejam severos para com vocês mesmos e indulgentes para
com os outros. Lembrem-se daquele que julga em última instância, aquele que
vê os secretos pensamentos de cada coração, aquele que consequentemente
perdoa muitas vezes os erros que vocês censuram, ou condena os erros que
vocês desculpam, porque ele conhece a causa de todos os atos; lembrem-se
também que vocês que gritam bem alto “anátema!” talvez tenham cometido
faltas mais graves.
154 – Allan Kardec

Sejam indulgentes, meus amigos, pois a indulgência atrai, acalma e


reergue, ao passo que o rigor desanima, afasta e irrita.
JOSÉ, Espírito protetor. (Bordeaux, 1863)

17. Sejam indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não
julguem com severidade a não ser as suas próprias ações e o Senhor usará de
indulgência para com vocês, assim como a tiverem usado para com os outros.
Apoiem os fortes: encorajem a perseverança deles; fortaleçam os fracos
em lhes mostrando a bondade de Deus, que leva em conta o menor
arrependimento; mostrem a todos o anjo da contrição estendendo suas asas
brancas sobre as faltas humanas e ocultando-os assim dos olhos daquele que
não pode ver o que é impuro. Compreendam todos a misericórdia infinita do
Pai de vocês e não se esqueçam nunca de lhe dizer, pelo pensamento e
sobretudo pelos atos: “Perdoe nossas ofensas, como perdoamos aos que nos
têm ofendido.” Compreendam bem o valor destas sublimes palavras; não só a
letra é admirável, mas também o ensinamento que contém.
O que vocês querem quando pedem ao Senhor o perdão para vocês? Será
que é apenas o esquecimento das ofensas? Esquecimento que lhes deixaria
sem nada? Porque se Deus se contentasse em esquecer as faltas de vocês, ele
não puniria, mas também não recompensaria. A recompensa não pode ser o
prêmio do bem que não foi feito, e tampouco do mal que tenha sido praticado,
mesmo que esse mal fosse esquecido. Ao lhe pedir perdão para as suas
transgressões, o que vocês estão pedindo é o favor de suas graças para não
caírem de novo; é a força necessária para ingressar num caminho novo,
caminho da submissão e do amor, no qual vocês poderão conciliar a
reparação com o arrependimento.
Quando perdoarem seus irmãos, não se contentem em estender o véu do
esquecimento sobre as faltas deles, pois esse véu muitas vezes é bem
transparente aos seus olhos; levem-lhes amor ao mesmo tempo que o perdão;
façam por eles o que pediriam que o Pai celestial fizesse por vocês.
Substituam a cólera que contamina pelo amor que purifica. Preguem pelo
exemplo essa caridade ativa e infatigável que Jesus lhes ensinou; preguem
como ele mesmo o fez durante todo o tempo em ele que viveu na Terra, visível
155 – O Evangelho segundo o Espiritismo

aos olhos do corpo, e como ele ainda prega sem cessar, desde que ele se
tornou visível somente aos olhos do espírito. Sigam esse modelo divino;
marchem sobre as pegadas dele; elas lhes conduzirão ao recanto de refúgio
onde encontrarão o repouso após a luta. Assim como ele, cada qual tome a sua
cruz e suba penosamente — mas corajosamente — o seu próprio calvário: lá
no cume está a glorificação.
JOÃO, bispo de Bordeaux (1862)

18. Caros amigos, sejam severos consigo e indulgentes com as fraquezas dos
outros; esta é também uma prática de santa caridade, que bem poucas
pessoas observam. Todos vocês têm más inclinações a vencer, defeitos a
corrigir e hábitos a modificar; todos vocês têm um fardo mais ou menos
pesado a carregar para subirem ao cume da montanha do progresso. Então
por que vocês são tão observadores com relação ao próximo e tão cegos com
relação a vocês mesmos? Quando deixarão de perceber nos olhos do seu
irmão o cisco que os incomoda, sem perceber nos seus próprios olhos a trave
que lhes cega e lhes faz caminhar de queda em queda? Acreditem nos seus
irmãos, os Espíritos: todo homem, orgulhoso o bastante para se achar
superior, em virtude e em mérito, em relação aos seus irmãos encarnados, é
insensato e culpado, e Deus o castigará no dia da sua justiça. O verdadeiro
caráter da caridade é a modéstia e a humildade, que consistem em não ver —
a não ser superficialmente — os defeitos alheios e para procurar valorizar o
que nele há de bom e virtuoso; pois, conquanto o coração humano seja um
abismo de corrupção, sempre existe em alguns dos seus refolhos mais
recônditos a semente de alguns bons sentimentos, a centelha vivaz da
essência espiritual.
Espiritismo, doutrina consoladora e bendita! Felizes os que te conhecem
e aproveitam os salutares ensinamentos dos Espíritos do Senhor! Para estes, o
caminho está iluminado, e ao longo de todo o trajeto eles podem ler estas
palavras que lhes indicam o meio de chegarem ao objetivo: caridade efetiva,
caridade do coração, caridade para com o próximo como para si mesmo; em
síntese, caridade para com todos e amor a Deus acima de todas as coisas,
porque o amor de Deus resume todos os deveres e porque é impossível
156 – Allan Kardec

realmente amar a Deus sem praticar a caridade, da qual ele fez uma lei para
todas as suas criaturas.
DUFÊTRE, bispo de Nevers (Bordeaux)

É permitido repreender os outros, notar as imperfeições de outrem


e divulgar o mal alheio? 29

19. Já que ninguém é perfeito, será que ninguém tem o direito de repreender
o seu próximo?
Seguramente que não, pois cada um de vocês deve trabalhar pelo
progresso de todos, e sobretudo daqueles cuja tutela lhes foi confiada; mas
isso é uma razão para fazê-lo com moderação, para uma finalidade útil, e não
— como se faz na maioria das vezes — pelo prazer de denegrir. Neste último
caso, a repreensão é uma maldade; no primeiro caso, é um dever que a
caridade manda cumprir com todas as precauções possíveis; e ainda assim, a
acusação que lançarmos a outrem devemos ao mesmo tempo dirigir a nós
mesmos, perguntando-nos também se não a merecemos.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

20. Será repreensível observarmos as imperfeições dos outros, quando daí


não possa resultar nenhum proveito para eles, e mesmo que não as
divulguemos?
Tudo depende da intenção; certamente não é proibido que enxergar o
mal, quando o mal existe; seria até inconveniente ver em toda parte somente
o bem, pois essa ilusão prejudicaria o progresso. O erro está em transformar
essa observação em prejuízo para o próximo, desqualificando-o sem
necessidade perante a opinião pública. Seria também repreensível fazer isso
apenas por prazer pessoal com um sentimento de malevolência e de
satisfação em pegarmos os outros em falta. Ocorre completamente o contrário
quando, lançando um véu sobre o mal ante o público, nós nos limitamos a

29 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
157 – O Evangelho segundo o Espiritismo

observá-lo para um proveito pessoal, ou seja, para estudar e evitar aquilo que
censuramos nos outros. Essa observação, aliás, não é proveitosa ao moralista?
Como ele pintaria os defeitos da humanidade, se não estudasse os modelos?
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

21. Existem casos em que seja útil revelar o mal alheio?


Esta questão é muito delicada, e é aqui que devemos fazer um apelo à
caridade bem compreendida. Se as imperfeições de uma pessoa não
prejudicam senão a ela mesma, jamais haverá utilidade em torná-la
conhecida; mas se elas podem levar prejuízo aos outros, deve-se preferir o
interesse do maior número ao interesse de um só. De acordo com as
circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, pois
é melhor que um homem caia do que muitos se enganarem e se tornarem suas
vítimas. Em semelhante caso, é preciso pesar a soma das vantagens e das
inconveniências.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
158 – Allan Kardec

CAPÍTULO XI

AMAR O PRÓXIMO
COMO A SI MESMO
O maior mandamento. Fazer aos outros o que gostaríamos que os
outros nos fizessem. Parábola dos credores e dos devedores
– Dar a César o que é de César – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A lei de
amor – O egoísmo – A fé e a caridade – Caridade para com os
criminosos – Devemos expor a vida por um malfeitor?

O maior mandamento.
Fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem.
Parábola dos credores e dos devedores
1. Os fariseus, tendo ouvido que ele havia calado a boca dos saduceus,
reuniram-se em assembleia; então, um deles, que era doutor da lei, veio lhe
fazer esta pergunta, para tentá-lo: Mestre, qual é o maior mandamento da lei?
— Jesus lhe respondeu: Ame o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a
tua alma e de todo o teu espírito; este é o maior e o primeiro mandamento. E
aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Ame o teu próximo como
a ti mesmo. Toda a lei e os profetas estão contidos nesses dois mandamentos.
(São Mateus, 22: 34 a 40)

2. Façam aos homens o que vocês gostariam que eles lhes fizessem, pois esta
é a lei e os profetas. (São Mateus, 7: 12)
Tratem todos os homens da mesma maneira como vocês gostariam que
eles lhes tratassem. (São Lucas, 6: 31)

3. O reino dos céus é semelhante a um rei que queria pedir contas aos seus
servos, e tendo começado a fazer isso, apresentou-se ao rei um dos servos
159 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que lhe devia dez mil talentos. Mas como ele não tinha recursos para pagar,
seu senhor mandou que o vendessem, ele, sua mulher, seus filhos e tudo o
que ele possuía, para quitar aquela dívida. O servo, lançando-se aos pés do
rei, o implorou, dizendo-lhe: Senhor, tenha um pouco de paciência e eu te
pagarei tudo.” — Então o senhor daquele servo, ficando tocado de compaixão,
o deixou ir e lhe perdoou a dívida. Mas esse servo, mal saindo dali, encontrou
um de seus companheiros, que lhe devia cem denários, e o segurou pelo
pescoço, quase estrangulando-o, lhe dizendo: Pague-me o que você me deve.
— E o seu companheiro, lançando-se aos seus pés, o implorou, dizendo:
Tenha um pouco de paciência e eu te pagarei tudo. — Mas ele não quis
escutá-lo, foi-se e mandou prendê-lo, para ali ficar até que ele pagasse o que
lhe devia.
Os outros servos, seus companheiros, vendo o que se passava, ficaram
extremamente sensibilizados e informaram o seu senhor de tudo o que havia
acontecido. Então o senhor, tendo mandado trazê-lo, disse-lhe: Servo
malvado, eu tinha perdoado tudo o que me você devia, porque me pediste;
então, não era para você também ter piedade do teu companheiro, como eu
tive piedade de você? — E o seu senhor, tomado de cólera, o entregou nas
mãos dos carrascos, até que ele pagasse tudo o que devia.
Será dessa forma que meu Pai que está no céu lhes tratará, se cada um
de vocês não perdoar, do fundo do seu coração, as faltas que seus irmãos
tiverem cometido contra vocês. (São Mateus, 18: 23 a 35)

4. “Amar o próximo como a si mesmo; fazer pelos outros o que gostaríamos


que os outros fizessem por nós” é a expressão mais completa da caridade,
pois ela resume todos os deveres para com o próximo. Não podemos ter um
guia mais seguro a esse respeito do que tomando como medida o que
devemos fazer aos outros aquilo que desejamos para nós mesmos. Com que
direito podemos exigir dos nossos semelhantes um comportamento melhor,
mais indulgência, mais benevolência e mais devotamento do que nós temos
para com eles? A prática desses preceitos tende à destruição do egoísmo;
quando os homens os acatarem como regra de sua conduta e como base de
suas instituições, então eles compreenderão a verdadeira fraternidade e farão
reinar entre eles a paz e a justiça; não mais haverá nem ódios nem dissensões,
mas sim união, concórdia e benevolência mútua.
160 – Allan Kardec

Dar a César o que é de César


5. Então os fariseus, retirando-se, planejaram entre si surpreendê-lo com
suas próprias palavras. Assim, enviaram-lhe seus discípulos junto com
herodianos, para lhe dizer: Mestre, sabemos que o senhor é verdadeiro e que
está ensinando o caminho de Deus pela verdade, sem se preocupar com quem
quer que seja, porque não faz diferença com ninguém entre os homens; diga-
nos, pois, a tua opinião sobre isso: Nós estamos livres de pagar tributo a
César, ou de não o pagar?
Mas Jesus, conhecendo a malícia deles, respondeu-lhes: Hipócritas, por
que me tentam? Mostrem-me um moeda que se dá como tributo. E quando
eles lhe apresentaram um denário, Jesus lhes perguntou: De quem é esta
imagem e esta inscrição? — De César, eles lhe disseram. Então Jesus lhes
respondeu: Então, deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Ouvindo-o falar dessa maneira, eles ficaram admirados com a resposta
de Jesus e, deixando-o, eles se retiraram. (São Mateus, 22: 15 a 22; são
Marcos, 12: 13 a 17)

6. A questão proposta a Jesus era motivada por aquela circunstância em que


os judeus, tendo horror ao tributo que lhes era cobrado pelos romanos,
tinham feito disso uma questão religiosa; um partido numeroso havia sido
formado para rejeitar o imposto; portanto, o pagamento do tributo era para
eles uma questão irritante da atualidade, sem o que, não faria nenhum sentido
a pergunta feita a Jesus: “Estamos livres de pagar ou não pagar o tributo a
César?” Essa pergunta uma armadilha, porque, conforme a resposta de Jesus,
os fariseus esperavam excitar contra ele ou a autoridade romana ou os judeus
dissidentes. Porém, “Jesus, conhecendo a malícia deles”, contornou a
dificuldade ao lhes dar uma lição de justiça e ao dizer que a cada um seja dado
o que lhe é devido. (Veja na Introdução, o item Publicanos.)

7. Esta máxima “Deem a César o que é de César” não deve ser entendida de
uma maneira restritiva e absoluta. Como todos os ensinos de Jesus, trata-se de
um princípio geral, resumido sob uma forma prática e usual, e deduzido de
uma circunstância particular. Esse princípio é uma consequência daquele que
diz para agirmos com os outros como gostaríamos que os outros agissem para
161 – O Evangelho segundo o Espiritismo

conosco; ele condena todo prejuízo material e moral que se possa causar a
outro alguém e toda violação de seus interesses; ele recomenda o respeito aos
direitos de cada um, como cada um deseja que se respeite os seus; ele se
estende até o cumprimento dos deveres contraídos para com a família, a
sociedade, a autoridade, assim também para com os indivíduos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A lei de amor
8. O amor resume toda a doutrina de Jesus, porque esse é o sentimento por
excelência, e os sentimentos são os instintos elevados à altura do progresso
realizado. No seu ponto de partida, o homem só tem instintos; quanto mais
avançado e corrompido, ele não tem nada além de sensações; mais instruído e
purificado, ele tem sentimentos. E o ponto requintado do sentimento é o
amor; não o amor no sentido vulgar da palavra, mas esse sol interior que
condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e todas as
revelações sobre-humanas. A lei de amor substitui a personalidade pela
integração dos seres; ela aniquila as misérias sociais. Feliz aquele que,
ultrapassando a sua humanidade, ama com um amplo amor os seus irmãos
em sofrimento! Feliz aquele que ama, porque não conhece nem a aflição da
alma nem a do corpo; seus pés são ágeis e ele vive como que transportado
para fora de si mesmo. Quando Jesus pronunciou essa palavra divina de amor,
essa palavra fez os povos estremeceram e os mártires, ébrios de esperança,
desceram ao espetáculo.
O espiritismo, por sua vez, vem pronunciar uma segunda palavra do
alfabeto divino; fiquem atentos, pois essa palavra ergue a lápide dos túmulos
vazios, e a reencarnação, triunfando sobre a morte, revela ao homem
deslumbrado o seu patrimônio intelectual. Já não é ao suplício que ela o
conduz, mas à conquista do seu ser, elevado e transfigurado. O sangue
resgatou o Espírito e hoje o Espírito deve resgatar o homem da matéria.
Eu disse que o homem, na sua origem, só tem instintos; portanto, aquele
em quem os instintos predominam está mais perto do ponto de partida do
162 – Allan Kardec

que do objetivo. Para avançar rumo ao objetivo, é preciso superar os instintos


em favor dos sentimentos, quer dizer, aperfeiçoar os sentimentos sufocando
os germes latentes da matéria. Os instintos são a germinação e os embriões do
sentimento; eles trazem consigo o progresso, como a bolota traz em si o
carvalho, e os seres menos avançados são os que, só se despojando de suas
crisálidas pouco a pouco, permanecem servis aos seus instintos. O Espírito
deve ser cultivado como um campo; toda a riqueza futura depende do labor
atual, e muito mais que os bens terrenos, ele lhes levará até a elevação
gloriosa. É então que, compreendendo a lei de amor que une todos os seres,
vocês nela buscarão as suaves alegrias da alma, que são o prelúdio das
alegrias celestes.
LÁZARO (Paris, 1862)

9. O amor é de uma essência divina, e vocês — desde o primeiro até o último


— possuem no fundo do coração a centelha desse fogo sagrado. Esse é um
fato que vocês já puderam constatar muitas vezes: por mais que o homem seja
abjeto, vil e criminoso, ele tem uma afeição viva e ardente por um ser ou por
um objeto qualquer, à prova de tudo quanto tendesse a diminuí essa afeição, e
frequentemente alcançando proporções sublimes.
Eu disse: por um ser ou por um objeto qualquer, porque entre vocês
existem indivíduos que gastam tesouros de amor, do qual seus corações estão
transbordados, em favor dos animais, das plantas e até de objetos materiais:
espécies de misantropos que se queixam da humanidade em geral e se
endurecendo contra a inclinação natural da alma, que busca em torno de si a
afeição e a simpatia; eles rebaixam a lei de amor ao estado de instinto.
Contudo, por mais que façam, eles não conseguem sufocar o germe vivaz que
Deus depositou no coração quando eles foram criados; essa semente se
desenvolve e cresce com a moralidade e a inteligência, e conquanto muitas
vezes oprimido pelo egoísmo, ela é a fonte de santas e doces virtudes que
tornam as afeições sinceras e duráveis, e que ajudam vocês a transpor o
caminho escarpado e árido da existência humana.
Existem algumas pessoas para quem a prova da reencarnação causa
repugnância, só pelo fato de que outros indivíduos compartilham das
163 – O Evangelho segundo o Espiritismo

simpatias afetuosas das quais elas têm ciúmes. Pobres irmãos! É a sua própria
afeição que lhes torna egoístas; o amor de vocês está restrito a um círculo
íntimo de parentes e de amigos, e todos os demais são indiferentes para
vocês. Pois bem! Para praticar a lei de amor tal como Deus a entende, é
preciso que vocês cheguem gradualmente a amar a todos os seus irmãos
indistintamente. A tarefa será longa e difícil, mas ela se realizará: Deus quer
assim e a lei de amor é o primeiro e o mais importante preceito da sua nova
doutrina, porque é ela que um dia deverá matar o egoísmo, seja qual for a
forma sob a qual ele se apresente, uma vez que, além do egoísmo pessoal, há
ainda o egoísmo de família, de casta, de nacionalidade etc. Jesus disse: “Amem
o próximo como a vocês mesmos”; ora, qual é o limite para o próximo? Seria a
família, a seita, a nação? Não; é a humanidade inteira. Nos mundos superiores,
é o amor mútuo que harmoniza e dirige os Espíritos avançados que os
habitam, e este seu planeta, destinado a um progresso que se aproxima,
através da sua transformação social, verá seus habitantes praticarem essa lei
sublime, reflexo da Divindade.
Os efeitos da lei de amor são o melhoramento moral da raça humana e a
felicidade durante a vida terrestre. Os mais rebeldes e os mais viciosos
deverão se reformar quando virem os benefícios produzidos por esta prática:
Não façam aos outros o que vocês não gostariam que os outros lhes fizessem;
mas, ao contrário, façam todo o bem que vocês puderem fazer por eles.
Não creiam na esterilidade e no endurecimento do coração humano;
mesmo a contragosto, ele cede ao amor verdadeiro; é um ímã ao qual ele não
consegue resistir, e o contato desse amor vivifica e fecunda as sementes dessa
virtude, que está em seus corações em estado latente. A Terra, instância de
provações e de exílio, será então purificada por esse fogo sagrado e verá se
praticar a caridade, a humildade, a paciência, o devotamento, a abnegação, a
resignação e o sacrifício, que são virtudes filhas do amor. Então, não se
cansem de escutar as palavras de João, o Evangelista; como vocês sabem,
quando a enfermidade e a velhice dele suspenderam o curso de suas
pregações, ele apenas repetia estas doces palavras: “Meus filhinhos, amem-se
uns aos outros.”
Caros irmãos amados, aproveitem essas lições; a sua prática é difícil, mas
164 – Allan Kardec

a alma retira delas um bem imenso. Creiam em mim, façam o sublime esforço
que lhes peço: “Amem-se”, e em breve vocês verão a Terra modificada,
tornando-se o Elísio30 onde as almas dos justos virão desfrutar do repouso.
FÉNELON (Bordeaux, 1861)

10. Meus caros condiscípulos, os Espíritos aqui presentes lhes dizem por meio
da minha voz: Amem bastante, a fim de serem amados. Esse pensamento é tão
justo que vocês encontrarão nele tudo o que consola e acalma os sofrimentos
de cada dia; ou melhor: praticando esse sábio preceito, vocês vão se elevar tão
acima da matéria que se espiritualizarão antes do seu desprendimento
terrestre. Tendo os estudos espíritas desenvolvido em vocês a compreensão
do futuro, vocês têm uma certeza: a do avanço rumo a Deus, com todas as
promessas que correspondem às aspirações da alma; assim, vocês devem se
elevar alto o suficiente para poderem julgar sem as pressões da matéria, e não
condenar o próximo, antes de ter dirigido o pensamento a Deus.
Amar, no sentido profundo do termo, é ser leal, probo e consciencioso
para fazer aos outros aquilo que se desejaria para si mesmo; é procurar em
torno de si o significado íntimo de todas as dores que acabrunham os irmãos,
para lhes levar um alívio; é olhar a grande família humana como a sua, porque
essa família vocês a encontrarão num certo período, em mundos mais
adiantados, e que os Espíritos que a compõem são — como vocês — filhos de
Deus, marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que vocês
não podem recusar aos seus irmãos o que Deus generosamente lhes dá,
porque, da parte de vocês, eu sei que ficariam muito felizes se seus irmãos
lhes dessem aquilo de que necessitam. Para todos os sofrimentos, então,
levem sempre uma palavra de esperança e de apoio, para que sejam todo
amor, todo justiça.
Creiam que este sábio preceito “Amem bastante, para serem amados”
seguirá o seu caminho; ele é revolucionário e segue a rota que é fixa e
invariável. Mas vocês já venceram, vocês que me escutam; vocês são
infinitamente melhores do que eram há cem anos; já se modificaram tanto
para melhor que já aceitam sem contestação um monte de ideias novas sobre
30 Elísio: referência à mansão dos heróis e dos justos, segundo a mitologia greco-romana. N. T.
165 – O Evangelho segundo o Espiritismo

a liberdade e a fraternidade que antes teriam rejeitado. Ora, daqui a cem anos,
vocês aceitarão com a mesma facilidade as ideias que ainda não puderam
entrar no seu cérebro.
Hoje, que o movimento espírita tem dado um grande passo, vejam com
que rapidez as ideias de justiça e renovação contidas nos ditados dos
Espíritos são aceitas pela parte mediana do mundo inteligente; é que essas
ideias correspondem a tudo o que há de divino em vocês; é que vocês já estão
preparados para uma sementeira fecunda: a do último século, que implantou
no seio da sociedade as grandes ideias de progresso; e como tudo se encadeia
sob a direção do Altíssimo, todas as lições recebidas e aceitas estarão contidas
nessa troca universal de amor ao próximo; por ele, os Espíritos encarnados,
julgando melhor e sentindo melhor, se estenderão as mãos desde os confins
deste planeta; todos vão se reunir para se entenderem e se amarem, para
destruir todas as injustiças e todas as causas de desentendimentos entre os
povos.
Grande pensamento de renovação pelo espiritismo, tão bem descrito em
O Livro dos Espíritos, você produzirá o grande milagre do século vindouro: o
milagre de união de todos os interesses materiais e espirituais do homem,
pela aplicação deste preceito bem compreendido: Amem bastante, para serem
amados.
SANSON, antigo da Sociedade Espírita de Paris (1863)

O egoísmo

11. O egoísmo — esta chaga da humanidade — deve desaparecer da Terra, da


qual ele impede o progresso moral, e é ao espiritismo que está reservada a
tarefa de fazer a Terra elevar-se na hierarquia dos mundos. O egoísmo é, pois,
o alvo para o qual todos os verdadeiros crentes devem apontar suas armas,
sua força e sua coragem; eu digo: sua coragem, porque é preciso mais
coragem para vencer a si mesmo do que para vencer os outros. Então, que
cada um concentre todos os seus esforços em combater o próprio egoísmo,
pois esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do orgulho é
166 – Allan Kardec

a fonte de todas as misérias deste mundo. Ele é a negação da caridade e, por


conseguinte, o maior obstáculo à felicidade humana.
Jesus lhes deu o exemplo da caridade e Pôncio Pilatos deu o exemplo do
egoísmo, pois enquanto o Justo vai percorrer as santas estações de seu
martírio, Pilatos lava as mãos, dizendo: Que me importa?! E diz aos judeus:
Este homem é justo; por que querem crucificá-lo? — e mesmo assim, ele
permite que o conduzam ao suplício.
É a esse antagonismo entre a caridade e o egoísmo, e à invasão dessa
lepra do coração humano que o cristianismo deve o fato de ainda não ter
cumprido toda a sua missão. Cabe a vocês, novos apóstolos da fé a quem os
Espíritos superiores esclarecem, a empreitada e o dever de extirpar esse mal,
para dar ao cristianismo toda a sua força e desobstruir a rota dos obstáculos
que entravam a sua marcha. Afastem o egoísmo da Terra, para que ela possa
gravitar na escala dos mundos, pois já é tempo de a humanidade vestir seu
manto viril, e para isso é preciso primeiro expulsar o egoísmo do coração de
vocês.
EMMANUEL (Paris, 1861)

12. Se os homens se amassem com um amor recíproco, a caridade seria mais


bem praticada; mas, para isso, seria preciso que vocês se esforçassem para se
livrar dessa couraça que cobre seus corações, a fim de se tornarem mais
sensíveis com aqueles que sofrem. A rigidez mata os bons sentimentos; o
Cristo não se desanimava, pois quem se dirigisse a ele, seja quem fosse, jamais
era rejeitado: a mulher adúltera, o criminoso, todos eram socorridos por ele;
Jesus nunca temeu que a sua reputação pudesse sofrer com isso. Portanto,
quando é que vocês vão tomar o Cristo como modelo de todas as suas ações?
Se a caridade reinasse na Terra, o ímpio não mais teria influência; ele
fugiria envergonhado e se esconderia, porque em toda parte se sentiria
deslocado. Aí então a maldade desapareceria, estejam bem certos disso.
Comecem a dar o exemplo por vocês mesmos; sejam caridosos para com
todos, indistintamente; esforcem-se para não notar aqueles que olham para
vocês com desdém, e deixem a Deus o cuidado de toda a justiça, pois a cada
dia, em seu reino, ele separa o joio do trigo.
167 – O Evangelho segundo o Espiritismo

O egoísmo é a negação da caridade; ora, sem a caridade não existe


tranquilidade na sociedade humana; eu digo mais: não existe segurança. Com
o egoísmo e o orgulho, que se dão as mãos, será sempre uma corrida para os
mais espertos, uma luta de interesses em que as mais santas afeições são
pisoteadas e os laços sagrados da família nem sequer são respeitados.
PASCAL (Sens, 1862)

A fé e a caridade
13. Eu lhes disse anteriormente, meus caros filhos, que a caridade sem a fé
não era suficiente para manter entre os homens uma ordem social capaz de os
tornar felizes. Eu deveria ter dito que a caridade é impossível sem a fé. Vocês
poderão, é verdade, até encontrar impulsos generosos ainda que em pessoas
sem religião; mas essa caridade austera que só pode ser exercida com a
abnegação e com um sacrifício constante de todo interesse egoísta, somente a
fé pode inspirá-la, porque só ela nos faz carregar com coragem e
perseverança a cruz desta vida.
Sim, meus filhos, é em vão que o homem ávido de prazeres queira se
iludir sobre a sua destinação aqui na Terra, achando que lhe seja permitido se
ocupar unicamente com a própria felicidade. É certo que Deus nos criou para
sermos felizes na eternidade; no entanto, a vida terrena deve servir apenas
para o nosso aperfeiçoamento moral, o qual se adquire mais facilmente com a
ajuda dos órgãos físicos e do mundo material. Sem contar as vicissitudes
comuns da vida, a diversidade dos gostos de vocês — assim como os seus
pendores e as suas necessidades — também é um meio de vocês se
aperfeiçoarem, exercitando a caridade. Pois, somente à custa de concessões e
de sacrifícios mútuos é que vocês podem manter a harmonia entre elementos
tão diversos.
Entretanto, vocês têm razão em afirmar que a felicidade está destinada
ao homem aqui neste mundo — desde que vocês a procurem não nos
prazeres materiais, mas na bondade. A história da cristandade fala de
mártires que caminharam para o suplício com alegria; hoje, e na sociedade de
vocês, para ser um cristão não é preciso nem o holocausto do martírio nem o
168 – Allan Kardec

sacrifício da vida, mas única e simplesmente o sacrifício do seu próprio


egoísmo, do seu próprio orgulho e da sua própria vaidade. Vocês triunfarão —
se a caridade lhes inspirar e se a fé lhes sustentar.
ESPÍRITO PROTETOR (Cracóvia, 1861)

Caridade para com os criminosos


14. A verdadeira caridade é um dos mais sublimes ensinamentos que Deus
tem dado ao mundo. Deve existir entre os autênticos discípulos da sua
doutrina uma fraternidade completa. Vocês devem amar os infelizes, os
criminosos, como criaturas de Deus, às quais o perdão e a misericórdia serão
concedidos se eles se arrependerem, como a vocês mesmos, pelas faltas que
cometem contra a lei divina. Considerem-se mais repreensíveis, mais
culpados do que aqueles a quem vocês recusam o perdão e a comiseração,
pois muitas vezes eles não conhecem Deus como vocês o conhecem; então
eles serão menos cobrados do que vocês.
Não julguem! Oh, meus caros amigos, não julguem! Pois o julgamento
que vocês usarem será aplicado ainda mais severamente a vocês, e vocês
precisam de indulgência para os pecados que cometem sem cessar. Por acaso
não sabem que há muitas ações que são crimes aos olhos do Deus de pureza e
que o mundo nem sequer considera como faltas leves?
A verdadeira caridade não consiste somente na esmola que vocês dão,
nem mesmo nas palavras de consolação que com as quais vocês podem
acompanhá-la; não, não é apenas isso o que Deus exige de vocês. A caridade
sublime ensinada por Jesus consiste também na benevolência concedida
sempre e em todas as coisas para com o próximo. Vocês ainda podem exercer
essa sublime virtude com as pessoas que não têm nenhuma necessidade de
esmolas, mas a quem algumas palavras de amor, de consolação e de
encorajamento conduzirão ao Senhor.
A hora está próxima, eu lhes digo de novo, em que a grande fraternidade
reinará nesse globo; a lei do Cristo é aquela que governará os homens:
somente ela será o freio e a esperança, ela conduzirá as almas às moradas
bem-aventuradas. Amem-se, portanto, como filhos de um mesmo Pai; não
169 – O Evangelho segundo o Espiritismo

façam diferença entre os outros infelizes, pois é Deus quem deseja que todos
sejam iguais; então não desprezem ninguém; Deus permite que grandes
criminosos estejam entre vocês para que eles lhes sirvam de ensinamento. Em
breve, quando os homens estiverem submetidos às verdadeiras leis de Deus,
não haverá mais necessidade desses ensinamentos, e todos os Espíritos
impuros e revoltados serão banidos para mundos inferiores, de acordo
com as suas tendências.
Vocês devem o socorro das suas preces àquele de quem falo: essa é a
verdadeira caridade. Não se deve falar de um criminoso: “Isso é um miserável;
é preciso expurgar a Terra de gente assim; a morte que lhe é infligida é muito
branda para um ser dessa espécie.” Não, não é assim que vocês devem falar.
Observem o modelo para vocês: Jesus; o que ele diria se visse esse infeliz
perto dele? Teria pena dele, iria considerá-lo como um enfermo muito infeliz
e lhe estenderia a mão. Vocês não podem fazer o mesmo, na realidade, mas
pelo menos vocês podem orar por ele, ajudar o Espírito dele durante alguns
instantes que ele ainda deva passar nesta Terra. O arrependimento pode tocar
seu coração, se vocês orarem com fé. Ele é seu próximo tanto quanto o melhor
dos homens; sua alma, transviada e rebelde, foi criada como a de vocês, para
se aperfeiçoar; então, ajudem-no a sair do lamaçal e orem por ele.
ELIZABETH DE FRANÇA (Le Havre, 1862)

Devemos expor a vida por um malfeitor? 31

15. Um homem está em perigo de morte; para salvá-lo, alguém precisa expor a
própria vida; porém, sabe-se que aquele homem é um malfeitor e que, se ele
escapar, poderá cometer novos crimes. Apesar disso, deve-se arriscar para
salvá-lo?
Esta é uma questão muito grave e que de fato pode surgir na nossa
mente. Eu responderei conforme o meu adiantamento moral, pois nesse
ponto, estamos diante do fato de sabermos se alguém deve expor sua própria

31 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
170 – Allan Kardec

vida por um malfeitor. O devotamento é cego: socorremos um inimigo; então,


devemos socorrer o inimigo da sociedade — numa palavra, a um malfeitor.
Vocês acham que é somente da morte que esse infeliz seja resgatado? Talvez,
seja de toda a sua vida passada. Imaginem, pois, que nos rápidos instantes em
que lhe tiramos os derradeiros minutos de vida, o homem perdido volta ao
seu passado, ou melhor, ela se ergue diante dele. A morte, quem sabe, esteja
chegando cedo demais para ele e a sua reencarnação poderá ser terrível.
Então, lancem-se, homens! Vocês, a quem a ciência espírita já esclareceu;
lancem-se, resgatem-no da perdição e, possivelmente, esse homem — que
teria morrido blasfemando vocês — se jogará nos seus braços. Todavia, vocês
não precisam indagar se fará ou não fará isso; mas vão em socorro dele,
porque, salvando-o, vocês estão obedecendo àquela voz do coração que lhes
diz: “Podem salvá-lo, salvem-no!”
LAMENNAIS (Paris, 1862)
171 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XII

AMEM SEUS INIMIGOS


Retribuir o mal com o bem – Os inimigos desencarnados – Se alguém
lhes bater na face direita, apresentem-lhe também a outra –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A vingança – O ódio – O duelo

Retribuir o mal com o bem


1. Vocês ouviram o que foi dito: Amem o seu próximo e odeiem os seus
inimigos. Eu, porém, lhes digo: Amem seus inimigos; façam o bem aos que
lhes odeiam e orem por aqueles que lhes perseguem e lhes caluniam, a fim
de vocês sejam os filhos do seu Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol
para os bons e para os maus, e que faz chover sobre os justos e os injustos;
pois, se vocês só amarem os que lhes amam, que recompensa terão com isso?
Os publicanos também não fazem o mesmo? E se vocês não saudarem
ninguém além dos seus irmãos, o que é vocês estarão fazendo com isso mais
do que os outros? Os pagãos não fazem a mesma coisa? Eu lhes digo que se a
sua justiça não for mais abundante do que a dos escribas e dos fariseus, vocês
não entrarão no reino dos céus. (São Mateus, 5: 43 a 47 e 20)

2. Se vocês não amarem ninguém além daqueles que lhes amam, que mérito
terão por isso, já que as pessoas de má vida também amam aqueles que as
amam? E se vocês fizerem o bem somente aos que lhes fazem bem, que
mérito terão com isso, já que as pessoas de má vida fazem a mesma coisa? E
se vocês só emprestarem àqueles de quem esperam receber o mesmo favor,
que mérito terão com isso, já que as pessoas de má vida emprestam umas às
outras da maneira forma, para receber a mesma vantagem? Mas, para vocês,
amem seus inimigos, façam o bem a todos e emprestai sem nada esperar;
e dessa forma a recompensa de vocês será grandíssima, e vocês serão os
filhos do Altíssimo, porque ele é bom para os ingratos e até mesmo para os
172 – Allan Kardec

ímpios. Portanto, sejam plenos de misericórdia, como seu Deus é pleno de


misericórdia. (São Lucas, 6: 32 a 36)

3. Se o amor ao próximo representa o princípio da caridade, amar os inimigos


é a sua sublime aplicação, pois essa virtude é uma das maiores vitórias
conquistadas contra o egoísmo e o orgulho.
Contudo, geralmente nos confundimos quanto ao significado da palavra
amar nesta circunstância. Jesus não quis dizer, com essas palavras, que
devemos ter para com o inimigo a mesma ternura que temos por um irmão ou
por um amigo, porque ternura pressupõe confiança; ora, não podemos ter
confiança numa pessoa sabendo que ela nos quer mal, nem ter para com ela
manifestações de amizade, porque sabemos que ela pode abusar dessa
amizade. Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não pode haver as
mesmas relações de simpatia que existem entre aquelas que estão em
comunhão de pensamentos. Enfim, não podemos sentir a mesma satisfação
em estar com um inimigo igual à satisfação de estar com um amigo.
Esse sentimento resulta inclusive de uma lei física: a de atração e de
repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo dirige uma corrente fluídica
cuja impressão é penosa; já o pensamento benevolente nos envolve num
eflúvio agradável; daí a diferença das sensações que experimentamos desde a
aproximação de um amigo ou de um inimigo. Amar os inimigos, portanto, não
pode significar que não devamos fazer diferença alguma entre estes e os
amigos; esse preceito só parece complicado — e até mesmo impossível de ser
praticado — porque algumas pessoas acham erradamente que ele recomenda
dar a todos eles o mesmo lugar no coração. Se a pobreza da linguagem
humana nos obriga a usarmos da mesma palavra para expressarmos diversos
graus de um sentimento, a racionalidade deve estabelecer a diferença de
acordo com cada caso.
Amar os inimigos não significa, portanto, ter por eles uma afeição que
não está na natureza, pois o contato de um inimigo faz bater o coração de um
modo totalmente diferente do contato de um amigo; significa não ter contra
eles nem ódio, nem rancor e nem desejo de vingança; significa perdoá-los sem
hesitação e sem condicionamentos pelo mal que eles nos fazem; significa
173 – O Evangelho segundo o Espiritismo

não colocar nenhum obstáculo à reconciliação; significa lhes desejar o bem,


em vez de lhes desejar o mal; significa se alegrar, em vez de se afligir, quando
lhes ocorre algo de bom; significa lhes estender uma mão de socorro, em caso
de necessidade; significa se abster em palavras e em atos de tudo que os
possa prejudicar; significa, finalmente, restituir-lhes todo o mal com o bem,
sem intenção de os humilhar. Quem faz isso cumpre as condições do
mandamento: Amem os inimigos.

4. Amar os inimigos é um contrassenso para o incrédulo; aquele para quem a


vida atual significa tudo não vê no seu inimigo nada além de um ser nocivo
perturbando seu repouso e do qual ele acha que só a morte pode livrá-lo; daí
vem o desejo de vingança; ele não tem nenhum interesse em perdoar, senão
para satisfazer o seu orgulho aos olhos do mundo. Em certos casos, perdoar
parece-lhe inclusive uma fraqueza indigna de si; quando ele não se vingar,
nem por isso deixa de conservar rancor e um secreto desejo de mal.
Para o crente, e sobretudo para o espírita, a maneira de ver é totalmente
diferente, porque ele lança seu olhar sobre o passado e sobre o futuro, entre
os quais a vida presente não passa de um ponto; ele sabe que, pela própria
condição da Terra, nela ele deve esperar encontrar homens maus e perversos;
que as maldades com as quais ele está em luta fazem parte das provas que ele
deve suportar, e o ponto de vista elevado em que ele se encontra torna as
dificuldades menos amargas — que elas venha dos homens ou das coisas. Se
ele não se queixa das provações, também não deve se queixar daqueles
que são os instrumentos das provações; se ele, em vez de murmurar,
agradece a Deus por pô-lo à prova, também deve agradecer a mão que lhe
oferece a ocasião de demonstrar a sua paciência e a sua resignação. Esse
pensamento o dispõe naturalmente ao perdão; ele sente, além disso, que
quanto mais for generoso, mais ele se engrandece aos seus próprios olhos e se
coloca fora do alcance das flechas maléficas do seu inimigo.
O homem que ocupa uma posição elevada no mundo não se julga
ofendido pelos insultos daquele que ele considera como seu inferior; assim se
dá com aquele que no mundo moral se eleva acima da humanidade material,
pois ele compreende que o ódio e o rancor o prejudicariam e o rebaixariam.
174 – Allan Kardec

Ora, para ser superior ao seu adversário, é preciso que ele tenha a alma maior,
mais nobre e mais generosa.

Os inimigos desencarnados

5. O espírita tem ainda outros motivos para ser indulgente com os seus
inimigos. Ele sabe, primeiramente, que a maldade não é um estado
permanente dos homens; sabe que ela se deve a uma imperfeição
momentânea e que, assim como a criança se corrige dos seus defeitos, o
homem um dia mau reconhecerá seus erros e se tornará bom.
O espírita sabe também que a morte o livra apenas da presença material
do seu inimigo, mas que este pode persegui-lo com o seu ódio, mesmo após
ter deixado a Terra; sabe que, nessa condição, a vingança fracassa em seu
objetivo, já que, ao contrário, ela tem por efeito produzir uma irritação maior
que pode continuar de uma existência para outra. Cabia ao espiritismo provar
— pela experiência e pela lei que rege as relações entre o mundo visível e o
mundo invisível — que a expressão: extinguir o ódio com o sangue, é
radicalmente falsa, e que o é que verdadeiro é que o sangue alimenta o ódio,
mesmo no além-túmulo. Consequentemente, também cabia ao espiritismo dar
uma razão de ser efetiva e uma utilidade prática ao perdão e àquele sublime
ensinamento do Cristo: Amem seus inimigos. Não há coração tão perverso
que não seja tocado pelo bom procedimento — mesmo sem se dar conta.
Através do bom procedimento, pelo menos nós removemos todo pretexto
para as represálias, porque, de um inimigo, podemos fazer um amigo, antes e
depois de sua morte. Já com um mau procedimento, a pessoa irrita o seu
inimigo, que então serve de instrumento à justiça de Deus para punir
aquele que não perdoou.

6. Podemos, pois, ter inimigos entre os encarnados e entre os desencarnados;


os inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas obsessões
e subjugações, contra as quais tanta gente estão lutando, e que representam
uma variedade das provações da vida; essas provações, como as demais,
contribuem para o progresso e devem ser aceitas com resignação, além de ser
175 – O Evangelho segundo o Espiritismo

uma consequência da natureza inferior do globo terrestre; se não houvesse


homens maus na Terra, não haveria maus Espíritos em torno dela. Portanto,
se devemos ter indulgência e benevolência com os inimigos encarnados,
igualmente devemos ter com aqueles que estão desencarnados.
Antigamente, sacrificava-se vítimas sangrentas para aplacar os deuses
infernais — que não eram outros senão os maus Espíritos. Aos deuses
infernais sucederam os demônios — que são a mesma coisa. O espiritismo
vem provar que esses demônios não são outros senão as almas dos homens
perversos, que ainda não depuraram os instintos materiais, que não se
consegue aplacar a não ser pelo sacrifício do próprio ódio, isto é, pela
caridade; vem provar que a caridade não tem por efeito somente impedi-los
de fazer o mal, mas sim o de os reconduzir ao caminho do bem e de contribuir
para a salvação deles. É assim que o provérbio Amem seus inimigos não se
limita ao círculo estreito da Terra e da vida presente, mas também entra na
grande lei da solidariedade e da fraternidade universais.

Se alguém lhes bater na face direita,


apresentem-lhe também a outra

7. Vocês ouviram o que foi dito: olho por olho e dente por dente. Mas eu digo
a vocês para não resistirem ao mal que alguém lhes queiram fazer; mas que,
se alguém lhes bater na face direita, ofereçam-lhe também a outra face; e
se alguém quiser pleitear contra vocês, para lhes tomar a túnica, entreguem-
lhe também o manto; e que se alguém lhes forçar a caminhar mil passos com
ele, caminhem mais dois mil. Deem àquele que lhes pedir, e não rejeitem
quem lhes queira pedir empréstimo. (São Mateus, 5: 38 a 42)

8. Os preconceitos do mundo sobre o que convencionamos chamar ponto de


honra produzem esse melindre sombrio, fruto do orgulho e da exaltação da
personalidade, que leva o homem a pagar uma injúria com outra injúria, uma
ofensa com outra ofensa, parecendo justiça para aquele cujo senso moral não
se eleva acima das paixões terrenas; é por isso que a lei mosaica dizia: olho
por olho, dente por dente — uma lei adequada ao tempo em que Moisés viveu.
176 – Allan Kardec

Então Cristo veio e disse: Retribuam o mal com o bem. E disse mais: “Não
resistam ao mal que alguém queira fazer a vocês; se alguém lhes bater numa
face, ofereçam-lhe a outra face.” Para quem é orgulhoso, este ensinamento
parece uma covardia, pois ele não compreende que haja mais coragem em
suportar um insulto do que em se vingar; e isso sempre por causa daquilo que
faz com que sua visão não veja além do presente. Mas, será que deveríamos
tomar esse ensinamento ao pé da letra? Não, como também aquele outro que
diz para arrancar o olho, se ele for um motivo de escândalo; levado às suas
últimas consequências, isso seria o mesmo que condenar toda repressão —
mesmo legítima — e deixar o campo livre para os ímpios, livrando-os de
qualquer temor; se não se pusesse um freio às suas agressões, logo todos os
homens bons seriam vítimas dos maus. O próprio instinto de conservação —
que é uma lei da natureza — diz que não se pode benevolentemente entregar
o pescoço a um assassino. Por essas palavras, portanto, Jesus não nos proibiu
de nos defendermos, mas sim condenou a vingança. Ao dizer para
oferecermos uma face quando alguém nos bater na outra, ele quer dizer, de
outra forma, que não devemos pagar o mal com o mal; que o homem deve
aceitar com humildade tudo aquilo que possa rebaixar seu orgulho; que é
glorioso para ele em ser ferido do que em ferir, em suportar pacientemente
uma injustiça do que em ele mesmo cometer uma injustiça; que mais vale ser
enganado do que enganar, ser arruinado do que arruinar os outros. Esse
ensinamento é ao mesmo tempo a condenação do duelo, que não passa de
uma manifestação do orgulho. Só a fé na vida futura e na justiça de Deus —
que jamais deixa o mal impune — pode nos dar a força para suportarmos
pacientemente os ataques direcionados aos nossos interesses e ao nosso
amor-próprio; é por isso que dizemos sem cessar: Apontem o olhar para o
futuro; quanto mais vocês se elevarem pelo pensamento acima da vida
material, menos vocês serão atingidos pelas coisas da Terra.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS


A vingança
9. A vingança é um dos derradeiros resquícios abandonados pelos costumes
177 – O Evangelho segundo o Espiritismo

bárbaros que tendem a desaparecer do meio dos homens. Ela é, igual ao


duelo, um dos derradeiros vestígios desses comportamentos selvagens sob os
quais a humanidade se debatia no começo da Era Cristã. É por isso que a
vingança significa um indício certo do estado atrasado dos homens que a ela
se entregam e dos Espíritos que ainda podem inspirá-la. Então, meus amigos,
jamais esse sentimento deve fazer vibrar o coração de quem se diz e se
proclama espírita. Vingar-se, vocês sabem bem, é tão contrário àquela
prescrição do Cristo — “Perdoem seus inimigos” — que aquele que se recusa
a perdoar não somente não é espírita como também não é cristão. A vingança
é uma inspiração tanto mais funesta quanto a falsidade e a baixeza são suas
assíduas companhias. Com efeito, aquele que se entrega a essa paixão fatal e
cega quase nunca se vinga a céu aberto; quando ele é o mais forte, então ataca
igual a uma besta fera sobre aquele a quem chama de inimigo, já que vê-lo faz
inflamar a sua paixão, sua cólera e seu ódio. Porém, na maioria das vezes ele
revela uma aparência hipócrita, dissimulando no mais profundo do seu
coração os maus sentimentos que o animam; ele toma os caminhos desviados
e. na surdina, segue o inimigo, que de nada desconfia, esperando o momento
propício para o atacar sem perigo; ele se esconde do inimigo, espreitando-o
constantemente; prepara-lhe ciladas odiosas e na ocasião apropriada
derrama seu veneno no copo do inimigo. Quando sua ira não chega a esse
extremo, ele então o ataca na sua honra e nas afeições; não recua diante da
calúnia e suas insinuações pérfidas — habilmente espalhadas a todos os
ventos — vão engrossando pelo caminho. Assim, quando aquele que é
perseguido se apresenta nos lugares por onde o sopro envenenado passou,
ele se espanta ao encontrar semblantes frios, onde antes encontrava
semblantes amigos e benevolentes; ele fica estupefato quando as mãos que
antes procuravam a sua agora se recusam a apertá-la; enfim, ele se sente
aniquilado quando seus amigos mais queridos e próximos se afastam e o
evitam. Ah, o covarde que assim se vinga é cem vezes mais culpado do que
aquele que vai direto ao seu inimigo e o insulta abertamente.
Portanto, já chega desses costumes selvagens! Já chega desses hábitos de
outros tempos! Todo espírita que ainda hoje pretendesse ter o direito de se
vingar seria indigno de figurar por mais tempo na falange que adotou como
178 – Allan Kardec

emblema este fundamento: Fora da caridade não há salvação! Mas não, eu


não poderia me permitir tal ideia de que um membro da grande família
espírita pudesse no futuro de ceder ao impulso da vingança, ao invés de
perdoar.
JULES OLIVIER (Paris, 1862)

O ódio
10. Amem-se uns aos outros e vocês serão felizes. Assumam a tarefa de amar
principalmente aqueles que lhes inspiram indiferença, ódio ou desprezo. O
Cristo — que é quem vocês devem adotar como modelo — lhes deu o exemplo
desse devotamento; missionário do amor, ele amou até dar o próprio sangue e
a própria vida. O sacrifício que obriga vocês a amar os que lhes ultrajam e lhes
perseguem é penoso, mas é precisamente esse sacrifício que lhes torna
superiores a eles. Se os odiassem como eles odeiam vocês, então não valeriam
mais do que eles; esta é a hóstia sem mácula ofertada a Deus no altar dos seus
corações, hóstia de agradável aroma e cujo perfume sobe até ele. Embora a lei
de amor queira que amemos indistintamente a todos os irmãos, ela não
resguarda o coração contra os maus procedimentos; esta é, ao contrário, a
prova mais dolorosa, eu sei bem, porque durante a minha última existência
terrena eu experimentei essa tortura; mas Deus lá está, e pune nesta vida e na
outra todos os que falseiam a lei de amor. Não se esqueçam, meus queridos
filhos, de que o amor nos aproxima de Deus, e que o ódio nos distancia dele.
FÉNELON. (Bordeaux, 1861)

O duelo

11. Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida como uma


viagem que deve conduzi-lo a um objetivo, faz pouco caso das asperezas do
trajeto; ele não se deixa desviar nem por um instante do caminho reto. Com os
olhos constantemente fixados na direção desse objetivo, ele pouco se importa
que os tocos e os espinhos do percurso ameacem arranhá-lo; eles o roçam
179 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sem ferir nem impedir sua caminhada. Expor seus dias para se vingar de uma
injúria é recuar diante das provações da vida; isso é sempre um crime aos
olhos de Deus, e se vocês não fossem iludidos pelos seus preconceitos, tal
como são, isso seria uma tolice ridícula e suprema aos olhos dos homens.
Há crime no homicídio através do duelo e a própria legislação de vocês
reconhece isso; ninguém tem o direito — em nenhum caso — de atentar
contra a vida de seu semelhante; é um crime aos olhos de Deus, que lhes
traçou a sua linha de conduta. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar,
vocês são juízes na sua própria causa. Lembrem-se de que serão perdoados
conforme vocês mesmos também tenham perdoado; através do perdão vocês
se aproximam da Divindade, pois a clemência é irmã da força. Enquanto uma
gota de sangue humano correr na Terra pela mão dos homens, o verdadeiro
reino de Deus ainda não terá chegado — reino de pacificação e de amor, que
há de banir para sempre deste globo a animosidade, a discórdia e a guerra.
Então, a palavra duelo não existirá mais na linguagem de vocês, a não ser
como uma longínqua e vaga lembrança de um passado que se foi. Os homens
não conhecerão entre eles outro antagonismo além da nobre competição do
bem.
ADOLFO, bispo de Argel (Marmande, 1861)

12. Sem dúvidas, o duelo indubitavelmente pode ser uma prova de coragem
física e de desapego pela vida, mas também é incontestavelmente a prova de
covardia moral, assim como o suicídio. O suicida não tem a coragem de
enfrentar as vicissitudes da vida, enquanto o duelista não tem a de suportar
as ofensas. Cristo não lhes disse que há mais honra e coragem em apresentar
a face esquerda àquele que bateu na direita do que em vingar uma injúria?
Cristo não disse a Pedro, no Jardim das Oliveiras: “Ponha a tua espada na
bainha, pois aquele que matar com a espada perecerá pela espada”? Por essas
palavras, Jesus não condenou para sempre o duelo? De fato, meus filhos, que
coragem é essa, então brotada de um temperamento violento, sanguíneo e
colérico, rugindo já na primeira ofensa? Portanto, onde está a grandeza de
alma daquele que, na menor injúria, quer lavá-la com sangue? Pois que ele
trema! Pois, no fundo da sua consciência, uma voz sempre lhe gritará: Caim!
180 – Allan Kardec

Caim! O que você fez com o teu irmão? Eu precisei de sangue para salvar a
minha honra — responderá ele a essa voz; mas ela lhe retrucará: Você quis
salvar tua honra diante dos homens, por alguns instantes que te restavam de
vida na Terra, e não pensou em salvá-la perante Deus! Pobre louco! Mas
então, quanto sangue Cristo exigiria de ti por todos os ultrajes que ele
recebeu! Não só você o feriu com espinhos e lança, não só o pregou num
madeiro infamante, como também, em meio à sua agonia, ele pôde ouvir as
zombarias que lhe eram feitas. Que compensação a tantos ultrajes ele te
pediu? O último brado do cordeiro foi uma prece em favor dos seus algozes.
Oh! Assim como ele, perdoem e orem pelos que lhes ofendem.
Amigos, lembrem-se deste preceito: “Amem-se uns aos outros”, e então,
a um golpe pelo ódio vocês responderão com um sorriso, e ao ultraje vocês
responderão com o perdão. O mundo indubitavelmente se levantará furioso e
lhes tratará como covardes; levantem a cabeça bem alto e mostrem então que
também sua fronte não temeria se encher de espinhos a exemplo do Cristo,
mas que sua mão não quer ser cúmplice de um assassínio dito autorizado, por
um falso ar de honra, que não passa de orgulho e de amor-próprio. Quando
Deus lhes criou, teria ele concedido a vocês o direito de vida e de morte, uns
sobre os outros? Não; ele não deu direito a não ser à natureza, só a ela, para se
reformar e se reconstruir; quanto a vocês, não há sequer permissão de dispor
de vocês mesmos. Tal como o suicida, o duelista ficará manchado de sangue
quando estiver diante de Deus, e a um e a outro o Soberano Juiz prepara rudes
e longos castigos. Se ele ameaçou com sua justiça aquele que disser raca ao
seu irmão, quanto mais severa não será a pena para aquele que aparecesse
diante dele com as mãos sujas do sangue de seu irmão!
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)

13. O duelo — como aquilo que outrora se chamava o julgamento de Deus —


é uma dessas iniciativas bárbaras que ainda regem a sociedade. No entanto, o
que vocês diriam se vissem dois adversários mergulhados em água fervente
ou submetidos ao contato de um ferro em brasa para resolver a contenda
entre eles, e dar razão àquele que melhor sofresse a prova? Vocês tratariam
esses costumes como uma insensatez. Pois o duelo é pior do que tudo isso.
181 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Para o duelista experiente, é um assassínio cometido a sangue-frio, com toda


premeditação desejada, pois ele está confiante no golpe que desferirá. Para o
adversário quase certo de sucumbir, por causa da sua fraqueza e inabilidade,
o duelo é um suicídio cometido com a mais fria reflexão. Eu sei que muitas
vezes se procura evitar essa alternativa igualmente criminosa em se
confiando ao acaso; mas então, isso não é voltar ao julgamento de Deus da
Idade Média, sob outra forma? Pelo menos naquela época nós éramos menos
culpados; a própria expressão julgamento de Deus indica uma fé — ingênua,
é verdade, mas enfim, uma fé na justiça de Deus, que não podia deixar um
inocente sucumbir, enquanto no duelo tudo se remete à força bruta, de tal
sorte que muitas vezes é o ofendido quem sucumbe.
Ó estúpido amor-próprio, tola vaidade e louco orgulho, quando é que
vocês serão substituídos pela caridade cristã, pelo amor ao próximo e pela
humildade que Cristo ensinou e exemplificou? Só então desaparecerão esses
preconceitos monstruosos que ainda governam os homens e as quais as leis
são impotentes para reprimir, porque não basta interditar o mal e
recomendar o bem: é preciso que o princípio do bem e o horror ao mal
estejam no coração do homem.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1861)

14. O que vão pensar de mim — vocês costumam dizer — se eu recusar a


reparação que me é exigida ou se eu não a exigir de quem me ofendeu? Os
loucos, como vocês, homens atrasados, vão então lhes censurar; mas aqueles
que foram esclarecidos pela chama do progresso intelectual e moral dirão que
vocês agiram conforme a verdadeira sabedoria. Reflitam um pouco: por uma
palavra às vezes dita sem pensar ou totalmente inofensiva, vinda da parte de
um dos seus irmãos, o orgulho de vocês fica magoado, então vocês lhe
respondem de uma maneira aguda e daí surge uma provocação. Antes de
chegar ao momento decisivo, vocês se perguntam se vocês estão agindo como
cristãos? Que contas ficarão devendo à sociedade se a privarem de um de seus
membros? Vocês pensam no remorso de ter tirado o marido de uma mulher, o
filho de uma mãe ou o pai que sustentava os filhos? Certamente, aquele que
faz a ofensa fica devendo uma reparação; porém, não seria mais honroso para
182 – Allan Kardec

ele fazer essa reparação espontaneamente, reconhecendo seus erros, do que


expor a vida daquele que tem o direito de se queixar? Quanto ao ofendido, eu
concordo que algumas vezes ele pode se sentir gravemente atingido, seja na
sua pessoa, seja em relação àqueles que lhe são mais íntimos; não é somente o
amor-próprio que está em jogo: o coração fica magoado e ele sofre; porém
além de ser estúpido arriscar a vida contra um miserável capaz de uma
infâmia, ocorre que, o ofensor já estando morto, será que a afronta — seja ela
qual for — deixa de existir? O sangue derramado não dá mais destaque a um
fato que, se for falso, cairia por si mesmo, e que, se for verdadeiro, deve ficar
escondido no silêncio? Logo, não restará mais nada senão a satisfação da
vingança saciada. Ah! Triste satisfação que frequentemente deixa ardentes
remorsos, já desde esta vida. E se é o ofendido que sucumbe, onde fica a
reparação?
Quando a caridade for a regra de conduta dos homens, eles adequarão
seus atos e suas palavras a esta máxima: “Não façam aos outros o que vocês
não gostariam que lhes fizessem.” Então, desaparecerão todas as causas de
dissensões, e com elas os pretextos para os duelos e as guerras, que são os
duelos de um povo para povo.
FRANCISCO XAVIER (Bordeaux, 1861)

15. O homem do mundo, o homem feliz, que por uma palavra ofensiva, uma
coisa leve, arrisca a vida que ele recebeu de Deus, arrisca a vida de seu
semelhante e que só pertence a Deus, esse é cem vezes mais culpado do que o
miserável que, dominado pela cupidez — ou, às vezes, pela necessidade —
invade uma casa para roubar aquilo que ele cobiça ou para matar quem se
opõe aos seu plano. Este último é quase sempre um homem sem educação,
tendo apenas noções imperfeitas do bem e do mal, ao passo que o duelista
não raro pertence à classe mais esclarecida; um mata brutalmente, enquanto
o outro mata com método e polidez, o que faz com que a sociedade o desculpe.
Eu acrescento ainda que o duelista é infinitamente mais culpado do que o
infeliz que, cedendo a um sentimento de vingança, mata num momento de
exasperação. O duelista não tem como escusa o arrebatamento da paixão,
porque entre o insulto e a reparação ele sempre tem de tempo para refletir;
183 – O Evangelho segundo o Espiritismo

ele age, pois, friamente e com desígnio premeditado; tudo é calculado e


estudado para matar com mais segurança o seu adversário. É verdade que ele
também expõe a vida, e é isso o que justifica o duelo aos olhos do mundo,
porque as pessoas veem nele um ato de coragem e de desapego à própria
vida; mas haveria verdadeira coragem quando a pessoa está segura de si? O
duelo — este resquício dos tempos de barbárie em que o direito do mais forte
constituía a lei — há de desaparecer a partir de uma melhor apreciação do
verdadeiro ponto de honra, e à medida que o homem tiver uma fé mais viva
na vida futura.
AGOSTINHO (Bordeaux, 1861)

16. Observação – Os duelos se tornam cada vez mais raros, e se ainda vemos de
tempos em tempos alguns exemplos dolorosos deles, seu número não se compara com
os de antigamente. Outrora, um homem não saía de casa sem prever um encontro;
assim, ele sempre tomava as devidas precauções. Um sinal característico dos
costumes do tempo e dos povos consiste no uso habitual do porte de armas — visíveis
ou ocultas, ofensivas ou defensivas; a abolição desse uso demonstra o abrandamento
dos costumes, e é curioso acompanhar a sua gradação, desde a época em que os
cavaleiros só cavalgavam protegidos por armaduras e munidos de lança, até a época
do porte de uma simples espada, que se transformou mais em um enfeite e um
acessório do brasão do que uma arma agressiva. Outro sinal da modificação dos
costumes é que antes os combates individuais aconteciam em plena rua, diante da
multidão que se afastava para deixar livre o campo, enquanto hoje eles se ocultam.
Atualmente, a morte de um homem é um acontecimento que nos comove; no passado,
ninguém prestava atenção a isso. O Espiritismo superará esses últimos vestígios de
barbárie ao incutir nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.
184 – Allan Kardec

CAPÍTULO XIII

QUE SUA MÃO ESQUERDA NÃO


SAIBA O QUE SUA MÃO DIREITA DÁ
Fazer o bem sem ostentação – Infortúnios ocultos – O óbolo da viúva –
Convidar os pobres e os estropiados. Doar sem esperar retribuição
– INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Caridade material e caridade moral –
A beneficência – A piedade – Os órfãos –
Benefícios pagos com a ingratidão – Beneficência exclusiva

Fazer o bem sem ostentação

1. Tomem cuidado para não fazer boas obras na frente dos homens para
serem vistos, pois, do contrário vocês não receberão a recompensa do seu Pai
que está nos céus. Então, quando derem esmola, não façam soar a trombeta
diante de vocês, como os hipócritas fazem nas sinagogas e nas ruas, para
serem honorificados pelos homens. Em verdade eu lhes digo que eles já
receberam a recompensa deles. Mas quando vocês derem esmola, que a sua
esquerda não saiba o que a mão direita dá, a fim de que a esmola fique em
segredo; então o seu Pai, que vê o que se passa em segredo, lhes dará a
recompensa. (São Mateus, 6: 1 a 4)

2. Tendo Jesus descido da montanha, uma grande multidão o seguiu; ao


mesmo tempo, um leproso veio ao encontro dele e o adorou, dizendo: Mestre,
se o senhor quiser, o senhor poderá me curar. — Jesus, estendendo a mão,
tocou no leproso e lhe disse: Eu quero. Fique curado. E naquele instante a
lepra foi retirada. Então Jesus lhe disse: Tenha cuidado para não contar isso a
ninguém, mas vai se apresentar aos sacerdotes e oferte o donativo prescrito
por Moisés, a fim de que isso lhe sirva de testemunho. (São Mateus, 8: 1 a 4)
185 – O Evangelho segundo o Espiritismo

3. Fazer o bem sem ostentação representa um grande mérito; ocultar a mão


que doa é ainda mais meritório, pois é um sinal incontestável de uma grande
superioridade moral: para ver as coisas de mais alto do que o comum, é
preciso fazer abstração da vida presente e se identificar com a vida futura; em
suma, é preciso se colocar acima da humanidade para renunciar à satisfação
que procura o testemunho dos homens e esperar a aprovação de Deus. Aquele
que considera mais a apreciação dos homens do que a apreciação de Deus
prova que tem mais fé nos homens do que em Deus, e que para ele a vida
presente vale mais do que a vida futura — ou então que ele não crê na vida
futura. Se ele diz o contrário, ele age como se não acreditasse no que diz.
Quantos há que não ajudam senão com a expectativa de que o favor irá
proclamar a boa ação para todo mundo ver. Quantos há que publicamente
doariam uma grande soma, mas que secretamente não dariam uma única
moeda! Foi por isso que Jesus disse: “Os que fazem o bem com ostentação já
receberam a sua recompensa.” De fato, aquele que procura a sua própria
glorificação na Terra pelo bem que ele faz, este já pagou a si mesmo; Deus não
lhe deve mais nada; só lhe resta receber a punição pelo seu orgulho.
Que a mão esquerda não saiba o que a mão direita dá é uma figura de
linguagem que caracteriza admiravelmente a beneficência modesta; mas se há
a modéstia real, também há a falsa modéstia, o simulacro da modéstia. Há
pessoas que escondem a mão que dá, mas tendo o cuidado de deixar escapar
uma pontinha dela, olhando se alguém não a terá reparado se esconder.
Paródia indigna das máximas do Cristo! Se os benfeitores orgulhosos são
depreciados entre os homens, o que será deles perante Deus! Esses também já
receberam a sua recompensa na Terra. Eles foram vistos; estão satisfeitos por
terem sido vistos: isso é tudo o que terão.
Qual será então a recompensa daquele que faz pesar suas boas ações
sobre o beneficiado, que de alguma forma exige dele o testemunho de
reconhecimento, que o faz sentir a sua posição ao exaltar o preço dos
sacrifícios a que fez por ele? Oh, para esse, não existe nem mesmo a
recompensa terrestre, porque ele fica privado da doce satisfação de ouvir
alguém bendizer o seu nome, e esse já é o primeiro castigo pelo seu orgulho;
as lágrimas que ele seca em proveito da sua vaidade, em vez de subirem ao
186 – Allan Kardec

céu, recaíram sobre o coração do aflito e o encheram de úlceras. O bem que


praticou ficou sem proveito para ele, já que ele o deplora, porque todo
benefício deplorado é uma moeda falsificada e sem valor.
Um favor feito sem ostentação tem duplo mérito; além de ser uma
caridade material, é uma caridade moral; ela evita o ressentimento do
beneficiado, fazendo-o aceitar esse benefício sem que seu amor-próprio sofra
e salvaguardando sua dignidade de homem — porque então aceitará um
serviço que ele não receberia como uma esmola. Ora, converter o serviço em
esmola pela maneira de prestá-lo é humilhar aquele que o recebe, e sempre
há orgulho e maldade em humilhar alguém. A verdadeira caridade, ao
contrário, é delicada e engenhosa em ocultar o benefício, em evitar até as
mínimas aparências ofensivas, pois toda ofensa moral aumenta o sofrimento
que nasce da necessidade. A verdadeira caridade sabe encontrar as palavras
dóceis e afáveis que deixam o beneficiado à vontade diante do benfeitor, ao
passo que a caridade orgulhosa o esmaga. O ápice da verdadeira generosidade
é quando o benfeitor inverte os papéis e acha meios de parecer que ele
mesmo seja o beneficiado diante daquele a quem ele presta serviço. Eis o que
querem dizer estas palavras: Que a mão esquerda não saiba o que a mão
direita dá.

