O Evangelho Segundo o Espiritismo Luzespirita
O Evangelho Segundo o Espiritismo Luzespirita
O Evangelho Segundo o Espiritismo Luzespirita
Distribuição gratuita:
Portal Luz Espírita
3 – O Evangelho segundo o Espiritismo
O EVANGELHO
SEGUNDO O
ESPIRITISMO
Allan Kardec
Tradução:
Ery Lopes
Nota do tradutor
Observação: as notas de rodapé de autoria do tradutor estão sinalizadas no final com a inscrição “N.
T.”; as demais, sem sinalização, correspondem à tradução das notas de Allan Kardec contidas na obra
original.
5 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Apresentação da obra
Allan Kardec
(1804-1869)
8 – Allan Kardec
O EVANGELHO
SEGUNDO O
ESPIRITISMO
CONTENDO
QUARTA EDIÇÃO
PARIS, 1867
10 – Allan Kardec
SUMÁRIO
PREFÁCIO – pág. 15
INTRODUÇÃO – pág. 16
I. OBJETIVO DESTA OBRA – II. AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA: Controle universal
do ensino dos Espíritos – III. NOTÍCIAS HISTÓRICAS – IV. SÓCRATES E PLATÃO,
PRECURSORES DA IDEIA CRISTÃ E DO ESPIRITISMO: Resumo da doutrina de Sócrates e de
Platão.
XIII – QUE SUA MÃO ESQUERDA NÃO SAIBA O QUE SUA MÃO DIREITA DÁ – pág. 184
Fazer o bem sem ostentação – Infortúnios ocultos – O óbolo da viúva – Convidar os
pobres e os estropiados. Doar sem esperar retribuição – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS:
Caridade material e caridade moral – A beneficência – A piedade – Os órfãos –
Benefícios pagos com a ingratidão – Beneficência exclusiva
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
1Menção ao sacerdote católico francês Louis-Isaac Lemaistre de Sacy (1613-1684) cuja tradução bíblica
(Bíblia de Port-Royal) tornou-se a mais difundida versão francesa em sua época. — N. T (Nota do
Tradutor).
18 – Allan Kardec
2 Sem dúvidas, nós poderíamos ter dado sobre cada assunto um número maior de comunicações obtidas
numa multidão de outras cidades e centros espíritas além das que citamos, mas quisemos, antes de
tudo, evitar a monotonia de repetições inúteis e limitar a nossa escolha àquelas que — pela essência e
pela forma — se enquadram mais especialmente no formato dessa obra, reservando para as publicações
posteriores as comunicações que não couberam aqui.
Quanto aos médiuns, preferimos não nomear nenhum; na maior parte dos casos, foi a pedido
deles mesmos para que não fossem designados, e desde então não convinha fazer exceções. Os nomes
dos médiuns, aliás, não acrescentariam nenhum valor à obra dos Espíritos; portanto, a menção deles
não seria mais do que uma satisfação do amor-próprio, à qual os médiuns verdadeiramente sérios não
dão a menor importância; eles compreendem que, como o seu papel é puramente passivo, o valor das
comunicações não realça em nada o mérito pessoal deles, e que seria pueril se envaidecerem de um
trabalho intelectual ao qual eles prestam apenas um auxílio mecânico.
19 – O Evangelho segundo o Espiritismo
fosse a classe a que ele pertencesse, teria sido objeto de prevenções de muita
gente e nem todas as nações o teriam aceitado, enquanto os Espíritos —
comunicando-se em toda parte, a todos os povos, a todas as seitas e a todos os
partidos — são aceitos por todos. O Espiritismo não tem nacionalidade, está
além de todos os cultos particulares, nem é imposto por nenhuma classe da
sociedade, posto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus
parentes e amigos de além-túmulo. Era preciso que fosse assim para que ele
pudesse conclamar todos os homens à fraternidade; se ele não fosse colocado
em um terreno neutro, teria mantido as dissensões em vez de apaziguá-las.
Essa universalidade no ensinamento dos Espíritos faz a força do
Espiritismo; nela também reside a causa de sua propagação tão rápida;
enquanto a voz de um único homem — mesmo com o auxílio da imprensa —
levaria séculos antes de chegar ao ouvido de todos, eis que milhares de vozes
se fazem ouvir simultaneamente em todos os pontos da Terra, para proclamar
os mesmos princípios e os transmitir aos mais ignorantes, assim como aos
mais instruídos, a fim de que ninguém seja deserdado. Essa é uma vantagem
da qual nenhuma das doutrinas que já surgiram até hoje ainda não desfrutou.
Logo, se o Espiritismo é uma realidade, ele não teme o malquerer dos homens
nem as revoluções morais, nem as convulsões físicas do globo, porque
nenhuma dessas coisas pode atingir os Espíritos.
Mas é essa não é a única vantagem que resulta dessa excepcional
posição; o Espiritismo encontra aí uma garantia toda poderosa contra os
cismas que pudessem ser suscitados — quer seja pela ambição de alguns,
quer seja pelas contradições de certos Espíritos. Tais contradições são
certamente um escolho, mas que traz consigo o remédio ao lado do mal.
Sabe-se que os Espíritos, por consequência da diferença que existe nas
suas capacidades, estão longe de possuir individualmente toda a verdade; que
não é permitido a todos penetrar determinados mistérios; que o saber deles é
proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares não sabem mais que
os homens, e até menos que certos homens; que há entre eles, como há entre
os homens, presunçosos e pseudossábios que creem saber o que não sabem;
que há sistemáticos que tomam as suas próprias ideias como verdades; enfim,
que os Espíritos da ordem mais elevada — aqueles que já estão
21 – O Evangelho segundo o Espiritismo
3Areópago: célebre tribunal de justiça de Atenas, na Grécia Antiga, reconhecido pela honestidade e pela
retidão dos seus julgamentos. — N. T.
26 – Allan Kardec
NAZARENOS – Nome dado, na antiga lei, aos judeus que faziam voto —
perpétuo ou temporário — de conservar uma perfeita pureza; eles se
devotavam à castidade, à abstinência de bebidas alcoólicas e à conservação da
cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram nazarenos.
Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros cristãos, por
alusão a Jesus de Nazaré.
Esse também foi o nome de uma seita herética dos primeiros séculos da
Era Cristã, a qual — assim como os ebionitas, de quem adotavam certos
4 Pentateuco: os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio)
cuja autoria é atribuída a Moisés; também é conhecida como Torá (Lei, em hebraico). — N. T.
28 – Allan Kardec
ESCRIBAS – Nome inicialmente dado aos secretários dos reis de Judá e a certos
intendentes dos exércitos judeus. Mais tarde, essa designação foi aplicada
especialmente aos doutores que ensinavam a lei de Moisés e a interpretavam
para o povo. Faziam causa comum com os fariseus, de quem partilhavam os
princípios e a antipatia contra os inovadores; por isso Jesus os incluiu na
mesma reprovação.
SADUCEUS – Seita judia que se formou por volta do ano 248 a.C.; assim
nomeada por causa de Sadoc, seu fundador. Os saduceus não acreditavam
nem na imortalidade da alma, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e
maus. No entanto, eles acreditavam em Deus; mas, como não esperavam nada
31 – O Evangelho segundo o Espiritismo
ESSÊNIOS – Seita judia fundada por volta do ano 150 a.C., no tempo dos
macabeus, e cujos membros, que habitavam uma espécie de monastério,
formavam entre si um tipo de associação moral e religiosa. Eles se
distinguiam pelos costumes brandos e pelas virtudes austeras, ensinavam o
amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na
ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra,
compartilhavam seus bens e se dedicavam à agricultura. Opostos aos
saduceus sensualistas, que negavam a imortalidade, e aos fariseus rigorosos
pelas práticas exteriores e nos quais a virtude era só aparente, os essênios
nunca participavam das querelas que dividiam essas duas seitas. Seu gênero
de vida parecia com a dos primeiros cristãos, e os princípios da moral que eles
professavam levaram algumas pessoas a pensarem que Jesus fizera parte
dessa seita antes do começo de sua missão pública. O que é certo é que ele
deve ter conhecido essa seita, mas nada prova que ele tivesse sido filiado a
ela, e tudo que foi escrito sobre esse assunto é hipotético.6
IV – SÓCRATES E PLATÃO,
PRECURSORES DA IDEIA CRISTÃ E DO ESPIRITISMO
Do fato de que Jesus devia conhecido a seita dos essênios, seria errôneo
concluir que ele tirou a sua doutrina dessa seita e que, se ele tivesse vivido
noutro meio, teria professado outros princípios. As grandes ideias jamais
surgem subitamente; aquelas que tem por base a verdade sempre têm
precursores que lhes preparam parcialmente os caminhos; ademais, quando é
chegado o tempo, Deus envia um homem com a missão de resumir, coordenar
e completar os elementos esparsos e formar a unidade deles; desse modo, não
surgindo bruscamente, a ideia encontra já no seu aparecimento espíritos
bastante dispostos a aceitá-la. Assim aconteceu com a ideia cristã que foi
pressentida vários séculos antes de Jesus e dos essênios, e da qual Sócrates e
Platão foram os principais precursores.
Sócrates, bem como o Cristo, nada escreveu, ou pelo menos não deixou
nenhum escrito. Como ele, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo,
por ter atacado as crenças conhecidas e por ter colocado a virtude real acima
da hipocrisia e do simulacro das formalidades — numa palavra, por ter
combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus foi acusado
pelos fariseus de corromper o povo com os seus ensinamentos, Sócrates
também foi acusado pelos fariseus do seu tempo — pois sempre houve
33 – O Evangelho segundo o Espiritismo
mundo espiritual para encarnar e do seu retorno a esse mesmo mundo após a
morte; é, enfim, a semente da doutrina dos anjos decaídos.
IV. A alma impura, nesse estado, fica oprimida e é arrastada novamente para
o mundo visível pelo horror do que é invisível e imaterial; então ela vaga —
como se diz — em torno dos monumentos e dos túmulos, junto aos quais já se
têm visto algumas vezes fantasmas tenebrosos, como devem ser as imagens
das almas que deixaram o corpo sem estarem inteiramente puras e que ainda
conservam alguma coisa da forma material — o que faz com que o olho possa
percebê-las. Não são as almas dos bons, mas as dos maus, que são forçadas a
vagar nesses lugares, onde trazem consigo a punição da sua vida anterior e
onde continuam a errar até que os apetites inerentes à forma material — que
eles mesmos se deram — as recoloquem num corpo; e com isso, sem dúvidas,
retomam os mesmos costumes que durante a vida anterior representavam o
objeto de suas predileções.
V. Após a nossa morte, o gênio (daïmon, demônio), que nos tinha sido
designado durante a nossa vida, nos encaminha a um lugar onde se reúnem
todos os que deviam ser conduzidos ao Hades7, para ali serem julgados.
Depois de terem estado no Hades o tempo necessário, as almas são
reconduzidas a esta vida nos numerosos e longos períodos.
Essa é a doutrina dos anjos guardiões, ou Espíritos protetores, e das
reencarnações sucessivas após intervalos mais ou menos longos de
erraticidade.
7Hades: o mundo inferior, segundo a mitologia grega; mais ou menos equivalente ao inferno da tradição
bíblica. — N. T.
36 – Allan Kardec
VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; eles formam o
laço que une o Grande Todo consigo mesmo. Como a divindade jamais entra
em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os
deuses se relacionam e conversam com ele — quer seja durante a vigília, quer
seja durante o sono.
VIII. Já que a alma é imaterial, ela deve passar, após esta vida, para um mundo
igualmente invisível e imaterial, do mesmo modo que o corpo ao se decompor
retorna à matéria. Importa somente distinguir bem a alma pura —
verdadeiramente imaterial e que, como Deus, se nutre de ciência e
pensamentos — da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais,
que a impedem de se elevar rumo ao divino e a retêm nos lugares de sua
passagem terrestre.
IX. Se a morte fosse a dissolução total do homem, isso seria uma grande
vantagem para os ímpios após a sua morte, por ficarem livres ao mesmo
tempo do corpo, da alma e dos vícios. Aquele que adornou sua alma — não
com enfeites estranhos, mas sim com aquilo que lhe é próprio —, só esse
poderá esperar tranquilamente a hora da sua partida para o outro mundo.
X. O corpo conserva bem marcados os vestígios dos cuidados que lhe foram
dispensados ou dos acidentes que sofreu. Ocorre o mesmo com a alma; uma
vez despojada do corpo ela traz os traços evidentes do seu caráter, de suas
afeições e as impressões que cada um dos atos de sua vida deixou nela. Assim,
a maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com
uma alma carregada de crimes. Veja, Cálicles, que nem tu nem Pólux, nem
Górgias poderiam provar que se deva seguir outra vida que nos seja útil
quando estivermos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única que
permanece inabalável é a de que mais vale sofrer do que cometer uma
injustiça e que, antes de todas as coisas, devemos cuidar, não de parecer um
homem de bem, mas de ser um homem de bem. (Diálogos de Sócrates com
seus discípulos na prisão.)
Aqui nós encontramos esse outro ponto capital, confirmado hoje pela
experiência: que a alma não depurada conserva as ideias, as tendências, o
38 – Allan Kardec
caráter e as paixões que ela tinha na Terra. Esse ditado: mais vale sofrer do
que cometer uma injustiça, não é completamente cristão? É o mesmo
pensamento que Jesus exprimiu através desta alegoria: “Se alguém te bater
numa face, ofereça-lhe a outra.” (Cap. XII, itens 7 e 8.)
XII. Nunca se deve pagar injustiça com injustiça, nem fazer mal a
ninguém, qualquer que seja o mal que nos tenham feito. Entretanto,
poucos admitirão esse princípio, e os que discordarem dele naturalmente só
desprezarão uns aos outros.
Não está aí o princípio da caridade que nos ensina a não retribuir o mal
com o mal e a perdoar os nossos inimigos?
XIII. É pelos frutos que se conhece a árvore. É preciso qualificar cada ação
conforme aquilo que ela produz: chamá-la de má, quando dela vem o mal, e
de boa, quando dela nasce o bem.
Esta máxima: “É pelos frutos que se conhece a árvore”, encontra-se
textualmente repetida várias vezes no Evangelho.
XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama
nem a si mesmo nem ao que é seu, mas sim a uma coisa que lhe é ainda mais
estranha do que aquilo que lhe pertence. (Cap. XVI.)
XVI. Chamo de homem vicioso a esse amante vulgar que ama o corpo mais do
que a alma. O amor está por toda parte na natureza, convidando-nos a
exercer nossa inteligência; nós o encontramos até no movimento dos astros.
É o amor que ornamenta a natureza com os seus ricos tapetes; ele se enfeita e
fixa sua morada lá onde encontra flores e perfumes. É também o amor que dá
paz aos homens, a calma ao mar, o silêncio aos ventos e o sono à dor.
XVII. A virtude não pode ser ensinada; ela vem por um dom de Deus aos que a
possuem.
Isso é quase a doutrina cristã sobre a graça; mas, se a virtude for um
dom de Deus, seria um favor, e então podemos perguntar por que essa virtude
não seria concedida a todo mundo; por outro lado, se for um dom, não haverá
mérito para aquele que a possui. O Espiritismo é mais explícito ao dizer que
aquele que possui virtude a adquiriu por seus esforços, nas suas existências
sucessivas em se despojando pouco a pouco de suas imperfeições. A graça é a
força com a qual Deus favorece todo homem de boa vontade para se depurar
do mal e para fazer o bem.
XX. Todos os homens, a partir da infância, fazem muito mais mal do que bem.
Essa afirmação de Sócrates toca na grave questão da predominância do
mal na Terra, questão insolúvel sem o conhecimento da pluralidade dos
41 – O Evangelho segundo o Espiritismo
XXI. Há sabedoria em não achar que sabe aquilo que você não sabe.
Essa vai endereçada às pessoas que criticam aquilo de que muitas vezes
elas não sabem absolutamente nada. Platão completa esse pensamento de
Sócrates, dizendo: “Primeiro, tentemos tornar essas pessoas — se for possível
— mais honestas nas palavras; se não for possível, não nos preocupemos
com elas e vamos procurar somente a verdade. Tratemos de nos instruir, mas
não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os espíritas com relação
aos seus contraditores de boa ou má-fé. Se Platão revivesse hoje, ele
encontraria as coisas mais ou menos como no seu tempo e poderia usar da
mesma linguagem. Sócrates também toparia com gente que zombaria da sua
crença nos Espíritos e que o trataria como louco, assim como ao seu discípulo
Platão.
Por ter professado esses princípios, primeiro Sócrates foi ridicularizado
e depois acusado de impiedade, sendo condenado a beber da cicuta;8 tanto é
assim que as grandes verdades novas — suscitando contra si os interesses e
os preconceitos que elas ferem — não podem se estabelecer sem luta e sem
fazer mártires.
8 Cicuta: veneno fatal que Sócrates foi obrigado a ingerir para cumprir sua pena de morte. — N. T.
42 – Allan Kardec
CAPÍTULO I
1. Não pensem que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas; não os vim
destruir, mas sim cumpri-los, pois eu lhes digo em verdade que o céu e a
Terra não passarão até que tudo o que consta na lei esteja perfeitamente
cumprido, desde um único jota até um único ponto. (São Mateus, 5: 17 e 18)
Moisés
2. Há duas partes distintas na lei mosaica: a lei de Deus, promulgada no monte
Sinai, e a lei civil, ou disciplinar, estabelecida por Moisés. Uma é invariável; a
outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o
tempo.
A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes:
I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirou do Egito, da casa da servidão. –
Não tenham diante de mim outros deuses estrangeiros. – Não façam imagem
esculpida e nem figura alguma de tudo o que está acima no céu e embaixo, na
Terra, nem de tudo o que está nas águas, sob a terra. Não os adorem e nem
lhes prestem nenhum o soberano culto.
II. Não tomem em vão o nome do Senhor, vosso Deus.
III. Lembrem-se de santificar o sábado (dia do sabbat).
IV. Honrem o vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverem longo tempo na terra
que o Senhor vosso Deus vos dará.
V. Não matem.
43 – O Evangelho segundo o Espiritismo
O Cristo
3. Jesus não veio destruir a lei, quer dizer, a lei de Deus; ele veio cumpri-la,
isto é, desenvolvê-la, dar a ela o seu verdadeiro sentido e a adequar ao grau de
adiantamento dos homens. É por isso que encontramos nessa lei o princípio
dos deveres para com Deus e para com o próximo, que constitui a base da sua
doutrina. Quanto às leis de Moisés propriamente ditas, ele, ao contrário, as
modificou profundamente — tanto na sua essência quanto na sua forma: ele
O Espiritismo
5. O espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de
provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas
45 – O Evangelho segundo o Espiritismo
relações com o mundo corpóreo; ele no-lo mostra não mais como coisa
sobrenatural, mas ao contrário, como uma das forças vivas e incessantemente
atuantes da natureza, como a fonte de uma multidão de fenômenos até hoje
incompreendidos e, por essa razão, relegados ao domínio do fantástico e do
maravilhoso. É a essas relações que o Cristo faz alusão em muitas
circunstâncias, e é por isso que muitas coisas que ele disse permaneceram
ininteligíveis ou foram falsamente interpretadas. O espiritismo é a chave pela
qual tudo se explica com facilidade.
7. Assim como o Cristo disse: “Eu não vim destruir a lei, mas cumpri-la”, o
espiritismo diz igualmente: “Não venho destruir a lei cristã, mas cumpri-la”.
Ele não ensina nada contrário ao que o Cristo ensinou; ele desenvolve,
completa e explica, em termos claros para todo mundo, o que foi dito apenas
sob uma forma alegórica; ele vem realizar, nos tempos preditos, aquilo que o
Cristo anunciou, e vem preparar a concretização das coisas futuras.10 Em
suma, ele é a obra do Cristo, que preside pessoalmente — assim como ele
igualmente anunciou — a regeneração que se opera e prepara o reino de Deus
na Terra.
10Esta predição feita por Jesus, que o Espiritismo vem realizar, está bem desenvolvida no capítulo VI: O
Cristo Consolador, nesta obra. — N. T.
46 – Allan Kardec
tem o poder de se opor, porque elas fazem parte dos desígnios de Deus e
resultam da lei do progresso, que é uma lei de Deus.
A Nova Era
9. Deus é único, e Moisés é o Espírito que Deus enviou em missão para torná-
lo conhecido, não só dos hebreus como também dos povos pagãos. O povo
hebreu foi o instrumento de que Deus se serviu para sua revelação através de
Moisés e dos profetas, e as vicissitudes desse povo ocorrem para
impressionar os olhos dos homens e derrubar o véu que lhes ocultava a
divindade.
Os mandamentos de Deus dados através de Moisés contêm o germe da
mais extensa moral cristã; os comentários sobre a Bíblia restringiram seu
significado porque, se essa moral tivesse sido implementada em toda a sua
pureza, ela então não teria sido compreendida. Mas nem por isso os dez
mandamentos de Deus deixavam de ser uma espécie de frontispício brilhante,
tal qual um farol que devesse iluminar a humanidade no caminho a percorrer.
A moral ensinada por Moisés era apropriada ao estado de adiantamento
no qual se encontravam os povos a quem ela foi chamada a regenerar, e esses
povos — semisselvagens quanto ao aperfeiçoamento da alma — não teriam
compreendido que era possível adorar a Deus de outro modo que não por
meio de holocaustos, nem que se devesse perdoar um inimigo. A inteligência
deles — que era notável do ponto de vista da matéria e até mesmo das artes e
das ciências — era bastante atrasada em moralidade, e não teria se
convertido sob a ordem de uma religião inteiramente espiritual; faltava para
eles uma representação semimaterial tal como a religião hebraica então a
oferecia. Era assim que os sacrifícios falavam aos seus sentidos, enquanto a
ideia de Deus falava ao seu espírito.
O Cristo foi o iniciador da moral mais pura e da mais sublime: da moral
evangélico-cristã que deve renovar o mundo, aproximar os homens e os
48 – Allan Kardec
alegria. Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos dizem isso
com frequência. Curvem-se ao sopro precursor da tempestade, para que não
sejam derrubados; quer dizer, preparem-se e não se assemelhem às virgens
loucas que foram apanhadas desprevenidas pela chegada do esposo.11
A revolução que se prepara é antes moral do que material, e os grandes
Espíritos, mensageiros divinos, sopram a fé, para que todos vocês, obreiros
esclarecidos e ardorosos, façam ouvir vossa humilde voz, pois vocês são o
grão de areia, mas sem grãos de areia não haveria montanhas. Assim, pois,
que esta afirmação “Somos pequenos” não façam sentido para vocês. Cada um
com sua missão, cada um com o seu trabalho. Não é a formiga que constrói o
seu formigueiro? Não são os animálculos imperceptíveis que elevam os
continentes? A nova cruzada já começou; apóstolos da paz universal e não de
uma guerra, modernos são Bernardos:12 olhem e marchem avante, pois a lei
dos mundos é a lei do progresso.
FÉNELON (Poitiers, 1861)
Nota – Será que santo Agostinho vem demolir o que edificou? Não, certamente;
mas como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o que não via como homem;
sua alma desprendida entrevê novas claridades e compreende o que antes não
compreendia. Novas ideias lhe revelaram o verdadeiro sentido de certas palavras; na
Terra, ele julgava as coisas conforme os conhecimentos que possuía, mas quando uma
nova luz brilhou para ele, então pôde julgá-las mais claramente; foi assim que ele teve
que reconsiderar sua crença a respeito dos Espíritos íncubos e súcubos,13 além do
anátema14 que ele havia lançado contra a teoria dos antípodas. Agora, que o
cristianismo lhe aparece em toda a sua pureza, ele pode, sobre alguns pontos, pensar
de modo diverso de quando estava vivo, sem deixar de ser o apóstolo cristão; ele
pode, sem renegar sua fé, fazer-se o propagador do espiritismo, porque vê nele a
realização das coisas preditas. Proclamando-o hoje, ele não faz mais do que nos
conduzir a uma interpretação mais sã e mais lógica dos textos. Assim acontece com
outros Espíritos que se encontram numa posição análoga.
13 Segundo a crença vulgar, típica da Era Medieval, íncubos e súcubos eram os demônios que vinham
durante o sono tentar sexualmente os cristãos, com o objetivo de desviá-los do caminho religioso, sendo
o primeiro um diabo na forma masculina, para tentar as mulheres, e o outro na forma feminina, para
levar os homens à perdição. — N. T.
14Anátema: sentença de maldição aplicada pela religião católica contra os seus hereges, que então são
excomungados da igreja. — N. T.
51 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO II
A vida futura
2. Por essas palavras, Jesus designa claramente a vida futura, que ele
apresenta em todas as circunstâncias como o término para o qual se
encaminha a humanidade e como devendo ser o objeto das principais
preocupações do homem na Terra; todas as suas máximas se reportam a esse
grande princípio. Com efeito, sem a vida futura, a maior parte dos seus
preceitos de moral não teriam nenhuma razão de ser; é por isso que aqueles
que não creem na vida futura — imaginando que ele só falava da vida
presente — não compreendem tais preceitos ou os acham infantis.
Portanto, esse dogma pode ser considerado como o ponto central do
ensinamento do Cristo; eis por que é colocado entre os primeiros lugares à
frente desta obra, pois ele deve ser o alvo de todos os homens; só ele pode
52 – Allan Kardec
A realeza de Jesus
O ponto de vista
5. A ideia nítida e precisa que se faz da vida futura concede uma fé inabalável
no futuro, e essa fé tem consequências imensas sobre a moralização dos
homens, porque ela muda completamente o ponto de vista sob o qual as
pessoas encaram a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na
vida espiritual que é indefinida, a vida corpórea não é mais do que uma
passagem, uma breve estadia num país ingrato. As vicissitudes e tribulações
da vida são só incidentes que ele enfrenta com paciência, pois sabe que elas
têm curta duração e devem ser seguidas de uma situação mais feliz; a morte
54 – Allan Kardec
nada tem de apavorante; ela não é mais a porta do nada, e sim a porta da
libertação que abre ao exilado a entrada numa morada de felicidade e de paz.
Sabendo que está num lugar temporário e não definitivo, o homem encara as
preocupações da vida com mais indiferença e disso resulta para ele uma
calma de espírito que suaviza as suas amarguras.
Pela simples dúvida sobre a vida futura, o homem dirige todos os seus
pensamentos para a vida terrestre; sem a certeza do futuro, ele se dedica só
na vida presente; sem entrever os bens mais preciosos que os da Terra, ele se
comporta igual uma criança que não vê nada além de seus brinquedos; para
obtê-los, não há nada que ele não faça e a perda do menor desses bens é um
doloroso desgosto; uma decepção, uma esperança desiludida, uma ambição
não realizada, uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos
são outros tantos tormentos que fazem da sua vida uma angústia perpétua,
entregando-se assim voluntariamente a uma verdadeira tortura a todo
instante. Tomando seu ponto de vista a partir da vida terrena, no centro do
qual ele está colocado, tudo ao seu redor assume grandes proporções; o mal
que o atinja, assim como o bem que incumba aos outros, tudo aos seus olhos
adquire uma grande importância. Da mesma forma, para aquele que está no
interior de uma cidade, tudo parece grande: tanto os homens que ocupam o
topo da escala quanto os monumentos; mas se ele se transportar para uma
montanha, as pessoas e as coisas parecerão bem pequenos para ele.
Assim acontece com a pessoa que encara a vida terrestre do ponto de
vista da vida futura: a humanidade, bem como as estrelas do firmamento,
perde-se na imensidão; ela então percebe que grandes e pequenos estão
misturados como as formigas sobre um monte de terra; que proletários e
potentados são da mesma estatura; então ela tem pena dessas pessoas
efêmeras que se preocupam tanto em conquistar aí um lugar que as eleva tão
pouco e que elas conservam por tão pouco tempo. É assim que a importância
dada aos bens terrenos está sempre na razão inversa da fé na vida futura.
e, mesmo com a certeza de que só ficará num lugar por pouco tempo, ainda
assim ele quer estar o melhor ou o menos mal possível; não há ninguém que,
encontrando um espinho na sua mão, não o retire, para não se machucar. Ora,
a procura pelo bem-estar força o homem a melhorar todas as coisas, já que ele
é impulsionado pelo instinto do progresso e da conservação — que está nas
leis da natureza. Portanto, ele trabalha por necessidade, por gosto e por
dever, e dessa maneira ele cumpre os desígnios da Providência, que o colocou
na Terra para essa finalidade. Somente aquele que considera o porvir dá à
vida presente a sua relativa importância, e facilmente ele se consola de seus
fracassos justamente pensando na destinação que o espera.
Consequentemente, Deus não condena os gozos terrenos, mas sim o
abuso desses gozos em prejuízo das coisas da alma; é contra esse abuso que
está prevenido quem aplica a si mesmo estas palavras de Jesus: Meu reino
não é deste mundo.
Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se ao rico que
perde uma pequena soma sem se alterar com isso; aquele que concentra seus
pensamentos na vida terrena parece o homem pobre que perde tudo o que
possui e se desespera.
CAPÍTULO III
HÁ MUITAS MORADAS
NA CASA DE MEU PAI
Diferentes estados da alma na erraticidade – Diferentes categorias
de mundos habitados – Destinação da Terra. Causa das misérias
humanas – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Mundos inferiores e mundos
superiores – Mundos de expiações e de provas – Mundos
regeneradores – Progressão dos mundos
enquanto repousam das fadigas da luta; mundos felizes, nos quais o bem se
sobrepõe ao mal; mundos celestes ou divinos, morada dos Espíritos
depurados onde o bem reina completamente. A Terra pertence à categoria
dos mundos de expiação e de provas; eis por que neste mundo o homem está
exposto a tantas misérias.
7. Nós faríamos uma ideia muito falsa dos habitantes de uma grande cidade se
60 – Allan Kardec
16 Campos Elíseos: na mitologia greco-romana, lugar para onde iam as almas (manes) dos heróis e dos
justos após a morte; mais ou menos equivalente ao céu, ou paraíso, da tradição bíblica. — N. T.
62 – Allan Kardec
11. Neste mundo, vocês precisam do mal para sentir o bem; da noite, para
admirar a luz; da enfermidade, para apreciar a saúde. Mas naqueles outros,
esses contrastes não são necessários; a eterna luz, a eterna beleza, a eterna
calma da alma proporcionam um eterna alegria, que não é perturbada nem
pelas angústias da vida material nem pelo contato com os maus, que lá não
têm acesso. Eis o que o espírito humano tem a maior dificuldade em
compreender; ele foi engenhoso para pintar os tormentos do inferno, mas
nunca pôde imaginar as alegrias do céu. E Por quê? Porque, sendo inferior, ele
só tem experimentado dores e misérias; ele jamais entreviu as claridades
63 – O Evangelho segundo o Espiritismo
celestes, pois ele só pode falar do que conhece. Contudo, à medida que ele se
eleva e se depura, o horizonte se amplia e então ele compreende o bem que
está diante dele, como compreendeu o mal que ele deixou para trás.
12. Entretanto, esses mundos afortunados não são mundos privilegiados, pois
que Deus não é parcial com nenhum de seus filhos; ele dá a todos os mesmos
direitos e as mesmas facilidades para chegarem até lá; ele faz todos partirem
do mesmo ponto e não dota nenhum melhor do que aos outros; os primeiros
postos são acessíveis a todos: cabe-lhes conquistá-los pelo seu próprio
trabalho; cabe-lhes alcançá-los o mais cedo possível ou definhar durante
séculos e séculos nas profundezas da humanidade.
Resumo do ensino de todos os Espíritos superiores
13. O que lhes direi sobre os mundos de expiações que vocês já não saibam?
Pois então, basta considerar a Terra em que habitam. A superioridade da
inteligência em grande número dos seus habitantes indica que ela não é um
mundo primitivo, destinado à encarnação dos Espíritos que acabaram de sair
das mãos do Criador. As qualidades inatas que eles trazem consigo
constituem a prova de que já viveram e que já realizaram um certo progresso;
mas também os numerosos vícios aos quais estão inclinados são o indício de
uma grande imperfeição moral. Por isso, Deus os colocou num mundo ingrato
para aí expiarem suas faltas, através de um trabalho penoso e das misérias da
vida, até que eles tenham merecido ir para um mundo mais feliz.
Mundos regeneradores
16. Entre essas estrelas que cintilam na abóbada azulada, quantos mundos há
iguais ao de vocês, destinados pelo Senhor para a expiação e a provação! Mas,
entre eles há também mundos mais miseráveis e mundos melhores, como há
os transitórios, que podemos chamar de regeneradores. Cada turbilhão
planetário, correndo no espaço em torno de um centro comum, arrastando
consigo seus mundos primitivos, de exílio, de provação, de regeneração e de
felicidade. Já lhes foi falado desses mundos onde a alma recém-nascida é
65 – O Evangelho segundo o Espiritismo
colocada, até então ainda ignorante do bem e do mal; mas ela pode caminhar
rumo a Deus, sendo ela senhora de si mesma, na posse do livre-arbítrio.
Também já lhes foi revelado de que largas faculdades a alma é dotada para
fazer o bem; mas, infelizmente, existem aquelas que sucumbem, e Deus, não
querendo aniquilá-las, permite que possam ir para esses mundos onde, de
encarnação em encarnação, elas se depuram, regeneram e retornam dignas da
glória a elas destinada.
18. Ah, mas nesses mundos o homem ainda é falível e o Espírito do mal não
perdeu completamente o seu império. Não avançar é recuar, e se o homem
não estiver firme na senda do bem, ele pode recair nos mundos de expiação
— onde o aguardam novas e mais terríveis provações.
Então, contemplem essa abóbada azulada, à noite, na hora do repouso e
da prece, e, diante dessas incontáveis esferas que brilham sobre as vossas
cabeças, indaguem a vocês mesmos quais delas levam a Deus e peçam a ele
para que um mundo regenerador se abra para vocês, após a expiação na
Terra.
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)
CAPÍTULO IV
e o trataram como bem como o quiseram. É assim que eles farão sofrer o
Filho do Homem. — Então os discípulos compreenderam que era de João
Batista que ele lhes havia falado. (São Mateus, 17: 10 a 13; são Marcos, 9: 11 a
1317)
Ressurreição e reencarnação
17 Ao logo desta obra, encontramos alguns equívocos no texto original com relação à marcação das
passagens bíblicas padronizadas atualmente; por exemplo, para esta passagem do Evangelho segundo
Marcos, assinalando os versículos de 10 a 12 do capítulo 9, sendo que a referência exata corresponde
apenas aos versículos 11 e 12, tal como escrevemos aqui. Esta ocorrência nos enseja informar que
cuidamos de corrigir nesta tradução as marcações equivocadas subsequentes; veja a lista dessas
ocorrências no anexo no final desta obra. — N. T.
70 – Allan Kardec
doutor, pois ninguém poderia fazer os milagres que o senhor faz se Deus não
estivesse com ele.
Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade eu te digo: Ninguém
pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.
Nicodemos lhe disse: Como um homem pode nascer, já sendo velho? Por
acaso ele pode tornar a entrar no ventre de sua mãe para nascer uma
segunda vez?
Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade eu te digo: Se um homem
não renasce da água e do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus. O
que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não
fique admirado por eu te ter dito que é preciso que vocês nasçam de novo. O
Espírito sopra onde quer, e vocês ouvem a sua voz, mas não sabem de onde
ele vem nem para onde vai; o mesmo acontece com todo homem que é
nascido do Espírito.
Nicodemos lhe respondeu: Como isso pode ser feito? — Jesus lhe disse:
O quê?! Você é um mestre em Israel e ignora essas coisas? Em verdade, em
verdade eu te digo que nós não dizemos senão o que nós sabemos e só damos
testemunho do que temos visto; e, no entanto, vocês não aceitam o nosso
testemunho. Mas, se vocês não creem em mim quando eu lhes falo das coisas
da Terra, como acreditarão em mim quando eu lhes falar das coisas do céu?
(São João, 3: 1 a 12)
6. A ideia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na
Terra se encontra em muitas passagens dos Evangelhos, principalmente
naquelas recém-relatadas (itens 1 a 3). Se essa crença fosse um erro, Jesus
não teria deixado de combatê-la, como combateu tantas outras; longe disso,
ele a sanciona com toda a sua autoridade e a colocou como um princípio e
uma condição necessária, quando diz: Ninguém pode ver o reino de Deus se
não nascer de novo; e insiste, acrescentando: Não fique admirado por eu te
ter dito que É PRECISO que vocês nasçam de novo.
9. “O Espírito sopra onde quer; vocês ouvem a sua voz, mas não sabem
nem de onde ele vem nem para onde ele vai” pode ser entendido como: O
Espírito de Deus, que dá a vida a quem ele quer, ou como: a alma do homem;
nesta última acepção, “vocês não sabem de onde ele vem nem para onde ele vai”
significa que ninguém conhece nem o que foi nem o que será o Espírito. Se o
18A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo; ela traz o seguinte: não renasce da água e
do Espírito; a tradução de Sacy diz: do Santo Espírito; na de Lamennais consta: do Espírito Santo.
19 Gênesis, 1: 2, 6, 7 e 20. — N. T.
72 – Allan Kardec
Espírito — ou a alma — fosse criado ao mesmo tempo que o corpo, então nós
saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso,
essa passagem é a consagração do princípio da preexistência da alma e, por
conseguinte, o da pluralidade das existências.
10. Ora, desde o tempo de João Batista até a atualidade, o reino dos Céus é
tomado pela violência e são os violentos que se apoderam dele; pois, até João,
todos os profetas, assim como a lei, profetizaram; e se querem saber o que eu
lhes digo, ele mesmo é o Elias que há de vir. Quem tiver ouvidos para ouvir,
que ouça. (São Mateus, 11: 12 a 15)
12. Aqueles do vosso povo que foram mortos viverão de novo; aqueles que
morreram em meio a mim ressuscitarão. Despertem do seu sono e cantem os
louvores a Deus, vocês que habitam no pó; porque o orvalho que tomba sobre
vocês é um orvalho de luz e porque vocês arruinarão a Terra e o reino dos
gigantes. (Isaías, 26: 19)
73 – O Evangelho segundo o Espiritismo
13. Esta passagem de Isaías também é toda explícita: “Aqueles do vosso povo
que foram mortos viverão de novo”. Se o profeta quisesse ter falado da vida
espiritual, se quisesse ter falado que aqueles que tinham sido mortos não
estavam mortos em Espírito, então ele teria dito: ainda vivem, e não: viverão
de novo. No sentido espiritual, essas palavras seriam um contrassenso, pois
implicariam uma interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração
moral, elas seriam a negação das penas eternas, já que elas estabelecem o
princípio de que todos aqueles que estão mortos reviverão.
14. Mas quando o homem morre uma vez, quando seu corpo, separado do seu
espírito, é consumido, o que acontece com ele? — Uma vez tendo morrido o
homem, poderia ele reviver de novo? Nessa guerra em que me acho todos os
dias da minha vida, eu espero que chegue a minha mutação. (Jó, 14: 10, 14.
Tradução de Lemaistre de Sacy.)
Quando o homem morre, ele perde toda a sua força, ele expira; depois,
onde está ele? — Se o homem morre, reviverá? Esperarei todos os dias do
meu combate, até que chegue alguma mutação? (Idem. Tradução protestante
de Osterwald.)
que sustentava contra as misérias da vida; ele espera a sua mutação, isto é,
que ele se resigne. Na versão grega, esperarei parece mais se aplicar à nova
existência. “Quando a minha existência estiver acabada, eu esperarei, porque
a ela voltarei.” Jó parece se colocar, após a morte, no intervalo que separa uma
existência de outra, e diz que lá aguardará o seu retorno.
17. Mas a essa autoridade, do ponto de vista religioso, vem se juntar, do ponto
de vista filosófico, a das provas que resultam da observação dos fatos; quando
dos efeitos se quer remontar às causas, a reencarnação aparece como uma
necessidade absoluta, como condição inerente à humanidade; numa palavra,
como uma lei da natureza. Pelos seus resultados, ela se revela de uma
maneira — por assim dizer — material, como o motor oculto se revela pelo
movimento. Só a reencarnação pode dizer ao homem de onde ele vem, para
onde vai, por que está na Terra, e justificar todas as anomalias e todas as
injustiças aparentes que a vida apresenta.20
Sem o princípio da preexistência da alma e da pluralidade das
existências, a maioria das máximas do Evangelho são ininteligíveis; é por isso
que elas têm dado margem a interpretações tão contraditórias; esse princípio
é a chave que deve lhes restituir o verdadeiro sentido.
20Para os desenvolvimentos sobre o dogma da reencarnação, veja em O Livro dos Espíritos: cap. IV e V
[do Livro Segundo]; O Que é o Espiritismo: cap. II, por Allan Kardec; Pluralidade das existências, por
[André] Pezzani.
75 – O Evangelho segundo o Espiritismo
19. A união e a afeição que existem entre parentes são o indício da simpatia
anterior que os aproximou; assim se diz ao falar de uma pessoa cujo caráter,
gostos e inclinações não têm nenhuma semelhança com os dos seus parentes
mais próximos, que ela não é da família. Dizendo isso, enuncia-se uma
verdade maior do que se imagina. Deus permite essas encarnações de
Espíritos antipáticos ou estranhos numa mesma família, com o duplo objetivo
76 – Allan Kardec
Limites da encarnação
Necessidade da encarnação
Deus lhes confia a execução; ela é necessária para eles mesmos, porque a
atividade que são obrigados a empregar lhes auxilia o desenvolvimento da
inteligência. Sendo soberanamente justo, Deus deve dar uma parte igual a
todos os seus filhos; é por isso que ele concede a todos o mesmo ponto de
partida, a mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma
liberdade de agir; qualquer privilégio seria uma preferência e qualquer
preferência seria uma injustiça. Mas a encarnação, para todos os Espíritos,
não passa de um estado transitório; é uma tarefa que Deus lhes impõe no
começo da vida deles, como primeira prova do uso que farão do livre-arbítrio.
Aqueles que desempenham essa tarefa com zelo passa rapidamente e menos
penosamente esses primeiros degraus da iniciação, e desfrutam mais cedo do
fruto do seu trabalho. Aqueles que, ao contrário, fazem um mau uso da
liberdade que Deus lhes concede retardam o seu progresso; é assim que, pela
sua teimosia, eles podem prolongar indefinidamente a necessidade de
reencarnar, e é então que a encarnação se torna um castigo.
SÃO LUÍS (Paris, 1859)
CAPÍTULO V
BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS
Justiça das aflições – Causas atuais das aflições –
Causas anteriores das aflições – Esquecimento do passado
– Motivos de resignação – O suicídio e a loucura –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Bem e mal sofrer – O mal e o remédio
– A felicidade não é deste mundo – Perda de pessoas amadas.
Mortes prematuras – Se fosse um homem de bem, ele teria morrido
– Os tormentos voluntários – A verdadeira infelicidade – A melancolia –
Provações voluntárias. – O verdadeiro cilício – Devemos dar fim às
provas do próximo? – É permitido abreviar a vida do doente que sofre
sem esperança de cura? – Sacrifício da própria vida
– Proveito dos sofrimentos para outrem
2. Bem-aventurados são vocês que são pobres, porque o reino dos céus é de
vocês. Bem-aventurados são vocês que agora têm fome, porque serão
saciados. Felizes são vocês que agora choram, porque vocês hão de rir. (São
Lucas, 6: 20 e 21)
5. A lei humana atinge certas faltas e as pune; o condenado pode então dizer
que sofre a consequência do que ele tenha feito. Mas a lei não atinge nem
pode alcançar todas as faltas; ela incide mais especialmente sobre as que
trazem prejuízo à sociedade, e não sobre as que só prejudicam os que as
cometem. No entanto, Deus quer o progresso de todas as suas criaturas; é por
isso que ele não deixa impune qualquer desvio do caminho reto; não existe
uma só falta — por mais leve que seja —, nenhuma infração da sua lei, que
não acarrete consequências forçosas e inevitáveis, mais ou menos
84 – Allan Kardec
desagradáveis, donde se segue que — nas pequenas coisas, como nas grandes
— o homem é sempre punido por aquilo em que pecou. Os sofrimentos que
decorrem disso são para ele uma advertência de que agiu mal e lhe dão
experiência, fazendo-lhe sentir a diferença entre o bem e o mal, assim como a
necessidade de se melhorar, para evitar posteriormente o que foi para ele
numa fonte de amarguras; sem isso, ele não teria motivo algum para se
emendar; confiante na impunidade, ele retardaria o seu avanço e, por
conseguinte, a sua felicidade futura.
Mas a experiência algumas vezes chega um pouco tarde; quando a vida já
foi desperdiçada e perturbada, quando as forças estão gastas e o mal já é
irremediável, então o homem se põe a dizer: “Se no começo da vida eu
soubesse o que sei agora, quantas faltas eu teria evitado! Se tivesse que
recomeçar, eu me comportaria de outra maneira; mas não há mais tempo!”
Como diz o operário preguiçoso: “Perdi o meu dia”, também o homem diz
consigo: “Perdi a minha vida”. Porém, assim como para o operário o Sol se
levanta no dia seguinte e começa uma nova jornada que lhe permite reparar o
tempo perdido, também para o homem, após a noite do túmulo, raiará o sol de
uma nova vida na qual ele poderá aproveitar a experiência do passado e suas
boas resoluções para o porvir.
mesmos e que os põe à mercê da comiseração pública. Por que então seres tão
desgraçados, enquanto ao lado deles, sob o mesmo teto, na mesma família,
outros são favorecidos em todos os sentidos?
O que dizer, enfim, dessas crianças que morrem com pouca idade e da
vida só conheceram sofrimentos? Problemas que nenhuma filosofia pôde
resolver ainda, anomalia que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a
negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, na hipótese de a
alma ser criada ao mesmo tempo que o corpo e de que a sua sorte estar fixada
irrevogavelmente após a permanência de alguns instantes na Terra. O que
teriam feito essas almas que acabam de sair das mãos do Criador, para
sofrerem tantas misérias neste mundo e para merecerem no futuro uma
recompensa ou uma punição qualquer, já que não puderam praticar nem o
bem nem o mal?
Entretanto, em virtude do axioma que todo efeito tem uma causa, essas
misérias são efeitos que devem ter uma causa; e desde quando admitimos um
Deus justo, esta causa também deve ser justa. Ora, como a causa sempre
precede o efeito, se a causa não estiver na vida atual, ela há de ser anterior a
esta vida, ou seja, deve pertencer a uma existência precedente. Por outro lado,
Deus não podendo punir pelo bem que fizemos nem pelo mal que não
fizemos, se somos punidos, é porque fizemos o mal; se não fizemos esse mal
nesta vida, é que o fizemos em outra. Esta é uma alternativa da qual é
impossível escapar e na qual a lógica diz de que lado está a justiça de Deus.
Portanto, nem sempre o homem é punido ou punido completamente na
sua existência atual, mas ele jamais escapa jamais das consequências de suas
faltas. A prosperidade do mau é só momentânea, e se ele não expiar hoje,
expiará amanhã, enquanto aquele que sofre está expiando o seu passado. A
infelicidade que à primeira vista parece imerecido, de fato tem sua razão de
ser, e aquele que sofre pode dizer sempre: “Perdoe-me, Senhor, porque eu
pequei!”
outros; se foi duro e desumano, ele poderá, por sua vez, ser tratado
duramente e com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em condição
humilhante; se foi avaro, egoísta ou se fez mau uso da sua fortuna, poderá
ficar privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer com seus filhos etc.
Assim fica explicado, pela pluralidade das existências e pela destinação
da Terra como mundo expiatório, as anomalias que apresenta a repartição da
felicidade e da infelicidade entre os bons e os maus neste mundo. Essa
anomalia só existe na aparência, porque a tomamos apenas do ponto de vista
da vida presente; mas se nos elevarmos, através do pensamento, de modo a
abrangermos uma série de existências, nós veremos que a cada é dado a parte
que merece, sem prejuízo da parte que lhe cabe no mundo dos Espíritos, e que
a justiça de Deus jamais é interrompida.
O homem jamais deve perder de vista que está num mundo inferior,
onde ele só é mantido pelas suas imperfeições. A cada vicissitude ele deve
dizer a si mesmo que, se pertencesse a um mundo mais adiantado, isso não
aconteceria e que só depende dele não mais voltar a esse mundo, trabalhando
para a sua melhoria.
9. Não se deve crer, contudo, que todo sofrimento suportado neste mundo
seja necessariamente o indício de uma determinada falta; muitas vezes são
simples provas escolhidas pelo Espírito para concluir a sua depuração e
acelerar o seu avanço. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas nem
sempre a prova é uma expiação; ainda assim, provas ou expiações, são sempre
87 – O Evangelho segundo o Espiritismo
sinais de uma relativa inferioridade, porque o que é perfeito não precisa ser
provado. Um Espírito pode então ter adquirido certo grau de elevação, mas,
desejando avançar mais, ele solicita uma missão, uma tarefa a executar, pela
qual será tanto mais recompensado, se dela sair vitorioso, quanto mais
penosa tenha sido a luta. Tais são, mais especialmente, essas pessoas de
instintos naturalmente bons, de alma elevada, de nobres sentimentos inatos,
que parecem nada ter trazido de mau de suas existências anteriores, e que
sofrem com resignação cristã as maiores dores — pedindo a Deus para
suportá-las sem murmurar. Podemos, ao contrário, considerar como
expiações as aflições que incitam os murmúrios e levam o homem à revolta
contra Deus.
O sofrimento que não provoca murmúrios pode ser sem dúvidas uma
expiação, mas é o indício de que ela foi antes escolhida voluntariamente do
que imposta, e que constitui a prova de uma forte resolução, o que é um sinal
de progresso.
10. Os Espíritos não podem aspirar à completa felicidade até que estejam
puros: qualquer impureza interdita a sua entrada nos mundos felizes. Tais são
como os passageiros de um navio atingido pela peste, aos quais a entrada em
uma cidade é interditada até que eles estejam purificados. É nas diversas
existências corpóreas que os Espíritos se depuram pouco a pouco de suas
imperfeições. As provações da vida nos fazem avançar, quando as suportamos
bem; como expiações, elas apagam nossas faltas e as purificam; são o remédio
que limpa as feridas e cura o doente. Quanto mais grave for o mal, mais o
remédio deverá ser enérgico. Em suma, aquele que sofre muito deve
reconhecer que muito tinha a expiar e se alegrar de ser curado logo; depende
dele, pela sua resignação, tornar esse sofrimento proveitoso, e não perder o
fruto com suas reclamações, sem o que ele terá de recomeçar.
Esquecimento do passado
11. É em vão apontar o esquecimento como um obstáculo para que se possa
aproveitar a experiência das existências anteriores. Se Deus julgou
88 – Allan Kardec
conveniente lançar um véu sobre o passado, é que isso devia ser útil. De fato,
essa recordação teria inconvenientes gravíssimos; em certos casos, ela
poderia nos humilhar estranhamente, ou então exaltar o nosso orgulho e por
isso mesmo entravar nosso livre-arbítrio. Em todo caso, ela poderia provocar
uma perturbação inevitável nos relacionamentos sociais.
O Espírito renasce frequentemente no mesmo meio em que já viveu e se
relaciona com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes tenha feito.
Se ele reconhecesse nelas as pessoas a quem odiou, talvez o seu ódio se
despertaria outra vez; em todos os casos, ele se sentiria humilhado diante de
quem ele tivesse ofendido.
Para nos melhorarmos, Deus nos deu justamente o que nos é necessário
e suficiente: a voz da consciência e as tendências instintivas; ele tira de nós o
que poderia nos prejudicar.
Ao nascer, o homem traz aquilo que adquiriu; ele nasce como se fez.
Cada existência para ele é um novo ponto de partida; pouco lhe importa saber
o que ele foi: se é punido, é porque fez o mal; suas más tendências atuais
indicam o que lhe resta corrigir em si mesmo e é nisso que deve concentrar
toda a sua atenção, pois, daquilo do que ele se corrigiu completamente, não
restará mais nenhum traço. As boas resoluções que ele tomou são a voz da
consciência, que o adverte do que é bem e do que é mal, dando-lhe a força
para resistir às más tentações.
De resto, esse esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea.
Retornando à vida espiritual, o Espírito recobra a lembrança do passado: o
esquecimento não é mais do que uma interrupção momentânea, igual àquela
que se dá na vida terrena durante o sono, e que no dia seguinte não nos
impede de lembrar o que fizemos na véspera e nos dias precedentes.
Não é somente depois da morte que o Espírito recobra a lembrança do
seu passado; podemos dizer que ele jamais a perde, e a experiência prova que
na encarnação — durante o sono do corpo, quando ele desfruta de uma certa
liberdade — o Espírito tem a consciência de seus atos anteriores; ele sabe por
que sofre e que ele sofre com justiça; a lembrança só se apaga no curso da
vida exterior de relações. Mas, na falta de uma reminiscência exata, que lhe
poderia ser penosa e prejudicar suas relações sociais, ele haure novas forças
89 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Motivos de resignação
O suicídio e a loucura
15. É o mesmo que acontece com o suicídio; fazendo exceção dos caso que se
dão na embriaguez e na loucura, aos quais nós podemos chamar de
inconscientes, é certo que — quaisquer que sejam os motivos particulares —
o suicídio sempre tem como pretexto um descontentamento. Ora, aquele que
tem certeza de que só é infeliz por um dia e que estará melhor nos dias
seguintes, então este facilmente adquire paciência; ele não se desespera, a não
ser quando ele não vê o fim dos seus sofrimentos. O que é então a vida
humana em comparação com a eternidade, senão bem menos que um dia?
Mas para aquele que não crê na eternidade e julga que tudo nele se acaba com
a vida, se estiver sobrecarregado pela tristeza e pelo infortúnio, então ele só
enxerga o fim desse sofrimento na morte; nada esperando, ele acha muito
natural — muito lógico mesmo — encurtar as suas misérias pelo suicídio.
17. O espiritismo ainda produz, sob esse aspecto, outro resultado igualmente
positivo — e talvez mais decisivo: ele nos mostra os próprios suicidas vindo
nos informar sobre sua situação infeliz, provando que ninguém viola
impunemente a lei de Deus, que proíbe ao homem abreviar sua vida. Entre os
suicidas estão aqueles cujos sofrimentos — mesmo sendo temporários, em
vez de eternos — não deixam de ser menos terríveis, de modo a fazer refletir
qualquer um que fosse tentado a partir deste mundo antes da ordem de Deus.
Logo, o espírita tem vários motivos como contrapeso à ideia do suicídio: a
certeza de uma vida futura, na qual ele sabe que será tanto mais feliz quanto
mais infeliz e mais resignado ele tenha sido na Terra; a certeza de que
abreviando a sua vida ele chega a um resultado totalmente oposto ao que
esperava; que ele foge de um mal para cair noutro pior, mais demorado e mais
terrível; que ele se engana ao crer que, ao se matar, ele vá mais rápido para o
céu; que o suicídio é um obstáculo para ele se ajuntar no outro mundo aos que
foram objeto de suas afeições e aos quais ele esperava lá encontrar. Daí vem a
consequência de que o suicídio, não lhe dando mais do que decepções, é
contrário aos seus próprios interesses. Com isso, o número dos suicídios
impedidos pelo espiritismo é considerável, e podemos concluir que quando
todo mundo for espírita, não haverá mais suicídios conscientes. Então,
comparando os resultados das doutrinas materialistas e espíritas sob o ponto
de vista do suicídio, verificamos que a lógica das materialistas conduz a ele,
enquanto a lógica espírita o evita, o que é confirmado pela experiência.
deles”, não se referia aos que sofrem em geral, pois todos aqueles que estão
nesse mundo sofrem — que eles estejam sobre um trono ou sobre uma palha.
Ah, mas são poucos os que sofrem bem; poucos compreendem que só as
provações bem suportadas são as que podem conduzi-los ao reino de Deus. O
desencorajamento é uma falta; Deus lhes nega consolações, quando falta
coragem a vocês. A prece é um suporte para a alma, mas não é suficiente: é
necessário que ela se apoie numa fé viva na bondade de Deus. Já lhes foi dito
muitas vezes que ele não coloca um fardo pesado em ombros fracos; mas sim
que o fardo é proporcional às forças, como a recompensa será proporção à
resignação e à coragem. A recompensa será mais magnífica quanto mais a
aflição for penosa; porém, essa recompensa deve ser merecida, e é por isso
que a vida está repleta de tribulações.
O militar que não é mandado para as linhas de fogo não fica contente,
porque o repouso no campo não lhe rende nenhuma promoção; então, sejam
como o militar e não desejem um repouso no qual o corpo enfraqueceria e a
alma se entorpeceria. Fiquem satisfeitos quando Deus lhes enviar à luta. Essa
luta não é o fogo da batalha, e sim as amarguras da vida, em que às vezes é
preciso mais coragem do que num combate sangrento, pois aquele que se
mantém firme diante do inimigo pode fraquejar sob a pressão de uma pena
moral. O homem não recebe nenhuma recompensa por esse tipo de coragem,
mas Deus lhe reserva a coroa da vitória e um lugar glorioso. Quando lhes
surgir uma causa de dor ou de contrariedade, tratem de superá-la, e quando
tiverem conseguido dominar os impulsos da impaciência, da cólera ou do
desespero, então digam para vocês mesmos com justa satisfação: “Eu fui o
mais forte”.
Bem-aventurados os aflitos pode então ser traduzido assim: Bem-
aventurados os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua
perseverança e sua submissão à vontade de Deus, pois eles terão centuplicada
a alegria que lhes falta na Terra, porque após o labor vem o repouso.
LACORDAIRE (Le Havre, 1863)
O mal e o remédio
19. Será que a Terra é um lugar de alegrias, um paraíso de delícias? Será que a
94 – Allan Kardec
voz do profeta não mais ressoa aos ouvidos de vocês? Ela não proclamou que
haveria choro e ranger de dentes para os que nascessem nesse vale de dores?
Vocês, que nela vieram viver, esperem então lágrimas ardentes e sofrimentos
amargos, e quanto mais agudas e profundas forem suas dores, olhem para o
céu e bendigam o Senhor por lhes ter querido testá-los... Ó homens! Vocês não
reconhecem o poder do seu Senhor senão quando ele cura as chagas do corpo
e coroa seus dias de bênçãos e felicidade! Vocês não reconhecem o seu amor
senão quando ele tenha adornado o corpo de vocês com todas as glórias e lhe
haja restituído o brilho e a alvura? Imitem aquele que lhes foi dado como
exemplo; tendo chegado ao último grau da abjeção e da miséria, ele se deita
sobre um esterco e diz a Deus: “Senhor, conheci todas as alegrias da opulência
e o Senhor me reduziu à mais absoluta miséria; obrigado, obrigado, meu Deus,
por ter querido experimentar o teu servo!”21 Até quando a visão de vocês irá
se deter nos horizontes demarcados pela morte? Quando, afinal, a vossa alma
vai querer se lançar para além dos limites de um túmulo? Mas ainda que
chorassem e sofressem por toda uma vida, o que isso significa em comparação
com a eternidade da glória reservada àquele que tenha sofrido a prova com fé,
amor e resignação? Portanto, procurem consolações para os males no futuro
que Deus lhes prepara, e reconheçam a causa dos seus males no passado de
vocês; e vocês, que sofrem mais, considerem-se os bem-aventurados da Terra.
Na condição de desencarnados, quando planavam no espaço, vocês
escolheram as próprias provas, porque acreditaram serem bastante fortes
para as suportar; por que murmurar a essa hora? Vocês que pediram a
fortuna e a glória, era para sustentar a luta contra a tentação e vencê-la. Vocês
que pediram para lutar de corpo e espírito contra o mal moral e físico, já
sabiam que, quanto mais a prova fosse forte, mais a vitória seria gloriosa, e
que, se vocês saíssem triunfantes, mesmo que sua carne fosse atirada num
monturo, ao morrer, essa carne deixaria se desprender uma alma
deslumbrante de brancura, repurificada pelo batismo da expiação e do
sofrimento.
Que remédio então prescrever àqueles que são atacados pelas obsessões
21 Menção a Jó, personagem do Antigo Testamento bíblico, conforme a narrativa do livro intitulado
justamente com o seu nome. — N. T.
95 – O Evangelho segundo o Espiritismo
melhorias. Essa é a tarefa imensa a ser cumprida pela nova doutrina que os
Espíritos lhes revelaram.
Assim sendo, meus queridos filhos, que uma santa emulação lhes anime
e que cada um de vocês se despoje energicamente do velho homem. Todos
vocês têm uma dívida com a propagação desse espiritismo que já deu inicia à
sua própria regeneração. É um dever fazer que os seus irmãos participem dos
raios dessa luz sagrada. Então, mãos à obra, meus queridos filhos! Que nesta
reunião solene todos os corações aspirem a esse grandioso objetivo de
preparar para as futuras gerações um mundo em que a felicidade não seja
mais uma palavra vã.
FRANÇOIS-NICOLAS MADELEINE, cardeal MORLOT (Paris, 1863)
21. Quando a morte chega nas famílias de vocês, sem fazer distinção, ceifando
os mais jovens em vez dos idosos, vocês costumam dizer: Deus não é justo,
porque ele sacrifica o que está forte e cheio de futuro e conserva os que já
viveram longos anos fartos de decepções; porque ele leva os que são úteis e
deixa os que já não servem para mais nada, e porque ele parte o coração de
uma mãe ao privá-la da criatura inocente que era toda a sua alegria.
Humanos, é sobre isso que vocês precisam se elevar acima do terra a
terra da vida para compreender que o bem muitas vezes está onde vocês
acham ver o mal, e a sábia previdência onde vocês acham ver a cega fatalidade
do destino. Por que medir a justiça divina pela medida de vocês? Por acaso
vocês acham que, por um simples capricho, o Senhor dos mundos quer lhes
infligir penas cruéis? Nada se faz sem um propósito inteligente e, seja o que
for que aconteça, cada coisa tem a sua razão de ser. Se vocês perscrutassem
melhor todas as dores que lhes atingem, sempre encontrariam nelas a razão
divina, razão regeneradora, e os miseráveis interesses de vocês significariam
uma consideração tão secundária que os jogariam para o último plano.
Acreditem em mim, é melhor a morte, por uma encarnação de vinte
anos, do que esses desregramentos vergonhosos que desolam as famílias
98 – Allan Kardec
respeitáveis, que partem o coração de uma mãe e fazem com que os cabelos
dos pais embranqueçam antes do tempo. A morte prematura muitas vezes é
um grande benefício que Deus concede àquele que se vai e que, assim, fica
preservado das misérias da vida ou das seduções que poderiam tê-lo
arrastado à perdição. Aquele que morre na flor da idade não é uma vítima da
fatalidade; é porque Deus julga que não é conveniente ele permanecer por
mais tempo na Terra.