Infortúnios ocultos
4. Nas grandes calamidades, a caridade se comove, e nós vemos generosos
esforços nesse sentido, para reparar os desastres; porém, ao lado desses
desastres gerais, existem milhares de desastres particulares que passam
despercebidos, de pessoas que jazem sobre um leito sem reclamar. São esses
infortúnios discretos e ocultos que a verdadeira generosidade sabe ir
descobrir sem esperar que essas pessoas peçam assistência.
Quem é essa mulher de ar distinto, de traje tão simples, embora bem
cuidado, acompanhada por uma mocinha vestida tão modestamente? Ela
entra numa casa de sórdida aparência, onde sem dúvida ela é conhecida, pois
já na sua chegada todos a saúdam com respeito. Aonde ela vai? Ela sobe até a
mansarda: lá, jaz uma mãe de família rodeada de crianças; a partir da sua
187 – O Evangelho segundo o Espiritismo

chegada, a alegria brilha naqueles rostos emagrecidos, porque ela vem


acalmar todas as dores; ela traz o necessário, temperado com meigas e
consoladoras palavras, que fazem com que a benevolência seja aceita sem
constrangimento, pois esses desafortunados não são mendigos de profissão; o
pai está no hospital, e enquanto isso a mãe não consegue suprir as
necessidades. Graças àquela boa senhora, essas pobres crianças não
enfrentarão nem o frio nem a fome; elas irão à escola bem agasalhadas e o
seio da mãe não secará para as filhos menores. Se houver um enfermo entre
eles, nenhum cuidado material lhe repugnará. De lá, ela vai ao hospital levar
ao pai algumas palavras doces e tranquilizá-lo sobre a sorte da sua família. Na
esquina da rua, uma carruagem a espera — um verdadeiro depósito de tudo o
que ela leva aos seus protegidos, que ela visita tão sucessivamente. Ela não
lhes pergunta nem qual é a crença nem a opinião deles, porque para ela todos
os homens são irmãos e filhos de Deus. Terminada sua jornada, ela diz para si
mesma: Comecei bem minha jornada. Qual é o nome dela? Onde mora?
Ninguém sabe. Para os infelizes, é um nome que não revela nada, mas ela é o
anjo da consolação; e à noite, um concerto de bênçãos se eleva por ela ao
Criador: católicos, judeus, protestantes, todos a bendizem.
Por que esse traje tão simples? É que ela não quer insultar a miséria
através do luxo. Por que ela se faz acompanhar da sua filhinha? É para lhe
ensinar como se deve praticar a beneficência. Sua filha também quer fazer a
caridade, mas a mãe lhe diz: “O que você pode dar, minha filha, já que você
mesma não tem nada? Se eu te der alguma coisa para você repassar às mãos
dos outros, que mérito você terá? Na realidade, seria eu quem faria a caridade,
e você que ficaria com o mérito; isso não é justo. Quando formos visitar os
doentes, ajude-me a tratá-los; ora, dispensar cuidados é dar alguma coisa. Isso
não te parece suficiente? Nada mais simples; aprenda a fazer obras úteis e
confeccione roupas para essas criancinhas; desse modo, você dará alguma
coisa vindo de você mesma. É assim que aquela mãe verdadeiramente cristã
prepara sua filha para a prática das virtudes ensinadas pelo Cristo. Ela é
espírita? Isso não importa!
No seu íntimo, ela é mulher do mundo, porque a sua posição assim exige;
mas ninguém sabe o que ela faz, porque ela não quer outra aprovação além da
188 – Allan Kardec

de Deus e da sua consciência. Certo dia, no entanto, uma circunstância


imprevista conduziu até a casa dela uma de suas protegidas, que estava
oferecendo seu trabalho; essa protegida a reconheceu e quis bendizer sua
benfeitora. Mas ela lhe disse: “Silêncio! Não conte a ninguém.” Assim falava
Jesus.

O óbolo da viúva
5. Estando Jesus sentado diante do baú de ofertas, ele viu de que maneira o
povo colocava ali o dinheiro, e que muitas pessoas ricas depositavam
bastante. E veio também uma pobre viúva que ofertou apenas duas pequenas
moedas que valiam meio centavo. Então Jesus, chamando seus discípulos,
lhes disse: Em verdade eu digo a vocês que essa pobre viúva deu mais do que
todos aqueles que tinham feito sua oferta, porque todos os outros deram do
que estava sobrando, mas essa viúva deu de sua indigência, deu mesmo tudo
o que tinha e que lhe restava para sobreviver.” (São Marcos, 12: 41 a 44; são
Lucas, 21:1 a 4)

6. Muitas pessoas lamentam não poderem fazer todo o bem que gostariam,
lamentam a falta de recursos suficientes e, se elas desejam a fortuna, é para —
dizem elas — fazer um bom uso dos recursos. A intenção sem dúvidas é
louvável, e pode até ser sincera em algumas pessoas; mas será mesmo que
essa intenção seja completamente desinteressada em todas elas? Será que
entre elas não haja algumas que, embora desejem fazer o bem aos outros,
ficariam bem felizes em começar por fazerem felizes a si mesmas,
proporcionando-se alguns prazeres a mais, para obterem um pouco do
supérfluo que lhes falta, para dar aos pobres somente o resto? Essa segunda
intenção — que talvez essas pessoas escondam de si mesmas, mas que
encontrariam no fundo dos seus corações, se elas quisessem revistá-lo —
anula o mérito da intenção, porque a verdadeira caridade pensa nos outros
antes de pensar em si. Nesse caso, o ápice da caridade seria procurar no seu
próprio trabalho — pelo emprego de suas forças, de sua inteligência e de seus
talentos — os recursos que lhe faltam para realizar suas generosas intenções;
aí estaria o sacrifício mais agradável ao Senhor. Infelizmente, a maioria vive a
189 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sonhar com os meios mais fáceis de se enriquecer rapidamente e sem


sofrimento, correndo atrás de quimeras, como a descoberta de tesouros, uma
sorte aleatória favorável, o recebimento de heranças inesperadas etc. O que
dizer daquelas pessoas que esperam encontrar cooperadores entre os
Espíritos para os ajudar nos interesses desse tipo? Seguramente elas nem
conhecem nem compreendem o objetivo sagrado do espiritismo, e ainda
menos a missão dos Espíritos a quem Deus permite se comunicar com os
homens; com isso, elas punidas com decepções. (O Livro dos Médiuns, itens
294 e 295)
Aqueles cuja intenção é pura de toda ideia pessoal devem se consolar
com sua impossibilidade de fazer todo o bem que desejariam, pela ideia de
que o óbolo do pobre — de quem dá se sacrificando — pesa mais na balança
de Deus do que o ouro do rico que dá sem se privar de nada. Sem dúvidas, a
satisfação seria grande em poder socorrer largamente a indigência; mas, se
essa satisfação é impossível, é preciso se conformar e se limitar a fazer o que é
possível. Ademais, será que é só com ouro que podemos enxugar as lágrimas?
Deveríamos ficar inativos só por que não possuímos ouro? Aquele que quiser
sinceramente se tornar útil aos seus irmãos encontrará mil ocasiões para
fazer isso; que ele procure tais ocasiões, e as encontrará — se não for de uma
forma, será de outra, pois não há ninguém que no pleno gozo de suas
faculdades não possa prestar um serviço qualquer: oferecer um consolo,
suavizar um sofrimento físico ou moral, dá um passo útil etc. Será que, na falta
de dinheiro, cada um não dispõe do seu esforço, do seu tempo e do seu
repouso de que possa compartilhar uma parte? Também aí está o óbolo do
pobre, o meio-centavo da viúva.

Convidar os pobres e os estropiados.


Doar sem esperar retribuição
7. Ele também disse àquele que o convidara: Quando der um jantar ou uma
ceia, não convide nem os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus
parentes, nem os teus vizinhos ricos, com medo de que em seguida eles não te
convidem na vez deles, para te retribuir o que eles receberam de ti. Mas,
quando você der uma festa, convide para ela os pobres, os estropiados, os
190 – Allan Kardec

coxos e os cegos; e você ficará feliz por eles não terem recursos para te
retribuir; por isso você será retribuído na ressurreição dos justos.
Um dos que estavam à mesa, tendo escutado essas palavras, disse-lhe:
Feliz aquele que comer do pão no reino de Deus! (São Lucas, 14: 12 a 15)

8. Jesus disse: “Quando der uma festa, não convide para ela os teus amigos,
mas os pobres e os estropiados.” Estas palavras — absurdas, se tomadas
literalmente — são sublimes, se procurarmos o seu significado. Jesus não
poderia querer dizer que, em vez dos amigos, seja preciso reunir à mesa os
mendigos da rua; a linguagem dele era quase sempre figurada e, para os
homens incapazes de entender os delicados detalhes do pensamento, ele
carecia de imagens fortes, produzindo o efeito de um colorido chocante. A
essência do seu pensamento se revela nestas palavras: “Você ficará feliz por
eles não terem recursos para te retribuir”; isso quer dizer que não devemos
fazer o bem tendo em vista um retorno, mas somente pelo prazer de fazer o
bem. Para dar uma comparação marcante, ele diz: Para os seus festins,
convidem os pobres; pois vocês sabem que eles não poderão lhes retribuir; e
por festins, devemos entender, não as refeições propriamente ditas, mas a
participação na abundância de que vocês gozam.
Essa expressão, entretanto, também pode receber sua aplicação num
sentido mais literal. Quantas pessoas não convidam para suas mesas senão os
que podem — como eles dizem — lhes fazer as honras, ou que podem lhes
convidar na vez deles! Outras pessoas, ao contrário, encontram satisfação em
receber os parentes e amigos menos felizes; ora, quem é que não tem um
desses entre seus parentes? Isso, por vezes, significa prestar a eles um grande
serviço, sem parecer. Estes, sem irem convocar os cegos e os estropiados,
estarão praticando a máxima de Jesus se assim fizerem por benevolência, sem
ostentação, e se souberem esconder o benefício por uma sincera cordialidade.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Caridade material e caridade moral


9. “Amemo-nos uns aos outros e façamos aos outros aquilo que gostaríamos
191 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que eles nos fizessem.” Toda a religião, toda a moral se encontram contidas
nesses dois preceitos. Se eles fossem seguidos neste mundo, todos vocês
seriam perfeitos: nada de ódios, nem de ressentimentos; eu direi ainda mais:
nada de pobreza, porque do supérfluo da mesa de cada rico muitos pobres
seriam alimentados, e vocês não veriam mais nos quarteirões sombrios, onde
eu habitei durante a minha última encarnação, pobres mulheres arrastando
consigo miseráveis crianças carecendo de tudo.
Ricos, pensem um pouco nisso! Ajudem da melhor forma os infelizes;
doem, para que Deus um dia lhes retribua o bem que vocês tiverem feito, para
que encontrem, ao sair do seu envoltório terreno, um cortejo de Espíritos
agradecidos, que os receberão no limiar de um mundo mais feliz.
Ah se vocês pudessem saber a alegria que experimentei ao encontrar no
além aqueles a quem eu pude ajudar na minha última existência!...
Portanto, amem o seu próximo; amem-no como a vocês mesmos, pois
agora já sabem que esse infeliz que vocês repulsam talvez seja um irmão, um
pai ou um amigo que vocês repelem para longe; e então, qual será o desespero
de vocês ao reconhecê-lo no mundo dos Espíritos!
Eu desejo que compreendam bem aquilo que pode ser a caridade
moral, aquela que todos podem praticar; aquela que nada custa
materialmente e, no entanto, é a mais difícil de se colocar em prática.
A caridade moral consiste em suportar uns aos outros, e isso é o que
menos vocês fazem nesse mundo onde estão encarnados no momento.
Acreditem, há um grande mérito em saber se calar para deixar que alguém
mais tolo possa falar, e até isso é um gênero de caridade. Saber ser surdo
quando uma palavra zombeteira escapa de uma boca habituada a zombar; não
ver a risada de desprezo com que vocês são recebidos por pessoas que,
muitas vezes erradamente, se acham acima de vocês, enquanto na vida
espírita — a única real — eles muitas vezes estão bem abaixo; eis aí o mérito,
não da humildade, mas da caridade, porque não reparar os erros alheios é
uma caridade moral.
Todavia, essa caridade não deve impedir a outra; cuidem sobretudo para
não desprezar o seu semelhante; lembrem-se de tudo o que eu já lhes disse: é
preciso lembrar sem cessar que no pobre rejeitado talvez vocês estejam
192 – Allan Kardec

rejeitando um Espírito que já foi importante para vocês e que se encontra


momentaneamente numa posição inferior à sua. Eu reencontrei aqui um dos
pobres desta Terra a quem eu felizmente pude agradar algumas vezes, e a
quem, por minha vez, agora tenho de implorar auxílio.
Recordem que Jesus disse que todos somos irmãos e pensem sempre
nisso antes de rejeitarem o leproso ou o mendigo. Até mais; pensem naqueles
que sofrem e orem.
IRMÃ ROSÁLIA (Paris, 1860)

10. Meus amigos, já ouvi muitos de vocês se perguntarem: Como eu poderei


fazer caridade, já que com frequência eu não tenho nem mesmo o necessário?
A caridade, meus amigos, se faz de muitas maneiras; vocês podem fazer
a caridade por pensamentos, por palavras e por ações. Por pensamentos:
orando pelos pobres abandonados, que morreram sem terem sequer visto a
luz; uma oração de coração os alivia. Por palavras: endereçando aos seus
companheiros de todos os dias alguns bons conselhos; digam aos homens
amargurados pelo desespero, pelas privações, e que blasfemam o nome do
Altíssimo: “Eu era igual a vocês; eu sofria, era infeliz, mas eu acreditei no
Espiritismo e, vejam só: agora eu sou feliz”. Aos velhos que lhes disserem: “É
inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei como vivi”, digam então a
eles: “Deus tem para todos nós uma justiça equânime; lembrem-se dos
trabalhadores da última hora”. Às criancinhas que, já viciadas pelo seu
entorno, vão se perder pelos caminhos, prestes a sucumbir às más tentações,
digam: “Deus vê vocês, meus caros pequenos”, e não temam lhes repetir
muitas vezes esse doce conselho, que acabará germinando nas jovem
inteligência dessas crianças, e ao invés de pequenos vagabundos, vocês farão
homens. Isso também é uma caridade.
Muitos de vocês dizem também: “Ah! Nós somos tão numerosos na
Terra; não é possível que Deus veja a todos.” Escutem bem isso, meus amigos:
Quando vocês estão no cume de uma montanha, não é verdade que o seu
olhar alcança os bilhões de grãos de areia que cobrem essa montanha? Pois
bem! Deus vê a todos do mesmo modo. Ele lhes dá o livre-arbítrio assim como
vocês deixam que esses grãos de areia vão ao sabor do vento que os dispersa;
193 – O Evangelho segundo o Espiritismo

apenas, Deus, em sua misericórdia infinita, colocou no fundo dos seus


corações uma sentinela vigilante que se chama consciência. Escutem-na; ela
só lhes dará bons conselhos. Às vezes vocês a entorpecem, substituindo-a pelo
espírito do mal, e então ela se cala; mas fiquem certos de que a pobre
abandonada logo se fará ouvir, assim que a deixarem perceber a sombra do
remorso. Escutem-na, interroguem-na, e vocês com frequência se acharão
consolados pelo conselho que dela tiverem recebido.
Meus amigos, a cada regimento novo o general entrega uma bandeira; eu
lhes dou, por minha vez, aquela máxima do Cristo: “Amem-se uns aos outros”.
Pratiquem essa máxima, reúnam-se todos em torno desse estandarte e dele
vocês receberão felicidade e consolação.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Lyon, 1860)

A beneficência
11. A beneficência, meus amigos, lhes dará neste mundo os mais puros e os
mais doces prazeres, as alegrias do coração que não são perturbados nem
pelo remorso nem pela indiferença. Ah, que vocês possam compreender tudo
que há de grande e de agradável na generosidade das belas almas, esse
sentimento que nos faz olhar para os outros com o mesmo olhar com que
olhamos para nós mesmos, e que nos faz nos despirmos com satisfação para
cobrir o irmão! Que vocês possam, meus amigos, ter como a mais doce
ocupação fazer os outros felizes! Quais são as festas do mundo que poderão
comparar a essas festas jubilosas, quando vocês — os representantes da
Divindade — levam alegria a essas pobres famílias que não conheceram nada
da vida além das dificuldades e amarguras; quando vocês veem aqueles rostos
murchos de repente irradiarem esperança, porque não tinham pão, aqueles
infelizes e seus filhinhos, ignorando que viver é sofrer, eles gritavam,
choravam e repetiam estas palavras que penetravam nos corações maternos
como um agudo punhal: Estou com fome!... Ah, compreendam como são
deliciosas as impressões daquele que vê renascer a alegria onde, um instante
antes, ele só via desespero! Compreendam quais são as obrigações de vocês
para com os seus irmãos! Vão! Vão ao encontro do desafortunado! Vão em
194 – Allan Kardec

socorro principalmente das misérias ocultas, pois essas são as mais


dolorosas! Vão, meus bem-amados, e lembrem-se destas palavras do
Salvador: “Quando vestirem a um destes pequeninos, lembrem-se de que é a
mim que estarão vestindo!”
Caridade! Palavra sublime que resume todas as virtudes, é você que há
de conduzir os povos à felicidade; ao te praticarem, eles criarão para si
satisfações infinitas para o futuro, e durante o exilio desses povos na Terra,
você será a consolação deles, o aperitivo das alegrias que eles desfrutarão
mais tarde, quando se abraçarem todos juntos no seio do Deus de amor. Foi
você, virtude divina, quem me proporcionou os únicos momentos de
felicidade de que experimentei na Terra. Que os meus irmãos encarnados
possam crer na voz do amigo que lhes fala e lhes aconselha: É na caridade que
vocês devem procurar a paz do coração, o contentamento da alma, o remédio
contra as aflições da vida. Oh, quando estiverem a ponto de acusar Deus,
lancem um olhar para baixo de si; vejam quantas misérias a aliviar, quantas
pobres crianças sem família, quantos idosos que não têm uma mão amiga
para lhes socorrer e fechar os seus olhos quando a morte os reclama! Quanto
bem a fazer! Oh, não se queixem! Mas, ao contrário, agradeçam a Deus e
gastem com abundância a simpatia de vocês, o seu amor e o seu dinheiro com
todos aqueles que, deserdados dos bens desse mundo, definham no
sofrimento e no isolamento. Vocês colherão neste mundo alegrias bem doces,
e mais tarde... só Deus o sabe!...
ADOLFO, bispo de Argel (Bordeaux, 1861)

12. Sejam bons e caridosos, pois essa é a chave dos céus que vocês têm em
suas mãos; toda a felicidade eterna está contida nesta máxima: Amem-se uns
aos outros. A alma não pode se elevar nas regiões espirituais a não ser pelo
devotamento ao próximo; ela não encontra contentamento e consolação
senão nos impulsos da caridade. Sejam bons, amparem seus irmãos, deixem
de lado a terrível chaga do egoísmo; esse dever cumprido há de abrir para
vocês a estrada da felicidade eterna. De resto, qual de vocês ainda não sentiu
o coração saltar e sua alegria interior se expandir com a narrativa de um belo
devotamento, de uma obra verdadeiramente caridosa? Se vocês só buscassem
195 – O Evangelho segundo o Espiritismo

a volúpia que uma boa ação proporciona, então ficariam sempre no caminho
do progresso espiritual. Não faltam exemplos para vocês; só a boa vontade é
que é rara. Vejam a multidão de homens de bem, de quem a História lhes
recorda uma piedosa lembrança.
O Cristo não lhes disse tudo o que concerne às virtudes da caridade e do
amor? Por que deixar de lado os seus ensinamentos divinos? Por que fechar
os ouvidos às suas divinas palavras e fechar o coração a todas as suas suaves
máximas? Eu gostaria que houvesse mais interesse, mais fé nas leituras
evangélicas; despreza-se esse livro, faz-se dele uma palavra oca, uma carta
fechada; esse código admirável é deixado no esquecimento: os males de vocês
vêm justamente do desprezo voluntário que dão a esse resumo das leis
divinas. Por isso, leiam todas essas páginas cintilantes do devotamento de
Jesus, e as meditem.
Homens fortes, contenham-se; homens fracos, armem-se de brandura e
de fé; tenham mais persuasão e mais constância na propagação da sua nova
doutrina; não é mais do que um encorajamento o que nós viemos lhes dar,
não é mais do que para estimular o zelo e as virtudes de vocês que Deus nos
permite nos manifestar a vocês. Mas se vocês quisessem, não precisariam
mais do que a ajuda de Deus e a própria vontade de vocês: as manifestações
espíritas se realizam exatamente para aqueles que têm os olhos fechados e os
corações indóceis.
A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício
das virtudes terrestres; sem ela, as outras não existem. Sem a caridade não há
esperança de uma sorte melhor, não há interesse moral que nos guie; sem a
caridade não há fé, porque a fé não é mais do que um raio muito puro que faz
brilhar uma alma caridosa.
A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos: é a mais
pura emanação do próprio Criador; é sua própria virtude que ele dá à
criatura. Como poderíamos desprezar essa suprema bondade? Com esse
pensamento, qual seria o coração assaz perverso para reprimir e expulsar
esse sentimento todo divino? Qual seria o filho malvado o bastante para se
rebelar contra esse doce carinho que é a caridade?
Não ouso falar do que eu fiz, porque os Espíritos também têm o pudor de
196 – Allan Kardec

suas obras; mas eu creio que essa que eu comecei seja uma daquelas que mais
devem contribuir para o alívio dos seus semelhantes. Vejo com frequência os
Espíritos pedirem permissão para continuar a minha tarefa; eu as vejo,
minhas bondosas e caras irmãs, no seu piedoso e divino ministério; eu as vejo
praticar a virtude que eu lhes recomendo, com toda a alegria proporcionada
por essa existência de devotamento e de sacrifícios; para mim é uma grande
felicidade ver o quanto o seu caráter é honrado, o quanto a sua missão é
amada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e firme vontade,
unam-se para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; vocês
encontrarão a recompensa dessa virtude na sua própria execução; não há
alegria espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Fiquem unidos;
amem-se uns aos outros segundo os preceitos do Cristo. Assim seja.
SÃO VICENTE DE PAULO (Paris, 1858)

13. Eu me chamo caridade; eu sou a rota principal que conduz a Deus. Sigam-
me, pois eu sou o objetivo para o qual todos vocês devem visar.
Eu fiz esta manhã o meu passeio habitual e, com o coração partido,
venho lhes dizer: Oh, meus amigos! Quantas misérias, quantas lágrimas e
quanto vocês têm a fazer para secar todas elas! Em vão eu procurei consolar
algumas pobres mães; eu disse ao ouvido delas: Coragem! Há bons corações
que velam por vocês; nós não lhes abandonaremos! Paciência! Deus está aqui;
vocês são suas amadas, são suas eleitas. Elas pareciam me ouvir e se vivaram
para o meu lado com os olhos arregalados; eu lia no pobre rosto delas que
seus corpos — esses tiranos do Espírito — tinham fome, e que se minhas
palavras serenavam um pouco seus corações, não enchiam seus estômagos.
Eu repetir então: Coragem! Coragem! E uma pobre mãe, muito jovem, que
amamentava uma criancinha, tomou-a nos braços e a estendeu no espaço
vazio, como a me pedir que protegesse aquela pobre criaturinha, que só
encontrava num seio estéril uma alimentação insuficiente.
Noutros lugares, meus amigos, eu vi pobres idosos sem trabalho e quase
sem abrigo, vítimas de todos os sofrimentos da necessidade e, envergonhados
de sua miséria, não ousando — eles que nunca mendigaram — ir implorar a
piedade dos transeuntes. Com o coração comovido de compaixão, eu que nada
197 – O Evangelho segundo o Espiritismo

tenho, me fiz mendiga em favor deles, e vou a todo canto estimular a


beneficência, inspirar bons pensamentos aos corações generosos e
compassivos. É por isso que eu venho a vocês, meus amigos, e lhes digo: Há
por aí pessoas infelizes cuja cesta está sem pão, o fogão está sem lenha e a
cama sem coberta. Não lhes digo o que vocês devem fazer; deixo a iniciativa
aos seus bons corações; se eu lhes ditasse sua linha de conduta, vocês não
teriam nenhum mérito de sua boa ação; mas eu lhes digo apenas: Eu sou a
caridade e eu lhes estendo as mãos pelos seus irmãos sofredores.
Mas se peço, também dou e dou bastante; eu lhes convido para um
grande banquete e forneço a árvore em que todos vocês se saciarão! Vejam
como ela é bela e o quanto está carregada de flores e de frutos! Vão! Vão e
colham, apanhem todos os frutos dessa bela árvore que se chama
beneficência. No lugar dos ramos que vocês arrancarem, eu colocarei todas as
boas ações que vocês fizerem e levarei essa árvore a Deus, para que ele a
carregue de novo, pois a beneficência é inesgotável. Portanto, sigam-me, meus
amigos, a fim de que eu conte com vocês entre os que se alistam sob a minha
bandeira. Sejam destemidos; eu lhes conduzirei pelo caminho da salvação,
porque sou a Caridade.
CÁRITAS, martirizada em Roma (Lyon, 1861)

14. Há várias maneiras de fazer a caridade que muitos de vocês confundem


com esmola; no entanto, há uma grande diferença. A esmola, meus amigos,
algumas vezes é útil, porque ela aos pobres, mas quase sempre ela é
humilhante, tanto para quem a dá quanto para quem a recebe. A caridade, ao
contrário, enlaça o benfeitor e o beneficiado; além disso, ela se disfarça de
várias maneiras. É possível ser caridoso até mesmo com os parentes e com os
amigos, sendo indulgentes uns com os outros, em se perdoando as fraquezas,
tendo o cuidado para não ferir o amor-próprio de ninguém. Para vocês,
espíritas, na sua maneira de agir para com aqueles que não pensam como
vocês, levando os menos esclarecidos a crer, e isso sem os constranger, sem
romper contra as convicções deles, mas sim atraindo-os gentilmente às
nossas reuniões, em que eles poderão nos ouvir e então nós bem saberemos
encontrar a brecha do coração pela qual deveremos penetrar. Eis aqui um dos
198 – Allan Kardec

aspectos da caridade.
Agora escutem o que é a caridade para com os pobres, esses deserdados
deste mundo, mas os recompensados de Deus, se eles souberem aceitar suas
misérias sem murmurar, e isso depende de vocês. Vou me fazer compreender
por um exemplo.
Vejo, várias vezes na semana, uma reunião de senhoras de todas as
idades; para nós, como vocês sabem, todas elas são irmãs. O que fazem, então?
Elas trabalham depressa, depressa; os dedos são ágeis; vejam também como
os semblantes estão radiantes e como os corações batem uníssonos! Mas qual
é o objetivo delas? É que eles veem se aproximando o inverno, que será rude
para os lares pobres; as formigas não puderam acumular durante o verão os
grãos necessários para o abastecimento e a maior parte desses grãos já está
comprometida. As pobres mães se inquietam e choram ao pensar nos
filhinhos que, neste inverno, vão sentir frio e fome! Mas tenham paciência,
pobres mães! Deus tem inspirado outras mulheres mais afortunadas, que
estão reunidas e confeccionando roupinhas para vocês; depois, um dia desses,
quando a neve tiver coberto o chão e que vocês estejam murmurando,
dizendo: “Deus não é justo” — pois essa é expressão comum para vocês que
sofrem — então vocês vão ver aparecer um dos filhos dessas boas
trabalhadoras que se constituíram obreiras dos pobres; sim, foi para vocês
que elas trabalharam tanto, e os seus lamentos se transformarão em bênçãos,
porque no coração dos infelizes o amor segue bem perto do ódio.
Como é necessário a todas essas trabalhadoras um encorajamento, eu
vejo de todas as partes comunicações espíritas chegando para elas; os homens
que fazem parte dessa sociedade trazem também a sua contribuição, fazendo
uma dessas leituras que tanto agradam. E nós, para recompensarmos o zelo
de todos e de cada um em particular, nós prometemos a essas obreiras
batalhadoras uma boa clientela que lhes pagará, à vista, com bênçãos — a
única moeda que tem valor no céu — garantindo-lhes também, e sem receio
de ir mais longe, que essa moeda não lhes faltará.
CÁRITAS (Lyon, 1861)

15. Meus caros amigos, cada dia eu ouço entre vocês alguns que dizem: “Eu
199 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sou pobre, não posso fazer caridade”; e cada dia eu os vejo faltar com a
indulgência para com os semelhantes; vocês não lhes perdoam nada e muitas
vezes se erguem como juízes severos, sem se perguntarem se vocês ficariam
satisfeitos caso alguém fizesse o mesmo com relação a vocês. A indulgência
também não é uma caridade? Vocês que só podem fazer a caridade
indulgente, pelo menos façam isso! Mas façam grandemente! Quanto à
caridade material, vou lhes contar uma história do outro mundo.
Dois homens tinham acabado de morrer; Deus havia dito: Enquanto
esses dois homens viverem, serão colocadas em sacos as boas ações de cada
um deles, e quando ambos morrerem os sacos serão pesados. Quando esses
dois homens chegaram à sua última hora, Deus ordenou que trouxessem os
dois sacos; um era grosso, alto, bem volumoso e o metal que o preenchia
ressoava; o outro saco era tão pequeno e tão fino que dava para ver as raras
moedas que ele continha; e cada um desses homens reconheceu seu saco:
Aqui está o meu — disse o primeiro —, eu o reconheço; fui rico e fiz bastante
doação. Este é o meu — disse o outro — sempre fui pobre! Oh, não tinha
quase nada para repartir. Mas, que surpresa! Colocando os dois sacos na
balança, o mais volumoso se tornou leve e o pequeno ficou pesado, tanto que
ele elevou bastante o outro prato da balança. Então Deus disse ao rico: Você
doou muito, é verdade, mas doou por ostentação e para ver o teu nome
aparecer em todos os templos do orgulho, e ademais, ao doar, você não se
privou de nada; vá para a esquerda e fique satisfeito, pois a tua esmola ainda
será contada para alguma coisinha a teu favor. Depois, Deus disse ao pobre:
Você doou pouco, meu amigo, mas cada uma dessas moedas que estão nesta
balança representa uma privação para ti; se você não deu esmolas, por outro
lado você fez caridade, e o que é melhor, você fez caridade naturalmente, sem
pensar se alguém levaria isso em conta; você foi indulgente e não julgou o teu
semelhante; ao contrário, você desculpou todas essas ações: passa para a
direita e vá receber a tua recompensa.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Lyon, 1861)

16. A mulher rica, feliz, que não tem precisão de empregar seu tempo nos
trabalhos domésticos, não poderia consagrar algumas horas para trabalhos
200 – Allan Kardec

úteis em favor dos seus semelhantes? Que ela compre, com o supérfluo dos
seus prazeres, algo para agasalhar o infeliz que treme de frio; que ela
confeccione com suas mãos delicadas algumas roupas grosseiras, mas
quentes; que ela ajude uma mãe a cobrir o filho que vai nascer. Se com isso o
seu filho ficar com algumas rendas a menos, o filho do pobre terá mais calor.
Trabalhar para os pobres é trabalhar na vinha do Senhor.
E você, pobre operária que não tem supérfluos, mas que, no teu amor
pelos irmãos, também deseja dar do pouco que possui algumas horas do teu
dia, do teu tempo, teu único tesouro: faça alguns desses trabalhos elegantes
que encantam os afortunados; venda o produto das tuas vigília e você também
poderá proporcionar aos teus irmãos a tua parte de lenitivo; você talvez fique
com algumas fitas a menos, mas doará sapatos a alguém que tem os pés
descalços.
E vocês, mulheres devotadas a Deus, trabalhem também na sua obra,
mas que as suas obras delicadas e custosas não sejam confeccionadas
somente para adornar suas capelas, para chamar a atenção sobre suas
habilidades e paciência; trabalhem, minhas filhas, e que o prêmio dessas
obras seja consagrado ao reconforto dos seus irmãos em Deus, pois os pobres
são seus filhos bem-amados; trabalhar para os pobres é glorificar a Deus.
Sejam a Providência, que diz: aos pássaros do céu Deus dá o alimento. Que o
ouro e a prata que suas mãos tecem se transformem em roupa e comida para
aqueles que não os têm. Façam isso e o trabalho de vocês será abençoado.
E todos vocês, que podem produzir e doar algo: doem sua inteligência,
doem suas inspirações, doem seu coração, e Deus lhes abençoará. Poetas,
literatos, que só são lidos pelas pessoas mundanas: satisfaçam seus lazeres,
mas que o produto de algumas de suas obras seja destinado para o alívio dos
infelizes. Pintores, escultores, artistas de todos os gêneros: que a sua
inteligência venha também em ajuda aos seus irmãos; vocês não terão menos
glória e terão alguns sofrimentos a menos.
Todos vocês podem fazer uma doação; em qualquer classe que estejam,
vocês têm alguma coisa de que possam compartilhar; seja o que for que Deus
lhes tenha concedido, vocês devem uma parte disso àquele a quem falta o
necessário, porque no lugar deles vocês ficariam bem felizes se alguém
201 – O Evangelho segundo o Espiritismo

dividisse com vocês. Seu tesouro na Terra será um pouco menor, mas o seu
tesouro no céu será mais abundante; lá vocês colherão o cêntuplo do que
tiverem semeado em benefício neste mundo.
JOÃO (Bordeaux, 1861)

A piedade
17. A piedade é a virtude que mais aproxima vocês dos anjos; ela é a irmã da
caridade que os conduz rumo a Deus. Ah, deixem o coração se enternecer em
face das misérias e dos sofrimentos dos seus semelhantes; suas lágrimas são
um bálsamo que vocês derramam nas feridas deles, e quando, por uma doce
simpatia, vocês chegarem a devolver a eles esperança e resignação, que
encanto vocês experimentarão! Esse encanto, é verdade, tem um certo
amargor, porque ele nasce ao lado do infortúnio; mas ele não tem a acidez dos
prazeres mundanos, nem as pungentes decepções do vazio que isso produz;
ele tem uma suavidade envolvente que enche a alma de júbilo. A piedade, uma
piedade bem sentida, é a do amor; amor é devotamento; devotamento é o
esquecimento de si mesmo, e esse esquecimento, essa abnegação em favor
dos infelizes, é a virtude por excelência, aquela que o divino Messias praticou
em toda a sua vida e que ensinou na sua doutrina tão santa e tão sublime.
Quando essa doutrina for restabelecida na sua pureza original, quando for
adotada por todos os povos, ela trará a felicidade à Terra, fazendo finalmente
reinar aqui a concórdia, a paz e o amor.
O sentimento mais apropriado para fazê-los progredir — domando o seu
egoísmo e o seu orgulho, aquele sentimento que predispõe suas almas à
humildade, à beneficência e ao amor do próximo — é a piedade, aquela
piedade que os comove até suas entranhas, diante dos sofrimentos dos seus
irmãos; que faz com que vocês estendam a eles uma mão socorrista e que
arranca em vocês lágrimas de simpatia. Portanto, nunca abafem em seus
corações essa emoção celeste, nem façam como esses egoístas endurecidos
que se afastam dos aflitos, porque o espetáculo das misérias deles perturbaria
por alguns instantes a alegre existência de vocês. Tomem cuidado para não
ficarem indiferentes quando vocês puderem ser úteis; a tranquilidade
202 – Allan Kardec

comprada ao preço de uma indiferença culposa é a tranquilidade do Mar


Morto32, que esconde no fundo de suas águas a lama fétida e a corrupção.
Entretanto, quão longe está a piedade de causar perturbação e
aborrecimento tal como o egoísta teme! Sem dúvidas, a alma experimenta, ao
contato da infelicidade alheia e ao olhar em torno de si mesma, um
desconforto natural e profundo que faz vibrar todo o seu ser e o afeta
penosamente; mas a compensação é grande quando vocês conseguem
devolver a coragem e a esperança a um irmão infeliz que se enternece ao
aperto de uma mão amiga e cujo olhar, às vezes úmido de emoção e de
reconhecimento, se vira docemente para vocês, antes de se fixar no céu em
agradecimento por lhe ter enviado um consolador, um amparo. A piedade é o
melancólico, mas celeste precursor da caridade, a primeira das virtudes da
qual ela é irmã e para a qual ela prepara e enobrece os benefícios.
MIGUEL (Bordeaux, 1862)

Os órfãos
18. Meus irmãos, amem os órfãos; se vocês soubessem como é triste ficar
sozinho e abandonado, sobretudo na infância! Deus permite que haja órfãos
para nos estimular a servi-los como pais. Que divina caridade é amparar uma
pobre criancinha abandonada, evitar que ela passe fome e frio, dirigir sua
alma a fim de que ela não se perca nos vícios! Quem estende a mão a uma
criança abandonada agrada a Deus, porque compreende e pratica a sua lei.
Pensem também que muitas vezes a criança que vocês estão socorrendo lhes
foi cara em outra encarnação; e se pudessem se lembrar, isso já não seria uma
caridade, mas um dever. Então, meus amigos, todo ser sofredor é seu irmão e
tem direito à sua caridade; não aquela caridade que magoa o coração, não
aquela esmola que queima a mão em que cai, pois frequentemente os seus
óbolos são bem amargos. Quantas vezes eles seriam recusados se, no porão, a
doença e a miséria não os estivessem esperando! Doem com delicadeza e

32Mar Morto: menção ao grande lago que banha parte de Israel, da Cisjordânia e da Jordânia, assim
chamado devido à condição hipersalina de suas águas e de sua lama negra rica em sais minerais, que
impossibilitam a sobrevivência de peixes, vegetais e demais espécies de seres vivos. — N. T.
203 – O Evangelho segundo o Espiritismo

acrescente o benefício mais precioso de todos: uma boa palavra, um carinho,


um sorriso amigo; evitem esse tom de proteção, que remexa a lâmina no
coração que sangra, e pensem que fazendo o bem vocês estão trabalhando
para si mesmos e para os outros.
UM ESPÍRITO FAMILIAR (Paris, 1860)

Benefícios pagos com a ingratidão33


19. O que devemos pensar das pessoas que, pelos benefícios que prestaram,
foram retribuídas com a ingratidão e por isso já não fazem mais o bem por
medo de encontrar pessoas ingratas?
Essas pessoas têm mais egoísmo do que caridade, porque fazer o bem só
para receber demonstrações de reconhecimento não é fazer caridade com
desinteresse, e a boa ação desinteressada é a única que agrada a Deus. É
também orgulho dessas pessoas, porque elas se comprazem com a humildade
do beneficiado que vem prestar seu reconhecimento aos pés delas. Aquele
que procura na Terra a recompensa pelo bem que pratica não a receberá no
céu; mas Deus levará em conta aquele que não a busca no mundo.
É preciso sempre ajudar os fracos, embora sabendo de antemão que
aqueles a quem fizemos o bem não serão gratos por isso. Pois saibam que se a
pessoa a quem vocês prestam um serviço esquecer esse favor, Deus o levará
em conta mais do que se vocês já tivessem sido recompensados com o
reconhecimento daquela pessoa beneficiada. Deus às vezes permite que
vocês sejam pagos com a ingratidão para experimentar a perseverança
de vocês em fazer o bem.
Aliás, quem sabe se esse benefício agora esquecido não trará mais tarde
bons frutos? Estejam certos de que, por outro lado, isso é uma semente que
germinará com o tempo. Infelizmente vocês só enxergam o presente; vocês
trabalham para si, e não em favor dos outros. As boas ações acabam por
amolecer os corações mais endurecidos; elas podem ser esquecidas neste
mundo, mas quando o Espírito se desembaraçar do seu véu carnal, então se
33 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
204 – Allan Kardec

lembrará deles e essa lembrança será o seu castigo; e aí ele lamentará pela
sua ingratidão e desejará reparar sua falta, pagar a dívida em outra existência,
não raro aceitando até mesmo uma vida de dedicação em favor do benfeitor. É
assim que, sem suspeitarem, vocês terão contribuído para o adiantamento
moral daquela pessoa, e reconhecerão mais tarde toda a veracidade deste
preceito: Uma boa ação jamais se perde. Mas vocês também terão trabalhado
para vocês mesmos, porque terão o mérito de haver feito o bem com
desinteresse, e sem se deixarem desanimar com as decepções.
Ah, meus amigos! Ah se vocês conhecessem todos os laços que na vida
presente os conectam às existências anteriores; ah se pudessem abarcar a
imensidade de relações que aproximam os seres uns aos outros para o seu
mútuo progresso, então ficariam ainda mais admirados com a sabedoria e a
bondade do Criador, que os permite reviverem para chegarem até ele.
GUIA PROTETOR (Sens, 1862)

Beneficência exclusiva34
20. A beneficência está bem entendida quando ela é exclusiva entre as pessoas
da mesma opinião, da mesma crença ou do mesmo partido?
Não, isso representa mais um espírito de seita e de partido, que precisa
ser abolido, porque todos os homens são irmãos. O verdadeiro cristão vê
irmãos em todos os seus semelhantes, e antes de socorrer aquele que está na
necessidade ele não consulta nem a sua crença nem a sua opinião — seja lá
sobre o que for. Será que ele estaria seguindo o preceito de Jesus Cristo — que
diz para amarmos até os inimigos — se ele repulsasse um infeliz só por causa
que este infeliz tivesse uma crença diferente da sua? Que ele o socorra,
portanto, sem lhe pedir contas da sua consciência, pois se esse necessitado for
um inimigo da religião, esse será o meio de fazer com que ele a ame;
repelindo-o, faria com que ele a odiasse.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

34 Mesmo caso da nota sobre o subtítulo anterior. — N. T.


205 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XIV

HONREM SEU PAI E SUA MÃE


Piedade filial – Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?
– Parentesco corporal e parentesco espiritual – INSTRUÇÕES DOS
ESPÍRITOS: Ingratidão dos filhos e os laços de família

1. Você conhece os mandamentos: não cometa adultério; não mate; não


roube; não preste falso testemunho; não faça mal a ninguém; honre seu pai e
sua mãe. (São Marcos, 10: 19; são Lucas, 18: 20; são Mateus, 19: 18 e 19)

2. Honre seu pai e sua mãe, a fim de viver longo tempo na terra que o Senhor
teu Deus te dará. (Decálogo; Êxodo, 20: 12)

Piedade filial
3. O mandamento “Honrem seu pai e sua mãe” é uma consequência da lei
geral de caridade e de amor ao próximo, pois não podemos amar ao próximo
sem amar o pai e a mãe; porém, a palavra honrar traz um dever a mais para
com os pais, que é o dever da piedade filial. Deus quis mostrar com isso que
ao amor é preciso acrescentar o respeito, a consideração, a submissão e a
condescendência — o que implica a obrigação de cumprir para com eles, de
um modo ainda mais rigoroso, tudo o que a caridade manda em relação ao
próximo. Esse dever se estende naturalmente às pessoas que ocupam o lugar
de pai e de mãe, e que por isso têm tanto mais mérito quanto menos sua
dedicação for obrigatória. Deus sempre pune com rigor toda violação desse
mandamento.
Honrar o pai e a mãe não é somente respeitá-los; é também ajudá-los na
necessidade; é lhes proporcionar repouso na velhice; é cercá-los de cuidados
206 – Allan Kardec

assim como eles fizeram por nós na nossa infância.


É principalmente para os pais sem recursos que se demonstra a
verdadeira piedade filial. Será que estariam cumprindo esse mandamento
aquelas pessoas que acham que estão fazendo um grande esforço ao darem
aos seus pais somente o estritamente necessário para eles não morrerem de
fome, enquanto elas mesmas não se privam de nada? Ou relegando seus pais
aos mais ínfimos cômodos da casa, apenas para não os deixarem na rua,
reservando para si o que há de melhor e de mais confortável? Feliz ainda
quando eles não fazem isso de má vontade e não os faça comprar o tempo que
lhes resta para viver, descarregando sobre eles o peso das tarefas domésticas!
Será então que cabe aos pais idosos e frágeis serem os servos dos filhos
jovens e fortes? Será que sua mãe comercializou o leite dela quando eles
estavam no berço? Será que ela contou as vigílias quando eles estavam
doentes? Ela contou os passos para conseguir aquilo de que eles tinham
necessidade? Não! Não é somente o estritamente necessário que os filhos
devem a seus pais pobres, mas eles também devem, tanto quanto puderem, as
pequenas doçuras do supérfluo, a consideração, os cuidados delicados, que
não são mais do que os juros do que eles receberam, o pagamento de uma
dívida sagrada. Esta é a única piedade filial aceita por Deus.
Infeliz daquele, portanto, que esquece o que deve aos que o sustentaram
na sua fragilidade, que com a vida material lhe deram a vida moral e que
muitas vezes se impuseram duras privações para assegurar o bem-estar do
filho. Ai do ingrato, porque este será punido pela ingratidão e pelo abandono;
ele será ferido nas suas mais caras afeições, algumas vezes já na vida
presente, mas certamente em outra existência, em que ele sofrerá aquilo que
fez os outros sofrerem.
É certo que alguns pais não cumprem seus deveres e não são para os
seus filhos o que deviam ser; porém, é a Deus que cabe puni-los, e não a seus
filhos; não cabe a estes censurá-los, porque talvez eles mesmos tenham
merecido que fosse assim. Se a caridade instituiu a lei de retribuir o mal com o
bem, de ser indulgente para com as imperfeições alheias, de não maldizer o
próximo, de esquecer e perdoar seus erros e até de amar os inimigos, então
quanto maior não deve ser a obrigação em relação aos pais! Por isso, os filhos
207 – O Evangelho segundo o Espiritismo

tomar como regra de conduta para com os pais todos os preceitos de Jesus
referentes ao próximo e dizer a si mesmo que todo procedimento ofensivo
dirigido aos estranhos é ainda mais censurável quando dirigido aos mais
próximos, e que aquilo que talvez seja só uma simples falta no primeiro caso
pode se tornar um crime no segundo, porque então, além da falta de caridade,
junta-se a ingratidão.

4. Deus disse: “Honre teu pai e tua mãe, a fim de viver longo tempo na terra
que o Senhor teu Deus te dará.” Por que então ele promete como recompensa
a vida na Terra, e não a vida celeste? A explicação para isso se encontra nestas
palavras: “que Deus te dará”, suprimidas na formato moderno do decálogo —
o que desfigura o sentido natural. Para compreendermos essa expressão, é
preciso nos reportarmos à situação e às ideias dos hebreus naquela época em
que ela foi dita; os hebreus ainda não compreendiam a vida futura; sua visão
não se estendia além da vida corpórea e, por isso, eles tinham que ser
impressionados mais pelo que viam do que pelo que não viam; eis por que
Deus lhes fala numa linguagem ao alcance deles e, tal como a crianças, ele lhes
apresenta em perspectiva aquilo que pode satisfazê-los. Naquela época, eles
estavam no deserto e a terra que Deus lhes dará é a Terra Prometida, objetivo
das suas aspirações: eles não desejavam mais nada, e Deus lhes diz que eles
viverão lá por um longo tempo, isto é, que a possuirão por um longo tempo, se
observarem seus mandamentos.
Contudo, com a vinda de Jesus as ideias dos hebreus já estavam mais
desenvolvidas; tendo chegado o momento de dar a eles uma alimentação
menos grosseira, Jesus os inicia na vida espiritual, dizendo-lhes: “Meu reino
não é deste mundo; é lá, e não na Terra, que vocês receberão a recompensa
das suas boas obras.” Por essas palavras, a Terra Prometida material se
transforma numa pátria celeste; sendo assim, quando ele os chama à
observância do mandamento “Honrem seu pai e sua mãe”, já não é mais a
Terra que ele lhes promete, mas sim o céu. (Caps. II e III.)

Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?


5. E tendo chegado na casa, reuniu-se ali uma multidão tão grande que ele
208 – Allan Kardec

nem conseguia fazer sua refeição. Quando seus parentes souberam disso,
vieram buscá-lo, pois diziam que ele tinha perdido o juízo.
Entretanto, sua mãe e seus irmãos vieram, e, ficando do lado de fora,
mandaram chamá-lo. Ora, o povo estava sentado em torno dele e lhe
disseram: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e te chamam.” — Mas ele lhes
respondeu: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? — E olhando
para aqueles que estavam sentados em torno dele, disse ele: Eis aqui minha
mãe e meus irmãos; pois todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu
irmão, minha irmã e minha mãe. (São Marcos, 3: 20, 21; 31 a 35; são Mateus,
12: 46 a 50)

6. Certas palavras parecem estranhas na boca de Jesus, e contrastam com sua


bondade e sua inalterável benevolência para com todos. Os incrédulos não
deixaram de fazer disso uma arma, dizendo que ele contradizia a si mesmo.
Um fato irrecusável é que sua doutrina tem por base essencial — por pedra
angular — a lei de amor e de caridade; ele não podia, pois, destruir de um
lado aquilo que estabelecia do outro. Disso é preciso tirar esta consequência
rigorosa: se certas máximas estão em contradição com a base essencial, é que
as palavras que lhe atribuem foram mal reproduzidas, mal compreendidas ou
elas não são de Jesus.

7. As pessoas se espantam — com razão — em ver, nesta circunstância, Jesus


mostrar tanta indiferença para com seus parentes e, de algum modo, negar
sua mãe.
Com relação aos seus irmãos, sabe-se que eles jamais tiveram simpatia
por Jesus; sendo Espíritos pouco avançados, eles não tinham compreendido
sua missão; aos olhos deles, a conduta de Jesus era estranha e seus
ensinamentos não os tinham sensibilizados, visto que Jesus não teve nenhum
dos irmãos entre seus discípulos. Parece, inclusive, que até certo ponto eles
compartilhavam dos preconceitos dos inimigos de Jesus. O que é certo, afinal,
é que o acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando ele
aparecia à família, e são João diz concretamente “que eles não acreditavam
nele.” (João, 7: 5)
Quanto à sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura dela por seu
209 – O Evangelho segundo o Espiritismo

filho; mas é preciso convir também que ela não parecia ter feito uma ideia
muito justa da missão de Jesus, pois jamais a viram seguir os ensinamentos
dele, nem lhe prestar testemunho, tal como João Batista fez; o zelo maternal
era o sentimento dominante nela. Com relação a Jesus, supor que ele tenha
renegado a mãe seria desconhecer o seu caráter; tal pensamento não podia
animar aquele que disse: Honre seu pai e sua mãe. É preciso então procurar
outro sentido para suas palavras, quase sempre veladas sob a forma alegórica.
Jesus não perdia nenhuma ocasião de dar um ensinamento; com isso, ele
aproveitou aquele que lhe oferecia a chegada de sua família para estabelecer a
diferença que existe entre o parentesco corporal e o parentesco espiritual.