É uma terrível desgraça — vocês dizem — que uma vida tão plena de
esperanças seja ceifada tão cedo! Mas de que esperanças estão querendo
falar? Daquelas da Terra, onde aquele que se foi poderia brilhar, fazer a sua
carreira e a sua fortuna? Vocês sempre com essa visão estreita, incapaz de se
elevar acima da matéria! Sabem qual teria sido a sorte dessa vida tão plena de
esperanças, segundo vocês? Quem lhes diz que ela não estaria carregada de
amarguras? Por acaso não levam em conta as esperanças da vida futura, que
vocês trocam por aquelas da vida efêmera que arrastam na Terra? Pensam
então que mais vale ter uma posição elevada entre os homens do que entre os
Espíritos bem-aventurados?
Regozijem-se, em vez de se queixarem, quando agradar a Deus retirar
um de seus filhos deste vale de misérias. Não seria egoísmo desejar que ele aí
continuasse para sofrer convosco? Ah, essa dor é compreensível naquele que
não tem fé e que vê na morte uma separação eterna; mas vocês, espíritas,
sabem que a alma vive melhor quando desembaraçada do seu invólucro
corporal. Mães, saibam que seus filhos bem-amados estão perto de vocês; sim,
estão muito perto, e seus corpos fluídicos lhes envolvem, seus pensamentos
lhes protegem e a lembrança de vocês os enchem de alegria; mas também, as
vossas dores sem razão os afligem, porque elas denotam uma falta de fé e
representam uma revolta contra a vontade de Deus.
Vocês que compreendem a vida espiritual, escutem as pulsações do
coração chamando esses entes bem-amados e, se vocês pedirem a Deus para
os abençoar, então sentirão intimamente consolações poderosas, dessas que
secam as lágrimas; dessas aspirações grandiosas que lhes mostrarão o futuro
prometido pelo soberano Mestre.
SANSON, antigo membro da Sociedade Espírita de Paris (1863)
99 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Os tormentos voluntários
sem parar, porque a felicidade sem mescla não existe na Terra. Entretanto,
malgrado as vicissitudes que formam o cortejo inevitável dessa vida, ele
poderia pelo menos desfrutar de uma relativa felicidade; mas ele a procura
nas coisas perecíveis e sujeitas às mesmas vicissitudes, isto é, nos gozos
materiais, em vez de procurá-la nos prazeres da alma, que são uma
antecipação das alegrias celestes imperecíveis; em vez de procurar a paz do
coração, única felicidade real neste mundo, ele é ávido por tudo que o possa
agitar e perturbar; e — que coisa curiosa! — ele parece criar para si,
deliberadamente, os tormentos que lhe caberia evitar.
Haverá tormentos maiores do que aqueles causados pela inveja e pelo
ciúme? Para o invejoso e o ciumento, não há repouso; estão perpetuamente
febris; o que eles não têm e os outros possuem lhes causa insônias; os
sucessos dos seus rivais lhes dão vertigem; sua motivação só funciona para
eclipsar seus vizinhos, toda a sua alegria consiste em excitar nos insensatos
como eles a fúria do ciúme de que são possuídos. Pobres insensatos, de fato,
que não pensam que amanhã talvez tenham de deixar todas essas futilidades
cuja cobiça lhes envenena a vida! Não é a eles que se aplicam estas palavras:
“Bem-aventurados os aflitos, porque eles serão consolados”, pois as suas
preocupações não são aquelas que têm as suas compensações no céu.
Por outro lado, quantos tormentos consegue evitar aquele que sabe se
contentar com aquilo que tem, que vê sem inveja o que não possui, que não
procura parecer mais do que é! Esse é sempre rico, porque, se ele olha para
baixo de si em vez de olhar para cima, sempre vai ver gente que tem menos do
que ele; é calmo, porque não cria para si necessidades quiméricas; ora, a
calma em meio às tempestades da vida já não será uma felicidade?
FÉNELON (Lyon, 1860)
A verdadeira infelicidade
A melancolia
25. Sabem por que uma vaga tristeza às vezes se apodera dos seus corações e
os faz achar a vida tão amarga? É que o Espírito de vocês — aspirando à
felicidade e à liberdade, mas preso ao corpo que lhe serve de prisão — se
esgota em vãos esforços para sair do corpo. Porém, vendo que os esforços são
inúteis, o Espírito cai no desencorajamento, e como o corpo sofre sua
influência, então a fraqueza, o desânimo e uma espécie de apatia tomam conta
de vocês, que por isso se acham infelizes.
Acreditem em mim, resistam energicamente a essas impressões que lhes
enfraquecem a vontade. Essas aspirações a um mundo melhor são inatas no
espírito de todos os homens, mas não as procurem neste mundo; e agora que
Deus lhes envia os seus Espíritos para lhes instruírem acerca da felicidade
que reserva para vocês, então aguardem pacientemente o anjo da libertação
que deve lhes ajudar a romper os laços que prendem vosso Espírito cativo.
Lembrem-se de que, durante a sua provação na Terra, vocês têm uma missão
de que nem suspeitam — quer seja se dedicando à família, quer seja
realizando os diversos deveres que Deus lhes confiou. E se no curso dessa
provação, cumprindo a sua tarefa, vocês virem caindo sobre vocês as
preocupações, inquietações e desgostos, então sejam fortes e corajosos para
os suportar. Enfrentem-lhes francamente, pois eles têm curta duração e hão
de lhes conduzir para perto dos amigos por quem choram, que se rejubilam
103 – O Evangelho segundo o Espiritismo
com a sua chegada entre eles e lhes estenderão os braços para levá-los a um
lugar onde as tristezas da Terra não têm acesso.
FRANÇOIS DE GENEBRA (Bordeaux)
27. Devemos dar fim às provas do próximo, quando possível, ou, por respeito aos
desígnios de Deus, devemos deixá-las seguir seu curso?
Nós temos dito e repetido muitas vezes que vocês estão nesta Terra de
expiação para completar suas provações e que tudo o que lhes acontece é uma
consequência das suas existências anteriores — os juros da dívida que vocês
23 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
105 – O Evangelho segundo o Espiritismo
têm a pagar. Mas esse pensamento provoca em certas pessoas reflexões que é
necessário parar, pois poderiam acarretar funestas consequências.
Alguns pensam que do momento em que vem à Terra para expiar, é
preciso que as provas sigam o seu curso. Há outros que chegam a acreditar
que não somente não devem fazer coisa alguma para as atenuar, mas que, ao
contrário, é preciso contribuir para que elas sejam mais proveitosas,
tornando-as mais fortes. Isso é um grande erro. Sim, suas provas devem
seguir o curso que Deus traçou para elas; contudo, acaso vocês conhecem esse
curso? Sabem até que ponto elas devem ir, e se o seu Pai misericordioso não
terá dito ao sofrimento desse ou daquele entre os irmãos de vocês: “Não vá
mais longe”? Por acaso vocês sabem se a Providência não lhes escolheu, não
como instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas
sim como o bálsamo de consolação que deve cicatrizar as feridas que a sua
justiça tenha aberto? Então, quando virem atingido um dos seus irmãos, não
digam: É a justiça de Deus, é preciso que siga o seu curso. Digam, de outra
forma: Vejamos que meios nosso Pai misericordioso colocou ao meu alcance
para suavizar o sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações
morais, o meu amparo material ou meus conselhos não poderão ajudá-lo a
atravessar essa prova com mais força, paciência e resignação. Vejamos mesmo
se Deus não pôs em minhas mãos os meios de cessar esse sofrimento; se ele
não me deu — também como prova para mim, talvez até como expiação —,
cessar o mal e substituí-lo pela paz.
Portanto, ajudem-se sempre em suas respectivas provações, e nunca se
considerem instrumentos de tortura; esse pensamento deve revoltar todo
homem de coração, todo espírita principalmente, porque o espírita, melhor do
que qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de
Deus. O espírita deve pensar que a sua vida inteira deve ser um ato de amor e
de devotamento; deve pensar que tudo o que ele fizer para contrariar as
decisões do Senhor, sua justiça seguirá o seu curso. Assim, ele pode, sem
receio, fazer todos os esforços para atenuar o amargor da expiação, sendo que
somente Deus pode cessá-la ou prolongá-la, conforme julgar a propósito.
Não haveria um orgulho muito grande da parte do homem acreditar-se
no direito de — por assim dizer — revolver a arma na ferida? De aumentar a
106 – Allan Kardec
dose do veneno no peito daquele que está sofrendo, sob o pretexto de que
essa é a sua expiação? Oh, considerem-se sempre como um instrumento
escolhido para fazê-la cessar. Vamos resumir assim: todos estão na Terra para
expiar; mas todos — sem exceção — devem empregar todos os esforços para
amenizar a expiação dos seus irmãos, segundo a lei de amor e de caridade.
BERNARDIN, Espírito protetor (Bordeaux, 1863)
28. Um homem está em agonia, vítima de cruéis sofrimentos; sabe-se que seu
estado é irreversível: será que é permitido lhe poupar alguns instantes de
angústias apressando o seu fim?
Quem lhes daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Será que ele
não pode conduzir o homem até a beira da cova, para daí o retirar, a fim de
fazê-lo voltar a si e conduzi-lo a outros pensamentos? Não importa em que
extremo esteja um moribundo, ninguém pode afirmar com certeza que a sua
derradeira hora já chegou. Será que a ciência nunca se enganou em suas
previsões?
Sei bem que existem casos que podemos considerar com razão como
desesperadores; mas, se não houver nenhuma esperança concreta de um
retorno definitivo à vida e à saúde, não há inúmeros exemplos em que, no
momento de dar o último suspiro, o enfermo se reanime e recupere suas
faculdades por alguns instantes? Pois bem! Essa hora de graça que lhe é
concedida pode ser para ele da maior importância, porque vocês ignoram as
reflexões que seu Espírito pôde fazer nas convulsões da agonia, e quantos
tormentos lhe podem poupar um clarão de arrependimento.
O materialista — que só vê o corpo e não leva conta a alma — não pode
compreender essas coisas; mas o espírita, que já sabe o que se passa no além-
túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Amenizem os derradeiros
sofrimentos o quanto puderem, mas cuidem para não abreviar a vida, nem
que fosse um minuto, porque esse minuto pode poupar muitas lágrimas no
futuro.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
29. Aquele que está desgostoso da vida, mas não quer se matar, será culpado se
procurar a morte num campo de batalha, com a intensão de tornar sua morte
útil?
Que o homem se mate ou que ele provoque sua morte, o propósito é
sempre abreviar a vida, e, consequentemente, há um suicídio intencional —
quando não de fato. O pensamento de que sua morte servirá para alguma
coisa é ilusória; não é mais do que um pretexto para colorir sua ação e
desculpá-lo aos seus próprios olhos. Se ele tivesse seriamente o desejo de
servir ao seu país, ele procuraria viver para defendê-lo, e não morrer, já que
morto ele não serviria para mais nada. O verdadeiro devotamento, quando se
trata de alguém ser útil, consiste em não temer a morte, em enfrentar o
perigo, em fazer de antemão e sem hesitar o sacrifício da vida, se isso for
necessário; mas a intenção premeditada de procurar a morte expondo-se a
um perigo — ainda que para prestar um serviço — anula o mérito da ação.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
31. Aqueles que aceitam seus sofrimentos com resignação, por submissão à
vontade de Deus e com vista à sua felicidade futura: estes não trabalham apenas
para si mesmos? Poderão tornar seus sofrimentos proveitosos para outros?
Esses sofrimentos podem ser proveitosos para outros — material e
moralmente. Materialmente se, pelo trabalho, pelas privações e pelos
sacrifícios que se imponham, eles estiverem contribuindo para o bem-estar
material de seus semelhantes; moralmente, pelo exemplo que dão de sua
submissão à vontade de Deus. Esse exemplo do poder da fé espírita pode
induzir os infelizes à resignação e salvá-los do desespero e suas funestas
consequências.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
CAPÍTULO VI
O CRISTO CONSOLADOR
O jugo leve – Consolador prometido –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Advento do Espírito de Verdade
O jugo leve
Consolador prometido
3. Se vocês me amam, guardem meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai, e
ele lhes enviará outro consolador, a fim de que ele fique eternamente com
110 – Allan Kardec
vocês: — O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não
o vê e que absolutamente não o conhece. Mas quanto a vocês, vocês o
conhecerão, porque ele ficará com vocês e estará em vocês. Mas o consolador,
que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, lhes ensinará
todas as coisas e os fará lembrar de tudo o que eu lhes tenho dito. (São João,
14: 15 a 17 e 26)
amam, meditem sobre as coisas que são reveladas a vocês; não misturem o
joio com o trigo, as utopias com as verdades.
Espíritas, amem-se! Eis o primeiro ensinamento; instruam-se, eis o
segundo. Todas as verdades se encontram no Cristianismo; os erros que nele
se enraizaram são de origem humana, e eis que do além-túmulo, que vocês
pensavam ser um nada, as vozes lhes clamam: Irmãos, nada perece! Jesus
Cristo é o vencedor do mal; sejam os vencedores da impiedade.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Paris, 1860)
6. Eu venho ensinar e consolar os pobres deserdados; venho lhes dizer que
elevem sua resignação ao nível de suas provas; que chorem, pois a dor foi
sacralizada no Jardim das Oliveiras, mas que esperem, porque os anjos
consoladores virão também lhes enxugar as lágrimas.
Obreiros, cumpram o seu dever; recomecem no dia seguinte a rude
jornada da véspera; o labor das suas mãos fornece o pão terrestre para seus
corpos, mas suas almas não estão esquecidas; e eu, o divino jardineiro, eu as
cultivo no silêncio dos seus pensamentos. Quando soar a hora do repouso,
quando a trama escapar de suas mãos e seus olhos se fecharem para a luz,
então sentirão surgir e germinar em vocês a minha preciosa semente. Nada
fica perdido no reino de nosso Pai, e os seus suores e suas misérias formam o
tesouro que deve lhes tornar ricos nas esferas superiores, onde a luz substitui
as trevas e onde o mais desprovido dentre todos vocês será talvez o mais
resplandecente.
Em verdade eu digo a vocês: os que carregam seus fardos e que ajudam
seus irmãos são meus bem-amados; instruam-lhes na preciosa doutrina que
dissipa o erro das revoltas e que lhes ensina o objetivo sublime da provação
humana. Como o vento varre a poeira, que o sopro dos Espíritos dissipe em
vocês a inveja dos ricos do mundo, que muitas vezes são bastante miseráveis,
pois as suas provações são mais perigosas do que as suas. Eu estou com vocês,
e meu apóstolo lhes ensina. Bebam na fonte viva do amor e se preparem,
cativos da vida, para se lançar um dia, livres e alegres, no seio d’Aquele que
criou vocês fracos para torná-los perfectíveis e deseja que vocês mesmos
moldem a sua argila, a fim de serem os artífices da sua imortalidade.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Paris, 1861)
113 – O Evangelho segundo o Espiritismo
7. Eu sou o grande médico das almas, e eu venho lhes trazer o remédio que há
de curá-las; os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos
prediletos, e eu venho salvá-los. Então, venham a mim, todos vocês que
sofrem e que estão sobrecarregados, e vocês serão aliviados e consolados; não
procurem noutro lugar a força e a consolação, pois o mundo é impotente para
lhes dar isso. Deus faz um apelo supremo aos seus corações, por meio do
espiritismo; Escutem-no. Que a impiedade, a mentira, o erro e a incredulidade
sejam extirpados de suas almas doloridas; esses são os monstros que sugam o
seu mais puro sangue e que lhes criam feridas quase sempre mortais. Que no
futuro, humildes e submissos ao Criador, vocês pratiquem a sua lei divina.
Amem e orem; sejam dóceis aos Espíritos do Senhor; invoquem-no do fundo
do coração; então, ele lhes enviará seu Filho bem-amado, para instrui-los e
lhes dizer estas boas palavras: Eis-me aqui; eu venho a vocês, porque vocês
me chamaram.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Bordeaux, 1861)
8. Deus consola os humildes e dá a força aos aflitos que lhe pedem força. Seu
poder cobre a Terra e por toda parte, ao lado de uma lágrima, ele colocou um
bálsamo que consola. O devotamento e a abnegação são uma prece contínua e
contêm um ensinamento profundo; a sabedoria humana reside nessas duas
palavras. Que todos os Espíritos sofredores possam compreender essa
verdade em vez de bradar contra suas dores, seus sofrimentos morais, que
lhes são devidos neste mundo. Portanto, tomem por divisa estas duas
palavras: devotamento e abnegação, e serão fortes, porque elas resumem
todos os deveres que a caridade e a humildade impõem a vocês. O sentimento
do dever cumprido lhes dará o repouso de espírito e a resignação. O coração
bate melhor, a alma se acalma e o corpo já não tem mais desfalecimentos,
porque o corpo sofre mais na medida em que o espírito é atingido mais
profundamente.
O ESPÍRITO DE VERDADE (Le Havre, 1863)
114 – Allan Kardec
CAPÍTULO VII
BEM-AVENTURADOS
OS POBRES DE ESPÍRITO
O que se deve entender por pobres de espírito – Aquele que se eleva
será rebaixado – Mistérios ocultos aos sábios e doutores –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: O orgulho e a humildade
– Missão do homem inteligente na Terra
4. Então, a mãe dos filhos de Zebedeu se aproximou dele com seus dois filhos
e o adora, insinuando-lhe que ela queria pedir alguma coisa. Ele diz a ela: O
que você quer? Ela responde: “Ordene que meus dois filhos que estão aqui
sejam assentados no teu reino, um à tua direita e o outro à tua esquerda. —
Mas Jesus lhes respondeu: Você não sabe o que está pedindo; porventura,
vocês poderiam beber o cálice que eu vou beber? — Eles responderam:
Podemos. — Jesus lhes replicou: É verdade que vocês beberão o cálice que eu
beberei; mas, quanto a sentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não
cabe a mim lhes conceder isso, mas será para aqueles a quem meu Pai tiver
preparado. — Os dez outros apóstolos tendo ouvido isso, ficaram indignados
com os dois irmãos. — E Jesus, chamando-os para perto de si, lhes disse:
Vocês sabem que os príncipes dos povos os dominam e que os maiorais os
tratam com autoridade. Que não aconteça a mesma coisa entre vocês; mas
que aquele que quiser se tornar o maior seja o seu servo; e que aquele que
quiser ser o primeiro dentre vocês seja seu escravo, como o Filho do
homem não veio para ser servido, mas sim para servir e dar sua vida pela
redenção de muitos. (São Mateus, 20: 20 a 28)
que se eleva será rebaixado e aquele que se abaixa será elevado. (São
Lucas, 14: 1 e 7 a 11)
7. Então, Jesus disse estas palavras: Eu te rendo glória, meu Pai, Senhor do
céu e da terra, por ter ocultado estas coisas aos sábios e aos doutores, e por
tê-las revelado aos simples e aos pequenos. (São Mateus, 11: 25)
8. Pode parecer estranho que Jesus renda graças a Deus por ter revelado estas
coisas aos simples e aos pequenos, que são os pobres de espírito, e por tê-las
escondido aos sábios e aos doutores, mais aptos — aparentemente — a
compreendê-las. É que devemos entender pelos primeiros, os humildes,
aqueles que se humilham diante de Deus e não se consideram superiores a
todo o mundo; e pelos segundos, os orgulhosos, envaidecidos de sua
sabedoria mundana, que se julgam instruídos, porque negam Deus, tratando-o
de igual para igual — quando não o repudiam; porque, na Antiguidade, sábio
era sinônimo de douto; é por isso que Deus lhes deixa a pesquisa dos
segredos da Terra e revela os do céu aos simples e aos humildes que se
inclinam diante dele.
10. Deus — irão dizer — não poderia tocá-los pessoalmente, por meio de
sinais claros, na presença dos quais deveria se inclinar o incrédulo mais
endurecido? Sem dúvidas que ele poderia, mas então onde estaria o mérito
deles? Além disso, para que isso serviria? Não vemos todos os dias alguém
recusar as evidências e até dizer: “Ainda que eu visse, eu não acreditaria,
porque sei que é impossível”?! Se eles se recusam a reconhecer a verdade, é
porque seu espírito ainda não está maduro para compreendê-la, nem o
coração para senti-la. O orgulho é a venda que obscurece a sua visão; de
que serve apresentar a luz a um cego? É preciso, pois, antes curar a causa do
mal; é por isso que, como médico hábil, Deus castiga primeiramente o
orgulho. Ele realmente não abandona seus filhos perdidos; ele sabe que cedo
ou tarde os olhos deles se abrirão, mas ele quer que isso acontece pela
própria vontade deles, e até que, vencidos pelos tormentos da incredulidade,
se atirem por si mesmos em seus braços e, como o filho pródigo, lhe peçam
perdão.
O orgulho e a humildade
11. Que a paz do Senhor esteja com vocês, meus caros amigos! Eu venho até
vocês para lhes encorajar a seguir o bom caminho.
Aos pobres de espírito que outrora habitaram a Terra, Deus dá a missão
de vir lhes esclarecer. Bendito seja ele pela graça que nos concede de
podermos contribuir com o melhoramento de vocês. Que o Espírito Santo me
ilumine e ajude a tornar compreensível a minha palavra, e que ele me conceda
a graça de colocá-la ao alcance de todos! Vocês todos, encarnados, que estão
120 – Allan Kardec
garante que também você já não tenha sido um miserável e infeliz como ele?
Que você também não tenha pedido esmola? Que não a pedirá um dia a esse
mesmo a quem hoje você despreza? Será que as riquezas são eternas? Elas
não se acabam com a extinção do corpo, esse envoltório perecível do teu
Espírito? Oh! Olhe com um pouco de humildade para si mesmo! Olhe enfim
para a realidade das coisas deste mundo, sobre o que constitui a grandeza e o
rebaixamento no outro; lembre-se de que a morte não te poupará mais do que
qualquer outra pessoa; que os teus títulos não te preservarão da morte; que
ela pode te pegar amanhã, hoje, daqui a uma hora; e se você se enterrar no teu
orgulho, ah, então eu lamento por você, porque você será digno de piedade.
Orgulhosos! Quem foram vocês antes de serem nobres e poderosos?
Talvez tenham sido até inferiores ao último dos seus criados. Portanto, as
curvem suas frontes altivas, que Deus pode abaixar no momento que vocês
mais as elevarem mais alto. Todos os homens são iguais na balança divina; só
as virtudes os distinguem aos olhos de Deus. Todos os Espíritos são da mesma
essência e todos os corpos são feitos com a mesma massa; seus títulos e seus
nomes não os modificam em nada; eles ficam no túmulo e não são eles que
darão a felicidade prometida aos eleitos; a caridade e a humildade são os seus
títulos de nobreza.
Pobre criatura! Você é mãe, teus filhos sofrem; eles sentem frio e fome, e
você vai, curvada ao peso da tua cruz, se humilhar para lhes conseguir um
pedaço de pão. Oh, eu me inclino diante de ti; como você é nobremente santa
e grande aos meus olhos! Espere e ore, pois a felicidade ainda não é deste
mundo. Aos pobres oprimidos e confiantes nele, Deus dá o reino dos céus.
E você, minha jovem, pobre criança lançada ao trabalho e às privações;
por que esses tristes pensamentos? Para que chorar? Que o teu olhar se erga
piedoso e sereno para Deus: aos passarinhos ele dá o alimento; tenha confia
nele e ele não te abandonará. O barulho das festas e dos prazeres do mundo
faz bater o teu coração; você também gostaria de adornar sua cabeça de flores
e se juntar aos sortudos da Terra; você diz a si mesma que bem poderia ser
rica também, como essas mulheres que vê passar, loucas e risonhas. Oh, não
diga isso, criança! Se você soubesse quantas lágrimas e dores indescritíveis se
escondem sob esses vestidos bordados, quantos soluços são abafados pelo
122 – Allan Kardec
barulho dessa orquestra animada, então você preferiria o teu humilde retiro e
a tua pobreza. Conserve-se pura aos olhos de Deus, se não quiser que o teu
anjo guardião volte para ele, cobrindo o rosto com as suas brancas asas e te
deixando com os teus remorsos, sem guia, sem amparo neste mundo, onde
você ficaria perdida, esperando ser punida no outro.
E vocês todos, que sofrem as injustiças dos homens, sejam indulgentes
para com as faltas dos seus irmãos, dizendo a si mesmos que também vocês
não estão isentos de culpas: isso é caridade, e é igualmente humildade. Se
sofrem com calúnias, curvem a cabeça sob essa prova. Que importa para vocês
as calúnias do mundo? Se a sua conduta é pura, Deus não pode lhes
recompensar por isso? Suportar com coragem as humilhações dos homens é
ser humilde e reconhecer que somente Deus é grande e poderoso.
Oh, meu Deus! Será preciso que o Cristo volte uma segunda vez à Terra
para ensinar aos homens as tuas leis, que eles esquecem? Será que ele ainda
deverá expulsar os vendilhões do templo que corrompem a tua casa, que é
exclusivamente um lugar de oração? E, quem sabe — Ó homens! —, se Deus
lhes concedesse essa graça, talvez não o renegariam como outrora; talvez o
chamariam de blasfemador, porque ele abateria o orgulho dos fariseus
modernos; talvez o fizessem recomeçar o caminho do Gólgota.
Quando Moisés subiu ao Monte Sinai para receber os mandamentos de
Deus, o povo de Israel, entregue a si mesmo, abandonou o verdadeiro Deus;
homens e mulheres deram o seu ouro e suas joias para que se fizesse um ídolo
que eles adoraram. Homens civilizados, vocês estão agindo como aqueles; o
Cristo lhes deixou a sua doutrina, dando-lhes o exemplo de todas as virtudes,
e vocês abandonaram os exemplos e os preceitos; carregando suas paixões,
vocês fizeram para si um Deus de acordo com a sua própria vontade; segundo
uns, um Deus terrível e sanguinário; segundo outros, um Deus indiferente aos
interesses do mundo. O Deus que vocês fizeram para si ainda é o bezerro de
ouro que cada um adapta ao seu gosto e às suas ideias.
Despertem, meus irmãos, meus amigos. Que a voz dos Espíritos toque
seus corações; sejam generosos e caridosos, sem ostentação, isto é, façam o
bem com humildade; que cada um destrua pouco a pouco os altares que vocês
ergueram ao orgulho. Numa palavra, sejam verdadeiros cristãos e terão o
123 – O Evangelho segundo o Espiritismo
reino da verdade. Não duvidem mais da bondade de Deus, enquanto ele lhes
dá tantas provas dela. Nós viemos preparar os caminhos para o cumprimento
das profecias. Quando o Senhor lhes der uma manifestação mais clara de sua
clemência, que o enviado celeste encontre em vocês uma grande família; que
seus corações mansos e humildes sejam dignos de ouvir a palavra divina que
ele vem lhes trazer; que o eleito só encontre em seu caminho as palmas
estendidas pelo seu retorno ao bem, à caridade e à fraternidade; então, o este
mundo se tornará o paraíso terrestre. Mas se permanecerem insensíveis à voz
dos Espíritos enviados para depurar e renovar esta sociedade civilizada —
rica em ciências e, contudo, tão pobre de bons sentimentos — ah, então não
nos restará senão chorar e gemer pela sorte de vocês. Mas não, não será
assim; voltem para Deus, o Pai de vocês, e aí todos nós que tivermos servido
ao cumprimento da vontade de Deus entoaremos o cântico de ação de graças,
para agradecer ao Senhor por sua inesgotável bondade e para glorificá-lo por
todos os séculos dos séculos. Assim seja.
LACORDAIRE (Constantina, 1863)
12. Homens, por que se queixam das calamidades que vocês mesmos
amontoaram sobre as suas cabeças? Vocês violaram a santa e divina moral do
Cristo; sendo assim, não se surpreendam que o cálice da iniquidade tenha
transbordado de todos os lados.
O mal-estar se generalizou; a quem devemos culpar senão a vocês que
incessantemente procuram se esmagar uns aos outros? Vocês não podem ser
felizes sem mútua benevolência, mas como a benevolência pode existir com o
orgulho? Orgulho, eis a fonte de todos os seus males; portanto, cuidem em
destruí-lo, se não quiserem perpetuar suas funestas consequências. Vocês só
têm um meio para isso, mas esse meio é infalível: é tomar a lei do Cristo como
a regra de conduta invariável — lei essa que vocês têm ou repelido ou
falseado em sua interpretação.
Por que vocês têm em tão grande estima o que brilha e encanta os olhos,
em vez daquilo que toca o coração? Por que o vício na opulência é o objeto das
suas adulações, enquanto só tendes um olhar de desdém para o verdadeiro
mérito na obscuridade? Que se apresente um rico debochado, perdido de
corpo e alma, e em qualquer parte todas as portas lhe serão abertas e todas as
124 – Allan Kardec
considerações se voltam para ele, ao passo que mal se dignam de fazer uma
saudação ao homem de bem que vive do seu trabalho. Quando a consideração
dispensada às pessoas é medida pelo peso do ouro que elas possuem ou pelo
nome que carregam, que interesse eles podem ter em se corrigirem de seus
defeitos?
Tudo seria bem diferente se o vício dourado fosse fustigado pela opinião
pública tanto quanto o vício em andrajos; mas o orgulho é indulgente para
tudo o que o lisonjeia. Século de cupidez e de dinheiro — vocês dizem. Sem
dúvida, mas por que deixaram as necessidades materiais se sobreporem ao
bom senso e a razão? Por que cada um quer se elevar acima de seu irmão?
Hoje a sociedade sofre as consequências disso.
Não esqueçam que tal estado de coisas é sempre um sinal de decadência
moral. Quando o orgulho chega aos derradeiros limites, isso é um indício de
queda próxima, porque Deus sempre castiga os soberbos. Se ele às vezes os
deixa subir, é para lhes dar um tempo para refletir e de se emendar, sob os
golpes que de vez em quando lhes desfere no orgulho para adverti-los; mas,
ao invés de se humilharem, eles se revoltam, e então, quando a medida está
completa, Deus os revira completamente e a queda deles é tão mais terrível
quanto mais alto tenham subido.
Pobre raça humana, cujo egoísmo corrompeu todos os caminhos; tomem
coragem, mesmo assim! Na sua infinita misericórdia, Deus te envia um
poderoso remédio contra os teus males, um inesperado socorro na tua agonia.
Abra os olhos para a luz: aqui estão as almas dos que já se foram e que vêm te
alertar para os teus verdadeiros deveres; eles te dirão, com a autoridade da
experiência, o quanto as vaidades e as grandezas da sua passageira existência
são mesquinhas em comparação com a eternidade; eles te dirão que no Além
o maior é aquele que foi o mais humilde entre os pequenos deste mundo; que
aquele que mais amou os seus irmãos é também o mais amado no céu; que os
poderosos da Terra, caso tenham abusado da sua autoridade, serão forçados a
obedecer aos seus servos; que, enfim, a caridade e a humildade — essas duas
irmãs que se dão as mãos — são os títulos mais eficazes para se obter graça
diante do Eterno.
ADOLFO, bispo de Argel (Marmande, 1862)
125 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO VIII
BEM-AVENTURADOS AQUELES
QUE TÊM O CORAÇÃO PURO
Deixem vir a mim as criancinhas – Pecado por pensamento.
Adultério – Verdadeira pureza. Mãos não lavadas
– Escândalos. Se a tua mão for motivo de escândalo, corte-a –
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Deixem vir a mim as criancinhas
– Bem-aventurados aqueles que têm os olhos fechados
tempo em que seus instintos dormem, ele é mais flexível e por isso mesmo
mais acessível às impressões que podem modificar a sua natureza e fazê-lo
progredir — o que torna mais fácil a tarefa imposta aos pais.
O Espírito, portanto, veste temporariamente a túnica da inocência, e
assim Jesus está com a verdade quando — apesar da anterioridade da alma —
toma a criança como um símbolo da pureza e da simplicidade.
5. Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: Não cometam adultério. Mas eu
lhes digo que aquele que tiver olhado uma mulher com mau desejo para com
ela, este já cometeu adultério com ela em seu coração. (São Mateus, 5: 27 e 28)
dependendo do desejo que ela tiver concebido de se depurar, até mesmo esse
mau pensamento se torna para ela uma ocasião de avançar, pois ela o repulsa
com energia; isso é o indício de uma mancha que a alma se esforça para
apagar; então, caso surja uma ocasião de satisfazer a um mau desejo, ela não
cederá, e depois que tiver resistido, vai se sentir mais forte e feliz com a sua
vitória.
Por outro lado, a alma que não tiver tomado boas resoluções, esta fica
procurando uma ocasião, e se ela não realiza a má ação, não é por efeito da
sua vontade, mas por falta de oportunidade; nesse caso, a alma é culpada
tanto quanto se tivesse cometido essa má ação.
Em resumo, na pessoa que nem concebe a ideia do mal, o progresso já se
realizou; naquela a quem vem essa ideia, mas ela a repulsa, o progresso está
se realizando; finalmente, naquela que tem esse pensamento mal e nele se
compraz, o mal ainda existe com toda a sua força. Numa, o trabalho está feito;
nas outras almas, está por fazer. Deus, que é justo, leva em conta todos esses
diferentes graus na responsabilidade dos atos e dos pensamentos do homem.
povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim; é em vão
que me honram ensinando preceitos e ordenações humanas”.
Depois, convocando o povo, ele disse: Escutem e compreendam bem
isso: Não é o que entra na boca que contamina o homem; o que sai da boca do
homem é que o macula. O que sai da boca vem do coração e é isso o que torna
o homem impuro, porque é do coração que partem os maus pensamentos, os
assassínios, os adultérios, as fornicações, os roubos, os falsos testemunhos, as
blasfêmias e as maledicências. São essas as coisas que tornam o homem
impuro, mas comer sem ter lavado as mãos não é o que o torna impuro.
Então, seus discípulos se aproximaram dele, dizendo: Sabia que,
ouvindo o que o Senhor acaba de dizer, os fariseus ficaram escandalizados
com isso? — Mas ele respondeu: Toda planta que meu Pai celestial não
plantou será arrancada. Deixem-lhes; são cegos que conduzem cegos; se um
cego conduz outro, ambos caem no poço. (São Mateus, 15: 1 a 20)
9. Enquanto ele falava, um fariseu lhe pedia que fosse jantar na casa dele;
então Jesus, lá chegando, sentou-se à mesa. O fariseu começou logo a dizer
consigo mesmo: Por que ele não lavou as mãos antes de jantar? — Porém, o
Senhor lhe disse: Vocês, fariseus, por sua vez, têm bastante zelo em limpar o
exterior do copo e do prato; contudo, o interior de seus corações está cheio de
ganância e de iniquidades. Que insensatos vocês são! Aquele que fez o
exterior não é o que faz também o interior? (São Lucas, 11: 37 a 40)
11. Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que haja
escândalos; mas aí do homem através de quem vem o escândalo.
Se alguém escandalizar a um destes pequenos que creem em mim, seria
melhor para ele que lhe pendurassem no pescoço uma dessas mós27 que um
jumento gira, e que o lançassem ao fundo do mar.
Tomem muito cuidado para não desprezar um destes pequenos; eu lhes
declaro que no céu seus anjos observam incessantemente a face de meu Pai
que está nos céus, porque o Filho do homem veio salvar o que estava perdido.
Se a sua mão ou o seu pé for um motivo de escândalo para vocês,
cortem-no e o lancem para longe de vocês; será bem melhor vocês entrarem
na vida tendo um só pé ou uma única mão do que terem dois e serem
lançados no fogo eterno. E se o seu olho for motivo de escândalo para vocês,
27 Pedra usada nos moinhos para triturar os grãos ou para espremer a azeitona na extração do azeite,
girando-a sobre outra pedra mediante um grande esforço físico, por exemplo, de um jumento. — N. T.
132 – Allan Kardec
12. No sentido vulgar, chama-se escândalo toda ação que choca a moral ou a
decência de uma maneira ostensiva. O escândalo não está na ação em si
mesma, mas na repercussão que ela pode causar. A palavra escândalo implica
sempre a ideia de uma certa confusão. Muitas pessoas se contentam em evitar
o escândalo, porque seu orgulho sofreria com ele e sua consideração ficaria
diminuída entre os homens; mas desde que as suas torpezas sejam ignoradas,
isso lhes basta e sua consciência repousa tranquila. São, segundo as palavras
de Jesus: “Sepulcros caiados no exterior, mas cheios de podridão no interior;
vasos limpos por fora e sujos por dentro.”
No sentido evangélico, a acepção do vocábulo escândalo — tão
frequentemente empregada — é muito mais genérica; eis por que o seu
significado não é compreendido em certos casos. Não é somente o que ofende
a consciência alheia, é tudo o que resulta dos vícios e das imperfeições dos
homens, toda reação má de indivíduo para indivíduo, com ou sem
repercussão. O escândalo, neste caso, é o resultado efetivo do mal moral.
13. É preciso que haja escândalo no mundo, disse Jesus, porque os homens,
sendo imperfeitos na Terra, estão inclinados a fazer o mal, e porque as más
árvores dão maus frutos. Com isso, devemos entender por essas palavras que
o mal é uma consequência da imperfeição dos homens, e não que eles tenham
obrigação de praticá-lo.
15. Se for assim — dirão — o mal é necessário e durará para sempre, pois se
133 – O Evangelho segundo o Espiritismo
16. Mas ai daquele por quem o escândalo venha; quer dizer que o mal
sendo sempre o mal, aquele que involuntariamente serviu de instrumento à
Justiça divina, aquele cujos maus instintos foram utilizados, nem por isso
deixou de praticar o mal e deve ser punido. É assim, por exemplo, que um
filho ingrato é uma punição ou uma prova para o pai que sofre com isso,
porque talvez esse pai tenha sido também um filho mau que fez seu pai sofrer,
e que está sofrendo a pena de talião; mas esse filho não é mais desculpável
por isso, e deverá ser castigado na sua vez pelos seus próprios filhos ou de
uma outra maneira.
17. Se a sua mão for motivo de escândalo para vocês, cortem-na; figura
enérgica, que seria absurdo tomarmos ao pé da letra, e que significa
simplesmente que é preciso destruir em si mesmo toda causa de escândalo,
isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e todo princípio
vicioso; significa ainda que seria melhor para o homem ter uma das mãos
cortada do que se essa mão tivesse sido para ele o instrumento para uma má
ação; assim como seria melhor ficar privado da vista do que se os seus olhos
tivessem lhe dado maus pensamentos. Jesus não disse nenhum absurdo, para
aquele que compreende o sentido alegórico e profundo de suas palavras;
porém, muitas coisas não podem ser compreendidas sem a chave que o
espiritismo oferece.
134 – Allan Kardec
19. Deixem vir a mim as criancinhas, pois eu tenho o leite que fortifica os
fracos. Deixem vir a mim aqueles que, tímidos e frágeis, necessitam de apoio e
de consolação. Deixem vir a mim os ignorantes, para que eu os esclareça;
deixem vir a mim todos os que sofrem, a multidão dos aflitos e dos infelizes:
eu lhes ensinarei o grande remédio que ameniza os males da vida e lhes darei
o segredo da cura de suas feridas! Qual é, meus amigos, esse bálsamo
135 – O Evangelho segundo o Espiritismo
soberano, que possui a virtude por excelência, esse bálsamo que se aplica a
todas as feridas do coração e as cicatriza? É o amor, é a caridade! Se vocês
tiverem esse fogo divino, o que poderão temer? Vocês dirão, em todos os
instantes de vida: Meu Pai, que seja feita a tua vontade, e não a minha; se te
apraz me experimentar pela dor e pelas tribulações, bendito seja, porque é
para o meu bem — eu sei disso — que a tua mão pesa sobre mim. Se te
convier, Senhor, ter piedade desta tua frágil criatura e conceder a este coração
as alegrias lícitas, bendito seja também; mas faça com que o amor divino não
adormeça nesta alma, e que ela incessantemente faça subir aos teus pés a voz
do seu reconhecimento!
Se vocês tiverem amor, então terá tudo o que se pode desejar na Terra,
possuirão a pérola por excelência, que nem os circunstâncias, nem as
maldades daqueles que lhes odeiam e perseguem poderão encantar. Se
tiverem amor, então terão colocado seu tesouro lá onde os vermes e a
ferrugem não o podem atacar, e verão se apagar insensivelmente da alma
tudo o que possa contaminar sua pureza; sentirão o peso da matéria diminuir
dia a dia, e assim, igual ao pássaro que plana nos ares e não se lembra mais da
Terra, vocês subirão ininterruptamente, subirão sempre, até que a alma
inebriada possa se saciar do seu elemento de vida no seio do Senhor.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1861)
20. Meus bons amigos, vocês me chamaram, por quê? Será que foi para eu
impor as mãos sobre a pobre sofredora que está aqui, para que eu a cure? Ah,
que sofrimento, bom Deus! Ela perdeu a vista e as trevas se fizeram para ela.
Pobre criança! Que ela ore e espere; eu não sei fazer milagres, eu, sem a
vontade do bom Deus. Todas as curas que eu pude obter, e de que vocês
tiveram conhecimento, não as atribuam senão àquele que é o Pai de todos
nós. Em suas aflições, olhem então sempre para o céu e digam do fundo do
28 Esta comunicação foi dada a pedido de uma pessoa cega, para quem foi evocado o Espírito de J. B.
VIANNEY, Cura de Ars.
136 – Allan Kardec
coração: “Meu pai, cura-me, mas faça com que minha alma enferma seja
curada antes das enfermidades do meu corpo; que minha carne seja castigada,
se preciso for, para que minha alma se eleve até o Senhor, com a brancura que
ela tinha quando foi criada por ti.” Após essa prece, meus bons amigos, que o
bom Deus sempre ouvirá, a força e a coragem lhes serão dadas e, talvez
também, aquela cura que vocês pediram timidamente, como recompensa pela
abnegação de vocês.
Mas já que estou aqui, numa assembleia em que se trata principalmente
de estudos, eu vou lhes dizer que aqueles que estão privados da vista
deveriam se considerar como os bem-aventurados de expiação. Lembrem-se
de que o Cristo disse que era preciso arrancar o próprio olho se ele fosse mau,
e que seria melhor lançá-lo ao fogo do que ele se tornar a causa da sua
condenação. Ah, quantos há nesta Terra que um dia lamentarão nas trevas
por terem visto a luz! Oh, sim! Como são felizes aqueles que, na expiação, são
feridos através visão! Seus olhos não serão motivo de escândalo ou de queda;
eles podem viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que
você que enxergam claramente... Quando Deus me permite ir abrir as
pálpebras de algum desses pobres sofredores e lhes restituir a luz, eu digo a
mim mesmo: Alma querida, por que você não conhece todas as delícias do
Espírito que vive de contemplação e de amor? Você não pediria para ver
imagens menos puras e menos suaves do que as que te é permitido
vislumbrar na tua cegueira!
Oh, sim! Bem-aventurado o cego que quer viver com Deus; mais feliz do
que vocês que estão aqui, ele sente a felicidade, toca-a, vê as almas e pode se
lançar com elas às esferas espirituais que nem mesmo os predestinados da
Terra conseguem ver. O olho aberto está sempre pronto para fazer a alma
falir; o olho fechado, ao contrário, está sempre pronto a fazê-la se elevar a
Deus. Acreditem em mim, meus bons e caros amigos, a cegueira dos olhos
frequentemente é a verdadeira luz do coração, enquanto muitas vezes a vista
é o anjo tenebroso que conduz à morte.
E agora, algumas palavras para ti, minha pobre sofredora: aguarde e
tenha coragem! Se eu te dissesse: Minha filha, teus olhos vão se abrir, como
você ficaria contente! Mas quem sabe se esse contentamento não te levaria à
137 – O Evangelho segundo o Espiritismo
21. Observação – Quando uma aflição não é uma consequência dos atos da vida
presente, deve-se procurar sua causa numa vida anterior. Aquilo que se chama de
capricho da sorte não é outra coisa senão o efeito da justiça de Deus. Deus não aplica
punições arbitrárias; ele quer que entre a falta e a penitência sempre haja uma
correlação. Se ele, em sua bondade, lançou um véu sobre os nossos atos passados, por
outro lado ele nos coloca no caminho ao dizer: “Quem matou com a espada, pela
espada perecerá”; palavras que podem ser traduzidas assim: “Sempre somos punidos
por aquilo que pecamos”. Portanto, se alguém é afligido com a perda da visão, é que a
visão foi para ele uma causa de queda; quem sabe alguém tenha ficado cego pelo
excesso de trabalho que lhe imposto por ele, ou por consequência de maus-tratos,
pela falta de cuidados etc., e agora ele sofre pela pena de talião. Ele mesmo, em seu
arrependimento, pode ter escolhido essa expiação, aplicando a si estas palavras de
Jesus: “Se o teu olho for motivo de escândalo para ti, arranca-o.”
138 – Allan Kardec
CAPÍTULO IX
BEM-AVENTURADOS AQUELES
QUE SÃO MANSOS E PACÍFICOS
Injúrias e violências – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A afabilidade e a
doçura – A paciência – Obediência e resignação – A cólera
Injúrias e violências
3. Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: Não matem, e quem matar
merecerá ser condenado pelo julgamento. Mas eu digo a vocês que quem se
puser em cólera contra seu irmão merecerá ser condenado pelo julgamento;
que aquele que disser ao seu irmão: Raca, merecerá ser condenado pelo
sinédrio; e aquele que lhe disser: Você é louco, merecerá ser condenado ao
fogo do inferno. (São Mateus, 5: 21 e 22)
5. Mas o que Jesus entende por estas palavras: “Bem-aventurados os que são
mansos, porque eles possuirão a Terra”, já que ele diz para renunciarmos aos
bens deste mundo, prometendo os bens do céu?
Enquanto espera os bens do céu, o homem tem necessidade dos bens da
Terra para viver; Jesus recomenda apenas que não se dê a estes últimos mais
importância do que aos primeiros.
Por aquelas palavras, ele quis dizer que até hoje os bens da Terra são
acumulados pelos violentos, em prejuízo daqueles que são mansos e pacíficos;
que a estes muitas vezes falta o necessário, enquanto os outros dispõem do
supérfluo; ele promete que a justiça lhes será feita, assim na Terra como no
céu, porque eles serão chamados filhos de Deus. Quando a lei de amor e de
caridade for a lei da humanidade, não haverá mais egoísmo; os fracos e os
pacíficos não serão mais explorados nem esmagados pelos fortes e violentos.
Tal será a situação da Terra quando, de acordo com a lei do progresso e a
promessa de Jesus, a Terra tiver se transformado em um mundo feliz, pela
expulsão dos ímpios.
A afabilidade e a doçura
6. A benevolência para com seus semelhantes — fruto do amor ao próximo —
produz a afabilidade e a doçura, que são a sua manifestação. Entretanto, nem
140 – Allan Kardec
A paciência
7. A dor é uma bênção que Deus envia aos seus eleitos; então, não se aflijam
quando estiverem sofrendo, mas ao contrário, bendigam ao Deus todo-
poderoso que lhes marcou pela dor neste mundo, para a glória no céu.
Sejam pacientes; a paciência também é uma caridade, e vocês devem
praticar a lei de caridade ensinada pelo Cristo, enviado de Deus. A caridade
que consiste na esmola dada aos pobres é a mais fácil das caridades; porém,
existe uma bem mais penosa e consequentemente bem mais meritória: é a de
141 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Obediência e resignação
8. A doutrina de Jesus ensina em toda parte a obediência e a resignação —
duas virtudes companheiras da doçura e muito efetivas, embora os homens as
confundam erradamente com a negação do sentimento e da vontade. A
obediência é o consentimento da razão; a resignação é o consentimento
do coração; ambas são forças ativas, pois elas carregam o fardo das
provações que a revolta insensata deixa cair. O covarde não pode ser
resignado, assim como o orgulhoso e o egoísta não podem ser obedientes.
Jesus foi a encarnação dessas virtudes desprezadas pela Antiguidade
materialista. Ele veio no momento em que a sociedade romana perecia nos
desfalecimentos da corrupção; veio fazer brilhar no seio da humanidade
enfraquecida os triunfos do sacrifício e da renúncia carnal.
Cada época é assim marcada pelo cunho da virtude ou do vício que deve
salvá-la ou levá-la à perdição. A virtude desta geração de vocês é a atividade
intelectual; seu vício é a indiferença moral. Eu digo apenas atividade, porque a
inteligência surge repentinamente e descobre de uma só vez os horizontes
que a multidão só verá depois dela, enquanto a atividade é a reunião dos
142 – Allan Kardec
A cólera
9. O orgulho os leva a se acharem mais do que vocês são; leva-os a não tolerar
uma comparação que possa rebaixá-los; leva-os a se considerarem, por outro
lado, tão acima dos seus irmãos — seja em inteligência, em posição social e
até em vantagens pessoais — que o menor paralelo irrita e ofende vocês. O
que acontece então? Vocês se entregam à cólera.
Procurem a origem desses surtos de demência momentânea que os
tornam semelhantes aos brutos, fazendo-os perder o sangue-frio e a razão;
procurem, e quase sempre vocês encontrarão como base o orgulho ferido.
Não é o orgulho ferido por uma contradição que os faz repelir as mais justas
observações e os faz rejeitar com raiva os mais sábios conselhos? Até mesmo
a impaciência — causada por contrariedades muitas vezes infantis — se deve
à importância que as pessoas dão à sua personalidade, diante da qual elas
acham que todos devem ceder.
Em seu frenesi, o homem encolerizado se atira a tudo: à natureza bruta,
aos objetos inanimados que ele quebra, porque eles não lhe obedecem. Ah, se
nesses momentos ele pudesse se ver a sangue-frio, ele teria medo de si
mesmo, ou se acharia muito ridículo! Que ele julgue por isso a impressão que
deve causar aos outros. Quando não fosse pelo respeito por si próprio, ele
deveria se esforçar para vencer essa inclinação que faz dele um objeto de
piedade.
143 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Se ele pensasse que a cólera não resolve nada, que ela altera a sua saúde
e compromete até mesmo a sua vida, então ele veria que ele é a sua primeira
vítima. Mas outra consideração deveria contê-lo principalmente: é a ideia de
que ele torna infelizes todos aqueles que o rodeiam. Se ele tiver coração, não
será motivo de remorso para ele fazer sofrer os seres a quem ele mais ama? E
que arrependimento mortal se, num acesso de fúria, ele cometesse um ato do
qual ele tivesse que lastimar por toda a sua vida!
Em suma, a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede
que se faça muito bem e pode fazer muito mal; isso deve bastar para instigar
que se faça esforços para dominar a cólera. O espírita, aliás, é convocado a
fazer isso por outro motivo: é que a cólera é contrária à caridade e à
humildade cristãs.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1863)
10. De acordo com a ideia muito falsa de que não é possível reformar a
própria natureza, o homem se acha dispensado de fazer esforços para se
corrigir dos defeitos nos quais ele se compraz voluntariamente, ou que
exigiriam bastante perseverança; é assim, por exemplo, que a pessoa
inclinada à cólera quase sempre se desculpa pelo seu temperamento; ao invés
de se confessar culpada, ela joga a culpa no seu organismo, acusando assim a
Deus das próprias faltas dela. Isso também é uma consequência do orgulho
que se encontra misturado com todas suas imperfeições da pessoa.
Sem contradição, há temperamentos que se prestam mais do que outros
a atos violentos, como há músculos mais flexíveis que se prestam melhor aos
atos de força; mas não creiam que aí esteja a causa primordial da cólera, e
fiquem certos de que um Espírito pacífico — mesmo que ele esteja num corpo
bilioso — será sempre pacífico, e que um Espírito violento — mesmo num
corpo linfático — não será mais dócil; a violência apenas tomará outro
caráter; não tendo um organismo apropriado para favorecer sua violência, a
cólera ficará concentrada, enquanto no outro caso será expansiva.
O corpo não dá cólera àquele que não a tem, assim como não dá os
outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito;
sem isso, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem que é
144 – Allan Kardec
deformado não pode se endireitar, porque o Espírito não tem relação com
isso, mas ele pode modificar o que é do Espírito, quando tem vontade firme
para isso. A experiência não lhes mostra, espíritas, até onde pode ir o poder
da vontade, através de transformações verdadeiramente miraculosas que
vocês veem se realizar? Reconheçam, pois, que o homem só continua vicioso
porque quer continuar vicioso; porém, aquele que quiser se corrigir sempre
poderá se corrigir; de outro modo, a lei do progresso não existiria para o
homem.
HAHNEMANN (Paris, 1863)
145 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO X
BEM-AVENTURADOS AQUELES
QUE SÃO MISERICORDIOSOS
Perdoem para que Deus lhes perdoe – Reconciliar-se com os
adversários. – O sacrifício mais agradável a Deus – O cisco e a trave
no olho – Não julguem para não serem julgados. Quem estiver sem
pecado atire a primeira pedra – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Perdão
das ofensas – A indulgência – É permitido repreender os outros,
notar as imperfeições de outrem e divulgar o mal alheio?
2. Se perdoarem aos homens as faltas que eles cometerem contra vocês, então
o seu Pai celestial também perdoará os pecados de vocês; mas se não
perdoarem aos homens quando eles lhes ofenderem, seu Pai também não
perdoará os pecados de vocês. (São Mateus, 6: 14 e 15)
3. Se o seu irmão pecou contra vocês, vá e lhe repreenda pelo erro dele em
particular, entre vocês e ele; se ele lhes atender, vocês terão ganho um irmão.
Então, aproximando-se dele, Pedro lhe disse: Senhor, quantas vezes devo
perdoar a meu irmão, quando ele tiver pecado contra mim? Até sete vezes? —
Jesus lhe respondeu: Eu não lhes digo que perdoem até sete vezes, mas até
setenta vezes sete. (São Mateus, 18: 15, 21 e 22)
e no perdão das ofensas. O ódio e o rancor denotam uma alma sem elevação e
sem grandeza; o esquecimento das ofensas é a característica da alma elevada
que está acima dos ataques que lhe possam ser dirigidos. Uma está sempre
ansiosa, de uma suscetibilidade melindrosa e cheia de fel; a outra é calma,
plena de mansidão e de caridade.
Ai daquele que diz: “Eu não perdoarei jamais”, pois esse, se não for
condenado pelos homens, certamente será condenado por Deus. Com que
direito ele reclamaria o perdão de suas próprias faltas, se ele mesmo não
perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter
limites, quando ele diz para perdoar o irmão, não sete vezes, mas setenta
vezes sete.
No entanto, há duas maneiras bem diferentes de perdoar: uma é grande,
nobre, verdadeiramente generosa, sem segunda intenção, que trata com
delicadeza o amor-próprio e o melindre do adversário — mesmo que este
esteja totalmente errado; a segunda é aquela pela qual o ofendido — ou
aquele que sente ofendido — impõe ao outro condições humilhantes e lhe faz
sentir o peso de um perdão que irrita, em vez de acalmar; se estende a mão,
não é com benevolência, e sim com ostentação, a fim de poder dizer a todo
mundo: “Vejam o quanto eu sou generoso!” Em tais circunstâncias, é
impossível que a reconciliação seja sincera de parte a parte. Não, aí não há
generosidade; isso é uma maneira de satisfazer ao orgulho. Em toda
contestação, aquele que se mostra ser o mais conciliador e que prova ter mais
desinteresse, caridade e verdadeira grandeza de alma conquistará sempre a
simpatia das pessoas imparciais.
efeito moral: há também um efeito material. A morte, como sabemos, não nos
livra dos nossos inimigos; muitas vezes, no além-túmulo, os Espíritos
vingativos perseguem com seu ódio aqueles contra os quais eles guardam
rancor; é por isso que é falso aquele provérbio que diz: “Morto o animal,
morto o veneno”, quando aplicado ao homem. O Espírito mau espera que
aquele a quem ele quer mal esteja preso ao corpo e menos livre, para
atormentá-lo mais facilmente e feri-lo nos seus interesses ou nas suas
afeições mais caras. É preciso ver nesse fato a causa da maioria dos casos de
obsessão, sobretudo dos que apresentam uma certa gravidade — como a
subjugação e a possessão. O obsidiado e o possesso, portanto, são quase
sempre vítimas de uma vingança anterior, à qual provavelmente provocaram
pela sua conduta. Deus assim permite para os punir pelo mal que eles
mesmos fizeram, ou, se eles não o fizeram, por terem faltado com a
indulgência e a caridade, não perdoando. Nesse caso, do ponto de vista da sua
tranquilidade futura, importa que ele repare o mais rápido possível os erros
que tenha praticado contra o próximo, que ele perdoe aos seus inimigos, a fim
de que apagar — antes de morrer — todo motivo de dissensão, toda causa
fundamentada de aversão posterior; por esse meio, de um inimigo implacável
neste mundo pode-se fazer um amigo no outro mundo, ou pelo menos ficar do
lado certo, e Deus não deixa que aquele que perdoou seja alvo de qualquer
vingança. Quando Jesus recomenda chegar a um acordo o quanto antes com o
adversário, não é somente com vista a apaziguar as discórdias durante a atual
existência, mas para evitar que elas se perpetuem nas existências futuras.
Vocês não sairão da prisão — diz ele — enquanto não tiverem pago até o
último centavo, quer dizer, enquanto não satisfizerem completamente a
Justiça de Deus.
9. Por que observam um cisco no olho do seu irmão e não enxergam uma
trave no olho de vocês? Ou, como podem dizer ao seu irmão: “Deixem-nos
tirar um cisco do teu olho”, vocês que têm uma trave no próprio olho?
Hipócritas, tirem primeiramente a trave do olho de vocês, e vejam depois
como poderão tirar o cisco do olho do seu irmão. (São Mateus, 7: 3 a 5)
11. Não julguem, a fim de não serem julgados, porque vocês serão julgados
conforme tiverem julgado os outros; e será usada com vocês a mesma medida
que vocês tiverem usado com os outros. (São Mateus, 7: 1 e 2)
12. Então os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher que havia sido
surpreendida em adultério e a fizeram ficar de pé no meio do povo; e
disseram a Jesus: Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em
adultério; ora, pela lei, Moisés nos ordena apedrejar as adúlteras. Qual é a tua
opinião sobre isso? — Eles disseram isso para tentá-lo, a fim de ter de que o
acusar. Mas Jesus, abaixando-se, escreveu com o dedo no chão. Como eles
continuaram a interrogá-lo, ele se levantou e lhes respondeu: Que aquele
dentre vocês que estiver sem pecado, atire a primeira pedra. Em seguida,
abaixando-se de novo, ele continuou a escrever no chão. Quanto a eles,
ouvindo-o falar daquele modo, retiraram-se um após o outro, os mais velhos
saindo primeiro; e assim Jesus ficou a sós com a mulher, que estava no meio
da praça.
Então Jesus, levantando-se, perguntou a ela: Mulher, onde estão os teus
acusadores? Ninguém te condenou? — Ela lhe respondeu: Não, Senhor. —
Jesus lhe retrucou: Eu também não te condenarei. Vá e no futuro não peque
mais. (São João, 8: 3 a 11)
13. “Que aquele que estiver sem pecado lhe atire a primeira pedra” — disse
Jesus. Esta máxima faz da indulgência um dever para nós, porque não há
150 – Allan Kardec
ninguém que não necessite dela para si mesmo. Ela nos ensina que não
devemos julgar os outros mais severamente do que julgamos a nós mesmos,
nem condenar nos outros aquilo que desculpamos em nós. Antes de
acusarmos um erro de alguém, vejamos se a mesma acusação não poderia
recair sobre nós.
Jogar a culpa na conduta alheia pode ter dois motivos: reprimir o mal ou
desqualificar a pessoa cujos atos estão sendo criticados; este último motivo
não tem desculpa jamais, porque é um caso de maledicência e de maldade. O
primeiro pode ser louvável, e até se torna um deve em certas situações,
porque daí deve resultar um bem e porque, sem isso, o mal nunca seria
reprimido na sociedade. Aliás, o homem não deve ajudar no progresso do seu
semelhante? Então, não poderíamos tomar em sentido absoluto este
princípio: “Não julguem, se não quiserem ser julgados”, pois a letra mata e o
espírito vivifica.
Jesus não podia proibir de culpar aquele que é o mal, já que ele mesmo
nos deu o exemplo, e o fez em termos enérgicos; mas ele quis dizer que a
autoridade da culpar está na razão da autoridade moral daquele que a
pronuncia; tornar-se culpado daquilo que condena nos outros significa
abdicar dessa autoridade; e mais ainda, é privar-se do direito de repressão.
Além disso, a consciência íntima recusa todo respeito e toda submissão
voluntária àquele que, estando investido de um poder qualquer, viola as leis e
os princípios que está encarregado de aplicar. Não há autoridade legítima
aos olhos de Deus senão aquela que se apoia no bom exemplo; é isso o que
ressalta igualmente das palavras de Jesus.
grande em suas aspirações, que Jesus ensinou aos seus discípulos, e vocês
encontrarão sempre o mesmo pensamento. Jesus, o justo por excelência,
responde a Pedro: Perdoe, mas sem limites; perdoe cada ofensa quantas vezes
te ofenderem; ensine aos teus irmãos esse esquecimento de si mesmo, que o
torna invulnerável ao ataque, aos maus procedimentos e às injúrias; seja
brando e humilde de coração, não medindo jamais a tua mansuetude; faça,
enfim, o que você deseja que o Pai celestial faça a teu valor. Ele não tem
muitas vezes do que te perdoar? Será que ele conta o número de vezes que o
perdão dele desce para apagar as tuas faltas?
Ouça então essa resposta de Jesus e, como Pedro, apliquem-na a vocês
mesmos; perdoem, usem de indulgência, sejam caridosos, generosos,
pródigos até do seu amor. Doem, pois o Senhor lhes restituirá; perdoem, pois
o Senhor lhes perdoará; abaixem-se, pois o Senhor lhes elevará; sejam
humildes, pois o Senhor lhes assentará à direita dele.
Vão, meus bem-amados, estudem e comentem estas palavras que eu lhes
dirijo da parte d’Aquele que, do alto dos esplendores celestes, sempre olha
para vocês e continua com amor a tarefa ingrata que ele começou há dezoito
séculos. Então, perdoem seus irmãos, assim como vocês necessitam que os
outros lhes perdoem. Se os atos deles têm sido prejudiciais para vocês, isso é
um motivo a mais para serem indulgentes, pois o mérito do perdão é
proporcional à gravidade do mal; não haveria nenhum mérito em desculpar
os erros dos seus irmãos se eles lhes causassem apenas ferimentos leves.
Espíritas, nunca se esqueçam de que, tanto em palavras como em ações,
o perdão das injúrias não deve ser uma vã expressão. Se vocês se dizem
espíritas, então sejam espíritas; esqueçam o mal que lhes possam ter feito e
não pensem senão numa coisa: no bem que vocês possam dar em troca.
Aquele que entrou por esse caminho não deve se afastar dele nem por
pensamento, pois vocês são responsáveis pelos seus pensamentos — que
Deus conhece. Façam, portanto, que eles sejam desprovidos de todo
sentimento de rancor; Deus sabe o que existe no fundo do coração de cada
um. Feliz daquele que toda noite pode adormecer dizendo: Nada tenho
contra o meu próximo.
SIMEÃO (Bordeaux, 1862)
152 – Allan Kardec
A indulgência
16. Espíritas, hoje nós queremos lhes falar da indulgência, esse sentimento
tão doce e tão fraternal que todo homem deve ter para com seus irmãos, mas
do qual bem poucos fazem uso.