Parentela corpórea e parentela espiritual

8. Os laços do sangue não estabelecem necessariamente laços entre os


Espíritos. O corpo procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito,
porque o Espírito já existia antes da formação do corpo; não é o pai que cria o
Espírito de seu filho; ele apenas fornece o envelope corpóreo; mas ele deve
ajudar seu desenvolvimento intelectual e moral, para fazê-lo progredir.
Os Espíritos que encarnam numa mesma família — sobretudo como
parentes próximos — são na maioria das vezes Espíritos simpáticos, unidos
por relações anteriores que se traduzem por uma afeição entre eles durante a
vida terrena; mas pode acontecer também que esses Espíritos sejam
completamente estranhos uns aos outros, divididos por antipatias igualmente
anteriores, que se traduzem igualmente por um mútuo antagonismo na Terra,
para lhes servir de provação. Logo, os verdadeiros laços de família não são os
da consanguinidade, e os da simpatia e da comunhão de pensamentos que
unem os Espíritos antes, durante e depois de suas encarnações. Donde se
segue que dois seres nascidos de pais diferentes podem ser mais irmãos pelo
Espírito do que se eles fossem irmãos de sangue; eles podem se atrair, se
procurar e gostar de ficar juntos, enquanto dois irmãos consanguíneos podem
se estranharem, assim como se vê todos os dias — problema moral que só o
espiritismo podia resolver pela pluralidade das existências. (Cap. IV, item 13.)
210 – Allan Kardec

Há, pois, dois tipos de famílias: as famílias pelos laços espirituais e as


famílias pelos laços corporais; as primeiras são duráveis, se fortalecem pela
purificação e se perpetuam no mundo dos Espíritos através das várias
migrações da alma; as segundas são frágeis como a matéria, se extinguem com
o tempo e muitas vezes se dissolvem moralmente já desde a vida atual. Foi
isso o que Jesus quis tornar compreensível ao se referir aos seus discípulos:
Aqui estão minha mãe e meus irmãos, isto é, minha família pelos laços do
Espírito, pois todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus é
meu irmão, minha irmã e minha mãe.
A hostilidade de seus irmãos está claramente expressa no relato de são
Marcos, pois, — diz ele — eles pretendiam se apoderar dele, sob o pretexto de
que ele tinha perdido o juízo. Ao anunciarem a chegada dos seus irmãos,
Jesus conhecendo os sentimentos que eles tinham a seu respeito, era natural
que ele dissesse, referindo-se a seus discípulos, do ponto de vista espiritual:
“Aqui estão meus verdadeiros irmãos.” Embora sua mãe estivesse com eles,
Jesus generaliza o ensinamento — o que não significa, de maneira alguma,
que ele tivesse pretendido declarar que sua mãe carnal não fosse nada para
ele como Espírito, nem que ele tivesse por ela apenas indiferença; sua
conduta, em outras circunstâncias, provou suficientemente o contrário.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A ingratidão dos filhos e os laços de família


9. A ingratidão é um dos frutos mais imediatos do egoísmo; ela sempre causa
revolta nos corações honestos, mas a ingratidão dos filhos para com os pais
tem um caráter ainda mais odioso: é especialmente desse ponto de vista que
nós vamos encará-la, para analisar suas causas e seus efeitos. Aqui, como em
todos os pontos, o espiritismo vem projetar luz sobre um dos problemas do
coração humano.
Quando o Espírito deixa a Terra, ele leva consigo as paixões ou as
virtudes inerentes à sua natureza, e vai no Espaço se aperfeiçoando ou
ficando estacionado até que queira ver a luz. Muitos deles, no entanto, partem
211 – O Evangelho segundo o Espiritismo

carregando com eles os ódios violentos e os desejos de vingança não saciados;


mas para alguns dentre eles, mais adiantados do que os outros, é permitido
vislumbrar uma pontinha da verdade; estes então reconhecem os funestos
efeitos de suas paixões e é daí que eles tomam boas resoluções; eles
compreendem que para chegar a Deus, só há uma senha: caridade. Ora, não
há caridade sem esquecer os ultrajes e as injúrias; não há caridade com ódio
no coração e sem perdão.
Depois disso, com um esforço inédito, eles olham para aqueles a quem
detestavam na Terra; mas com essa visão, a sua animosidade se desperta, eles
se revoltam contra a ideia de perdoar, e ainda mais contra a ideia de
abdicarem de si mesmos, mas sobretudo contra a ideia de amar aqueles que
talvez tenham destruído sua fortuna, sua honra e sua família. Entretanto, o
coração desses infelizes está abalado; eles hesitam, vacilam, agitados por
sentimentos contrários. Se a boa resolução predomina, eles oram a Deus,
imploram aos bons Espíritos para lhes dar força no momento mais decisivo da
provação.
Enfim, após alguns anos de meditações e preces, o Espírito se aproveita
de um corpo carnal que se prepara na família daquele a quem detestou, e
pede aos Espíritos encarregados de transmitir as ordens supremas para ir
cumprir na Terra os destinos daquele corpo que acaba de se formar. Qual será
então a sua conduta nessa família? Dependerá da maior ou menor
persistência das suas boas resoluções. O contato incessante com os seres a
quem odiou representa uma prova terrível sob a qual ele sucumbe algumas
vezes, quando a sua vontade não está forte o bastante. Assim, conforme
prevaleça a boa ou a má resolução, ele será amigo ou inimigo daqueles entre
os quais foi chamado a viver. É assim que se explicam esses ódios, essas
repulsões instintivas que notamos em certas crianças e que nenhum ato
anterior parece justificar. De fato, nada naquela existência pôde provocar tal
antipatia; para compreendê-la, é preciso lançar o olhar para o passado.
Ó espíritas! Compreendam agora o grande papel da humanidade;
compreendam que quando vocês produzem um corpo, a alma que nele
encarna vem do espaço para progredir; saibam seus deveres e dediquem todo
o amor de vocês a aproximar essa alma de Deus: esta é a missão que foi
212 – Allan Kardec

confiada a vocês e pela qual receberão a recompensa, se a cumprirem


fielmente. Os cuidados e a educação que vocês derem a esta alma auxiliarão
no aperfeiçoamento e no bem-estar futuro desta alma. Imaginem que a cada
pai e a cada mãe, Deus perguntará: O que fizeram com o filho confiado à sua
guarda? Se ele continuou atrasado por culpa de vocês, então o castigo de
vocês será vê-lo entre os Espíritos sofredores, quando dependia de vocês que
ele fosse feliz. Com isso, vocês mesmos, cheios de remorsos, pedirão para
reparar a própria falta; solicitarão uma nova encarnação para vocês e para
ele, na qual o cercarão de cuidados mais atenciosos, e ele, pleno de
reconhecimento, lhes envolverá com amor.
Portanto, não rejeitem a criança no berço que repulsa sua mãe, nem a
que lhes paga com a ingratidão; não foi o acaso que a fez assim e a trouxe para
vocês. Uma intuição imperfeita do passado se revela, e por aí vocês podem
deduzir que um ou outro já odiou bastante ou foi muito ofendido; que um ou
outro veio para perdoar ou para expiar. Mães, abracem o filho que lhes causa
desgostos e digam a si mesmas: Um de nós dois foi o culpado. Façam por
merecer as alegrias divinas que Deus vinculou à maternidade, ensinando a
esse filho que ele está na Terra para se aperfeiçoar, amar e agradecer. Mas,
infelizmente, muitas de vocês, em vez de reprimir pela educação os maus
princípios inatos de existências anteriores, preservam e alimentam esses
mesmos princípios por uma fraqueza culposa ou por descuido, e mais tarde,
com o coração ulcerado pela ingratidão dos filhos, isso será para vocês — já
nesta vida — um começo de expiação.
A tarefa não é tão difícil quanto poderiam imaginar; ela não exige a
sabedoria do mundo; tanto o ignorante quanto o sábio podem realizá-la, e o
espiritismo vem facilitá-la dando a conhecer a causa das imperfeições do
coração humano.
Desde o berço, a criança manifesta os instintos bons ou maus que traz da
sua existência anterior; é justamente para estudar esses instintos que
devemos nos esforçar. Todos os males têm sua origem no egoísmo e no
orgulho; então, vigiem os mínimos sinais que revelam o germe desses vícios e
dediquem-se a combatê-los sem deixar que eles criem raízes profundas.
Façam como o bom jardineiro, que arranca os brotos nocivos na medida em
213 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que os vê despontar na árvore. Se deixarem o egoísmo e o orgulho se


desenvolver, então não se espantem de serem pagos mais tarde com a
ingratidão. Se os pais tiverem feito tudo o que podiam pelo adiantamento
moral de seus filhos e não conseguiram êxito, então eles não têm de que se
culpar, e a consciência deles pode ficar tranquila; quanto ao amargor muito
natural que eles experimentam pelo insucesso de seus esforços, Deus reserva
uma grande e imensa consolação, pela certeza de que isso não passa de um
breve atraso, e que lhes será concedido concluir em outra existência a obra
começada nesta vida, e que um dia o filho ingrato os recompensará com o seu
amor. (Cap. XIII, item 19.)
Deus não dá nenhuma provação acima das forças daquele que a pede; ele
só permite as que podem ser cumpridas, e se alguém não consegue, não é que
lhe falte possibilidade, mas sim vontade, pois quantos há que, em vez de
resistir aos maus arrastamentos, eles se comprazem com esses males. É a
esses que estão reservados o pranto e os gemidos nas existências posteriores;
mas, admirem a bondade de Deus, que jamais fecha a porta do
arrependimento. Chega o dia em que o culpado se cansa de sofrer, quando o
seu orgulho finalmente é abatido; daí então Deus abre os braços paternais ao
filho pródigo que se lança aos seus pés. As provas rudes — ouçam-me bem —
são quase sempre o indício de um fim de sofrimento e de um
aperfeiçoamento do Espírito, quando essas provas são aceitas diante de
Deus. É um momento supremo, e é aqui, sobretudo, que é importante não falir
pelo murmúrio — caso vocês não queiram perder o fruto das suas provações
e terem de recomeçar. Ao invés de se queixarem, agradeçam a Deus, que lhes
oferece a oportunidade de vencerem, para lhes conceder o prêmio da vitória.
Então, quando tiverem saído do turbilhão do mundo terrestre e entrarem no
mundo dos Espíritos, vocês aí serão aclamados como o soldado que sai
vitorioso da batalha.
De todas as provas, as mais penosas são as que afetam o coração; há
quem suporte com coragem a miséria e as privações materiais, mas que cai
sob o peso das amarguras domésticas, martirizado pela ingratidão dos seus.
Oh, que pungente angústia essa! Mas quem pode, em tais circunstâncias,
restabelecer melhor a coragem moral senão o conhecimento das causas do
214 – Allan Kardec

mal e a certeza de que, se existem longas dilacerações, pelo menos não há


desesperos eternos — pois Deus não pode querer que a sua criatura sofra
para sempre, certo? O que pode ser mais consolador e mais encorajador do
que essa ideia de que cada um depende de si, dos seus próprios esforços, para
abreviar o sofrimento, destruindo em si mesmo as causas do mal? Para isso,
porém, é preciso que a pessoa não detenha seu olhar na Terra e só veja uma
existência; é preciso se elevar, a pairar no infinito do passado e do futuro, e
então a grande justiça de Deus se revela aos olhos de vocês, para que possam
esperar com paciência, porque encontram para si explicação para o que
parecia monstruosidades na Terra. As feridas que vocês aí recebem não lhes
parecem mais do que simples arranhaduras. Nesse golpe de vista lançado
sobre o conjunto, os laços familiares aparecem sob sua verdadeira luz; já não
são mais os laços frágeis da matéria que ligam os membros, mas os laços
duráveis do Espírito, que se perpetuam e se consolidam ao se depurarem, em
vez de se quebrarem pela reencarnação.
Os Espíritos atraídos pela similaridade dos gostos, pela identidade do
progresso moral e pela afeição formam famílias; esses mesmos Espíritos, em
suas migrações terrenas, se procuram para se agruparem como o fazem no
espaço, nascendo daí as famílias unidas e homogêneas. Então, se em suas
peregrinações eles ficarem temporariamente separados, mais tarde se
reencontrarão, felizes pelos novos progressos que realizaram. Mas como eles
não devem trabalhar somente para si, Deus permite que Espíritos menos
avançados encarnem entre eles para aí receberem conselhos e bons exemplos
no interesse do seu avanço; nisso, às vezes esses Espíritos causam problemas,
mas aí está o desafio, aí está a tarefa. Portanto, acolham esses Espíritos como
irmãos; venham em auxílio deles, e mais tarde, no mundo dos Espíritos, a
família se felicitará de ter salvo náufragos que, por sua vez, poderão salvar
outros.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)
215 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XV

FORA DA CARIDADE
NÃO HÁ SALVAÇÃO
O que é preciso para ser salvo. Parábola do Bom Samaritano
– O maior mandamento – Necessidade da caridade segundo Paulo –
Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação
– INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Fora da caridade não há salvação

O que é preciso para ser salvo. Parábola do Bom Samaritano

1. Ora, quando o Filho do homem vier majestosamente, acompanhado de


todos os anjos, então se sentará no trono de sua glória; e estando reunidas
diante dele todos os povos, ele separará uns dos outros, como um pastor
separa as ovelhas dos bodes, e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à
sua esquerda.
Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Venham, vocês que
foram abençoados pelo meu Pai, tomem posse do reino que lhes foi
preparado desde o começo do mundo, porque eu tive fome e vocês me deram
de comer; eu tive sede e me deram de beber; precisei de alojamento e me
hospedaram; estive nu e me vestiram; estive doente e me visitaram; fui preso
e foram me visitar.
Então, os justos lhe responderão: Senhor, quando foi que nós te vimos
com fome e que te demos de comer, ou com sede e que te demos de beber?
Quando foi que te vimos sem alojamento e que te hospedamos; ou sem roupa
e que te vestimos? E quando foi que te vimos doente ou preso e que fomos te
visitar? — E o Rei lhes responderá: Em verdade eu lhes digo, que toda vez que
vocês fizeram isso a um destes pequeninos dos meus irmãos, foi a mim
mesmo que fizeram tudo isso.
216 – Allan Kardec

Em seguida, ele dirá a quem estiver à sua esquerda: Afastem-se de mim,


malditos; vão para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e para seus
anjos, porque eu tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e não
me deram de beber; precisei de alojamento, e não me hospedaram; estive
sem roupa, e não me vestiram; fiquei doente e fui preso, e não me visitaram.
Então eles lhe responderam assim: Senhor, quando foi que nós te vimos
com fome, com sede, sem alojamento ou sem roupa, doente ou na prisão, e
que nós deixamos de te ajudar? — Mas ele lhes responderá: Em verdade eu
lhes digo: que toda vez que vocês deixaram de prestar assistência a um destes
pequeninos, vocês deixaram de socorrer a mim mesmo.
E então esses irão para o suplício eterno, e os justos para a vida eterna.
(São Mateus, 25: 31 a 46)
2. Então um doutor da lei, levantando-se, disse a ele, para tentá-lo: Mestre, o
que eu preciso fazer para possuir a vida eterna? — Jesus lhe respondeu: O
que é que está escrito na lei? O Que é que nela vocês leem? — Ele respondeu:
Amar o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, com todas as
tuas forças e de todo o teu espírito, e a teu próximo como a ti mesmo. —Jesus
lhe disse: Você respondeu muito bem; faça isso e você viverá.
Mas esse homem, querendo parecer que era um justo, diz a Jesus: E
quem é o meu próximo? — E Jesus, tomando a palavra, lhe diz:
Um homem, que voltava de Jerusalém para Jericó, caiu nas mãos de
ladrões, que lhe roubaram os pertences, cobriram-no de ferimentos e se
foram, deixando-o semimorto. Aconteceu em seguida que um sacerdote
descia pelo mesmo caminho e, vendo-o, passou adiante. Um levita, que
também vinha pelo mesmo lugar, tendo-o visto, também passou adiante. Mas
um samaritano que viajava, chegando ao lugar onde aquele homem estava e
vendo-o, ficou tocado de compaixão por ele. Então se aproximou dele,
derramou azeite e vinho nas suas feridas e fez curativos; depois, colocando-o
no seu cavalo, levou-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte,
entregou dois denários ao hoteleiro, dizendo-lhe: Trata muito bem deste
homem e tudo o que gastar a mais, eu te pagarei quando eu retornar.
Qual desses três te parece ter sido o próximo daquele que havia caído
nas mãos dos ladrões? — O doutor da lei lhe respondeu: Aquele que exerceu
de misericórdia para com ele. — Então vá, diz Jesus, e faça o mesmo. (São
Lucas, 10: 25 a 37)
217 – O Evangelho segundo o Espiritismo

3. Toda a moral de Jesus se resume na caridade e na humildade, quer dizer,


nas duas virtudes contrárias ao egoísmo e ao orgulho. Em todos os seus
ensinamentos, ele mostra essas duas virtudes como sendo o caminho da
eterna felicidade: Bem-aventurado — disse ele — os pobres de espírito, isto é,
os humildes, porque deles é o reino dos céus; bem-aventurados aqueles que
têm o coração puro; bem-aventurados aqueles que são mansos e pacíficos;
bem-aventurados os que são misericordiosos; amem o próximo como a si
mesmos; façam aos outros aquilo que gostariam que eles fizessem a vocês;
amem seus inimigos; perdoem as ofensas, se quiserem ser perdoados; façam o
bem sem ostentação; julguem a vocês mesmos antes de julgarem os outros.
Humildade e caridade, eis o que Jesus não cessa de recomendar e do que ele
mesmo dá o exemplo. Orgulho e egoísmo, eis o que ele não cansa de
combater; mas ele faz mais do que recomendar a caridade: ele a põe
nitidamente e em termos explícitos como a condição absoluta da felicidade
futura.
No quadro que Jesus apresenta do juízo final, é preciso — como em
muitas outras coisas — separar a figura e a alegoria. Para homens como
aqueles a quem ele falava, ainda incapazes de compreender as coisas
puramente espirituais, ele devia apresentar imagens materiais, chocantes e
capazes de impressionar; para ser mais bem aceito, ele precisava até mesmo
não se afastar muito das ideias conhecidas, quanto à forma, reservando
sempre para o futuro a verdadeira interpretação de suas palavras e dos
pontos sobre os quais não podiam ser explicados claramente. Mas, ao lado da
parte acessória e figurada do quadro, há uma ideia dominante: a da felicidade
reservada ao justo e da infelicidade reservada ao homem mau.
Naquele julgamento supremo, quais são as considerações da sentença?
Sobre o que é o inquérito? Será que o juiz pergunta se essa ou aquela
formalidade foi cumprida? Se essa ou aquela prática exterior foi observada a
mais ou a menos? Não! Ele só vai inquirir uma coisa: a prática da caridade, e
se pronuncia dizendo: Vocês que ajudaram os irmãos, passem à direita; vocês
que foram duros para com eles, passem à esquerda. Será que ele se informa
sobre a ortodoxia da fé? Será que ele faz qualquer distinção entre aquele que
crê de um jeito e aquele que crê de outro modo? Não, pois Jesus coloca o
218 – Allan Kardec

samaritano — considerado herético, mas que tem amor ao próximo — acima


do ortodoxo que falta com a caridade. Em suma, Jesus não faz da caridade
apenas uma das condições para a salvação, e sim a única condição; se
tivessem outras a serem preenchidas, ele as teria mencionado. Já que ele
coloca a caridade em primeiro lugar na classe das virtudes, é que ela contém
implicitamente todas as outras: a humildade, a doçura, a benevolência, a
indulgência, a justiça etc., e porque ela é a negação absoluta do orgulho e do
egoísmo.

O maior mandamento

4. Os fariseus, tendo ouvido que ele havia calado a boca dos saduceus,
reuniram-se em assembleia; então, um deles, que era doutor da lei, veio lhe
fazer esta pergunta, para tentá-lo: Mestre, qual é o maior mandamento da lei?
— Jesus lhe respondeu: Ame o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a
tua alma e de todo o teu espírito; este é o maior e o primeiro mandamento. E
aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Ame o teu próximo como
a ti mesmo. Toda a lei e os profetas estão contidos nesses dois mandamentos.
(São Mateus, 22: 34 a 40)

5. Caridade e humildade, tal é, portanto, o único caminho da salvação;


egoísmo e orgulho, tal é caminho o da perdição. Este princípio está formulado
em termos precisos nas seguintes palavras: “Ame a Deus, de toda a tua alma, e
ao teu próximo como a ti mesmo; toda a lei e os profetas estão contidos
nesses dois mandamentos.” E, para que não haja equívoco quanto à
interpretação do amor a Deus e ao próximo, Jesus acrescenta: “E aqui está o
segundo mandamento, que é semelhante ao primeiro”; ou seja, que não se
pode verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o
próximo sem amar a Deus. Por isso, tudo o que se faça contra o próximo é
fazê-lo contra Deus. Não podendo amar a Deus sem praticar a caridade para
com o próximo, todos os deveres do homem se encontram resumidos nesta
máxima: FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO.
219 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Necessidade da caridade segundo Paulo


6. Ainda que eu falasse todas as línguas dos homens e até mesmo a língua dos
anjos, se eu não tiver a caridade, eu serei como o bronze que soa ou como o
címbalo que retine; ainda que eu tivesse o dom da profecia, que penetrasse
todos os mistérios e eu tivesse uma perfeita ciência de todas as coisas; ainda
que eu tivesse toda a fé possível, até para transportar montanhas, se eu não
tiver a caridade, eu nada sou. E mesmo que eu tivesse distribuído meus
bens para alimentar os pobres e que eu tivesse entregado meu corpo para ser
queimado, se eu não tiver a caridade, tudo isso não me serviria de nada.
A caridade é paciente; ela é branda e benfazeja; a caridade não é
invejosa; não é temerária nem precipitada; não se enche de orgulho; nunca é
desdenhosa; não procura seus próprios interesses; ela não se irrita nem fica
amargurada com coisa alguma; ela não suspeita mal; não se alegra com a
injustiça, mas se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta.
Agora, permanecem essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade;
mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade. (São Paulo, 1ª Epístola aos
Coríntios, 13: 1 a 7 e 13)

7. São Paulo compreendeu essa grande verdade tão bem que ele disse: “Ainda
que eu tivesse a linguagem dos anjos; que eu tivesse o dom da profecia,
que eu penetrasse em todos os mistérios; que eu tivesse toda a fé possível,
até a de transportar montanhas, se não tiver a caridade, eu nada sou.
Dentre estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente
é a caridade.” Desta forma, sem equívoco, ele coloca a caridade acima até
mesmo da fé; é que a caridade está ao alcance de todo o mundo, do ignorante
ao sábio, do rico ao pobre, e porque ela independe de qualquer crença
particular.
E Paulo faz mais: ele define a verdadeira caridade, mostrando-a não só
na beneficência, mas também na união de todas as qualidades do coração, na
bondade e na benevolência com relação ao próximo.

Fora da Igreja não há salvação – Fora da verdade não há salvação


8. Enquanto a máxima Fora da caridade não há salvação se apoia num
220 – Allan Kardec

princípio universal e abre a todos os filhos de Deus o acesso à suprema


felicidade, o dogma Fora da Igreja não há salvação se apoia não na fé
fundamental em Deus e na imortalidade da alma, fé comum a todas as
religiões, mas numa fé especial, em dogmas particulares; é exclusivo e
absoluto; em vez de unir os filhos de Deus, este dogma os divide; em vez de
incitá-los ao amor pelos seus irmãos, ele alimenta e sanciona a irritação entre
os sectários dos diferentes cultos que se consideram reciprocamente malditos
na eternidade — sejam eles parentes ou amigos nesse mundo. Ignorando a
grande lei de igualdade perante o túmulo, tal dogma os separa até no campo
de repouso. Já a máxima Fora da caridade não há salvação é a consagração
do princípio da igualdade perante Deus e da liberdade de consciência; tendo
esta máxima como regra, todos os homens se tornam irmãos, e qualquer que
seja sua maneira de adorar o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns
pelos outros. Com o dogma Fora da Igreja não há salvação, eles se lançam o
anátema, se perseguem entre si e vivem como inimigos; o pai não ora pelo
filho nem o filho pelo pai, nem o amigo pelo amigo, já que eles se consideram
reciprocamente condenados sem remissão. De tal jeito, esse dogma é
essencialmente contrário aos ensinamentos do Cristo e à lei evangélica.

9. Fora da verdade não há salvação seria equivalente a Fora da Igreja não há


salvação, e seria igualmente exclusivista, porque não existe uma única seita
que não pretenda ter o privilégio da verdade. Qual é o homem que pode se
vangloriar de possuir a verdade integralmente, já que o círculo dos
conhecimentos aumenta sem cessar, e já que as ideias se retificam a cada dia?
A verdade absoluta só é compartilhada entre os Espíritos da ordem mais
elevada, e a humanidade terrena não poderia pretender fazer parte disso,
porque não lhe é dado saber tudo; ela só pode aspirar a uma verdade relativa
e proporcional ao seu adiantamento. Se Deus tivesse feito da posse da
verdade absoluta a condição expressa da felicidade futura, então isso seria um
decreto de interdição geral; ao passo que a caridade — mesmo na sua acepção
mais ampla — pode ser praticada por todos. Em conformidade com o
Evangelho, o espiritismo — admitindo que qualquer um pode ser salvo
independentemente da sua crença, mas desde que siga a lei de Deus — não
221 – O Evangelho segundo o Espiritismo

decreta: Fora do espiritismo não há salvação; e, como ele também não


pretende ensinar toda a verdade, tampouco ele decreta: Fora da verdade não
há salvação — máxima que, em lugar de unir, causaria divisão e perpetuaria
os antagonismos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Fora da caridade não há salvação

10. Meus filhos, na máxima: Fora da caridade não há salvação, estão


contidos os destinos dos homens na Terra e no céu; na Terra, porque sob a
proteção desse estandarte eles viverão em paz; no céu, porque os que a
tiverem praticado encontrarão graça diante do Senhor. Esse emblema é a
tocha celeste, a coluna luminosa que guia o homem no deserto da vida para o
conduzir à Terra Prometida, e ela brilha no céu como uma auréola santa na
fronte dos eleitos, e na Terra se acha gravada no coração daqueles a quem
Jesus dirá: Passem à direita vocês, os benditos de meu Pai. Vocês reconhecem
esses eleitos pelo perfume de caridade que eles espalham ao redor deles.
Nada exprime melhor o pensamento de Jesus, nada resume melhor os deveres
do homem do que essa máxima de ordem divina. O Espiritismo não poderia
provar melhor a sua origem do que a apresentando como regra, pois ela é o
reflexo do mais puro cristianismo; com um guia como esse, o homem nunca se
perderá. Por essa razão, meus amigos, dediquem-se a compreender o seu
sentido profundo e as suas consequências; dediquem-se a buscar para vocês
mesmos todas as suas aplicações. Submetam todas as suas ações ao controle
da caridade e a sua consciência lhes responderá; não só ela evitará que vocês
façam o mal como também lhes fará praticar o bem — já que não basta uma
virtude negativa: é necessária uma virtude ativa. Para fazermos o bem, é
preciso sempre a ação da vontade; para não fazer o mal, basta muitas vezes a
inércia e a indiferença.
Meus amigos, agradeçam a Deus que permitiu que vocês pudessem gozar
da luz do espiritismo; não é que somente aqueles que possuem essa luz
222 – Allan Kardec

possam ser salvos, e sim porque, ajudando-os a compreender melhor os


ensinos do Cristo, ela faz de vocês cristãos melhores. Portanto, façam com
que, ao observarem vocês, todos possam dizer que ser um verdadeiro espírita
e ser um verdadeiro cristão significam uma só e a mesma coisa, pois todos
aqueles que praticam a caridade são discípulos de Jesus, seja qual for o culto a
que pertençam.
PAULO, apóstolo (Paris, 1860)
223 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XVI

NÃO PODEMOS SERVIR


A DEUS E A MAMON
Salvação dos ricos – Preservar-se da avareza – Jesus na casa de
Zaqueu – Parábola do mau rico – Parábola dos talentos – Utilidade
providencial da fortuna. Provas da riqueza e da miséria –
Desigualdade das riquezas – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS:
A verdadeira propriedade – Emprego da riqueza – Desprendimento
dos bens terrenos – Transmissão da fortuna

Salvação dos ricos

1. Ninguém pode servir a dois senhores, pois ou ele odiará a um e amará a


outro ou se apegará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir ao
mesmo tempo a Deus e a Mamon. (São Lucas, 16: 13)

2. Então, um rapaz se aproximou dele e disse: Bom Mestre, que bem eu


preciso fazer para conquistar a vida eterna? — Jesus lhe respondeu: Por que
me chama de bom? Só Deus é que é bom. Se você quiser entrar na vida, siga
os mandamentos. — Ele perguntou: Que mandamentos? Jesus lhe respondeu:
Não mate, não cometa adultério, não roube, não levante falso testemunho.
Honre teu pai e tua mãe e ame o teu próximo como a ti mesmo.
O rapaz lhe respondeu: Eu tenho observado todos esses mandamentos
desde minha juventude; o que ainda me falta? — Jesus lhe disse: Se quiser ser
perfeito, vá, venda tudo o que você possui e doe aos pobres, e você terá um
tesouro no céu; depois, venha e me siga.
Ouvindo essas palavras, o rapaz foi embora muito triste, porque ele
possuía muitos bens. Então Jesus disse aos seus discípulos: Eu lhes digo em
224 – Allan Kardec

verdade que é muito difícil que um rico entre no reino dos céus. Eu lhes digo
ainda mais uma vez: É mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus.35 (São Mateus, 19: 16 a 24;
são Lucas, 18: 18 a 25; são Marcos, 10: 17 a 25)

Preservar-se da avareza
3. Então um homem lhe disse, no meio da multidão: Mestre, diga ao meu
irmão que dívida comigo a herança que nos é devida. — Mas Jesus lhe disse: Ó
homem! Quem me designou para julgá-los ou para fazer a partilha entre
vocês? — Despois acrescentou: Tenha cuidado para se preservar de toda
avareza, porque por mais abundante que o homem seja, sua vida não depende
dos bens que possui.
Em seguida, ele contou a eles esta parábola: Havia um homem rico cujas
terras tinham produzido extraordinariamente, e ele se entretinha a pensar
consigo com estes pensamentos: O que hei de fazer, já que não tenho lugar
onde possa guardar tudo o que tenha a colher? — E disse ele: Já sei o que
farei: demolirei meus celeiros e construirei outros maiores, e aí colocarei toda
a minha colheita e todos os meus bens; então direi à minha alma: Minha alma,
você tem muitos bens em reserva para vários anos; repousa, come, bebe e
aproveita. — Mas Deus, ao mesmo tempo disse a esse homem: Como você é
insensato! Nesta mesma noite vão tomar a tua alma; então para quem ficará o
que você tem acumulado?
Isso é o que acontece àquele que acumula tesouros para si próprio e que
não é rico diante de Deus. (São Lucas, 12: 13 a 21)

Jesus na casa de Zaqueu


4. Tendo Jesus entrado em Jericó, passava pela cidade; e havia ali um homem
chamado Zaqueu, chefe dos publicanos e muito rico, o qual, desejando ver
Jesus, para conhecê-lo, não o conseguia por causa da multidão, pois ser muito
pequeno. Por isso, ele correu adiante e subiu numa figueira para vê-lo, pois

35 Essa figura de linguagem ousada pode parecer um pouco forçada, porque não se vê a relação que
existe entre um camelo e uma agulha. Isso vem do fato de que em hebraico a mesma palavra é aplicada
para cabo e camelo. Na tradução, foi-lhe dada esta última acepção; é provável que seja a primeira
acepção a que estava no pensamento de Jesus; pelo menos é mais natural.
225 – O Evangelho segundo o Espiritismo

ele devia passar por ali. Jesus chegando a esse lugar, ergue os olhos para cima
e, tendo-o visto, disse a ele: Zaqueu, trate de descer daí, porque é preciso que
eu me hospede hoje na tua casa. — Zaqueu desceu imediatamente e o recebeu
com alegria. Vendo isso, todos murmuravam, dizendo: Ele foi se hospedar na
casa de um homem de má vida. (Veja na Introdução, o item Publicanos.)
Entretanto, Zaqueu, apresentando-se diante do Senhor, lhe disse:
Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres, e se tiver causado algum
dano a qualquer um deles, seja no que for, eu o recompensarei quatro vezes
mais. — Sobre o que Jesus lhe disse: Esta casa recebeu hoje a salvação,
porque esse homem também é um filho de Abraão; pois o Filho do Homem
veio para procurar e salvar o que estava perdido. (São Lucas, 19: 1 a 10)

Parábola do Mau Rico


5. Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e de linho, e que cuidava
de si magnificamente todos os dias. Havia também um pobre chamado
Lázaro, deitado à sua porta, todo coberto de úlceras, e que só queria matar
sua fome com as migalhas que caíam da mesa daquele rico; mas ninguém lhe
dava das migalhas, e os cães vinham lamber as chagas dele. Ora, aconteceu
que esse pobre morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O rico
também morreu e teve o inferno como sepultura. E quando estava nos
tormentos, ele levanta os olhos e vê de longe Abraão, e Lázaro em seu seio; e
exclamando, disse estas palavras: Pai Abraão, tenha piedade de mim e me
envie Lázaro, a fim de que molhe a ponta do dedo na água para refrescar a
minha língua, pois estou sofrendo tormentos extremos nessa fornalha.
Mas Abraão lhe respondeu: Meu filho, lembre-se de que você já recebeu
teus bens na vida e que Lázaro não teve mais do que males; é por isso que ele
agora está na consolação e você está nos tormentos.
Além do mais, existe para sempre um grande abismo entre nós e você,
de sorte que aqueles que queiram passar daqui para aí não o podem, como
também ninguém pode passar do lugar onde você está para cá.
O rico lhe disse: Então eu te suplico, pai Abraão, que o mande à casa de
meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de lhes testemunhar essas coisas,
para que eles também não venham para este lugar de tormento. — Abraão
lhe retrucou: Eles têm Moisés e os profetas; que os escutem. — Disse-lhe:
226 – Allan Kardec

Não, pai Abraão; se algum dos mortos for se encontrar com eles, então farão
penitência. — Abraão lhe respondeu: Se eles não escutem nem Moisés nem os
profetas, tampouco eles acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite.
(São Lucas, 16: 19 a 31)

Parábola dos Talentos


6. O Senhor age como um homem que, precisando fazer uma longa viagem
fora do seu país, chama seus servos e entrega seus bens nas mãos deles. E
tendo dado cinco talentos a um, dois a outro e um talento a outro servo,
conforme as capacidades de cada um, daí ele logo parte em viagem. Então, o
que havia recebido cinco talentos vai, negocia com aquele dinheiro e ganha
outros cinco. O que havia recebido dois talentos, do mesmo modo, ganha
outros dois. Quanto àquele que só tinha recebido um, ele foi cavar um buraco
na terra e lá esconde o dinheiro de seu senhor. Depois de um longo tempo,
quando o senhor daqueles servos retornou, ele os fez prestar contas. E aquele
que tinha recebido cinco talentos veio lhe apresentar mais outros cinco,
dizendo-lhe: Mestre, o senhor entregou cinco talentos em minhas mãos: aqui
estão eles, e além deles mais cinco que ganhei. — Seu senhor lhe respondeu:
Ó bom e fiel servo, já que você foi fiel em pouca coisa, eu vou te confiar muitas
outras; desfrute da alegria do teu Senhor. — O que havia recebido dois
talentos também veio se apresentar a ele, e lhe disse: Mestre, o senhor
entregou dois talentos em minhas mãos; aqui estão eles, e além deles mais
outros dois que ganhei. — Seu mestre lhe respondeu: Ó bom e fiel servo, já
que você foi fiel em pouca coisa, eu vou te confiar muitas outras; desfrute da
alegria do teu Senhor. — Aquele que havia recebido um talento veio em
seguida e lhe disse: Mestre, eu sei que o senhor é um homem severo, que ceifa
onde não semeou e que colhe onde nada plantou; por isso, como eu fiquei
com medo de ti, eu fui esconder o teu talento na terra; aqui está ele: eu te
restituo o que é teu. — Mas seu senhor lhe respondeu: Servo mau e
preguiçoso; você sabia que eu ceifo onde não semeei e que eu colho onde
nada plantei: você devia então pôr o meu dinheiro nas mãos dos banqueiros,
a fim de que, ao meu retorno, eu lucrasse com juros o que é meu. Portanto,
que lhe seja tirado o talento que ele tem e que o entregue àquele que tem dez
talentos; pois a todos aqueles que já têm, será dado mais, e eles ficarão
227 – O Evangelho segundo o Espiritismo

cobertos de bens; mas daqueles que nada tem, será tirado dele até mesmo
aquilo que ele parece ter; e que esse servo inútil seja lançado nas trevas
exteriores, lá onde haverá prantos e ranger de dentes. (São Mateus, 25: 14 a
30)

Utilidade providencial da fortuna – Provas da riqueza e da miséria

7. Se a riqueza devesse ser um obstáculo absoluto à salvação dos que a


possuem, assim como poderia ser deduzido de certas palavras de Jesus
interpretadas segundo a letra e não conforme o espírito, Deus — que é quem
concede a riqueza — teria colocado nas mãos de alguns um instrumento de
perdição sem apelação, ideia que repugna à razão. Sem dúvidas, a riqueza é
uma prova muito escorregadia, mais perigosa do que a miséria, devido seus
atrativos, pelas tentações que provoca e pela fascinação que exerce. Ela é a
suprema excitação do orgulho, do egoísmo e da vida sensual; é o laço mais
poderoso que aprisiona o homem à Terra e desvia seus pensamentos do céu;
ela produz uma tal vertigem que muitas vezes aquele que passa da miséria à
riqueza esquece rapidamente a sua primeira condição, esquece aqueles que
com ele a compartilhavam, aqueles que o ajudaram, e se torna insensível,
egoísta e vão. Porém, pelo fato de a riqueza tornar a rota difícil, não significa
que a torne impossível e não possa se tornar um meio de salvação nas mãos
daquele que saiba usá-la, como certos venenos podem restituir a saúde se
forem empregados a propósito e com discernimento.
Quando Jesus disse ao rapaz que o interrogava sobre os meios de ganhar
a vida eterna: Desfaça-se de todos os teus bens e me siga”, não pretendia
estabelecer como princípio absoluto que cada um deva se desfazer do que
possui e que a salvação só seja obtida a esse preço, mas apenas ele quis
mostrar que o apego aos bens terrenos é um obstáculo à salvação. Aquele
rapaz realmente se julgava quite porque observava certos mandamentos e, no
entanto, recuava à ideia de abandonar seus bens; seu desejo de obter a vida
eterna não ia até esse sacrifício.
A proposição que Jesus lhe fez era uma prova decisiva para revelar o
fundo do seu pensamento; ele sem dúvidas podia ser um homem
228 – Allan Kardec

perfeitamente honesto segundo o mundo, não fazer mal a ninguém, não


maldizer o próximo, podia não ser nem vão nem orgulhoso, podia honrar seu
pai e sua mãe; mas ele não tinha a verdadeira caridade, pois sua virtude não ia
até a abnegação. Foi isso o que Jesus quis demonstrar; era uma aplicação do
princípio: Fora da caridade não há salvação.
A consequência dessas palavras tomadas na sua acepção rigorosa seria a
abolição da fortuna como prejudicial à felicidade futura e como fonte de uma
imensidade de males na Terra; além do mais, seria a condenação do trabalho
que pode proporcioná-la — uma consequência absurda que reconduziria o
homem à vida selvagem e que, por isso mesmo, estaria em contradição com a
lei do progresso, que é lei de Deus.
Se a riqueza é a fonte de muitos males, se ela excita tantas más paixões,
se ela provoca até mesmo tantos crimes, devemos culpar não à coisa, mas sim
ao homem que abusa dela, assim como ele abusa de todos os dons de Deus.
Pelo abuso, ele torna pernicioso o que lhe poderia ser mais útil; essa é a
consequência do estado de inferioridade do mundo terrestre. Se a riqueza só
produzisse males, Deus não a teria colocado na Terra; compete ao homem
extrair o bem disso. Se ela não é um elemento direto de progresso moral, é —
sem contestação — um poderoso elemento de progresso intelectual.
Com efeito, o homem tem por missão trabalhar pela melhoria material
do globo; ele deve desbravá-lo, saneá-lo, dispô-lo para receber um dia toda a
população que a sua extensão comporta. Para nutrir essa população que
cresce sem cessar, é preciso aumentar a produção; se a produção de um país é
insuficiente, será necessário ir buscá-la de longe. Por isso mesmo, as relações
entre os povos tornam-se uma necessidade; para facilitar essas relações é
preciso destruir os obstáculos materiais que separam os povos e tornar as
comunicações mais rápidas. Para trabalhos que são obra dos séculos, o
homem teve de extrair os materiais até das entranhas da Terra; ele procurou
na ciência os meios de executá-los com mais segurança e mais rapidez; mas,
para realizar tudo isso ele precisa de recursos: a necessidade o fez criar a
riqueza, tal como ela o fez descobrir a ciência. A atividade requerida para
esses mesmos trabalhos aumenta e desenvolve sua inteligência, e essa
inteligência que ele concentra primeiro na satisfação das necessidades
229 – O Evangelho segundo o Espiritismo

materiais, o ajudará mais tarde a compreender as grandes verdades morais.


Sendo a riqueza o principal meio de execução, sem ela não há mais grandes
trabalhos, nem atividades, nem estímulos, nem pesquisas; então, é com razão
que a ela é considerada como um elemento de progresso.

Desigualdade das riquezas

8. A desigualdade das riquezas é um desses problemas que em vão


procuraremos resolver, se considerarmos apenas a vida atual. A primeira
questão que se apresenta é esta: Por que nem todos os homens são
igualmente ricos? Não o são por uma razão muito simples: é que eles não são
igualmente inteligentes, ativos e laboriosos para adquirir, nem sóbrios e
previdentes para conservar. A propósito, é um ponto matematicamente
demonstrado que a fortuna equitativamente repartida daria a cada pessoa
uma parte mínima e insuficiente; que em supondo essa partilha efetuada, o
equilíbrio estaria rompido em pouco tempo pela diversidade dos caracteres e
das aptidões; que em a supondo possível e durável, cada pessoa mal tendo do
que viver, o resultado seria o aniquilamento de todos os grandes trabalhos
que concorrem para o progresso e para o bem-estar da humanidade; que em
supondo que ela desse a cada um o necessário, já não haveria mais o aguilhão
que impulsiona às grandes descobertas e os empreendimentos úteis. Se Deus
a concentra em certos pontos, é para que daí ela se expanda em quantidade
suficiente, conforme as necessidades.
Admitido isso, pergunta-se por que Deus a concede a pessoas incapazes
de fazê-la frutificar para o bem de todos. Ainda aí está uma prova da
sabedoria e da bondade de Deus. Ao dar ao homem o livre-arbítrio, ele quis
que o homem chegasse, por sua própria experiência, a fazer a distinção do
bem e do mal, e que a prática do bem fosse o resultado dos esforços e da
própria vontade do homem. Este não deve ser conduzido fatalmente nem ao
bem nem ao mal, sem o que ele não passaria de instrumento passivo e
irresponsável, como os animais. A fortuna é um meio de testá-lo moralmente;
mas como ao mesmo tempo ela é um poderoso meio de ação para o progresso,
Deus não quer que ela fique longo tempo improdutiva, razão pela qual ele a
230 – Allan Kardec

desloca constantemente. Cada um deve possuí-la, para tentar utilizá-la e


provar o uso que sabe fazer dela; mas como há impossibilidade material para
que todos a possuam simultaneamente — e, além disso, que se todo mundo a
possuíssem ninguém trabalharia, e o melhoramento do globo sofresse com
isso —, cada pessoa a possui por sua vez: aquele que não a tem hoje já a teve
ou a terá noutra existência; quem a tem agora poderá deixar de tê-la amanhã.
Há ricos e pobres porque, como Deus é justo, cada qual deve trabalhar por sua
vez. A pobreza é para uns a prova da paciência e da resignação; a riqueza é
para outros a prova da caridade e da abnegação.
Há quem lamente — com razão — ver a lastimável aplicação que
algumas pessoas fazem da sua fortuna e as ignóbeis paixões que a cobiça
provoca, e então perguntam a si mesmos se Deus está sendo justo ao dar
riqueza a tais pessoas. É certo que se o homem não tivesse mais do que uma
única existência, nada justificaria tal repartição de bens da Terra; porém, se
em vez de limitarem sua vista apenas à vida atual as pessoas considerassem o
conjunto das existências, então elas veriam que tudo se equilibra com justiça.
Desse modo, o pobre não tem mais motivo para acusar a Providência, nem
motivo para invejar os ricos, assim como os ricos não têm mais motivo para se
vangloriar do que possuem. Se eles abusam disso, não será nem com decretos
nem com leis suntuárias que se remediará o mal; as leis podem mudar
momentaneamente o exterior, mas não conseguem mudar o coração. É por
isso que as leis têm duração temporária e são quase sempre seguidas de uma
reação mais frenética. A fonte do mal está no egoísmo e no orgulho; os abusos
de toda ordem cessarão por si mesmos quando os homens se regerem pela lei
da caridade.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A verdadeira propriedade
9. O homem não possui de fato senão aquilo que ele pode levar deste mundo. Do
que encontra na chegado e deixa na saída, ele desfruta durante a sua estadia; mas
desde quando ele é forçado a abandonar tudo isso, então ele só tem o usufruto das
231 – O Evangelho segundo o Espiritismo

coisas, e não a sua posse real. O que ele possui, então? Nada do que é de uso do
corpo; tudo o que é de uso da alma — a inteligência, os conhecimentos, as
qualidades morais — é o que ele traz e leva consigo, aquilo que ninguém pode tirar
dele e que lhe servirá muito mais no outro mundo do que neste. Dele depende ser
mais rico na sua partida do que na chegada, porque a sua posição futura depende
daquilo que ele tiver adquirido no bem. Quando um homem vai a um país distante,
ele arruma a sua bagagem com objetos que tem uso nesse país e não se preocupa
com coisas que lhe seriam inúteis. Dessa forma, façam o mesmo com relação à vida
futura, e providenciem de tudo aquilo que possa lhes servir.
Ao viajante que chega a um albergue, um bom alojamento é oferecido desde
que ele possa pagá-lo; àquele que tenha poucos recursos, oferece-se um cômodo
menos agradável; quanto a quem não tem nada, este vai dormir sobre a palha.
Assim acontece com o homem na sua chegada no mundo dos Espíritos: seu lugar ali
está subordinado às suas posses; só que não é com ouro que ele o paga. Ninguém
lhe perguntará: Quanto você tinha na Terra? Que posição ocupava lá? Era um
príncipe ou operário? Mas lhe perguntarão: O que você traz consigo? Não será
contado o valor dos seus bens nem os seus títulos, e sim a soma das suas virtudes;
ora, nessa conta, o operário pode ser mais rico do que o príncipe. Em vão ele
alegará que antes da sua partida ele pagou a sua entrada com ouro, pois vão lhe
responder: Os lugares aqui não são comprados: eles são conquistados pelo bem
que foi feito. Com a moeda terrestre você pôde comprar campos, casas, palácios;
aqui, tudo se paga com as qualidades do coração. Você é rico dessas qualidades?
Então seja bem-vindo e vá para primeiro lugar, onde todas as felicidades te
esperam. Você é pobre? Então vá para o último lugar, onde será tratado de acordo
com os teus haveres.
PASCAL (Genebra, 1860)
10. Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui conforme a vontade dele, e
o homem é apenas o usufrutuário desses bens, o seu administrador mais ou menos
íntegro e inteligente. Esses bens pertencem tão pouco individualmente ao homem,
que Deus muitas vezes frustra todas as previsões e a riqueza escapar daquele que
acredita possui-la com os melhores títulos.
Vocês Dirão, talvez, que isso é compreensível com relação à fortuna
hereditária, mas que não é o mesmo caso daquela que é adquirida pelo trabalho.
Sem nenhuma dúvida, se for uma fortuna legítima, será este o caso, quando ela for
adquirida honestamente, pois uma propriedade só é legitimamente adquirida
232 – Allan Kardec

quando, para adquiri-la, ninguém fez mal a ninguém. Será pedido conta de cada
centavo mal adquirido, com prejuízo para alguém. Mas, pelo fato de um homem ter
conquistado sua fortuna por si mesmo, será que ele vai levar alguma vantagem
disso ao morrer? As precauções que ele toma para transmiti-la a seus descendentes
frequentemente não são inúteis? Pois então, se Deus não quiser que ela chegue até
eles, nada conseguirá prevalecer contra a vontade divina. Será que o homem pode
usar e abusar impunemente de seus bens durante a vida, sem ter que prestar
contas? Não; ao permitir que o homem adquira riqueza, Deus pode ter pretendido
recompensá-lo durante sua vida, pelos seus esforços, coragem e perseverança; mas
se o homem só a utiliza para a satisfação dos seus sentidos ou do seu orgulho, e se
essa riqueza se torna uma causa de queda em suas mãos, seria melhor para ele se
não a possuísse; ele perde de um lado aquilo que ganhou do outro, anulando o
mérito de seu trabalho, e quando deixar a Terra, Deus lhe dirá que já recebeu a sua
recompensa.
M., ESPÍRITO PROTETOR (Bruxelas, 1861)

Emprego da riqueza
11. Vocês não podem servir a Deus e a Mamon — guardem bem isso, vocês a quem
o amor do ouro domina, vocês que venderiam a alma para possuir tesouros, porque
eles podem elevá-lo acima dos outros homens e lhes proporcionam os prazeres das
paixões. Não, vocês não podem servir a Deus e a Mamon! Portanto, se sentirem a
alma dominada pelas cobiças da carne, apressem-se em sacudir o peso que os
sobrecarrega, pois Deus — justo e severo — dirá a cada um: O que você fez,
administrador infiel, dos bens que te confiei? Esse poderoso motor de boas obras,
você só o fez servir à tua satisfação pessoal!
Qual é então o melhor emprego da riqueza? Procurem nestas palavras
“Amem-se uns aos outros” a solução desse problema. Aí está o segredo da boa
utilização das riquezas. Aquele que está animado com o amor ao próximo tem a sua
linha de conduta toda traçada; a aplicação que agrada a Deus é a caridade — não
aquela caridade fria e egoísta, que consiste em espalhar ao redor de si o supérfluo
de uma existência dourada, mas sim aquela caridade plena de amor, que procura o
infeliz e o ergue sem humilhá-lo. Rico, dê do teu supérfluo; faça mais: dê um pouco
do teu necessário, porque o teu necessário ainda é supérfluo; mas doe com
sabedoria. Não repulse a queixa com medo de ser enganado, mas vá à fonte do mal;
233 – O Evangelho segundo o Espiritismo

alivia primeiro e informe-se depois, e veja se o trabalho, se os conselhos e até


mesmo se a afeição não serão mais eficazes do que a tua esmola. Reparta em torno
de ti em abundância o amor a Deus, o amor ao trabalho, o amor ao próximo. Coloca
tuas riquezas sobre uma base que nunca te faltará e que te trará grandes lucros: as
boas obras. A riqueza da inteligência deve te servir como a do ouro; difunde em
torno de ti os tesouros da instrução; distribui entre teus irmãos os tesouros do teu
amor, e eles frutificarão.
CHEVERUS (Bordeaux, 1861)

12. Quando considero a brevidade da vida, eu fico dolorosamente impressionado


com a incessante preocupação de que para vocês o objetivo é o bem-estar material,
enquanto dão tão pouca importância e dedicam tão pouco tempo ao seu
aperfeiçoamento moral — que vale para a eternidade. Diante da atividade que
vocês desenvolvem, dizem que se tratar de uma questão do mais alto interesse
para a humanidade, ao passo que quase sempre não significa mais do que
procurarem satisfazer às necessidades exageradas, à vaidade, ou de se entregarem
aos excessos. Quantos sofrimentos, preocupações e tormentos cada um procura
para si; quantas noites sem dormir, para aumentar uma fortuna muitas vezes mais
que suficiente! Para o cúmulo da cegueira, não é raro vermos aqueles — cujo amor
desenfreados pela riqueza e pelos gozos que ela proporciona os sujeita a um
trabalho penoso — se vangloriarem de uma existência dita de sacrifício e de
mérito, como se trabalhassem para os outros e não para eles mesmos! Insensatos!
Então vocês realmente acreditam que serão levados em conta os seus cuidados e
esforços movidos pelo egoísmo, pela cupidez ou pelo orgulho, ao passo que vocês
negligenciam o seu futuro, assim como os deveres que a solidariedade fraterna
impõe a todos aqueles que gozam das vantagens da vida social? Vocês só pensaram
no seu corpo; seu bem-estar, seus prazeres foram o único objeto de sua solicitude
egoísta; por ele, que morre, vocês desprezaram o Espírito que viverá sempre.
Assim, esse senhor tão mimado e acariciado se tornou o seu tirano; ele comanda o
Espírito de vocês, que se fez seu escravo. Seria esse o objetivo da existência que
Deus lhes concedeu?
UM ESPÍRITO PROTETOR (Cracóvia, 1861)

13. O homem sendo o depositário, o gerente dos bens que Deus lhes colocou nas
mãos, a ele será pedido uma severa prestação de contas do suo que tenha feito
desses bens, em virtude do seu livre-arbítrio. O mau emprego consiste em servir-se
234 – Allan Kardec

deles somente para a satisfação pessoal; ao contrário, o uso é bom todas as vezes
que deles resulta um bem qualquer para outrem; o mérito é proporcional ao
sacrifício que a pessoa se impõe. A beneficência é só uma das formas de utilização
da riqueza; ela ameniza a miséria atual, ela aplaca a fome, preserva do frio e dá
abrigo a quem não o tem; porém, há um dever igualmente tão obrigatório e tão
meritório, que consiste em prevenir a miséria; esta é principalmente a missão das
grandes fortunas, através de trabalhos de todos os gêneros que elas podem
executar. E mesmo que elas pudessem tirar daí um proveito legítimo, o bem não
deixaria de existir, pois o trabalho desenvolve a inteligência e enaltece a dignidade
do homem — que sempre se orgulha de poder dizer que ele ganhou o pão que
come, ao passo que a esmola humilha e degrada. A riqueza concentrada em uma só
mão deve ser como uma fonte de água viva que espalha a fecundidade e o bem-
estar à sua volta. Ó vocês, ricos, que a empregam segundo os desígnios do Senhor, o
coração de vocês será o primeiro a se saciar nessa fonte benfazeja; vocês terão já
nessa vida as inefáveis alegrias da alma, em vez dos gozos materiais do egoísta que
deixam um vazio no coração. Seus nomes serão benditos na Terra, e quando a
deixarem, o soberano mestre lhes endereçará a palavra, como na parábola dos
talentos: “Ó servo bom e fiel, desfrute da alegria do teu Senhor”. Nessa parábola, o
servo que enfiou na terra o dinheiro que lhe fora confiado não é a imagem dos
avarentos, nas mãos dos quais a fortuna fica improdutiva? Entretanto, se Jesus fala
especialmente de esmolas, é que naquele tempo e na região em que ele vivia não se
conheciam os trabalhos que as artes e a indústria criaram depois e nas quais a
riqueza pode ser aplicada utilmente para o bem geral. A todos os que podem doar
— pouco ou muito — eu então direi: Deem a esmola quando isso for necessário,
mas, tanto quanto possível, convertam-na em salário, a fim de que aquele que a
receba não se envergonhe dela.
Fénelon (Argel, 1860)

Desprendimento dos bens terrenos


14. Eu venho, meus irmãos, meus amigos, trazer o meu óbolo para lhes ajudar a
caminhar corajosamente pela via do melhoramento na qual vocês entraram. Nós
nos devemos uns aos outros; a não ser pela união sincera e fraternal entre os
Espíritos e os encarnados é que a regeneração será possível.
O amor de vocês pelos bens terrenos é um dos mais fortes entraves ao seu
235 – O Evangelho segundo o Espiritismo

adiantamento moral e espiritual; por esse apego à posse vocês destroem suas
faculdades amáveis ao aplicar todas elas para as coisas materiais. Sejam sinceros: a
riqueza proporciona uma felicidade pura? Quando seus cofres estão cheios, não há
sempre um vazio no coração? No fundo dessa cesta de flores não há sempre um
réptil escondido? Eu compreendo que o homem que tenha ganho uma fortuna,
mediante um trabalho assíduo e honrável, experimente uma satisfação — muito
justa, aliás —, mas dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, até um apego
que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração, aí há
uma grande distância, tão longa quanto a da avareza excessiva até a gastança
exagerada — dois vícios entre os quais Deus colocou a caridade, santa e salutar
virtude que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem
baixeza.
Que a sua fortuna tenha vindo da família ou tenha sido adquirida com o seu
trabalho, há uma coisa que vocês jamais esquecer: é que tudo vem de Deus e tudo
volta para Deus. Nada lhes pertence na Terra, nem mesmo o pobre corpo: a morte o
tira de vocês, como tira todos os bens materiais. Vocês são depositários, e não
proprietários — não se enganem. Deus lhes emprestou e vocês têm que lhe
devolver, e ele empresta com a condição de que o supérfluo, pelo menos, seja
revertido em favor daqueles que não têm o necessário.
Um de seus amigos lhes empresta certa quantia; por pouco que vocês sejam
honestos, vocês têm o escrúpulo de restituí-lo e ficam agradecido a ele. Pois bem,
essa é a posição de todo homem rico; Deus é o amigo celestial que lhe emprestou a
riqueza; ele não pede para si mais do que o amor e o reconhecimento, mas exige
que por sua vez o rico dê aos pobres — que são filhos de Deus da mesma forma que
aquele rico.
Os bens que Deus confiou a vocês despertam nos seus corações um ardente e
louca cobiça; já pensaram, quando estão apegados imoderadamente a uma riqueza
perecível e passageira como vocês mesmos? Já pensaram que virá um dia em que
deverão prestar contas ao Senhor daquilo que veio dele? Esquecem que, pela
riqueza, vocês revestiram do caráter sagrado de ministros da caridade na Terra,
para serem dele os administradores inteligentes? Pois então, quando estão usando
somente em proveito particular aquilo que lhes foi confiado, quem são vocês senão
os depositários infiéis? Qual é o resultado desse esquecimento voluntário dos seus
deveres? A morte inflexível, inexorável, vem rasgar o véu sob o qual vocês se
escondem e lhes força a prestar contas ao amigo que lhes favorecera e que nesse
236 – Allan Kardec

momento ser reveste da toga do juiz diante de vocês.


É em vão que procurem se iludir na Terra, colorindo com o nome de virtude
aquilo que frequentemente não passa de egoísmo; é em vão que chamem de
economia e previdência aquilo que não passa de cupidez e avareza, ou chamem de
generosidade o que não passa de gastança em seu proveito próprio. Um pai de
família, por exemplo, deixará de praticar a caridade, economizará e acumulará
ouro sobre ouro, e isso — diz ele — para deixar aos filhos o máximo possível de
bens e evitar que eles caiam na miséria; isso é muito justo e paternal, eu admito, e
ninguém pode culpá-lo por isso; mas será realmente esse o único propósito que o
guia? Não será muitas vezes um compromisso com a consciência, para justificar aos
seus próprios olhos e aos olhos do mundo o seu apego pessoal aos bens terrenos?
Contudo, que eu admita que o amor paternal seja sua única intenção, isso seria
motivo para que esquecer seus irmãos perante Deus? Desde que ele já tenha o
supérfluo, será que deixará os filhos na miséria só por eles terem um pouco menos
desse supérfluo? Não estaria dando a eles uma lição de egoísmo e endurecendo
seus corações? Não estaria sufocando neles o amor ao próximo? Pais e mães, vocês
estão cometendo em grande erro se creem que desse modo vão aumentar a afeição
dos filhos por vocês; ao lhes ensinar a serem egoístas com os outros vocês estão
lhes ensinando a serem egoístas com vocês mesmos.
Quando um homem trabalhou muito e juntou muitos bens com o suor do seu
rosto, vocês o escutam dizer com frequência que, quando o dinheiro é ganho,
melhor se reconhece o seu valor — nada é mais verdadeiro do que isso. Pois bem!
Já que esse homem admite conhecer todo o valor do dinheiro, que ele pratique a
caridade dentro de suas possibilidades, e então terá mais mérito do que aquele
que, nascido na abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas ao contrário,
já que aquele homem se lembra das suas aflições e das suas lutas, se ele for egoísta
e duro para com os pobres, ele se torna bem mais culpado do que os outros, porque
quanto mais a pessoa conhece por si mesmo as dores ocultas da miséria, mais ela
deve estar inclinada a aliviar as dores nos outros.
Infelizmente, nos homens de posses sempre há um sentimento tão forte
quanto o apego à fortuna: o orgulho. Não é raro ver alguém que ficou rico atordoar
o infeliz que implora sua assistência, com a narrativa de seus trabalhos e de suas
aptidões, em vez de ajudá-lo, e acabar por dizer: “Faça o que eu fiz.” Segundo ele, a
bondade de Deus não tem nada a ver com sua fortuna; o mérito vai todo para ele.
Seu orgulho põe uma venda sobre os olhos e tapa os seus ouvidos; ele não entende
237 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que, apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua habilidade, Deus pode
derrubá-lo com uma só palavra.
Esbanjar a riqueza não é desprendimento dos bens terrenos, mas sim descaso
e indiferença; o homem, como depositário desses bens, não tem mais o direito de
dilapidá-los, nem de confiscá-los em seu proveito, pois prodigalidade não é
generosidade, mas sim frequentemente uma forma de egoísmo. quem esbanja o
ouro de mão cheia para satisfazer a uma fantasia não daria um centavo para
prestar um favor. O desapego aos bens terrenos consiste em apreciar a riqueza no
seu justo valor, em saber se servir pelos outros e não para si só, em não sacrificar
os interesses da vida futura por ela, consiste em perdê-la sem murmurar caso
agrade a Deus retirá-la. Se, por reveses imprevistos, vocês se tornarem outro Jó,
digam, como ele: “Meu Deus, o senhor me deu, o senhor me tira; que a tua vontade
seja feita.” Eis aí o verdadeiro desprendimento. Antes de tudo, sejam submissos;
tenham fé naquele que, lhes tendo dado e tirado, pode lhes devolver. Resistam com
coragem ao abatimento e ao desespero, que paralisam as suas forças; não se
esqueçam jamais que, quando Deus lhes ferir, ao lado da maior provação ele
sempre coloca uma consolação. Mas pensem sobretudo que há bens infinitamente
mais preciosos do que os da Terra, e esse pensamento lhes ajudará a se
desprenderem dos bens terrenos. O pouco apreço que se dê a uma coisa faz com
que sua perda seja menos sensível. O homem que se apega aos bens terrenos é
como a criança, que só vê o momento presente; aquele que não se prende a esses
bens é como o adulto que vê as coisas mais importantes, pois ele compreende estas
palavras proféticas do Salvador: O meu reino não é deste mundo.
O Senhor não ordena que nos livremos daquilo que possuímos para nos
reduzirmos a uma mendicidade voluntária, pois assim nos tornaríamos uma carga
para a sociedade; agir desse modo seria compreender mal o desprendimento dos
bens terrenos; seria um egoísmo de um outro gênero, porque seria se eximir da
responsabilidade que a fortuna faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a
concede a quem lhe pareça bom para geri-la em benefício de todos. Logo, o rico
tem uma missão, uma missão que ele pode embelezar e tornar proveitosa a si
mesmo; rejeitar a riqueza quando Deus lhes confia entregá-la é renunciar ao
benefício do bem que se pode fazer, administrando-a com sabedoria. Saber passar
sem ela quando não a tem, saber empregá-la utilmente quando a possui e saber
sacrificá-la quando necessário é agir conforme os desígnios do Senhor. Para aquele
a quem chegue o que no mundo nós chamamos de uma boa fortuna, que diga: Meu
238 – Allan Kardec

Deus, o senhor me enviou uma nova obrigação; dê-me a força para cumpri-la
segundo a tua santa vontade.
Eis aqui, meus amigos, o que eu queria ensinar a vocês sobre desprendimento
dos bens terrenos; eu resumo tudo, dizendo: saibam se contentar com pouco. Se
forem pobres, não invejem os ricos, porque a riqueza não é necessária para a
felicidade; se forem ricos, não esqueçam que esses bens lhes foram confiados e que
vocês devem justificar a sua utilização, como na prestação de contas de uma tutela.
Não sejam como o depositário infiel, servindo-se deles para a satisfação do seu
orgulho e da sua sensualidade. Não se achem no direito de dispor unicamente para
vocês daquilo que não passa de um empréstimo — e não de uma doação. Se não
souberem restituir, vocês não terão mais direito de pedir, e lembrem-se de que
aquele que dá aos pobres salda o débito que contraiu com Deus.
LACORDAIRE (Constantine, 1863)

Transmissão da fortuna36

15. O princípio segundo o qual o homem é apenas o depositário da fortuna, a


qual Deus lhe permite desfrutar durante a vida, tira-lhe o direito de transmiti-la
aos seus descendentes?
O homem pode perfeitamente transmitir, com a sua morte, aquilo que
desfrutou durante sua vida, porque o efeito desse direito está sempre subordinado
à vontade de Deus, que pode, quando quiser, impedir os seus descendentes de
usufruí-la; é assim que vemos desmoronarem fortunas que parecem as mais
solidamente constituídas. A vontade do homem para manter sua fortuna na sua
linhagem é então impotente, o que não lhe tira o direito de transmitir o
empréstimo que recebeu, já que Deus pode retirá-lo quando julgar apropriado.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)

36 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
239 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XVII

SEJAM PERFEITOS
Características da perfeição – O homem de bem – Os bons espíritas
– Parábola do Semeador – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: O dever –
A virtude – Os superiores e os inferiores – O homem no mundo
– Cuidem do corpo e do espírito

Características da perfeição

1. Amem seus inimigos; façam o bem aos que lhes odeiam e orem por aqueles
que lhes perseguem e lhes caluniam; pois, se vocês só amarem os que lhes
amam, que recompensa terão com isso? Os publicanos também não fazem o
mesmo? E se vocês não saudarem ninguém além dos seus irmãos, o que é
vocês estarão fazendo com isso mais do que os outros? Os pagãos não fazem a
mesma coisa? Por sua vez, sejam perfeitos, como perfeito é o seu Pai celestial.
(São Mateus, 5: 44, 46 a 48)

2. Já que Deus possui a perfeição infinita em todas as coisas, a máxima “Sejam


perfeitos, como perfeito é o seu Pai celestial”, tomada ao pé da letra, poderia
pressupor a possibilidade de alcançarmos a perfeição absoluta. Se fosse
possível a uma criatura ser tão perfeita quanto o Criador, ela se tornaria igual
a este — o que é inadmissível. Mas os homens a quem Jesus se endereçava
não compreenderiam essa nuança; ele se limita a lhes apresentar um modelo
e a dizer que eles se esforçassem para alcançá-lo.
Com isso, é preciso entender por essas palavras uma perfeição relativa, a
qual a humanidade é capaz de alcançar e que mais a aproxima da Divindade.
Em que consiste essa perfeição? Jesus assim diz: em “amar os inimigos, fazer o
bem aos que nos odeiam, orar pelos que nos perseguem.” Ele mostra desse
240 – Allan Kardec

modo que a essência da perfeição é a caridade na sua mais ampla acepção,


porque implica a prática de todas as outras virtudes.
Com efeito, se observarmos as consequências de todos os vícios, e até
mesmo dos simples defeitos, nós reconheceremos que não existe nenhum que
não altere mais ou menos o sentimento da caridade, porque todos têm o seu
princípio no egoísmo e no orgulho, que são a negação da caridade; porque
tudo que provoca o sentimento da personalidade destrói — ou pelo menos —
enfraquece os elementos da verdadeira caridade, que são: a benevolência, a
indulgência, a abnegação e o devotamento. O amor ao próximo, estendido até
o amor aos inimigos — não podendo se aliar a nenhum defeito contrário à
caridade — significa por isso mesmo um indício de uma maior ou menor
superioridade moral; disso resulta que o grau de perfeição é proporcional à
extensão desse amor, e foi em razão disso que Jesus, depois de ter dado a seus
discípulos as regras da caridade no que ela tem de mais sublime, disse a eles:
“Sejam perfeitos, como perfeito é seu Pai celestial.”

O homem de bem

3. O verdadeiro homem de bem é aquele que pratica a lei de justiça, de amor e


de caridade na sua maior pureza. Quando ele interroga sua consciência sobre
seus próprios atos, ele pergunta a si mesmo se não violou essa lei, se ele não
fez o mal, se fez todo o bem que ele podia fazer, se negligenciou
voluntariamente alguma ocasião de ser útil, se ninguém tem de que se queixar
dele; enfim, se ele fez aos outros tudo o que ele gostaria que lhe fizessem.
Ele tem fé em Deus, em sua bondade, na sua justiça e na sua sabedoria;
ele sabe que nada acontece sem a permissão divina e em todas as situações
ele se submete a essa vontade.
Ele tem fé no futuro; eis por que ele coloca os bens espirituais acima dos
bens temporais.
Ele sabe que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas as
decepções são provas ou expiações, e ele as aceita sem murmurar.
Convencido de que o sentimento de caridade e de amor ao próximo faz o
241 – O Evangelho segundo o Espiritismo

bem pelo bem, sem esperar retorno, esse homem retribui o mal com o bem,
toma a defesa do fraco contra o forte e sempre sacrifica seus interesses em
favor da justiça.
Ele encontra a satisfação nas boas ações que ele espalha, nos favores que
presta, nas alegrias que ele promove, nas lágrimas que enxuga e nas
consolações que ele leva aos aflitos. Seu primeiro impulso é o de pensar nos
outros antes de pensar em si, de procurar o interesse dos outros antes do seu
próprio interesse; enquanto isso, o egoísta calcula os ganhos e as perdas de
toda ação generosa.
O homem de bem é dócil, humano e benevolente para com todo mundo,
sem distinção nem de raças nem de crenças, porque ele vê irmãos em todos
os homens.
Ele respeita nos outros todas as convicções sinceras e não lança anátema
aos que não pensam igual a ele.
Em todas as circunstâncias a caridade é o seu guia; ele diz a si mesmo
que quem prejudica a outrem com palavras malévolas, quem fere a
sensibilidade de qualquer pessoa com o seu orgulho e o seu desprezo, quem
não recua à ideia de causar um sofrimento, um constrangimento ainda que
ligeiro, quando poderia evitar, então este falta com o dever de amor ao
próximo e não merece a clemência do Senhor.
O homem de bem não tem ódio, nem rancor, nem desejo de vingança; a
exemplo de Jesus, ele perdoa e esquece as ofensas, recordando apenas das
benevolências, pois ele sabe que será perdoado conforme ele também tiver
perdoado.
Ele é indulgente para com as fraquezas alheias, porque sabe que ele
também necessita de indulgência, e se recorda daquelas palavras do Cristo:
Aquele que estiver sem pecado, que atire a primeira pedra.
O homem de bem não se compraz em procurar os defeitos alheios nem
os põe em evidência; se a necessidade o obriga a fazer isso, ele procura
sempre o bem que possa atenuar o mal.
Ele estuda suas próprias imperfeições e trabalha sem cessar para
combatê-las. Todos os seus esforços são para poder dizer no dia seguinte que
ele tem em si algo melhor do que tinha na véspera.
242 – Allan Kardec

Ele não procura dar valor nem ao seu espírito nem aos seus talentos às
custa de outro alguém; ao contrário, ele aproveita todas as ocasiões para fazer
ressaltar o que seja vantajoso aos outros.
Ele não se envaidece nem da sua riqueza nem de suas vantagens
pessoais, porque sabe que tudo o que lhe foi dado pode ser tirado dele.
Ele usa, mas não abusa dos bens que lhe são concedidos, por saber que
isso é um depósito do qual ele deverá prestar contas, e que o emprego mais
prejudicial para si mesmo que ele possa fazer desse depósito é o de colocá-lo
para servir à satisfação de suas paixões.
Se a ordem social colocou homens sob a sua dependência, ele os trata
com bondade e benevolência, porque estes são iguais a ele perante Deus; ele
usa da sua autoridade para levantar o moral deles, e não para os esmagar com
o seu orgulho; ele evita tudo o que poderia tornar mais penosa a posição
subalterna deles.
O subordinado, de sua parte, compreende os deveres da sua posição e
tem o escrúpulo de cumpri-los conscienciosamente. (Cap. XVII, item 9.)
Finalmente, o homem de bem respeita nos seus semelhantes todos os
direitos que as leis da natureza conferem, assim como ele gostaria que
respeitassem os seus direitos.
Essa não é a enumeração todas as qualidades que caracterizam o homem
de bem, mas aquele que se esforça para possuir essas aqui já está no caminho
que conduz a todas as outras.