A indulgência não vê os defeitos alheios, ou, quando vê, evita comentá-
los e divulgá-los; ao contrário, ela os oculta, a fim de que não sejam
conhecidos senão apenas dela, e se a malevolência os descobre, a indulgencia
sempre tem uma desculpa pronta para compensá-los, isto é, uma desculpa
plausível, séria, e não daquelas que — tendo a aparência de atenuar a falta —
a evidenciam, com uma pérfida artimanha.
A indulgência jamais se ocupa com os maus atos dos outros, a menos que
seja para prestar um serviço, mas, ainda assim, ela tem o cuidado de os
atenuar tanto quanto possível. Ela não faz observações constrangedoras nem
traz censura nos lábios, mas somente conselhos e quase sempre velados.
Quando vocês lançam uma crítica, que consequência se deve tirar das suas
palavras? A de que vocês, que acusam, não fariam o que estão reprovando;
que vocês valem mais do que o culpado. Ó homens! Quando será que vocês
julgarão os seus próprios corações, seus próprios pensamentos, seus próprios
atos, sem se ocuparem com o que seus irmãos estão fazendo? Quando abrirão
os seus olhos severos apenas para si mesmos?
Desse modo, sejam severos para com vocês mesmos e indulgentes para
com os outros. Lembrem-se daquele que julga em última instância, aquele que
vê os secretos pensamentos de cada coração, aquele que consequentemente
perdoa muitas vezes os erros que vocês censuram, ou condena os erros que
vocês desculpam, porque ele conhece a causa de todos os atos; lembrem-se
também que vocês que gritam bem alto “anátema!” talvez tenham cometido
faltas mais graves.
154 – Allan Kardec
17. Sejam indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não
julguem com severidade a não ser as suas próprias ações e o Senhor usará de
indulgência para com vocês, assim como a tiverem usado para com os outros.
Apoiem os fortes: encorajem a perseverança deles; fortaleçam os fracos
em lhes mostrando a bondade de Deus, que leva em conta o menor
arrependimento; mostrem a todos o anjo da contrição estendendo suas asas
brancas sobre as faltas humanas e ocultando-os assim dos olhos daquele que
não pode ver o que é impuro. Compreendam todos a misericórdia infinita do
Pai de vocês e não se esqueçam nunca de lhe dizer, pelo pensamento e
sobretudo pelos atos: “Perdoe nossas ofensas, como perdoamos aos que nos
têm ofendido.” Compreendam bem o valor destas sublimes palavras; não só a
letra é admirável, mas também o ensinamento que contém.
O que vocês querem quando pedem ao Senhor o perdão para vocês? Será
que é apenas o esquecimento das ofensas? Esquecimento que lhes deixaria
sem nada? Porque se Deus se contentasse em esquecer as faltas de vocês, ele
não puniria, mas também não recompensaria. A recompensa não pode ser o
prêmio do bem que não foi feito, e tampouco do mal que tenha sido praticado,
mesmo que esse mal fosse esquecido. Ao lhe pedir perdão para as suas
transgressões, o que vocês estão pedindo é o favor de suas graças para não
caírem de novo; é a força necessária para ingressar num caminho novo,
caminho da submissão e do amor, no qual vocês poderão conciliar a
reparação com o arrependimento.
Quando perdoarem seus irmãos, não se contentem em estender o véu do
esquecimento sobre as faltas deles, pois esse véu muitas vezes é bem
transparente aos seus olhos; levem-lhes amor ao mesmo tempo que o perdão;
façam por eles o que pediriam que o Pai celestial fizesse por vocês.
Substituam a cólera que contamina pelo amor que purifica. Preguem pelo
exemplo essa caridade ativa e infatigável que Jesus lhes ensinou; preguem
como ele mesmo o fez durante todo o tempo em ele que viveu na Terra, visível
155 – O Evangelho segundo o Espiritismo
aos olhos do corpo, e como ele ainda prega sem cessar, desde que ele se
tornou visível somente aos olhos do espírito. Sigam esse modelo divino;
marchem sobre as pegadas dele; elas lhes conduzirão ao recanto de refúgio
onde encontrarão o repouso após a luta. Assim como ele, cada qual tome a sua
cruz e suba penosamente — mas corajosamente — o seu próprio calvário: lá
no cume está a glorificação.
JOÃO, bispo de Bordeaux (1862)
18. Caros amigos, sejam severos consigo e indulgentes com as fraquezas dos
outros; esta é também uma prática de santa caridade, que bem poucas
pessoas observam. Todos vocês têm más inclinações a vencer, defeitos a
corrigir e hábitos a modificar; todos vocês têm um fardo mais ou menos
pesado a carregar para subirem ao cume da montanha do progresso. Então
por que vocês são tão observadores com relação ao próximo e tão cegos com
relação a vocês mesmos? Quando deixarão de perceber nos olhos do seu
irmão o cisco que os incomoda, sem perceber nos seus próprios olhos a trave
que lhes cega e lhes faz caminhar de queda em queda? Acreditem nos seus
irmãos, os Espíritos: todo homem, orgulhoso o bastante para se achar
superior, em virtude e em mérito, em relação aos seus irmãos encarnados, é
insensato e culpado, e Deus o castigará no dia da sua justiça. O verdadeiro
caráter da caridade é a modéstia e a humildade, que consistem em não ver —
a não ser superficialmente — os defeitos alheios e para procurar valorizar o
que nele há de bom e virtuoso; pois, conquanto o coração humano seja um
abismo de corrupção, sempre existe em alguns dos seus refolhos mais
recônditos a semente de alguns bons sentimentos, a centelha vivaz da
essência espiritual.
Espiritismo, doutrina consoladora e bendita! Felizes os que te conhecem
e aproveitam os salutares ensinamentos dos Espíritos do Senhor! Para estes, o
caminho está iluminado, e ao longo de todo o trajeto eles podem ler estas
palavras que lhes indicam o meio de chegarem ao objetivo: caridade efetiva,
caridade do coração, caridade para com o próximo como para si mesmo; em
síntese, caridade para com todos e amor a Deus acima de todas as coisas,
porque o amor de Deus resume todos os deveres e porque é impossível
156 – Allan Kardec
realmente amar a Deus sem praticar a caridade, da qual ele fez uma lei para
todas as suas criaturas.
DUFÊTRE, bispo de Nevers (Bordeaux)
19. Já que ninguém é perfeito, será que ninguém tem o direito de repreender
o seu próximo?
Seguramente que não, pois cada um de vocês deve trabalhar pelo
progresso de todos, e sobretudo daqueles cuja tutela lhes foi confiada; mas
isso é uma razão para fazê-lo com moderação, para uma finalidade útil, e não
— como se faz na maioria das vezes — pelo prazer de denegrir. Neste último
caso, a repreensão é uma maldade; no primeiro caso, é um dever que a
caridade manda cumprir com todas as precauções possíveis; e ainda assim, a
acusação que lançarmos a outrem devemos ao mesmo tempo dirigir a nós
mesmos, perguntando-nos também se não a merecemos.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
29 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
157 – O Evangelho segundo o Espiritismo
observá-lo para um proveito pessoal, ou seja, para estudar e evitar aquilo que
censuramos nos outros. Essa observação, aliás, não é proveitosa ao moralista?
Como ele pintaria os defeitos da humanidade, se não estudasse os modelos?
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
CAPÍTULO XI
AMAR O PRÓXIMO
COMO A SI MESMO
O maior mandamento. Fazer aos outros o que gostaríamos que os
outros nos fizessem. Parábola dos credores e dos devedores
– Dar a César o que é de César – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A lei de
amor – O egoísmo – A fé e a caridade – Caridade para com os
criminosos – Devemos expor a vida por um malfeitor?
O maior mandamento.
Fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem.
Parábola dos credores e dos devedores
1. Os fariseus, tendo ouvido que ele havia calado a boca dos saduceus,
reuniram-se em assembleia; então, um deles, que era doutor da lei, veio lhe
fazer esta pergunta, para tentá-lo: Mestre, qual é o maior mandamento da lei?
— Jesus lhe respondeu: Ame o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a
tua alma e de todo o teu espírito; este é o maior e o primeiro mandamento. E
aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Ame o teu próximo como
a ti mesmo. Toda a lei e os profetas estão contidos nesses dois mandamentos.
(São Mateus, 22: 34 a 40)
2. Façam aos homens o que vocês gostariam que eles lhes fizessem, pois esta
é a lei e os profetas. (São Mateus, 7: 12)
Tratem todos os homens da mesma maneira como vocês gostariam que
eles lhes tratassem. (São Lucas, 6: 31)
3. O reino dos céus é semelhante a um rei que queria pedir contas aos seus
servos, e tendo começado a fazer isso, apresentou-se ao rei um dos servos
159 – O Evangelho segundo o Espiritismo
que lhe devia dez mil talentos. Mas como ele não tinha recursos para pagar,
seu senhor mandou que o vendessem, ele, sua mulher, seus filhos e tudo o
que ele possuía, para quitar aquela dívida. O servo, lançando-se aos pés do
rei, o implorou, dizendo-lhe: Senhor, tenha um pouco de paciência e eu te
pagarei tudo.” — Então o senhor daquele servo, ficando tocado de compaixão,
o deixou ir e lhe perdoou a dívida. Mas esse servo, mal saindo dali, encontrou
um de seus companheiros, que lhe devia cem denários, e o segurou pelo
pescoço, quase estrangulando-o, lhe dizendo: Pague-me o que você me deve.
— E o seu companheiro, lançando-se aos seus pés, o implorou, dizendo:
Tenha um pouco de paciência e eu te pagarei tudo. — Mas ele não quis
escutá-lo, foi-se e mandou prendê-lo, para ali ficar até que ele pagasse o que
lhe devia.
Os outros servos, seus companheiros, vendo o que se passava, ficaram
extremamente sensibilizados e informaram o seu senhor de tudo o que havia
acontecido. Então o senhor, tendo mandado trazê-lo, disse-lhe: Servo
malvado, eu tinha perdoado tudo o que me você devia, porque me pediste;
então, não era para você também ter piedade do teu companheiro, como eu
tive piedade de você? — E o seu senhor, tomado de cólera, o entregou nas
mãos dos carrascos, até que ele pagasse tudo o que devia.
Será dessa forma que meu Pai que está no céu lhes tratará, se cada um
de vocês não perdoar, do fundo do seu coração, as faltas que seus irmãos
tiverem cometido contra vocês. (São Mateus, 18: 23 a 35)
7. Esta máxima “Deem a César o que é de César” não deve ser entendida de
uma maneira restritiva e absoluta. Como todos os ensinos de Jesus, trata-se de
um princípio geral, resumido sob uma forma prática e usual, e deduzido de
uma circunstância particular. Esse princípio é uma consequência daquele que
diz para agirmos com os outros como gostaríamos que os outros agissem para
161 – O Evangelho segundo o Espiritismo
conosco; ele condena todo prejuízo material e moral que se possa causar a
outro alguém e toda violação de seus interesses; ele recomenda o respeito aos
direitos de cada um, como cada um deseja que se respeite os seus; ele se
estende até o cumprimento dos deveres contraídos para com a família, a
sociedade, a autoridade, assim também para com os indivíduos.
A lei de amor
8. O amor resume toda a doutrina de Jesus, porque esse é o sentimento por
excelência, e os sentimentos são os instintos elevados à altura do progresso
realizado. No seu ponto de partida, o homem só tem instintos; quanto mais
avançado e corrompido, ele não tem nada além de sensações; mais instruído e
purificado, ele tem sentimentos. E o ponto requintado do sentimento é o
amor; não o amor no sentido vulgar da palavra, mas esse sol interior que
condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e todas as
revelações sobre-humanas. A lei de amor substitui a personalidade pela
integração dos seres; ela aniquila as misérias sociais. Feliz aquele que,
ultrapassando a sua humanidade, ama com um amplo amor os seus irmãos
em sofrimento! Feliz aquele que ama, porque não conhece nem a aflição da
alma nem a do corpo; seus pés são ágeis e ele vive como que transportado
para fora de si mesmo. Quando Jesus pronunciou essa palavra divina de amor,
essa palavra fez os povos estremeceram e os mártires, ébrios de esperança,
desceram ao espetáculo.
O espiritismo, por sua vez, vem pronunciar uma segunda palavra do
alfabeto divino; fiquem atentos, pois essa palavra ergue a lápide dos túmulos
vazios, e a reencarnação, triunfando sobre a morte, revela ao homem
deslumbrado o seu patrimônio intelectual. Já não é ao suplício que ela o
conduz, mas à conquista do seu ser, elevado e transfigurado. O sangue
resgatou o Espírito e hoje o Espírito deve resgatar o homem da matéria.
Eu disse que o homem, na sua origem, só tem instintos; portanto, aquele
em quem os instintos predominam está mais perto do ponto de partida do
162 – Allan Kardec
simpatias afetuosas das quais elas têm ciúmes. Pobres irmãos! É a sua própria
afeição que lhes torna egoístas; o amor de vocês está restrito a um círculo
íntimo de parentes e de amigos, e todos os demais são indiferentes para
vocês. Pois bem! Para praticar a lei de amor tal como Deus a entende, é
preciso que vocês cheguem gradualmente a amar a todos os seus irmãos
indistintamente. A tarefa será longa e difícil, mas ela se realizará: Deus quer
assim e a lei de amor é o primeiro e o mais importante preceito da sua nova
doutrina, porque é ela que um dia deverá matar o egoísmo, seja qual for a
forma sob a qual ele se apresente, uma vez que, além do egoísmo pessoal, há
ainda o egoísmo de família, de casta, de nacionalidade etc. Jesus disse: “Amem
o próximo como a vocês mesmos”; ora, qual é o limite para o próximo? Seria a
família, a seita, a nação? Não; é a humanidade inteira. Nos mundos superiores,
é o amor mútuo que harmoniza e dirige os Espíritos avançados que os
habitam, e este seu planeta, destinado a um progresso que se aproxima,
através da sua transformação social, verá seus habitantes praticarem essa lei
sublime, reflexo da Divindade.
Os efeitos da lei de amor são o melhoramento moral da raça humana e a
felicidade durante a vida terrestre. Os mais rebeldes e os mais viciosos
deverão se reformar quando virem os benefícios produzidos por esta prática:
Não façam aos outros o que vocês não gostariam que os outros lhes fizessem;
mas, ao contrário, façam todo o bem que vocês puderem fazer por eles.
Não creiam na esterilidade e no endurecimento do coração humano;
mesmo a contragosto, ele cede ao amor verdadeiro; é um ímã ao qual ele não
consegue resistir, e o contato desse amor vivifica e fecunda as sementes dessa
virtude, que está em seus corações em estado latente. A Terra, instância de
provações e de exílio, será então purificada por esse fogo sagrado e verá se
praticar a caridade, a humildade, a paciência, o devotamento, a abnegação, a
resignação e o sacrifício, que são virtudes filhas do amor. Então, não se
cansem de escutar as palavras de João, o Evangelista; como vocês sabem,
quando a enfermidade e a velhice dele suspenderam o curso de suas
pregações, ele apenas repetia estas doces palavras: “Meus filhinhos, amem-se
uns aos outros.”
Caros irmãos amados, aproveitem essas lições; a sua prática é difícil, mas
164 – Allan Kardec
a alma retira delas um bem imenso. Creiam em mim, façam o sublime esforço
que lhes peço: “Amem-se”, e em breve vocês verão a Terra modificada,
tornando-se o Elísio30 onde as almas dos justos virão desfrutar do repouso.
FÉNELON (Bordeaux, 1861)
10. Meus caros condiscípulos, os Espíritos aqui presentes lhes dizem por meio
da minha voz: Amem bastante, a fim de serem amados. Esse pensamento é tão
justo que vocês encontrarão nele tudo o que consola e acalma os sofrimentos
de cada dia; ou melhor: praticando esse sábio preceito, vocês vão se elevar tão
acima da matéria que se espiritualizarão antes do seu desprendimento
terrestre. Tendo os estudos espíritas desenvolvido em vocês a compreensão
do futuro, vocês têm uma certeza: a do avanço rumo a Deus, com todas as
promessas que correspondem às aspirações da alma; assim, vocês devem se
elevar alto o suficiente para poderem julgar sem as pressões da matéria, e não
condenar o próximo, antes de ter dirigido o pensamento a Deus.
Amar, no sentido profundo do termo, é ser leal, probo e consciencioso
para fazer aos outros aquilo que se desejaria para si mesmo; é procurar em
torno de si o significado íntimo de todas as dores que acabrunham os irmãos,
para lhes levar um alívio; é olhar a grande família humana como a sua, porque
essa família vocês a encontrarão num certo período, em mundos mais
adiantados, e que os Espíritos que a compõem são — como vocês — filhos de
Deus, marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que vocês
não podem recusar aos seus irmãos o que Deus generosamente lhes dá,
porque, da parte de vocês, eu sei que ficariam muito felizes se seus irmãos
lhes dessem aquilo de que necessitam. Para todos os sofrimentos, então,
levem sempre uma palavra de esperança e de apoio, para que sejam todo
amor, todo justiça.
Creiam que este sábio preceito “Amem bastante, para serem amados”
seguirá o seu caminho; ele é revolucionário e segue a rota que é fixa e
invariável. Mas vocês já venceram, vocês que me escutam; vocês são
infinitamente melhores do que eram há cem anos; já se modificaram tanto
para melhor que já aceitam sem contestação um monte de ideias novas sobre
30 Elísio: referência à mansão dos heróis e dos justos, segundo a mitologia greco-romana. N. T.
165 – O Evangelho segundo o Espiritismo
a liberdade e a fraternidade que antes teriam rejeitado. Ora, daqui a cem anos,
vocês aceitarão com a mesma facilidade as ideias que ainda não puderam
entrar no seu cérebro.
Hoje, que o movimento espírita tem dado um grande passo, vejam com
que rapidez as ideias de justiça e renovação contidas nos ditados dos
Espíritos são aceitas pela parte mediana do mundo inteligente; é que essas
ideias correspondem a tudo o que há de divino em vocês; é que vocês já estão
preparados para uma sementeira fecunda: a do último século, que implantou
no seio da sociedade as grandes ideias de progresso; e como tudo se encadeia
sob a direção do Altíssimo, todas as lições recebidas e aceitas estarão contidas
nessa troca universal de amor ao próximo; por ele, os Espíritos encarnados,
julgando melhor e sentindo melhor, se estenderão as mãos desde os confins
deste planeta; todos vão se reunir para se entenderem e se amarem, para
destruir todas as injustiças e todas as causas de desentendimentos entre os
povos.
Grande pensamento de renovação pelo espiritismo, tão bem descrito em
O Livro dos Espíritos, você produzirá o grande milagre do século vindouro: o
milagre de união de todos os interesses materiais e espirituais do homem,
pela aplicação deste preceito bem compreendido: Amem bastante, para serem
amados.
SANSON, antigo da Sociedade Espírita de Paris (1863)
O egoísmo
A fé e a caridade
13. Eu lhes disse anteriormente, meus caros filhos, que a caridade sem a fé
não era suficiente para manter entre os homens uma ordem social capaz de os
tornar felizes. Eu deveria ter dito que a caridade é impossível sem a fé. Vocês
poderão, é verdade, até encontrar impulsos generosos ainda que em pessoas
sem religião; mas essa caridade austera que só pode ser exercida com a
abnegação e com um sacrifício constante de todo interesse egoísta, somente a
fé pode inspirá-la, porque só ela nos faz carregar com coragem e
perseverança a cruz desta vida.
Sim, meus filhos, é em vão que o homem ávido de prazeres queira se
iludir sobre a sua destinação aqui na Terra, achando que lhe seja permitido se
ocupar unicamente com a própria felicidade. É certo que Deus nos criou para
sermos felizes na eternidade; no entanto, a vida terrena deve servir apenas
para o nosso aperfeiçoamento moral, o qual se adquire mais facilmente com a
ajuda dos órgãos físicos e do mundo material. Sem contar as vicissitudes
comuns da vida, a diversidade dos gostos de vocês — assim como os seus
pendores e as suas necessidades — também é um meio de vocês se
aperfeiçoarem, exercitando a caridade. Pois, somente à custa de concessões e
de sacrifícios mútuos é que vocês podem manter a harmonia entre elementos
tão diversos.
Entretanto, vocês têm razão em afirmar que a felicidade está destinada
ao homem aqui neste mundo — desde que vocês a procurem não nos
prazeres materiais, mas na bondade. A história da cristandade fala de
mártires que caminharam para o suplício com alegria; hoje, e na sociedade de
vocês, para ser um cristão não é preciso nem o holocausto do martírio nem o
168 – Allan Kardec
façam diferença entre os outros infelizes, pois é Deus quem deseja que todos
sejam iguais; então não desprezem ninguém; Deus permite que grandes
criminosos estejam entre vocês para que eles lhes sirvam de ensinamento. Em
breve, quando os homens estiverem submetidos às verdadeiras leis de Deus,
não haverá mais necessidade desses ensinamentos, e todos os Espíritos
impuros e revoltados serão banidos para mundos inferiores, de acordo
com as suas tendências.
Vocês devem o socorro das suas preces àquele de quem falo: essa é a
verdadeira caridade. Não se deve falar de um criminoso: “Isso é um miserável;
é preciso expurgar a Terra de gente assim; a morte que lhe é infligida é muito
branda para um ser dessa espécie.” Não, não é assim que vocês devem falar.
Observem o modelo para vocês: Jesus; o que ele diria se visse esse infeliz
perto dele? Teria pena dele, iria considerá-lo como um enfermo muito infeliz
e lhe estenderia a mão. Vocês não podem fazer o mesmo, na realidade, mas
pelo menos vocês podem orar por ele, ajudar o Espírito dele durante alguns
instantes que ele ainda deva passar nesta Terra. O arrependimento pode tocar
seu coração, se vocês orarem com fé. Ele é seu próximo tanto quanto o melhor
dos homens; sua alma, transviada e rebelde, foi criada como a de vocês, para
se aperfeiçoar; então, ajudem-no a sair do lamaçal e orem por ele.
ELIZABETH DE FRANÇA (Le Havre, 1862)
15. Um homem está em perigo de morte; para salvá-lo, alguém precisa expor a
própria vida; porém, sabe-se que aquele homem é um malfeitor e que, se ele
escapar, poderá cometer novos crimes. Apesar disso, deve-se arriscar para
salvá-lo?
Esta é uma questão muito grave e que de fato pode surgir na nossa
mente. Eu responderei conforme o meu adiantamento moral, pois nesse
ponto, estamos diante do fato de sabermos se alguém deve expor sua própria
31 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
170 – Allan Kardec
CAPÍTULO XII
2. Se vocês não amarem ninguém além daqueles que lhes amam, que mérito
terão por isso, já que as pessoas de má vida também amam aqueles que as
amam? E se vocês fizerem o bem somente aos que lhes fazem bem, que
mérito terão com isso, já que as pessoas de má vida fazem a mesma coisa? E
se vocês só emprestarem àqueles de quem esperam receber o mesmo favor,
que mérito terão com isso, já que as pessoas de má vida emprestam umas às
outras da maneira forma, para receber a mesma vantagem? Mas, para vocês,
amem seus inimigos, façam o bem a todos e emprestai sem nada esperar;
e dessa forma a recompensa de vocês será grandíssima, e vocês serão os
filhos do Altíssimo, porque ele é bom para os ingratos e até mesmo para os
172 – Allan Kardec
Ora, para ser superior ao seu adversário, é preciso que ele tenha a alma maior,
mais nobre e mais generosa.
Os inimigos desencarnados
5. O espírita tem ainda outros motivos para ser indulgente com os seus
inimigos. Ele sabe, primeiramente, que a maldade não é um estado
permanente dos homens; sabe que ela se deve a uma imperfeição
momentânea e que, assim como a criança se corrige dos seus defeitos, o
homem um dia mau reconhecerá seus erros e se tornará bom.
O espírita sabe também que a morte o livra apenas da presença material
do seu inimigo, mas que este pode persegui-lo com o seu ódio, mesmo após
ter deixado a Terra; sabe que, nessa condição, a vingança fracassa em seu
objetivo, já que, ao contrário, ela tem por efeito produzir uma irritação maior
que pode continuar de uma existência para outra. Cabia ao espiritismo provar
— pela experiência e pela lei que rege as relações entre o mundo visível e o
mundo invisível — que a expressão: extinguir o ódio com o sangue, é
radicalmente falsa, e que o é que verdadeiro é que o sangue alimenta o ódio,
mesmo no além-túmulo. Consequentemente, também cabia ao espiritismo dar
uma razão de ser efetiva e uma utilidade prática ao perdão e àquele sublime
ensinamento do Cristo: Amem seus inimigos. Não há coração tão perverso
que não seja tocado pelo bom procedimento — mesmo sem se dar conta.
Através do bom procedimento, pelo menos nós removemos todo pretexto
para as represálias, porque, de um inimigo, podemos fazer um amigo, antes e
depois de sua morte. Já com um mau procedimento, a pessoa irrita o seu
inimigo, que então serve de instrumento à justiça de Deus para punir
aquele que não perdoou.
7. Vocês ouviram o que foi dito: olho por olho e dente por dente. Mas eu digo
a vocês para não resistirem ao mal que alguém lhes queiram fazer; mas que,
se alguém lhes bater na face direita, ofereçam-lhe também a outra face; e
se alguém quiser pleitear contra vocês, para lhes tomar a túnica, entreguem-
lhe também o manto; e que se alguém lhes forçar a caminhar mil passos com
ele, caminhem mais dois mil. Deem àquele que lhes pedir, e não rejeitem
quem lhes queira pedir empréstimo. (São Mateus, 5: 38 a 42)
Então Cristo veio e disse: Retribuam o mal com o bem. E disse mais: “Não
resistam ao mal que alguém queira fazer a vocês; se alguém lhes bater numa
face, ofereçam-lhe a outra face.” Para quem é orgulhoso, este ensinamento
parece uma covardia, pois ele não compreende que haja mais coragem em
suportar um insulto do que em se vingar; e isso sempre por causa daquilo que
faz com que sua visão não veja além do presente. Mas, será que deveríamos
tomar esse ensinamento ao pé da letra? Não, como também aquele outro que
diz para arrancar o olho, se ele for um motivo de escândalo; levado às suas
últimas consequências, isso seria o mesmo que condenar toda repressão —
mesmo legítima — e deixar o campo livre para os ímpios, livrando-os de
qualquer temor; se não se pusesse um freio às suas agressões, logo todos os
homens bons seriam vítimas dos maus. O próprio instinto de conservação —
que é uma lei da natureza — diz que não se pode benevolentemente entregar
o pescoço a um assassino. Por essas palavras, portanto, Jesus não nos proibiu
de nos defendermos, mas sim condenou a vingança. Ao dizer para
oferecermos uma face quando alguém nos bater na outra, ele quer dizer, de
outra forma, que não devemos pagar o mal com o mal; que o homem deve
aceitar com humildade tudo aquilo que possa rebaixar seu orgulho; que é
glorioso para ele em ser ferido do que em ferir, em suportar pacientemente
uma injustiça do que em ele mesmo cometer uma injustiça; que mais vale ser
enganado do que enganar, ser arruinado do que arruinar os outros. Esse
ensinamento é ao mesmo tempo a condenação do duelo, que não passa de
uma manifestação do orgulho. Só a fé na vida futura e na justiça de Deus —
que jamais deixa o mal impune — pode nos dar a força para suportarmos
pacientemente os ataques direcionados aos nossos interesses e ao nosso
amor-próprio; é por isso que dizemos sem cessar: Apontem o olhar para o
futuro; quanto mais vocês se elevarem pelo pensamento acima da vida
material, menos vocês serão atingidos pelas coisas da Terra.
O ódio
10. Amem-se uns aos outros e vocês serão felizes. Assumam a tarefa de amar
principalmente aqueles que lhes inspiram indiferença, ódio ou desprezo. O
Cristo — que é quem vocês devem adotar como modelo — lhes deu o exemplo
desse devotamento; missionário do amor, ele amou até dar o próprio sangue e
a própria vida. O sacrifício que obriga vocês a amar os que lhes ultrajam e lhes
perseguem é penoso, mas é precisamente esse sacrifício que lhes torna
superiores a eles. Se os odiassem como eles odeiam vocês, então não valeriam
mais do que eles; esta é a hóstia sem mácula ofertada a Deus no altar dos seus
corações, hóstia de agradável aroma e cujo perfume sobe até ele. Embora a lei
de amor queira que amemos indistintamente a todos os irmãos, ela não
resguarda o coração contra os maus procedimentos; esta é, ao contrário, a
prova mais dolorosa, eu sei bem, porque durante a minha última existência
terrena eu experimentei essa tortura; mas Deus lá está, e pune nesta vida e na
outra todos os que falseiam a lei de amor. Não se esqueçam, meus queridos
filhos, de que o amor nos aproxima de Deus, e que o ódio nos distancia dele.
FÉNELON. (Bordeaux, 1861)
O duelo
sem ferir nem impedir sua caminhada. Expor seus dias para se vingar de uma
injúria é recuar diante das provações da vida; isso é sempre um crime aos
olhos de Deus, e se vocês não fossem iludidos pelos seus preconceitos, tal
como são, isso seria uma tolice ridícula e suprema aos olhos dos homens.
Há crime no homicídio através do duelo e a própria legislação de vocês
reconhece isso; ninguém tem o direito — em nenhum caso — de atentar
contra a vida de seu semelhante; é um crime aos olhos de Deus, que lhes
traçou a sua linha de conduta. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar,
vocês são juízes na sua própria causa. Lembrem-se de que serão perdoados
conforme vocês mesmos também tenham perdoado; através do perdão vocês
se aproximam da Divindade, pois a clemência é irmã da força. Enquanto uma
gota de sangue humano correr na Terra pela mão dos homens, o verdadeiro
reino de Deus ainda não terá chegado — reino de pacificação e de amor, que
há de banir para sempre deste globo a animosidade, a discórdia e a guerra.
Então, a palavra duelo não existirá mais na linguagem de vocês, a não ser
como uma longínqua e vaga lembrança de um passado que se foi. Os homens
não conhecerão entre eles outro antagonismo além da nobre competição do
bem.
ADOLFO, bispo de Argel (Marmande, 1861)
12. Sem dúvidas, o duelo indubitavelmente pode ser uma prova de coragem
física e de desapego pela vida, mas também é incontestavelmente a prova de
covardia moral, assim como o suicídio. O suicida não tem a coragem de
enfrentar as vicissitudes da vida, enquanto o duelista não tem a de suportar
as ofensas. Cristo não lhes disse que há mais honra e coragem em apresentar
a face esquerda àquele que bateu na direita do que em vingar uma injúria?
Cristo não disse a Pedro, no Jardim das Oliveiras: “Ponha a tua espada na
bainha, pois aquele que matar com a espada perecerá pela espada”? Por essas
palavras, Jesus não condenou para sempre o duelo? De fato, meus filhos, que
coragem é essa, então brotada de um temperamento violento, sanguíneo e
colérico, rugindo já na primeira ofensa? Portanto, onde está a grandeza de
alma daquele que, na menor injúria, quer lavá-la com sangue? Pois que ele
trema! Pois, no fundo da sua consciência, uma voz sempre lhe gritará: Caim!
180 – Allan Kardec
Caim! O que você fez com o teu irmão? Eu precisei de sangue para salvar a
minha honra — responderá ele a essa voz; mas ela lhe retrucará: Você quis
salvar tua honra diante dos homens, por alguns instantes que te restavam de
vida na Terra, e não pensou em salvá-la perante Deus! Pobre louco! Mas
então, quanto sangue Cristo exigiria de ti por todos os ultrajes que ele
recebeu! Não só você o feriu com espinhos e lança, não só o pregou num
madeiro infamante, como também, em meio à sua agonia, ele pôde ouvir as
zombarias que lhe eram feitas. Que compensação a tantos ultrajes ele te
pediu? O último brado do cordeiro foi uma prece em favor dos seus algozes.