Os bons espíritas
4. O espiritismo bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, conduz
forçosamente aos resultados aqui mencionados, que caracterizam tanto o
verdadeiro espírita quanto o verdadeiro cristão — sendo que um é o mesmo
que o outro. O espiritismo não criou nenhuma moral nova; ele facilita aos
homens a inteligência e a prática da moral do Cristo ao dar uma fé sólida e
esclarecida às pessoas que duvidam ou vacilam.
Porém, muitos daqueles que acreditam nos fatos das manifestações não
compreendem nem as suas consequências nem o seu alcance moral, ou se os
243 – O Evangelho segundo o Espiritismo

compreendem, não os aplicam a si mesmos. A que isso se deve? Seria uma


falta de exatidão da doutrina? Não, pois ela não contém alegorias nem figuras
que possam dar lugar a falsas interpretações; sua própria essência é a clareza,
e isso é o que constitui a sua força, porque ela vai direto à inteligência. Ela não
tem nada de misterioso e seus iniciados não estão na posse de nenhum
segredo escondido de uma pessoa comum.
Para compreendê-la, porventura falta uma inteligência fora do comum?
Não, pois vemos homens de uma notória capacidade que não a compreendem,
enquanto inteligências comuns, pessoas jovens inclusive, que mal saíram da
adolescência, compreendendo com admirável justeza os mais delicados
detalhes dessa doutrina. Isso vem do fato de que — de alguma forma — a
parte material da ciência não requer mais do que os olhos para observar, ao
passo que a parte essencial exige um certo grau de sensibilidade, que
podemos chamar de maturidade do senso moral, maturidade que independe
da idade e do grau de instrução, porque é inerente ao desenvolvimento, em
sentido especial, do Espírito encarnado.
Em algumas pessoas, os laços da matéria ainda estão bastante tenazes
para permitir ao Espírito se desprender das coisas da Terra; o nevoeiro que
os envolve tira deles toda a visão do infinito; eis por que esses laços não
rompem facilmente nem com suas preferências nem com seus hábitos, não
compreendendo que haja qualquer coisa melhor do que eles têm; a crença nos
Espíritos é para eles um simples fato, mas que pouco ou nada modifica as suas
tendências instintivas: resumindo, eles não enxergam mais do que um raio de
luz, insuficiente para conduzi-los e para lhes dar uma aspiração forte, capaz
de vencer suas próprias inclinações. Essas pessoas se prendem mais aos
fenômenos do que à moral, que lhes parece banal e monótona; elas pedem aos
Espíritos para introduzi-las sem cessar a novos mistérios, não se perguntando
se elas já se tornaram dignas de penetrar nos segredos do Criador. São os
espíritas imperfeitos, alguns dos quais ficam no caminho ou se afastam de
seus irmãos em crença, porque recuam diante da obrigação de reformarem a
si mesmos, ou então eles reservam suas simpatias para os que compartilham
de suas fraquezas ou de suas prevenções. Entretanto, a aceitação do princípio
da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará o segundo mais fácil numa
244 – Allan Kardec

outra existência.
Aquele que pode — com razão — ser qualificado de espírita. verdadeiro
e sincero, encontra-se num grau superior de adiantamento moral; o Espírito
que domina mais completamente a matéria lhe dá uma percepção mais clara
do porvir; os princípios da doutrina fazem vibrar nele as fibras que
permanecem inertes nos outros; numa palavra: ele é tocado no coração; com
isso, sua fé é inabalável. Um é como o músico, que se emociona com certos
acordes, enquanto um outro não escuta mais do que sons. Reconhecemos o
verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que ele
faz para domar suas más inclinações; enquanto um se contenta com o seu
horizonte limitado, o outro, que compreende alguma coisa de melhor, se
esforça para desligar-se dele, e este sempre consegue, quando tem uma firme
vontade nesse sentido.

Parábola do Semeador
5. Naquele mesmo dia, Jesus, tendo saído da casa, sentou-se à beira-mar;
então se reuniu ao redor dele uma grande multidão, e por isso ele subiu num
barco, onde se sentou, todo o povo permanecendo na margem; e ele disse à
multidão muitas coisas por meio de parábolas, falando dessa forma:
Aquele que semeia saiu a semear; e enquanto ele semeava, uma parte da
semente caiu ao longo do caminho e os pássaros do céu vieram e a comeram.
Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia bastante terra,
e ela logo brotou, porque a terra onde ela estava não tinha profundidade. Mas,
tendo o Sol se levantado em seguida, ela foi queimada, e como não tinha raiz,
ela secou.
Outra parte caiu nos espinhos, e estes espinhos vindo a crescer a
sufocaram.
Outra, enfim, caiu em terra boa e produziu frutos, algumas sementes
rendendo cem por uma, outras sessenta e outras trinta.
Que ouça, quem tiver ouvidos para ouvir. (São Mateus, 13: 1 a 9)

Escutem, portanto, vocês outros, a parábola daquele que semeia.


Quando alguém escuta a palavra do reino e não lhe dá atenção, o
245 – O Evangelho segundo o Espiritismo

espírito maligno vem e arranca o que tinha sido semeado no seu coração;
esse é aquele que recebeu a semente ao longo do caminho.
Quem recebe a semente no meio das pedras é aquele que escuta a
palavra e que, na hora, a recebe até com alegria; mas ele não tem raiz em si
mesmo, e dura apenas algum tempo; e quando surgem as dificuldades e as
perseguições por causa da palavra, ele logo a toma como motivo de escândalo
e de queda.
Aquele que recebe a semente entre espinhos é o que ouve a palavra,
mas em seguida as preocupações deste século e a ilusão das riquezas sufocam
nele aquela palavra e a tornam infrutífera.
Mas aquele que recebe a semente em boa terra é quem escuta a palavra,
quem presta atenção nela e quem produz frutos, e rende cem, ou sessenta, ou
trinta por um. (São Mateus, 13: 18 a 23)

6. A parábola da semente apresenta perfeitamente as nuances que existem na


maneira de aproveitarmos os ensinamentos do Evangelho. De fato, quantas
pessoas há para as quais isso não é mais do que uma letra morta que,
semelhante à semente caída sobre as rochas, que não produz nenhum fruto!
Ela encontra uma explicação não menos justa nas diferentes categorias
de espíritas. Ela serve como uma representação daqueles que só se importam
com os fenômenos materiais e, destes, não tiram nenhuma consequência, já
que não veem neles nada além de um objeto de curiosidade; daqueles que não
buscam senão o espetáculo nas comunicações dos Espíritos, e só se
interessam quando elas satisfazem a sua imaginação, mas que, após as terem
ouvido, continuam tão frios e indiferentes quanto antes; daqueles que acham
que os conselhos são muitos bons e os admiram, mas aplicando aos outros, e
não a si mesmos; e enfim, daqueles para quem essas instruções são como a
semente que cai em terra boa e produzem frutos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

O dever
7. O dever é a obrigação moral, primeiramente para consigo mesmo e em
246 – Allan Kardec

seguida para com os outros. O dever é a lei da vida; ele se encontra tanto nos
mais ínfimos detalhes quanto nos atos elevados. Quero falar aqui apenas do
dever moral, e não daquele que as profissões impõem.
Na ordem dos sentimentos, o dever é muito difícil de ser cumprido,
porque ele está em antagonismo com as seduções do interesse e do coração;
suas vitórias não têm testemunhas e suas derrotas não estão sujeitas à
repressão. O dever íntimo do homem fica entregue ao seu livre-arbítrio; o
aguilhão da consciência — esse guardião da probidade interior — o adverte e
o sustenta, mas muitas vezes ele fica impotente diante dos sofismas da paixão.
Fielmente observado, o dever do coração eleva o homem; mas como
determinar exatamente esse dever? Onde ele começa? Onde termina? O dever
começa precisamente no ponto em que vocês ameaçam a felicidade ou o
repouso do seu semelhante; ele termina no limite que não desejariam ver
ultrapassado por vocês mesmos.
Deus criou todos os homens iguais para a dor; pequenos ou grandes,
ignorantes ou instruídos, todos sofrem pelas mesmas causas, a fim de que
cada um julgue em conscientemente o mal que pode fazer. O mesmo critério
não existe para o bem — infinitamente mais variado em suas expressões. A
igualdade diante da dor é uma sublime previdência de Deus, que quer que
todos os seus filhos, instruídos pela experiência comum, não cometam o
mal alegando ignorância de seus efeitos.
O dever é o resumo prático de todas as especulações morais; é uma
bravura da alma que encara as angústias da luta; ele é austero e brando;
pronto a se curvar diante das complicações diversas, ele se mantém inflexível
diante das suas tentações. O homem que cumpre o seu dever ama a Deus
mais do que às criaturas e ama as criaturas mais do que a si mesmo; ele é
ao mesmo tempo juiz e escravo na sua própria causa.
O dever é o mais belo florão da razão; ele descende dela como o filho
descende de sua mãe. O homem deve amar o dever, não porque ele nos
preserve dos males a vida, dos quais a humanidade não pode se subtrair, mas
porque ele fornece à alma o vigor necessário para o seu desenvolvimento.
O dever se engrandece e irradia sob uma forma mais elevada em cada
uma das etapas superiores da humanidade; a obrigação moral da criatura
247 – O Evangelho segundo o Espiritismo

para com Deus jamais cessa; ela deve refletir as virtudes do Eterno, que não
aceita um esboço imperfeito, porque ele quer que a beleza de sua obra
resplandeça a seus próprios olhos.
LÁZARO (Paris, 1863)

A virtude
8. A virtude, no seu mais alto grau, contém o conjunto de todas as qualidades
essenciais que constituem o homem de bem. Ser bom, caridoso, laborioso,
sóbrio e modesto são qualidades de um homem virtuoso. Infelizmente, elas
muitas vezes são acompanhadas de pequenos defeitos morais que as
prejudicam e enfraquecem. Aquele que faz ostentação de sua virtude não é
virtuoso, já que lhe falta a qualidade principal: a modéstia, e que tem o vício
mais contrário: o orgulho. A virtude verdadeiramente digna desse nome não
gosta de se exibir; todos a percebe, mas ela se oculta na obscuridade e foge da
admiração das multidões. São Vicente de Paulo era virtuoso; o digno Cura de
Ars era virtuoso, e muitos outros pouco conhecidos do mundo, mas
conhecidos de Deus. Todos esses homens de bem ignoravam que eles mesmos
fossem virtuosos; deixavam-se levar pela corrente de suas santas inspirações
e praticavam o bem com um completo desinteresse e um inteiro
esquecimento de si.
É à essa virtude compreendida e praticada dessa forma que eu os
convido, meus filhos; é a essa virtude verdadeiramente cristã e
verdadeiramente espírita que eu os encorajo a se consagrarem; mas, afastem
de seus corações o pensamento do orgulho, da vaidade e do amor-próprio,
que sempre deformam as mais belas qualidades. Não imitem aquele homem
que se exibe como um modelo e se vangloria de suas próprias qualidades a
todos os ouvidos complacentes. Essa virtude de ostentação esconde muitas
vezes um monte de pequenas torpezas e de odiosas covardias.
Em princípio, o homem que exalta a si mesmo e que ergue uma estátua à
sua própria virtude anula, por esse simples fato, todo o mérito efetivo que ele
possa ter. Mas o que direi daquele cujo único valor consiste em parecer o que
ele não é? Admito perfeitamente que o homem que faz o bem sente com isso
248 – Allan Kardec

uma satisfação íntima no fundo do seu coração, mas desde que essa satisfação
seja exteriorizada para colher elogios, ela degenera em amor-próprio.
Ó, vocês todos a quem a fé espírita reaqueceu com seus raios, e que
sabem o quanto o homem está longe da perfeição: não cedam jamais a tal
erro. A virtude é uma graça que eu desejo a todos os espíritas sinceros, mas eu
lhes direi ainda: Mais vale menos virtudes com a modéstia do que muitas
delas com o orgulho. É pelo orgulho que as humanidades sucessivas estão se
perdendo; é pela humildade que um dia elas deverão se redimir.
FRANÇOIS-NICOLAS-MADELEINE (Paris, 1863)

Os superiores e os inferiores
9. A autoridade — assim como a riqueza — é uma delegação da qual será
pedido contas àquele que dela foi investido; não pensem que ela tenha sido
concedida para proporcionar o vão prazer de comandar, nem tampouco como
um direito, uma propriedade — assim como muito erroneamente acreditam a
maioria dos poderosos da Terra. Deus, entretanto, dá bastante provas de ela
que não é nem uma nem outra coisa, pois ele retira a autoridade de vocês
quando isso bem lhe apraz. Se fosse um privilégio inerente às próprias
pessoas, ela seria inalienável. Então, ninguém pode dizer que uma coisa lhe
pertence quando ela pode ser tirada sem o seu consentimento. Deus delega a
autoridade a título de missão, ou de provação, quando isso lhe convém — e a
retira da mesma forma.
Quem quer que seja depositário de autoridade, seja qual for o alcance
que ela tenha — desde um senhor sobre o seu servo, até um soberano sobre o
seu povo — nenhum deles deve se esquecer de que é responsável por almas e
que ele responderá pela boa ou má direção que tiver dado aos seus
subordinados; as faltas que estes puderem cometer, os vícios aos quais eles
forem arrastados em consequência dessa direção ou dos maus exemplos,
recairão sobre ele, tanto quanto ele recolherá os frutos pelos seus cuidados
para os reconduzir ao bem. Todo homem tem na Terra uma missão, grande ou
pequena; qualquer que seja essa missão, ela sempre é dada para o bem;
portanto, distorcer seu conceito é falir na sua missão.
249 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Se Deus pergunta ao rico: “O que você fez da fortuna que em tuas mãos
deveria ser uma fonte espalhando a fecundidade a toda a tua volta?”, então ele
perguntará àquele que tem uma autoridade qualquer: “Que uso você fez dessa
autoridade? Que males você evitou? Que progresso conseguiu fazer? Se eu te
dei subordinados, não foi para fazer deles escravos da tua vontade, nem
instrumentos dóceis dos teus caprichos ou da tua cupidez; eu te fiz forte e te
confiei os fracos para você os sustentar e os ajudar a subir até mim.”
O superior que estiver compenetrado das palavras do Cristo não
despreza nenhum daqueles que esteja abaixo dele, porque sabe que as
distinções sociais não prevalecem diante de Deus. O espiritismo lhe ensina
que se hoje eles lhe obedecem, talvez eles já puderam lhe comandar ou
poderão lhe dar ordens mais tarde, e que então este superior será tratado
conforme ele mesmo tenha tratado seus subordinados.
Se o superior tem deveres a cumprir, por sua vez o inferior também tem
os seus — que não são menos sagrados. Se este inferior for espírita, sua
consciência lhe dirá melhor ainda que ele não está dispensado dos seus
deveres, nem mesmo que o seu chefe não cumpra os dele, por saber que não
devemos retribuir o mal com o mal, e que as faltas de uns não justificam as
faltas de outros. Se ele sofre com a sua posição, ele diz a si mesmo que sem
dúvida mereceu, porque talvez ele próprio tenha abusado outrora da sua
autoridade, e que ele deve sentir agora as inconveniências daquilo que ele fez
os outros sofrerem. Se ele está sendo forçado a suportar essa posição, na falta
de encontrar outra melhor, o espiritismo lhe ensina a se resignar, como a uma
prova para a sua humildade, necessária para o seu adiantamento. Sua crença
o guia na sua conduta; ele age como gostaria que seus subordinados agissem
para com ele, caso fosse o chefe. Por isso mesmo ele é mais escrupuloso no
cumprimento de suas obrigações, pois ele compreende que toda negligência
no trabalho que lhe é confiado causa prejuízo para aquele que o remunera e a
quem ele deve o seu tempo e os seus esforços; em síntese, ele é solicitado pelo
sentimento do dever, que a sua fé lhe dá, e pela certeza de que todo desvio do
caminho reto significa uma dívida que terá de pagar, cedo ou tarde.
FRANÇOIS-NICOLAS-MADELEINE, cardeal MORLOT (Paris, 1863)
250 – Allan Kardec

O homem no mundo

10. Um sentimento de piedade sempre deve animar o coração daqueles que se


reúnem sob os olhos do Senhor e que imploram a assistência dos bons
Espíritos. então, purifiquem seus corações; não deixem que nele se aloje
qualquer pensamento mundano ou fútil. Elevem seu espírito àqueles por
quem vocês chamam, a fim de que eles, encontrando em vocês as disposições
necessárias, possam lançar em profusão a semente que deve germinar nos
seus corações e aí produzir os frutos da caridade e da justiça.
No entanto, não acreditem que nós, aos lhes estimular incessantemente
à prece e à evocação mental, estejamos obrigando vocês a viverem uma vida
mística que os mantenha fora das leis da sociedade em que estais condenados
a viver. Não! Vivam como os homens da sua época, assim como os homens
devem viver; sacrifiquem as necessidades, até mesmo as frivolidades do dia,
mas sacrifiquem com um sentimento de pureza que possa santificá-las.
Vocês são chamados a conviver com espíritos de naturezas diferentes, de
caracteres opostos: não constranjam a nenhum daqueles com quem vocês
estiverem. Sejam alegres, sejam felizes, mas com a alegria que uma boa
consciência produz, com a felicidade do herdeiro do céu, contando os dias que
o aproximam da sua herança.
A virtude não consiste em se revestirem de um aspecto severo e lúgubre,
nem em repulsar os prazeres que as condições humanas lhes permitem; basta
reportar todos os atos da sua vida ao Criador, que lhes concedeu essa vida;
basta que, quando começarem ou completarem uma obra, elevem o
pensamento rumo a esse Criador, para lhe pedir, num impulso d’alma, ou a
sua proteção para que serem bem-sucedidos ou a sua bênção para a obra
concluída. Seja o que for que estiverem fazendo, remontem à fonte de todas as
coisas; não façam nada sem que a lembrança de Deus venha purificar e
santificar as ações de vocês.
A perfeição — como disse o Cristo — está inteiramente na prática da
caridade absoluta, mas os deveres da caridade se estendem a todas as
posições sociais, desde o menor até o maior. O homem que vivesse isolado
não teria nenhuma caridade a praticar; é somente no contato com os seus
251 – O Evangelho segundo o Espiritismo

semelhantes e nas lutas mais penosas é que ele encontra ocasião de praticá-la.
Por isso, aquele que se isola se priva voluntariamente do meio mais poderoso
de se aperfeiçoar; não tendo de pensar senão em si, sua vida é a de um
egoísta. (Cap. V, item 26.)
Não imaginem, pois, que para viverem em comunicação constante
conosco, para viverem sob o olhar do Senhor, seja necessário vestir o cilício e
se cobrir de cinzas; não, não ainda uma vez! Sejam felizes segundo as
carências da humanidade, mas que nessa felicidade de vocês nunca entre nem
um pensamento nem um ato que possa ofender o Senhor ou envergonhar
aqueles que os amam e que os dirigem. Deus é amor e abençoa aqueles que
amam santamente.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1863)

Cuidar do corpo e do espírito

11. Será que a perfeição moral consiste na maceração do corpo? Para resolver
essa questão, eu me apoio em princípios elementares e começo por mostrar a
necessidade de se cuidar do corpo que, segundo as alternativas de saúde e de
doença, influi de uma maneira muito importante sobre a alma, que deve ser
considerada como uma cativa na carne. Para que essa prisioneira possa viver,
se divertir e até mesmo conceba as ilusões da liberdade, o corpo deve estar
saudável, disposto e forte. Façamos uma comparação: Eis então que ambos
estão em perfeito estado; o que eles devem fazer para manter o equilíbrio
entre as suas aptidões e as suas necessidades tão diferentes?
Aqui, dois sistemas se defrontam: o dos ascetas, que querem destruir o
corpo, e o dos materialistas, que querem rebaixar a alma: duas violências que
quase sempre são tão insensatas uma quanto a outra. Ao lado desses dois
grandes partidos fervilha a numerosa tribo dos indiferentes que, sem
convicção e sem paixão, amam com tédio e se divertem com economia. Onde
então está a sabedoria? Onde então está a ciência de viver? Em parte alguma;
e esse grande problema ficaria inteiramente sem solução se o espiritismo não
viesse em auxílio dos pesquisadores, demonstrando-lhes as relações que
existem entre o corpo e a alma, e lhes dizendo que, já que eles são necessários
252 – Allan Kardec

um ao outro, é preciso cuidar dos dois. Sendo assim, amem a alma, mas
também cuidem do corpo — o instrumento da alma. Ignorar as necessidades
indicadas pela própria natureza é desconhecer a lei de Deus. Não castiguem o
corpo pelas faltas que o livre-arbítrio de vocês o induziu a cometer e pelas
quais ele é tão responsável quanto o cavalo mal dirigido é responsável pelos
acidentes que causa. Por acaso vocês seriam mais perfeitos se, martirizando
todo o corpo, não se tornarem menos egoístas, nem menos orgulhosos e nem
mais caridosos para com o próximo? Não, pois a perfeição não é nisso; a
perfeição está inteiramente nas reformas a que vocês submeterem o próprio
Espírito; dobrem-no, submetam-no, humilhem-no, castiguem-no: esse é o
meio de torná-lo dócil à vontade de Deus e o único que conduz à perfeição.
GEORGES, ESPÍRITO PROTETOR (Paris, 1863)
253 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XVIII

MUITOS SÃO CHAMADOS E


POUCOS SÃO ESCOLHIDOS
Parábola do festim de núpcias – A porta estreita –
Nem todos que dizem “Senhor! Senhor!” entrarão no reino dos céus
– Muito se pedirá a quem muito recebeu –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Será dado mais àquele que tem
– Reconhece-se o cristão pelas suas obras

Parábola do festim de núpcias

1. Falando novamente por parábolas, Jesus disse a eles:


O reino dos céus se assemelha a um rei que, querendo festejar o
casamento de seu filho, envia seus servos para chamar para as bodas aqueles
que tinham sido convidados; mas estes recusaram a ir à festa. Então ele envia
outros servos com ordem de dizer da sua parte aos convidados: Eu preparei a
minha ceia, mandei matar os meus bois e tudo o que mandei engordar; tudo
está pronto; vinham às núpcias. Eles, porém, sem se importarem com isso,
foram embora, um para a sua casa de campo, outro para o seu negócio. Os
outros pegaram os servos e os mataram, depois de terem feito vários ultrajes
contra eles. O rei, ao saber disso, ficou tomado de cólera e, tendo enviado seus
exércitos, exterminou esses assassinos e incendiou a cidade deles.
Então, ele disse a seus servos: A festa das bodas está toda pronta, mas
aqueles que tinham sido convidados não eram dignos dela. Vão, portanto, aos
quatro cantos e chamem para as bodas todos aqueles que encontrarem. Os
servos então saíram pelas ruas, reunindo todos os que encontraram, bons e
maus; a sala das bodas ficou cheia de pessoas que se puseram à mesa.
O rei entrou em seguida para ver os que estavam à mesa e ali
254 – Allan Kardec

percebendo um homem que não estava vestido com a túnica nupcial, disse-
lhe: Meu amigo, como conseguiu entrar aqui sem a túnica nupcial? E o homem
ficou calado. Então, o rei disse à sua gente: Amarrem-lhes as mãos e os pés e
lancem-no nas trevas exteriores: aí é que haverá prantos e ranger de dentes;
porque muitos são chamados e poucos são escolhidos. (São Mateus, 22: 1 a 14)

2. O incrédulo ri dessa parábola, que lhe parece de uma pueril ingenuidade,


por não compreender que se possa fazer tantas dificuldades para participar a
uma festa, e ainda menos que os convidados levem a resistência a ponto de
massacrar os enviados do dono da casa. Diz ele: “Sem dúvidas, as parábolas
são representações, mas ainda assim é preciso que elas não saiam dos limites
do verossímil.
Podemos dizer o mesmo de todas as alegorias, das mais engenhosas
fábulas — se elas não forem despojadas de seu envoltório, para procurarmos
o seu significado oculto. Jesus tirou suas parábolas dos costumes mais comuns
da vida e as adaptou aos hábitos e ao caráter do povo a quem ele falava; a
maior parte delas tinha como objetivo fazer penetrar nas multidões a ideia da
vida espiritual; o seu sentido muitas vezes parece ininteligível só porque não
partimos desse ponto de vista.
Nesta parábola, Jesus compara o reino dos céus — em que tudo é alegria
e felicidade — a uma festa. Pelos primeiros convidados, ele faz alusão aos
hebreus, os primeiros que Deus tinha chamado ao conhecimento da sua lei. Os
enviados do Senhor são os profetas que vinham exortá-los a seguir o caminho
da verdadeira felicidade; mas suas palavras pouco eram ouvidas, suas
advertências eram desprezadas, inclusive vários deles foram massacrados
como os servos da parábola. Os convidados que se desculparam sob o
pretexto de suas ocupações com seus campos e com seus negócios, estes eram
a representação das pessoas mundanas que, absorvidas pelas coisas terrenas,
ficam indiferentes às coisas celestiais.
Era uma crença entre os judeus daquela época que a sua nação devia
conquistar a supremacia sobre todas as outras. De fato, Deus não havia
prometido a Abraão que a sua posteridade iria cobrir toda a Terra? Mas, como
sempre, tomando a forma no lugar do fundamento, eles acreditavam em uma
dominação efetiva e material.
255 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Antes da vinda do Cristo, com exceção dos hebreus, todos os povos eram
idólatras e politeístas. Se alguns homens superiores ao padrão concebiam a
ideia de unidade divina, essa ideia permaneceu na condição de teoria pessoal,
mas em nenhuma parte ela foi aceita como uma verdade fundamental, a não
ser por alguns iniciados que ocultavam seus conhecimentos sob um véu
misterioso, impenetrável para as multidões. Os hebreus foram os primeiros
que praticaram publicamente o monoteísmo; é a eles que Deus transmite a
sua lei, inicialmente através de Moisés e depois com Jesus; foi daquele
pequeno foco que partiu a luz que devia se espalhar pelo mundo inteiro, devia
triunfar sobre o paganismo e dar a Abraão uma posteridade espiritual “tão
numerosa quanto as estrelas do firmamento.” Mas os judeus, rejeitando
totalmente a idolatria, tinham negligenciado a lei moral para se dedicarem à
prática mais fácil das formalidades exteriores. O mal estava no auge: a nação
escravizada ficou dilacerada pelas facções, dividida pelas seitas; a própria
incredulidade havia penetrado até no santuário. Foi então que apareceu Jesus,
enviado para chamá-los aos cumprimento da lei e para lhes abrir os novos
horizontes da vida futura. Sendo os primeiros convidados para o grande
banquete da fé universal, eles rechaçaram a palavra do Messias celestial e o
mataram; foi assim que eles perderam o fruto teriam colhido de sua iniciativa.
Seria injusto, porém, acusarmos o povo inteiro por tal estado de coisas; a
responsabilidade disso recai principalmente sobre os fariseus e os saduceus,
que levaram a nação à perdição — pelo orgulho e fanatismo de uns e pela
incredulidade dos outros. São eles, sobretudo, quem Jesus associa aos
convidados que se recusam a comparecer ao banquete de núpcias. Depois,
acrescenta: “Vendo isso, o Senhor mandou convidar todos aqueles que
encontrassem nos quatro cantos, bons e maus.” Ele queria dizer com isso que
a palavra ia ser pregada a todos os outros povos, pagãos e idólatras, e se estes
a aceitassem, então seriam recebidos no festim, no lugar dos primeiros
convidados.
Contudo, não basta ser convidado, não basta ter o nome de cristão, nem
se sentar à mesa para fazer parte do banquete celestial: é preciso antes de
tudo — e sob condição expressa — estar revestido da túnica nupcial, isto é,
ter pureza de coração e praticar a lei segundo o espírito; ora, essa lei está
256 – Allan Kardec

inteiramente contida nestas palavras: Fora da caridade não há salvação.


Todavia, entre todos aqueles que ouvem a palavra divina, quão poucos são os
que a guardam e a colocam em prática! Quão poucos se tornam dignos de
entrar no reino dos céus! Eis por que Jesus disse: Muitos serão chamados e
poucos os escolhidos.

A porta estreita

3. Entrem pela porta estreita, porque a porta da perdição é larga e o caminho


que a ela conduz é espaçoso, e há muitos que por aí entram. Como é pequena
a porta da vida! Como é estreito o caminho que a ela conduz! E como são
poucos os que a encontram! (São Mateus, 7: 13 e 14)

4. Tendo alguém feito a ele esta pergunta: Senhor, serão poucos os salvos? —
ele respondeu: Esforcem-se para entrar pela porta estreita, pois eu lhes
asseguro que muitos procurarão passar por ela e não conseguirão. E quando
o pai de família tiver entrado e fechar a porta, e quando vocês, estando de
fora, começarem a bater, dizendo: Senhor, abra a porta para nós; ele lhes
responderá: Eu não sei de onde vocês são. Então vocês começarão a dizer:
Nós temos comido e bebido na tua presença, e você tem ensinado nas nossas
praças públicas. Ele lhes responderá: Não sei de onde vocês são; afastem-se
de mim, todos vocês que cometeram a iniquidade.
Acontecerá então que haverá prantos e ranger de dentes, quando vocês
virem que Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas estarão no reino de Deus e
que vocês serão expulsos. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e
do Sul, e farão parte do festim no reino de Deus. Então aqueles que são os
últimos serão os primeiros e os que são os primeiros serão os últimos. (São
Lucas, 13: 23 a 30)

5. A porta da perdição é larga porque as más paixões são numerosas e porque


a rota do mal é frequentada pelo grande maioria. A porta da salvação é
estreita porque o homem que quer transpô-la deve fazer grandes esforços em
si mesmo para vencer suas más tendências, e porque são poucos os que se
resignam a isso. Isso é o complemento da máxima: Muitos são os chamados e
poucos os escolhidos.
257 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Tal é a situação atual da humanidade terrena, porque como a Terra é um


mundo de expiação, nela o mal predomina; quando ela for transformada, a
estrada do bem será a mais frequentada. Portanto, aquelas palavras devem
ser entendidas no sentido relativo, e não no sentido absoluto. Se esse tivesse
que ser o estado normal da humanidade, então Deus teria voluntariamente
condenado à perdição a imensa maioria de suas criaturas — uma suposição
inadmissível, desde que se reconheça que Deus é todo justiça e todo bondade.
Mas de que malfeitos esta humanidade poderia ter sido culpada para
merecer um destino tão triste, no presente e no futuro, se toda ela estivesse
relegada à Terra e se a alma não tivesse tido outras existências? Por que
tantos entraves semeados no seu caminho? Por que essa porta tão estreita
que só uma pequena minoria consegue transpassar, se o destino da alma é
determinado para sempre logo após a morte? É assim que com a unicidade da
existência a pessoa está sempre em contradição consigo mesma e com a
justiça de Deus. Agora com a anterioridade da alma e a pluralidade dos
mundos, o horizonte se alarga; a luz se faz sobre os pontos mais obscuros da
fé; o presente e o futuro tornam-se solidários com o passado; só então
podemos compreender toda a profundeza, toda a verdade e toda a sabedoria
das máximas do Cristo.

Nem todos que dizem “Senhor! Senhor!” entrarão no reino dos céus37
6. Nem todos que me dizem: “Senhor! Senhor!” entrarão no reino dos céus;
mas somente entrará aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.
Muitos me dirão nesse dia: “Senhor! Senhor! Nós não profetizamos em teu
nome? Não expulsamos o demônio em teu nome? Não fizemos muitos
milagres em teu nome?” E então eu lhes direi em voz alta: Afastem-se de mim,
vocês que fazem obras de iniquidade. (São Mateus, 7: 21 a 23.)

7. Aquele, pois, que ouve estas palavras que eu digo e as pratica será
comparado a um homem sábio que construiu sua casa sobre a pedra; e
37 Na obra original, no lugar deste subtítulo consta apenas o equivalente à expressão “Aqueles que
dizem: Senhor! Senhor!” (Ceux qui disent : Seigneur ! Seigneur !), diferentemente do que aparece no
sumário e no cabeçalho do capítulo (Ceux qui disent : Seigneur ! Seigneur ! n’entreront pas tous dans le
royaume des cieux) que corresponde ao texto utilizado nesta tradução para este subtítulo. — N. T.
258 – Allan Kardec

quando a chuva caiu, quando os rios transbordaram e os ventos sopraram e


bateram contra essa casa, ela não tombou, porque ela foi fundada sobre a
pedra. Mas aquele que ouve estas palavras que eu digo e não as pratica, será
semelhante a um homem insensato que construiu sua casa sobre a areia; e
quando a chuva caiu, quando os rios transbordaram e os ventos sopraram e
bateram contra essa casa, ela desmoronou, e sua ruína foi grande. (São
Mateus, 7: 24 a 27; são Lucas, 6: 46 a 49)

8. Aquele, pois, que violar um destes menores mandamentos e que ensinar


aos homens a violá-los, este será considerado no reino dos céus como o
último; mas aquele que os cumprir e ensinar, este será grande no reino dos
céus. (São Mateus, 5: 19)

9. Todos aqueles que reconhecem a missão de Jesus dizem: “Senhor! Senhor!”


Mas de que serve chamar Mestre ou Senhor e não seguir os seus preceitos?
Será que são cristãos aqueles que o honram por atos exteriores de devoção e
ao mesmo tempo se entregam ao orgulho, ao egoísmo, à cupidez e a todas as
suas paixões? Serão seus discípulos aqueles que passam dias em oração e não
se tornam nem melhores, nem mais caridosos, nem mais indulgentes para
com seus semelhantes? Não; porque, assim como os fariseus, eles têm a prece
nos lábios e não no coração. Pela formalidade, eles poderão se impor aos
homens, mas não a Deus. É em vão que eles digam a Jesus: “Senhor, nós
profetizamos, quer dizer, ensinamos em teu nome; nós expulsamos demônios
em teu nome, comemos e bebemos contigo!” Ele lhes responderá: “Eu não sei
quem vocês são; afastem-se de mim, vocês que cometem iniquidades, vocês
que desmentem suas palavras com seus atos, que caluniam o próximo, que
espoliam as viúvas e cometem adultério; afastem-se de mim, vocês cujo
coração destila ódio e fel, vocês que derramam o sangue dos irmãos em meu
nome, que fazem escorrer lágrimas, em vez de secá-las. Para vocês, haverá
prantos e ranger de dentes, pois o reino de Deus é para aqueles que são
mansos, humildes e caridosos. Não esperem distorcer a justiça do Senhor pela
multiplicidade das suas palavras e das suas genuflexões; a única via está
aberta para vocês a fim de encontrarem graça diante dele é a da prática
sincera da lei de amor e de caridade.”
259 – O Evangelho segundo o Espiritismo

As palavras de Jesus são eternas, porque elas significam a verdade. Elas


não são apenas a salvaguarda da vida celeste, mas também a promessa da paz,
da tranquilidade e da estabilidade nas coisas da vida terrestre; é por isso que
todas as instituições humanas — políticas, sociais e religiosas — que se
apoiarem nessas palavras serão estáveis como a casa construída sobre a
rocha; os homens as conservarão, porque nelas encontrarão a sua felicidade;
mas, quanto às instituições que forem uma violação daquelas palavras, estas
serão como a casa edificada sobre a areia: o vento das revoluções e o rio do
progresso as arrastarão.

Muito se pedirá a quem muito recebeu

10. O servo que souber a vontade do seu senhor e que mesmo assim não
estiver pronto e não tiver feito o que o seu senhor queira dele, este servo será
rudemente castigado; mas aquele que não souber da sua vontade e que fizer
coisas dignas de castigo, este será menos punido. Muito se pedirá àquele a
quem muito foi dado, e se cobrará mais daquele a quem foi confiado mais
coisas. (São Lucas, 12: 47 e 48)

11. Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que aqueles
que não veem possam ver e aqueles que veem se tornem cegos. — Alguns
fariseus que estavam com ele ouviram essas palavras e lhe perguntaram: Por
acaso, nós também somos cegos? — Jesus lhes respondeu: Se vocês fossem
cegos, não teriam pecados; mas, agora, vocês dizem que vocês veem, e é por
isso que o seu pecado permanece em vocês. (São João, 9: 39 a 41)

12. Essas máximas encontram sua aplicação principalmente no ensinamento


dos Espíritos. Qualquer um que conheça os preceitos do Cristo certamente é
culpado quando não os praticar. Mas, além do fato de que o Evangelho que os
contém só ter sido divulgado nas seitas cristãs, dentre estas seitas, quantas
pessoas não o leem, e entre as que leem, quantas dessas pessoas não o
compreendem! Disso resulta que as próprias palavras de Jesus estão perdidas
para a grande maioria.
O ensinamento dos Espíritos que reproduz essas máximas sob diferentes
260 – Allan Kardec

formas, que as desenvolve e as comenta, para colocá-las ao alcance de todos,


tem de particular o fato de que não está circunscrito, e que cada pessoa,
letrada ou iletrada, crente ou incrédula, cristã ou não, pode receber esse
ensinamento, já que os Espíritos se comunicam por toda parte; entre aquelas
que o recebem — diretamente ou por intermédio de outra pessoa —
nenhuma pode alegar ignorância; não pode se desculpar nem pela falta de
instrução, nem pela dificuldade do sentido alegórico. Portanto, a pessoa que
não aproveita essas máximas para se melhorar, que as admira como coisas
interessantes e curiosas, sem que seu coração fique sensibilizado, que não se
torna nem menos vã, nem menos orgulhosa, nem menos egoísta, nem menos
apegada aos bens materiais, nem melhor para com seu próximo, então esta
pessoa é tão mais culpada quanto mais meios de conhecer a verdade ela teve.
Os médiuns que obtêm boas comunicações são ainda mais repreensíveis
por persistirem no mal, porque muitas vezes eles escrevem sua própria
condenação e porque, se não estivessem cegos pelo orgulho, eles então
reconheceriam que é para eles que os Espíritos estão se dirigindo. Mas em vez
de tomarem para si as lições que eles escrevem ou que veem serem escritas,
seu único pensamento é o de aplicar essas comunicações aos outros,
confirmando assim estas palavras de Jesus: “Vocês enxergam um cisco no olho
do vizinho e não enxergam a trave que está no próprio olho.” (Cap. X, item 9.)
Por este outro preceito: “Se vocês fossem cegos, então não teriam
pecados”, Jesus entende que a culpabilidade é proporcional aos
conhecimentos que a pessoa tenha; ora, os fariseus — que tinham a pretensão
de ser, e que de fato eram, a parte mais esclarecida da nação — tornavam-se
mais repreensíveis aos olhos de Deus do que o povo ignorante. É o mesmo
que acontece hoje.
Desta maneira, aos espíritas será pedido bastante, porque eles
receberam muito; mas também, àqueles que tiverem aproveitado, muito será
dado.
O primeiro pensamento de todo espírita sincero deve ser o de procurar
nos conselhos dados pelos Espíritos se há algo que possa lhe interessar.
O espiritismo vem multiplicar o número dos chamados, e pela fé que ele
proporciona, multiplicará também o número dos escolhidos.
261 – O Evangelho segundo o Espiritismo

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Será dado mais àquele que tem

13. Seus discípulos, aproximando-se, lhe disseram: Por que o senhor fala com
eles por parábolas? — E, respondendo-lhes, ele disse: É porque, para vocês,
foi-lhes dado a conhecer os mistérios do reino dos céus; mas para os outros,
isso não foi dado a eles. Porque, àquele que já tem, será dado ainda mais e ele
ficará na abundância; mas àquele que não tem, será tirado até mesmo o que
ele tem. Eis por que eu falo a eles por parábolas; porque, vendo, eles nada
enxergam, e ouvindo, eles nada escutam e nem compreendem. E a profecia de
Isaías se cumpre neles, quando diz: Vocês ouvirão com os ouvidos e nada
entenderão; vocês verão com os olhos e nada enxergarão. (São Mateus, 13: 10
a 14)

14. Prestem bem a atenção no que ouvem: pois, usarão com vocês a mesma
medida com a qual vocês tiverem usado com os outros; e mais ainda lhes será
acrescentado; pois, será dado mais àquele que já tem, e àquele que não tem,
será tirado até o que ele tem. (São Marcos, 4: 24 e 25)

15. “Será dado mais ao que já tem e será tirado daquele que não tem.”
Meditem sobre esses grandes ensinamentos, que muitas vezes vão parecer
paradoxais para vocês. Aquele que recebeu é aquele que entende o sentido da
palavra divina; ele só a recebeu porque tentou se tornar digno dela e porque o
Senhor, no seu amor misericordioso, encoraja os esforços que tendem para o
bem. Esses esforços — elevados e perseverantes — atraem as graças do
Senhor; é um ímã que chama para si o que é progressivamente melhor, as
bênçãos abundantes que os tornam fortes para subir a montanha santa, no
cume da qual está o repouso após o trabalho.
“Será tirado daquele que não tem ou tem pouco.” Tomem isso como uma
oposição figurada. Deus não retira das suas criaturas o bem que ele tenha
dignado de fazer a elas. Homens cegos e surdos, abram sua inteligência e seus
corações! Vejam pelo espírito; ouçam pela alma e não interpretem de uma
maneira tão grosseiramente injusta as palavras daquele que fez resplandecer
aos olhos de vocês a justiça do Senhor. Não é Deus quem retira daquele que
262 – Allan Kardec

pouco recebeu, mas sim é o próprio Espírito que, por ser esbanjador e
descuidado, não sabe conservar o que tem e aumentar, fecundando-o, o óbolo
que caiu no seu coração.
Quem não cultiva o campo conquistado com o trabalho do pai e o qual
ele herdou, este vê esse campo se cobrir de ervas e parasitas. Será que é o pai
quem tira do filho as colheitas que este não quis preparar? Se ele deixou
murchar as sementes destinadas a produzir nesse campo, por falta de
cuidado, será que ele deve acusar seu pai por elas não produzirem nada? Não,
não! Ao invés de acusar aquele que havia preparado tudo para ele, ou de
criticar seus dons, que ele acuse o verdadeiro autor de suas misérias, e que
então, arrependido e proativo, ele se ponha à obra com coragem; que cultive o
solo ingrato com o esforço de sua vontade; que ele lavre fundo, com a ajuda
do arrependimento e da esperança; que lance aí, com confiança, a semente
que tiver selecionado como boa dentre as más; que ele a regue com o seu
amor e a sua caridade; então, Deus — o Deus de amor e de caridade — dará
àquele que já recebeu. E aí ele verá seus esforços serem coroados com o
sucesso, e verá um grão produzir cem e outro produzir mil. Coragem,
lavradores! Peguem seus arados e suas charruas; lavrem seus corações;
arranquem deles o joio; semeiem o bom grão que o Senhor confia a vocês, e o
orvalho do amor lhe fará produzir frutos de caridade.
UM ESPÍRITO AMIGO (Bordeaux, 1862)

Reconhece-se o cristão pelas suas obras

16. “Nem todos que me dizem: ‘Senhor! Senhor!’ entrarão no reino dos céus,
mas somente aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.”
Escutem essa palavra do mestre, todos vocês que rejeitam a doutrina
espírita como se fosse uma obra do demônio. Abram seus ouvidos, pois o
momento de ouvir já chegou.
Será que basta vestir uma batina para ser um fiel servidor? Basta dizer
“Eu sou cristão” para seguir o Cristo? Procurem os verdadeiros cristãos e
vocês os reconhecerão pelas suas obras. “Uma árvore boa não pode dar maus
frutos, nem uma árvore má pode dar frutos bons.” — “Toda árvore que não dá
263 – O Evangelho segundo o Espiritismo

bons frutos é cortada e jogada ao fogo.” Eis as palavras do mestre; discípulos


do Cristo, compreendam bem essas palavras. Quais são os frutos que deve dar
a árvore do cristianismo, árvore possante cujos ramos frondosos cobrem com
a sua sombra uma parte do mundo, mas que ainda não abrigaram todos
aqueles que deveriam se reunir em torno dessa árvore? Os frutos da árvore
da vida são os frutos de vida, de esperança e de fé. O cristianismo — tal como
o fizeram depois de muitos séculos — sempre prega essas virtudes divinas;
ele procura disseminar seus frutos, mas quão poucos os colhem! A árvore é
sempre boa, mas os jardineiros são maus. Eles quiseram adaptá-la às ideias
deles, quiseram modelá-la segundo suas necessidades; eles a cortaram, a
reduziram e a mutilaram; seus ramos estéreis não dão maus frutos porque já
não produzem mais frutos. O viajante sedento que se detém sob a sua sombra
para procurar o fruto da esperança — que deveria lhe restabelecer a força e a
coragem — só se depara com ramos áridos que pressentem a tempestade. Em
vão ele pede o fruto de vida à árvore da vida: suas folhas ressecadas caem
murchas; a mão do homem tanto as maltratou que elas se queimaram.
Abram, pois, os ouvidos e os corações, meus bem-amados! Cultivem essa
árvore da vida cujos frutos dão a vida eterna. Aquele que a plantou os convida
a tratá-la com amor, e vocês ainda irão vê-la dar seus frutos divinos em
abundância. Conservem-na tal como o Cristo a entregou para vocês: não a
mutilem; sua sombra imensa quer se estender sobre o Universo: não cortem
seus ramos. Seus frutos benfazejos caem abundantemente para nutrir o viajor
sedento que deseja alcançar seu destino; não amontoem esses frutos para os
armazenar e deixar apodrecer até que não sirvam a ninguém. “Muitos são
chamados e poucos são escolhidos” — é que há monopolizadores do pão da
vida, como há os do pão material. Não se coloquem entre eles; a árvore que dá
bons frutos deve distribuí-los para todos. Então, vão buscar aqueles que estão
sedentos e os conduzam para debaixo dos galhos da árvore e compartilhem
com eles o abrigo que ela oferece a vocês. “Não se colhem uvas dos espinhos.”
Meus amigos, afastem-se daqueles que os chamam para lhes apresentar as
sarças do caminho, mas sigam aqueles que os conduzem para a sombra da
árvore da vida.
O divino Salvador, o justo por excelência, disse, e suas palavras não
264 – Allan Kardec

passarão: “Nem todos que me dizem: ‘Senhor! Senhor!’ entrarão no reino dos
céus, mas somente aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está nos
céus.”
Que o Senhor de bênçãos os abençoe; que o Deus de luz os ilumine; que a
árvore da vida derrame sobre vocês seus frutos com abundância! Creiam e
orem.
SIMEÃO (Bordeaux, 1863)
265 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XIX

A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS
Poder da fé – A fé religiosa. Condição da fé inabalável
– Parábola da figueira seca – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A fé,
mãe da esperança e da caridade – A fé divina e a fé humana

Poder da fé

1. Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se aproximou, lançou-se


de joelhos a seus pés e lhe disse: Senhor, tenha piedade do meu filho, que é
lunático e sofre bastante, pois ele cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na
água. Eu o apresentei aos teus discípulos, mas eles não puderam curá-lo. — e
Jesus respondeu, dizendo: Ó raça incrédula e depravada! Até quando estarei
entre vocês? Até quando os suportarei? Tragam-me aqui esse menino. — E
tendo Jesus ameaçado o demônio, este saiu do menino, o qual ficou curado no
mesmo instante. Então os discípulos vieram ter com Jesus em particular e lhe
indagaram: Por que não pudemos nós mesmos expulsar esse demônio? —
Jesus lhes respondeu: É por causa da sua incredulidade. Pois eu lhe digo em
verdade, que se vocês tivessem fé como um grão de mostarda, vocês
diriam a esta montanha: Transporta-te daqui para ali e ela se
transportaria, e nada seria impossível para vocês. (São Mateus, 17: 14 a 20)

2. No sentido próprio, é certo que a confiança nas próprias forças torna uma
pessoa capaz de executar coisas materiais que nós não conseguimos fazer
quando duvidamos de nós mesmos; mas aqui, é unicamente no sentido moral
que devemos entender essas palavras. As montanhas que a fé transporta são
as dificuldades, as resistências, a má vontade, enfim, aquilo que encontramos
entre os homens, até quando se trata das melhores coisas. Os preconceitos de
266 – Allan Kardec

rotina, o interesse material, o egoísmo, a cegueira do fanatismo e as paixões


orgulhosas são outras tantas montanhas que barram o caminho de quem
trabalha pelo progresso da humanidade. A fé robusta dá a perseverança, a
energia e os recursos que fazem vencer os obstáculos — tanto nas pequenas
coisas como nas grandes. Enquanto isso, a fé vacilante traz a incerteza e a
hesitação, que beneficiam aqueles que queremos combater; ela não procura
os meios de vencer, porque não crê que possa vencer.

3. Numa outra acepção, chamamos de fé a confiança que temos na realização


de algo, a certeza de alcançar um objetivo; ela dá um tipo de lucidez que nos
faz ver, em pensamento, a meta à qual pretendemos alcançar e os meios de
chegar até lá, de sorte que aquele que a possui caminha, por assim dizer, com
muita segurança. Em ambos os casos ela pode realizar grandes coisas.
A fé sincera e verdadeira é sempre calma; ela concede a paciência que
sabe esperar, porque, tendo seu ponto de apoio na inteligência e na
compreensão das coisas, ela tem a certeza de que consegue; já a fé duvidosa,
esta sente sua própria fraqueza, e quando é estimulada pelo interesse, ela fica
furiosa e julga suprir a força com violência. A calma durante a luta é sempre
um sinal de força e de confiança; a violência, ao contrário, é uma prova de
fraqueza e de dúvida de si mesmo.

4. É preciso evitar confundir a fé com a presunção. A verdadeira fé se alia à


humildade; aquele que a possui deposita sua confiança mais em Deus do que
em si próprio, porque ele sabe que, sendo um simples instrumento da vontade
divina, ele nada pode sem Deus; por isso os bons Espíritos vêm lhe ajudar. A
presunção é menos fé do que orgulho, e o orgulho é sempre castigado — cedo
ou tarde — pela decepção e pelos fracassos que lhe são infligidos.

5. A potência da fé recebe uma aplicação direta e especial na ação magnética;


por ela, o homem age sobre o fluido — o agente universal — e modifica as
qualidades fluídicas para lhe dá uma impulsão por assim dizer irresistível. Eis
por que quem junta uma grande força fluídica normal com uma fé ardente,
através da vontade dirigida exclusivamente para o bem, pode operar esses
fenômenos extraordinários de cura e outros que antigamente se passavam
267 – O Evangelho segundo o Espiritismo

por prodígios, mas que não são mais do que as consequências de uma lei
natural. Tal é o motivo pelo qual Jesus disse a seus apóstolos: se vocês não o
curam, foi porque vocês não têm fé.

A fé religiosa – Condição da fé inabalável

6. Do ponto de vista religioso, a fé é a crença em dogmas particulares que


constituem as diferentes religiões; todas as religiões têm seus artigos de fé.
Sob esse aspecto, a fé pode ser raciocinada ou cega. A fé cega não examina
nada, aceitando sem verificação tanto o falso quanto o verdadeiro, e a cada
passo ela se choca contra a evidência e a razão; levada ao excesso, a fé cega
produz o fanatismo. Quando a fé se apoia no erro, cedo ou tarde ela
desmorona; só aquela que tem por base a verdade é a que está segura quanto
ao futuro, por não ter nada a temer do progresso das luzes, considerando-se
que o que é verdadeiro no escuro, é igualmente verdadeiro à luz do dia.
Cada religião pretende ter a posse exclusiva da verdade; preconizar a fé cega
sobre um ponto de crença é confessar sua impotência para demonstrar
que tem razão.

7. Costuma-se dizer que a fé não pode ser encomendada, pelo que muita
gente alega que não é culpa sua se ela não tem fé. Sem dúvidas, a fé não pode
ser encomendada, e o que é ainda mais certo: a fé não pode ser imposta. Não,
ela não pode ser encomendada, mas ela pode ser adquirida, e não há ninguém
impedido de possuí-la — até mesmo entre os mais intransigentes. Estamos
falando das verdades espirituais fundamentais, e não dessa ou daquela crença
particular. Não cabe à fé ir até eles, mas é eles quem deve ir em direção à fé, e
se eles a procurarem com sinceridade, então a encontrarão. Portanto, tenham
como certo que aqueles que dizem “Não pediríamos nada melhor do que crer,
mas não podemos”, estes falam com os lábios, e não com o coração, porque
enquanto dizem isso eles tapam os ouvidos. Contudo, sobram provas em volta
deles; por que então se recusam a vê-las? Para uns, é descaso; para outros, é o
receio de serem forçados a mudar seus hábitos; para a maioria, é o orgulho
que se nega a reconhecer uma força superior, porque seria preciso se curvar
268 – Allan Kardec

diante dessa força.


Para determinadas pessoas, de algum modo a fé parece inata; uma
centelha é suficiente para desenvolvê-la, e essa facilidade para assimilar as
verdades espirituais é um sinal evidente de um progresso anterior. Outras
pessoas, ao contrário, só penetram a fé com dificuldade — sinal não menos
evidente de uma natureza atrasada. As primeiras já creram e entenderam;
elas trazem de nascença a intuição do que elas aprenderam: sua educação
está feita. As outras pessoas têm tudo o que aprender: sua educação está por
fazer; ela se fará, e se ela não for concluída nesta existência, será em outra.
A resistência do incrédulo, devemos convir, muitas vezes se deve menos
a ele do que à maneira pela qual lhe apresentam as coisas. A fé requer uma
base, e essa base é a compreensão perfeita daquilo em que devemos crer;
para crer, não basta ver; é preciso sobretudo compreender. A fé cega já não é
mais deste século;38 ora, é justamente o dogma da fé cega que faz hoje o maior
número dos incrédulos, porque ela quer se impor e exige a abdicação de uma
das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. É
principalmente contra essa fé que o incrédulo se endurece, e da qual é
verdade que se diga que ela não pode ser encomendada. Não admitindo
provas, ela deixa no espírito um vazio do qual nasce a dúvida. A fé raciocinada
— aquela que se apoia nos fatos e na lógica — não deixa, a partir daí,
nenhuma obscuridade; acreditamos porque temos certeza, e só temos certeza
depois que compreendemos; eis por que ela não vacila, pois não há fé
inabalável senão aquela que pode encarar a razão face a face em todas as
épocas da humanidade.
É a esse resultado que o espiritismo nos conduz; assim, ele triunfa sobre
a incredulidade todas as vezes que ele não encontra uma oposição sistemática
e interessada.

Parábola da figueira seca

8. Quando eles saíam de Betânia, ele teve fome; e vendo ao longe uma
figueira, ele foi até ela para ver se ali poderia achar alguma coisa, e chegando

38 Obviamente, uma referência ao já longínquo século XIX. — N. T.


269 – O Evangelho segundo o Espiritismo

próximo dela, ele não encontrou senão folhas, pois não era tempo de figos.
Então Jesus disse à figueira: Que ninguém coma de ti fruto algum — conforme
o que seus discípulos ouviram. No dia seguinte, eles viram, ao passarem pela
figueira, que ela tinha secado até a raiz. E Pedro, lembrando-se da fala de
Jesus, disse-lhe: Mestre, veja como ficou seca a figueira que o senhor
amaldiçoou. — Jesus, tomando a palavra, disse a eles: Tenham fé em Deus.
Em verdade eu digo a vocês que qualquer um que disser a esta montanha:
Saia daí e se lance ao mar, e isso sem hesitar no seu coração, mas crendo
firmemente que tudo o que tiver dito acontecerá, então ele verá de fato
acontecer. (São Marcos, 11: 12 a 14; 20 a 23)

9. A figueira seca é o símbolo das pessoas que só têm as aparências do bem,


mas que na realidade não produzem nada de bom; é o símbolo dos oradores,
que têm mais brilho do que solidez, pois suas palavras têm um verniz
superficial que agradam aos ouvidos, mas quando as perscrutamos, não
encontramos nessas palavras nada de substancial para o coração, e depois de
ouvi-las, nós nos perguntarmos que proveito tivemos.
É também o símbolo de todas as pessoas que, mesmo tendo os meios,
não são úteis; assim como é o símbolo de todas as utopias, de todas as teorias
vazias, de todas as doutrinas sem base sólida. O que falta na maioria das vezes
é a verdadeira fé, a fé fecunda, a fé que remexe as fibras do coração: numa
palavra, a fé que transporta as montanhas. São as árvores que têm folhas, mas
nada de frutos; eis por que Jesus as condena à esterilidade, pois virá um dia
em que elas ficarão secas até a raiz; quer dizer que todos os sistemas e todas
as doutrinas que não tiverem produzido nenhum bem à humanidade cairão
no vazio; que todos os homens voluntariamente inúteis, por não terem
colocado em ação os recursos que traziam consigo, serão tratados como a
figueira seca.

10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; eles suprem os órgãos físicos
que faltam nos desencarnados para nos transmitir as instruções destes, e é
por isso que os médiuns são dotados de faculdades para esse efeito. Nestes
tempos de renovação social, eles têm uma missão particular: são árvores que
devem dar o alimento espiritual a seus irmãos; eles se multiplicam para que o
270 – Allan Kardec

alimento seja abundante, havendo médiuns em toda parte, em todos os países,


em todas as classes da sociedade, entre ricos e pobres, entre grandes e
pequenos, a fim de que não haja deserdados e para provar aos homens que
todos são chamados. Todavia, se eles desviarem do objetivo providencial a
preciosa faculdade que lhes foi concedida, se eles a utilizarem em coisas fúteis
ou nocivas, se a colocarem a serviço dos interesses mundanos, se em vez de
frutos salutares eles derem maus frutos, se eles se recusam de torná-la
benéfica para os outros, se não tirarem nenhum proveito dela para si mesmos
em se melhorando, então esses médiuns serão como a figueira estéril e Deus
lhes retirará um dom que se tornou inútil nas mãos deles — a semente que
eles não sabem fazer frutificar, deixando que eles se tornem presas dos maus
Espíritos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A fé, mãe da esperança e da caridade

11. A fé, para ser proveitosa, deve ser ativa e não pode adormecer. Mãe de
todas as virtudes que conduzem a Deus, ela deve velar atentamente pelo
desenvolvimento dos filhos que ela gerou.
A esperança e a caridade são uma consequência da fé; essas três virtudes
formam uma trindade inseparável. Já que é a fé que dá a esperança de vermos
a realização das promessas do Senhor, então, se vocês não tiverem fé, o que
estão esperando? Já que é a fé que dá o amor, então, se não tiverem fé, que
reconhecimento vocês terão? E por conseguinte, que amor?
A fé — divina inspiração de Deus — desperta todos os instintos nobres
que conduzem o homem ao bem; ela é a base da regeneração. É preciso, pois,
que essa base seja forte e durável, porque se uma mínima dúvida vier abalá-la,
que será do edifício que vocês construíram sobre ela? Portanto, levantem esse
edifício sobre fundações inabaláveis; que a sua fé seja mais forte do que os
sofismas e as zombarias dos incrédulos, porque a fé que não encara o ridículo
dos homens não é a verdadeira fé.
A fé sincera é empolgante e contagiosa; ela se comunica com aqueles que
271 – O Evangelho segundo o Espiritismo

não a tinham, ou mesmo não a queriam, e encontra palavras persuasivas que


vão até a alma, enquanto a fé aparente não tem mais do que palavras sonoras
que causam frieza e indiferença. Preguem pelo exemplo da sua própria fé,
para transmiti-la aos homens; preguem pelo exemplo de suas próprias obras,
para demonstrarem a eles o mérito da fé; preguem pela própria esperança
inabalável, para fazer com que eles vejam a confiança que os fortifica e os põe
a enfrentar todas as vicissitudes da vida.
Então, tenham fé em tudo aquilo que ela contém de belo e de bom, na sua
pureza e na sua racionalidade. Não admitam a fé sem comprovação — filha
cega da cegueira. Amem a Deus, mas saibam por que o amam; creiam nas suas
promessas, mas saibam por que acreditam nelas; sigam os nossos conselhos,
mas se conscientizem do propósito que lhes mostramos e dos meios que lhes
trazemos para alcançá-lo. Creiam e esperem sem jamais fraquejar: os
milagres são obras da fé.
JOSÉ, ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1862.)