Oh! Assim como ele, perdoem e orem pelos que lhes ofendem.
Amigos, lembrem-se deste preceito: “Amem-se uns aos outros”, e então,
a um golpe pelo ódio vocês responderão com um sorriso, e ao ultraje vocês
responderão com o perdão. O mundo indubitavelmente se levantará furioso e
lhes tratará como covardes; levantem a cabeça bem alto e mostrem então que
também sua fronte não temeria se encher de espinhos a exemplo do Cristo,
mas que sua mão não quer ser cúmplice de um assassínio dito autorizado, por
um falso ar de honra, que não passa de orgulho e de amor-próprio. Quando
Deus lhes criou, teria ele concedido a vocês o direito de vida e de morte, uns
sobre os outros? Não; ele não deu direito a não ser à natureza, só a ela, para se
reformar e se reconstruir; quanto a vocês, não há sequer permissão de dispor
de vocês mesmos. Tal como o suicida, o duelista ficará manchado de sangue
quando estiver diante de Deus, e a um e a outro o Soberano Juiz prepara rudes
e longos castigos. Se ele ameaçou com sua justiça aquele que disser raca ao
seu irmão, quanto mais severa não será a pena para aquele que aparecesse
diante dele com as mãos sujas do sangue de seu irmão!
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)
15. O homem do mundo, o homem feliz, que por uma palavra ofensiva, uma
coisa leve, arrisca a vida que ele recebeu de Deus, arrisca a vida de seu
semelhante e que só pertence a Deus, esse é cem vezes mais culpado do que o
miserável que, dominado pela cupidez — ou, às vezes, pela necessidade —
invade uma casa para roubar aquilo que ele cobiça ou para matar quem se
opõe aos seu plano. Este último é quase sempre um homem sem educação,
tendo apenas noções imperfeitas do bem e do mal, ao passo que o duelista
não raro pertence à classe mais esclarecida; um mata brutalmente, enquanto
o outro mata com método e polidez, o que faz com que a sociedade o desculpe.
Eu acrescento ainda que o duelista é infinitamente mais culpado do que o
infeliz que, cedendo a um sentimento de vingança, mata num momento de
exasperação. O duelista não tem como escusa o arrebatamento da paixão,
porque entre o insulto e a reparação ele sempre tem de tempo para refletir;
183 – O Evangelho segundo o Espiritismo
16. Observação – Os duelos se tornam cada vez mais raros, e se ainda vemos de
tempos em tempos alguns exemplos dolorosos deles, seu número não se compara com
os de antigamente. Outrora, um homem não saía de casa sem prever um encontro;
assim, ele sempre tomava as devidas precauções. Um sinal característico dos
costumes do tempo e dos povos consiste no uso habitual do porte de armas — visíveis
ou ocultas, ofensivas ou defensivas; a abolição desse uso demonstra o abrandamento
dos costumes, e é curioso acompanhar a sua gradação, desde a época em que os
cavaleiros só cavalgavam protegidos por armaduras e munidos de lança, até a época
do porte de uma simples espada, que se transformou mais em um enfeite e um
acessório do brasão do que uma arma agressiva. Outro sinal da modificação dos
costumes é que antes os combates individuais aconteciam em plena rua, diante da
multidão que se afastava para deixar livre o campo, enquanto hoje eles se ocultam.
Atualmente, a morte de um homem é um acontecimento que nos comove; no passado,
ninguém prestava atenção a isso. O Espiritismo superará esses últimos vestígios de
barbárie ao incutir nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.
184 – Allan Kardec
CAPÍTULO XIII
1. Tomem cuidado para não fazer boas obras na frente dos homens para
serem vistos, pois, do contrário vocês não receberão a recompensa do seu Pai
que está nos céus. Então, quando derem esmola, não façam soar a trombeta
diante de vocês, como os hipócritas fazem nas sinagogas e nas ruas, para
serem honorificados pelos homens. Em verdade eu lhes digo que eles já
receberam a recompensa deles. Mas quando vocês derem esmola, que a sua
esquerda não saiba o que a mão direita dá, a fim de que a esmola fique em
segredo; então o seu Pai, que vê o que se passa em segredo, lhes dará a
recompensa. (São Mateus, 6: 1 a 4)
Infortúnios ocultos
4. Nas grandes calamidades, a caridade se comove, e nós vemos generosos
esforços nesse sentido, para reparar os desastres; porém, ao lado desses
desastres gerais, existem milhares de desastres particulares que passam
despercebidos, de pessoas que jazem sobre um leito sem reclamar. São esses
infortúnios discretos e ocultos que a verdadeira generosidade sabe ir
descobrir sem esperar que essas pessoas peçam assistência.
Quem é essa mulher de ar distinto, de traje tão simples, embora bem
cuidado, acompanhada por uma mocinha vestida tão modestamente? Ela
entra numa casa de sórdida aparência, onde sem dúvida ela é conhecida, pois
já na sua chegada todos a saúdam com respeito. Aonde ela vai? Ela sobe até a
mansarda: lá, jaz uma mãe de família rodeada de crianças; a partir da sua
187 – O Evangelho segundo o Espiritismo
O óbolo da viúva
5. Estando Jesus sentado diante do baú de ofertas, ele viu de que maneira o
povo colocava ali o dinheiro, e que muitas pessoas ricas depositavam
bastante. E veio também uma pobre viúva que ofertou apenas duas pequenas
moedas que valiam meio centavo. Então Jesus, chamando seus discípulos,
lhes disse: Em verdade eu digo a vocês que essa pobre viúva deu mais do que
todos aqueles que tinham feito sua oferta, porque todos os outros deram do
que estava sobrando, mas essa viúva deu de sua indigência, deu mesmo tudo
o que tinha e que lhe restava para sobreviver.” (São Marcos, 12: 41 a 44; são
Lucas, 21:1 a 4)
6. Muitas pessoas lamentam não poderem fazer todo o bem que gostariam,
lamentam a falta de recursos suficientes e, se elas desejam a fortuna, é para —
dizem elas — fazer um bom uso dos recursos. A intenção sem dúvidas é
louvável, e pode até ser sincera em algumas pessoas; mas será mesmo que
essa intenção seja completamente desinteressada em todas elas? Será que
entre elas não haja algumas que, embora desejem fazer o bem aos outros,
ficariam bem felizes em começar por fazerem felizes a si mesmas,
proporcionando-se alguns prazeres a mais, para obterem um pouco do
supérfluo que lhes falta, para dar aos pobres somente o resto? Essa segunda
intenção — que talvez essas pessoas escondam de si mesmas, mas que
encontrariam no fundo dos seus corações, se elas quisessem revistá-lo —
anula o mérito da intenção, porque a verdadeira caridade pensa nos outros
antes de pensar em si. Nesse caso, o ápice da caridade seria procurar no seu
próprio trabalho — pelo emprego de suas forças, de sua inteligência e de seus
talentos — os recursos que lhe faltam para realizar suas generosas intenções;
aí estaria o sacrifício mais agradável ao Senhor. Infelizmente, a maioria vive a
189 – O Evangelho segundo o Espiritismo
coxos e os cegos; e você ficará feliz por eles não terem recursos para te
retribuir; por isso você será retribuído na ressurreição dos justos.
Um dos que estavam à mesa, tendo escutado essas palavras, disse-lhe:
Feliz aquele que comer do pão no reino de Deus! (São Lucas, 14: 12 a 15)
8. Jesus disse: “Quando der uma festa, não convide para ela os teus amigos,
mas os pobres e os estropiados.” Estas palavras — absurdas, se tomadas
literalmente — são sublimes, se procurarmos o seu significado. Jesus não
poderia querer dizer que, em vez dos amigos, seja preciso reunir à mesa os
mendigos da rua; a linguagem dele era quase sempre figurada e, para os
homens incapazes de entender os delicados detalhes do pensamento, ele
carecia de imagens fortes, produzindo o efeito de um colorido chocante. A
essência do seu pensamento se revela nestas palavras: “Você ficará feliz por
eles não terem recursos para te retribuir”; isso quer dizer que não devemos
fazer o bem tendo em vista um retorno, mas somente pelo prazer de fazer o
bem. Para dar uma comparação marcante, ele diz: Para os seus festins,
convidem os pobres; pois vocês sabem que eles não poderão lhes retribuir; e
por festins, devemos entender, não as refeições propriamente ditas, mas a
participação na abundância de que vocês gozam.
Essa expressão, entretanto, também pode receber sua aplicação num
sentido mais literal. Quantas pessoas não convidam para suas mesas senão os
que podem — como eles dizem — lhes fazer as honras, ou que podem lhes
convidar na vez deles! Outras pessoas, ao contrário, encontram satisfação em
receber os parentes e amigos menos felizes; ora, quem é que não tem um
desses entre seus parentes? Isso, por vezes, significa prestar a eles um grande
serviço, sem parecer. Estes, sem irem convocar os cegos e os estropiados,
estarão praticando a máxima de Jesus se assim fizerem por benevolência, sem
ostentação, e se souberem esconder o benefício por uma sincera cordialidade.
que eles nos fizessem.” Toda a religião, toda a moral se encontram contidas
nesses dois preceitos. Se eles fossem seguidos neste mundo, todos vocês
seriam perfeitos: nada de ódios, nem de ressentimentos; eu direi ainda mais:
nada de pobreza, porque do supérfluo da mesa de cada rico muitos pobres
seriam alimentados, e vocês não veriam mais nos quarteirões sombrios, onde
eu habitei durante a minha última encarnação, pobres mulheres arrastando
consigo miseráveis crianças carecendo de tudo.
Ricos, pensem um pouco nisso! Ajudem da melhor forma os infelizes;
doem, para que Deus um dia lhes retribua o bem que vocês tiverem feito, para
que encontrem, ao sair do seu envoltório terreno, um cortejo de Espíritos
agradecidos, que os receberão no limiar de um mundo mais feliz.
Ah se vocês pudessem saber a alegria que experimentei ao encontrar no
além aqueles a quem eu pude ajudar na minha última existência!...
Portanto, amem o seu próximo; amem-no como a vocês mesmos, pois
agora já sabem que esse infeliz que vocês repulsam talvez seja um irmão, um
pai ou um amigo que vocês repelem para longe; e então, qual será o desespero
de vocês ao reconhecê-lo no mundo dos Espíritos!
Eu desejo que compreendam bem aquilo que pode ser a caridade
moral, aquela que todos podem praticar; aquela que nada custa
materialmente e, no entanto, é a mais difícil de se colocar em prática.
A caridade moral consiste em suportar uns aos outros, e isso é o que
menos vocês fazem nesse mundo onde estão encarnados no momento.
Acreditem, há um grande mérito em saber se calar para deixar que alguém
mais tolo possa falar, e até isso é um gênero de caridade. Saber ser surdo
quando uma palavra zombeteira escapa de uma boca habituada a zombar; não
ver a risada de desprezo com que vocês são recebidos por pessoas que,
muitas vezes erradamente, se acham acima de vocês, enquanto na vida
espírita — a única real — eles muitas vezes estão bem abaixo; eis aí o mérito,
não da humildade, mas da caridade, porque não reparar os erros alheios é
uma caridade moral.
Todavia, essa caridade não deve impedir a outra; cuidem sobretudo para
não desprezar o seu semelhante; lembrem-se de tudo o que eu já lhes disse: é
preciso lembrar sem cessar que no pobre rejeitado talvez vocês estejam
192 – Allan Kardec
A beneficência
11. A beneficência, meus amigos, lhes dará neste mundo os mais puros e os
mais doces prazeres, as alegrias do coração que não são perturbados nem
pelo remorso nem pela indiferença. Ah, que vocês possam compreender tudo
que há de grande e de agradável na generosidade das belas almas, esse
sentimento que nos faz olhar para os outros com o mesmo olhar com que
olhamos para nós mesmos, e que nos faz nos despirmos com satisfação para
cobrir o irmão! Que vocês possam, meus amigos, ter como a mais doce
ocupação fazer os outros felizes! Quais são as festas do mundo que poderão
comparar a essas festas jubilosas, quando vocês — os representantes da
Divindade — levam alegria a essas pobres famílias que não conheceram nada
da vida além das dificuldades e amarguras; quando vocês veem aqueles rostos
murchos de repente irradiarem esperança, porque não tinham pão, aqueles
infelizes e seus filhinhos, ignorando que viver é sofrer, eles gritavam,
choravam e repetiam estas palavras que penetravam nos corações maternos
como um agudo punhal: Estou com fome!... Ah, compreendam como são
deliciosas as impressões daquele que vê renascer a alegria onde, um instante
antes, ele só via desespero! Compreendam quais são as obrigações de vocês
para com os seus irmãos! Vão! Vão ao encontro do desafortunado! Vão em
194 – Allan Kardec
12. Sejam bons e caridosos, pois essa é a chave dos céus que vocês têm em
suas mãos; toda a felicidade eterna está contida nesta máxima: Amem-se uns
aos outros. A alma não pode se elevar nas regiões espirituais a não ser pelo
devotamento ao próximo; ela não encontra contentamento e consolação
senão nos impulsos da caridade. Sejam bons, amparem seus irmãos, deixem
de lado a terrível chaga do egoísmo; esse dever cumprido há de abrir para
vocês a estrada da felicidade eterna. De resto, qual de vocês ainda não sentiu
o coração saltar e sua alegria interior se expandir com a narrativa de um belo
devotamento, de uma obra verdadeiramente caridosa? Se vocês só buscassem
195 – O Evangelho segundo o Espiritismo
a volúpia que uma boa ação proporciona, então ficariam sempre no caminho
do progresso espiritual. Não faltam exemplos para vocês; só a boa vontade é
que é rara. Vejam a multidão de homens de bem, de quem a História lhes
recorda uma piedosa lembrança.
O Cristo não lhes disse tudo o que concerne às virtudes da caridade e do
amor? Por que deixar de lado os seus ensinamentos divinos? Por que fechar
os ouvidos às suas divinas palavras e fechar o coração a todas as suas suaves
máximas? Eu gostaria que houvesse mais interesse, mais fé nas leituras
evangélicas; despreza-se esse livro, faz-se dele uma palavra oca, uma carta
fechada; esse código admirável é deixado no esquecimento: os males de vocês
vêm justamente do desprezo voluntário que dão a esse resumo das leis
divinas. Por isso, leiam todas essas páginas cintilantes do devotamento de
Jesus, e as meditem.
Homens fortes, contenham-se; homens fracos, armem-se de brandura e
de fé; tenham mais persuasão e mais constância na propagação da sua nova
doutrina; não é mais do que um encorajamento o que nós viemos lhes dar,
não é mais do que para estimular o zelo e as virtudes de vocês que Deus nos
permite nos manifestar a vocês. Mas se vocês quisessem, não precisariam
mais do que a ajuda de Deus e a própria vontade de vocês: as manifestações
espíritas se realizam exatamente para aqueles que têm os olhos fechados e os
corações indóceis.
A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício
das virtudes terrestres; sem ela, as outras não existem. Sem a caridade não há
esperança de uma sorte melhor, não há interesse moral que nos guie; sem a
caridade não há fé, porque a fé não é mais do que um raio muito puro que faz
brilhar uma alma caridosa.
A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos: é a mais
pura emanação do próprio Criador; é sua própria virtude que ele dá à
criatura. Como poderíamos desprezar essa suprema bondade? Com esse
pensamento, qual seria o coração assaz perverso para reprimir e expulsar
esse sentimento todo divino? Qual seria o filho malvado o bastante para se
rebelar contra esse doce carinho que é a caridade?
Não ouso falar do que eu fiz, porque os Espíritos também têm o pudor de
196 – Allan Kardec
suas obras; mas eu creio que essa que eu comecei seja uma daquelas que mais
devem contribuir para o alívio dos seus semelhantes. Vejo com frequência os
Espíritos pedirem permissão para continuar a minha tarefa; eu as vejo,
minhas bondosas e caras irmãs, no seu piedoso e divino ministério; eu as vejo
praticar a virtude que eu lhes recomendo, com toda a alegria proporcionada
por essa existência de devotamento e de sacrifícios; para mim é uma grande
felicidade ver o quanto o seu caráter é honrado, o quanto a sua missão é
amada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e firme vontade,
unam-se para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; vocês
encontrarão a recompensa dessa virtude na sua própria execução; não há
alegria espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Fiquem unidos;
amem-se uns aos outros segundo os preceitos do Cristo. Assim seja.
SÃO VICENTE DE PAULO (Paris, 1858)
13. Eu me chamo caridade; eu sou a rota principal que conduz a Deus. Sigam-
me, pois eu sou o objetivo para o qual todos vocês devem visar.
Eu fiz esta manhã o meu passeio habitual e, com o coração partido,
venho lhes dizer: Oh, meus amigos! Quantas misérias, quantas lágrimas e
quanto vocês têm a fazer para secar todas elas! Em vão eu procurei consolar
algumas pobres mães; eu disse ao ouvido delas: Coragem! Há bons corações
que velam por vocês; nós não lhes abandonaremos! Paciência! Deus está aqui;
vocês são suas amadas, são suas eleitas. Elas pareciam me ouvir e se vivaram
para o meu lado com os olhos arregalados; eu lia no pobre rosto delas que
seus corpos — esses tiranos do Espírito — tinham fome, e que se minhas
palavras serenavam um pouco seus corações, não enchiam seus estômagos.
Eu repetir então: Coragem! Coragem! E uma pobre mãe, muito jovem, que
amamentava uma criancinha, tomou-a nos braços e a estendeu no espaço
vazio, como a me pedir que protegesse aquela pobre criaturinha, que só
encontrava num seio estéril uma alimentação insuficiente.
Noutros lugares, meus amigos, eu vi pobres idosos sem trabalho e quase
sem abrigo, vítimas de todos os sofrimentos da necessidade e, envergonhados
de sua miséria, não ousando — eles que nunca mendigaram — ir implorar a
piedade dos transeuntes. Com o coração comovido de compaixão, eu que nada
197 – O Evangelho segundo o Espiritismo
aspectos da caridade.
Agora escutem o que é a caridade para com os pobres, esses deserdados
deste mundo, mas os recompensados de Deus, se eles souberem aceitar suas
misérias sem murmurar, e isso depende de vocês. Vou me fazer compreender
por um exemplo.
Vejo, várias vezes na semana, uma reunião de senhoras de todas as
idades; para nós, como vocês sabem, todas elas são irmãs. O que fazem, então?
Elas trabalham depressa, depressa; os dedos são ágeis; vejam também como
os semblantes estão radiantes e como os corações batem uníssonos! Mas qual
é o objetivo delas? É que eles veem se aproximando o inverno, que será rude
para os lares pobres; as formigas não puderam acumular durante o verão os
grãos necessários para o abastecimento e a maior parte desses grãos já está
comprometida. As pobres mães se inquietam e choram ao pensar nos
filhinhos que, neste inverno, vão sentir frio e fome! Mas tenham paciência,
pobres mães! Deus tem inspirado outras mulheres mais afortunadas, que
estão reunidas e confeccionando roupinhas para vocês; depois, um dia desses,
quando a neve tiver coberto o chão e que vocês estejam murmurando,
dizendo: “Deus não é justo” — pois essa é expressão comum para vocês que
sofrem — então vocês vão ver aparecer um dos filhos dessas boas
trabalhadoras que se constituíram obreiras dos pobres; sim, foi para vocês
que elas trabalharam tanto, e os seus lamentos se transformarão em bênçãos,
porque no coração dos infelizes o amor segue bem perto do ódio.
Como é necessário a todas essas trabalhadoras um encorajamento, eu
vejo de todas as partes comunicações espíritas chegando para elas; os homens
que fazem parte dessa sociedade trazem também a sua contribuição, fazendo
uma dessas leituras que tanto agradam. E nós, para recompensarmos o zelo
de todos e de cada um em particular, nós prometemos a essas obreiras
batalhadoras uma boa clientela que lhes pagará, à vista, com bênçãos — a
única moeda que tem valor no céu — garantindo-lhes também, e sem receio
de ir mais longe, que essa moeda não lhes faltará.
CÁRITAS (Lyon, 1861)
15. Meus caros amigos, cada dia eu ouço entre vocês alguns que dizem: “Eu
199 – O Evangelho segundo o Espiritismo
sou pobre, não posso fazer caridade”; e cada dia eu os vejo faltar com a
indulgência para com os semelhantes; vocês não lhes perdoam nada e muitas
vezes se erguem como juízes severos, sem se perguntarem se vocês ficariam
satisfeitos caso alguém fizesse o mesmo com relação a vocês. A indulgência
também não é uma caridade? Vocês que só podem fazer a caridade
indulgente, pelo menos façam isso! Mas façam grandemente! Quanto à
caridade material, vou lhes contar uma história do outro mundo.
Dois homens tinham acabado de morrer; Deus havia dito: Enquanto
esses dois homens viverem, serão colocadas em sacos as boas ações de cada
um deles, e quando ambos morrerem os sacos serão pesados. Quando esses
dois homens chegaram à sua última hora, Deus ordenou que trouxessem os
dois sacos; um era grosso, alto, bem volumoso e o metal que o preenchia
ressoava; o outro saco era tão pequeno e tão fino que dava para ver as raras
moedas que ele continha; e cada um desses homens reconheceu seu saco:
Aqui está o meu — disse o primeiro —, eu o reconheço; fui rico e fiz bastante
doação. Este é o meu — disse o outro — sempre fui pobre! Oh, não tinha
quase nada para repartir. Mas, que surpresa! Colocando os dois sacos na
balança, o mais volumoso se tornou leve e o pequeno ficou pesado, tanto que
ele elevou bastante o outro prato da balança. Então Deus disse ao rico: Você
doou muito, é verdade, mas doou por ostentação e para ver o teu nome
aparecer em todos os templos do orgulho, e ademais, ao doar, você não se
privou de nada; vá para a esquerda e fique satisfeito, pois a tua esmola ainda
será contada para alguma coisinha a teu favor. Depois, Deus disse ao pobre:
Você doou pouco, meu amigo, mas cada uma dessas moedas que estão nesta
balança representa uma privação para ti; se você não deu esmolas, por outro
lado você fez caridade, e o que é melhor, você fez caridade naturalmente, sem
pensar se alguém levaria isso em conta; você foi indulgente e não julgou o teu
semelhante; ao contrário, você desculpou todas essas ações: passa para a
direita e vá receber a tua recompensa.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Lyon, 1861)
16. A mulher rica, feliz, que não tem precisão de empregar seu tempo nos
trabalhos domésticos, não poderia consagrar algumas horas para trabalhos
200 – Allan Kardec
úteis em favor dos seus semelhantes? Que ela compre, com o supérfluo dos
seus prazeres, algo para agasalhar o infeliz que treme de frio; que ela
confeccione com suas mãos delicadas algumas roupas grosseiras, mas
quentes; que ela ajude uma mãe a cobrir o filho que vai nascer. Se com isso o
seu filho ficar com algumas rendas a menos, o filho do pobre terá mais calor.
Trabalhar para os pobres é trabalhar na vinha do Senhor.
E você, pobre operária que não tem supérfluos, mas que, no teu amor
pelos irmãos, também deseja dar do pouco que possui algumas horas do teu
dia, do teu tempo, teu único tesouro: faça alguns desses trabalhos elegantes
que encantam os afortunados; venda o produto das tuas vigília e você também
poderá proporcionar aos teus irmãos a tua parte de lenitivo; você talvez fique
com algumas fitas a menos, mas doará sapatos a alguém que tem os pés
descalços.
E vocês, mulheres devotadas a Deus, trabalhem também na sua obra,
mas que as suas obras delicadas e custosas não sejam confeccionadas
somente para adornar suas capelas, para chamar a atenção sobre suas
habilidades e paciência; trabalhem, minhas filhas, e que o prêmio dessas
obras seja consagrado ao reconforto dos seus irmãos em Deus, pois os pobres
são seus filhos bem-amados; trabalhar para os pobres é glorificar a Deus.
Sejam a Providência, que diz: aos pássaros do céu Deus dá o alimento. Que o
ouro e a prata que suas mãos tecem se transformem em roupa e comida para
aqueles que não os têm. Façam isso e o trabalho de vocês será abençoado.
E todos vocês, que podem produzir e doar algo: doem sua inteligência,
doem suas inspirações, doem seu coração, e Deus lhes abençoará. Poetas,
literatos, que só são lidos pelas pessoas mundanas: satisfaçam seus lazeres,
mas que o produto de algumas de suas obras seja destinado para o alívio dos
infelizes. Pintores, escultores, artistas de todos os gêneros: que a sua
inteligência venha também em ajuda aos seus irmãos; vocês não terão menos
glória e terão alguns sofrimentos a menos.
Todos vocês podem fazer uma doação; em qualquer classe que estejam,
vocês têm alguma coisa de que possam compartilhar; seja o que for que Deus
lhes tenha concedido, vocês devem uma parte disso àquele a quem falta o
necessário, porque no lugar deles vocês ficariam bem felizes se alguém
201 – O Evangelho segundo o Espiritismo
dividisse com vocês. Seu tesouro na Terra será um pouco menor, mas o seu
tesouro no céu será mais abundante; lá vocês colherão o cêntuplo do que
tiverem semeado em benefício neste mundo.
JOÃO (Bordeaux, 1861)
A piedade
17. A piedade é a virtude que mais aproxima vocês dos anjos; ela é a irmã da
caridade que os conduz rumo a Deus. Ah, deixem o coração se enternecer em
face das misérias e dos sofrimentos dos seus semelhantes; suas lágrimas são
um bálsamo que vocês derramam nas feridas deles, e quando, por uma doce
simpatia, vocês chegarem a devolver a eles esperança e resignação, que
encanto vocês experimentarão! Esse encanto, é verdade, tem um certo
amargor, porque ele nasce ao lado do infortúnio; mas ele não tem a acidez dos
prazeres mundanos, nem as pungentes decepções do vazio que isso produz;
ele tem uma suavidade envolvente que enche a alma de júbilo. A piedade, uma
piedade bem sentida, é a do amor; amor é devotamento; devotamento é o
esquecimento de si mesmo, e esse esquecimento, essa abnegação em favor
dos infelizes, é a virtude por excelência, aquela que o divino Messias praticou
em toda a sua vida e que ensinou na sua doutrina tão santa e tão sublime.
Quando essa doutrina for restabelecida na sua pureza original, quando for
adotada por todos os povos, ela trará a felicidade à Terra, fazendo finalmente
reinar aqui a concórdia, a paz e o amor.
O sentimento mais apropriado para fazê-los progredir — domando o seu
egoísmo e o seu orgulho, aquele sentimento que predispõe suas almas à
humildade, à beneficência e ao amor do próximo — é a piedade, aquela
piedade que os comove até suas entranhas, diante dos sofrimentos dos seus
irmãos; que faz com que vocês estendam a eles uma mão socorrista e que
arranca em vocês lágrimas de simpatia. Portanto, nunca abafem em seus
corações essa emoção celeste, nem façam como esses egoístas endurecidos
que se afastam dos aflitos, porque o espetáculo das misérias deles perturbaria
por alguns instantes a alegre existência de vocês. Tomem cuidado para não
ficarem indiferentes quando vocês puderem ser úteis; a tranquilidade
202 – Allan Kardec
Os órfãos
18. Meus irmãos, amem os órfãos; se vocês soubessem como é triste ficar
sozinho e abandonado, sobretudo na infância! Deus permite que haja órfãos
para nos estimular a servi-los como pais. Que divina caridade é amparar uma
pobre criancinha abandonada, evitar que ela passe fome e frio, dirigir sua
alma a fim de que ela não se perca nos vícios! Quem estende a mão a uma
criança abandonada agrada a Deus, porque compreende e pratica a sua lei.
Pensem também que muitas vezes a criança que vocês estão socorrendo lhes
foi cara em outra encarnação; e se pudessem se lembrar, isso já não seria uma
caridade, mas um dever. Então, meus amigos, todo ser sofredor é seu irmão e
tem direito à sua caridade; não aquela caridade que magoa o coração, não
aquela esmola que queima a mão em que cai, pois frequentemente os seus
óbolos são bem amargos. Quantas vezes eles seriam recusados se, no porão, a
doença e a miséria não os estivessem esperando! Doem com delicadeza e
32Mar Morto: menção ao grande lago que banha parte de Israel, da Cisjordânia e da Jordânia, assim
chamado devido à condição hipersalina de suas águas e de sua lama negra rica em sais minerais, que
impossibilitam a sobrevivência de peixes, vegetais e demais espécies de seres vivos. — N. T.
203 – O Evangelho segundo o Espiritismo
lembrará deles e essa lembrança será o seu castigo; e aí ele lamentará pela
sua ingratidão e desejará reparar sua falta, pagar a dívida em outra existência,
não raro aceitando até mesmo uma vida de dedicação em favor do benfeitor. É
assim que, sem suspeitarem, vocês terão contribuído para o adiantamento
moral daquela pessoa, e reconhecerão mais tarde toda a veracidade deste
preceito: Uma boa ação jamais se perde. Mas vocês também terão trabalhado
para vocês mesmos, porque terão o mérito de haver feito o bem com
desinteresse, e sem se deixarem desanimar com as decepções.
Ah, meus amigos! Ah se vocês conhecessem todos os laços que na vida
presente os conectam às existências anteriores; ah se pudessem abarcar a
imensidade de relações que aproximam os seres uns aos outros para o seu
mútuo progresso, então ficariam ainda mais admirados com a sabedoria e a
bondade do Criador, que os permite reviverem para chegarem até ele.
GUIA PROTETOR (Sens, 1862)
Beneficência exclusiva34
20. A beneficência está bem entendida quando ela é exclusiva entre as pessoas
da mesma opinião, da mesma crença ou do mesmo partido?
Não, isso representa mais um espírito de seita e de partido, que precisa
ser abolido, porque todos os homens são irmãos. O verdadeiro cristão vê
irmãos em todos os seus semelhantes, e antes de socorrer aquele que está na
necessidade ele não consulta nem a sua crença nem a sua opinião — seja lá
sobre o que for. Será que ele estaria seguindo o preceito de Jesus Cristo — que
diz para amarmos até os inimigos — se ele repulsasse um infeliz só por causa
que este infeliz tivesse uma crença diferente da sua? Que ele o socorra,
portanto, sem lhe pedir contas da sua consciência, pois se esse necessitado for
um inimigo da religião, esse será o meio de fazer com que ele a ame;
repelindo-o, faria com que ele a odiasse.
SÃO LUÍS (Paris, 1860)
CAPÍTULO XIV
2. Honre seu pai e sua mãe, a fim de viver longo tempo na terra que o Senhor
teu Deus te dará. (Decálogo; Êxodo, 20: 12)
Piedade filial
3. O mandamento “Honrem seu pai e sua mãe” é uma consequência da lei
geral de caridade e de amor ao próximo, pois não podemos amar ao próximo
sem amar o pai e a mãe; porém, a palavra honrar traz um dever a mais para
com os pais, que é o dever da piedade filial. Deus quis mostrar com isso que
ao amor é preciso acrescentar o respeito, a consideração, a submissão e a
condescendência — o que implica a obrigação de cumprir para com eles, de
um modo ainda mais rigoroso, tudo o que a caridade manda em relação ao
próximo. Esse dever se estende naturalmente às pessoas que ocupam o lugar
de pai e de mãe, e que por isso têm tanto mais mérito quanto menos sua
dedicação for obrigatória. Deus sempre pune com rigor toda violação desse
mandamento.
Honrar o pai e a mãe não é somente respeitá-los; é também ajudá-los na
necessidade; é lhes proporcionar repouso na velhice; é cercá-los de cuidados
206 – Allan Kardec
tomar como regra de conduta para com os pais todos os preceitos de Jesus
referentes ao próximo e dizer a si mesmo que todo procedimento ofensivo
dirigido aos estranhos é ainda mais censurável quando dirigido aos mais
próximos, e que aquilo que talvez seja só uma simples falta no primeiro caso
pode se tornar um crime no segundo, porque então, além da falta de caridade,
junta-se a ingratidão.
4. Deus disse: “Honre teu pai e tua mãe, a fim de viver longo tempo na terra
que o Senhor teu Deus te dará.” Por que então ele promete como recompensa
a vida na Terra, e não a vida celeste? A explicação para isso se encontra nestas
palavras: “que Deus te dará”, suprimidas na formato moderno do decálogo —
o que desfigura o sentido natural. Para compreendermos essa expressão, é
preciso nos reportarmos à situação e às ideias dos hebreus naquela época em
que ela foi dita; os hebreus ainda não compreendiam a vida futura; sua visão
não se estendia além da vida corpórea e, por isso, eles tinham que ser
impressionados mais pelo que viam do que pelo que não viam; eis por que
Deus lhes fala numa linguagem ao alcance deles e, tal como a crianças, ele lhes
apresenta em perspectiva aquilo que pode satisfazê-los. Naquela época, eles
estavam no deserto e a terra que Deus lhes dará é a Terra Prometida, objetivo
das suas aspirações: eles não desejavam mais nada, e Deus lhes diz que eles
viverão lá por um longo tempo, isto é, que a possuirão por um longo tempo, se
observarem seus mandamentos.
Contudo, com a vinda de Jesus as ideias dos hebreus já estavam mais
desenvolvidas; tendo chegado o momento de dar a eles uma alimentação
menos grosseira, Jesus os inicia na vida espiritual, dizendo-lhes: “Meu reino
não é deste mundo; é lá, e não na Terra, que vocês receberão a recompensa
das suas boas obras.” Por essas palavras, a Terra Prometida material se
transforma numa pátria celeste; sendo assim, quando ele os chama à
observância do mandamento “Honrem seu pai e sua mãe”, já não é mais a
Terra que ele lhes promete, mas sim o céu. (Caps. II e III.)
nem conseguia fazer sua refeição. Quando seus parentes souberam disso,
vieram buscá-lo, pois diziam que ele tinha perdido o juízo.
Entretanto, sua mãe e seus irmãos vieram, e, ficando do lado de fora,
mandaram chamá-lo. Ora, o povo estava sentado em torno dele e lhe
disseram: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e te chamam.” — Mas ele lhes
respondeu: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? — E olhando
para aqueles que estavam sentados em torno dele, disse ele: Eis aqui minha
mãe e meus irmãos; pois todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu
irmão, minha irmã e minha mãe. (São Marcos, 3: 20, 21; 31 a 35; são Mateus,
12: 46 a 50)
filho; mas é preciso convir também que ela não parecia ter feito uma ideia
muito justa da missão de Jesus, pois jamais a viram seguir os ensinamentos
dele, nem lhe prestar testemunho, tal como João Batista fez; o zelo maternal
era o sentimento dominante nela. Com relação a Jesus, supor que ele tenha
renegado a mãe seria desconhecer o seu caráter; tal pensamento não podia
animar aquele que disse: Honre seu pai e sua mãe. É preciso então procurar
outro sentido para suas palavras, quase sempre veladas sob a forma alegórica.
Jesus não perdia nenhuma ocasião de dar um ensinamento; com isso, ele
aproveitou aquele que lhe oferecia a chegada de sua família para estabelecer a
diferença que existe entre o parentesco corporal e o parentesco espiritual.
CAPÍTULO XV
FORA DA CARIDADE
NÃO HÁ SALVAÇÃO
O que é preciso para ser salvo. Parábola do Bom Samaritano
– O maior mandamento – Necessidade da caridade segundo Paulo –
Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação
– INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Fora da caridade não há salvação
O maior mandamento
4. Os fariseus, tendo ouvido que ele havia calado a boca dos saduceus,
reuniram-se em assembleia; então, um deles, que era doutor da lei, veio lhe
fazer esta pergunta, para tentá-lo: Mestre, qual é o maior mandamento da lei?
— Jesus lhe respondeu: Ame o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a
tua alma e de todo o teu espírito; este é o maior e o primeiro mandamento. E
aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Ame o teu próximo como
a ti mesmo. Toda a lei e os profetas estão contidos nesses dois mandamentos.
(São Mateus, 22: 34 a 40)
7. São Paulo compreendeu essa grande verdade tão bem que ele disse: “Ainda
que eu tivesse a linguagem dos anjos; que eu tivesse o dom da profecia,
que eu penetrasse em todos os mistérios; que eu tivesse toda a fé possível,
até a de transportar montanhas, se não tiver a caridade, eu nada sou.
Dentre estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente
é a caridade.” Desta forma, sem equívoco, ele coloca a caridade acima até
mesmo da fé; é que a caridade está ao alcance de todo o mundo, do ignorante
ao sábio, do rico ao pobre, e porque ela independe de qualquer crença
particular.
E Paulo faz mais: ele define a verdadeira caridade, mostrando-a não só
na beneficência, mas também na união de todas as qualidades do coração, na
bondade e na benevolência com relação ao próximo.
CAPÍTULO XVI
verdade que é muito difícil que um rico entre no reino dos céus. Eu lhes digo
ainda mais uma vez: É mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus.35 (São Mateus, 19: 16 a 24;
são Lucas, 18: 18 a 25; são Marcos, 10: 17 a 25)
Preservar-se da avareza
3. Então um homem lhe disse, no meio da multidão: Mestre, diga ao meu
irmão que dívida comigo a herança que nos é devida. — Mas Jesus lhe disse: Ó
homem! Quem me designou para julgá-los ou para fazer a partilha entre
vocês? — Despois acrescentou: Tenha cuidado para se preservar de toda
avareza, porque por mais abundante que o homem seja, sua vida não depende
dos bens que possui.
Em seguida, ele contou a eles esta parábola: Havia um homem rico cujas
terras tinham produzido extraordinariamente, e ele se entretinha a pensar
consigo com estes pensamentos: O que hei de fazer, já que não tenho lugar
onde possa guardar tudo o que tenha a colher? — E disse ele: Já sei o que
farei: demolirei meus celeiros e construirei outros maiores, e aí colocarei toda
a minha colheita e todos os meus bens; então direi à minha alma: Minha alma,
você tem muitos bens em reserva para vários anos; repousa, come, bebe e
aproveita. — Mas Deus, ao mesmo tempo disse a esse homem: Como você é
insensato! Nesta mesma noite vão tomar a tua alma; então para quem ficará o
que você tem acumulado?
Isso é o que acontece àquele que acumula tesouros para si próprio e que
não é rico diante de Deus. (São Lucas, 12: 13 a 21)
35 Essa figura de linguagem ousada pode parecer um pouco forçada, porque não se vê a relação que
existe entre um camelo e uma agulha. Isso vem do fato de que em hebraico a mesma palavra é aplicada
para cabo e camelo. Na tradução, foi-lhe dada esta última acepção; é provável que seja a primeira
acepção a que estava no pensamento de Jesus; pelo menos é mais natural.
225 – O Evangelho segundo o Espiritismo
ele devia passar por ali. Jesus chegando a esse lugar, ergue os olhos para cima
e, tendo-o visto, disse a ele: Zaqueu, trate de descer daí, porque é preciso que
eu me hospede hoje na tua casa. — Zaqueu desceu imediatamente e o recebeu
com alegria. Vendo isso, todos murmuravam, dizendo: Ele foi se hospedar na
casa de um homem de má vida. (Veja na Introdução, o item Publicanos.)
Entretanto, Zaqueu, apresentando-se diante do Senhor, lhe disse:
Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres, e se tiver causado algum
dano a qualquer um deles, seja no que for, eu o recompensarei quatro vezes
mais. — Sobre o que Jesus lhe disse: Esta casa recebeu hoje a salvação,
porque esse homem também é um filho de Abraão; pois o Filho do Homem
veio para procurar e salvar o que estava perdido. (São Lucas, 19: 1 a 10)
Não, pai Abraão; se algum dos mortos for se encontrar com eles, então farão
penitência. — Abraão lhe respondeu: Se eles não escutem nem Moisés nem os
profetas, tampouco eles acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite.
(São Lucas, 16: 19 a 31)
cobertos de bens; mas daqueles que nada tem, será tirado dele até mesmo
aquilo que ele parece ter; e que esse servo inútil seja lançado nas trevas
exteriores, lá onde haverá prantos e ranger de dentes. (São Mateus, 25: 14 a
30)
A verdadeira propriedade
9. O homem não possui de fato senão aquilo que ele pode levar deste mundo. Do
que encontra na chegado e deixa na saída, ele desfruta durante a sua estadia; mas
desde quando ele é forçado a abandonar tudo isso, então ele só tem o usufruto das
231 – O Evangelho segundo o Espiritismo
coisas, e não a sua posse real. O que ele possui, então? Nada do que é de uso do
corpo; tudo o que é de uso da alma — a inteligência, os conhecimentos, as
qualidades morais — é o que ele traz e leva consigo, aquilo que ninguém pode tirar
dele e que lhe servirá muito mais no outro mundo do que neste. Dele depende ser
mais rico na sua partida do que na chegada, porque a sua posição futura depende
daquilo que ele tiver adquirido no bem. Quando um homem vai a um país distante,
ele arruma a sua bagagem com objetos que tem uso nesse país e não se preocupa
com coisas que lhe seriam inúteis. Dessa forma, façam o mesmo com relação à vida
futura, e providenciem de tudo aquilo que possa lhes servir.
Ao viajante que chega a um albergue, um bom alojamento é oferecido desde
que ele possa pagá-lo; àquele que tenha poucos recursos, oferece-se um cômodo
menos agradável; quanto a quem não tem nada, este vai dormir sobre a palha.
Assim acontece com o homem na sua chegada no mundo dos Espíritos: seu lugar ali
está subordinado às suas posses; só que não é com ouro que ele o paga. Ninguém
lhe perguntará: Quanto você tinha na Terra? Que posição ocupava lá? Era um
príncipe ou operário? Mas lhe perguntarão: O que você traz consigo? Não será
contado o valor dos seus bens nem os seus títulos, e sim a soma das suas virtudes;
ora, nessa conta, o operário pode ser mais rico do que o príncipe. Em vão ele
alegará que antes da sua partida ele pagou a sua entrada com ouro, pois vão lhe
responder: Os lugares aqui não são comprados: eles são conquistados pelo bem
que foi feito. Com a moeda terrestre você pôde comprar campos, casas, palácios;
aqui, tudo se paga com as qualidades do coração. Você é rico dessas qualidades?
Então seja bem-vindo e vá para primeiro lugar, onde todas as felicidades te
esperam. Você é pobre? Então vá para o último lugar, onde será tratado de acordo
com os teus haveres.
PASCAL (Genebra, 1860)
10. Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui conforme a vontade dele, e
o homem é apenas o usufrutuário desses bens, o seu administrador mais ou menos
íntegro e inteligente. Esses bens pertencem tão pouco individualmente ao homem,
que Deus muitas vezes frustra todas as previsões e a riqueza escapar daquele que
acredita possui-la com os melhores títulos.
Vocês Dirão, talvez, que isso é compreensível com relação à fortuna
hereditária, mas que não é o mesmo caso daquela que é adquirida pelo trabalho.
Sem nenhuma dúvida, se for uma fortuna legítima, será este o caso, quando ela for
adquirida honestamente, pois uma propriedade só é legitimamente adquirida
232 – Allan Kardec
quando, para adquiri-la, ninguém fez mal a ninguém. Será pedido conta de cada
centavo mal adquirido, com prejuízo para alguém. Mas, pelo fato de um homem ter
conquistado sua fortuna por si mesmo, será que ele vai levar alguma vantagem
disso ao morrer? As precauções que ele toma para transmiti-la a seus descendentes
frequentemente não são inúteis? Pois então, se Deus não quiser que ela chegue até
eles, nada conseguirá prevalecer contra a vontade divina. Será que o homem pode
usar e abusar impunemente de seus bens durante a vida, sem ter que prestar
contas? Não; ao permitir que o homem adquira riqueza, Deus pode ter pretendido
recompensá-lo durante sua vida, pelos seus esforços, coragem e perseverança; mas
se o homem só a utiliza para a satisfação dos seus sentidos ou do seu orgulho, e se
essa riqueza se torna uma causa de queda em suas mãos, seria melhor para ele se
não a possuísse; ele perde de um lado aquilo que ganhou do outro, anulando o
mérito de seu trabalho, e quando deixar a Terra, Deus lhe dirá que já recebeu a sua
recompensa.
M., ESPÍRITO PROTETOR (Bruxelas, 1861)
Emprego da riqueza
11. Vocês não podem servir a Deus e a Mamon — guardem bem isso, vocês a quem
o amor do ouro domina, vocês que venderiam a alma para possuir tesouros, porque
eles podem elevá-lo acima dos outros homens e lhes proporcionam os prazeres das
paixões. Não, vocês não podem servir a Deus e a Mamon! Portanto, se sentirem a
alma dominada pelas cobiças da carne, apressem-se em sacudir o peso que os
sobrecarrega, pois Deus — justo e severo — dirá a cada um: O que você fez,
administrador infiel, dos bens que te confiei? Esse poderoso motor de boas obras,
você só o fez servir à tua satisfação pessoal!
Qual é então o melhor emprego da riqueza? Procurem nestas palavras
“Amem-se uns aos outros” a solução desse problema. Aí está o segredo da boa
utilização das riquezas. Aquele que está animado com o amor ao próximo tem a sua
linha de conduta toda traçada; a aplicação que agrada a Deus é a caridade — não
aquela caridade fria e egoísta, que consiste em espalhar ao redor de si o supérfluo
de uma existência dourada, mas sim aquela caridade plena de amor, que procura o
infeliz e o ergue sem humilhá-lo. Rico, dê do teu supérfluo; faça mais: dê um pouco
do teu necessário, porque o teu necessário ainda é supérfluo; mas doe com
sabedoria. Não repulse a queixa com medo de ser enganado, mas vá à fonte do mal;
233 – O Evangelho segundo o Espiritismo
13. O homem sendo o depositário, o gerente dos bens que Deus lhes colocou nas
mãos, a ele será pedido uma severa prestação de contas do suo que tenha feito
desses bens, em virtude do seu livre-arbítrio. O mau emprego consiste em servir-se
234 – Allan Kardec
deles somente para a satisfação pessoal; ao contrário, o uso é bom todas as vezes
que deles resulta um bem qualquer para outrem; o mérito é proporcional ao
sacrifício que a pessoa se impõe. A beneficência é só uma das formas de utilização
da riqueza; ela ameniza a miséria atual, ela aplaca a fome, preserva do frio e dá
abrigo a quem não o tem; porém, há um dever igualmente tão obrigatório e tão
meritório, que consiste em prevenir a miséria; esta é principalmente a missão das
grandes fortunas, através de trabalhos de todos os gêneros que elas podem
executar. E mesmo que elas pudessem tirar daí um proveito legítimo, o bem não
deixaria de existir, pois o trabalho desenvolve a inteligência e enaltece a dignidade
do homem — que sempre se orgulha de poder dizer que ele ganhou o pão que
come, ao passo que a esmola humilha e degrada. A riqueza concentrada em uma só
mão deve ser como uma fonte de água viva que espalha a fecundidade e o bem-
estar à sua volta. Ó vocês, ricos, que a empregam segundo os desígnios do Senhor, o
coração de vocês será o primeiro a se saciar nessa fonte benfazeja; vocês terão já
nessa vida as inefáveis alegrias da alma, em vez dos gozos materiais do egoísta que
deixam um vazio no coração. Seus nomes serão benditos na Terra, e quando a
deixarem, o soberano mestre lhes endereçará a palavra, como na parábola dos
talentos: “Ó servo bom e fiel, desfrute da alegria do teu Senhor”. Nessa parábola, o
servo que enfiou na terra o dinheiro que lhe fora confiado não é a imagem dos
avarentos, nas mãos dos quais a fortuna fica improdutiva? Entretanto, se Jesus fala
especialmente de esmolas, é que naquele tempo e na região em que ele vivia não se
conheciam os trabalhos que as artes e a indústria criaram depois e nas quais a
riqueza pode ser aplicada utilmente para o bem geral. A todos os que podem doar
— pouco ou muito — eu então direi: Deem a esmola quando isso for necessário,
mas, tanto quanto possível, convertam-na em salário, a fim de que aquele que a
receba não se envergonhe dela.
Fénelon (Argel, 1860)
adiantamento moral e espiritual; por esse apego à posse vocês destroem suas
faculdades amáveis ao aplicar todas elas para as coisas materiais. Sejam sinceros: a
riqueza proporciona uma felicidade pura? Quando seus cofres estão cheios, não há
sempre um vazio no coração? No fundo dessa cesta de flores não há sempre um
réptil escondido? Eu compreendo que o homem que tenha ganho uma fortuna,
mediante um trabalho assíduo e honrável, experimente uma satisfação — muito
justa, aliás —, mas dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, até um apego
que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração, aí há
uma grande distância, tão longa quanto a da avareza excessiva até a gastança
exagerada — dois vícios entre os quais Deus colocou a caridade, santa e salutar
virtude que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem
baixeza.
Que a sua fortuna tenha vindo da família ou tenha sido adquirida com o seu
trabalho, há uma coisa que vocês jamais esquecer: é que tudo vem de Deus e tudo
volta para Deus. Nada lhes pertence na Terra, nem mesmo o pobre corpo: a morte o
tira de vocês, como tira todos os bens materiais. Vocês são depositários, e não
proprietários — não se enganem. Deus lhes emprestou e vocês têm que lhe
devolver, e ele empresta com a condição de que o supérfluo, pelo menos, seja
revertido em favor daqueles que não têm o necessário.
Um de seus amigos lhes empresta certa quantia; por pouco que vocês sejam
honestos, vocês têm o escrúpulo de restituí-lo e ficam agradecido a ele. Pois bem,
essa é a posição de todo homem rico; Deus é o amigo celestial que lhe emprestou a
riqueza; ele não pede para si mais do que o amor e o reconhecimento, mas exige
que por sua vez o rico dê aos pobres — que são filhos de Deus da mesma forma que
aquele rico.
Os bens que Deus confiou a vocês despertam nos seus corações um ardente e
louca cobiça; já pensaram, quando estão apegados imoderadamente a uma riqueza
perecível e passageira como vocês mesmos? Já pensaram que virá um dia em que
deverão prestar contas ao Senhor daquilo que veio dele? Esquecem que, pela
riqueza, vocês revestiram do caráter sagrado de ministros da caridade na Terra,
para serem dele os administradores inteligentes? Pois então, quando estão usando
somente em proveito particular aquilo que lhes foi confiado, quem são vocês senão
os depositários infiéis? Qual é o resultado desse esquecimento voluntário dos seus
deveres? A morte inflexível, inexorável, vem rasgar o véu sob o qual vocês se
escondem e lhes força a prestar contas ao amigo que lhes favorecera e que nesse
236 – Allan Kardec
que, apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua habilidade, Deus pode
derrubá-lo com uma só palavra.
Esbanjar a riqueza não é desprendimento dos bens terrenos, mas sim descaso
e indiferença; o homem, como depositário desses bens, não tem mais o direito de
dilapidá-los, nem de confiscá-los em seu proveito, pois prodigalidade não é
generosidade, mas sim frequentemente uma forma de egoísmo. quem esbanja o
ouro de mão cheia para satisfazer a uma fantasia não daria um centavo para
prestar um favor. O desapego aos bens terrenos consiste em apreciar a riqueza no
seu justo valor, em saber se servir pelos outros e não para si só, em não sacrificar
os interesses da vida futura por ela, consiste em perdê-la sem murmurar caso
agrade a Deus retirá-la. Se, por reveses imprevistos, vocês se tornarem outro Jó,
digam, como ele: “Meu Deus, o senhor me deu, o senhor me tira; que a tua vontade
seja feita.” Eis aí o verdadeiro desprendimento. Antes de tudo, sejam submissos;
tenham fé naquele que, lhes tendo dado e tirado, pode lhes devolver. Resistam com
coragem ao abatimento e ao desespero, que paralisam as suas forças; não se
esqueçam jamais que, quando Deus lhes ferir, ao lado da maior provação ele
sempre coloca uma consolação. Mas pensem sobretudo que há bens infinitamente
mais preciosos do que os da Terra, e esse pensamento lhes ajudará a se
desprenderem dos bens terrenos. O pouco apreço que se dê a uma coisa faz com
que sua perda seja menos sensível. O homem que se apega aos bens terrenos é
como a criança, que só vê o momento presente; aquele que não se prende a esses
bens é como o adulto que vê as coisas mais importantes, pois ele compreende estas
palavras proféticas do Salvador: O meu reino não é deste mundo.
O Senhor não ordena que nos livremos daquilo que possuímos para nos
reduzirmos a uma mendicidade voluntária, pois assim nos tornaríamos uma carga
para a sociedade; agir desse modo seria compreender mal o desprendimento dos
bens terrenos; seria um egoísmo de um outro gênero, porque seria se eximir da
responsabilidade que a fortuna faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a
concede a quem lhe pareça bom para geri-la em benefício de todos. Logo, o rico
tem uma missão, uma missão que ele pode embelezar e tornar proveitosa a si
mesmo; rejeitar a riqueza quando Deus lhes confia entregá-la é renunciar ao
benefício do bem que se pode fazer, administrando-a com sabedoria. Saber passar
sem ela quando não a tem, saber empregá-la utilmente quando a possui e saber
sacrificá-la quando necessário é agir conforme os desígnios do Senhor. Para aquele
a quem chegue o que no mundo nós chamamos de uma boa fortuna, que diga: Meu
238 – Allan Kardec
Deus, o senhor me enviou uma nova obrigação; dê-me a força para cumpri-la
segundo a tua santa vontade.
Eis aqui, meus amigos, o que eu queria ensinar a vocês sobre desprendimento
dos bens terrenos; eu resumo tudo, dizendo: saibam se contentar com pouco. Se
forem pobres, não invejem os ricos, porque a riqueza não é necessária para a
felicidade; se forem ricos, não esqueçam que esses bens lhes foram confiados e que
vocês devem justificar a sua utilização, como na prestação de contas de uma tutela.
Não sejam como o depositário infiel, servindo-se deles para a satisfação do seu
orgulho e da sua sensualidade. Não se achem no direito de dispor unicamente para
vocês daquilo que não passa de um empréstimo — e não de uma doação. Se não
souberem restituir, vocês não terão mais direito de pedir, e lembrem-se de que
aquele que dá aos pobres salda o débito que contraiu com Deus.
LACORDAIRE (Constantine, 1863)
Transmissão da fortuna36
36 Este subtítulo está ausente na obra original, certamente por um descuido, já que aparece no sumário
e no cabeçalho do capítulo; por isso o inserimos aqui, seguindo a ordem das temáticas listadas. — N. T.
239 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XVII
SEJAM PERFEITOS
Características da perfeição – O homem de bem – Os bons espíritas
– Parábola do Semeador – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: O dever –
A virtude – Os superiores e os inferiores – O homem no mundo
– Cuidem do corpo e do espírito
Características da perfeição
1. Amem seus inimigos; façam o bem aos que lhes odeiam e orem por aqueles
que lhes perseguem e lhes caluniam; pois, se vocês só amarem os que lhes
amam, que recompensa terão com isso? Os publicanos também não fazem o
mesmo? E se vocês não saudarem ninguém além dos seus irmãos, o que é
vocês estarão fazendo com isso mais do que os outros? Os pagãos não fazem a
mesma coisa? Por sua vez, sejam perfeitos, como perfeito é o seu Pai celestial.
(São Mateus, 5: 44, 46 a 48)
O homem de bem
bem pelo bem, sem esperar retorno, esse homem retribui o mal com o bem,
toma a defesa do fraco contra o forte e sempre sacrifica seus interesses em
favor da justiça.
Ele encontra a satisfação nas boas ações que ele espalha, nos favores que
presta, nas alegrias que ele promove, nas lágrimas que enxuga e nas
consolações que ele leva aos aflitos. Seu primeiro impulso é o de pensar nos
outros antes de pensar em si, de procurar o interesse dos outros antes do seu
próprio interesse; enquanto isso, o egoísta calcula os ganhos e as perdas de
toda ação generosa.
O homem de bem é dócil, humano e benevolente para com todo mundo,
sem distinção nem de raças nem de crenças, porque ele vê irmãos em todos
os homens.
Ele respeita nos outros todas as convicções sinceras e não lança anátema
aos que não pensam igual a ele.
Em todas as circunstâncias a caridade é o seu guia; ele diz a si mesmo
que quem prejudica a outrem com palavras malévolas, quem fere a
sensibilidade de qualquer pessoa com o seu orgulho e o seu desprezo, quem
não recua à ideia de causar um sofrimento, um constrangimento ainda que
ligeiro, quando poderia evitar, então este falta com o dever de amor ao
próximo e não merece a clemência do Senhor.
O homem de bem não tem ódio, nem rancor, nem desejo de vingança; a
exemplo de Jesus, ele perdoa e esquece as ofensas, recordando apenas das
benevolências, pois ele sabe que será perdoado conforme ele também tiver
perdoado.
Ele é indulgente para com as fraquezas alheias, porque sabe que ele
também necessita de indulgência, e se recorda daquelas palavras do Cristo:
Aquele que estiver sem pecado, que atire a primeira pedra.
O homem de bem não se compraz em procurar os defeitos alheios nem
os põe em evidência; se a necessidade o obriga a fazer isso, ele procura
sempre o bem que possa atenuar o mal.
Ele estuda suas próprias imperfeições e trabalha sem cessar para
combatê-las. Todos os seus esforços são para poder dizer no dia seguinte que
ele tem em si algo melhor do que tinha na véspera.
242 – Allan Kardec
Ele não procura dar valor nem ao seu espírito nem aos seus talentos às
custa de outro alguém; ao contrário, ele aproveita todas as ocasiões para fazer
ressaltar o que seja vantajoso aos outros.
Ele não se envaidece nem da sua riqueza nem de suas vantagens
pessoais, porque sabe que tudo o que lhe foi dado pode ser tirado dele.
Ele usa, mas não abusa dos bens que lhe são concedidos, por saber que
isso é um depósito do qual ele deverá prestar contas, e que o emprego mais
prejudicial para si mesmo que ele possa fazer desse depósito é o de colocá-lo
para servir à satisfação de suas paixões.
Se a ordem social colocou homens sob a sua dependência, ele os trata
com bondade e benevolência, porque estes são iguais a ele perante Deus; ele
usa da sua autoridade para levantar o moral deles, e não para os esmagar com
o seu orgulho; ele evita tudo o que poderia tornar mais penosa a posição
subalterna deles.
O subordinado, de sua parte, compreende os deveres da sua posição e
tem o escrúpulo de cumpri-los conscienciosamente. (Cap. XVII, item 9.)
Finalmente, o homem de bem respeita nos seus semelhantes todos os
direitos que as leis da natureza conferem, assim como ele gostaria que
respeitassem os seus direitos.
Essa não é a enumeração todas as qualidades que caracterizam o homem
de bem, mas aquele que se esforça para possuir essas aqui já está no caminho
que conduz a todas as outras.
Os bons espíritas
4. O espiritismo bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, conduz
forçosamente aos resultados aqui mencionados, que caracterizam tanto o
verdadeiro espírita quanto o verdadeiro cristão — sendo que um é o mesmo
que o outro. O espiritismo não criou nenhuma moral nova; ele facilita aos
homens a inteligência e a prática da moral do Cristo ao dar uma fé sólida e
esclarecida às pessoas que duvidam ou vacilam.
Porém, muitos daqueles que acreditam nos fatos das manifestações não
compreendem nem as suas consequências nem o seu alcance moral, ou se os
243 – O Evangelho segundo o Espiritismo
outra existência.
Aquele que pode — com razão — ser qualificado de espírita. verdadeiro
e sincero, encontra-se num grau superior de adiantamento moral; o Espírito
que domina mais completamente a matéria lhe dá uma percepção mais clara
do porvir; os princípios da doutrina fazem vibrar nele as fibras que
permanecem inertes nos outros; numa palavra: ele é tocado no coração; com
isso, sua fé é inabalável. Um é como o músico, que se emociona com certos
acordes, enquanto um outro não escuta mais do que sons. Reconhecemos o
verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que ele
faz para domar suas más inclinações; enquanto um se contenta com o seu
horizonte limitado, o outro, que compreende alguma coisa de melhor, se
esforça para desligar-se dele, e este sempre consegue, quando tem uma firme
vontade nesse sentido.
Parábola do Semeador
5. Naquele mesmo dia, Jesus, tendo saído da casa, sentou-se à beira-mar;
então se reuniu ao redor dele uma grande multidão, e por isso ele subiu num
barco, onde se sentou, todo o povo permanecendo na margem; e ele disse à
multidão muitas coisas por meio de parábolas, falando dessa forma:
Aquele que semeia saiu a semear; e enquanto ele semeava, uma parte da
semente caiu ao longo do caminho e os pássaros do céu vieram e a comeram.
Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia bastante terra,
e ela logo brotou, porque a terra onde ela estava não tinha profundidade. Mas,
tendo o Sol se levantado em seguida, ela foi queimada, e como não tinha raiz,
ela secou.
Outra parte caiu nos espinhos, e estes espinhos vindo a crescer a
sufocaram.
Outra, enfim, caiu em terra boa e produziu frutos, algumas sementes
rendendo cem por uma, outras sessenta e outras trinta.
Que ouça, quem tiver ouvidos para ouvir. (São Mateus, 13: 1 a 9)
espírito maligno vem e arranca o que tinha sido semeado no seu coração;
esse é aquele que recebeu a semente ao longo do caminho.
Quem recebe a semente no meio das pedras é aquele que escuta a
palavra e que, na hora, a recebe até com alegria; mas ele não tem raiz em si
mesmo, e dura apenas algum tempo; e quando surgem as dificuldades e as
perseguições por causa da palavra, ele logo a toma como motivo de escândalo
e de queda.
Aquele que recebe a semente entre espinhos é o que ouve a palavra,
mas em seguida as preocupações deste século e a ilusão das riquezas sufocam
nele aquela palavra e a tornam infrutífera.
Mas aquele que recebe a semente em boa terra é quem escuta a palavra,
quem presta atenção nela e quem produz frutos, e rende cem, ou sessenta, ou
trinta por um. (São Mateus, 13: 18 a 23)
O dever
7. O dever é a obrigação moral, primeiramente para consigo mesmo e em
246 – Allan Kardec
seguida para com os outros. O dever é a lei da vida; ele se encontra tanto nos
mais ínfimos detalhes quanto nos atos elevados. Quero falar aqui apenas do
dever moral, e não daquele que as profissões impõem.
Na ordem dos sentimentos, o dever é muito difícil de ser cumprido,
porque ele está em antagonismo com as seduções do interesse e do coração;
suas vitórias não têm testemunhas e suas derrotas não estão sujeitas à
repressão. O dever íntimo do homem fica entregue ao seu livre-arbítrio; o
aguilhão da consciência — esse guardião da probidade interior — o adverte e
o sustenta, mas muitas vezes ele fica impotente diante dos sofismas da paixão.