A fé divina e a fé humana

12. A fé é o sentimento inato no homem quanto aos seus destinos futuros; é a


consciência que ele tem das faculdades imensas cuja semente foi depositada
nele, inicialmente em estado latente, e que ele deve fazer que desabrochar e
crescer pela sua vontade ativa.
Até o presente, a fé não foi compreendida senão pelo lado religioso,
porque o Cristo a preconizou como uma poderosa alavanca e porque só viram
nele o chefe de uma religião. Mas o Cristo, que operou milagres materiais,
mostrou através desses milagres mesmos o quanto o homem pode fazer,
desde que ele tenha fé — isto é, vontade de querer e certeza de que essa
vontade pode se realizar. Também os apóstolos, a exemplo de Jesus, não
operaram milagres? Ora, aqueles milagres não eram mais do que efeitos
naturais cuja causa era desconhecida dos homens daquela época, mas que
hoje é explicada em grande parte, e que será completamente compreendida
pelo estudo do espiritismo e do magnetismo.
A fé é humana ou divina, conforme o homem aplica suas faculdades para
272 – Allan Kardec

as necessidades terrenas ou para as suas aspirações celestiais e futuras. O


homem inteligente que procura a realização de um grande empreendimento
triunfa quando ele tem fé, porque sente em si que ele pode e há de conseguir,
e essa certeza lhe dá uma força imensa. O homem de bem que queira
preencher a sua existência com ações nobres e belas, acreditando no seu
futuro celeste, este então extrai a força necessária na sua fé e na certeza da
felicidade que o espera, e ainda aí se operam milagres de caridade, de
devotamento e de abnegação. Enfim, com a fé, não há maus pendores que não
sejam vencidos.
O magnetismo é uma das maiores provas do poder da fé posta em ação; é
pela fé que ele cura e produz esses fenômenos singulares outrora eram
qualificados de milagres.
Repito: a fé é humana e divina; se todos os encarnados estivessem bem
persuadidos da força que eles trazem em si, e eles se quisessem colocar sua
vontade a serviço dessa força, então eles seriam capazes de realizar o que até
agora eles chamam prodígios, e que é simplesmente um desenvolvimento das
faculdades humanas.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Paris, 1863)
273 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XX

OS TRABALHADORES
DA ÚLTIMA HORA
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Os últimos serão os primeiros
– Missão dos espíritas – Os obreiros do Senhor

1. O reino dos céus é semelhante a um pai de família que saiu de madrugada,


a fim de contratar obreiros para trabalhar na sua vinha; tendo combinado
com os trabalhadores que eles receberiam um denário pela sua jornada, ele
os enviou para a vinha. E saiu de novo na terceira hora do dia, e vendo outros
que estavam parados na praça sem fazer nada, ele lhes disse: Vocês também,
vão para a minha vinha e eu lhes darei o que for razoável — e eles foram. Saiu
novamente na sexta hora e na nona hora do dia, e fez a mesma coisa. E tendo
saído na undécima hora, ele encontrou outros obreiros que estavam lá sem
fazer nada, aos quais ele disse: Por que ficam aí ao longo do dia sem
trabalhar? — Eles disseram: É que ninguém nos contratou. Ele então lhes
disse: Vão, vocês também, para a minha vinha.
Tendo vindo a noite, o senhor da vinha disse àquele que cuidava dos
seus negócios: Chame os trabalhadores e paga a eles, começando pelos
últimos, até os primeiros. — Aqueles que tinham vindo à vinha apenas na
undécima então se aproximaram, cada qual recebendo um denário. Aqueles
que tinham sido os primeiros contratados acharam que receberiam mais,
porém eles não receberam mais do que um denário cada um; e o recebendo,
eles se queixaram ao pai de família, dizendo: Estes últimos não trabalharam
mais do que uma hora e o senhor lhes paga igual a nós, que carregamos o
peso do dia e do calor.
Mas, em resposta ele disse a um deles: Meu amigo, eu não te causo dano
algum; você não combinou comigo um denário pela tua jornada? Tome o que
274 – Allan Kardec

te pertence e vá embora; por mim, eu quero dar a este último tanto quanto a
ti. Então não me é permitido fazer o que eu quero? Será que o teu olho é mau
porque eu sou bom?
Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos,
porque muitos são chamados e poucos são escolhidos. (São Mateus, 20: 1 a
16. Ver também: Parábola do festim de núpcias, cap. XVIII, item 1)

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Os últimos serão os primeiros

2. O trabalhador da última hora tem direito ao salário, mas é preciso que a sua
boa vontade o tenha mantido à disposição do senhor que o devia empregar, e
que o seu atraso não seja fruto da preguiça ou da sua má vontade. Ele tem
direito ao salário porque, desde o alvorecer, ele aguardava impacientemente
aquele que finalmente o chamaria à obra; ele era laborioso, só estava lhe
faltando o trabalho.
Entretanto, se ele tivesse recusado o emprego a qualquer hora do dia; se
ele tivesse dito: Tenhamos paciência, o repouso me é agradável; quando
chegar a última hora é que será tempo de pensar no salário da jornada; que
necessidade tenho de me incomodar com um patrão que eu não conheço e
não amo? Quanto mais tarde melhor! — Esse, meus amigos, não teria
recebido o salário do obreiro, e sim o da preguiça.
O que será então daquele que, em vez de ficar simplesmente na
ociosidade, tenha empregado as horas destinadas ao labor do dia para
praticar atos culposos; que tenha blasfemado Deus, derramado o sangue de
seus irmãos, lançado perturbação nas famílias, arruinado os homens
confiáveis, abusado da inocência, e que, enfim, tenha se envolvido com todas
as ignomínias da humanidade? O que será então dessa pessoa? Imagine que
ele dissesse, na derradeira hora: Senhor, empreguei mal meu tempo; leve-me
até o fim do dia, para que eu faça um pouco, bem pouco da minha tarefa, e me
dê o salário do obreiro de boa vontade. — Isso bastaria? Não, não! O Senhor
lhe diria: Não tenho emprego para ti no momento; você desperdiçou o seu
275 – O Evangelho segundo o Espiritismo

tempo, esqueceu o que tinha aprendido e já não sabe mais trabalhar na minha
vinha. Portanto, recomece a aprender, e quando estiver mais bem disposto,
venha até mim e eu abrirei para você o meu vasto campo, onde poderá
trabalhar a qualquer hora do dia.
Bons espíritas, meus bem-amados, vocês todos são trabalhadores da
última hora. Seria muito orgulhoso aquele que dissesse: Comecei a obra na
alvorada e só o terminei no fim do dia. Todos vieram quando foram
chamados, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, para a encarnação
da qual carregam as correntes; mas há quantos séculos amontoados o senhor
os chamava para a sua vinha sem que vocês quisessem nela entrar! Aqui estão
vocês no momento de receber o salário; aproveitem bem esta hora que lhes
resta e não esqueçam jamais que a existência de vocês — por mais longa que
lhes pareça — não é mais do que um momento bem fugaz na imensidade dos
tempos que formam para vocês a eternidade.
CONSTANTINO, ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1863)

3. Jesus gostava da simplicidade dos símbolos e, na sua linguagem varonil, os


obreiros que chegaram na primeira hora são os profetas, Moisés e todos os
iniciadores que marcaram as etapas do progresso que através dos séculos
continuaram a ser desenvolvidas pelos apóstolos, pelos mártires, pelos Pais
da Igreja, pelos sábios, pelos filósofos e finalmente pelos espíritas. Estes,
vindo por último, foram anunciados e preditos desde a aurora do Messias, e
eles receberão a mesma recompensa — melhor dizendo: uma recompensa
maior. Como os derradeiros que chegaram, os espíritas aproveitam os labores
intelectuais dos seus predecessores, porque o homem deve herdar do homem,
e porque seus trabalhos e seus resultados são coletivos: Deus abençoa a
solidariedade. Muitos dentre eles, aliás, revivem hoje ou reviverão amanhã
para completarem a obra que começaram lá atrás; mais de um patriarca, mais
de um profeta, mais de um discípulo do Cristo e mais de um propagador da fé
cristã se encontram entre eles, porém mais esclarecidos, mais avançados,
trabalhando não mais na base, e sim na cumeeira do edifício; o salário deles,
portanto, será proporcional ao mérito da obra.
A reencarnação — esse belo dogma — eterniza e torna exata a filiação
276 – Allan Kardec

espiritual. O Espírito, chamado a prestar contas do seu mandato terreno,


compreende a continuidade da tarefa interrompida, mas sempre retomada;
ele vê e sente que pegou no ar o pensamento dos seus precedentes; ele
retorna na liça amadurecido pela experiência para avançar mais; e todos,
trabalhadores da primeira e da derradeira hora, de olhos desvendados quanto
à profunda justiça de Deus, já não murmuram, mas o adoram.
Este é um dos verdadeiros significados dessa parábola, que — como
todas aquelas que Jesus endereçou ao povo — contém o germe do futuro, e
também, sob todas as formas, sob todas as imagens, contém a revelação dessa
magnífica unidade que harmoniza todas as coisas no Universo, dessa
solidariedade que liga todos os seres presentes ao passado e ao futuro.
HENRI HEINE (Paris, 1863)

Missão dos espíritas

4. Vocês ainda não percebem que está se formando a tempestade que há de


varrer o velho mundo e engolir do nada todas as iniquidades terrenas? Ah!
Bendigam o Senhor, vocês que depositaram sua fé na sua soberana justiça, e
que, como os novos apóstolos da crença revelada pelas vozes proféticas
superiores, vão pregar o novo dogma da reencarnação e da elevação dos
Espíritos, conforme eles tenham cumprido — bem ou mal — suas missões e
suportado suas provações terrestres.
Não temam mais! As línguas de fogo estão sobre as suas cabeças. Ó
verdadeiros adeptos do Espiritismo, vocês são os eleitos de Deus! Vão e
preguem a palavra divina. Chegou a hora em que, pela propagação dessa
palavra, vocês precisam sacrificar os seus hábitos, seus trabalhos, suas
ocupações fúteis. Vão e preguem: os Espíritos do alto estão com vocês. Com
certeza falarão a pessoas que não vão querer escutar a voz de Deus, porque
essa voz as convida constantemente à abnegação; preguem o desinteresse aos
avarentos, a abstinência aos devassos, a mansidão aos tiranos domésticos e
aos déspotas. Palavras perdidas, eu bem sei; mas não importa?! É preciso
regar com seus suores o terreno em que vocês devem semear, porque ele não
frutificará e não produzirá senão sob os esforços reiterados da enxada e da
277 – O Evangelho segundo o Espiritismo

charrua evangélicas. Vão e preguem!


Sim, vocês todos, homens de boa-fé, que acreditam na sua inferioridade
em relação aos mundos espalhados ao infinito, partam em cruzada contra a
injustiça e a iniquidade. Vão e derrubem esse culto do bezerro de ouro, cada
vez mais atrevido. Vão, pois Deus os conduz! Homens simples e ignorantes,
suas línguas se soltarão e vocês falarão como nenhum orador fala. Vão e
preguem, e as populações atentas acolherão com felicidade suas palavras de
consolação, de fraternidade, de esperança e de paz.
Que importam as ciladas que serão armadas no caminho de vocês!
Somente lobos caem em armadilhas para lobos, pois o pastor saberá defender
suas ovelhas das fogueiras sacrificadoras.
Vão, homens grandiosos perante Deus, e que, mais felizes do que são
Tomé, creem sem pedir para ver e aceitam os fatos da mediunidade, mesmo
quando vocês mesmos não têm conseguido obtê-los pessoalmente; vão, o
Espírito de Deus os conduz.
Então, marchem avante, falange imponente pela sua fé! Os grandes
batalhões de incrédulos se desvanecerão diante de ti, como a bruma da
manhã desvanece aos primeiros raios do Sol nascente.
A fé é a virtude que transportará montanhas — disse Jesus a vocês.
Porém, mais pesadas do que as mais pesadas montanhas, jazem no coração
dos homens a impureza e todos os vícios da impureza. Então, sigam com
coragem, para levantar essa montanha da iniquidade que as futuras gerações
não devem conhecer senão na condição de lenda, assim como vocês mesmos
só conhecem muito imperfeitamente o período anterior à civilização pagã.
Sim, as agitações morais e filosóficas vão eclodir em todos os pontos do
globo; aproxima-se a hora em que a luz divina aparecerá sobre os dois
mundos.39
Vão, pois, e levem a palavra divina: aos grandes que a desdenharão, aos
instruídos que exigirão provas, aos pequenos e aos simples que a aceitarão,

39 Na obra original (referente à 4ª edição, de 1868), muito provavelmente por um descuido da


montagem tipográfica do livro, a transcrição desta mensagem termina neste ponto, inclusive com a
ausência do nome do Espírito comunicante, assim como o local e o ano de recebimento da mensagem.
Contudo, para esta tradução, fomos buscar o complemento desta mesma comunicação na 1ª edição da
obra (1864), conforme segue adiante à marcação desta nota de rodapé. — N. T.
278 – Allan Kardec

porque é sobretudo entre os mártires do trabalho, nesta expiação terrena, que


vocês encontrarão fervor e fé. Vão; estes últimos receberão com hinos de ação
de graça e cantando louvores a Deus a consolação santa que vocês levarem
até eles, e então se inclinarão e o agradecerão pela parte que lhes toca nas
misérias da Terra.
Que a sua falange se arme então de resolução e coragem! Mãos à obra! O
arado está pronto; a terra espera; é preciso trabalhar.
Vão e agradeçam a Deus pela tarefa gloriosa que ele confiou a vocês; mas
lembrem-se que entre os chamados para o Espiritismo, muitos se
transviaram; por isso, olhem para sua rota e sigam o caminho da verdade.
Pergunta: Se muitos dos chamados para o Espiritismo se transviaram, por
qual sinal devemos reconhecer aqueles que estão no bom caminho? —
Resposta: Vocês irão reconhecê-los pelos princípios da verdadeira caridade
que eles professarão e praticarão; vão reconhecê-los pelo número de aflitos
aos quais eles levarem consolo; vão reconhecê-los pelo amor deles pelo
próximo, pela abnegação e pelo seu desinteresse pessoal deles; vocês vão
reconhecê-los, finalmente, pelo triunfo de seus princípios, porque Deus quer o
triunfo da sua lei; aqueles que seguem sua lei são os seus eleitos, e Deus lhes
dará a vitória; mas ele destruirá aqueles que falseiam o espírito dessa lei e
fazem dela um degrau para satisfazer à sua vaidade e à sua ambição.
ERASTO, anjo guardião do médium (Paris, 1863)

Os obreiros do Senhor
5. Vocês chegaram ao tempo do cumprimento das coisas anunciadas para a
transformação da humanidade; felizes serão aqueles que tiverem trabalhado
no campo do Senhor com desinteresse e sem outro motivo além da caridade!
Suas jornadas de trabalho serão pagas pelo cêntuplo do que tiverem
esperado. Felizes serão aqueles que tiverem dito a seus irmãos: “Irmãos,
trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o mestre
encontre a obra concluída quando ele chegar,” pois o mestre lhes dirá:
“Vinham a mim, vocês que são bons servidores, vocês que conseguiram calar
seus ciúmes e suas discórdias, para não prejudicar a obra!” Mas ai daqueles
279 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que, por suas dissensões, houverem retardado a hora da colheita, pois a


tempestade virá e eles serão levados pela enxurrada. Eles gritarão: “Piedade!
Piedade!” Mas o senhor lhes dirá: “Por que pedem piedade, vocês que não
tiveram piedade dos irmãos e que recusaram a estender-lhes a mão, vocês
que esmagaram o fraco em vez de o ampararem? Por que pedem piedade,
vocês que buscaram a sua recompensa nos gozos da Terra e na satisfação do
próprio orgulho? Vocês já receberam a sua recompensa, tal como quiseram;
não peçam mais do que isso: as recompensas celestes são para os que não
tenham pedido as recompensas da Terra.”
Deus faz, neste momento, a contagem dos seus servidores fiéis e tem
marcado com o dedo aqueles que não têm mais do que a aparência do
devotamento, a fim de que eles não usurpam o salário dos servidores
corajosos, pois é a estes que não recuaram diante de suas tarefas que Deus vai
confiar os postos mais difíceis na grande obra da regeneração pelo
espiritismo, e esta afirmativa se cumprirá: “Os primeiros serão os últimos e os
últimos serão os primeiros no Reino dos céus!”
O ESPÍRITO DE VERDADE (Paris, 1862)
280 – Allan Kardec

CAPÍTULO XXI

HAVERÁ FALSOS CRISTOS


E FALSOS PROFETAS
Conhece-se a árvore pelo seu fruto – Missão dos profetas
– Prodígios dos falsos profetas – Não creiam em todos os Espíritos –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Os falsos profetas
– Características do verdadeiro profeta – Os falsos profetas da
erraticidade – Jeremias e os falsos profetas

Conhece-se a árvore pelo seu fruto

1. A árvore que produz maus frutos não é boa, e a árvore que produz bons
frutos não é má; pois, cada árvore é conhecida pelo seu próprio fruto. Não se
colhem figos de espinhos, nem se colhem cachos de uvas de sarças. O homem
de bem tira boas coisas do bom tesouro do seu coração, e o ímpio tira as más
coisas do mau tesouro do seu coração; porquanto a boca fala daquilo de que o
coração está cheio. (São Lucas, 6: 43 a 45)

2. Tenham cuidado com os falsos profetas, que se apresentam a vocês


cobertos de peles de ovelha, mas que por dentro são lobos vorazes. Vocês vão
reconhecê-los pelos frutos deles. Pode-se colher uvas nos espinhos ou figos
nas sarças? Assim, toda árvore que é boa produz bons frutos, e toda árvore
que é má produz maus frutos. Uma árvore boa não pode produzir frutos
maus, e uma árvore má não pode produzir frutos bons. Toda árvore que
não produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo. Então, vocês vão
reconhecê-la pelos seus frutos. (São Mateus, 7: 15 a 20)

3. Tenham cuidado para que ninguém os seduza; porque muitos virão em


281 – O Evangelho segundo o Espiritismo

meu nome, dizendo: “Eu sou o Cristo”, e eles seduzirão a muitos.


Vários falsos profetas vão se levantar e seduzirão a muitas pessoas; e
por que a iniquidade se multiplicará, a caridade de muitos esfriará. Mas será
salvo aquele que perseverar até o fim.
Então, se alguém lhes disser: O Cristo está aqui, ou está ali, não
acreditem; pois vão se levantar falsos cristos e falsos profetas que farão
grandes prodígios e coisas espantosas, a ponto de seduzirem, se fosse
possível, até mesmos os escolhidos. (São Mateus, 24: 4 e 5; 11 a 13; 23 e 24;
são Marcos, 13: 5 e 6; 21 e 22)

Missão dos profetas


4. Atribui-se normalmente aos profetas o dom de revelar o futuro, de sorte
que as palavras profecia e predição se tornaram sinônimas. No sentido
evangélico, a palavra profeta tem uma significação mais ampla; ela se refere a
todo enviado de Deus com a missão de instruir os homens e de lhes revelar as
coisas ocultas e os mistérios da vida espiritual. Portanto, um homem pode ser
profeta sem fazer predições; essa era a ideia dos judeus no tempo de Jesus; foi
por isso que, quando ele foi levado diante do sumo sacerdote Caifás, estando
reunidos os escribas e os anciães, eles lhe cuspiram no rosto, bateram-lhe
com os punhos e o esbofetearam, dizendo: “Cristo, profetiza-nos e diga quem
foi que te bateu.” Entretanto, aconteceu que os profetas tiveram a presciência
do futuro — seja por intuição, seja por revelação providencial — a fim de dar
avisos aos homens; realizando-se esses eventos, o dom de predizer o porvir
foi considerado como um dos atributos da qualidade de profeta.

Prodígios dos falsos profetas

5. “Vão se levantar falsos cristos e falsos profetas que farão grandes prodígios
e coisas de espantosas, a ponto de seduzirem até mesmo os escolhidos.” Essas
palavras dão o verdadeiro sentido do termo prodígio. Na acepção teológica, os
prodígios e os milagres são fenômenos excepcionais, fora das leis da natureza.
Como as leis da natureza são obras exclusivas de Deus, sem dúvida ele pode
282 – Allan Kardec

derrogá-las se isso lhe agradar, mas o simples bom senso diz que não é
possível que ele possa ter dado a seres inferiores e perversos um poder igual
ao seu, e ainda menos o direito de desfazer aquilo que ele tenha feito. Jesus
não pode ter consagrado tal princípio. Se, portanto, conforme o sentido que se
dê a essas palavras, o Espírito do mal tivesse o poder de fazer prodígios tais
que enganassem até mesmo os eleitos, o resultado seria que, podendo fazer o
que Deus faz, os prodígios e os milagres não são privilégio exclusivo dos
enviados de Deus, e não provam nada, já que nada distingue os milagres dos
santos dos milagres do demônio. Então, é preciso procurar um sentido mais
racional para aquelas palavras.
Aos olhos do vulgo ignorante, todo fenômeno cuja causa é desconhecida
passa por sobrenatural, maravilhoso e miraculoso; uma vez conhecida a
causa, reconhece-se que o fenômeno — por mais extraordinário que pareça
— não é outra coisa senão a aplicação de uma lei da natureza. É assim que o
círculo dos fatos sobrenaturais se restringe à medida que o da ciência se
estende. Em todos os tempos, em proveito da sua ambição, dos seus
interesses e da dominação, os homens exploraram certos conhecimentos que
possuíam, a fim de garantir para si o prestígio de um poder dito sobre-
humano, ou de uma pretensa missão divina. São esses os falsos cristos e os
falsos profetas; mas a difusão das luzes destrói o crédito deles, e é por isso
que o seu número diminui na proporção que os homens se esclarecem. O fato
de operar aquilo que, aos olhos de algumas pessoas, passa por prodígios não
constitui, pois, o sinal de uma missão divina, já que isso pode resultar de
conhecimentos que cada um pode adquirir ou de faculdades orgânicas
especiais que a pessoa mais indigna pode possuir tão bem quanto a mais
digna. O verdadeiro profeta é reconhecido por características mais sérias — e
exclusivamente morais.

Não creiais em todos os Espíritos

6. Meus bem-amados, não acreditem em qualquer Espírito, mas examinem


se os Espíritos são de Deus, porque muitos falsos profetas têm se levantado
no mundo. (São João, 1ª epístola, 4: 1)
283 – O Evangelho segundo o Espiritismo

7. Os fenômenos espíritas — longe dar crédito aos falsos cristos e os falsos


profetas, como algumas pessoas gostam de dizer — vêm, ao contrário,
desferir neles o derradeiro golpe. Não peçam ao espiritismo nem milagres
nem prodígios, porque ele declara formalmente que não produz essas coisas;
assim como a física, a química, a astronomia e a geologia, o espiritismo veio
revelar as leis do mundo material, vem revelar outras leis desconhecidas —
aquelas que regem as relações entre o mundo corporal e o mundo espiritual
— e que, como as mais antigas leis da ciência, não deixam de ser leis da
natureza. Ao dar a explicação de uma certa ordem de fenômenos até então
incompreendidos, o espiritismo destrói o que ainda restava do domínio do
maravilhoso. Dessa forma, aqueles que fossem tentados a explorar esses
fenômenos em proveito próprio, fazendo-se passar por messias de Deus, não
conseguiria por muito tempo abusar da fé das pessoas, pois logo seria
desmascarado. Além do mais, assim como já foi dito, esses fenômenos por si
só não provam nada: a missão se prova por efeitos morais, o que não é dado a
qualquer um produzir. Este é um dos resultados do desenvolvimento da
ciência espírita; perscrutando a causa de certos fenômenos, ela levanta o véu
sobre muitos mistérios. Somente aqueles que preferem a obscuridade à luz é
que têm interesse em combater a ciência espírita; mas a verdade é como o Sol:
ela dissipa os mais densos nevoeiros.
O espiritismo vem revelar outra categoria bem mais perigosa de falsos
cristos e de falsos profetas, que se encontram, não entre os homens, mas entre
os desencarnados: é categoria dos Espíritos enganadores, hipócritas,
orgulhosos e pseudossábios, que da Terra passaram para a erraticidade e que
se disfarçam com nomes venerados para, graças à máscara com a qual se
cobrem, promover a crença em ideias muitas vezes das mais bizarras e das
mais absurdas. Antes que as relações mediúnicas fossem conhecidas, esses
Espíritos exerciam suas ações de uma maneira menos ostensiva, pela
inspiração, pela mediunidade inconsciente, audiente ou falante. É expressivo
o número daqueles que em diversas épocas, mas sobretudo nestes últimos
tempos, têm se apresentado como alguns dos antigos profetas, tais como o
Cristo, Maria, sua mãe, e até como Deus. São João faz um alerta contra eles,
quando diz: “Meus bem-amados, não acreditem em qualquer Espírito, mas
284 – Allan Kardec

verifiquem se os Espíritos são de Deus, porque muitos falsos profetas têm se


levantado no mundo.” O espiritismo dá os meios de os pôr à prova ao indicar
as características pelas quais podemos reconhecer os bons Espíritos —
características sempre morais, e nunca materiais.40 É para fazer a
diferenciação entre os bons Espíritos e os maus Espíritos que podem ser
aplicadas principalmente estas palavras de Jesus: “Reconhecemos a qualidade
da árvore pelo seus frutos; uma árvore boa não pode produzir maus frutos, e
uma árvore má não pode produzir bons frutos.” Podemos julgar os Espíritos
pela qualidade de suas obras, como julgamos uma árvore pela qualidade dos
seus frutos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Os falsos profetas

8. Se lhes disserem isso: “Cristo está aqui”, não vão até lá, mas ao contrário,
fiquem atentos, porque os falsos profetas serão numerosos. Então vocês não
estão vendo as folhas da figueira que começam a embranquecer? Não estão
vendo seus brotos numerosos esperando a época da floração? Pois o Cristo
disse a vocês: Reconhece-se uma árvore pelo seu fruto, não disse? Portanto, se
os frutos forem amargos, vocês podem julgar que a árvore é má; porém, se
eles forem doces e saudáveis, vocês podem dizer: Nada de puro pode sair de
um toco de árvore má.
É assim, meus irmãos, que vocês devem julgar; essas são as obras que
vocês precisam examinar. Se os que se dizem investidos de poder divino estão
acompanhados de todas as marcas de tal missão, quer dizer, se eles
possuírem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas — a caridade, o
amor, a indulgência, a bondade que concilia todos os corações — e se, em
apoio das palavras, eles acrescentarem ações, então vocês poderão então
dizer: Estes realmente são os enviados de Deus.
Todavia, desconfiem das palavras melosas, desconfiem dos escribas e
fariseus que rezam nas praças públicas, vestidos de longas túnicas.
40 Ver, sobre a distinção dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, 2ª parte, cap. XXIV e seguintes.
285 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Desconfiem dos que pretendem ter o monopólio único e exclusivo da verdade!


Não, não! O Cristo não está lá, pois aqueles que ele envia para propagar
sua doutrina e para regenerar o seu povo serão — a exemplo do Mestre —
mansos e humildes de coração, acima de todas as coisas; aqueles que, através
de seus exemplos e conselhos, devam salvar a humanidade, que corre para a
perdição e vagueia por caminhos tortuosos, estes serão acima de tudo
modestos e humildes. Fujam de tudo o que demonstre um átomo de orgulho,
como se fugissem de uma lepra contagiosa que corrompe tudo o que toca.
Lembrem-se de que cada criatura traz na sua fronte, mas sobretudo nos
atos, a marca da sua grandeza ou da sua decadência.
Então, sigam em frente, meus filhos bem-amados, marchem sem
procrastinação, sem olhar para trás, na rota bendita em que vocês
ingressaram. Vão! Vão sempre sem temor; afastem corajosamente tudo o que
poderia entravar sua caminhada rumo ao objetivo eterno. Viajantes, vocês
não ficarão mais do que pouco tempo nas trevas e nas dores da provação, se
deixarem seus corações se levarem por essa doce doutrina que vem lhes
revelar as leis eternas e satisfazer a todas as aspirações da alma frente ao
desconhecido. Desse já vocês podem dar corpo a esses silfos ligeiros que
veem passar nos seus sonhos, e que, efêmeros, só poderiam encantar a
imaginação de vocês, mas sem nada dizerem ao coração. Agora, meus
queridos, a morte desapareceu para dar lugar ao anjo radioso que vocês
conhecem, o anjo do reencontro e da reunião! Agora, vocês que realizaram
bem a tarefa imposta pelo Criador, vocês não têm mais nada a temer da sua
justiça, pois ele é pai e sempre perdoa os filhos desgarrados que imploram
misericórdia. Sendo assim, continuai, avancem sem cessar; que a sua bandeira
seja a do progresso, do progresso contínuo em todas as coisas, até que
finalmente vocês cheguem a esse feliz término, em que são aguardados por
todos aqueles que lhes precederam.
LUÍS (Bordeaux, 1861)

Características do verdadeiro profeta

9. Desconfiem dos falsos profetas. Essa recomendação é útil em todos os


286 – Allan Kardec

tempos, mas especialmente nos momentos de transição em que, como no


tempo atual, elabora-se uma transformação da humanidade, porque então
uma multidão de ambiciosos e intrigantes se vestem de reformadores e de
messias. É contra esses impostores que precisamos estar em guarda, e é dever
de todo homem honesto desmascará-los. Vocês certamente perguntarão como
podemos reconhecê-los; aqui está o perfil deles:
Não se confia o comando de um exército senão a um general hábil e
capaz de dirigi-lo. Então vocês acham que Deus seja menos prudente do que
os homens? Estejam certos de que ele só confia as missões importantes
àqueles que ele sabe que são capazes de cumpri-las, pois as grandes missões
são fardos pesados que esmagariam o homem bastante fraco para carregá-los.
Como em todas as coisas, o mestre deve saber mais do que o discípulo; para
fazer a humanidade avançar moral e intelectualmente, é preciso homens
superiores em inteligência e em moralidade! Eis por que os encarregados
dessa tarefa são sempre Espíritos já adiantados em outras existências, pois se
eles não fossem superiores em relação ao meio no qual eles devem agir, a
ação deles seria nula.
Isto posto, concluam que o verdadeiro missionário de Deus deve
justificar sua missão pela sua superioridade, pelas suas virtudes, pela sua
grandeza, pelo resultado e pela influência moralizadora de suas obras. Tirem
ainda essa conclusão: que, pelo seu caráter, pelas suas virtudes, pela sua
inteligência, se ele estiver abaixo do papel que ele atribui a si, ou do
personagem cujo nome ele usa, então ele não passa de um ator de baixa
categoria, que nem sequer sabe imitar o seu modelo.
Outra consideração, é que a maior parte dos verdadeiros missionários de
Deus ignoram-se a si mesmos; eles cumprem aquilo a que foram chamados
pela força da sua inteligência ajudados pelo poder oculto que os inspira e
dirige sem que eles saibam, mas sem desígnio premeditado. Em resumo, os
verdadeiros profetas se revelam por seus atos: nós os reconhecemos,
enquanto os falsos profetas se posam como os enviados de Deus; o
primeiro tipo é humilde e modesto; o segundo é orgulhoso e cheio de si
mesmo, fala com altivez e, como todos os mentirosos, parece sempre receoso
de que não acreditem nele.
287 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Temos visto desses impostores se apresentarem como apóstolos do


Cristo, outros como o próprio Cristo e — o que é uma vergonha para a
humanidade — eles têm encontrado pessoas bastante crédulas para dar fé às
semelhantes torpezas. Entretanto, uma consideração bem simples deveria
abrir os olhos do mais cego: é que, se o Cristo reencarnasse na Terra, ele aí
viria com todo o seu poder e todas as suas virtudes, a menos que se admitisse
— o que seria um absurdo — que ele tivesse degenerado. Ora, da mesma
forma que se vocês tirassem de Deus um só dos seus atributos vocês já não
teriam mais Deus, então se vocês tirassem uma só das virtudes do Cristo
vocês já não teriam mais o Cristo. Por acaso, aqueles que se passam pelo
Cristo têm todas as suas virtudes? Essa é a questão. Observem e perscrutem
as ideias e os atos deles, e então vocês reconhecerão que acima de tudo faltam
neles as qualidades distintivas do Cristo: a humildade e a caridade, ao passo
que eles têm aquilo que Jesus não tinha: a cupidez e o orgulho. Notem, além
disso, que neste momento e em vários países, há vários pretensos Cristos,
como há vários pretensos Elias, são João ou são Pedro, e que necessariamente
todos eles não podem ser verdadeiros. Tenham como certo que são pessoas
que exploram a fé pública e acham cômodo viver às custas daqueles que as
levam em consideração.
Por tudo isso, desconfiem dos falsos profetas, principalmente em tempos
de renovação, porque muitos impostores dirão que são enviados de Deus; eles
procuram para si uma vaidosa satisfação na Terra, porém uma terrível justiça
os aguarda — vocês podem estar certos.
ERASTO (Paris, 1862)

Os falsos profetas da erraticidade

10. Os falsos profetas não estão somente entre os encarnados; eles estão
também — e em número bem maior — entre os Espíritos orgulhosos que, sob
a falsa aparência de amor e de caridade, semeiam a desunião e retardam a
obra emancipadora da humanidade, misturando-a com os seus sistemas
absurdos que eles promovem através dos seus médiuns. E, para melhor
fascinarem aqueles a quem eles querem iludir, para darem mais peso às suas
288 – Allan Kardec

teorias, eles se apoderam sem escrúpulo de nomes que os homens só


pronunciam com muito respeito.
São eles que semeiam o fermento do antagonismo entre os grupos, que
os levam a se isolarem uns dos outros e a se olharem negativamente. Só isso
bastaria para os desmascarar, porque agindo assim, eles mesmos dão um
desmentido formal ao que eles pretendem ser. logo, cegos são os homens que
se deixam cair em uma armadilha tão grosseira.
Porém, há muitos outros meios de os reconhecermos. Espíritos da classe
à qual eles dizem pertencer precisam ser não somente muito bons, mas
também eminentemente racionais. Pois bem: passem os seus sistemas pelo
crivo da razão e do bom senso e vocês verão o que restará. Então, convenham
comigo que todas as vezes que, como remédio para os males da humanidade
ou como um meio de chegar à sua transformação, um Espírito indica coisas
utópicas e impraticáveis, medidas pueris e ridículas; e quando ele formula
uma teoria contraditória com as mais elementares noções da ciência, então
esse não pode ser senão um Espírito ignorante e mentiroso.
Por um lado, creiam que se a verdade nem sempre é apreciada pelos
indivíduos, ela sempre é apreciada pelo bom senso das massas, e isso também
é um critério. Se dois princípios se contradizem, então vocês terão a medida
do valor intrínseco deles quando verificarem qual dos dois encontra mais
apoio e simpatia; de fato, seria ilógico admitir que uma doutrina cujo
número de seguidores diminui fosse mais verdadeira do que aquela que
visse o seu número aumentar. Querendo que a verdade chegue a todos, Deus
não a confina num círculo restrito; ele a faz surgir em diferentes pontos, a fim
de que por toda parte a luz esteja ao lado das trevas.
Rejeitem impiedosamente todos esses Espíritos que se apresentam
como conselheiros exclusivos, pregando a divisão e o isolamento. Quase
sempre são Espíritos vaidosos e medíocres, que procuram se impor aos
homens fracos e crédulos, dispensando-lhes exagerados louvores a fim de os
fascinar e de tê-los sob sua dominação. Geralmente são Espíritos famintos de
poder, déspotas públicos ou na sua vida privada, que ainda querem ter suas
vítimas para tiranizar depois de morto. Em geral, desconfiem das
comunicações que trazem um caráter de misticismo e de estranheza, ou
289 – O Evangelho segundo o Espiritismo

que prescrevem cerimônias e atos estranhos; aí, sempre há um motivo


legítimo para suspeitas.
Por outro lado, creiam bem que quando uma verdade tem de ser
revelada à humanidade, ela é, por assim dizer, instantaneamente comunicada
a todos os grupos sérios que dispõem de médiuns sérios, e não a este ou
àquele, com exclusão dos outros. Ninguém é médium perfeito se estiver
obsidiado, e existe uma obsessão flagrante quando um médium só está apto a
receber comunicações de um determinado Espírito — por mais alto que este
procure colocar-se. Consequentemente, qualquer médium ou qualquer grupo
que se ache privilegiado por comunicações que só ele pode receber, e que, por
outro lado, esteja sujeito a práticas que beiram a superstição, então este está
indubitavelmente sob o domínio de uma obsessão das mais caracterizadas,
sobretudo quando o Espírito dominador se exibe com um nome que todos nós
— encarnados e desencarnados — devemos honrar e respeitar, e não deixar
que seja usado em qualquer propósito.
É incontestável que, submetendo ao crivo da razão e da lógica todos os
dados e todas as comunicações dos Espíritos, será fácil repulsar o absurdo e o
erro. Um médium pode ser fascinado e um grupo pode ser iludido, mas o
controle severo dos outros grupos, a ciência adquirida, a elevada autoridade
moral dos dirigentes de grupos, as comunicações dos principais médiuns que
recebem um cunho de lógica e de autenticidade dos nossos melhores
Espíritos, então rapidamente será feita justiça a esses ditados mentirosos e
astuciosos, emanados de uma turba de Espíritos mistificadores ou maus.
ERASTO, discípulo de são Paulo (Paris, 1862)

(Ver na Introdução deste livro o item II: Controle universal do ensinamento dos
Espíritos, e em O livro dos médiuns, 2ª parte, cap. XXIII, Obsessão.)

Jeremias e os falsos profetas

11. Eis o que diz o Senhor dos exércitos: Não escutem as palavras dos
profetas que lhes profetizam e que os enganam. Eles publicam as visões de
seus corações, e não o que aprenderam da boca do Senhor. — Eles dizem aos
290 – Allan Kardec

que de mim blasfemam: O Senhor o disse, vocês terão a paz; e a todos os que
andam na corrupção de seus corações: Não lhes ocorrerá nada de mal. — Mas
qual dentre eles seguiu o conselho de Deus? Quem o viu e escutou o que ele
disse? Eu não enviava esses profetas, e eles corriam por si mesmos; eu não
lhes falava, e eles profetizavam de suas cabeças. Eu ouvi o que disseram esses
profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei, sonhei.
— Até quando essa imaginação estará no coração dos que profetizam a
mentira e cujas profecias não são senão seduções dos corações deles? Se,
pois, esse povo, ou um profeta, ou um sacerdote lhes interrogar e lhes disser:
Qual é o fardo do Senhor? Vocês dirão a eles: É vocês mesmos que são o fardo,
e eu os lançarei para bem longe de mim, diz o Senhor. (JEREMIAS, 23: 16 a 18,
21, 25 e 26, 33)

É sobre essa passagem do profeta Jeremias que eu vou lhes entreter,


meus amigos. Deus, falando pela sua boca, diz: “É a visão do coração deles que
os faz falar”. Essas palavras indicam claramente que já naquela época os
charlatães e os exaltados abusavam do dom de profecia e o exploravam. Por
conseguinte, eles abusavam da fé simples e quase cega do povo, predizendo
por dinheiro coisas boas e agradáveis. Esse tipo de fraude era bastante
generalizado na nação judia, e é fácil compreender que o pobre povo, em sua
ignorância, estava na impossibilidade de distinguir os bons dos maus, sendo
sempre mais ou menos enganado por aqueles que se diziam profetas, mas que
não passavam de impostores ou fanáticos. Nada há de mais significativo do
que estas palavras: “Eu não enviei esses profetas e eles correram por si
mesmos; não lhes falei e eles profetizaram”. Mais adiante, ele diz: “Eu ouvi
esses profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei,
sonhei.” Indicava assim um dos meios que eles empregavam para explorar a
confiança que o povo tinha neles. A multidão, sempre crédula, não pensava
em contestar a veracidade de seus sonhos ou de suas visões; achava isso
muito natural e sempre convidava esses profetas para falar.
Após as palavras do profeta, escutem os sábios conselhos do apóstolo
João, quando diz: “Não creiam em qualquer Espírito, mas examinem se os
Espíritos são de Deus”, porque entre os invisíveis, também há os que se
comprazem em enganar, quando eles encontram uma ocasião. Está bem
291 – O Evangelho segundo o Espiritismo

entendido que os iludidos são os médiuns que não tomam as devidas


precauções. Aí está, sem contradição, um dos maiores escolhos, contra o qual
muitos chegam a esbarrar, sobretudo quando esses médiuns são novatos no
espiritismo. Isso é uma provação para eles, sobre a qual só conseguem
triunfar com muita prudência. Portanto, aprendam antes de tudo a distinguir
os bons e os maus Espíritos, para que vocês mesmos não se tornem falsos
profetas.
LUOZ, Espírito protetor (Carlsruhe, 1861)
292 – Allan Kardec

CAPÍTULO XXII

NÃO SEPAREM O QUE DEUS JUNTOU


Indissolubilidade do casamento – O divórcio

Indissolubilidade do casamento

1. Os fariseus também vieram até ele para tentá-lo, e lhe disseram: É


permitido a um homem despedir sua mulher por qualquer motivo? — Ele
lhes respondeu: Vocês não leram que aquele que criou o homem desde o
princípio os criou macho e fêmea e que disse: Por esta razão, o homem
deixará seu pai e sua mãe para se ligar à sua mulher, e ambos não serão mais
do que uma só carne? Assim, já não serão mais duas, mas uma só carne. Que o
homem não separe o que Deus juntou.
Mas então — eles questionaram — por que Moisés ordenou que fosse
dado à esposa uma carta de separação e a despedisse? — Ele respondeu: Foi
por causa da dureza dos seus corações que Moisés lhes permitiu despedir
suas esposas; mas não era assim no princípio. Por isso, eu declaro a vocês que
aquele que despede sua mulher, exceto em caso de adultério, e desposa outra,
comete um adultério; e que aquele que desposa aquela mulher que outro
despediu também comete um adultério. (São Mateus, 19: 3 a 9)

2. Não há nada de imutável exceto o que vem de Deus; tudo que é obra dos
homens está sujeito a mudanças. As leis da natureza são as mesmas em todos
os tempos e em todos os lugares; já as leis humanas, elas mudam de acordo
com as épocas, os locais e o progresso da inteligência. No casamento, o que é
de ordem divina é a união dos sexos, para operar a renovação dos seres que
morrem; mas as condições que regulam essa união são de ordem tão humanas
que não há no mundo inteiro — nem mesmo na cristandade — dois países
onde elas sejam absolutamente as mesmas, e que não há nenhuma onde essas
293 – O Evangelho segundo o Espiritismo

leis não tenham sofrido alterações com o passar do tempo. Disso resulta que,
aos olhos da lei civil, o que é legítimo num país e em dada época é adultério
em outro país e em outra época; isso é assim porque a lei civil tem por
finalidade regrar os interesses das famílias, e esses interesses variam segundo
os costumes e as necessidades locais. É assim, por exemplo, que em certos
países o casamento religioso é o único legítimo; em outros é preciso também
o casamento civil; noutros mais, finalmente, basta apenas o casamento civil.

3. Mas na união dos sexos, ao lado da lei divina material, comum a todos os
seres vivos, há outra lei divina, imutável como todas as leis de Deus,
exclusivamente moral: a lei de amor. Deus quis que os seres se unissem não
somente pelos laços da carne, mas também pelos da alma, a fim de que a
afeição mútua dos cônjuges se estendesse aos filhos, e que fossem dois, e não
só um, a amá-los, a cuidar deles e a fazê-los progredir. Será que nas condições
regulares do casamento é levada em consideração essa lei de amor? De jeito
nenhum; o que se leva em conta não é o afeto de dois seres atraídos um para o
outro por um sentimento mútuo — já que na maioria das vezes essa afeição é
rompida. O que se busca não é a satisfação do coração, mas sim a do orgulho,
da vaidade, da cupidez; em suma, de todos os interesses materiais, e quando
tudo vai bem, conforme esses interesses, diz-se que o casamento é
conveniente, e quando os bolsos estão bem harmonizados, diz-se que os
cônjuges também se combinam e devem estar muito felizes.
Porém, nem a lei civil nem os compromissos que ela determina podem
suprir a lei de amor, se esta lei não preside à união; disso resulta que muitas
vezes aquilo que se une pela força se separa por si mesmo; que o juramento
pronunciado ao pé do altar se torna um perjúrio, quando for dito como uma
formalidade banal. Daí vem as uniões infelizes, que acabam por se tornarem
criminosas — uma dupla desgraça que seria evitada se, nas condições do
matrimônio, não fosse esquecida a única condição que a sanciona união aos
olhos de Deus: a lei de amor. Quando Deus disse: “Vocês não serão mais do
que uma só carne”, e quando Jesus disse: “Não separem o que Deus uniu”, isso
deve ser entendido como a união conforme a lei imutável de Deus, e não
conforme a lei mutável dos homens.
294 – Allan Kardec

4. Então, será que a lei civil é supérflua? E será que devemos voltar aos
casamentos segundo a natureza? Não, certamente; a lei civil tem como
objetivo regular as relações sociais e os interesses das famílias, conforme as
exigências da civilização; eis por que ela é útil, necessária — porém variável.
Essa lei deve ser previdente, porque o homem civilizado não pode viver como
um selvagem; mas nada, absolutamente nada se opõe a que ela seja um
corolário da lei de Deus. Os obstáculos ao cumprimento da lei divina vêm dos
preconceitos, e não da lei civil. Esses preconceitos, se bem que ainda estejam
ativos, já perderam sua influência entre os povos esclarecidos; eles vão
desaparecer com o progresso moral, que finalmente abrirá os olhos quanto
aos incontáveis males, as faltas, inclusive os crimes que resultam das uniões
contraídas com vistas unicamente aos interesses materiais. E um dia nós
perguntaremos se é mais humano, mais caridoso e mais moral manter presos
um ao outro dois seres que não conseguem viver juntos, ou devolver a eles a
liberdade; perguntaremos também se a perspectiva de uma obrigação
indissolúvel não aumenta o número de uniões irregulares.

O divórcio

5. O divórcio é uma lei humana que tem por finalidade separar legalmente o
que de fato já está separado; essa lei não é contrária à lei de Deus, porque ela
só reforma aquilo que os homens fizeram, e ela só é aplicável nos casos em
que não foi levada em conta a lei divina; se o divórcio fosse contrário a esta
lei, a própria Igreja seria forçada a considerar como prevaricadores aqueles
que, por sua própria autoridade e em nome da religião, impuseram o divórcio
em mais de uma circunstância — que é uma dupla prevaricação, porque foi
com vistas unicamente aos interesses do momento, e não para satisfazer à lei
de amor.
Mas nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do
casamento. Ele quem disse “Foi por causa da dureza dos seus corações que
Moisés permitiu despedir suas mulheres”, não disse? Isso significa que, desde
o tempo de Moisés, como a afeição mútua não era o único propósito do
matrimônio, a separação podia se tornar necessária. Porém, ele acrescenta:
295 – O Evangelho segundo o Espiritismo

“não era assim no princípio”, quer dizer, na origem da humanidade, quando os


homens ainda não estavam pervertidos pelo egoísmo e pelo orgulho, quando
eles viviam segundo a lei de Deus, então as uniões — fundadas na simpatia, e
não na vaidade ou na ambição — não davam motivo para o repúdio.
Jesus vai mais longe: ele especifica o caso em que o repúdio pode
ocorrer, como é o caso do adultério. Ora, o adultério não existe onde reina
uma sincera afeição recíproca. É verdade que Jesus proíbe todo homem de
desposar a mulher repudiada, mas é preciso levar em conta os costumes e o
caráter dos homens de seu tempo. A lei mosaica, nesse caso, prescrevia o
apedrejamento; então, querendo abolir um costume bárbaro, ele precisava ao
menos de uma penalidade, e a encontrou no estigma que seria causado pela
proibição de um segundo casamento. Era, de certo modo, uma lei civil
substituída por outra lei civil, mas que, como todas as leis dessa natureza,
devia passar pela prova do tempo.
296 – Allan Kardec

CAPÍTULO XXIII

MORAL ESTRANHA
Quem não odiar seu pai e sua mãe – Deixar pai, mãe e filhos
– Deixem aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos –
Eu não vim trazer a paz, mas a divisão

Quem não odiar seu pai e sua mãe

1. Uma grande tropa de pessoas caminhando com Jesus, ele se volta para elas
e diz: Se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus
filhos, seus irmãos e irmãs, e até mesmo a sua própria vida, este não pode ser
meu discípulo. E aquele que não carrega a sua cruz e não me segue, este não
pode ser meu discípulo. Assim, qualquer um dentre vocês que não renunciar
a tudo o que tem não pode ser meu discípulo. (São Lucas, 14: 25 a 27 e 33)

2. Aquele que ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, este não é digno de
mim; aquele que ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, este não é
digno de mim. (São Mateus, 10: 37)

3. Certas palavras — muito raras, aliás — criam um contraste tão estranho na


boca do Cristo que instintivamente repulsamos o seu sentido literal, e com
isso a sublimidade da sua doutrina não é afetada de forma alguma. Escritas
após sua morte — já que nenhum Evangelho foi redigido durante a vida dele
— podemos supor que, em tal caso, o sentido do seu pensamento não foi bem
expresso, ou — o que não é menos provável — que o sentido original pode ter
sofrido alguma alteração ao passar de uma língua para outra. Bastaria que um
erro fosse cometido uma primeira vez para que fosse repetido pelos
reprodutores — como se vê frequentemente com os fatos históricos.
297 – O Evangelho segundo o Espiritismo

A palavra odiar, nesta frase de Lucas: Se alguém vem a mim e não


odeia seu pai e sua mãe, faz parte desse caso; não há ninguém teria a ideia de
atribuí-la a Jesus, pois seria tão supérfluo discutir isso, e pior ainda seria
tentar justificá-la. Primeiro, seria necessário saber se ele a pronunciou, e em
caso afirmativo, saber se na língua na qual ele se expressou essa palavra tinha
o mesmo significado que na nossa língua. Nesta passagem de são João:
“Aquele que odeia sua vida neste mundo a conserva para a vida eterna”, é
certo que a referida palavra não exprime a mesma ideia que lhe atribuímos.
A língua hebraica não era rica e tinha muitas palavras com várias
significações. Tal é, por exemplo, aquela que no Gênesis designa as fases da
criação, e que às vezes servia para exprimir um período qualquer de tempo e
a revolução diurna. Daí, mais tarde, sua tradução pela palavra dia, e daí a
crença que o mundo foi obra de seis vezes vinte e quatro horas. Assim é
também a palavra que designava um camelo e um cabo, porque os cabos
eram feitos de pelos de camelo e que foi traduzida por camelo na alegoria do
buraco de uma agulha. (Capítulo XVI, item 2)41
É necessário, aliás, levarmos em conta os costumes e o caráter dos povos
que influencia o modelo particular de seus idiomas; sem esse conhecimento, o
sentido verdadeiro de certas palavras se perde. De uma língua para outra, um
mesmo vocábulo tem um significado com mais ou menos energia; num idioma
ele pode ser uma injúria ou uma blasfêmia, enquanto noutro ele pode ser uma
palavra insignificante, segundo a ideia a ele aplicada. Até numa mesma língua,

41Non odit em latim, Kaï ou miseï em grego, não quer dizer odiar, mas amar menos. O que o verbo grego
miseïn exprime, o verbo hebreu do qual Jesus deve ter se servido o exprime ainda melhor: não significa
apenas odiar, mas também amar menos, não amar tanto quanto, não igual a outro. No dialeto siríaco, do
qual dizem que Jesus usava com mais frequência, essa significação é ainda mais acentuada. É nesse
sentido que foi dito no Gênesis (29: 30 e 31): “E Jacó amou também a Raquel mais do que a Lia, e Jeová
vendo que Lia era odiada...” É evidente que o verdadeiro sentido aqui é menos amada. É assim que deve
ser traduzido. Em vários outras passagens hebraicas, e sobretudo siríacas, o mesmo verbo é empregado
no sentido de não amar tanto quanto a outro, e seria um contrassenso traduzi-lo por odiar, que tem
outra acepção bem determinada. A propósito, o texto de são Mateus afasta qualquer equívoco. — Nota
do Sr. Pezzani.
André Pezzani foi um advogado na corte imperial de Lyon, um dos ativistas pioneiros do
Espiritualismo Moderno na França, autor de algumas obras espiritualistas que, contudo, por
vezes defendia determinados conceitos claramente divergentes com a Doutrina Espírita; ainda
assim, Allan Kardec considerou válido aproveitar a nota acima, para melhor contextualizar o
significado da palavra em questão. — N. T.
298 – Allan Kardec

determinadas palavras perdem seu valor com alguns séculos de distância; é


por isso que uma tradução rigorosamente literal nem sempre converte
perfeitamente o pensamento, e que, para ser exata, às vezes é preciso
empregar não os vocábulos correspondentes, mas outros equivalentes ou
perífrases.
Essas observações encontram uma aplicação especial na interpretação
das santas Escrituras e, em particular, dos Evangelhos. Se não levarmos em
conta o contexto no qual Jesus vivia, ficamos expostos a má interpretações
quanto ao valor de certas expressões e de certos fatos, em consequência do
hábito que se tem de assimilar os outros a si próprio. Em todo caso, é preciso
então afastar o termo odiar da acepção moderna, como contrária ao espírito
do ensinamento de Jesus. (Ver também o cap. XIV, item 5 e seguintes)

Deixar pai, mãe e filhos

4. Todo aquele que tiver deixado pelo meu nome sua casa, os seus irmãos, ou
suas irmãs, ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou suas
terras, receberá o cêntuplo de tudo isso e terá como herança a vida eterna.
(São Mateus, 19: 29)

5. Então Pedro lhe disse: Quanto a nós, o senhor vê que nós deixamos tudo e
te seguimos. — Jesus lhe disse: Em verdade eu lhes digo, que ninguém
deixará pelo reino de Deus sua casa, ou seu pai, ou sua mãe, ou seus irmãos,
ou sua mulher, ou seus filhos, e que não receba já neste mundo muito mais, e
no século vindouro a vida eterna. (São Lucas, 18: 28 a 30)

6. Um outro lhe disse: Senhor, eu te seguirei, mas me permita antes dispor do


que eu tenho em minha casa. — Jesus lhe respondeu: Todo aquele que, pondo
a mão no arado, olhar para trás, este não está preparado para o reino de
Deus. (São Lucas, 9: 61 e 62)

Sem discutir as palavras, aqui é preciso buscar a ideia, que era


evidentemente esta: “Os interesses da vida futura prevalecem sobre todos os
interesses e todas as considerações humanas”, porque essa ideia está de
acordo com o fundamento da doutrina de Jesus, enquanto a ideia de uma
299 – O Evangelho segundo o Espiritismo

renúncia à família seria a negação dessa doutrina.


Aliás, nós não temos sob os olhos a aplicação dessas máximas no
sacrifício dos interesses e das afeições de família em favor da pátria? Por
acaso, um filho é condenado por deixar seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua
mulher e os filhos para marchar em defesa do seu país? Não é que, ao
contrário, a ele é dado um grande mérito por se desgarrar das doçuras do lar
doméstico e dos abraços de amizade para cumprir um dever? Desse modo, há
deveres que se sobrepõem a outros deveres. A lei não impõe à filha a
obrigação de deixar os pais para acompanhar o esposo? O mundo está repleto
de casos em que as separações mais penosas são necessárias, mas as afeições
não se rompem por isso; o afastamento não diminui nem o respeito nem a
solicitude que se deve ter para com os pais, nem a ternura para com os filhos.
Vê-se, portanto, que mesmo tomadas ao pé da letra, exceção feita à palavra
odiar, aqueles termos não seriam a negação do mandamento que manda
honrar o pai e a mãe, nem a negação do sentimento de carinho paternal, e com
mais forte razão quando os tomamos o seu significado. Essas palavras tinham
por objetivo mostrar, através de uma hipérbole, o quanto era imperioso o
dever de se ocupar com a vida futura. Elas deviam, além disso, ser menos
chocantes para um povo e numa época em que, por consequência dos hábitos,
os laços de família tinham menos força do que numa civilização moral mais
avançada; esses laços — mais fracos nos povos primitivos — se fortalecem
com o desenvolvimento da sensibilidade e do senso moral. A própria
separação é necessária ao progresso, tanto entre as famílias como entre as
raças, pois elas se degradam caso não houver cruzamento, se não se
mesclarem umas com as outras. Isso é uma lei da natureza, tanto no interesse
do progresso moral quanto no do progresso físico.
Aqui, as coisas são encaradas apenas do ponto de vista terreno; o
espiritismo nos faz vê-las de mais alto, nos mostrando que os verdadeiros
laços de afeto são os do Espírito, e não os do corpo; que esses laços não são
desfeitos nem pela separação nem mesmo pela morte do corpo; que eles se
fortificam na vida espiritual pela depuração do Espírito — verdade
consoladora que dá uma grande força para suportarmos as dificuldades da
vida. (Cap. IV, item 18; cap. XIV, item 8.)
300 – Allan Kardec

Deixem aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos

7. Ele disse a outro: Segue-me. E o outro lhe respondeu: Senhor, permita-me


ir antes enterrar meu pai. Jesus lhe respondeu: Deixe aos mortos o cuidado de
enterrar seus mortos; quanto a ti, vá anunciar o reino de Deus”. (São Lucas, 9:
59 e 60)

8. Quanto a estas palavras: “Deixe aos mortos o cuidado de enterrar seus


mortos”, o que elas podem significar? As considerações precedentes mostram
primeiramente que, nas circunstâncias em que foram pronunciadas, elas não
podiam exprimir uma condenação àquele que considerava um dever de
piedade filial ir enterrar o pai; mas elas contêm um sentido profundo que só o
conhecimento mais completo da vida espiritual podia tornar compreensível.
A vida espiritual é, de fato, a verdadeira vida, é a vida normal do Espírito;
sua existência terrestre é apenas transitória e passageira, uma espécie de
morte, se a compararmos com o esplendor e atividade da vida espiritual. O
corpo não passa de uma vestimenta grosseira que reveste temporariamente o
Espírito, uma verdadeira cadeia que o prende à gleba terrena do qual ele fica
feliz por se libertar. O respeito que temos pelos mortos não se prende à
matéria, mas, pela lembrança, ao Espírito ausente; é semelhante àquele
respeito que temos pelos objetos que lhe pertenceram, que ele tocou e que as
pessoas que gostam dele guardam como relíquias. Era isso o que aquele
homem não podia compreender por si mesmo e que Jesus lhe ensinou,
dizendo: Não se preocupe com o corpo, mas pense antes no Espírito; vá
ensinar o reino de Deus; vá dizer aos homens que a sua pátria não é a Terra,
mas o céu, pois somente lá está a verdadeira vida.

Eu não vim trazer a paz, mas a divisão

9. Não pensem que eu tenha vindo trazer paz à Terra; eu não vim trazer a paz,
mas a espada; pois eu vim separar o homem do seu pai, a filha da sua mãe e a
nora da sua sogra; e o homem terá por inimigos aqueles da sua própria casa.
(São Mateus, 10: 34 a 36)
301 – O Evangelho segundo o Espiritismo

10. Eu vim para lançar fogo na Terra; e o que é que eu desejo senão que ele se
acenda? Eu devo ser batizado com um batismo e quanto me sinto apressado
para que ele se cumpra!
Vocês acham que eu vim trazer paz à Terra? Não, eu lhes asseguro; ao
contrário, vim trazer divisão; porque doravante se houver cinco pessoas
numa casa, elas estarão divididas umas contra as outras: três contra duas e
duas contra três. O pai estará em divisão com o filho e o filho com o pai, a mãe
com a filha e filha com a mãe, a sogra com a nora e a nora com a sogra. (São
Lucas, 12: 49 a 53)

11. Será mesmo que Jesus — a personificação da doçura e da bondade, ele que
não cessava de pregar o amor ao próximo — poderia ter dito: “Eu não vim
trazer a paz, mas a espada; eu vim separar o filho do pai, o esposo da esposa;
eu vim lançar fogo na Terra e tenho pressa que ele se acenda”? Essas palavras
não estarão em flagrante contradição com os seus ensinamentos? Não seria
uma blasfêmia lhe atribuir a linguagem de um conquistador sanguinário e
devastador? Não, não há blasfêmia nem contradição nessas palavras, pois foi
ele mesmo quem as pronunciou, e elas testemunham sua alta sabedoria;
apenas a forma, um tanto equívoca, não reproduz exatamente o seu
pensamento, o que fez com que interpretem mal o seu verdadeiro sentido.
Tomadas ao pé da letra, essas palavras tenderiam a transformar sua missão
inteiramente pacífica numa missão de perturbações e de discórdias, —
consequência absurda que o bom senso descarta, pois Jesus não podia se
desmentir. (Cap. XIV, item 6.)

12. Toda ideia nova forçosamente encontra oposição e não há uma única que
tenha se estabelecido sem lutas; ora, em tal caso, a resistência é sempre
proporcional à importância dos resultados previstos, porque quanto maior
ela for, mais interesse ela despertará. Se for notoriamente falsa e se a
julgarem sem efeito prático, ninguém se importará com ela e a deixarão
passar, achando que ela não tem vitalidade. Porém, se ela for verdadeira, se
está fundamentada em uma base sólida, se preveem um futuro para ela, então
um secreto pressentimento adverte os seus antagonistas de que essa doutrina
é um perigo para eles e para a ordem de coisas às quais eles têm interesse em
302 – Allan Kardec

preservar; eis por que eles avançam contra ela e contra os seus adeptos.
A medida da importância e dos resultados de uma ideia nova se encontra
então na emoção que ela provoca em seu aparecimento, na violência da
oposição que ela desperta, assim como no grau e na persistência da ira de
seus adversários.

13. Jesus veio proclamar uma doutrina que minava pela base os abusos de
que sobreviviam os fariseus, os escribas e os sacerdotes do seu tempo; assim,
eles o levaram à morte, achando que poderiam matar a ideia ao matar o
homem; só que a ideia sobreviveu, porque ela era verdadeira, e ela cresceu,
porque estava nos desígnios de Deus e, oriunda de um modesto vilarejo da
Judeia, essa ideia foi fincar sua bandeira na própria capital do mundo pagão,
diante dos seus inimigos mais ferozes, daqueles que tinham mais interesse em
combatê-la, porque ela subvertia crenças tradicionais às quais muitas vezes
eles se apegavam mais por interesse do que por convicção. Ali, lutas mais
terríveis esperavam seus apóstolos; as vítimas foram inumeráveis, mas a ideia
cresceu sempre e saiu triunfante, porque prevaleceu como verdade sobre as
suas antecessoras.

14. É de notar-se que o Cristianismo surgiu quando o paganismo estava no


seu declínio e se debatia contra as luzes da razão. Ele ainda era praticado pela
forma, mas a crença já tinha desaparecido; só o interesse pessoal o
sustentava. Ora, o interesse é forte e jamais cede à evidência; então o
paganismo fica mais irritado quanto mais os raciocínios que lhe opõem forem
mais peremptórios e melhor demonstrarem seu erro; ele sabe bem que está
errado, mas isso não o sensibiliza, porque a verdadeira fé não está na sua
alma. O que mais ele teme é que a luz abra os olhos dos cegos; esse erro lhe é
proveitoso, por isso o paganismo se agarra a ele e o defende.
Sócrates também não tinha proclamado uma doutrina até certo ponto
análoga à do Cristo? Por que então ela não prevaleceu em sua época, num dos
povos mais inteligentes da Terra? É que a hora ainda não tinha chegado; ele
semeou numa terra não lavrada; o paganismo ainda não estava esgotado. O
Cristo recebeu a sua missão providencial no tempo apropriado. Nem todos os
303 – O Evangelho segundo o Espiritismo

homens de sua época estavam à altura das ideias cristãs, mas havia uma
aptidão mais generalizada para as assimilar, pois já começavam a sentir o
vazio que as crenças vulgares deixavam na alma. Sócrates e Platão haviam
aberto o caminho e preparado os ânimos. (Ver na Introdução, o item IV:
Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo.)

15. Infelizmente, os adeptos da nova doutrina não se entenderam quanto à


interpretação das palavras do Mestre, na maior parte das vezes veladas sob a
alegoria e figuras da linguagem; daí brotarem desde o início numerosas seitas
que pretendiam, cada qual, ter a posse exclusiva da verdade, e que nem
dezoito séculos conseguiu fazê-las chegar a um acordo. Esquecendo o mais
importante dos preceitos divinos — aquele do qual Jesus tinha feito a pedra
angular do seu edifício e a condição expressa da salvação: a caridade, a
fraternidade e o amor ao próximo —, essas seitas se lançaram o anátema
reciprocamente e avançaram umas contra as outras, as mais fortes
esmagando as mais fracas, sufocando-as no sangue, nas torturas e nas
fogueiras. Os cristãos, vencedores do paganismo, de perseguidos se tornaram
perseguidores; foi com ferro e fogo que eles foram plantar a cruz do cordeiro
sem mácula nos dois mundos. É um fato constatado que as guerras de religião
foram as mais cruéis e fizeram mais vítimas do que as guerras políticas, e que
em nenhuma delas foram cometidos mais atos de atrocidade e de barbárie.
A culpa está na doutrina do Cristo? Com certeza não, pois ela condena
formalmente toda violência. Será que ele disse alguma vez a seus discípulos:
Vão, matem, massacrem e queimem aqueles que não acreditarem igual vocês?
Não; mas ele lhes disse, ao contrário: Todos os homens são irmãos e Deus é
soberanamente misericordioso; amem o seu próximo; amem seus inimigos;
façam o bem a quem os perseguem. Ele lhes disse ainda: Quem matar com a
espada perecerá pela espada. A responsabilidade disso, portanto, não é da
doutrina de Jesus, mas dos que a interpretaram falsamente e fizeram dela um
instrumento para servir as suas paixões; é daqueles que desprezaram estas
palavras: Meu reino não é deste mundo.
Jesus, na sua profunda sabedoria, previa o que ia acontecer, mas essas
coisas eram inevitáveis, porque elas se devem à inferioridade da natureza
304 – Allan Kardec

humana, que não podia se transformar de uma vez. Era preciso que o
cristianismo passasse por essa longa e cruel prova de dezoito séculos para
mostrar toda a sua potência; porque, apesar de toda a maldade cometida em
seu nome, o cristianismo saiu dela puro, pois ele jamais deu razão a essa
maldade; a culpa sempre recaiu sobre aqueles que abusaram dele. A cada ato
de intolerância, sempre se disse: Se o cristianismo fosse mais bem
compreendido e mais bem praticado, isso não teria acontecido.

16. Quando Jesus disse: “Não creiam que eu tenha vindo trazer a paz, mas sim
a divisão”, seu pensamento era este:
“Não creiam que a minha doutrina se estabeleça pacificamente; ela trará
lutas sangrentas, para as quais o meu nome será o pretexto, porque os
homens não terão me compreendido, ou não terão querido me compreender.
Os irmãos, separados por suas respectivas crenças, desembainharão a espada
um contra o outro e a divisão reinará entre os membros de uma mesma
família que não tiverem a mesma crença. Eu vim lançar fogo na Terra para
limpá-la dos erros e dos preconceitos, assim como se põe fogo num campo
para nele destruir as ervas daninhas, e eu tenho pressa para que o fogo se
acenda para que a depuração seja mais rápida, pois a verdade sairá triunfante
desse conflito. A guerra será substituída pela paz; o ódio partidário, pela
fraternidade universal; as trevas do fanatismo, pela luz da fé esclarecida.
Então, quando o campo estiver preparado, eu lhes enviarei o Consolador, o
Espírito de Verdade, que virá restabelecer todas as coisas; quer dizer, que
dando a conhecer o verdadeiro sentido das minhas palavras, que os homens
mais esclarecidos poderão enfim compreender, ele colocará um fim à luta
fratricida que divide os filhos do mesmo Deus. Finalmente, cansados de um
combate sem resultado — que não traz consigo nada além de desolação e que
causa perturbação até no seio das famílias —, então os homens reconhecerão
onde estão os seus verdadeiros interesses para este mundo e para o outro;
eles verão de que lado estão os amigos e os inimigos do seu repouso. Com
isso, todos virão se abrigar sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas
serão restabelecidas na Terra, de acordo com a verdade e os princípios que eu
ensinei a vocês.”
305 – O Evangelho segundo o Espiritismo

17. O espiritismo vem realizar na época prevista as promessas do Cristo;


entretanto, ele não pode fazer isso sem destruir os abusos. Igual a Jesus, ele se
depara com o orgulho, o egoísmo, a ambição, a cupidez e o fanatismo cego
que, cercado nas suas últimas trincheiras, tentam barrar o seu caminho e lhe
suscitam entraves e perseguições; é por isso que ele também precisa
combater; mas o tempo das lutas e das perseguições sanguinolentas já
passou, e as que ele deve enfrentar são todas de ordem moral, e o fim de todas
elas está próximo; as primeiras duraram séculos: estas durarão apenas alguns
anos, porque a luz, em vez de partir de um único foco, jorra sobre todos os
pontos do globo e abrirá mais depressa os olhos aos cegos.

18. Portanto, aquelas palavras de Jesus devem ser entendidas com relação às
cóleras que ele previa que a sua doutrina iria despertar, os conflitos
momentâneos a que seriam a consequência dessa doutrina, às lutas que ela
teria que sustentar antes de se estabelecer, como aconteceu com os hebreus
antes de sua entrada na Terra Prometida, e não como um desígnio
premeditado da parte de Jesus em semear a desordem e a confusão. O mal
viria dos homens e não dele. Ele era como o médico que vem curar, mas cujos
remédios provocam uma crise salutar, removendo os humores doentios do
paciente.
306 – Allan Kardec

CAPÍTULO XXIV

NÃO PONHAM A CANDEIA


DEBAIXO DO ALQUEIRE
Candeia debaixo do alqueire. Por que Jesus fala por parábolas
– Não vão ao encontro dos gentios – Não são os que estão com saúde
que precisam de médico – A coragem da fé
– Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida vai perdê-la

Candeia debaixo do alqueire.


Por que Jesus fala por parábolas

1. Não se acende uma candeia para pô-la debaixo do alqueire; mas, põem-na
sobre o candeeiro, a fim de que ela ilumine a todos que estão na casa. (São
Mateus, 5: 15)

2. Não há ninguém que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um
vaso ou a ponha debaixo da cama; mas, põe-na sobre o candeeiro, a fim de
que aqueles que entrarem vejam a luz; pois não há nada de secreto que não
deva ser descoberto, nem nada de oculto que não deva ser conhecido e nem
apareça publicamente. (São Lucas, 8: 16 e 17)

3. Seus discípulos, aproximando-se, lhe disseram: Por que o senhor fala com
eles por parábolas? — E, respondendo-lhes, ele disse: É porque, para vocês,
foi-lhes dado a conhecer os mistérios do reino dos céus; mas para os outros,
isso não foi dado a eles. Eu falo a eles por parábolas porque vendo, eles nada
enxergam, e ouvindo, eles nada escutam e nem compreendem. E a profecia de
Isaías se cumpre neles, quando diz: Vocês ouvirão com os ouvidos e nada
entenderão; vocês verão com os olhos e nada enxergarão. Pois o coração
307 – O Evangelho segundo o Espiritismo

desse povo se tornou pesado e seus ouvidos se tornaram surdos, e eles


fecharam os olhos para que seus olhos não vejam e para que seus ouvidos não
ouçam, para que seu coração não compreenda e para que, tendo-se
convertido, eu não os cure. (São Mateus, 13: 10 a 11, 13 a 15)

4. É de se admirar ouvir Jesus dizer que não se deve colocar a luz debaixo do
alqueire, enquanto ele próprio constantemente esconde o sentido de suas
palavras sob o véu da alegoria que não pode ser compreendida por todos. Ele
se explica dizendo a seus apóstolos: “Eu falo a eles por parábolas porque não
eles estão em condições de compreender certas coisas; eles veem, olham,
ouvem e não entendem; dizer tudo a eles seria, pois, inútil neste momento;
mas a vocês eu digo, porque é dado a vocês compreenderem esses mistérios.”
Portanto, Jesus agia com o povo como se faz com crianças cujas ideias ainda
não estão desenvolvidas. Com isso, ele indica o verdadeiro sentido da
máxima: “Não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, mas sobre o
candeeiro, a fim de que todos que entrem possam vê-la.” Não significa que
seja preciso revelar inconsideradamente todas as coisas; todo ensinamento
deve ser proporcional à inteligência daquele a quem é dirigido, pois há
pessoas a quem uma luz muito viva deslumbraria sem as esclarecer.
Ocorre com a humanidade em geral como com os indivíduos; as gerações
têm sua infância, sua juventude e sua idade madura; cada coisa deve vir a seu
tempo; o grão semeado fora da estação não frutifica. Mas o que a prudência
manda calar momentaneamente cedo ou tarde deve ser descoberto, porque,
tendo chegado a certo grau de desenvolvimento, os próprios homens
procuram a luz viva, já que a obscuridade lhes pesa. Como Deus lhes deu
inteligência para compreender e para se guiar sobre as coisas da Terra e do
céu, eles querem raciocinar sobre sua fé; é aí que não se deve pôr a candeia
debaixo do alqueire, pois sem a luz da razão, a fé se enfraquece. (Cap. XIX,
item 7.)

5. Se, no entanto, em sua previdente sabedoria, a Providência só revela as


verdades gradualmente, ela sempre as desvenda à medida que a humanidade
está madura para recebê-las; ela as mantém reservadas, e não sob o alqueire;
mas os homens que estão em posse dessas verdades quase sempre as ocultam
308 – Allan Kardec

das pessoas comuns somente com a intenção de as dominarem; são esses os


que verdadeiramente colocam a luz debaixo do alqueire. É desse modo que
quase todas as religiões têm tido seus mistérios, dos quais eles interditam o
exame. Mas enquanto essas religiões permaneceram no atraso, a ciência e a
inteligência avançaram e romperam o véu misterioso; tornando-se adulto, o
homem comum quis penetrar o fundamento das coisas e então rejeitou de sua
fé aquilo que era contrário à observação.
Não pode haver mistérios absolutos, e Jesus está com a verdade quando
diz que não há nada de secreto que não deva ser conhecido. Tudo o que está
escondido será descoberto um dia, e o que o homem ainda não pode
compreender na Terra lhe será sucessivamente desvendado nos mundos mais
avançados, quando o homem estiver purificado; aqui na Terra ele ainda se
encontra no nevoeiro.

6. Há quem se pergunte: que proveito o povo podia tirar desse monte de


parábolas cujo significado era oculto para ele? Podemos notar que Jesus só se
expressava por parábolas sobre as partes de certo modo abstratas da sua
doutrina; mas, tendo feito da caridade ao próximo, além da humildade, como
a condição expressa da salvação, tudo o que disse a esse respeito está
inteiramente claro, explícito e sem ambiguidade. Devia ser assim porque isso
era a regra de conduta, regra que todo mundo precisava compreender para
poder obedecê-la; isso era essencial para a multidão ignorante, à qual ele se
limitava a dizer: Eis aqui o que é preciso fazer para ganhar o reino dos céus.
Sobre as outras partes, ele não desenvolvia o seu pensamento a não ser aos
seus discípulos; já que estes eram mais avançados moral e intelectualmente,
Jesus pôde iniciá-los nas verdades mais abstratas. Foi por essa razão que ele
disse: Aos que já têm, ainda mais será dado. (Cap. XVIII, item 15.)
Entretanto, mesmo com os seus apóstolos, ele permaneceu vago acerca
de muitos pontos, cuja completa compreensão estava reservada para os
tempos ulteriores. Foram esses pontos que deram ocasião a interpretações
tão diversas, até que a ciência de um lado e o espiritismo de outro viessem
revelar as novas leis da natureza que fizessem compreender o seu verdadeiro
sentido.
309 – O Evangelho segundo o Espiritismo

7. O espiritismo vem hoje projeta luz sobre um monte de pontos obscuros;


contudo, ele não a lança inconsideradamente. Os Espíritos procedem em suas
instruções com uma admirável prudência; é somente de forma sucessiva e
gradual que eles abordam as diversas partes já conhecidas da doutrina, e é
assim que as outras partes serão reveladas, quando chegar o momento de
tirá-las da escuridão. Se eles a tivessem apresentado completa desde o início,
a doutrina não estaria acessível senão a um pequeno número de pessoas e
teria até assustado aquelas que não estivessem preparadas para recebê-la —
o que teria prejudicado assim a sua propagação. Por isso, se os Espíritos ainda
não dizem tudo abertamente, não é porque haja na doutrina mistérios
reservados a alguns privilegiados, nem porque eles coloquem a candeia
debaixo do alqueire, mas sim porque cada coisa deve vir no momento
oportuno; os Espíritos dão a cada ideia o tempo necessário para amadurecer e
se propagar, antes que apresentem outra, assim como dão aos eventos o
tempo para preparar a sua aceitação.

Não vão ao encontro dos gentios

8. Jesus enviou seus doze (apóstolos) depois de lhes ter dado as instruções
seguintes: Não vão ao encontro dos gentios, e não entrem nas cidades dos
samaritanos; mas, antes, vão às ovelhas perdidas da casa de Israel; e nos
lugares aonde forem, preguem, dizendo que o reino dos céus está próximo.
(São Mateus, 10: 5 a 7)

9. Jesus prova, em muitas circunstâncias, que suas propósitos não se


circunscrevem ao povo judeu, mas que eles abrangem toda a humanidade.
Então, se ele disse a seus apóstolos para não irem aos pagãos, não foi por
desdém pela conversão dos pagãos — o que teria sido pouco caridoso —, mas
porque os judeus, que acreditavam na unidade de Deus e esperavam o
Messias, já estavam preparados, através da lei de Moisés e dos profetas, para
receber a sua palavra. Quanto aos pagãos, faltava até mesmo uma base, tudo
estava por fazer, e os apóstolos ainda não estavam bastante esclarecidos para
uma tarefa tão pesada. Foi por isso que lhes disse: Vão até as ovelhas
310 – Allan Kardec

desgarradas de Israel; quer dizer, vão semear num terreno já desbravado,


sabendo bem que a conversão dos gentios viria no seu tempo certo. Mais
tarde, os apóstolos realmente foram até o centro do paganismo plantar a cruz.

10. Essas palavras podem ser aplicadas aos adeptos e aos propagadores do
espiritismo. Os incrédulos sistemáticos, os zombadores obstinados e os
adversários interessados são para eles aquilo que eram os gentios para os
apóstolos. A exemplo dos apóstolos, que os espíritas procurem antes fazer
prosélitos entre as pessoas de boa vontade, entre aquelas que desejam a luz,
em quem se encontra uma semente fecunda e cujo número é grande, sem
perder tempo com quem não recusa ver e ouvir, endurecendo-se ainda mais,
por orgulho, quanto mais parece que se dê valor à conversão deles. Mais vale
abrir os olhos de cem cegos que desejam ver claramente do que abrir os olhos
de um só que se contenta na escuridão, porque isso é aumentar o número dos
sustentadores da causa numa maior proporção. Deixar os outros tranquilos
não é indiferença, mas apenas diplomacia; a vez deles chegará quando eles
estiverem dominados pela opinião geral e quando ouvirem a mesma coisa
repetida sem parar em torno deles; então eles acharão que vão aceitar a ideia
voluntariamente e por eles mesmos, e não por pressão de outrem. Depois, há
ideias que são como as sementes: elas não podem germinar antes da estação,
e só brotam num terreno preparado. É por isso que é melhor esperar o tempo
propício e cultivar primeiramente aquelas que germinam, para evitar que as
outras abortem, pressionando-as demais.
No tempo de Jesus, e em consequência das ideias estreitas e materiais da
época, tudo era limitado e localizado; a casa de Israel era um pequeno povo;
os gentios eram outros pequenos povos circunvizinhos. Hoje, as ideias se
universalizam e se espiritualizam. A luz nova não é privilégio de nenhuma
nação; para ela não existem mais barreiras e tem o seu foco em toda a parte e
todos os homens são irmãos. Mas também os gentios já não são mais um
povo, e sim uma opinião que se encontra em toda parte e da qual a verdade
triunfa pouco a pouco, como o cristianismo triunfou sobre o paganismo. Já
não é mais com as armas de guerra que os combatemos, mas com a força da
ideia.
311 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Não são os que estão com saúde que precisam de médico

11. Estando Jesus à mesa na casa daquele homem (Mateus), vieram ali muitos
publicanos e gente de má vida que se puseram à mesa com Jesus e seus
discípulos; tendo visto isso, os fariseus dissessem aos discípulos: Por que o
Mestre de vocês come junto com publicanos e pessoas de má vida? — Mas
Jesus, tendo-os ouvido, disse a eles: Não são os que estão com saúde que
precisam de médico, mas sim os enfermos. (São Mateus, 9: 10 a 12)

12. Jesus se dirigia sobretudo aos pobres e aos deserdados, porque são estes
que mais necessitam de consolações; aos cegos dóceis e de boa-fé, porque eles
pedem para ver, e não aos orgulhosos que acham que possuem toda a luz e
que não precisam de nada. (Veja na Introdução os itens Publicanos e
Portageiros.)
Essas palavras, como tantas outras, encontram sua aplicação no
espiritismo. Há quem muitas vezes se admire de que a mediunidade seja
concedida a pessoas indignas e capazes de fazerem dela um mal uso; parece
— dizem — que uma faculdade tão preciosa deveria ser atributo exclusivo
dos mais merecedores.
Digamos, primeiro, que a mediunidade se deve a uma disposição
orgânica da qual todo homem pode ser dotado, assim como ele pode enxergar,
ouvir e falar. Não há nenhuma dessas disposições de que o homem não possa
abusar, em virtude do seu livre-arbítrio, e se Deus, por exemplo, tivesse
concedido a fala somente àqueles que são incapazes de dizerem coisas más,
então haveria mais mudos do que falantes. Deus dá ao homem as capacidades
e o deixa livre para usá-las, mas sempre pune aquele que abusa delas.
Se o poder de se comunicar com os Espíritos fosse dada apenas aos mais
dignos, quem é que ousaria pretender possuí-lo? Aliás, onde estaria o limite
da dignidade e da indignidade? A mediunidade é distribuída sem distinção a
fim de que os Espíritos possam trazer a luz a todas as categorias, em todas as
classes da sociedade, ao pobre como ao rico; aos sábios para fortalecê-los no
bem, aos viciosos para os corrigir. Estes últimos não são aqueles doentes que
necessitam de médico? Por que Deus, que não quer a morte do pecador, o
privaria do socorro que pode tirá-lo do atoleiro? Então os bons Espíritos vêm
312 – Allan Kardec

em socorro destes e os seus conselhos que o homem recebe diretamente são


capazes de impressioná-lo mais vivamente do que se ele os recebesse por
caminhos indiretos. Deus, em sua bondade, para poupar o homem do
sacrifício de ir procurar a luz ao longe, coloca-a na sua mão; o homem não
será bem mais culpado por não olhar para ela? Poderá ele se desculpar com a
sua ignorância, quando ele mesmo tiver escrito, quando tiver visto com seus
próprios olhos, ouvido com seus próprios ouvidos e pronunciado com a sua
boca a sua própria condenação? Se o homem não aproveitar, então ele será
punido pela perda ou pela perversão de sua faculdade, da qual os maus
Espíritos se apoderam para o obsidiar e o enganar, sem prejuízo das aflições
reais com que Deus fere os servidores indignos e os corações endurecidos
pelo orgulho e pelo egoísmo.
A mediunidade não significa necessariamente relações habituais com os
Espíritos superiores; ela é simplesmente uma aptidão para servir de
instrumento mais ou menos acessível aos Espíritos em geral. Logo, o bom
médium não é aquele que se comunica facilmente, mas aquele que é simpático
aos bons Espíritos e que recebe assistência destes. É apenas neste sentido que
a excelência das qualidades morais é onipotente sobre a mediunidade.

Coragem da fé

13. Aquele que me defender e me reconhecer diante dos homens, eu também


o reconhecerei e defenderei diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele
que me renegar diante dos homens, eu também o renegarei diante de meu Pai
que está nos céus. (São Mateus, 10: 32 e 33)

14. Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, o Filho do


homem também se envergonhará dele, quando vier na sua glória e na glória
de seu Pai e dos santos anjos. (São Lucas, 9: 26)

15. A coragem de opinião sempre foi estimada entre os homens, porque há


mérito em encarar os perigos, as perseguições, as contradições e até mesmo
os simples sarcasmos, aos quais quase sempre se expõe aquele que não teme
313 – O Evangelho segundo o Espiritismo

proclamar abertamente as ideias que não são aquelas de todo o mundo. Aqui,
como em tudo, o mérito está na razão das circunstâncias e da importância do
resultado. Sempre há fraqueza em recuar diante das consequências de sua
opinião e negá-la, mas há casos em que isso constitui uma covardia tão grande
quanto fugir no momento do combate.
Jesus condena essa covardia, do ponto de vista especial da sua doutrina,
dizendo que se alguém se envergonhar de suas palavras ele também se
envergonhará desta pessoa; que ele negará quem o tiver negado; que aquele
que o defender diante dos homens será reconhecido por ele diante do Pai que
está nos céus; noutras palavras: aqueles que tiverem medo de se
declararem discípulos da verdade não são dignos de serem admitidos no
reino da verdade. Estes perderão o benefício de sua fé, porque é uma fé
egoísta, que eles guardam para si e a escondem com medo de que ela não
traga prejuízo para eles neste mundo, ao passo que aqueles que a proclamam
abertamente, colocando a verdade acima de seus interesses materiais, estes
trabalham ao mesmo tempo para o seu futuro e para o futuro dos outros.

16. Assim será com os adeptos do espiritismo; já que a sua doutrina não é
outra senão o desenvolvimento e a aplicação da doutrina do Evangelho, é a
eles também que as palavras do Cristo se dirigem. Eles semeiam na Terra o
que vão colher na vida espiritual; lá eles colherão os frutos da sua coragem ou
da sua fraqueza.

Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida vai perdê-la

17. Bem-aventurados serão vocês, quando os homens os odiarem e os


rejeitarem, quando os tratarem injuriosamente e repudiarem o seu nome por
causa do Filho do homem. Rejubilem-se nesse dia e exultem de alegria,
porque uma grande recompensa está reservada para vocês no céu, pois era
assim que seus pais tratavam os profetas. (São Lucas, 6: 22 e 23)

18. Chamando para perto de si o povo e os seus discípulos, ele lhes disse: Se
alguém quiser vir após mim, então renuncie a si mesmo, carregue a sua cruz e
314 – Allan Kardec

me siga; pois aquele que quiser salvar a si mesmo se perderá, e aquele que se
perder por amor a mim e ao Evangelho, este se salvará. Com efeito, de que
serviria a um homem ganhar o mundo todo e perder a si mesmo? (São
Marcos, 8: 34 a 36; são Lucas, 9: 23 a 25; são Mateus, 10: 38 e 39; são João,
12: 25 e 26)

19. Rejubilem-se — diz Jesus — quando os homens os odiarem e os


perseguirem por minha causa, porque vocês serão recompensados no céu.
Essas palavras podem ser traduzidas assim: Fiquem felizes quando os
homens, pela má vontade deles com relação a vocês, lhes fornecerem a
ocasião de provar a sinceridade da sua fé, pois o mal que eles lhes fazem se
converte em benefício para vocês. Desse modo, lamentem a cegueira deles e
não os amaldiçoem.
Depois, Jesus acrescenta: “Aquele que quiser me seguir, carregue a sua
cruz”, ou seja, que suporte corajosamente as tribulações que a sua fé lhe
suscitará, pois aquele que quiser salvar a vida e seus bens me renunciando,
este perderá as vantagens do reino dos céus, enquanto aqueles que tiverem
perdido tudo neste mundo, até mesmo a vida, para o triunfo da verdade, estes
vão receber: na vida futura, o prêmio da sua coragem, perseverança e
abnegação; mas aos que sacrificam os bens celestes em favor dos prazeres
terrestres, a estes Deus dirá: Vocês já receberam a sua recompensa.
315 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XXV

PROCUREM E ENCONTRARÃO
Ajuda-te e o céu te ajudará – Olhem os pássaros no céu
– Não se preocupem em ter ouro

Ajuda-te e o céu te ajudará

1. Peçam e lhes será dado; procurem e vocês encontrarão; batam na porta e


ela será aberta para vocês; pois quem pede recebe e quem procura acha, e
para quem bate na porta ela será aberta.
Além disso, qual é o homem dentre vocês que dá uma pedra ao filho
quando ele lhe pede pão? Ou, se ele lhe pedir um peixe, lhe dará uma
serpente? Ora, se, sendo maus como vocês são, vocês sabem dar boas coisas
aos seus filhos, com mais forte razão o seu Pai que está nos céus dará os
verdadeiros bens àqueles que as pedirem a ele. (São Mateus, 7: 7 a 11)

2. Do ponto de vista terreno, a máxima: Procurem e vocês encontrarão é


semelhante a esta outra: Ajuda-te e o céu te ajudará. É o princípio da lei do
trabalho e, por conseguinte, da lei do progresso, pois o progresso é filho do
trabalho, uma vez que o trabalho põe em ação as forças da inteligência.
Na infância da humanidade, o homem não aplica sua inteligência senão à
procura da sua nutrição, dos meios de se preservar das intempéries e de se
defender dos seus inimigos; mas Deus lhe concedeu, mais do que aos animais,
o desejo incessante do melhor, e é esse desejo que o leva à procura dos
meios de melhorar sua situação, que o conduz às descobertas, às invenções e
ao aperfeiçoamento da ciência, pois é a ciência que lhe proporciona o que lhe
316 – Allan Kardec

falta. Graças às pesquisas, sua inteligência cresce e sua moral se depura; as


necessidades do corpo são sucedidas pelas necessidades do espírito; depois
do alimento material ele precisa do alimento espiritual, e é assim que o
homem passa da selvageria à civilização.
Mas o progresso que cada homem realiza individualmente durante a
vida é bem pouca coisa, imperceptível até mesmo num grande número deles;
como então a humanidade poderia progredir sem a preexistência e a
reexistência da alma? Se a cada dia as almas partissem para não mais voltar,
a humanidade estaria se renovando constantemente com os elementos
primitivos, tendo tudo para fazer, tudo para aprender; então não haveria
razão para que o homem hoje fosse mais adiantado do que nas primeiras
épocas do mundo, já que a cada nascimento todo o trabalho intelectual teria
que recomeçar. A alma, ao contrário, retornando ao progresso realizado e
adquirindo a cada vez alguma coisa a mais, então é assim que ela passa
gradualmente da barbárie à civilização material e desta à civilização moral.
(Veja o cap. IV, item 17.)

3. Se Deus houvesse dispensado o homem do trabalho do corpo, seus


membros teriam se atrofiado; se o tivesse dispensado do trabalho da
inteligência, seu espírito teria permanecido na infância, no estado de instinto
animal; é por isso que Deus o fez necessitado de trabalho e lhe disse: Procure
e você encontrará; trabalhe e você produzirá; dessa maneira você será filho
de suas próprias obras, você terá o mérito por isso e será recompensado
conforme o que você tenha feito.

4. É pela aplicação desse princípio que os Espíritos não vêm poupar o homem
do trabalho das pesquisas para lhe trazer descobertas e invenções todas
prontas e acabadas, de maneira que só lhe bastasse receber aquilo que é
colocado nas mãos, sem nem mesmo ter que se abaixar para apanhar, e nem
ter que pensar. Se fosse assim, o mais preguiçoso poderia se enriquecer e o
mais ignorante se tornaria sábio gratuitamente, e os dois poderiam se dar o
mérito daquilo que eles não teriam feito. Não, os Espíritos não vêm
dispensar o homem da lei do trabalho, mas vem lhe mostrar a meta que
ele deve alcançar e o caminho que a ela conduz, dizendo-lhe: Caminhe e
317 – O Evangelho segundo o Espiritismo

você chegará. Você encontrará pedras sob os teus passos; olha e retira-as
você mesmo; nós te daremos a força necessária, se você quiser empregá-la. (O
Livro dos Médiuns, 2ª parte, cap. XXVI, item 291 e seguintes.)

5. Do ponto de vista moral, essas palavras de Jesus significam: Peçam a luz


que deve iluminar a sua rota e ela será dada a vocês; peçam a força para
resistir ao mal e vocês a terão; peçam a assistência dos bons Espíritos e eles
virão acompanhar vocês, e tal como o anjo de Tobias,42 eles virão guiá-los;
peçam bons conselhos e eles jamais lhes serão recusados; batam à nossa
porta e ela será aberta para vocês; mas peçam com sinceridade, com fé, fervor
e confiança; apresentem-se com humildade e não com arrogância, sem o que
serão abandonados às suas próprias forças, e até mesmo as quedas que vocês
sofrerem serão a punição do seu orgulho.
Este é o sentido destas palavras: Procurem e vocês encontrarão, batam à
porta e ela será aberta para vocês.

Olhem os pássaros no céu

6. Não acumulem tesouros na Terra, onde a ferrugem e os vermes os comem


e onde os ladrões os desenterram e roubam; mas, acumulem tesouros no céu,
onde nem a ferrugem nem os vermes os comem; pois, onde está o seu
tesouro, aí também está o seu coração.
Eis por que eu digo a vocês: Não se preocupem com onde encontrarão o
que comer para o sustento da sua vida nem, de onde tirarão as roupas para
cobrir o seu corpo; a vida não vale mais do que o alimento e o corpo mais do
que as roupas?
Olhem os pássaros no céu: eles não semeiam, não colhem e nem
guardam nada em celeiros; mas o seu Pai celestial os alimenta; vocês não
valem muito mais do que eles? E qual é aquele dentre vocês que, com todos os
seus esforços, pode aumentar a sua estatura a altura de um côvado?
Por que também vocês se inquietam com o vestuário? Olhem como
crescem os lírios dos campos; eles não trabalham nem fiam, e, entretanto, eu
42Menção ao episódio bíblico do livro Tobias, que narra a intervenção socorrista de um anjo (Rafael)
em resposta às orações de Tobit (pai de Tobias) e de Sara (que se tornaria esposa de Tobias). — N. T.
318 – Allan Kardec

lhes declaro que nem Salomão, mesmo em toda a sua glória, jamais se vestiu
como um deles. Então, se Deus tem cuidado de vestir dessa maneira uma erva
dos campos, que existe hoje e que amanhã será lançada na fornalha, quanto
maior cuidado ele não terá em vestir vocês, ó homens de pouca fé!
Portanto, não se inquietem dizendo: O que vamos comer? Ou: o que
vamos beber? Ou: o que vamos vestir? — assim como fazem os pagãos, que
procuram todas essas coisas; porque o seu Pai sabe que vocês têm
necessidade dessas coisas.
Então, procurem primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e todas
essas coisas lhes serão dadas por acréscimo. Eis por que não devem se
inquietar com o amanhã, pois o amanhã cuidará de si mesmo. A cada dia
basta o seu mal. (São Mateus, 6: 19 a 21 e 25 a 34)

7. Essas palavras tomadas ao pé da letra seriam a negação de toda a


previdência, de todo o trabalho e, por conseguinte, de todo o progresso. Com
um princípio como esse, o homem ficaria reduzido a um espectador passivo:
suas forças físicas e intelectuais estariam sem atividade. Se fosse essa a
condição normal do homem na Terra, ele nunca teria saído do estado
primitivo e, se ele fizesse dessa condição a sua lei atual, então não lhe restaria
mais do que viver sem fazer nada. Não pode ter sido esse o pensamento de
Jesus, pois estaria em contradição com o que ele disse de outras vezes, das
próprias leis da natureza. Deus criou o homem sem vestes e sem abrigo, mas
lhe deu a inteligência para fabricá-los. (Cap. XIV, item 6; cap. XXV, item 2.)
Sendo assim, não se deve ver nessas palavras mais do que uma poética
alegoria da Providência, que jamais abandona aqueles que nela depositam sua
confiança; ela quer que eles trabalhem a parte que lhes cabe. Se a Providência
nem sempre vem ajudar materialmente, ela inspira as ideias com as quais os
homens encontram os meios para sair das dificuldades por eles mesmos.
(Cap. XXVII, item 8.)
Deus conhece nossas necessidades e as provê conforme o que é
necessário; mas o homem, insaciável nos seus desejos, nem sempre sabe se
contentar com o que tem; o necessário não lhe basta, ele precisa do supérfluo.
Então a Providência o deixa por si mesmo; muitas vezes ele fica infeliz por sua
própria culpa e por ter ignorado a voz que o advertia pela consciência; então
319 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Deus deixa que ele sofra as consequências disso, a fim de que isso lhe sirvam
de lição para o futuro. (Cap. V, item 4.)

8. A Terra produzirá o suficiente para alimentar todos os seus habitantes,


quando os homens sabem administrar os bens que ela dá, segundo as leis de
justiça, de caridade e de amor ao próximo; quando a fraternidade reinar entre
os diversos povos, como entre as províncias de um mesmo império, o
supérfluo momentâneo de um suprirá a insuficiência momentânea do outro, e
cada qual terá o necessário. O rico então vai se considerar como alguém que
tem uma grande quantidade de sementes; se ele as espalhar, elas produzirão
ao cêntuplo para si e para os outros, mas se ele comer essas sementes
sozinho, se as desperdiçar e deixar que se perca a sobra do que tenha comido,
então elas não produzirão nada e não haverá o bastante para todo mundo; se
ele as amontoar no seu celeiro, os vermes vão comê-las: é por isso que Jesus
diz: Não acumulem tesouros na Terra, porque são perecíveis, mas acumulem
os tesouros no céu, porque eles são eternos”. Noutros termos, não deem aos
bens materiais mais importância do que aos bens espirituais, e saibam
sacrificar os primeiros em favor destes outros. (Cap. XVI, item 7 e seguintes.)
Não é com leis que se decreta a caridade e a fraternidade; se elas não
estiverem no coração, o egoísmo sempre as sufocará. Fazê-las penetrar no
coração é a obra do espiritismo.

Não se preocupem em ter ouro

9. Não se preocupem em ter ouro ou prata, ou outra moeda em seus bolsos.


Não preparem nem bolsa para o caminho, nem duas túnicas, nem calçados,
nem sandálias, porque aquele que trabalha merece ser alimentado.

10. Em qualquer cidade ou vilarejo onde vocês entrarem, informem-se sobre


quem é digno de lhes receber e se hospedem na casa dele até partirem dali.
Entrando nessa casa, saúdam-na assim: Que a paz esteja nesta casa. Se essa
casa for digna disso, a paz de vocês virá sobre ela; mas se ela não for digna
disso, a sua paz voltará para vocês.
Quando alguém não os quiser receber e nem escutar suas palavras, ao
320 – Allan Kardec

saírem dessa casa ou dessa cidade, sacudam a poeira dos seus pés. Em
verdade eu lhes digo, no dia do julgamento, Sodoma e Gomorra43 serão
tratadas menos rigorosamente do que essa cidade. (São Mateus, 10: 9 a 15)

11. Essas palavras que Jesus dirigiu a seus apóstolos, quando os enviou pela
primeira vez para anunciar a boa nova, nada tinham de estranho naquela
época; elas estavam de acordo com os costumes patriarcais do Oriente, onde o
viajante sempre era recebido sob a tenda. Mas então, os viajantes eram raros;
já entre os povos modernos, o aumento da circulação precisou criar outros
costumes; só se encontram costumes de tempos antigos em regiões remotas,
onde o grande movimento ainda não se desenvolveu, e se Jesus voltasse hoje,
ele não poderia mais dizer a seus apóstolos: Ponham-se a caminho sem
provisões.
Ao lado do sentido próprio, essas palavras têm um sentido moral muito
profundo. Daquela maneira, Jesus ensinava a seus discípulos que confiassem
na Providência; depois, como os discípulos não tinham nada, eles não
poderiam despertar a cobiça daqueles que os recebessem; esse era o meio de
distinguir os caridosos dos egoístas. Eis por que Jesus lhes disse: “Informem-
se sobre quem é digno de os receber”, quer dizer, quem é bastante humano
para albergar o viajante que não tem com o que pagar, pois esses são dignos
de escutar as suas palavras; é pela caridade deles que vocês os reconhecerão.
Quanto àqueles que não quisessem nem os receber nem os escutar, será
que Jesus mandou os seus apóstolos os amaldiçoar, impor-se a eles, usar da
violência e do constrangimento para os converter? Não; mas os mandou pura
e simplesmente irem a outros lugares, e procurarem pessoas de boa vontade.
Assim diz hoje o espiritismo a seus adeptos: Não violentem nenhuma
consciência; não obriguem ninguém a deixar a sua crença para adotar a sua;
não lancem anátema sobre aqueles que não pensam como vocês; acolham os
que venham a vocês e deixem em paz os que os rejeitam. Lembrem-se das
palavras do Cristo; antigamente o céu era conquistado pela violência; hoje, é
pela brandura. (Cap. IV, itens 10 e 11.)

43 Segundo o relato bíblico do livro Gênesis, cap. 18 e 19, Sodoma e Gomorra correspondiam a duas
cidades que foram destruídas por Deus devido os pecados de seus habitantes. — N. T.
321 – O Evangelho segundo o Espiritismo

CAPÍTULO XXVI

DEEM GRATUITAMENTE O QUE


RECEBERAM GRATUITAMENTE
Dom de curar – Preces pagas – Vendilhões expulsos do templo
– Mediunidade gratuita

Dom de curar

1. Restituam a saúde aos doentes, ressuscitem os mortos, curem os leprosos,


expulsem os demônios. Deem gratuitamente o que receberam
gratuitamente. (São Mateus, 10: 8)

2. “Deem gratuitamente o que receberam gratuitamente” — diz Jesus aos seus


discípulos; com esse preceito ele recomenda que a pessoa não cobre por
aquilo pelo qual ela mesma não pagou; ora, o que eles haviam recebido
gratuitamente era a faculdade de curar os doentes e de expulsar os demônios,
ou seja, os maus Espíritos. Esse dom tinha sido dado a eles gratuitamente por
Deus, para o alívio daqueles que sofrem e para ajudar na propagação da fé;
então Jesus lhes disse para não fazer desse dom nem um comércio, nem um
objeto de especulação e nem um meio de vida.

Preces pagas
3. Ele disse em seguida aos seus discípulos, na presença de todo o povo que o
escutava: Tenham cuidado com os escribas que se exibem a passear com
longas túnicas, que gostam de ser saudados nas praças públicas e de ocupar
os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes;
322 – Allan Kardec

aqueles que, a pretexto de longas preces, devoram as casas das viúvas.


Essas pessoas receberão condenação mais rigorosa. (São Lucas, 20: 45 a 47;
são Marcos, 12: 38 a 40; são Mateus, 23: 14)

4. Jesus disse também: Não cobrem pelas suas preces; não façam como os
escribas que, “a pretexto de longas preces, devoram as casas das viúvas”,
isto é, apropriam-se das fortunas. A prece é um ato de caridade, um impulso
do coração; cobrar pela prece que se dirige a Deus em favor de outro é se
transformar em intermediário assalariado; a prece, nesse caso, torna-se uma
fórmula cujo comprimento é proporcional ao preço estipulado. Ora, de duas
coisas, uma: Deus mede ou não mede suas graças pelo número das palavras;
se for preciso muitas palavras, então por que dizer pouco ou quase nada por
aquele que não pode pagar? Isso é uma falta de caridade. Se uma só é
suficiente, o excedente é inútil; então por que cobrar por ela? Isso é uma
prevaricação.
Deus não vende os benefícios que concede; então, por que alguém — que
nem sequer é o seu distribuidor e que nem pode garantir a obtenção desses
benefícios — poderia cobraria por um pedido que talvez nem possa ser
realizado? Deus não pode subordinar um ato de clemência, de bondade ou de
justiça que solicitamos à sua misericórdia por uma soma em dinheiro; do
contrário, disso resultaria que se a soma não fosse paga, ou fosse insuficiente,
a justiça, a bondade e a clemência de Deus ficariam suspensas. A razão, o bom
senso e a lógica dizem que Deus — a perfeição absoluta — não pode delegar a
criaturas imperfeitas o direito de estipular um preço para a sua justiça. A
Justiça de Deus é como o Sol: ela existe para todo mundo, tanto para o pobre
como para o rico. Se consideramos imoral traficar as graças de um soberano
na Terra, seria então mais lícito vender as do soberano do Universo?
As preces pagas têm um outro inconveniente: é que aquele que as
compra, na maioria das vezes, acredita que está dispensado de orar ele
mesmo, porque se considera quite desde quando pagou com o seu dinheiro.
Sabe-se que os Espíritos ficam sensibilizados pelo fervor do pensamento de
quem se interessa por eles; qual pode ser o fervor daquele que encarrega uma
terceira pessoa de orar por ele pagando por isso? Qual será o fervor dessa
323 – O Evangelho segundo o Espiritismo

terceira pessoa quando delega o seu mandato a outro, este a um outro e assim
por diante? Isso não seria reduzir a eficácia da prece ao valor de uma moeda
corrente?

Vendilhões expulsos do templo

5. Eles vieram em seguida a Jerusalém, e Jesus entrando no templo, começou


por expulsar aqueles que ali vendiam e compravam; ele derrubou as mesas
dos cambistas e os bancos daqueles que vendiam pombas; e não permitiu que
alguém transportasse qualquer utensílio pelo templo. Ele também os instruía,
dizendo-lhes: Não está escrito: Minha casa será chamada casa de oração por
todas as nações? E, no entanto, vocês fizeram dela um covil de ladrões! — Os
príncipes dos sacerdotes, ouvindo isso, procuravam um meio de dar um fim
ele, porque o temiam, pois o povo estava repleto de admiração pela sua
doutrina. (São Marcos, 11: 15 a 18; são Mateus, 21: 12 e 13)

6. Jesus expulsou os vendilhões do templo; com isso, ele condenou o tráfico


das coisas santas sob qualquer forma que seja. Deus não vende nem a sua
bênção, nem o seu perdão, nem a entrada no reino dos céus; portanto, o
homem não tem o direito de cobrar por isso.

Mediunidade gratuita

7. Os médiuns modernos — pois os apóstolos também tinham mediunidade


— igualmente receberam de Deus um dom gratuito: o de serem intérpretes
dos Espíritos, para instrução dos homens, para lhes mostrar a rota do bem e
os conduzir à fé, e não para lhes vender as palavras que não lhes pertencem,
porque não são fruto nem de suas concepções, nem de suas pesquisas, nem
de seu trabalho pessoal. Deus quer que a luz chegue a todo mundo; ele não
quer que o mais pobre seja deserdado dessa luz e possa dizer: eu não tive fé,
porque não pude pagar por ela; não pude ter a consolação de receber os
encorajamentos e os testemunhos de afeição daqueles por quem choro,
porque sou pobre. Eis por que a mediunidade não é um privilégio e se
324 – Allan Kardec

encontra por toda parte; logo, cobrar por ela seria desviá-la do seu objetivo
providencial.

8. Qualquer um que conheça as condições em que os bons Espíritos se


comunicam, a repulsa deles por tudo o que é de interesse egoísta, e que saiba
quão pouco é preciso para afastá-los, jamais poderá admitir que os Espíritos
superiores estejam à disposição do primeiro que apareça e os chame a um
determinado preço por sessão; o simples bom senso repulsa tal ideia. Não
seria também uma profanação evocar por dinheiro os seres que respeitamos
ou que amamos? Sem dúvida, é possível haver manifestações assim, mas
quem poderia garantir a sua sinceridade? Os Espíritos levianos, mentirosos,
gaiatos e toda a coluna de Espíritos inferiores, muito pouco escrupulosos,
sempre vêm e estão todos prontos para responder àquele que pergunta sem
se preocupar com a verdade. Então, aquele que quiser comunicações sérias
deve primeiro pedi-las com seriedade, depois, certificar-se quanto à natureza
das simpatias do médium com os seres do mundo espiritual; ora, a primeira
condição para se conquistar a benevolência dos bons Espíritos é a humildade,
o devotamento, a abnegação, o desinteresse moral e material mais absoluto.

9. Ao lado da questão moral se apresenta uma consideração efetiva não


menos importante com relação à própria natureza da faculdade. A
mediunidade séria não pode ser e jamais será uma profissão, não somente
porque ela seria desacreditada moralmente e logo confundida com os ledores
da boa sorte, mas também porque um obstáculo material se opõe a isso: é que
ela é uma faculdade essencialmente instável, fugidia e variável, com a qual
ninguém pode contar. Para o explorador, portanto, a mediunidade seria um
recurso totalmente incerto, que pode lhe faltar no momento em que ela fosse
mais necessária para ele. Outra coisa é um talento adquirido pelo estudo e
pelo trabalho, e que, por isso mesmo, consiste numa propriedade da qual
naturalmente é permitido tirar partido. A mediunidade, porém, não é uma
arte nem um talento, e por isso ela não pode se tornar uma profissão; ela não
existe sem a cooperação dos Espíritos; se esses Espíritos faltarem, não haverá
mais mediunidade. A aptidão pode subsistir, mas o seu exercício fica anulado.
325 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Assim sendo, não há um único médium no mundo que possa garantir a


obtenção de um fenômeno espírita em um determinado instante. Logo,
explorar a mediunidade é dispor de uma coisa da qual ninguém é realmente o
dono, e afirmar o contrário é enganar aquele que paga. E tem mais: não é de si
mesmo que o explorador dispõe, mas dos Espíritos, das almas dos mortos,
cuja cooperação não está à venda, e um pensamento como esse é
institivamente repugnante. Foi esse tráfico, degenerado em abuso, explorado
pelo charlatanismo, pela ignorância, pela credulidade e pela superstição que
motivou a proibição de Moisés. O moderno Espiritismo, compreendendo o
lado sério da questão, pelo descrédito que lançou sobre essa exploração,
elevou a mediunidade à categoria de missão. (Veja O Livro dos Médiuns, 2ª
parte, cap. XXVIII; O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. XI.)

10. A mediunidade é uma coisa santa que deve ser praticada santamente,
religiosamente. Se há um gênero de mediunidade que requeira essa condição
de uma maneira ainda mais absoluta é a mediunidade curadora. O médico dá
o fruto de seus estudos, que ele fez ao custo de sacrifícios muitas vezes
penosos; o magnetizador doa do seu próprio fluido, às vezes até da sua saúde:
eles podem estabelecer o seu preço. O médium curador transmite o fluido
salutar dos bons Espíritos: ele não tem o direito de vender esse fluido. Jesus e
os apóstolos, conquanto pobres, nada cobravam pelas curas que operavam.
Portanto, aquele que não tem do que viver, que procure recursos
alhures, menos na mediunidade; que ele dedique, se for preciso, apenas o
tempo de que ele puder dispor materialmente. Os Espíritos levarão em conta
o seu devotamento e sacrifício, ao passo que se afastam daqueles que
esperam fazer deles um trampolim.
326 – Allan Kardec

CAPÍTULO XXVII

PEÇAM E VOCÊS OBTERÃO


Qualidades da prece – Eficácia da prece – Ação da prece.
Transmissão do pensamento – Preces inteligíveis
– Prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Maneira de orar – Felicidade da prece

Qualidades da prece

1. Quando estiverem orando, não se assemelhem aos hipócritas, que gostam


de orar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem vistos pelos
homens. Eu lhes digo, em verdade, que eles já receberam a recompensa deles.
Mas quando quiserem orar, entrem no seu quarto e, a porta estando fechada,
orem em segredo ao Pai de vocês; e o Pai de vocês, que vê o que se passa em
segredo, recompensará vocês.
Não tratem de pedir muito nas suas preces, como fazem os pagãos, que
acham que é pela quantidade de palavra que eles serão atendidos. Não se
tornem, pois, semelhantes a eles, porque o Pai de vocês sabe do que é que
vocês têm necessidade antes que o peçam. (São Mateus, 6: 5 a 8)

2. Quando forem orar, se vocês tiverem qualquer coisa contra alguém,


perdoem-no, a fim de que o Pai de vocês, que está nos céus, também perdoe
os pecados de vocês. Se não perdoarem, o Pai de vocês, que está nos céus,
também não perdoará os pecados de vocês. (São Marcos, 11: 25 e 26)

3. Ele contou também esta parábola a alguns que colocavam a sua confiança
em si mesmos, como sendo justos, e desprezavam os outros:
Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro era
um publicano. O fariseu, mantendo-se de pé, orava assim, consigo mesmo:
327 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Meu Deus, eu te rendo graças por não ser como o resto dos outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros, incluindo esse publicano. Eu faço jejum
duas vezes na semana, eu dou o dízimo de tudo o que possuo.
O publicano, ao contrário, permanecendo afastado, não ousava sequer
erguer os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus, tenha piedade
de mim, que sou um pecador.
Eu declaro a vocês que este retornou para sua casa justificado, e não o
outro, pois aquele que se eleva será rebaixado e aquele que se rebaixa será
elevado. (São Lucas, 18: 9 a 14)

4. As qualidades da prece foram claramente definidas por Jesus; quando for


orar — diz ele — não se ponham em evidência, mas orem em segredo; não
tratem de orar muito, pois não é pela multiplicidade das palavras que vocês
serão atendidos, mas pela sinceridade das palavras; antes de orar, se tiverem
qualquer coisa contra alguém, perdoem-no, porque a prece não pode ser
agradável a Deus se ela não parte de um coração purificado de todo
sentimento contrário à caridade; orem, enfim, com humildade, igual ao
publicano, e não com orgulho, igual ao fariseu; examinem seus próprios
defeitos e não as suas qualidades, e se vocês forem se comparar com os
outros, procurem o que há de mau em si mesmo. (Cap. X, itens 7 e 8.)

Eficácia da prece

5. Seja lá o que for que vocês pedirem na prece, creiam que vocês o obterão, e
assim será concedido a vocês. (São Marcos, 11: 24)

6. Há pessoas que contestam a eficácia da prece, e elas se baseiam no


princípio de que, já que Deus conhece as nossas necessidades, é supérfluo
expô-las a ele. Acrescentam ainda que, como tudo se encadeia no Universo
por leis eternas, as nossas súplicas não podem mudar os decretos de Deus.
Sem dúvida alguma há leis naturais e imutáveis que Deus não pode
derrogar segundo o capricho de cada um; mas daí a achar que todas as
circunstâncias da vida estão submetidas à fatalidade, a distância é grande. Se
fosse assim, o homem não seria mais do que um instrumento passivo, sem
328 – Allan Kardec

livre-arbítrio e sem iniciativa. Nessa hipótese, ele só teria que curvar a cabeça
sob o golpe de todos os acontecimentos, sem procurar evitá-los; não deveria
tentar desviar-se do raio. Deus não lhe deu a razão e a inteligência para ele
não a usar, nem a vontade para ele não querer, nem a atividade para ele ficar
inativo. O homem sendo livre para agir num sentido ou em outro, seus atos
têm — para ele mesmo e para os outros — consequências subordinadas ao
que ele faz ou deixa de fazer; por iniciativa dele, portanto, há eventos que
forçosamente escapam da fatalidade e que não destroem a harmonia das leis
universais, assim como o avanço ou o atraso do ponteiro de um relógio não
destrói a lei do movimento sobre a qual se estabelece o mecanismo. Sendo
assim, Deus pode conceder certos pedidos sem derrogar a imutabilidade das
leis que regem o conjunto, estando essa sua concessão sempre subordinada à
sua vontade.

7. Seria ilógico concluir desta máxima: “Seja lá o que for que vocês pedirem na
prece, assim será concedido a vocês”, que bastaria pedir para obter, e seria
injusto acusar a Providência se ela não atendesse a todo pedido que lhe fosse
feito, pois ela sabe melhor do que nós aquilo que é para o nosso bem. É o
mesmo que acontece com um pai sábio que recusa ao filho as coisas
contrárias ao interesse a este filho. O homem geralmente não vê além do
presente; ora, se o sofrimento for útil para a sua felicidade futura, então Deus
o deixará sofrer, como o cirurgião deixa o doente sofrer as dores de uma
operação que deve lhe trazer a cura.
O que Deus concederá ao homem, quando este se dirigir a Deus com
confiança, é a coragem, a paciência e a resignação. O que Deus também lhe
concederá são os meios de ele mesmo se livrar das dificuldades, com a ajuda
das ideias que Deus fará os bons Espíritos lhe sugerirem, deixando assim ao
homem o mérito. Deus auxilia os que ajudam a si mesmos, segundo esta
máxima: “Ajuda-te e o céu te ajudará”, e não aqueles que esperam tudo de um
socorro estranho sem fazer uso das suas próprias faculdades; entretanto, na
maior parte do tempo, o que o homem preferiria ser socorrido por um
milagre sem precisar fazer nada. (Cap. XXV, item 1 e seguintes.)

8. Vamos pegar um exemplo. Um homem está perdido no deserto; ele sofre


329 – O Evangelho segundo o Espiritismo

terrivelmente de sede, sente-se desfalecer e tomba no chão; ele pede a Deus


que o ajude, e espera; porém, nenhum anjo vem lhe dar de beber. Entretanto,
um bom Espírito lhe sugere a ideia de se levantar e seguir uma das trilhas que
se apresenta diante dele; então, por um movimento maquinal, reunindo suas
forças ele se levanta e segue a aventura. Chegando ao alto, ele repara ao longe
um riacho; à vista disso, ele retoma a coragem. Se ele tiver fé, então
exclamará: “Obrigado, meu Deus, pela ideia que me inspirou e pela força que
me concedeu.” Se não tiver fé, ele dirá: “Que boa ideia eu tive! Que sorte eu
tive de seguir a trilha da direita em vez da trilha da esquerda; o acaso
realmente nos serve às vezes! Quanto me felicito pela minha coragem e por
não ter me deixado abater!”
Mas, vão dizer: “Por que o bom Espírito não lhe disse claramente para
seguir aquela trilha e que no fim dela ele encontraria aquilo de que
necessitava? Por que não se mostrou a ele para guiá-lo e sustentá-lo no seu
desfalecimento? Dessa maneira o bom Espírito o teria convencido da
intervenção da Providência.” Em primeiro lugar, era para lhe ensinar que era
preciso ajudar-se a si mesmo e fazer uso das próprias forças. Depois, pela
incerteza, Deus põe à prova a confiança nele e a submissão à sua vontade.
Aquele homem estava na situação de uma criança que cai e que, percebendo a
presença de alguém, chora e espera que alguém venham levantá-la; mas se
não vir ninguém, ela faz esforços e se ergue sozinha.
Se o anjo que acompanhou Tobias lhe tivesse dito: “Eu fui enviado por
Deus para te guiar na tua viagem e te preservar de todo perigo”, Tobias não
teria tido nenhum mérito; fiando-se no seu companheiro, ele não teria nem
mesmo precisado pensar. Foi por isso que o anjo só se deu a conhecer no
retorno.

Ação da prece – Transmissão do pensamento

9. A prece é uma invocação; através dela, nós nos colocamos em contato pelo
pensamento com o ser a quem nos dirigimos. Ela pode ter como objetivo um
pedido, um agradecimento ou uma glorificação. Podemos orar por nós
mesmos ou por outros, pelos vivos ou pelos mortos. As preces endereçadas a
330 – Allan Kardec

Deus são recebidas pelos Espíritos encarregados da execução das vontades


divinas; as que se dirigem aos bons Espíritos são reportadas a Deus. Quando
oramos aos outros seres que não a Deus, é apenas como intermediários,
intercessores, pois nada pode ser feito sem a vontade de Deus.

10. O Espiritismo torna compreensível a ação da prece ao explicar o modo de


transmissão do pensamento — seja quando o ser a quem oramos atende ao
nosso apelo, seja quando o nosso pensamento o alcança. Para entender o que
se passa em tal circunstância é preciso imaginar todos os seres — encarnados
e desencarnados — mergulhados no fluido universal que ocupa o espaço,
assim como neste mundo nós nos encontramos dentro da atmosfera. Esse
fluido recebe um impulso da vontade; ele é o veículo do pensamento, como o
ar é o veículo do som, com a diferença de que as vibrações do ar são
circunscritas, enquanto as do fluido universal se estendem ao infinito. Quando
o pensamento é dirigido a um ser qualquer — na Terra ou no Espaço, de
encarnado para desencarnado, ou de desencarnado para encarnado — então
uma corrente fluídica se estabelece de um para o outro, transmitindo o
pensamento como o ar transmite o som.
A energia da corrente é proporcional à energia do pensamento e da
vontade. É assim que a prece é recebida pelos Espíritos em qualquer lugar
que eles se encontrem; é assim que os Espíritos se comunicam entre si, que
eles nos transmitem suas inspirações e que se estabelecem relações à
distância entre os encarnados.
Essa explicação é especialmente em vista daqueles que não entendem a
utilidade da prece puramente mística; ela não tem por objetivo materializar a
prece, mas tornar inteligível o seu efeito, mostrando que ela pode ter uma
ação direta e efetiva. Nem por isso ela deixa de estar subordinada à vontade
de Deus — juiz supremo em todas as coisas e o único que pode tornar a sua
ação eficaz.

11. Pela prece o homem atrai para si o auxílio dos bons Espíritos, que vêm
sustentá-lo nas suas boas resoluções e lhe inspirar bons pensamentos; assim,
ele adquire a força moral necessária para vencer as dificuldades e voltar ao
331 – O Evangelho segundo o Espiritismo

caminho correto, se estiver afastado dele. E com isso ele também pode desviar
de si os males que atrairia pelas suas próprias faltas. Por exemplo, um homem
vê sua saúde arruinada pelos excessos que cometeu, e arrasta até o fim de
seus dias uma vida de sofrimento; será que ele tem o direito de se queixar,
caso não obtenha a cura que deseja? Não, porque ele poderia ter encontrado
na prece a força para resistir às tentações.

12. Se dividirmos em duas partes os males da vida, uma delas sendo a dos
males que o homem não pode evitar e a outra sendo a parte das tribulações
de que ele mesmo é a principal causa, devido ao seu descuido e aos seus
excessos (cap. V, item 4), então veremos que esta segunda parte supera e
muito o número dos males em relação à primeira. Logo, fica bem evidente que
o homem é o autor da maior parte das suas aflições, e que ele se pouparia
desses males se agisse sempre com sabedoria e prudência.
Não é menos certo que essas misérias são o resultado das nossas
infrações às leis de Deus, e que, se observássemos pontualmente essas leis,
nós seríamos perfeitamente felizes. Se não ultrapassássemos o limite do
necessário na satisfação das nossas necessidades, não teríamos as doenças
que são a consequência dos excessos, nem teríamos as vicissitudes
acarretadas por essas doenças. Se colocássemos limites à nossa ambição, nós
não temeríamos a ruína; se não quiséssemos subir mais alto do que podemos,
não teríamos receio de cair; se fôssemos humildes, não sofreríamos as
decepções do orgulho abatido; se praticássemos a lei de caridade, nós não
seríamos nem maledicentes, nem invejosos, nem ciumentos, e evitaríamos as
querelas e dissensões; se não fizéssemos mal a ninguém, não temeríamos as
vinganças etc.
Admitamos que o homem não possa fazer nada com relação aos outros
males; que toda prece lhe seja supérflua para se preservar deles; já não seria
muito ficarmos livres de todos os males que vêm da nossa própria conduta?
Ora, aqui a ação da prece é facilmente concebida, porque ela tem por efeito
chamar a inspiração salutar dos bons Espíritos e lhes pedir a força para
resistir aos maus pensamentos cuja execução pode ser funesta para nós.
Nesse caso, não é o mal que eles afastam; eles apenas nos desviam do mau
332 – Allan Kardec

pensamento que pode causar o mal. Eles não contrariam em nada os


decretos de Deus, nem suspendem o curso das leis da natureza; é a nós
que eles impedem de infringir essas leis ao orientar o nosso livre-arbítrio.
Mas eles fazem isso sem que saibamos, de uma maneira oculta, para não
constranger a nossa vontade. O homem se encontra então na posição de
alguém que solicita bons conselhos e os põe em prática, mas que é sempre
livre para segui-los ou não; Deus quer que seja assim para que o homem tenha
a responsabilidade dos seus atos e o mérito da escolha entre o bem e o mal. É
isso o que o homem sempre obterá — se pedir com fervor — e ao que
podemos aplicar especialmente estas palavras: “Peçam e vocês obterão”.
A eficácia da prece, mesmo reduzida a essa proporção, já não teria um
imenso resultado? Estava reservado ao Espiritismo nos provar a ação dela,
pela revelação das relações existentes entre o mundo corporal e o mundo
espiritual. Mas, seus efeitos não se limitam somente a isso.
A prece é recomendada por todos os Espíritos; renunciar à prece é
desconhecer a bondade de Deus, é recusar para si mesmo a sua assistência e,
para os outros, é recusar o bem que podemos fazer por eles.

13. Atendendo ao pedido que lhe é endereçado, Deus muitas vezes tem em
vista recompensar a intenção, o devotamento e a fé daquele que ora; é por
isso que a prece do homem de bem tem mais mérito aos olhos de Deus, e
sempre tem mais eficácia, pois o homem vicioso e malvado não pode orar com
o fervor e a confiança que só é dado pelo sentimento da verdadeira piedade.
Do coração do egoísta, daquele que ora com os lábios, não podem sair mais do
que palavras, e não os impulsos de caridade que dão à prece toda a sua
pujança. Tanto compreendemos isso que, por um movimento instintivo,
preferencialmente nós nos recomendamos às preces daqueles cuja conduta
sabemos que deve ser agradável a Deus, porque eles são mais bem atendidos.

14. Se a prece exerce uma espécie de ação magnética, poderíamos crer que o
efeito dela está subordinado à força fluídica; porém, não é assim. Já que os
Espíritos exercem essa ação sobre os homens, eles suprem, quando isso é
necessário, a insuficiência daquele que ora — seja agindo diretamente em seu
333 – O Evangelho segundo o Espiritismo

nome, seja lhe dando momentaneamente uma força excepcional, quando ele é
considerado digno desse favor ou quando o objetivo pode ser útil.
O indivíduo que não se considere suficientemente bom para exercer uma
influência positiva não deve deixar de orar pelos outros, com a ideia de que
não é digno de ser escutado. A consciência da sua inferioridade é uma prova
de humildade, sempre agradável a Deus, que leva em conta a intenção
caridosa que motiva a pessoa. Seu fervor e sua confiança em Deus já são um
primeiro passo rumo ao retorno ao bem, ao qual os bons Espíritos ficam
felizes em incentivar. A prece que é rejeitada é aquela do orgulhoso, que tem
fé em sua força e em seus méritos, e acha que pode substituir a vontade do
Eterno.

15. A força da prece está no pensamento; ela não depende nem das palavras,
nem de lugar, nem do momento em que é feita. Portanto, podemos orar em
toda parte e a qualquer hora, a sós ou em grupo. A influência do lugar e do
horário dependem das circunstâncias que podem favorecer a concentração. A
prece em grupo tem uma ação mais poderosa quando todos aqueles que
estejam orando se associam de coração a um mesmo pensamento e têm o
mesmo objetivo, pois é como se muitos clamassem juntos e em uníssono; mas
que importa estar reunidos em grande número de pessoas se cada uma age
isoladamente e por conta própria? Cem pessoas reunidas podem orar como
egoístas, enquanto duas ou três, unidas por uma mesma aspiração, oram
como verdadeiros irmãos em Deus, e sua prece terá mais força do que a das
cem outras. (Cap. XXVIII, itens 4 e 5.)

Preces inteligíveis

16. Se eu não entender o que significam as palavras, eu serei um bárbaro para


aquele a quem falo, e aquele que me fala será um bárbaro. Se eu oro numa
língua que eu não entendo, meu coração ora, mas a minha inteligência fica
sem fruto. Se vocês louvam a Deus apenas de coração, como é que um homem
do número daqueles que só entendem a sua própria língua responderá amém
no fim da ação de graça de vocês, já que ele não entende o que vocês dizem?
334 – Allan Kardec

Não é que a ação de vocês não seja boa, mas que os outros não estão assim
edificados. (São Paulo, I Coríntios, 14: 11, 14, 16 e 17)

17. A prece só tem valor pelo pensamento que a ela é agregado; agora, é
impossível agregarmos algum pensamento àquilo que não compreendemos,
pois aquilo que não compreendemos não pode tocar o coração. Para a imensa
maioria das pessoas, as preces numa língua incompreendida não passam de
um amontoado de palavras que não dizem nada ao espírito. Para que a prece
sensibilize, é preciso que cada palavra desperte uma ideia, mas se não a
entendermos, a palavra não pode despertar nenhuma ideia; ela será repetida
como simples fórmula que tem uma maior ou menor virtude conforme o
número de vezes que ela for repetida. Muitas pessoas oram por dever, outras
até mesmo para se adequar aos costumes; é por isso que eles se julgam quites
quando dizem uma oração num determinado número de vezes e nessa ou
naquela ordem. Deus lê no fundo dos corações; ele percebe o pensamento e a
sinceridade, e seria rebaixá-lo acreditar que ele fosse mais sensível à forma do
que ao fundo. (Cap. XXVIII, item 2.)

Prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores

18. A prece é solicitada pelos Espíritos sofredores; ela é útil para eles porque,
ao verem que nós pensamos neles, eles se sentem menos abandonados,
menos infelizes. Mas a prece tem sobre eles uma ação mais direta: desperta a
coragem, inspira neles o desejo de se elevar pelo arrependimento e pela
reparação, podendo desviá-los do mau pensamento; é nesse sentido que a
prece pode não apenas aliviar, mas também abreviar seus sofrimentos. (Veja
em O Céu e o Inferno, 2ª parte, Exemplos.)

19. Certas pessoas não admitem a prece pelos mortos, porque, segundo a
crença delas, não há para a alma mais do que duas alternativas: ou ser salva
ou ser condenada às penas eternas, e que, nos dois casos, a prece é inútil. Sem
discutir o valor dessa crença, vamos admitir por um instante a realidade das
penas eternas e irremissíveis, e que as nossas preces sejam impotentes para
335 – O Evangelho segundo o Espiritismo

pôr um fim às penas. Perguntamos se, nessa hipótese, seria lógico, caridoso e
cristão negar a prece aos condenados? Tais preces, por mais impotentes que
fossem para os libertar, não seriam para eles uma demonstração de piedade
que poderia aliviar seus sofrimentos? Na Terra, quando um homem é
condenado à pena perpétua, mesmo quando não haja nenhuma esperança de
obter o perdão para ele, será que é proibido a uma pessoa caridosa ir carregar
seus grilhões para aliviá-lo desse peso? Quando alguém é atingido por uma
moléstia incurável, deveríamos abandoná-lo sem nenhum lenitivo, só porque
ele não tem nenhuma esperança de cura? Lembrem-se de que, entre os
réprobos pode haver uma pessoa que já foi querida, um amigo, talvez um pai,
uma mãe ou um filho, e, como se diz, porque ele não poderia esperar um
perdão, vocês lhe negariam um copo d’água para matar a sede dele? Ou um
bálsamo para secar suas chagas? Vocês não fariam por ele o que fariam por
um infeliz? Não lhe dariam um testemunho de amor, uma consolação? Não,
isso não seria cristão. Uma crença que resseca o coração não combina com a
crença de um Deus que coloca o amor ao próximo na primeira ordem dos
deveres.
A não eternidade das penas não significa a negação de uma penalidade
temporária, porque Deus, na sua justiça, não pode confundir o bem e o mal;
ora, neste caso, negar a eficácia da prece seria negar a eficácia da consolação,
dos encorajamentos e dos bons conselhos; seria negar a força que colhemos
da assistência moral daqueles que nos querem bem.

20. Outros se fundam numa razão mais ilusória: a imutabilidade dos decretos
divinos. Deus — dizem esses — não pode modificar suas decisões a pedido de
suas criaturas; sem isso, nada seria estável no mundo. logo, o homem não tem
nada a pedir a Deus, ele só tem que se submeter e adorá-lo.
Há nessa ideia uma falsa aplicação do princípio da imutabilidade da lei
divina, ou melhor, ignorância da lei no que se refere à penalidade futura. Essa
lei é revelada pelos Espíritos do Senhor, agora que o homem já está maduro
para compreender o que, na fé, é conforme ou contrário aos atributos divinos.
Segundo o dogma da eternidade absoluta das penas, não é levado em
conta em favor do culpado nem os seus remorsos nem o seu arrependimento;
336 – Allan Kardec

para ele, todo desejo de se melhorar é um desperdício: ele está condenado a


permanecer no mal perpetuamente. Se ele está condenado por um tempo
determinado, a pena cessará quando o tempo tiver expirado; mas quem diz
que ele então terá voltado a ter sentimentos melhores? Quem diz que, a
exemplo de muitos dos condenados da Terra, ao sair da prisão ele não será
tão malvado quanto antes? No primeiro caso, isso seria manter na dor do
castigo um homem que retornou ao bem; no segundo, seria agraciar aquele
que continua culpável. A lei de Deus é mais previdente do que isso: sempre
justa, equitativa e misericordiosa, ela não fixa nenhuma duração para a pena,
seja ela qual for; ela se resume assim:

21. “O homem sofre sempre a consequência de suas faltas; não há uma única
infração à lei de Deus que não tenha a sua punição.
“A severidade do castigo é proporcional à gravidade da falta.
“Seja qual for a falta, a duração do castigo é indeterminada; ela está
subordinada ao arrependimento do culpado e ao seu retorno ao bem; a
pena dura tanto quanto a obstinação no mal; ela seria perpétua se a
obstinação fosse perpétua; ela é de curta duração se o arrependimento for
rápido.
“Desde que o culpado clame misericórdia, Deus o ouve e lhe envia a
esperança. Mas o simples remorso do mal não basta: é preciso uma reparação;
eis por que o culpado fica submetido a novas provas, nas quais, sempre por
sua vontade, ele pode fazer o bem em reparação ao mal que tenha feito.
“Assim, o homem é constantemente o árbitro da sua própria sorte; ele
pode abreviar ou prolongar o seu suplício indefinidamente; a sua felicidade
ou a sua infelicidade depende da sua vontade de praticar o bem.”
Esta é a lei, lei imutável e conforme à bondade e à justiça de Deus.
Então, o Espírito culpado e infeliz sempre pode se salvar por si mesmo: a
lei de Deus lhe diz em que condições pode fazer isso. O que lhe falta na
maioria das vezes é vontade, força e coragem; se, por nossas preces, nós lhe
inspiramos essa vontade, se o amparamos e o encorajamos; se, pelos nossos
conselhos, nós lhe damos as luzes que lhe faltam, em lugar de pedirmos a
Deus que derrogue a sua lei, nós nos tornamos instrumentos para a
337 – O Evangelho segundo o Espiritismo

execução de sua lei de amor e de caridade, da qual ele nos permite


participar, dando a nós mesmos, uma prova de sua caridade. (Veja em O Céu e
o Inferno, 1ª parte, caps. IV, VII, VIII.)

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Maneira de orar

22. O primeiro dever de toda criatura humana, o primeiro ato que deve
assinalar o seu retorno à vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos vocês
oram, mas quão poucos são os que sabem orar! Que importam ao Senhor as
frases que vocês ligam umas às outras maquinalmente, porque vocês têm isso
como um hábito, como um dever que vocês cumprem e que, como qualquer
dever, é um peso para vocês.
A prece do cristão, do espírita de qualquer culto que seja, deve ser feita
desde logo que o Espírito tenha retomado o jugo da carne; ela deve se elevar
aos pés da majestade divina com humildade, com profundeza, num ímpeto de
reconhecimento por todos os benefícios recebidos até esse dia; pela noite
passada e durante a qual lhes foi permitido, mesmos sem saber disso, voltar
para junto dos amigos, dos guias, para haurir no contato com eles mais força e
perseverança. A prece deve se elevar humilde aos pés do Senhor, para se
aconselhar sobre a própria fraqueza, para lhe pedir apoio, indulgência e
misericórdia. Ela deve ser profunda, pois é a alma de vocês que deve se elevar
em direção do Criador, que deve se transfigurar como Jesus no Monte Tabor, e
para chegar alva e radiosa de esperança e de amor.
A sua prece deve conter o pedido das graças de que vocês têm
necessidade, mas de uma necessidade real. Com isso é inútil pedir ao Senhor
para abreviar as provações de vocês, para lhes dar alegrias e riquezas; peçam
para ele lhes conceder os bens mais preciosos da paciência, da resignação e da
fé. Não digam, como acontece com muitos de vocês: “Não vale a pena orar,
porque Deus não me atende.” O que é que na maior parte do tempo vocês
pedem a Deus? Já pensaram alguma vez em lhe pedir o próprio
aperfeiçoamento moral de vocês? Oh, não! Bem poucas vezes! Mas vocês
338 – Allan Kardec

pensam logo em lhe pedir sucesso nos seus negócios terrenos, e depois
choram: “Deus não se ocupa conosco; se ele se ocupasse, não haveria tantas
injustiças”. Insensatos! Ingratos! Se vocês descessem ao fundo da própria
consciência, então encontrariam quase sempre em vocês mesmos o ponto de
partida dos males dos quais se queixam. Então, peçam antes de todas as
coisas o próprio aprimoramento, e aí verão que torrente de bênçãos e de
consolações se derramará sobre vocês. (Cap. V, item 4.)
Vocês devem orar sem cessar, sem que para isso vocês se recolham nos
seus santuários ou se lancem de joelhos nas praças públicas. A prece diária é o
cumprimento dos seus deveres, sem exceção de nenhum dos deveres,
qualquer que seja a natureza deles. Não é um ato de amor a Deus socorrer os
irmãos numa necessidade qualquer, moral ou física? Não é um ato de
reconhecimento elevar a ele o próprio pensamento quando uma felicidade se
realiza para vocês, quando um acidente é evitado, quando até uma simples
contrariedade os sensibiliza, se vocês dizem em pensamento: Bendito seja,
meu Pai!? Não é um ato de contrição se humilharem diante do juiz supremo,
quando vocês sentem que faliram, nem que fosse só por um pensamento
fugaz, para lhe dizerem: Perdoe-me, meu Deus, porque eu pequei (por
orgulho, por egoísmo ou por falta de caridade); dê-me a força para não
falir de novo e coragem para reparar minha falta!?
Isso independe das preces regulares da manhã, da noite e dos dias
consagrados; mas como vocês podem ver, a prece pode ser feita em todos os
instantes, sem trazer nenhuma interrupção aos seus trabalhos; dita assim, por
sua vez, ela santifica os trabalhos. E fiquem bem certos de que um só desses
pensamentos — partindo do coração — é mais percebido pelo seu Pai
celestial do que as longas orações ditas por hábito, frequentemente sem causa
determinante e às quais a hora convencional os chama maquinalmente.
Pr. MONOD (Bordeaux, 1862)

Felicidade que a prece proporciona

23. Venham, vocês que desejam crer: os Espíritos celestes acorrem a vem lhes
anunciar grandes coisas. Deus, meus filhos, abre seus tesouros para lhes dar
339 – O Evangelho segundo o Espiritismo

todos os seus benefícios. Homens incrédulos! Ah, se vocês soubessem o


quanto a fé faz bem ao coração e o quanto ela leva a alma ao arrependimento
e à prece! Ah, a prece! Como são tocantes as palavras que saem da boca na
hora em que oramos! A prece é o orvalho divino que destrói o calor excessivo
das paixões; filha primeira da fé, ela nos envolve na senda que conduz a Deus.
No recolhimento e na solidão, vocês estão com Deus; para vocês, nada de
mistérios: eles são desvendados para vocês. Apóstolos do pensamento, para
vocês é vida; sua alma se desprende da matéria e rola por esses mundos
infinitos e etéreos que os pobres humanos desconhecem.
Sigam em frente! Sigam pelas sendas da prece e vocês escutarão as vozes
dos anjos. Que harmonia! Já não são mais o ruído confuso e os sons
estridentes da Terra; são as liras dos arcanjos; são as vozes doces e suaves
dos serafins, mais delicadas do que as brisas da manhã, quando elas brincam
na folhagem dos seus grandes arvoredos. Quantas delícias, esses pelas quais
vocês caminham! As línguas desse mundo não poderão definir essa felicidade
e o quanto ela entrará por todos os poros, o quanto é viva e refrescante a
fonte da qual bebemos enquanto oramos! Doces vozes, inebriantes perfumes
que a alma escuta e saboreia quando se lança nessas esferas desconhecidas e
habitadas pela prece! Livres dos desejos carnais, todas as aspirações são
divinas. Então, vocês também, orem como Cristo levando sua cruz do Gólgota,
rumo ao Calvário; carreguem a sua cruz e vocês sentirão as doces emoções
que passavam na sua alma, conquanto carregada de uma madeira infame; ele
ia morrer, mas para viver a vida celeste na morada de seu Pai.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1861)
340 – Allan Kardec

CAPÍTULO XXVIII

COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS

Preâmbulo

1. Os Espíritos sempre disseram: “A forma não é nada, o pensamento é tudo.


Que cada um ore segundo suas convicções e do modo que o sensibilize mais;
um bom pensamento vale mais do que numerosas palavras que não tenham
nada a ver com o coração.”
Os Espíritos não prescrevem nenhuma fórmula absoluta de preces;
quando eles recitam uma oração, é apenas para fixar as ideias e, sobretudo,
para chamar a atenção sobre certos princípios da doutrina espírita, e isso é
também com o objetivo de ajudar as pessoas que têm dificuldades para
externar suas ideias, pois algumas dessas pessoas não acreditariam ter
realmente orado se seus pensamentos não seguissem uma fórmula.44
A coletânea de preces contida neste capítulo foi escolhida com algumas
das preces que foram ditadas pelos Espíritos em diferentes circunstâncias.
Eles poderiam ter ditado outras, e com outras palavras, apropriadas a certas
ideias ou a casos especiais; mas pouco importa a forma, já que o pensamento
fundamental é o mesmo. O objetivo da prece é elevar nossa alma a Deus; a
diversidade das fórmulas não deve estabelecer nenhuma diferença entre os
que nele creem, nem ainda menos entre os adeptos do Espiritismo, porque
Deus aceita todas as orações — desde que sejam sinceras.
Portanto, não se deve considerar esta coletânea como um formulário

44A literatura religiosa tradicional estabelece que determinados rituais sacramentais, para que tenham
validade, devam ser realizados mediante certas prescrições especiais, por exemplo, o recital
padronizado de palavras, como que uma fórmula mágica cujo poder estaria contido exatamente no
cumprimento cerimonial. O Espiritismo, por sua vez, vem demonstrar a infantilidade dessas concepções
primitivas, ressaltando que o poder da oração está na verdadeira intenção de quem ora. — N. T.
341 – O Evangelho segundo o Espiritismo

absoluto, mas apenas como uma variedade entre as instruções que os


Espíritos oferecem. É uma aplicação dos princípios da moral evangélica
desenvolvidos neste livro, um complemento aos seus ditados sobre os
deveres para com Deus e com o próximo, em que são lembrados todos os
princípios da doutrina.
O Espiritismo reconhece como boas as preces de todos os cultos, quando
elas são ditas pelo coração, e não pelos lábios; ele não impõe nem reprova
nenhuma delas. Deus, segundo o Espiritismo, é grande demais para rejeitar a
voz que a ele implora ou canta louvores, só porque a prece é feita de um jeito
mais do que de outro. Aquele que lançasse o anátema contra as preces que
não estejam no seu formulário provaria que desconhece a grandeza de
Deus. Crer que Deus se atenha a uma fórmula é lhe atribuir a pequenez e as
paixões humanas.
Uma condição essencial da prece, segundo Paulo (cap. XXVII, item 16), é
que ela seja inteligível, a fim de que ela possa falar à nossa inteligência; para
isso, não basta que a prece seja dita numa língua compreendida por aquele
que ora, pois há preces na língua comum que não dizem à mente muito mais
do que se fossem ditas numa língua estrangeira, e que, por isso mesmo, não
chegam ao coração; as raras ideias que essas preces contêm quase sempre
ficam sufocadas pela superabundância das palavras e pelo misticismo da
linguagem.
A principal qualidade da prece é a de ser clara, simples e concisa, sem
fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que não são mais do que meros
enfeites; cada palavra deve ter o seu significado, despertar uma ideia, mover
uma fibra: em resumo, cada palavra deve provocar uma reflexão. Somente
sob essa condição a prece pode alcançar o seu objetivo; de outro modo, ela
não passa de ruído. Então, vejam com que ar de distração e com que
volubilidade elas são ditas na maior parte do tempo; vemos os lábios se
movendo, mas pela expressão da fisionomia e até pelo som da voz, nós
reconhecemos um ato mecânico, puramente exterior, ao qual a alma
permanece indiferente.
As preces selecionadas nesta coletânea estão divididas em cinco
categorias: 1ª) Preces gerais; 2ª) Preces para si mesmo; 3ª) Preces pelos
342 – Allan Kardec

vivos; 4ª) Preces pelos mortos; 5ª) Preces especiais pelos enfermos e pelos
obsidiados.
Com o propósito de chamar a atenção mais particularmente para o
objeto de cada prece, e de tornar mais compreensível o seu significado, todas
elas estão precedidas de uma instrução preliminar, uma espécie de exposição
de motivos, sob o título de prefácio.

I – PRECES GERAIS
Oração dominical
2. PREFÁCIO. Os Espíritos recomendaram que a Oração dominical fosse colocada no
início desta coletânea, não somente como prece, mas também como um símbolo. De
todas as preces, ela é a que eles colocam em primeiro lugar — seja porque ela vem do
próprio Jesus (São Mateus, 6: 9 a 13), seja porque ela pode suprir todas as outras,
conforme o pensamento relacionado a ela. Este é o modelo mais perfeito de concisão,
verdadeira obra-prima de sublimidade na simplicidade. Com efeito, sob a forma mais
singela, ela resume todos os deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e
para com o próximo; ela contém uma profissão de fé, um ato de adoração e de
submissão; o pedido das coisas necessárias à vida e o princípio da caridade. Dizê-la na
intenção de uma pessoa é pedir para ela o que se pediria para si mesmo.
Entretanto, até em razão da sua brevidade, o sentido profundo contido nas
poucas palavras de que ela se compõe não é percebido pela maioria das pessoas; é por
isso que geralmente ela é dita sem dirigir os pensamentos para as aplicações de cada
uma de suas partes; ela é recitada como uma fórmula cuja eficácia é proporcional ao
número de vezes que seja repetida, e quase sempre esse número é um daqueles
cabalísticos: três, sete, ou nove, tirados da antiga crença supersticiosa no valor dos
números usados nas operações da magia.
Para suprir o vazio que a conclusão dessa prece deixa no pensamento, após o
conselho e com a assistência dos Espíritos, foi acrescentado a cada proposição um
comentário que explica o seu significado e mostra as suas aplicações. Conforme as
circunstâncias e o tempo disponível, podemos então dizer a Oração dominical simples
ou na forma aqui desenvolvida.

3. PRECE. — I. Pai nosso, que está no céu, santificado seja o teu nome!
Nós cremos em ti, Senhor, porque tudo revela o teu poder e a tua
343 – O Evangelho segundo o Espiritismo

bondade. A harmonia do Universo testemunha uma sabedoria, uma prudência


e uma previdência que ultrapassam todas as faculdades humanas. O nome de
um ser soberanamente grande e sábio está inscrito em todas as obras da
criação, desde um ramo de planta e o menor inseto até os astros que se
movem no Espaço; por toda parte nós vemos a prova de um zelo paternal.
Porquanto, cego é aquele que não te reconhece nas tuas obras, orgulhoso é
aquele que não te glorifica e ingrato é aquele que não te rende graças.

II. Venha a nós o teu reino!


Senhor, que deu aos homens leis repletas de sabedoria e que lhes dariam
a felicidade se eles as obedecessem. Com essas leis, eles fariam reinar entre si
a paz e a justiça; eles se ajudariam mutuamente em vez de se maltratarem,
como eles fazem; o forte sustentaria o fraco, em vez de o esmagar; eles
evitariam os males que geram os abusos e os excessos de todos os tipos.
Todas as misérias deste mundo vêm da violação de tuas leis, pois não há uma
única infração que não tenha suas consequências fatais.
Ao bruto, o Senhor deu o instinto que traça para ele o limite do
necessário, e ele com isso se conforma instintivamente; mas ao homem, além
desse instinto, o Senhor deu a inteligência e a razão; deu também a liberdade
de observar ou infringir aquelas das tuas leis que lhe concerne pessoalmente,
quer dizer, a liberdade para ele escolher entre o bem e o mal, a fim de que
tenha o mérito e a responsabilidade das suas ações.
Ninguém pode alegar ignorância das tuas leis, pois, na tua providência
paternal, o Senhor quis que elas fossem gravadas na consciência de cada um,
sem distinção de cultos nem de nacionalidade. Então, aqueles que violam
essas leis, violam porque te menosprezam.
Virá o dia em que, segundo a tua promessa, todos praticarão essas leis;
com isso, a incredulidade terá desaparecido, todos te reconhecerão como o
soberano Mestre de todas as coisas e o reino de tuas leis será o teu reino na
Terra.
Digna-te, Senhor, de apressar o advento do teu reino, dando aos homens
a luz necessária para os conduzir ao caminho da verdade.
344 – Allan Kardec

III. Seja feita a tua vontade, assim na Terra como no céu.


Se a submissão é um dever do filho com relação ao pai, do inferior para
com o superior, quão maior deve ser a submissão da criatura com relação ao
seu Criador! Fazer a tua vontade, Senhor, é cumprir as tuas leis e se submeter
sem murmúrios aos teus decretos divinos; o homem realizará essa submissão
toda vez que compreender que o Senhor é a fonte de toda a sabedoria, e que
sem ti o homem não pode fazer nada; então ele fará a tua vontade, na Terra,
como os eleitos fazem no céu.

IV. Conceda-nos o pão nosso de cada dia.


Conceda-nos o alimento para a sustentação das forças do corpo; dê-nos
também o alimento espiritual para o desenvolvimento do nosso Espírito.
O animal acha o seu pasto, mas o homem deve sua nutrição à sua própria
atividade e aos recursos da sua inteligência, porque o Senhor o criou livre.
O Senhor disse ao homem: “Colha o alimento da terra com o suor do teu
rosto”, e com isso, fez do trabalho uma obrigação para ele, a fim de que ele
exercitasse sua inteligência na procura dos meios de prover as suas
necessidades e seu bem-estar — uns pelo trabalho material, outros pelo
trabalho intelectual. Sem o trabalho, o homem ficaria estacionário e não
poderia aspirar à felicidade dos Espíritos superiores.
O Senhor ajuda o homem de boa vontade que confia em ti para o
necessário, mas ajuda não aquele que se compraz na ociosidade e que
desejaria obter tudo sem esforço, nem ajuda aquele que busca o supérfluo.
(Cap. XXV.)
Quantos deles sucumbem pela sua própria culpa, pela sua incúria, pela
sua imprevidência ou pela sua ambição, e por não terem querido se contentar
com o que o Senhor lhes havia concedido! Esses são os artífices do próprio
infortúnio e não têm o direito de se queixar, pois estão sendo punidos pelo
que pecaram. Mas nem mesmo a esses o Senhor abandona, por ser
infinitamente misericordioso; estende a eles uma mão de socorro desde que,
como o filho pródigo, eles voltem sinceramente para ti. (Cap. V, item 4.)
Antes de reclamarmos da nossa sorte, devemos nos perguntar se ela não
é obra nossa; a cada infortúnio que nos chegue, perguntemos se não teria
345 – O Evangelho segundo o Espiritismo

dependido de nós evitá-la; mas dizendo também que Deus nos deu a
inteligência para nos tirar do pântano, e que depende de nós fazer uso dela.
Já que a lei do trabalho é uma obrigação para o homem na Terra,
conceda-nos a coragem e a força para cumpri-la; dê-nos também a prudência,
a previdência e a moderação, a fim de não perdermos o fruto dessa lei.
Então, dê-nos, Senhor, nosso pão de cada dia, isto é, os meios de
adquirirmos pelo trabalho as coisas necessárias para a vida, pois ninguém
tem o direito de pedir o supérfluo.
Se o trabalho for impossível para nós, confiaremos na tua divina
Providência.
Se estiver nos teus desígnios nos experimentar pelas mais duras
privações, apesar dos nossos esforços, aceitaremos essas provações como
uma justa expiação pelas faltas que tenhamos cometido nesta vida ou numa
vida precedente, pois o Senhor é justo. Sabemos que não há penas imerecidas,
e que o Senhor jamais castiga sem uma causa.
Preserva-nos, ó meu Deus, de pensar em invejar aqueles que possuem o
que nós não temos, nem mesmo daqueles que têm o supérfluo enquanto nós
não temos sequer o necessário. Perdoa-lhes se eles esquecem a lei de caridade
e de amor ao próximo que o Senhor lhes ensinou. (Cap. XVI, item 8.)
Afasta também da nossa mente a ideia de negar a tua justiça enquanto
vemos a prosperidade do mau e a desgraça que às vezes recai sobre o homem
de bem. Sabemos agora — graças às novas luzes que o Senhor teve a bondade
de nos conceder — que a tua justiça sempre se realiza e não falta a ninguém;
que a prosperidade material do mau é efêmera como a sua existência corporal
e que terá terríveis consequências, ao passo que a alegria reservada àquele
que sofre com resignação será eterna. (Cap. V, itens 7, 9, 12, 18.)

V. Perdoe nossas dívidas assim como nós perdoamos aqueles que nos
devem. Perdoe nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos
têm ofendido.
Cada uma de nossas infrações às tuas leis, Senhor, é uma ofensa contra ti
e uma dívida contraída que cedo ou tarde precisaremos quitar. Nós pedimos à
tua infinita misericórdia a remissão dessa dívida, sob a promessa de fazermos
346 – Allan Kardec

nossos esforços para não contrair novas dívidas.


O Senhor fez da caridade uma lei expressa para nós, mas a caridade não
consiste apenas em assistir o próximo nas suas necessidades; ela também está
no esquecimento e no perdão das ofensas. Com que direito reivindicaríamos a
tua indulgência se nós mesmos não a temos em relação àqueles de quem nos
queixamos?
Dê-nos, ó meu Deus, a força para sufocar em nossa alma todo
ressentimento, todo ódio e todo rancor; faça com que a morte não nos
surpreenda com um desejo de vingança no coração. Se te agradar nos tirar
hoje mesmo deste mundo, faça com que possamos nos apresentar a ti livres
de toda raiva, a exemplo do Cristo, cujas derradeiras palavras foram pelos
seus carrascos. (Cap. X.)
As perseguições que os ímpios nos afligem fazem parte das nossas
provas terrenas; devemos aceitá-las sem reclamar, como todas as outras
provas, e não maldizer daqueles que, por suas maldades, nos abrem o
caminho da felicidade eterna, pois o Senhor nos disse, pela boca de Jesus:
“Bem-aventurados os que sofrem pela justiça!” Portanto, abençoemos a mão
que nos fere e nos humilha, visto que os açoites do corpo fortalecem a nossa
alma, e então seremos elevados por nossa humildade. (Cap. XII, item 4.)
Bendito seja teu nome, Senhor, por nos teres ensinado que nossa sorte
não está irrevogavelmente fixada depois da morte; que encontraremos em
outras existências os meios de resgatar e de reparar nossas faltas passadas,
de cumprir numa nova vida o que não podemos fazer nesta, para o nosso
adiantamento. (Cap. IV; cap. V, item 5.)
Assim se explicam, enfim, todas as aparentes anomalias da vida; é a luz
projetada sobre o nosso passado e o nosso futuro, sinal evidente da tua
soberana justiça e da tua infinita bondade.
VI. Não nos deixe entregues à tentação, mas livra-nos do mal.45
Dê-nos, Senhor, a força de resistir às sugestões dos maus Espíritos que
45 Algumas traduções trazem: Não nos induza à tentação (et ne nos inducas in tentationem); essa
expressão daria a entender que a tentação vem de Deus, que ele voluntariamente levasse os homens ao
mal — pensamento blasfematório que assemelharia Deus a Satanás, e que não pode ter sido ideia de
Jesus, mas que é, aliás, conforme a doutrina vulgar a respeito do papel dos demônios. (Veja em O Céu e o
Inferno, cap. X, Demônios).
347 – O Evangelho segundo o Espiritismo

tentem nos desviar da estrada do bem ao nos inspirar maus pensamentos.


Nós mesmos, porém, somos Espíritos imperfeitos, encarnados nesta
Terra para expiar e nos melhorar. A causa primeira do mal está em nós, e os
maus Espíritos não fazem mais do que aproveitar nossas tendências viciosas,
nas quais eles nos entretêm para nos tentar.
Cada imperfeição é uma porta aberta à influência deles, no mesmo
instante em que eles são impotentes e renunciam a toda tentativa contra os
seres perfeitos. Tudo o que poderíamos fazer para afastá-los seria inútil se
não lhes opusermos uma vontade inabalável no bem e uma renúncia absoluta
ao mal. Portanto, é contra nós mesmos que precisamos dirigir os nossos
esforços, e então os maus Espíritos se afastarão naturalmente, porque é o mal
que os atrai, enquanto o bem os repousa. (Veja adiante: Preces pelos
obsidiados.)
Senhor, sustenta-nos na nossa fraqueza; inspira-nos, pela voz dos nossos
anjos guardiões e pelos bons Espíritos, a vontade de nos corrigirmos de
nossas imperfeições, a fim de fecharmos aos Espíritos impuros o acesso à
nossa alma. (Veja-se adiante o item 11.)
O mal não é obra tua, Senhor, pois a fonte de todo bem não pode gerar
nada de mau; somos nós mesmos que criamos o mal ao infringirmos as tuas
leis e pelo mau uso que fazemos da liberdade que o Senhor nos concedei.
Quando os homens observarem tuas leis, o mal desaparecerá da Terra, como
já desapareceu dos mundos mais avançados.
O mal não é uma necessidade fatal para ninguém e ele só parece
irresistível para quem se entrega a ele com complacência. Se nós temos a
vontade de fazê-lo, também podemos ter a de fazer o bem; eis por que, ó meu
Deus, pedimos a tua assistência e a dos bons Espíritos, para resistirmos à
tentação.

VII. Assim seja.


Que seja do teu agrado, Senhor, que os nossos desejos se realizem! Mas
nós nos inclinamos diante da tua sabedoria infinita. A respeito de todas as
coisas que nós não podemos compreender, que seja feito conforme a tua santa
vontade, e não conforme a nossa, pois o Senhor não quer nada além do nosso
348 – Allan Kardec

bem e sabe melhor do que nós aquilo que nos convém.


Nós te dirigimos esta prece, ó Deus nosso, por nós mesmos e por todas
as almas sofredoras, encarnadas ou desencarnadas, pelos nossos amigos e
inimigos, por todos os que clamam nossa assistência e, em particular, por...
[nome da pessoa a ser favorecida].
Para todos nós suplicamos a tua misericórdia e a tua bênção.
Observação – Podemos formular aqui aquilo pelo que agradecemos a Deus e o
que pedimos, para si mesmo ou por outra pessoa. (Veja adiante as preces dos itens 26
e 27.)

Reuniões espíritas
4. Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome,
ali estou eu no meio deles. (São Mateus, 18: 20)

5. PREFÁCIO. Estar reunido em nome de Jesus não quer dizer que seja suficiente estar
reunido materialmente, mas que é preciso estar reunido espiritualmente, pela
comunhão de intenção e de pensamentos para o bem. Sendo assim, Jesus se faz
presente na assembleia — ele mesmo ou os Espíritos puros que o representam. O
Espiritismo nos faz compreender como os Espíritos podem estar entre nós; eles se
apresentam com o seu corpo fluídico, ou espiritual,46 e com a aparência que nos
permitiria reconhecê-los, se eles se tornassem visíveis. Quanto mais eles forem
elevados na hierarquia espiritual maior é o poder de irradiação deles; é assim que eles
possuem o dom da ubiquidade e que podem ser encontrados em vários lugares
simultaneamente: para isso, basta um raio de seu pensamento.
Por essas palavras, Jesus quis mostrar o efeito da união e da fraternidade; o que
o atrai não é o maior ou menor número, porque em vez de duas ou três pessoas ele
poderia ter dito dez ou vinte: o que atrai a presença de Jesus é o sentimento de
caridade de um para com os outros que motive a todos. Ora, para isso, basta que ali
haja duas pessoas; porém, se essas duas pessoas oram cada uma por seu lado, embora
elas se dirijam a Jesus, não há entre elas uma comunhão de pensamentos, sobretudo
se não forem motivadas por um sentimento de benevolência mútua; caso elas se
olhem com má intenção, com ódio, inveja ou ciúme, até as correntes fluídicas de seus
pensamentos se rejeitam, ao invés de se unirem num impulso comum de simpatia, e
então elas não estarão reunidas em nome de Jesus; assim, Jesus não passa de um
46 Também conhecido na literatura espírita como Perispírito. — N. T.
349 – O Evangelho segundo o Espiritismo

pretexto para a reunião, e não o seu motivo verdadeiro. (Cap. XXVII, item 9.)
Isto não significa que ele seja surdo à voz de uma única pessoa; se ele não disse
“Eu irei a qualquer um que me chamar”, é porque ele exige antes de tudo o amor ao
próximo — do qual podemos dar mais provas quando estamos entre muitos do que
no isolamento — e porque todo sentimento pessoal o afasta. Daí segue que, se numa
assembleia numerosa, somente duas ou três pessoas se unem de coração pelo
sentimento de uma verdadeira caridade, enquanto as outras se isolam e se
concentram em pensamentos egoísticos ou mundanos, Jesus estará com aquelas duas
pessoas e não com as outras. Logo, não é a simultaneidade das palavras, dos cânticos
ou dos atos exteriores que constitui a reunião em nome de Jesus, mas a comunhão de
pensamentos concordantes com o espírito de caridade personificado em Jesus. (Cap.
X, itens 7 e 8; cap. XXVII, itens 2, 3, 4.)
Tal deve ser o caráter das reuniões espíritas sérias, daquelas em que
sinceramente se deseja o auxílio dos bons Espíritos.

6. PRECE. (Para o começo da reunião.) — Nós suplicamos ao Senhor Deus


Todo-Poderoso que nos envie bons Espíritos para nos auxiliar, afastar aqueles
que poderiam nos induzir ao erro e nos conceder a luz necessária para
distinguirmos a verdade da impostura.
Afastem também os Espíritos malfazejos, encarnados ou desencarnados,
que tentassem lançar a desunião entre nós e nos desviar da caridade e do
amor ao próximo. Se alguns deles procurarem se introduzir aqui, façam com
que eles não encontrem acesso no coração de nenhum de nós.
Bons Espíritos que se dignam vir nos instruir, tornem-nos dóceis aos
seus conselhos; afastem de nós todo pensamento de egoísmo, de orgulho, de
inveja e de ciúme; inspirem-nos a indulgência e a benevolência para com os
nossos semelhantes presentes ou ausentes, amigos ou inimigos; enfim, façam
com que, pelos sentimentos que nos animam, possamos reconhecer sua
influência salutar.
Deem aos médiuns que vocês encarregaram de nos transmitir seus
ensinamentos a consciência da santidade do mandato que lhes é confiado e da
gravidade do ato que eles vão realizar, a fim de que o façam com o fervor e o
recolhimento necessários.
Se nessa assembleia se encontrarem pessoas que tenham vindo atraídas
por outros sentimentos que não os do bem, abram os olhos delas para a luz e
350 – Allan Kardec

perdoem-nas, como nós as perdoamos, se elas tiverem vindo com intenções


malévolas.
Pedimos especialmente ao Espírito de... [nome do Espírito], nosso guia
espiritual, que nos oriente e que vele por nós.

7. (Para o fim da reunião.) — Nós agradecemos aos bons Espíritos que vieram
de boa vontade se comunicar conosco; rogamos que nos ajudem a pôr em
prática as instruções que nos deram, para fazer que cada um de nós, ao sair
daqui, sinta-se fortalecido na prática do bem e do amor ao próximo.
Desejamos igualmente que essas instruções sejam proveitosas aos
Espíritos sofredores, ignorantes ou viciosos que puderam assistir a esta
reunião e para os quais nós imploramos a misericórdia de Deus.

Para os médiuns

8. Nos últimos tempos, diz o Senhor, eu derramarei do meu Espírito sobre


toda carne; seus filhos e filhas profetizarão; seus jovens terão visões e seus
idosos terão sonhos. Nesses dias, eu derramarei do meu Espírito sobre os
meus servos e minhas servas, e eles profetizarão. (Atos, 2: 17 e 18)

9. PREFÁCIO. O Senhor quis que a luz se fizesse para todos os homens e que a voz dos
Espíritos penetrasse em toda parte, a fim de que cada um pudesse adquirir a prova da
imortalidade. É com essa finalidade que os Espíritos se manifestam hoje em todos os
pontos da Terra, e a mediunidade que se revela — nas pessoas de todas as idades e de
todas as condições, homens e mulheres, crianças e idosos — é um dos sinais do
cumprimento dos tempos preditos.
Para conhecer as coisas do mundo visível e descobrir os segredos da natureza
material, Deus deu ao homem a vista do corpo, os sentidos e os instrumentos
especiais; com o telescópio ele mergulha seus olhares nas profundezas do espaço e,
com o microscópio, descobriu o mundo dos infinitamente pequenos. Para penetrar no
mundo invisível, Deus lhe deu a mediunidade.
Os médiuns são os intérpretes encarregados de transmitir aos homens os
ensinamentos dos Espíritos; ou, melhor, os médiuns são os órgãos materiais pelos
quais os Espíritos se expressam para se tornarem inteligíveis aos homens. A
missão deles é santa, pois tem como objetivo abrir os horizontes da vida eterna.
351 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Os Espíritos vêm instruir o homem sobre seus destinos futuros, para o


reconduzirem ao caminho do bem, e não para o pouparem do trabalho material que
ele deve cumprir neste mundo rumo ao seu avanço, nem para favorecerem a ambição
e a cupidez humana. Eis do que os médiuns devem se compenetrar bem, para não
fazerem mau uso de sua faculdade. Aquele que compreende a seriedade do mandato
do qual o médium está investido, o cumpre religiosamente; sua consciência lhe
censuraria, como um ato sacrílego, se ele fizesse um divertimento ou uma distração,
para si ou para os outros, de uma faculdade dada para um propósito também sério e
que o põem em contato com os seres de além-túmulo.
Como intérpretes do ensinamento dos Espíritos, os médiuns devem
desempenhar um papel importante na transformação moral que se opera; os serviços
que eles podem prestar são proporcionais à boa direção que eles dão às suas
faculdades, porque aqueles que estão num mau caminho são mais prejudiciais do que
úteis à causa do Espiritismo; pelas más impressões que produzem, eles acabam
retardando mais de uma conversão. Eis por que eles terão de prestar contas do uso
que tiverem feito de uma capacidade que lhes foi dada para o bem de seus
semelhantes.
O médium que quiser conservar a assistência dos bons Espíritos deve trabalhar
pela sua própria melhoria; aquele que desejar ver sua faculdade crescer e se
desenvolver deve se engrandecer moralmente e de se abster de tudo o que tenda a
desviá-la da sua finalidade providencial.
Se os bons Espíritos às vezes se servem de instrumentos imperfeitos é para dar
bons conselhos e tratar de reconduzi-los ao bem; mas quando eles encontram
corações endurecidos e quando seus conselhos não são seguidos, eles se retiram, e os
maus Espíritos ficam com o campo livre. (Cap. XXIV, itens 11 e 12.)
A experiência prova que, entre aqueles médiuns que não aproveitam os
conselhos dos bons Espíritos, as comunicações, depois de terem revelado algum
brilho durante um determinado tempo, degeneram pouco a pouco e acabam caindo no
erro, na verborragia ou no ridículo — sinal incontestável do afastamento dos bons
Espíritos.
Obter a assistência dos bons Espíritos, afastar os Espíritos levianos e
mentirosos: este deve ser o objetivo dos esforços constantes de todos os médiuns
sérios; sem isso a mediunidade se torna uma faculdade estéril, que pode até se tornar
prejudicial para aquele que a possui, pois ela pode degenerar em uma obsessão
perigosa.
O médium que compreende o seu dever, ao invés de se orgulhar de uma
352 – Allan Kardec

faculdade que não lhe pertence, já que ela pode ser retirada dele, atribui a Deus as
boas coisas que obtém. Se as suas comunicações merecem elogios, ele não se
envaidece com isso, porque ele sabe que elas independem do seu valor pessoal, e
então ele agradece a Deus por ter permitido que os bons Espíritos viessem se
manifestar através dele. Se as comunicações derem motivo à crítica, o médium não se
ofenderá com isso, porque elas não são obra do seu próprio Espírito; ele dirá a si
mesmo que não foi um bom instrumento e que ele não possui todas as qualidades
necessárias para se opor à intromissão dos maus Espíritos. É por isso que ele procura
adquirir essas qualidades, pedindo, através da prece, a força que lhe falta.

10. PRECE. — Deus Todo-Poderoso, permita aos bons Espíritos me auxiliarem


na comunicação que eu solicito. Preserve-me da presunção de me achar a
salvo dos maus Espíritos; preserve-me do orgulho que poderia me iludir
sobre o valor daquilo que eu obtenha; preserve-me de todo sentimento
contrário à caridade com relação aos outros médiuns. Se eu for induzido ao
erro, inspire alguém a ideia de me advertir disso, e a mim, inspire a humildade
que me faça aceitar a crítica com reconhecimento, e que eu tome como sendo
para mim mesmo, e não para os outros, os conselhos que os bons Espíritos
quiseram me ditar.
Se eu for tentado a abusar, no que quer que seja, ou a me envaidecer da
faculdade que o Senhor bem quis me conceder, eu te imploro que a retire de
mim antes de me permitir que ela seja desviada da sua finalidade
providencial, que é o bem de todos e o meu próprio avanço moral.

II – PRECES PARA SI MESMO

Aos anjos guardiões e aos Espíritos protetores


11. PREFÁCIO. Todos nós temos um bom Espírito que fica ligado a nós desde o
nascimento e que nos tomou sob a sua proteção. Ele desempenha junto a nós a missão
de um pai junto ao seu filho: a missão de nos conduzir pela estrada do bem e do
progresso, através das provações da vida. Ele fica feliz quando nós correspondemos à
sua solicitude e lamenta quando nos vê sucumbir.
Seu nome pouco importa, pois pode não ser um nome conhecido na Terra;
então, nós o invocamos como o nosso anjo guardião, nosso bom gênio; podemos até
353 – O Evangelho segundo o Espiritismo

invocá-lo sob o nome de um Espírito superior qualquer pelo qual nós sentimos uma
simpatia mais particularmente.
Além do nosso anjo guardião, que é sempre um Espírito superior, nós temos
Espíritos protetores que, por serem menos elevados, nem por isso deixam de ser bons
e benevolentes; são eles: os parentes, os amigos ou algumas vezes pessoas que não
conhecemos na nossa existência atual. Eles nos assistem com seus conselhos e muitas
vezes com suas intervenções nos atos da nossa vida.
Os Espíritos simpáticos são aqueles que se ligam a nós por uma certa
semelhança de gostos e de tendências; eles podem ser bons ou maus, de acordo com a
natureza das inclinações que os atraem até nós.
Os Espíritos sedutores se esforçam para nos desviar do caminho do bem,
sugerindo-nos maus pensamentos. Eles se aproveitam de todas as nossas fraquezas,
como de outras tantas portas abertas que lhes dão acesso à nossa alma. Alguns deles
se agarram a nós como a uma presa, mas eles se afastam quando reconhecem sua
impotência para lutar contra a nossa vontade.
Deus nos deu um guia principal e superior em nosso anjo guardião, e guias
secundários em nossos Espíritos protetores e familiares; mas seria um erro achar que
temos forçosamente um mau gênio posto ao nosso lado para contrabalançar as boas
influências. Os maus Espíritos vêm voluntariamente, quando eles encontram algum
domínio sobre nós — pela nossa fraqueza ou pela nossa negligência em seguirmos as
inspirações dos bons Espíritos. portanto, somos nós que os atraímos. Daí resulta que
nós jamais estamos privados da assistência dos bons Espíritos e que depende de nós o
afastamento dos maus. Por suas imperfeições, sendo o homem a causa primeira das
misérias que o afligem, quase sempre ele é o seu próprio mau gênio. (Cap. V, item 4.)
A prece aos anjos guardiões e aos Espíritos protetores deve ter por finalidade
solicitar a intercessão deles junto a Deus, pedindo-lhes a força para resistir às más
sugestões e a assistência deles nas necessidades da vida.

12. PRECE. — Espíritos sábios e benevolentes, mensageiros de Deus, cuja


missão é a de assistir os homens e conduzi-los pelo bom caminho: sustentem-
me nas provas desta vida; concedam-me a força para suportá-las sem
reclamação; afastem de mim os maus pensamentos e façam com que eu não
dê acesso a nenhum mau Espírito que tentasse me induzir ao mal. Esclareçam
a minha consciência sobre os meus defeitos e tirem dos meus olhos o véu do
orgulho que poderia me impedir de percebê-los e de admiti-los a mim mesmo.
Principalmente a ti... [nome], meu anjo guardião, que vela mais
354 – Allan Kardec

particularmente por mim, e a todos vocês, Espíritos protetores, que se


interessam por mim: façam com que eu me torne digno da sua benevolência.
Vocês conhecem as minhas necessidades; que elas se realizem conforme a
vontade de Deus.

13. (Outra) — Meu Deus, permita que os bons Espíritos que me cercam
venham em meu auxílio quando eu estiver em dificuldade, e que me
sustentem se eu fraquejar. Faça, Senhor, com que eles me inspirem a fé, a
confiança e a caridade; que eles sejam para mim um apoio, uma esperança e
uma prova da tua misericórdia. Faça, enfim, com que eu encontre perto deles
a força que me falta nos desafios da vida e, para resistir às sugestões do mal, a
fé que salva e o amor que consola.

14. (Outra) — Espíritos bem-amados, anjos guardiões, vocês a quem Deus, na


sua infinita misericórdia, permite velarem pelos homens: sejam nossos
protetores nas provações da vida terrestre. Concedam-nos a força, a coragem
e a resignação; inspirem-nos tudo que é bom, retendo-nos da inclinação do
mal; que a sua doce influência penetre nossa alma; faça-nos sentir que um
amigo devotado está aqui, perto de nós, vendo os nossos sentimentos e
participando das nossas alegrias.
E você, meu bom anjo, não me abandone! Eu preciso de toda a tua
proteção para suportar com fé e amor as provas que Deus queira me enviar.

Para afastar os maus Espíritos

15. Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, porque vocês limpam por fora
o copo e o prato, mas que, por dentro, estão cheios de ganância e de
impurezas. Fariseus cegos, limpem primeiramente o interior do copo e do
prato, a fim de que o exterior também esteja limpo. Ai de vocês, escribas e
fariseus hipócritas, que se assemelham a sepulcros caiados, que por fora
parecem belos aos olhos dos homens, mas que, por dentro, estão cheios de
toda espécie de podridão. Assim, exteriormente vocês parecem justos aos
olhos dos homens, mas interiormente vocês estão cheios de hipocrisia e de
iniquidades. (São Mateus, 23: 25 a 28)
355 – O Evangelho segundo o Espiritismo

16. PREFÁCIO. Os maus Espíritos só vão aonde eles podem satisfazer a sua própria
perversidade; para afastá-los, não basta pedir ou até mesmo lhes mandar embora: é
preciso que exclui em si mesmo aquilo que os atrai. Os maus Espíritos farejam as
feridas da alma como as moscas farejam as feridas do corpo; do mesmo modo que
você limpa o corpo para evitar a contaminação pelos vermes, você também deve
limpar a alma de suas impurezas para evitar os maus Espíritos. Já que nós vivemos
num mundo onde pululam maus Espíritos, as boas qualidades do coração nem sempre
nos colocam a salvo das tentativas deles, mas elas nos dão a força para resistirmos a
esses maus Espíritos.

17. PRECE. — Em nome de Deus Todo-Poderoso, que os maus Espíritos se


afastem de mim e que os bons me sirvam de proteção contra eles!
Espíritos malvados, que inspiram maus pensamentos aos homens;
Espíritos trapaceiros e mentirosos que os enganam; Espíritos zombeteiros
que brincam com a fé alheia, eu os repulso com todas as forças de minha alma
e fecho os ouvidos às suas sugestões, mas peço para vocês a misericórdia de
Deus.
Bons Espíritos, que se dignam de me assistir, concedam-me a força para
resistir à influência dos maus Espíritos e as luzes necessárias para eu não ser
iludido por suas trapaças. Preservem-me do orgulho e da presunção; afastem
do meu coração o ciúme, o ódio, a malevolência e todo sentimento contrário à
caridade, que são outras tantas portas abertas ao Espírito do mal.

Pedir para se corrigir de um defeito


18. PREFÁCIO. Nossos maus instintos são o resultado da imperfeição do nosso próprio
Espírito, e não do nosso organismo físico; de outro modo, o homem escaparia de toda
espécie de responsabilidade. Nosso melhoramento depende de nós, pois todo homem
que tem o gozo das suas faculdades tem, para todas as coisas, a liberdade de fazer ou
de não fazer; para praticar o bem, não lhe falta mais do que vontade. (Cap. XV, item
10; cap. XIX, item 12.)

19. PRECE. — Recebi de ti, ó meu Deus, a inteligência necessária para


distinguir o que é bom e o que é mau. Ora, desde quando eu reconheço que
uma coisa é má, torno-me culpado se não me esforçar para resisti-la.
356 – Allan Kardec

Preserve-me do orgulho que poderia me impedir de perceber os meus


defeitos, e dos maus Espíritos que poderiam me incitar a segui-los.
Entre as minhas imperfeições, reconheço que eu sou particularmente
inclinado a...; e se eu não resisto a essa arrastamento, é devido ao hábito que
já adquiri de ceder a esta imperfeição.
O Senhor, por ser justo, não me criou culpado, mas com uma igual
aptidão para o bem e para o mal; se eu segui o mau caminho, foi por efeito do
meu livre-arbítrio. Contudo, pela mesma razão que eu tive a liberdade de
fazer o mal, eu tenho a de fazer o bem e, por conseguinte, a de mudar de
caminho.
Meus defeitos atuais são um resto das imperfeições que eu guardei das
minhas existências anteriores; esse é o meu pecado original, do qual eu posso
me desembaraçar pela minha vontade e com a assistência dos bons Espíritos.
Bons Espíritos que me protegem, e sobretudo o meu anjo da guardião,
concedam-me a força para resistir às más sugestões e para sair vitorioso da
luta.
Os defeitos são as barreiras que nos separam de Deus e cada defeito
superado é um passo dado na estrada do adiantamento que deve me
aproximar dele.
O Senhor, na sua infinita misericórdia, dignou-se de me conceder a
existência atual para que ela servisse ao meu adiantamento. Bons Espíritos,
ajudem-me a aproveitá-la, a fim de que ela não seja uma existência perdida
para mim, e que, quando Deus quiser retirá-la de mim, eu saia dela melhor do
que quando nela entrei. (Cap. V, item 5; cap. XVII, item 3.)

Pedir para resistir a uma tentação


20. PREFÁCIO. Todo mau pensamento pode ter duas fontes: a própria imperfeição da
nossa alma ou uma funesta influência que age sobre ela; neste último caso, isso é
sempre um indício de uma fraqueza que nos torna propícios a receber essa influência
e, consequentemente, um indício de alma imperfeita; de tal maneira que a pessoa que
falir não poderá usar como desculpa a influência de um Espírito estranho, já que esse
Espírito não a teria convencido ao mal se ele achasse que a pessoa fosse incessível
à sedução.
357 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Quando um mau pensamento surge em nós, podemos então imaginar um


Espírito malvado nos chamando para o mal, mas para o qual todos nós somos livres
para ceder ou para resistir, tal como se fosse um chamamento de uma pessoa viva.
Devemos ao mesmo tempo imaginar nosso anjo guardião, ou Espírito protetor, que ao
nosso lado combate em nós a má influência e espera com ansiedade a decisão que
nós vamos tomar. Nossa hesitação em praticar o mal é a voz do bom Espírito que se
faz ouvir pela nossa consciência.
Reconhecemos que um pensamento é mau quando ele se afasta da caridade, que
é a base da verdadeira moral; quando ele tem por princípio o orgulho, a vaidade ou o
egoísmo; quando sua realização pode causar qualquer prejuízo a alguém; quando,
enfim, ele nos induz a fazer aos outros o que não gostaríamos que os outros nos
fizessem. (Cap. XXVIII, item 15; cap. XV, item 10.)

21. PRECE. — Deus Todo-Poderoso, não me deixe cair na tentação de falir que
eu tenho. Espíritos benevolentes que me protegem, afastem de mim esse mau
pensamento e me dê a força para resistir à sugestão do mal. Se eu cair, eu
merecerei expiar a minha falta nesta vida e na outra, porque eu sou livre para
escolher.

Ação de graças pela vitória obtida sobre uma tentação

22. PREFÁCIO. Aquele que resistiu a uma tentação deve isso à assistência dos bons
Espíritos dos quais ele ouviu a voz. Ele deve agradecer a Deus e ao seu anjo guardião.

23. PRECE. — Meu Deus, eu te agradeço por haver permitido sair vitorioso da
luta que acabo de sustentar contra o mal; faça com que essa vitória me dê a
força para resistir a novas tentações.
E a ti, meu anjo guardião, agradeço a tua assistência; que a minha
submissão aos teus conselhos me faça de novo merecedor da tua proteção!

Para pedir um conselho


24. PREFÁCIO. Quando estamos indecisos sobre fazer ou não fazer uma coisa, devemos
antes de tudo propor a nós mesmos as seguintes questões:
1°) Aquilo que eu hesito em fazer pode trazer algum prejuízo a alguém?
358 – Allan Kardec

2°) Pode ser útil a outro alguém?


3°) Se alguém fizesse a mesma comigo eu ficaria satisfeito?
Se essa coisa só interessa a nós mesmos, devemos balancear as vantagens e os
inconvenientes pessoais que daí possam resultar.
Se ela envolve outras pessoas e se, fazendo bem para alguém, ela faz mal para
outra, é preciso igualmente pesar a soma do bem e do mal para nos abster ou agir.
Enfim, mesmo para as melhores coisas, é necessário ainda considerarmos a
oportunidade e as circunstâncias acessórias, porque uma coisa boa em si mesma pode
ter maus resultados em mãos inábeis e se ela não for conduzida com prudência e
critério. Antes de empreendê-la, convém consultar suas forças e os meios de execução.
Em todos os casos, sempre podemos solicitar a assistência dos nossos Espíritos
protetores, lembrando deste sábio provérbio: Na dúvida, abstenha-se. (Cap. XXVIII,
item 38.)

25. PRECE. — Em nome de Deus Todo-Poderoso, bons Espíritos que me


protegem: inspirem-me a melhor resolução a tomar na incerteza em que me
encontro. Dirijam meu pensamento para o bem e desviem a influência
daqueles que tentarem me transviar.

Nas aflições da vida

26. PREFÁCIO. Podemos pedir a Deus favores terrenos e ele pode concedê-los, quando
eles tiverem uma finalidade útil e séria; mas como nós julgamos a utilidade das coisas
conforme o nosso ponto de vista e como a nossa vista está limitada ao presente, nem
sempre nós vemos o lado mau do que desejamos. Deus, que vê melhor do que nós e
que só quer o nosso bem, pode então negar nosso pedido, como um pai nega ao filho
aquilo que lhe poderia ser prejudicial. Se o que pedimos não nos for concedido, não
devemos desanimar por causa disso; devemos, ao contrário, pensar que a privação
daquilo que desejamos nos é imposta como uma prova ou como expiação, e que a
nossa recompensa será proporcional à resignação com a qual tivermos suportado.
(Cap. XXVII, item 6; cap. II, itens 5 a 7.)

27. PRECE. — Deus Todo-Poderoso que vê as nossas misérias, digna-te de


ouvir favoravelmente os desejos que te endereço neste momento. Se o meu
pedido for inconveniente, perdoe-me por isso; se ele for justo e útil aos teus
359 – O Evangelho segundo o Espiritismo

olhos, que os bons Espíritos que executam as tuas vontades venham em meu
auxílio para a sua realização.
O que quer que aconteça, meu Deus, que a tua vontade seja feita. Se meus
desejos não forem atendidos, é que está nos teus desígnios me testar, e eu me
submeto sem queixas. Faça com que eu não desanime por causa disso, e que
nem a minha fé nem a minha resignação sofram qualquer abalo.
(Formular o pedido.)

Ação de graças por um favor obtido

28. PREFÁCIO. Não devemos considerar como acontecimentos felizes somente as


coisas de grande importância; as coisas aparentemente mais insignificantes são com
frequência as que mais influenciam o nosso destino. O homem esquece facilmente o
bem, e se lembram muito mais daquilo que o aflige. Se registrássemos dia após dia os
benefícios que recebemos, mesmo sem os pedirmos, quase sempre ficaríamos
admirados de termos recebido tantos e tantos que se apagaram da nossa memória, e
ficaríamos humilhados com a nossa ingratidão.
A cada noite, ao elevarmos a nossa alma a Deus, devemos recordar em nós
mesmos os favores que ele nos concedeu durante o dia e lhe agradecer por isso. É
principalmente no momento exato em que experimentamos o efeito da sua bondade e
da sua proteção que devemos, por um movimento espontâneo, testemunhar a nossa
gratidão a ele. Para tanto, basta que um pensamento atribua a ele o benefício
recebido, sem que seja necessário interromper o nosso trabalho.
Os benefícios de Deus não consistem somente em coisas materiais; é preciso
agradecê-lo igualmente pelas boas ideias, as inspirações felizes que nos são sugeridas.
Enquanto o egoísta atribui o mérito de tudo a si mesmo e o incrédulo o atribui ao
acaso, aquele que tem fé rende graças a Deus e aos bons Espíritos. Para isso, as longas
frases são inúteis: “Obrigado, meu Deus, pelo bom pensamento que me foi
inspirado” diz mais do que muitas palavras. O impulso espontâneo que nos faz
atribuir a Deus aquilo que nos acontece de bom já prova um hábito de
reconhecimento e de humildade que nos atrai a simpatia dos bons Espíritos. (Cap.
XXVII, itens 7 e 8.)

29. PRECE. — Deus infinitamente bom, que o teu nome seja bendito pelas
bênçãos que me tem concedido; seria indigno de minha parte delas se eu as
360 – Allan Kardec

atribuísse ao acaso dos acontecimentos ou ao meu próprio mérito.


Bons Espíritos, que foram os executores das vontades de Deus, e
especialmente a ti, meu anjo guardião: eu agradeço a vocês. Afastem de mim o
pensamento de me orgulhar dessas bênçãos e de usá-las sem ser para o bem.
Agradeço a vocês principalmente por... [favor obtido]

Ato de submissão e de resignação


30. PREFÁCIO. Quando um motivo de aflição nos atinge, se procurarmos a sua causa,
nós descobriremos frequentemente que é uma consequência da nossa imprudência,
da nossa imprevidência ou de uma ação anterior; nesses casos, não devemos culpar
senão a nós mesmos. Se a causa de uma infelicidade independe totalmente de
qualquer ação nossa, é que ou ele é uma provação para esta vida ou é uma expiação de
uma existência passada, e neste último caso, o tipo da expiação pode nos indicar o tipo
da falta que cometemos, pois nós somos sempre punidos por aquilo que pecamos.
(Cap. V, itens 4, 6 e seguintes.)
Naquilo que nos aflige, geralmente nós só vemos o mal momentâneo e não as
futuras consequências favoráveis que isso possa ter. O bem muitas vezes é a
sequência de um mal passageiro, como a cura de uma doença é o resultado dos meios
doloridos que empregamos para obter tal cura. Em todos os casos, nós devemos nos
submeter à vontade de Deus e suportar com coragem as tribulações da vida, se
quisermos que elas nos sejam levadas em conta e que estas palavras do Cristo sejam
aplicadas a nós: “Bem-aventurados aqueles que sofrem”. (Cap. V, item 18.)

31. PRECE. — Meu Deus, que é soberanamente justo: todo sofrimento neste
mundo há de ter então sua causa e sua utilidade. Eu aceito a causa da aflição
que acabo de experimentar como uma expiação das minhas faltas passadas e
como uma prova para o futuro.
Bons Espíritos que me protegem, deem-me a força para suportá-la sem
murmúrio; façam com que isso me seja uma advertência positiva; que faça
crescer a minha experiência; que combata em mim o orgulho, a ambição, a
tola vaidade e o egoísmo, contribuindo assim para o meu adiantamento.

32. (Outra) — Eu sinto, ó meu Deus, a necessidade de te pedir para que me dê


a força para suportar as provações que o Senhor quis me enviar. Permita que
361 – O Evangelho segundo o Espiritismo

a luz se faça bastante viva em minha mente para que eu aprecie toda a
extensão de um amor que me aflige porque quer me salvar. Submeto-me com
resignação, ó meu Deus. Ah, mas a criatura é tão fraca que, se o Senhor não me
amparar, eu temo sucumbir. Não me abandone, Senhor, pois sem ti eu não
consigo nada.

33. (Outra) — Elevei meu olhar a ti, ó Eterno, e me senti fortalecido. O Senhor
é a minha força, não me abandone! Ó meu Deus, sinto-me esmagado sob o
peso das minhas iniquidades! Ajude-me! O Senhor conhece as fraquezas da
minha carne, não desvie de mim o teu olhar!
Sou devorado por uma sede ardente; faça brotar a fonte da água viva e
eu serei saciado. Que a minha boca não se abra senão para entoar os teus
louvores, e não para me reclamar das aflições da minha vida. Sou fraco,
Senhor, mas o teu amor me sustentará.
Ó Eterno, o único que é grande, o único que é o propósito e a finalidade
da minha vida. Bendito seja o teu nome quando me ferir, pois o Senhor é o
Mestre e eu sou o servo infiel; eu curvarei minha fronte sem me lastimar, pois
só o Senhor é grandioso, só o Senhor é objetivo.

Diante de um perigo iminente


34. PREFÁCIO. Através dos perigos que nós enfrentamos, Deus nos faz lembrarmos da
nossa fraqueza e da fragilidade da nossa existência. Ele nos mostra que a nossa vida
está nas mãos dele e que ela está por um fio, que pode se romper quando menos
estivermos esperando por isso. Nesse sentido, não há privilégio para ninguém, pois
tanto o grande quanto o pequeno estão sujeitos às mesmas alternativas.
Se examinarmos a natureza e as consequências do perigo, veremos que na
maioria das vezes, se tivessem ocorrido, essas consequências teriam sido a punição de
uma falta cometida ou de um dever negligenciado.

35. PRECE. — Deus Todo-Poderoso, e você, meu anjo guardião, ajudem-me! Se


eu devo sucumbir, que a vontade de Deus seja feita. Se eu for salvo, que o
restante da minha vida repare o mal que eu possa ter feito e do qual me
arrependo.
362 – Allan Kardec

Ação de graças por ter escapado de um perigo


36. PREFÁCIO. Por meio do perigo que corremos, Deus nos mostra que de um
momento para outro nós podemos ser chamados a prestar contas do que nós temos
feito da vida; assim, ele nos convida a examinarmos a nós mesmos e nos corrigirmos.

37. PRECE. — Meu Deus e meu anjo guardião, eu lhes agradeço o socorro que
me enviaram diante do perigo que me ameaçou. Que esse perigo seja para
mim uma advertência e que me esclareça sobre as faltas que possam tê-lo
atraído a mim. Eu compreendo, Senhor, que a minha vida está em tuas mãos e
que o Senhor pode tirá-la de mim quando te aprouver. Inspire-me, através
dos bons Espíritos que me assistem, o pensamento de empregar utilmente o
tempo que ainda me concedeu neste mundo.
Meu anjo guardião, ampare-me na resolução que eu tomo de reparar os
meus erros e de fazer todo o bem que esteja ao meu alcance, a fim de chegar
menos carregado de imperfeições no mundo dos Espíritos, quando Deus
quiser me chamar para lá.

Quando for dormir


38. PREFÁCIO. O sono é o repouso do corpo, mas o Espírito não precisa repousar.
Enquanto os sentidos físicos estão entorpecidos, a alma se desprende parcialmente da
matéria e goza de suas faculdades espirituais. O sono foi dado ao homem para a
reparação das forças orgânicas e das forças morais. Enquanto o corpo recupera as
forças que gastou pela atividade da vigília, o Espírito vai se retemperar entre os
outros Espíritos; naquilo que ele vê, no que ouve e nos conselhos que lhe deram, ele
colhe ideias que, ao despertar, lhe surgem em forma de intuição. É o retorno
temporário do exilado à sua verdadeira pátria, é o prisioneiro momentaneamente de
volta à liberdade.
Mas, como ocorre com o presidiário perverso, acontece que o Espírito nem
sempre aproveita esse momento de liberdade para o seu adiantamento; se tiver maus
instintos, em vez de procurar a companhia de bons Espíritos, ele procura a de seus
similares e vai visitar os lugares onde possa dar livre curso às suas inclinações.
Que aquele que esteja compenetrado dessa verdade eleve o seu pensamento no
momento em que sinta o sono se aproximar; que ele peça os conselhos dos bons
Espíritos e de todos aqueles cuja memória lhe seja cara, a fim de que eles venham se
363 – O Evangelho segundo o Espiritismo

juntar a ele nos curtos instantes que lhe são concedidos, e ao acordar ele vai se sentir
mais forte contra o mal, mais corajoso diante da adversidade.

39. PRECE. — Minha alma vai se encontrar por um instante com os outros
Espíritos. Que aqueles que sejam bons venham me ajudar com seus conselhos.
Meu anjo guardião, faça com que no meu despertar eu conserve desse
encontro uma impressão durável e aproveitável.

Prevendo a morte próxima

40. PREFÁCIO. Durante a vida, a fé no futuro e a elevação do pensamento em direção


aos destinos vindouros ajudam no rápido desligamento do Espírito ao enfraquecer os
laços que o retêm ao corpo; muitas vezes, a vida corporal ainda nem se extinguiu e a
alma, impaciente, já levantou voo rumo à imensidade. De maneira contrária, no
homem que concentra todos os seus pensamentos nas coisas materiais, esses laços
são mais tenazes, a separação é difícil e dolorosa, e o despertar no além-túmulo é
cheio de perturbação e ansiedade.

41. PRECE. — Meu Deus, eu creio em ti e na tua bondade infinita; eis por que
não posso crer que o Senhor tenha dado ao homem a inteligência para te
conhecer e nem a aspiração pelo futuro para mergulhá-la no nada.
Acredito que o meu corpo é apenas o envoltório perecível da minha alma
e que, quando eu tiver deixado de viver, acordarei no mundo dos Espíritos.
Deus Todo-Poderoso, eu sinto se romperem os laços que unem minha
alma ao meu corpo, e logo vou ter que prestar contas da utilização da vida que
vou deixar.
Vou sofrer as consequências do bem e do mal que fiz; lá, não há mais
ilusões nem subterfúgios possíveis: todo o meu passado vai se desenrolar
diante de mim e eu serei julgado segundo as minhas obras.
Nada levarei dos bens terrenos; honras, riquezas, satisfações da vaidade
e do orgulho, enfim tudo que diz respeito ao corpo vai ficar neste mundo; nem
a mínima parcela me acompanhará, e nada disso tudo será de utilidade
alguma para mim no mundo dos Espíritos. Levarei comigo somente o que diz
respeito à alma, isto é, as boas e as más qualidades, que serão pesadas na
364 – Allan Kardec

balança de uma rigorosa justiça, e eu serei julgado com tanto maior


severidade quanto mais a minha posição na Terra me tenha oferecido
oportunidade de fazer o bem que eu não fiz. (Cap. XVI, item 9.)
Deus de misericórdia, que o meu arrependimento chegue a ti! Digna-te
de estender a mim a tua indulgência.
Se te agradar prolongar a minha existência, que o restante dela seja
empregado, tanto que eu puder, para reparar o mal que eu tenha feito. Se a
minha hora tiver chegado, sem volta, eu levo o pensamento consolador de que
me será permitido redimir-me por meio de novas provas, a fim de merecer
um dia a felicidade dos eleitos.
Se não me for permitido gozar imediatamente dessa felicidade pura
compartilhada só pelos justos por excelência, eu sei que a minha esperança
não está perdida para sempre e que, com trabalho, alcançarei a meta, mais
cedo ou mais tarde, conforme os meus esforços.
Eu sei que os bons Espíritos e o meu anjo guardião estão lá, a meu favor,
para me receberem; em pouco tempo eu os verei, como eles me veem. Sei que
reencontrarei aqueles a quem amei na Terra, se eu tiver merecido, e que
aqueles que eu deixar aqui virão se juntar a mim, e que um dia estaremos
todos reunidos para sempre e que, enquanto isso, eu poderei vir visitá-los.
Sei também que vou reencontrar aqueles a quem ofendi; então, que eles
possam me perdoar por aquilo de que eles se queixam contra mim: meu
orgulho, minha dureza e minhas injustiças, para que eu não passe vergonha
com a presença deles!
Eu perdoo aqueles que me tem feito ou quiseram me fazer o mal na
Terra; não alimento nenhuma mágoa contra eles e peço a Deus que os perdoe.
Senhor, dê-me a força para deixar sem pesar os prazeres grosseiros
deste mundo, que não significam nada perto das alegrias puras do mundo
onde vou entrar. Lá, para o justo, não há mais tormentos, nem sofrimentos,
nem misérias; só o culpado sofre, embora lhe reste a esperança.
Bons Espíritos, e a ti, meu anjo guardião, não me deixem falhar neste
momento supremo; façam com que brilhe aos meus olhos a luz divina para
reanimar a minha fé, se ela vier a se abalar.
Observação — Veja adiante o item V: Preces pelos doentes e obsidiados.
365 – O Evangelho segundo o Espiritismo

III – PRECES PELOS OUTROS

Por alguém que esteja em aflição


42. PREFÁCIO. Se for do interesse do aflito que a sua prova siga seu curso, ela não será
abreviada a nosso pedido; mas seria um ato de impiedade se nos desencorajássemos
porque o pedido não foi atendido; além disso, pelo fato da prova não ser cessada,
podemos esperar obter alguma outra consolação que lhe suavize o amargor. O que
realmente é útil para aquele que está sofrendo é a coragem e a resignação, sem as
quais aquilo que ele sofre fica sem proveito, porque ele será obrigado a recomeçar a
prova. Então, é para esse fim que se deve sobretudo dirigir seus esforços — seja
chamando os bons Espíritos em seu auxílio, seja ele próprio levantando o moral dos
aflitos através de conselhos e encorajamentos, ou enfim, seja amparando-o
materialmente, se for possível. Neste caso, a prece pode ter também um efeito direto,
dirigindo sobre a pessoa uma corrente fluídica com vistas a fortalecer o seu moral.
(Cap. V, itens 5 e 27; cap. XXVII, itens 6 e 10.)

43. PRECE. — Meu Deus, cuja bondade é infinita, digna-te de suavizar o


amargor da situação em que se encontra... [nome do favorecido], se assim for a
tua vontade.
Bons Espíritos, em nome de Deus Todo-Poderoso, eu suplico a vocês que
o assistam nas suas aflições. Se, no seu interesse, elas não puderem lhe ser
poupadas, façam-lhe compreender que essas provações são necessárias ao
seu progresso. Deem-lhe a confiança em Deus e no futuro, o que as tornam
menos amargas. Deem-lhe também a força para não cair no desespero que lhe
faria perder o fruto e tornaria a sua situação futura ainda mais penosa.
Conduza o meu pensamento até ele, e que este pensamento o ajude a
sustentar sua coragem.

Ação de graças por um benefício concedido a outro alguém

44. PREFÁCIO. Aquele que não é dominado pelo egoísmo se alegra com o bem que
acontece ao seu próximo, mesmo quando não o tiver solicitado pela prece.

45. PRECE. — Meu Deus, bendito seja pela felicidade que ocorreu com... [nome
do favorecido]
366 – Allan Kardec

Bons Espíritos, façam com que ele veja nisso um efeito da bondade de
Deus. Se o bem que lhe aconteceu for uma prova, inspirem nessa pessoa a
ideia de fazer um bom uso desse benefício e de não se envaidecer disso, para
que esse bem não se transforme para ele em prejuízo no futuro.
A ti, meu bom gênio que me protege e que deseja a minha felicidade,
afasta do meu pensamento todo sentimento de inveja ou de ciúme.

Pelos nossos inimigos e pelos que nos querem mal

46. PREFÁCIO. Jesus disse: Amem até os seus inimigos. Este preceito é o ponto
sublime da caridade cristã; mas, com isso, Jesus não pretende que devamos ter para
com os nossos inimigos o carinho que nós temos para com os amigos; por essas
palavras ele nos diz para esquecermos as suas ofensas, para lhes perdoarmos o mal
que eles nos fazem, para lhes pagarmos o mal com o bem. Além do mérito que disso
resulta aos olhos de Deus, isso é mostrar aos olhos dos homens a verdadeira
superioridade. (Cap. XII, itens 3 e 4.)

47. PRECE. — Meu Deus, eu concedo o perdão a... [nome do favorecido] pelo mal
que ele me fez e pelo que ele me quis fazer, assim como desejo que o Senhor
me perdoe e ele também me perdoe os erros que eu possa ter cometido. Se o
Senhor o colocou no meu caminho como uma provação para mim, que a sua
vontade seja feita.
Desvia de mim, ó meu Deus, a ideia de o maldizer e de qualquer desejo
malévolo contra ele. Faça com que eu jamais experimente uma satisfação com
as desgraças que possam lhe ocorrer, nem qualquer tristeza com as bênçãos
que lhe possam ser concedidas, a fim de não contaminar minha alma com
pensamentos indignos de um cristão.
Que a tua bondade, Senhor, possa se estender a ele, levando-o a
melhores sentimentos para comigo!
Bons Espíritos, inspirem-me o esquecimento do mal e a lembrança do
bem. Que nem o ódio, nem o rancor, nem o desejo de lhe retribuir o mal com
outro mal jamais entrem no meu coração, porque o ódio e a vingança só
pertencem aos maus Espíritos — encarnados ou desencarnados! Que, ao
contrário, eu esteja pronto para lhe estender uma mão fraterna, a lhe pagar o
367 – O Evangelho segundo o Espiritismo

mal com o bem e a auxiliá-lo, se estiver ao meu alcance!


Eu desejo, para provar a sinceridade das minhas palavras, que me seja
ofertada uma ocasião de lhe ser útil; mas sobretudo, ó meu Deus, preserve-me
de fazê-lo por orgulho ou por ostentação, constrangendo-o com uma
generosidade humilhante — o que me faria perder o fruto da minha ação, pois
então eu mereceria que estas palavras do Cristo fossem aplicadas a mim: Você
já recebeu a tua recompensa. (Cap. XIII, itens 1 e seguintes.)

Ação de graças pelo bem concedido aos nossos inimigos


48. PREFÁCIO. Não desejar mal aos inimigos é ser caridoso apenas pela metade; a
verdadeira caridade quer que lhes desejemos o bem e que nos sintamos felizes pelo
bem que lhes ocorra. (Cap. XII, itens 7 e 8.)

49. PRECE. — Meu Deus, na tua justiça, o Senhor achou por bem encher de
alegria o coração de... [nome do favorecido]. Agradeço-te por ele, apesar do mal
que ele me fez ou tem procurado me fazer. Se ele se aproveitasse desse bem
para me humilhar, eu receberia isso como uma prova para a minha caridade.
Bons Espíritos que me protegem, não permitam que conceba isso com
qualquer pesar; afastem de mim a inveja e o ciúme que rebaixam, mas ao
contrário, inspirem-me a generosidade que eleva. A humilhação está no mal, e
não no bem, e nós sabemos que cedo ou tarde a justiça será feita a cada um
segundo as suas obras.

Pelos inimigos do Espiritismo


50. Bem-aventurados os que têm fome de justiça, porque eles serão saciados.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus.
Felizes serão vocês quando os homens os carregarem de maldições e os
perseguirem, dizendo falsamente toda espécie de mal contra vocês por minha
causa. Alegrem-se então, porque uma grande recompensa está reservada
para vocês nos céus, pois assim eles perseguiram os profetas que vieram
antes de vocês. (São Mateus, 5: 6, 10 a 12)
Não temam aqueles que matam o corpo, mas que não podem matar a
368 – Allan Kardec

alma; antes, porém, temam aquele que pode perder a alma e o corpo no
inferno. (São Mateus, 10: 28)

51. PREFÁCIO. De todas as liberdades, a mais inviolável é a de pensar, que


compreende também a liberdade de consciência. Lançar anátema sobre quem não
pensa como nós é requerer essa liberdade para si e negá-la aos outros, é violar o
primeiro mandamento de Jesus: a caridade e o amor ao próximo. Perseguir os
outros por causa da crença deles é atentar contra o direito mais sagrado que todo
homem tem de crer no que lhe convém e de adorar a Deus como bem entenda.
Constrangê-los a atos exteriores semelhantes aos nossos é mostrar que damos
mais valor à forma do que ao fundamento, que damos mais valor às aparências do
que à convicção. A abjuração forçada jamais produziu fé: ela não pode fazer mais
do que hipócritas, pois é um abuso da força material que não prova a verdade. A
verdade é senhora de si mesma: convence, e não persegue, porque ela não
precisa disso.
O Espiritismo é uma opinião, uma crença; mesmo que fosse uma religião, por
que não se teria a liberdade de declarar-se espírita, como se tem a liberdade de se
dizer católico, judeu ou protestante, partidário dessa ou daquela doutrina
filosófica, de tal ou qual sistema econômico? Essa crença é falsa ou verdadeira: se
for falsa, ela cairá por si mesma, já que o erro não pode prevalecer contra a
verdade quando a luz se faz nas consciências; mas se for verdadeira, a perseguição
não a tornará falsa.
A perseguição é o batismo de toda ideia nova, grande e justa; ela cresce
com a grandeza e a importância da ideia. O ardor e a raiva dos inimigos dessa ideia
estão na proporção do temor que essa crença lhes inspira. É por essa razão que o
Cristianismo foi perseguido outrora e que o Espiritismo também é hoje, com a
diferença, porém, de que o Cristianismo foi perseguido pelos pagãos, enquanto o
Espiritismo é perseguido pelos cristãos. O tempo das perseguições sangrentas já
passou, é verdade, mas se não matam mais o corpo, torturam a alma, atacam-na até
nos seus sentimentos mais íntimos, nas suas afeições mais caras; essa perseguição
divide famílias, excita a mãe contra a filha, a mulher contra o marido; ataca até
mesmo o corpo nas suas necessidades materiais, tirando-lhe o seu ganha-pão para
vencê-lo pela fome. (Cap. XXIII, itens 9 e seguintes.)
Espíritas, não se aflijam com os golpes que desferidos contra vocês, pois eles
provam que vocês estão com a verdade; se não fosse assim, eles deixariam vocês
tranquilos e não os atacariam. Isso é uma prova para a fé de vocês, porque é pela
369 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sua coragem, pela sua resignação e pela sua perseverança que Deus os reconhecerá
entre os seus servos fiéis, dos quais hoje ele conta para dar a cada um a parte que
lhe toca, segundo suas obras.
A exemplo dos primeiros cristãos, tenham a satisfação de carregar a sua cruz.
Creiam na palavra do Cristo, que disse: “Bem-aventurados aqueles que sofrem
perseguição por causa da justiça, porque o reino dos céus pertence a deles. Não
temam os que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. Ele também disse:
“Amem os seus inimigos, façam o bem aos que fazem o mal a vocês e orem pelos
que os perseguem”. Mostrem que vocês são seus verdadeiros discípulos e que a
doutrina de vocês é boa, fazendo aquilo que o Cristo disse e o que ele mesmo fez.
A perseguição será só por um tempo; então, esperem com paciência o
despertar da aurora, porque a estrela da manhã já se levanta no horizonte. (Cap.
XXIV, itens 13 e seguintes.)

52. PRECE. — Senhor, que mandou nos dizer pela boca de Jesus, o teu Messias:
“Bem-aventurados aqueles que sofrem perseguição por causa da justiça;
perdoem seus inimigos; orem pelos que perseguem vocês.” E ele mesmo nos
mostrou o caminho, orando pelos seus carrascos.
Pelo exemplo dele, meu Deus, nós pedimos a tua misericórdia para os
que desprezam os teus divinos preceitos, os únicos que podem assegurar a
paz neste mundo e no outro. Assim como o Cristo, nós te dizemos: “Perdoem-
lhes, meu Pai, porque eles não sabem o que fazem.”
Conceda-nos a força para suportar com paciência e resignação — como
provações para nossa fé e nossa humildade — as zombarias, as injúrias, as
calúnias e as perseguições dos nossos inimigos; afaste-nos de toda ideia de
represália, pois a hora da tua justiça soará para todos, e nós esperamos por
isso, submetendo-nos à tua santa vontade.

Por uma criança que acaba de nascer

53. PREFÁCIO. Os Espíritos não chegam à perfeição senão depois de terem passado
pelas provas da vida corpórea; aqueles que estão na erraticidade aguardam que Deus
lhes permita retomar uma existência que deva lhes fornecer um meio de progresso —
seja pela expiação de suas faltas passadas através das vicissitudes às quais estão
sujeitos, seja desempenhando uma missão útil à humanidade. O seu avanço e a sua
370 – Allan Kardec

felicidade futura serão proporcionais à maneira pela qual eles tenham empregado o
tempo que deviam passar na Terra. A tarefa de guiar os seus primeiros passos e de os
dirigir para o bem foi confiado a seus pais, que responderão diante de Deus pela
maneira como tiverem cumprido seu mandato. Foi para facilitar a execução dessa
tarefa que Deus fez do amor paterno e do amor filial uma lei da natureza — lei que
jamais é transgredida impunemente.

54. PRECE. (Dos pais) Espírito que está encarnado no corpo do nosso filho,
seja bem-vindo entre nós. Bendito seja Deus Todo-Poderoso, que o enviou
para nós.
Este filho é um depósito que nos foi confiado e do qual deveremos
prestar contas um dia. Se ele pertence à nova geração de bons Espíritos que
devem povoar a Terra, obrigado, ó meu Deus, por essa graça! Se é uma alma
imperfeita, nosso dever é o de ajudá-lo a progredir no caminho do bem
através dos nossos conselhos e dos bons exemplos; se ele cair no mal por
nossa culpa, responderemos por isso diante de ti, já que não teremos
realizado nossa missão para com ele.
Senhor, ajude-nos em nossa tarefa e nos dê a força e a vontade de
cumpri-la. Se esta criança deve ser uma causa de provações para nós, que a
tua vontade seja feita!
Bons Espíritos que vieram presidir ao seu nascimento e que devem
acompanhá-lo durante a vida, não o abandonem. Afastem dele os maus
Espíritos que tentem induzi-lo ao mal; deem-lhe a força para resistir às
sugestões dos maus Espíritos, e a coragem para sofrer com paciência e
resignação as provas que o esperam na Terra. (Cap. XIV, item 9.)

55. (Outra) — Meu Deus, o Senhor me confiou a sorte de um dos teus


Espíritos; faça, Senhor, com que eu seja digno da tarefa que me foi imposta;
conceda-me a tua proteção; ilumina a minha inteligência a fim de que eu
possa discernir desde cedo as tendências daquele que eu devo preparar para
entrar na tua paz.

56. (Outra) — Deus boníssimo, já que permitiu ao Espírito desta criança vir
novamente passar pelas provas terrenas destinadas a fazê-lo progredir,
371 – O Evangelho segundo o Espiritismo

conceda-lhe a luz para que ele aprenda a te conhecer, amar e adorar. Faça,
pela tua onipotência, com que essa alma se regenere na fonte das tuas divinas
instruções; que, sob a égide do seu anjo guardião, a inteligência dele cresça,
desenvolva-se e o faça desejar se aproximar cada vez mais de ti; que a ciência
do Espiritismo seja a luz brilhante que o esclareça através das dificuldades da
vida; que, enfim, ele saiba apreciar toda a extensão do teu amor, que nos testa
para nos purificar.
Senhor, lança um olhar paternal sobre a família à qual foi confiada essa
alma; que ela possa compreender a importância da sua missão e faça
germinar nessa criança as boas sementes, até o dia em que ela possa, por suas
próprias aspirações, elevar-se sozinha para ti.
Digna-te, ó meu Deus, de atender esta humilde prece, em nome e pelos
méritos d’Aquele que disse: “Deixem vir a mim as criancinhas, porque o reino
dos céus é para aqueles que se assemelham a elas.”

Por um agonizante
57. PREFÁCIO. A agonia é o prelúdio da separação da alma e do corpo; podemos dizer
que nesse momento o homem não tem mais do que um pé neste mundo e que tem um
pé no outro mundo. Algumas vezes essa passagem é penosa para aqueles que se
apegaram à matéria e viveram mais para os bens deste mundo do que para os do
outro, ou em quem a consciência está agitada pelas lamentações e remorsos. Por
outro lado, para aqueles cujos pensamentos se elevaram rumo ao infinito e se
desprenderam da matéria, então os laços são menos difíceis de romper e os seus
derradeiros momentos não têm nada de dolorosos; assim, a alma só fica ligada ao
corpo por um fio, enquanto no outro caso ela se prende ao corpo por raízes
profundas. Em todos os casos, a prece exerce uma ação poderosa sobre o trabalho de
separação. (Veja adiante, Preces pelos enfermos, e em O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. I
A passagem.)

58. PRECE. — Deus poderoso e misericordioso, eis aqui uma que está
deixando o seu envoltório terreno para retornar ao mundo dos Espíritos, sua
verdadeira pátria; que ela possa voltar em paz e que a tua misericórdia se
estenda até ela.’
372 – Allan Kardec

Bons Espíritos que a acompanharam na Terra, não a abandonem neste


momento supremo; concedam-na a força para suportar os últimos
sofrimentos que ela deve experimentar neste mundo, para o progresso futuro
dela; inspirem-na para que ela consagre ao arrependimento de próprias faltas
os últimos lampejos de inteligência que lhe restem, ou que poderiam
momentaneamente lhe surgir.
Dirijam meu pensamento a fim de que a ação dele torne menos penoso o
trabalho de separação desta alma, e que ela leve consigo, no momento de
deixar a Terra, as consolações da esperança.

IV – PRECES POR AQUELES QUE NÃO ESTÃO MAIS DA TERRA

Por alguém que acaba de morrer

59. PREFÁCIO. As preces pelos Espíritos que acabam de deixar a Terra não têm por
objetivo somente lhes dar um testemunho de simpatia, mas também tem por efeito
ajudar no desprendimento deles e, desse modo, abreviar a perturbação que sempre se
segue a separação, e para tornar o seu despertar mais calmo. Mais ainda aí, como em
qualquer outra circunstância, a eficácia da prece está na sinceridade do pensamento, e
não na abundância de palavras ditas com maior ou menor pompa, e nas quais, na
maioria das vezes, o coração não tem participação nenhuma.
As preces que partem do coração ressoam em torno do Espírito, cujas ideias
ainda estão confusas, como as vozes amigas que vem nos tirar do sono. (Cap. XXVII,
item 10.)

60. PRECE. — Deus Todo-Poderoso, que a tua misericórdia se estenda sobre a


alma de... [nome do favorecido], a quem o Senhor acaba de chamar. Que as
provações que ele (ou ela) sofreu na Terra sejam levadas em conta e que as
nossas preces suavizem e abreviem as penas que ainda lhe caiba suportar
como Espírito!
Bons Espíritos que vieram recebê-lo, e sobretudo seu anjo guardião:
ajudem-no a se despojar da matéria; deem-lhe a luz e a consciência de si
mesmo a fim de o livrar da perturbação que acompanha a passagem da vida
carnal para a vida espiritual. Inspirem nele o arrependimento das faltas que
373 – O Evangelho segundo o Espiritismo

ele possa ter cometido, assim como o desejo que lhe seja permitido de as
reparar, para acelerar o seu progresso rumo à vida eterna bem-aventurada.
[Nome do favorecido], você acaba de entrar novamente no mundo dos
Espíritos e, no entanto, continua aqui presente entre nós; você nos vê e nos
escuta, pois não há nada a menos entre você e nós do que um corpo perecível,
que você acaba de deixar e que em breve será reduzido a pó.
Você deixou o envoltório grosseiro, sujeito às vicissitudes e à morte, e já
conserva mais do que o envoltório etéreo, imperecível e inacessível aos
sofrimentos. Se não vive pelo corpo, então vive a vida dos Espíritos, e essa
vida é isenta das misérias que afligem a humanidade.
Você não tem mais o véu que encobre aos nossos olhos os esplendores
da vida futura; você pode então, de agora em diante, contemplar novas
maravilhas, ao passo que nós ainda continuamos mergulhados nas trevas.
Você vai percorrer o espaço e visitar os mundos em completa liberdade,
enquanto nós rastejamos penosamente na Terra, onde o nosso corpo material
nos retém, sendo para nós semelhante a um fardo pesado.
O horizonte do infinito vai se desenrolar diante de ti, e na presença de
tanta grandeza, você compreenderá a vaidade dos nossos desejos terrenos,
das nossas ambições mundanas e dos prazeres fúteis de que os homens fazem
seus deleites.
Para os homens, a morte não passa de uma separação material de alguns
instantes. Do lugar de exílio onde a vontade de Deus ainda nos retém, assim
como os deveres que temos a cumprir neste mundo, nós te seguiremos pelo
pensamento até o momento em que nos for permitido nos juntar a ti, como
agora você está se juntando àqueles que te precederam.
Se nós não podemos ir até você, você pode vir até nós. Venha, então,
entre os que te amam e que você amou; ajude-os nas provas da vida; vele
pelos que te são caros; proteja-os conforme puder e suavize os seus pesares,
pelo pensamento de que você é mais feliz agora, e pela consoladora certeza de
que eles um dia estarão reunidos contigo num mundo melhor.
No mundo onde você está, todos os ressentimentos terrestres devem se
extinguir. Que agora você possa, para a sua felicidade futura, estar inacessível
a esses ressentimentos! Por isso, perdoe aqueles que possam ter feito algo de
374 – Allan Kardec

errado contra você, como eles te perdoam por você ter feito algo contra eles.

Observação – Pode-se acrescentar a esta prece, que se aplica a todos, algumas


palavras especiais, de acordo com as circunstâncias particulares da família ou de seus
relacionamentos, assim como a situação do defunto.
Caso se trate de uma criança, o Espiritismo nos ensina que este não é um
Espírito criado recentemente, mas que ele já viveu e que já pode ser muito adiantado.
Se sua última existência foi curta, é que ela se tratava do complemento de uma prova,
ou devia ser uma provação para os pais. (Cap. V, item 21.)

61. (Outra) 47 — Senhor Todo-Poderoso, que a tua misericórdia se estenda


sobre os nossos irmãos que acabam de deixar a Terra! Que a tua luz brilhe aos
olhos deles! Tire-os das trevas; abra-lhes os olhos e os ouvidos! Que vocês,
bons Espíritos, os cerquem e façam com que ele ouça palavras de paz e de
esperança!
Senhor, por mais indigno que sejamos, nós ousamos implorar a tua
misericordiosa indulgência em favor desse nosso irmão que acaba de ser
chamados do exílio; faça com que o seu retorno seja como o do filho pródigo.
Esquece, ó meu Deus, as faltas que ele possa ter cometido, para te lembrar
somente do bem que tenha feito. A tua justiça é imutável, nós sabemos disso,
mas o teu amor é imenso; nós te suplicamos que abranda a tua justiça nessa
fonte de bondade que emana de ti.
Que a luz se faça para você, meu irmão, que acaba de deixar a Terra! Que
os bons Espíritos do Senhor desçam até você, que te cerquem e te ajudem a
quebrar os grilhões terrenos! Compreenda e reconheça a grandeza do nosso
mestre; submeta-se sem queixas à sua justiça, mas não se desacredite nunca
da sua misericórdia. Irmão, que um sério exame do teu passado te abra as
portas do futuro, fazendo-te entender as faltas que você deixa para trás e o
trabalho que te resta a fazer para repará-las. Que Deus te perdoe e que os
bons Espíritos te amparem e te encorajem! Teus irmãos da Terra orarão por ti
e te pedem orações por eles.

47 Esta oração foi ditada a uma médium de Bordeaux no momento em que passava em frente às suas
janelas o cortejo de um desconhecido.
375 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Pelas pessoas a quem tivemos afeição


62. PREFÁCIO. Como é horrível a ideia do nada! Como são lastimáveis aqueles que
acreditam que a voz do amigo que está chorando pelo seu amigo se perde no vácuo
sem encontrar nenhum eco que lhe responda! Estes jamais conheceram as puras e
santas afeições, aqueles que pensam que tudo morre com o corpo; que o gênio que
iluminou o mundo com a sua vasta inteligência é um brinquedo de matéria que se
extingue como um sopro, para sempre; que do ser mais querido, de um pai, de uma
mãe ou de um filho adorado não restará senão um punhado de pó que o tempo
dispersará sem volta.
Como um homem de coração pode se manter frio a essa ideia? Como a ideia de
um aniquilamento absoluto não o gela de terror e não lhe faz ao menos desejar que
não seja assim? Se até hoje a sua razão não foi suficiente para tirar suas dúvidas, eis
que o Espiritismo vem dissipar toda incerteza quanto ao futuro por provas materiais
que ele fornece da sobrevivência da alma e da existência dos seres do além-túmulo.
Assim, por toda parte essas provas são acolhidas com alegria; a confiança renasce,
pois o homem sabe desde então que a vida terrestre é só uma curta passagem que
conduz a uma vida melhor; sabe que seus trabalhos neste mundo não ficam perdidos
para ele e que as mais santas afeições não se quebram sem esperanças. (Cap. IV, item
18; cap. V, item 21.)

63. PRECE. Digna-te, ó meu Deus, de acolher favoravelmente a prece que eu te


remeto pelo Espírito... [nome do favorecido]. Faça-o entrever as tuas divinas
claridades e torna fácil para ele o caminho da felicidade eterna. Permita que
os bons Espíritos lhe levem as minhas palavras e o meu pensamento.
Você, a quem eu queria tão bem neste mundo, ouça a minha voz que te
chama para te dar uma nova prova da minha afeição. Deus permitiu que você
fosse libertado por primeiro: eu não poderia lamentar isso sem egoísmo, pois
seria desejar para você as penas e os sofrimentos da vida. Desse modo, espero
com resignação o momento de nosso reencontro no mundo mais feliz onde
você me precedeu.
Sei que a nossa separação não é mais do que temporária e que, por mais
longa que me possa parecer, sua duração se perde em face da eternidade de
contentamento que Deus promete aos seus eleitos. Que a sua bondade me
preserve de fazer qualquer coisa que possa retardar esse instante desejado, e
376 – Allan Kardec

que me poupe assim da dor de não te reencontrar ao sair do meu cativeiro


terrestre.
Oh, como é doce e consoladora a certeza de que não há entre nós mais do
que um véu material que te esconde das minhas vistas! A mesma certeza de
que você pode estar aqui, ao meu lado, me vendo e me ouvindo como antes, e
talvez até melhor do que antes; certeza de que você não me esquece, do
mesmo modo que eu não te esqueço; certeza de que os nossos pensamentos
não cessam de se conectar e que o teu pensamento sempre me acompanha e
me ampara sempre.
Que a paz do Senhor esteja contigo.

Pelas almas sofredoras que pedem preces


64. PREFÁCIO. Para compreender o alívio que a prece pode proporcionar aos Espíritos
sofredores, é preciso levar em consideração o seu modo de ação, conforme foi
explicado anteriormente. (Cap. XXVII, itens 9, 18 e seguintes.) Aquele que está
conscientizado dessa verdade ora com mais fervor pela certeza de que não está
orando em vão.

65. PRECE. — Deus clemente e misericordioso, que a tua bondade se estenda a


todos os Espíritos que solicitam as nossas preces, e particularmente à alma
de... [nome do favorecido].
Bons Espíritos, cuja única ocupação é fazer o bem: intercedam comigo
pelo alívio deles. Façam com que brilhe diante dos olhos deles um raio de
esperança, e que a divina luz os clareie acerca das imperfeições que os
afastam da morada dos bem-aventurados. Abram o coração deles ao
arrependimento e ao desejo de se depurarem, para apressar o seu progresso.
Façam-lhes compreender que, por seus esforços, eles podem abreviar o
tempo de suas provas.
Que Deus, em sua bondade, dê a eles a força para perseverarem nas boas
resoluções!
Que essas palavras benevolentes possam amenizar suas tristezas,
mostrando-lhes que existem na Terra seres que sabem se compadecer deles e
que desejam a sua felicidade.
377 – O Evangelho segundo o Espiritismo

66. (Outra) — Nós te pedimos, Senhor, que derrame as graças do teu amor e
da tua misericórdia sobre todos que sofrem — seja no espaço como Espíritos
errantes, seja entre nós como Espíritos encarnados. Tenha piedade das nossas
fraquezas. O Senhor nos fez falíveis, mas nos deste a força para resistir ao mal
e vencê-lo; que a tua misericórdia se estenda sobre todos aqueles que não
puderam resistir aos maus pendores e que ainda estão seduzidos pelos maus
caminhos. Que os bons Espíritos os envolvam; que a tua luz brilhe aos olhos
deles e que, atraídos pelo calor vivificante, eles venham se prostar aos teus
pés — estando eles humildes, arrependidos e submissos.
Nós te pedimos também, Pai de misericórdia, por aqueles nossos irmãos
que não tiveram a força para suportar suas provas terrenas. O Senhor nos deu
um fardo a carregar e não devemos depositá-lo senão a teus pés; mas a nossa
fraqueza é grande e algumas vezes nos falta a coragem durante a jornada.
Tenha piedade desses servos indolentes que abandonaram a obra antes da
hora; que a tua justiça os poupe e permita aos bons Espíritos lhes trazerem o
alívio, as consolações e a esperança no futuro. A perspectiva do perdão é
fortificante para a alma; mostre-a, Senhor, aos culpados que se desesperam e,
sustentados por essa esperança, eles haurirão forças na própria grandeza de
suas faltas e de seus sofrimentos, para resgatarem o passado e se prepararem
para conquistar o futuro.

Por um inimigo que morreu


67. PREFÁCIO. A caridade para com os nossos inimigos deve acompanhá-los além do
túmulo. É preciso ponderar que o mal que eles nos causaram foi para nós uma prova,
que pode ter sido útil para o nosso adiantamento, caso tenhamos sabido aproveitá-la.
Ela pode nos ter sido também até mais proveitosa do que as aflições puramente
materiais, naquilo que, à coragem e à resignação, ela nos permitiu juntar a caridade e
o esquecimento das ofensas. (Cap. X, item 6; cap. XII, itens 5 e 6.)

68. PRECE. — Senhor, foi do teu agrado chamar antes de mim a alma de...
[nome do favorecido]. Eu perdoo este irmão pelo mal que ele me fez e suas más
intenções a meu respeito; que ele possa se arrepender disso, agora que ele
não tem mais as ilusões deste mundo.
378 – Allan Kardec

Que a tua misericórdia, meu Deus, se estenda até ele e afaste de mim o
pensamento de me alegrar com a sua morte. Se cometi erros contra ele, que
ele me perdoe por isso, como eu esqueço o que ele tenha feito contra mim.

Por um criminoso
69. PREFÁCIO. Se a eficácia das preces fosse proporcional à duração delas, as mais
longas deveriam ficar reservadas para os mais culpados, porque eles têm mais
necessidade delas do que aqueles que viveram santamente. Recusá-las aos criminosos
é faltar com a caridade e ignorar a misericórdia de Deus; julgá-las inúteis só porque
um homem tenha praticado esse ou aquele erro, é prejulgar a justiça do Altíssimo.

70. PRECE. Senhor, Deus de misericórdia, não repulse esse criminoso que
acaba de deixar a Terra; a justiça dos homens pôde castigá-lo, mas ela não o
livrou da tua justiça, caso o coração dele não tenha sido tocado pelo remorso.
Tira a venda que esconde nele a gravidade das suas faltas; que o seu
arrependimento possa encontrar graça diante de ti e suavizar os sofrimentos
de sua alma! Que as nossas preces e a intercessão dos bons Espíritos também
possam levar até ele a esperança e a consolação, inspirar-lhe o desejo de
reparar suas ações más numa nova existência e lhe dar a força para não
sucumbir nas novas lutas que ele empreenderá!
Senhor, tenha piedade dele!

Por um suicida
71. PREFÁCIO. O homem jamais tem o direito de dar fim à sua própria vida, porque
somente a Deus cabe retirá-lo do cativeiro terreno, quando ele o julgue oportuno.
Todavia, a justiça divina pode abrandar seus rigores de acordo com as circunstâncias;
mas ele reserva toda a sua severidade para com aquele que quis se subtrair das
provas da vida. O suicida é como o prisioneiro que se evade da prisão antes de
cumprir sua pena, e que, quando recapturado, é tratado mais severamente. Assim é
com o suicida, que acha que pode escapar das misérias do presente e que mergulha
em desgraças ainda maiores. (Cap. V, itens 14 e seguintes.)

72. PRECE. — Nós sabemos, ó meu Deus, a sorte reservada aos que violam as
379 – O Evangelho segundo o Espiritismo

tuas leis, abreviando voluntariamente seus dias, mas sabemos também que a
tua misericórdia é infinita: digna-te de estendê-la sobre a alma de... [nome do
favorecido]. Que as nossas preces e a tua comiseração possam atenuar a
amargura dos sofrimentos que ele está experimentando por não ter tido a
coragem de esperar o fim de suas provações!
Bons Espíritos, cuja missão é ajudar os infelizes: tomem-no sob a
proteção de vocês; inspirem-lhe o pesar da falta cometida e que essa
assistência dê a ele a força para suportar com mais resignação as novas
provas que ele terá que experimentar para reparar tal falta. Afastem dele os
maus Espíritos que possam novamente arrastá-lo para o mal e prolongar seus
sofrimentos, fazendo-o perder o fruto de suas futuras provas.
A você, cuja infelicidade o fez causa das nossas preces: que a nossa
compaixão possa amenizar a tua amargura e possa fazer que nasça em ti a
esperança de um futuro melhor! Esse futuro está nas tuas mãos; confie na
bondade de Deus, cujo seio está aberto a todos os arrependidos e só se
mantém fechado aos corações endurecidos.

Pelos Espíritos arrependidos


73. PREFÁCIO. Seria injusto colocar na categoria dos maus Espíritos aqueles Espíritos
sofredores e arrependidos que pedem preces; estes podem ter sido maus, mas já não
tão maus desde quando eles reconhecem suas faltas e se arrependem delas: eles não
passam de infelizes, e alguns deles até já começam a gozar de uma relativa felicidade.

74. PRECE. — Deus de misericórdia, que aceita o arrependimento sincero do


pecador, encarnado ou desencarnado: aqui está um Espírito que sentia prazer
no mal, mas que reconhece seus erros e está entrando no bom caminho;
digna-te, ó meu Deus, de recebê-lo como um filho pródigo e perdoa-o.
Bons Espíritos, cuja voz ele ignorou: ele quer ouvi-los de agora em
diante; permitam-lhe entrever a felicidade dos eleitos do Senhor, a fim de que
ele persista no desejo de se purificar para alcançá-la; sustentem-no em suas
boas resoluções e deem a ele a força para resistir aos seus maus instintos.
Espírito de... [nome do favorecido], nós te felicitamos pela tua mudança e
agradecemos aos bons Espíritos que te ajudaram!
380 – Allan Kardec

Se outrora você se comprazia em fazer o mal, é que não compreendia o


quanto é doce o prazer de fazer o bem; você também se sentia pequeno
demais para esperar alcançar isso. Mas desde o instante em que pôs o pé na
boa rota, uma luz nova se fez para você; começou a saborear uma felicidade
desconhecida e a esperança entrou no teu coração. É que Deus sempre escuta
a prece do pecador arrependido; ele não rejeita nenhum dos que vêm até ele.
Para entrar de novo e completamente na graça diante dele, esforce-se
doravante, não só para não mais fazer o mal, mas para fazer o bem, e
sobretudo para reparar o mal que tenha feito, e então você terá cumprido a
justiça de Deus; cada boa ação apagará uma das tuas faltas passadas.
O primeiro passo já foi dado; agora, quanto mais avançar no caminho
mais fácil e agradável ele te parecerá. Portanto, tenha perseverança e um dia
você terá a glória de estar entre os bons Espíritos e os Espíritos venturosos.

Pelos Espíritos endurecidos


75. PREFÁCIO. Os maus Espíritos são aqueles que ainda não foram tocados pelo
arrependimento; aqueles que se comprazem no mal e não sentem nenhum pesar por
isso; aqueles que são insensíveis às repreensões, que repelem a prece e que muitas
vezes blasfemam o nome de Deus. São essas almas endurecidas que após a morte se
vingam nos homens dos sofrimentos que experimentaram e que perseguem com seu
ódio — seja pela obsessão, seja por uma influência funesta qualquer — aqueles de
quem eles não gostavam durante a vida. (Cap. X, item 6; cap. XII, itens 5 e 6.)
Entre os Espíritos perversos há duas categorias bem distintas: a dos que são
francamente maus e a dos hipócritas. Os primeiros são infinitamente mais fáceis de
serem reconduzidos ao bem, em comparação com os da segunda categoria; na maioria
das vezes eles são de naturezas brutas e grosseiras, como se vê entre os homens, que
fazem maldades mais por instinto do que por intensão, e não procuram fingir que são
melhores do que eles são; há entre eles um germe latente que é preciso fazer
desabrochar, e que assim podemos fazer quase sempre através da perseverança, da
firmeza aliada à benevolência, dos conselhos, do raciocínio e da prece. Na
mediunidade, a dificuldade que eles têm para escrever o nome de Deus é o indício de
um temor instintivo, de uma voz íntima da consciência que lhes diz que eles são
indignos disso; aquele que estiver nesse ponto já está no limiar da conversão e
podemos esperar tudo deles: basta encontrar o ponto vulnerável do coração.
381 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Os Espíritos hipócritas quase sempre são muito inteligentes, mas não possuem
no coração nenhuma fibra sensível; nada os toca e eles simulam todos os bons
sentimentos para captar a confiança, sentindo-se felizes quando encontram tolos que
os aceitam como santos Espíritos, a quem eles podem governar à vontade. O nome de
Deus, longe de lhes inspirar o menor temor, serve a eles de máscara para cobrir suas
torpezas. No mundo invisível, como no mundo visível, os hipócritas são os seres mais
perigosos, porque eles agem na sombra, sem que ninguém desconfie deles. Eles só
têm as aparências da fé, mas não a fé sincera.

76. PRECE. — Senhor, digna-te de lançar um olhar de bondade sobre os


Espíritos imperfeitos que ainda se encontram na treva da ignorância e te
ignoram, particularmente sobre o Espírito de... [nome do favorecido].
Bons Espíritos, ajudem-nos a fazê-lo compreender que, induzindo os
homens ao mal, obsidiando-os e os atormentando, ele prolonga os seus
próprios sofrimentos; façam com que o exemplo da felicidade de que vocês
desfrutam seja um encorajamento para ele.
Espírito que ainda se compraz no mal, venha ouvir a prece que nós
fazemos por ti; ela deve te provar que desejamos o teu bem, embora você faça
o mal.
Você é infeliz, pois é impossível ser feliz fazendo o mal; por que então
continuar no sofrimento, quando depende de você sair dele? Olha os Espíritos
bons que te rodeiam; veja o quanto eles são felizes e se não seria mais
agradável para ti saborear dessa mesma felicidade.
Você dirá que isso é impossível para ti, mas nada é impossível àquele
que quer, pois Deus te concedeu, como concedeu a todas as suas criaturas, a
liberdade de escolher entre o bem e o mal, ou seja, entre a felicidade e a
infelicidade, e ninguém está condenado a praticar o mal. Se você tem vontade
de fazer o mal, você pode ter a vontade de fazer o bem e de ser feliz.
Volte o teu olhar para Deus; eleve o teu pensamento a ele por um
instante, e um raio da sua divina luz virá te esclarecer. Diga conosco estas
simples palavras: Meu Deus, eu estou arrependido, perdoe-me. Tente se
arrepender e fazer o bem, em vez de fazer o mal, e você verá que rapidamente
a sua misericórdia se estenderá sobre ti, e que um bem-estar desconhecido
virá substituir as angústias que você experimenta.
382 – Allan Kardec

Uma vez que você tenha dado um passo no bom caminho, o resto da
estrada te parecerá fácil. Então compreenderá quanto tempo você perdeu da
tua felicidade por tua própria culpa; mas um futuro radioso e pleno de
esperança se abrirá diante de ti e te fará esquecer o teu miserável passado,
repleto de perturbação e de torturas morais, que seriam para ti o inferno, se
elas tivessem de durar eternamente. Virá o dia em que essas torturas serão de
tal modo que você desejará encerrá-las a qualquer preço; porém, quanto mais
você demorar, mais isso será difícil.
Não ache que você ficará sempre no estado em que se encontra; não,
pois isso é impossível. Você tem duas perspectivas diante de si: uma, a de
sofrer muito mais do que tem sofrido até agora; outra, a de ser feliz como os
bons Espíritos que estão em torno de ti. A primeira é inevitável se você
persistir na tua teimosia; um simples esforço da tua vontade basta para te
tirar da má situação em que está. Apresse-se, então, pois cada dia de demora é
um dia perdido para a tua felicidade.
Bons Espíritos, façam com que estas palavras encontrem acesso nessa
alma ainda atrasada, a fim de que a ajudem a se aproximar de Deus. Nós lhes
pedimos isso em nome de Jesus Cristo, que tinha tão grande poder sobre os
maus Espíritos.

V – PRECES PELOS ENFERMOS E PELOS OBSIDIADOS


Pelos enfermos
77. PREFÁCIO. As doenças fazem parte das provas e das dificuldades da vida terrena;
elas são inerentes à grosseria da nossa natureza material e à inferioridade do mundo
onde nós habitamos. As paixões e os excessos de todos os gêneros semeiam em nós
germes malsãos, às vezes hereditários. Nos mundos mais adiantados, física ou
moralmente, o organismo humano, sendo mais depurado e menos material, não está
sujeito às mesmas enfermidades e o corpo não é minado surdamente pela devastação
das paixões. (Cap. III, item 9.) Portanto, precisamos nos resignar a sofrer as
consequências do meio em que a nossa inferioridade nos coloca, até que tenhamos
merecido mudar para um mundo melhor. No entanto, enquanto esperamos essa
mudança, isso não deve nos impedir de fazer o que dependa de nós para melhorar
nossa situação atual. Mas, apesar dos nossos esforços, se não pudermos fazer isso, o
383 – O Evangelho segundo o Espiritismo

Espiritismo nos ensina a suportar com resignação os nossos males passageiros.


Se Deus não quisesse que os sofrimentos carnais fossem dissipados ou
suavizados em certos casos, ele não teria disponibilizado meios curativos à nossa
disposição. Sua previdente solicitude a esse respeito, de acordo com o do instinto de
conservação, indica que é nosso dever buscar esses recursos e os aplicar.
Ao lado da medicação convencional, elaborada pela ciência, o magnetismo nos
faz conhecer o poder da ação fluídica; depois, o Espiritismo veio nos revelar outra
força na mediunidade curadora e a influência da prece. (Veja, a seguir, a observação
sobre a mediunidade curadora.)

78. PRECE. (Do enfermo.) — Meu Deus, que é todo justiça: a doença que o
Senhor achou por bem me enviar, eu devo tê-la merecido, pois uma aflição
nunca é sem causa. Para minha cura, entrego-me à tua infinita misericórdia;
se te agradar me restituir a saúde, bendito seja o teu santo nome; se, ao
contrário, ainda devo sofrer, que seja bendito do mesmo jeito. Submeto-me
sem murmurar aos teus divinos decretos, porque tudo que o Senhor faz só
tem por objetivo o bem das criaturas.
Faça, ó meu Deus, com que esta enfermidade seja para mim um aviso
salutar e me leve a refletir sobre mim mesmo. Aceito-a como uma expiação do
passado e como uma prova para a minha fé e a minha submissão à tua santa
vontade. (Veja a prece do item 40.)

79. PRECE. (Pelo enfermo) — Meu Deus, teus desígnios são impenetráveis e,
em tua sabedoria, achou que devia afligir... [nome do favorecido] pela
enfermidade. Eu te suplico que lance um olhar de compaixão sobre os
sofrimentos dele e digna-te de lhes pôr um término.
Bons Espíritos, ministros do Todo-Poderoso: eu lhes peço que reforcem
o meu desejo de aliviá-lo; dirijam meu pensamento a fim de que ele vá
derramar um bálsamo salutar no corpo dele e a consolação na sua alma.
Inspirem-lhe a paciência e a submissão à vontade de Deus; deem-lhe a
força para suportar suas dores com uma resignação cristã, para que ele não
perca o fruto desta provação. (Veja a prece do item 57.)

80. PRECE. (Do médium curador) — Meu Deus, se bem quiser se servir de
384 – Allan Kardec

mim, por mais indigno que eu seja, eu poderei curar esta enfermidade, se tal
for a tua vontade, porque eu tenho fé em ti. Mas sem ti, eu nada posso.
Permita aos bons Espíritos me impregnarem com o seu fluido salutar, a fim de
que eu o transmita a esse enfermo, e desvie de mim todo pensamento de
orgulho e de egoísmo que pudesse alterar a pureza desse fluido.

Pelos obsidiados
81. PREFÁCIO. A obsessão é a ação persistente que um Espírito mau exerce sobre um
indivíduo. Ela apresenta características muito diferentes, desde a simples influência
moral, sem sinais exteriores perceptíveis, até a perturbação completa do organismo e
das faculdades mentais. Ela anula todas as faculdades mediúnicas; na mediunidade
para a escrita ela se traduz pela obstinação de um Espírito em se manifestar com
exclusão de todos os outros Espíritos.
Os maus Espíritos pululam em torno da Terra, em virtude da inferioridade
moral dos seus habitantes. Sua ação malfazeja faz parte dos flagelos contra os quais a
humanidade está em luta neste mundo. A obsessão — assim como as enfermidades e
todas as tribulações da vida — deve ser considerada como prova ou expiação e aceita
como tal.
Do mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições físicas que tornam o
corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado
de uma imperfeição moral que dá acesso a um Espírito mau. A uma causa física se
opõe uma força física; a uma causa moral é preciso opor uma força moral. Para
preservar das enfermidades, fortifica-se o corpo; para se livrar da obsessão, é preciso
fortificar a alma. Daí a necessidade de trabalhar a própria melhoria, o que na maioria
das vezes é o suficiente para se desembaraçar do obsessor, sem o auxílio de outras
pessoas. Esse auxílio se torna necessário quando a obsessão degenera em subjugação
e em possessão, porque então o paciente muitas vezes perde a sua vontade e o seu
livre-arbítrio.
A obsessão é quase sempre o fato de uma vingança exercida por um Espírito e
que com mais frequência tem sua causa nas relações que o obsidiado manteve com ele
numa anterior existência. (Veja o cap. X, item 6; cap. XII, itens 5 e 6.)
Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolvido e impregnado
por um fluido pernicioso que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repulsa. É
desse fluido que é preciso desembaraçá-lo; ora, um fluido nocivo não pode ser
eliminado por outro fluido nocivo. Por uma ação idêntica à do médium curador nos
385 – O Evangelho segundo o Espiritismo

casos de enfermidade, é preciso expulsar o fluido nocivo com a ajuda de um fluido


melhor, de certo modo, que produz o efeito de um reagente. Essa é a ação mecânica,
mas que não basta; é preciso também, e acima de tudo, agir sobre o ser inteligente
com o qual é preciso falar com autoridade, e essa autoridade só é dada pela
superioridade moral; quanto maior for esta superioridade, maior será a autoridade.
Mas isso não é tudo; para garantir a libertação, é preciso levar o Espírito
perverso a renunciar aos seus maus desígnios; é preciso fazer nascer nele o
arrependimento e o desejo do bem, com a ajuda de instruções habilmente dirigidas,
em evocações particulares realizadas visando a sua educação moral; então podemos
ter a dupla satisfação de libertar um encarnado e de converter um Espírito imperfeito.
A tarefa se torna mais fácil quando o obsidiado, compreendendo a sua situação,
contribui com a sua vontade e sua oração; já não é o mesmo quando, seduzido pelo
Espírito enganador, ele se ilude sobre as qualidades daquele que o domina e se
compraz no erro em que este último o mergulha; poia então, longe de cooperar, ele
repulsa toda assistência. É o caso da fascinação, sempre infinitamente mais rebelde do
que a subjugação mais violenta. (O Livro dos Médiuns, 2ª parte, cap. XXIII.)
Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso auxiliar para agir
contra o Espírito obsessor.

82. PRECE. (Do obsidiado) — Meu Deus, permita aos bons Espíritos me
livrarem do Espírito malfazejo que está grudado em mim. Se for uma vingança
que ele está exercendo pelos erros que outrora eu tenha feito contra ele, o
Senhor assim o permite para a minha punição, meu Deus, e eu sofro a
consequência da minha culpa. Que o meu arrependimento possa fazer com
que eu mereça o teu perdão e a minha libertação! Mas, seja qual for o motivo,
eu peço em favor dele a tua misericórdia. Digna-te de facilitar a rota do
progresso que o desviará do pensamento de praticar o mal. Que eu, de minha
parte, ao lhe retribuir o mal com o bem, possa induzi-lo a melhores
sentimentos.
Mas eu sei também, ó meu Deus, que são as minhas imperfeições que me
tornam acessível às influências dos Espíritos imperfeitos. Conceda-me a luz
necessária para reconhecer essas imperfeiçoes; combata em mim sobretudo o
orgulho que me cega a respeito dos meus defeitos.
Qual não deve ser a minha indignidade, já que um ser malfazejo pode me
dominar!
386 – Allan Kardec

Faça, ó meu Deus, com que esse golpe desferido na minha vaidade me
sirva de lição para o futuro; que ele me fortifique a resolução que eu tomo de
me depurar para a prática do bem, da caridade e da humildade, a fim de opor
daqui por diante uma barreira às más influências.
Senhor, dê-me a força para suportar essa prova com paciência e
resignação; eu compreendo que, como todas as outras provas, ela deve ajudar
o meu avanço, se eu não perder os seus frutos com as minhas lamúrias, já que
ela me proporciona uma ocasião de mostrar a minha submissão e de exercitar
a minha caridade em favor de um irmão infeliz ao lhe perdoar o mal que ele
me fez. (Cap. XII, itens 5 e 6; cap. XXVIII, itens 15 e seguintes, 46 e 47.)

83. PRECE (Pelo obsidiado) — Deus Todo-Poderoso, digna-te de me dar o


poder de libertar... [nome do favorecido] do Espírito que o obsidia; se estiver
nos teus desígnios pôr um fim a essa prova, conceda-me a graça de falar a esse
Espírito com autoridade.
Bons Espíritos que me assistem, e você, anjo guardião de... [nome do
favorecido], empreste-me a tua cooperação; ajude-me a livrá-lo do fluido
impuro em que ele se acha envolvido.
Em nome de Deus Todo-Poderoso, eu rogo ao Espírito malfazejo que
está atormentando-o que se retire.

84. PRECE (Pelo Espírito obsessor). — Deus infinitamente bom, eu imploro a


tua misericórdia para o Espírito que obsidia... [nome do obsidiado]. Faça-o
perceber as divinas claridades, a fim de que ele veja o falso caminho por onde
entrou. Bons Espíritos, ajudem-me a fazê-lo compreender que ele tem tudo a
perder ao praticar o mal, e tudo a ganhar ao fazer o bem.
Espírito que se compraz em atormentar... [nome do obsidiado], ouça-me,
pois eu te falo em nome de Deus.
Se quiser refletir, compreenderá que o mal nunca prevalece sobre o bem
e que você não pode ser mais forte do que Deus e os bons Espíritos.
Eles poderiam ter preservado... [nome do obsidiado] de todos os teus
ataques; se não o fizeram, foi porque ele (ou ela) tinha que passar por uma
prova. Mas quando essa prova terminar, eles vão impedir qualquer ação tua
387 – O Evangelho segundo o Espiritismo

sobre ele; o mal que você o tenha feito, em vez de prejudicá-lo, servirá para o
adiantamento dele, e então ele será ainda mais feliz. Assim, a tua maldade terá
sido um grande desperdício e se voltará contra você.
Deus, que é Todo-Poderoso, e os Espíritos superiores, seus delegados,
que são mais poderosos do que você, poderão finalmente pôr um fim a essa
obsessão quando eles bem quiserem, e a tua resistência se quebrará diante da
suprema autoridade. Porém, até pelo fato de Deus ser bom, ele quer te dar o
mérito de cessar essa obsessão pela tua própria vontade. É uma concessão
que te é concedida; se você não a aproveitar, então sofrerá as deploráveis
consequências disso: grandes castigos e cruéis sofrimentos te esperam, e você
será forçado a implorar piedade e as preces da tua vítima, que já te perdoa e
ora por ti, o que é um grande mérito aos olhos de Deus e apressará a
libertação dela.
Portanto, reflita enquanto ainda é tempo, pois a justiça de Deus pesará
sobre você, como sobre todos os Espíritos rebeldes. Imagine que o mal que
está praticando neste momento terá forçosamente um término, ao passo que,
se você persistir no teu endurecimento, os teus sofrimentos aumentarão
incessantemente.
Quando você estava na Terra, não achava uma estupidez sacrificar um
grande bem por uma pequena satisfação de momento? O mesmo acontece
agora que você é um Espírito. O que você ganha com o que está fazendo? O
triste prazer de atormentar alguém, o que não impede de você ser infeliz —
diga o que disser — e que te deixará mais infeliz ainda.
Ao lado disso, veja o que está perdendo; observe os bons Espíritos que te
rodeiam e pense: a sorte deles não é melhor do que a tua? A felicidade de que
eles desfrutam também será compartilhada contigo, quando você quiser. O
que é preciso fazer para isso? Implorar a Deus e fazer o bem, em vez de fazer
o mal. Eu sei que você não pode se transformar de repente, mas Deus não
exige o impossível; o que ele quer é a boa vontade. Experimenta, então, e nós
te ajudaremos. Faça com que em breve possamos dizer em teu favor a prece
pelos Espíritos arrependidos (item 73), e não mais te classificar entre os maus
Espíritos, enquanto esperamos poder contar contigo entre os bons.
(Veja também, o item 75: Preces pelos Espíritos endurecidos.)
388 – Allan Kardec

Observação – A cura de obsessões graves requer muita paciência, perseverança


e devotamento; ela exige ainda tato e habilidade para encaminhar ao bem aqueles
Espíritos muitas vezes perversos, endurecidos e astuciosos, pois entre eles existem os
rebeldes no último grau. Na maioria dos casos, é preciso se guiar pelas circunstâncias;
mas, qualquer que seja o caráter do Espírito, uma coisa é certa: ninguém consegue
nada pelo constrangimento ou pela ameaça. Toda influência consiste na superioridade
moral. Outra verdade igualmente constatada, tanto pela experiência quanto pela
lógica, é a completa ineficácia dos exorcismos, fórmulas, palavras sacramentais,
amuletos, talismãs, práticas exteriores, ou quaisquer sinais materiais.
A obsessão muito prolongada pode ocasionar desordens patológicas e, algumas
vezes, requer um tratamento simultâneo ou consecutivo tanto magnético quanto
médico, para restabelecer o organismo. A causa estando destruída, resta combater os
efeitos. (Veja O Livro dos Médiuns, 2ª parte, cap. XXIII, Obsessão; Revista Espírita,
fevereiro e março de 1864; abril de 1865: exemplos de curas de obsessões.)
389 – O Evangelho segundo o Espiritismo

ANEXO

CITAÇÕES BÍBLICAS

Para a composição desta obra, Allan Kardec utilizou-se, conforme ele


mesmo declara na Introdução, de várias passagens bíblicas extraídas da
edição francesa Bíblia de Port-Royal (popularmente Bíblica de Sacy) traduzida
pelo sacerdote católico Louis-Isaac Lemaistre de Sacy (1613-1684). Contudo,
no capítulo IV, ele cita outras versões das chamadas Escrituras Sagradas
(Bíblia de Osterwald, Bíblia de Lamennais e Bíblia da Igreja Grega, ou seja, a
Septuaginta Grega), fazendo comparações de textos, razão pela qual podemos
considerar que essas outras edições também lhe serviram de fonte de
pesquisa.
Nosso autor faz as citações com a indicação correspondendo aos devidos
capítulos e versículos; no entanto, algumas marcações (8 no total) aparecem
na obra original de Kardec com inconsistências em relação à divisão
convencional, e que para esta tradução foram devidamente corrigidas,
conforme a tabela seguinte:

Referência nesta obra Marcação equivocada Marcação correta

Cap. IV, item 3 Marcos, 9: 10-12 Marcos, 9:11-12


Cap. V, item 1 Marcos, 5: 5-6, 10 Marcos, 5:4-6, 10
Cap. IX, item 1 Mateus, 5: 4 Mateus, 5:5
Cap. XII, item 1 Mateus, 5: 20, 43-47 Mateus, 5: 43-47
Cap. XIX, item 1 Mateus, 17: 14-19 Mateus, 17: 14-20
Cap. XXIV, item 3 Mateus, 8: 10-15 Mateus, 10: 10-11, 13-15
Cap. XXV, item 1 Mateus, 8: 7-11 Mateus, 7: 7-11
Cap. XXVIII, item 2 Mateus, 5: 9-13 Mateus, 6: 9-13
390 – Allan Kardec

No total, Kardec fez 139 citações bíblicas, oriundas de 59 capítulos e 663


versículos. A base dos textos transcritos vem dos quatro evangelhos: Mateus
(74 citações), Marcos (17), Lucas (31) e João (8), com destaque para o célebre
Sermão da Montanha (cerca de 30% de todas as citações).
Há também quatro citações do Novo Testamento: 1 da Epístola de João, 2
da Epístola de Paulo aos Coríntios e 1 do livro dos Atos dos Apóstolos.
Finalmente, há ainda 5 passagens do Velho Testamento: 2 citações do
livro de Êxodo, 1 de Isaías, Jeremias e Jó.
391 – O Evangelho segundo o Espiritismo

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392 – Allan Kardec

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