Fielmente observado, o dever do coração eleva o homem; mas como
determinar exatamente esse dever? Onde ele começa? Onde termina? O dever
começa precisamente no ponto em que vocês ameaçam a felicidade ou o
repouso do seu semelhante; ele termina no limite que não desejariam ver
ultrapassado por vocês mesmos.
Deus criou todos os homens iguais para a dor; pequenos ou grandes,
ignorantes ou instruídos, todos sofrem pelas mesmas causas, a fim de que
cada um julgue em conscientemente o mal que pode fazer. O mesmo critério
não existe para o bem — infinitamente mais variado em suas expressões. A
igualdade diante da dor é uma sublime previdência de Deus, que quer que
todos os seus filhos, instruídos pela experiência comum, não cometam o
mal alegando ignorância de seus efeitos.
O dever é o resumo prático de todas as especulações morais; é uma
bravura da alma que encara as angústias da luta; ele é austero e brando;
pronto a se curvar diante das complicações diversas, ele se mantém inflexível
diante das suas tentações. O homem que cumpre o seu dever ama a Deus
mais do que às criaturas e ama as criaturas mais do que a si mesmo; ele é
ao mesmo tempo juiz e escravo na sua própria causa.
O dever é o mais belo florão da razão; ele descende dela como o filho
descende de sua mãe. O homem deve amar o dever, não porque ele nos
preserve dos males a vida, dos quais a humanidade não pode se subtrair, mas
porque ele fornece à alma o vigor necessário para o seu desenvolvimento.
O dever se engrandece e irradia sob uma forma mais elevada em cada
uma das etapas superiores da humanidade; a obrigação moral da criatura
247 – O Evangelho segundo o Espiritismo
para com Deus jamais cessa; ela deve refletir as virtudes do Eterno, que não
aceita um esboço imperfeito, porque ele quer que a beleza de sua obra
resplandeça a seus próprios olhos.
LÁZARO (Paris, 1863)
A virtude
8. A virtude, no seu mais alto grau, contém o conjunto de todas as qualidades
essenciais que constituem o homem de bem. Ser bom, caridoso, laborioso,
sóbrio e modesto são qualidades de um homem virtuoso. Infelizmente, elas
muitas vezes são acompanhadas de pequenos defeitos morais que as
prejudicam e enfraquecem. Aquele que faz ostentação de sua virtude não é
virtuoso, já que lhe falta a qualidade principal: a modéstia, e que tem o vício
mais contrário: o orgulho. A virtude verdadeiramente digna desse nome não
gosta de se exibir; todos a percebe, mas ela se oculta na obscuridade e foge da
admiração das multidões. São Vicente de Paulo era virtuoso; o digno Cura de
Ars era virtuoso, e muitos outros pouco conhecidos do mundo, mas
conhecidos de Deus. Todos esses homens de bem ignoravam que eles mesmos
fossem virtuosos; deixavam-se levar pela corrente de suas santas inspirações
e praticavam o bem com um completo desinteresse e um inteiro
esquecimento de si.
É à essa virtude compreendida e praticada dessa forma que eu os
convido, meus filhos; é a essa virtude verdadeiramente cristã e
verdadeiramente espírita que eu os encorajo a se consagrarem; mas, afastem
de seus corações o pensamento do orgulho, da vaidade e do amor-próprio,
que sempre deformam as mais belas qualidades. Não imitem aquele homem
que se exibe como um modelo e se vangloria de suas próprias qualidades a
todos os ouvidos complacentes. Essa virtude de ostentação esconde muitas
vezes um monte de pequenas torpezas e de odiosas covardias.
Em princípio, o homem que exalta a si mesmo e que ergue uma estátua à
sua própria virtude anula, por esse simples fato, todo o mérito efetivo que ele
possa ter. Mas o que direi daquele cujo único valor consiste em parecer o que
ele não é? Admito perfeitamente que o homem que faz o bem sente com isso
248 – Allan Kardec
uma satisfação íntima no fundo do seu coração, mas desde que essa satisfação
seja exteriorizada para colher elogios, ela degenera em amor-próprio.
Ó, vocês todos a quem a fé espírita reaqueceu com seus raios, e que
sabem o quanto o homem está longe da perfeição: não cedam jamais a tal
erro. A virtude é uma graça que eu desejo a todos os espíritas sinceros, mas eu
lhes direi ainda: Mais vale menos virtudes com a modéstia do que muitas
delas com o orgulho. É pelo orgulho que as humanidades sucessivas estão se
perdendo; é pela humildade que um dia elas deverão se redimir.
FRANÇOIS-NICOLAS-MADELEINE (Paris, 1863)
Os superiores e os inferiores
9. A autoridade — assim como a riqueza — é uma delegação da qual será
pedido contas àquele que dela foi investido; não pensem que ela tenha sido
concedida para proporcionar o vão prazer de comandar, nem tampouco como
um direito, uma propriedade — assim como muito erroneamente acreditam a
maioria dos poderosos da Terra. Deus, entretanto, dá bastante provas de ela
que não é nem uma nem outra coisa, pois ele retira a autoridade de vocês
quando isso bem lhe apraz. Se fosse um privilégio inerente às próprias
pessoas, ela seria inalienável. Então, ninguém pode dizer que uma coisa lhe
pertence quando ela pode ser tirada sem o seu consentimento. Deus delega a
autoridade a título de missão, ou de provação, quando isso lhe convém — e a
retira da mesma forma.
Quem quer que seja depositário de autoridade, seja qual for o alcance
que ela tenha — desde um senhor sobre o seu servo, até um soberano sobre o
seu povo — nenhum deles deve se esquecer de que é responsável por almas e
que ele responderá pela boa ou má direção que tiver dado aos seus
subordinados; as faltas que estes puderem cometer, os vícios aos quais eles
forem arrastados em consequência dessa direção ou dos maus exemplos,
recairão sobre ele, tanto quanto ele recolherá os frutos pelos seus cuidados
para os reconduzir ao bem. Todo homem tem na Terra uma missão, grande ou
pequena; qualquer que seja essa missão, ela sempre é dada para o bem;
portanto, distorcer seu conceito é falir na sua missão.
249 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Se Deus pergunta ao rico: “O que você fez da fortuna que em tuas mãos
deveria ser uma fonte espalhando a fecundidade a toda a tua volta?”, então ele
perguntará àquele que tem uma autoridade qualquer: “Que uso você fez dessa
autoridade? Que males você evitou? Que progresso conseguiu fazer? Se eu te
dei subordinados, não foi para fazer deles escravos da tua vontade, nem
instrumentos dóceis dos teus caprichos ou da tua cupidez; eu te fiz forte e te
confiei os fracos para você os sustentar e os ajudar a subir até mim.”
O superior que estiver compenetrado das palavras do Cristo não
despreza nenhum daqueles que esteja abaixo dele, porque sabe que as
distinções sociais não prevalecem diante de Deus. O espiritismo lhe ensina
que se hoje eles lhe obedecem, talvez eles já puderam lhe comandar ou
poderão lhe dar ordens mais tarde, e que então este superior será tratado
conforme ele mesmo tenha tratado seus subordinados.
Se o superior tem deveres a cumprir, por sua vez o inferior também tem
os seus — que não são menos sagrados. Se este inferior for espírita, sua
consciência lhe dirá melhor ainda que ele não está dispensado dos seus
deveres, nem mesmo que o seu chefe não cumpra os dele, por saber que não
devemos retribuir o mal com o mal, e que as faltas de uns não justificam as
faltas de outros. Se ele sofre com a sua posição, ele diz a si mesmo que sem
dúvida mereceu, porque talvez ele próprio tenha abusado outrora da sua
autoridade, e que ele deve sentir agora as inconveniências daquilo que ele fez
os outros sofrerem. Se ele está sendo forçado a suportar essa posição, na falta
de encontrar outra melhor, o espiritismo lhe ensina a se resignar, como a uma
prova para a sua humildade, necessária para o seu adiantamento. Sua crença
o guia na sua conduta; ele age como gostaria que seus subordinados agissem
para com ele, caso fosse o chefe. Por isso mesmo ele é mais escrupuloso no
cumprimento de suas obrigações, pois ele compreende que toda negligência
no trabalho que lhe é confiado causa prejuízo para aquele que o remunera e a
quem ele deve o seu tempo e os seus esforços; em síntese, ele é solicitado pelo
sentimento do dever, que a sua fé lhe dá, e pela certeza de que todo desvio do
caminho reto significa uma dívida que terá de pagar, cedo ou tarde.
FRANÇOIS-NICOLAS-MADELEINE, cardeal MORLOT (Paris, 1863)
250 – Allan Kardec
O homem no mundo
semelhantes e nas lutas mais penosas é que ele encontra ocasião de praticá-la.
Por isso, aquele que se isola se priva voluntariamente do meio mais poderoso
de se aperfeiçoar; não tendo de pensar senão em si, sua vida é a de um
egoísta. (Cap. V, item 26.)
Não imaginem, pois, que para viverem em comunicação constante
conosco, para viverem sob o olhar do Senhor, seja necessário vestir o cilício e
se cobrir de cinzas; não, não ainda uma vez! Sejam felizes segundo as
carências da humanidade, mas que nessa felicidade de vocês nunca entre nem
um pensamento nem um ato que possa ofender o Senhor ou envergonhar
aqueles que os amam e que os dirigem. Deus é amor e abençoa aqueles que
amam santamente.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1863)
11. Será que a perfeição moral consiste na maceração do corpo? Para resolver
essa questão, eu me apoio em princípios elementares e começo por mostrar a
necessidade de se cuidar do corpo que, segundo as alternativas de saúde e de
doença, influi de uma maneira muito importante sobre a alma, que deve ser
considerada como uma cativa na carne. Para que essa prisioneira possa viver,
se divertir e até mesmo conceba as ilusões da liberdade, o corpo deve estar
saudável, disposto e forte. Façamos uma comparação: Eis então que ambos
estão em perfeito estado; o que eles devem fazer para manter o equilíbrio
entre as suas aptidões e as suas necessidades tão diferentes?
Aqui, dois sistemas se defrontam: o dos ascetas, que querem destruir o
corpo, e o dos materialistas, que querem rebaixar a alma: duas violências que
quase sempre são tão insensatas uma quanto a outra. Ao lado desses dois
grandes partidos fervilha a numerosa tribo dos indiferentes que, sem
convicção e sem paixão, amam com tédio e se divertem com economia. Onde
então está a sabedoria? Onde então está a ciência de viver? Em parte alguma;
e esse grande problema ficaria inteiramente sem solução se o espiritismo não
viesse em auxílio dos pesquisadores, demonstrando-lhes as relações que
existem entre o corpo e a alma, e lhes dizendo que, já que eles são necessários
252 – Allan Kardec
um ao outro, é preciso cuidar dos dois. Sendo assim, amem a alma, mas
também cuidem do corpo — o instrumento da alma. Ignorar as necessidades
indicadas pela própria natureza é desconhecer a lei de Deus. Não castiguem o
corpo pelas faltas que o livre-arbítrio de vocês o induziu a cometer e pelas
quais ele é tão responsável quanto o cavalo mal dirigido é responsável pelos
acidentes que causa. Por acaso vocês seriam mais perfeitos se, martirizando
todo o corpo, não se tornarem menos egoístas, nem menos orgulhosos e nem
mais caridosos para com o próximo? Não, pois a perfeição não é nisso; a
perfeição está inteiramente nas reformas a que vocês submeterem o próprio
Espírito; dobrem-no, submetam-no, humilhem-no, castiguem-no: esse é o
meio de torná-lo dócil à vontade de Deus e o único que conduz à perfeição.
GEORGES, ESPÍRITO PROTETOR (Paris, 1863)
253 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XVIII
percebendo um homem que não estava vestido com a túnica nupcial, disse-
lhe: Meu amigo, como conseguiu entrar aqui sem a túnica nupcial? E o homem
ficou calado. Então, o rei disse à sua gente: Amarrem-lhes as mãos e os pés e
lancem-no nas trevas exteriores: aí é que haverá prantos e ranger de dentes;
porque muitos são chamados e poucos são escolhidos. (São Mateus, 22: 1 a 14)
Antes da vinda do Cristo, com exceção dos hebreus, todos os povos eram
idólatras e politeístas. Se alguns homens superiores ao padrão concebiam a
ideia de unidade divina, essa ideia permaneceu na condição de teoria pessoal,
mas em nenhuma parte ela foi aceita como uma verdade fundamental, a não
ser por alguns iniciados que ocultavam seus conhecimentos sob um véu
misterioso, impenetrável para as multidões. Os hebreus foram os primeiros
que praticaram publicamente o monoteísmo; é a eles que Deus transmite a
sua lei, inicialmente através de Moisés e depois com Jesus; foi daquele
pequeno foco que partiu a luz que devia se espalhar pelo mundo inteiro, devia
triunfar sobre o paganismo e dar a Abraão uma posteridade espiritual “tão
numerosa quanto as estrelas do firmamento.” Mas os judeus, rejeitando
totalmente a idolatria, tinham negligenciado a lei moral para se dedicarem à
prática mais fácil das formalidades exteriores. O mal estava no auge: a nação
escravizada ficou dilacerada pelas facções, dividida pelas seitas; a própria
incredulidade havia penetrado até no santuário. Foi então que apareceu Jesus,
enviado para chamá-los aos cumprimento da lei e para lhes abrir os novos
horizontes da vida futura. Sendo os primeiros convidados para o grande
banquete da fé universal, eles rechaçaram a palavra do Messias celestial e o
mataram; foi assim que eles perderam o fruto teriam colhido de sua iniciativa.
Seria injusto, porém, acusarmos o povo inteiro por tal estado de coisas; a
responsabilidade disso recai principalmente sobre os fariseus e os saduceus,
que levaram a nação à perdição — pelo orgulho e fanatismo de uns e pela
incredulidade dos outros. São eles, sobretudo, quem Jesus associa aos
convidados que se recusam a comparecer ao banquete de núpcias. Depois,
acrescenta: “Vendo isso, o Senhor mandou convidar todos aqueles que
encontrassem nos quatro cantos, bons e maus.” Ele queria dizer com isso que
a palavra ia ser pregada a todos os outros povos, pagãos e idólatras, e se estes
a aceitassem, então seriam recebidos no festim, no lugar dos primeiros
convidados.
Contudo, não basta ser convidado, não basta ter o nome de cristão, nem
se sentar à mesa para fazer parte do banquete celestial: é preciso antes de
tudo — e sob condição expressa — estar revestido da túnica nupcial, isto é,
ter pureza de coração e praticar a lei segundo o espírito; ora, essa lei está
256 – Allan Kardec
A porta estreita
4. Tendo alguém feito a ele esta pergunta: Senhor, serão poucos os salvos? —
ele respondeu: Esforcem-se para entrar pela porta estreita, pois eu lhes
asseguro que muitos procurarão passar por ela e não conseguirão. E quando
o pai de família tiver entrado e fechar a porta, e quando vocês, estando de
fora, começarem a bater, dizendo: Senhor, abra a porta para nós; ele lhes
responderá: Eu não sei de onde vocês são. Então vocês começarão a dizer:
Nós temos comido e bebido na tua presença, e você tem ensinado nas nossas
praças públicas. Ele lhes responderá: Não sei de onde vocês são; afastem-se
de mim, todos vocês que cometeram a iniquidade.
Acontecerá então que haverá prantos e ranger de dentes, quando vocês
virem que Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas estarão no reino de Deus e
que vocês serão expulsos. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e
do Sul, e farão parte do festim no reino de Deus. Então aqueles que são os
últimos serão os primeiros e os que são os primeiros serão os últimos. (São
Lucas, 13: 23 a 30)
Nem todos que dizem “Senhor! Senhor!” entrarão no reino dos céus37
6. Nem todos que me dizem: “Senhor! Senhor!” entrarão no reino dos céus;
mas somente entrará aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.
Muitos me dirão nesse dia: “Senhor! Senhor! Nós não profetizamos em teu
nome? Não expulsamos o demônio em teu nome? Não fizemos muitos
milagres em teu nome?” E então eu lhes direi em voz alta: Afastem-se de mim,
vocês que fazem obras de iniquidade. (São Mateus, 7: 21 a 23.)
7. Aquele, pois, que ouve estas palavras que eu digo e as pratica será
comparado a um homem sábio que construiu sua casa sobre a pedra; e
37 Na obra original, no lugar deste subtítulo consta apenas o equivalente à expressão “Aqueles que
dizem: Senhor! Senhor!” (Ceux qui disent : Seigneur ! Seigneur !), diferentemente do que aparece no
sumário e no cabeçalho do capítulo (Ceux qui disent : Seigneur ! Seigneur ! n’entreront pas tous dans le
royaume des cieux) que corresponde ao texto utilizado nesta tradução para este subtítulo. — N. T.
258 – Allan Kardec
10. O servo que souber a vontade do seu senhor e que mesmo assim não
estiver pronto e não tiver feito o que o seu senhor queira dele, este servo será
rudemente castigado; mas aquele que não souber da sua vontade e que fizer
coisas dignas de castigo, este será menos punido. Muito se pedirá àquele a
quem muito foi dado, e se cobrará mais daquele a quem foi confiado mais
coisas. (São Lucas, 12: 47 e 48)
11. Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que aqueles
que não veem possam ver e aqueles que veem se tornem cegos. — Alguns
fariseus que estavam com ele ouviram essas palavras e lhe perguntaram: Por
acaso, nós também somos cegos? — Jesus lhes respondeu: Se vocês fossem
cegos, não teriam pecados; mas, agora, vocês dizem que vocês veem, e é por
isso que o seu pecado permanece em vocês. (São João, 9: 39 a 41)
13. Seus discípulos, aproximando-se, lhe disseram: Por que o senhor fala com
eles por parábolas? — E, respondendo-lhes, ele disse: É porque, para vocês,
foi-lhes dado a conhecer os mistérios do reino dos céus; mas para os outros,
isso não foi dado a eles. Porque, àquele que já tem, será dado ainda mais e ele
ficará na abundância; mas àquele que não tem, será tirado até mesmo o que
ele tem. Eis por que eu falo a eles por parábolas; porque, vendo, eles nada
enxergam, e ouvindo, eles nada escutam e nem compreendem. E a profecia de
Isaías se cumpre neles, quando diz: Vocês ouvirão com os ouvidos e nada
entenderão; vocês verão com os olhos e nada enxergarão. (São Mateus, 13: 10
a 14)
14. Prestem bem a atenção no que ouvem: pois, usarão com vocês a mesma
medida com a qual vocês tiverem usado com os outros; e mais ainda lhes será
acrescentado; pois, será dado mais àquele que já tem, e àquele que não tem,
será tirado até o que ele tem. (São Marcos, 4: 24 e 25)
15. “Será dado mais ao que já tem e será tirado daquele que não tem.”
Meditem sobre esses grandes ensinamentos, que muitas vezes vão parecer
paradoxais para vocês. Aquele que recebeu é aquele que entende o sentido da
palavra divina; ele só a recebeu porque tentou se tornar digno dela e porque o
Senhor, no seu amor misericordioso, encoraja os esforços que tendem para o
bem. Esses esforços — elevados e perseverantes — atraem as graças do
Senhor; é um ímã que chama para si o que é progressivamente melhor, as
bênçãos abundantes que os tornam fortes para subir a montanha santa, no
cume da qual está o repouso após o trabalho.
“Será tirado daquele que não tem ou tem pouco.” Tomem isso como uma
oposição figurada. Deus não retira das suas criaturas o bem que ele tenha
dignado de fazer a elas. Homens cegos e surdos, abram sua inteligência e seus
corações! Vejam pelo espírito; ouçam pela alma e não interpretem de uma
maneira tão grosseiramente injusta as palavras daquele que fez resplandecer
aos olhos de vocês a justiça do Senhor. Não é Deus quem retira daquele que
262 – Allan Kardec
pouco recebeu, mas sim é o próprio Espírito que, por ser esbanjador e
descuidado, não sabe conservar o que tem e aumentar, fecundando-o, o óbolo
que caiu no seu coração.
Quem não cultiva o campo conquistado com o trabalho do pai e o qual
ele herdou, este vê esse campo se cobrir de ervas e parasitas. Será que é o pai
quem tira do filho as colheitas que este não quis preparar? Se ele deixou
murchar as sementes destinadas a produzir nesse campo, por falta de
cuidado, será que ele deve acusar seu pai por elas não produzirem nada? Não,
não! Ao invés de acusar aquele que havia preparado tudo para ele, ou de
criticar seus dons, que ele acuse o verdadeiro autor de suas misérias, e que
então, arrependido e proativo, ele se ponha à obra com coragem; que cultive o
solo ingrato com o esforço de sua vontade; que ele lavre fundo, com a ajuda
do arrependimento e da esperança; que lance aí, com confiança, a semente
que tiver selecionado como boa dentre as más; que ele a regue com o seu
amor e a sua caridade; então, Deus — o Deus de amor e de caridade — dará
àquele que já recebeu. E aí ele verá seus esforços serem coroados com o
sucesso, e verá um grão produzir cem e outro produzir mil. Coragem,
lavradores! Peguem seus arados e suas charruas; lavrem seus corações;
arranquem deles o joio; semeiem o bom grão que o Senhor confia a vocês, e o
orvalho do amor lhe fará produzir frutos de caridade.
UM ESPÍRITO AMIGO (Bordeaux, 1862)
16. “Nem todos que me dizem: ‘Senhor! Senhor!’ entrarão no reino dos céus,
mas somente aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.”
Escutem essa palavra do mestre, todos vocês que rejeitam a doutrina
espírita como se fosse uma obra do demônio. Abram seus ouvidos, pois o
momento de ouvir já chegou.
Será que basta vestir uma batina para ser um fiel servidor? Basta dizer
“Eu sou cristão” para seguir o Cristo? Procurem os verdadeiros cristãos e
vocês os reconhecerão pelas suas obras. “Uma árvore boa não pode dar maus
frutos, nem uma árvore má pode dar frutos bons.” — “Toda árvore que não dá
263 – O Evangelho segundo o Espiritismo
passarão: “Nem todos que me dizem: ‘Senhor! Senhor!’ entrarão no reino dos
céus, mas somente aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está nos
céus.”
Que o Senhor de bênçãos os abençoe; que o Deus de luz os ilumine; que a
árvore da vida derrame sobre vocês seus frutos com abundância! Creiam e
orem.
SIMEÃO (Bordeaux, 1863)
265 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XIX
A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS
Poder da fé – A fé religiosa. Condição da fé inabalável
– Parábola da figueira seca – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A fé,
mãe da esperança e da caridade – A fé divina e a fé humana
Poder da fé
2. No sentido próprio, é certo que a confiança nas próprias forças torna uma
pessoa capaz de executar coisas materiais que nós não conseguimos fazer
quando duvidamos de nós mesmos; mas aqui, é unicamente no sentido moral
que devemos entender essas palavras. As montanhas que a fé transporta são
as dificuldades, as resistências, a má vontade, enfim, aquilo que encontramos
entre os homens, até quando se trata das melhores coisas. Os preconceitos de
266 – Allan Kardec
por prodígios, mas que não são mais do que as consequências de uma lei
natural. Tal é o motivo pelo qual Jesus disse a seus apóstolos: se vocês não o
curam, foi porque vocês não têm fé.
7. Costuma-se dizer que a fé não pode ser encomendada, pelo que muita
gente alega que não é culpa sua se ela não tem fé. Sem dúvidas, a fé não pode
ser encomendada, e o que é ainda mais certo: a fé não pode ser imposta. Não,
ela não pode ser encomendada, mas ela pode ser adquirida, e não há ninguém
impedido de possuí-la — até mesmo entre os mais intransigentes. Estamos
falando das verdades espirituais fundamentais, e não dessa ou daquela crença
particular. Não cabe à fé ir até eles, mas é eles quem deve ir em direção à fé, e
se eles a procurarem com sinceridade, então a encontrarão. Portanto, tenham
como certo que aqueles que dizem “Não pediríamos nada melhor do que crer,
mas não podemos”, estes falam com os lábios, e não com o coração, porque
enquanto dizem isso eles tapam os ouvidos. Contudo, sobram provas em volta
deles; por que então se recusam a vê-las? Para uns, é descaso; para outros, é o
receio de serem forçados a mudar seus hábitos; para a maioria, é o orgulho
que se nega a reconhecer uma força superior, porque seria preciso se curvar
268 – Allan Kardec
8. Quando eles saíam de Betânia, ele teve fome; e vendo ao longe uma
figueira, ele foi até ela para ver se ali poderia achar alguma coisa, e chegando
próximo dela, ele não encontrou senão folhas, pois não era tempo de figos.
Então Jesus disse à figueira: Que ninguém coma de ti fruto algum — conforme
o que seus discípulos ouviram. No dia seguinte, eles viram, ao passarem pela
figueira, que ela tinha secado até a raiz. E Pedro, lembrando-se da fala de
Jesus, disse-lhe: Mestre, veja como ficou seca a figueira que o senhor
amaldiçoou. — Jesus, tomando a palavra, disse a eles: Tenham fé em Deus.
Em verdade eu digo a vocês que qualquer um que disser a esta montanha:
Saia daí e se lance ao mar, e isso sem hesitar no seu coração, mas crendo
firmemente que tudo o que tiver dito acontecerá, então ele verá de fato
acontecer. (São Marcos, 11: 12 a 14; 20 a 23)
10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; eles suprem os órgãos físicos
que faltam nos desencarnados para nos transmitir as instruções destes, e é
por isso que os médiuns são dotados de faculdades para esse efeito. Nestes
tempos de renovação social, eles têm uma missão particular: são árvores que
devem dar o alimento espiritual a seus irmãos; eles se multiplicam para que o
270 – Allan Kardec
11. A fé, para ser proveitosa, deve ser ativa e não pode adormecer. Mãe de
todas as virtudes que conduzem a Deus, ela deve velar atentamente pelo
desenvolvimento dos filhos que ela gerou.
A esperança e a caridade são uma consequência da fé; essas três virtudes
formam uma trindade inseparável. Já que é a fé que dá a esperança de vermos
a realização das promessas do Senhor, então, se vocês não tiverem fé, o que
estão esperando? Já que é a fé que dá o amor, então, se não tiverem fé, que
reconhecimento vocês terão? E por conseguinte, que amor?
A fé — divina inspiração de Deus — desperta todos os instintos nobres
que conduzem o homem ao bem; ela é a base da regeneração. É preciso, pois,
que essa base seja forte e durável, porque se uma mínima dúvida vier abalá-la,
que será do edifício que vocês construíram sobre ela? Portanto, levantem esse
edifício sobre fundações inabaláveis; que a sua fé seja mais forte do que os
sofismas e as zombarias dos incrédulos, porque a fé que não encara o ridículo
dos homens não é a verdadeira fé.
A fé sincera é empolgante e contagiosa; ela se comunica com aqueles que
271 – O Evangelho segundo o Espiritismo
A fé divina e a fé humana
CAPÍTULO XX
OS TRABALHADORES
DA ÚLTIMA HORA
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: Os últimos serão os primeiros
– Missão dos espíritas – Os obreiros do Senhor
te pertence e vá embora; por mim, eu quero dar a este último tanto quanto a
ti. Então não me é permitido fazer o que eu quero? Será que o teu olho é mau
porque eu sou bom?
Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos,
porque muitos são chamados e poucos são escolhidos. (São Mateus, 20: 1 a
16. Ver também: Parábola do festim de núpcias, cap. XVIII, item 1)
2. O trabalhador da última hora tem direito ao salário, mas é preciso que a sua
boa vontade o tenha mantido à disposição do senhor que o devia empregar, e
que o seu atraso não seja fruto da preguiça ou da sua má vontade. Ele tem
direito ao salário porque, desde o alvorecer, ele aguardava impacientemente
aquele que finalmente o chamaria à obra; ele era laborioso, só estava lhe
faltando o trabalho.
Entretanto, se ele tivesse recusado o emprego a qualquer hora do dia; se
ele tivesse dito: Tenhamos paciência, o repouso me é agradável; quando
chegar a última hora é que será tempo de pensar no salário da jornada; que
necessidade tenho de me incomodar com um patrão que eu não conheço e
não amo? Quanto mais tarde melhor! — Esse, meus amigos, não teria
recebido o salário do obreiro, e sim o da preguiça.
O que será então daquele que, em vez de ficar simplesmente na
ociosidade, tenha empregado as horas destinadas ao labor do dia para
praticar atos culposos; que tenha blasfemado Deus, derramado o sangue de
seus irmãos, lançado perturbação nas famílias, arruinado os homens
confiáveis, abusado da inocência, e que, enfim, tenha se envolvido com todas
as ignomínias da humanidade? O que será então dessa pessoa? Imagine que
ele dissesse, na derradeira hora: Senhor, empreguei mal meu tempo; leve-me
até o fim do dia, para que eu faça um pouco, bem pouco da minha tarefa, e me
dê o salário do obreiro de boa vontade. — Isso bastaria? Não, não! O Senhor
lhe diria: Não tenho emprego para ti no momento; você desperdiçou o seu
275 – O Evangelho segundo o Espiritismo
tempo, esqueceu o que tinha aprendido e já não sabe mais trabalhar na minha
vinha. Portanto, recomece a aprender, e quando estiver mais bem disposto,
venha até mim e eu abrirei para você o meu vasto campo, onde poderá
trabalhar a qualquer hora do dia.
Bons espíritas, meus bem-amados, vocês todos são trabalhadores da
última hora. Seria muito orgulhoso aquele que dissesse: Comecei a obra na
alvorada e só o terminei no fim do dia. Todos vieram quando foram
chamados, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, para a encarnação
da qual carregam as correntes; mas há quantos séculos amontoados o senhor
os chamava para a sua vinha sem que vocês quisessem nela entrar! Aqui estão
vocês no momento de receber o salário; aproveitem bem esta hora que lhes
resta e não esqueçam jamais que a existência de vocês — por mais longa que
lhes pareça — não é mais do que um momento bem fugaz na imensidade dos
tempos que formam para vocês a eternidade.
CONSTANTINO, ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1863)
Os obreiros do Senhor
5. Vocês chegaram ao tempo do cumprimento das coisas anunciadas para a
transformação da humanidade; felizes serão aqueles que tiverem trabalhado
no campo do Senhor com desinteresse e sem outro motivo além da caridade!
Suas jornadas de trabalho serão pagas pelo cêntuplo do que tiverem
esperado. Felizes serão aqueles que tiverem dito a seus irmãos: “Irmãos,
trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o mestre
encontre a obra concluída quando ele chegar,” pois o mestre lhes dirá:
“Vinham a mim, vocês que são bons servidores, vocês que conseguiram calar
seus ciúmes e suas discórdias, para não prejudicar a obra!” Mas ai daqueles
279 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XXI
1. A árvore que produz maus frutos não é boa, e a árvore que produz bons
frutos não é má; pois, cada árvore é conhecida pelo seu próprio fruto. Não se
colhem figos de espinhos, nem se colhem cachos de uvas de sarças. O homem
de bem tira boas coisas do bom tesouro do seu coração, e o ímpio tira as más
coisas do mau tesouro do seu coração; porquanto a boca fala daquilo de que o
coração está cheio. (São Lucas, 6: 43 a 45)
5. “Vão se levantar falsos cristos e falsos profetas que farão grandes prodígios
e coisas de espantosas, a ponto de seduzirem até mesmo os escolhidos.” Essas
palavras dão o verdadeiro sentido do termo prodígio. Na acepção teológica, os
prodígios e os milagres são fenômenos excepcionais, fora das leis da natureza.
Como as leis da natureza são obras exclusivas de Deus, sem dúvida ele pode
282 – Allan Kardec
derrogá-las se isso lhe agradar, mas o simples bom senso diz que não é
possível que ele possa ter dado a seres inferiores e perversos um poder igual
ao seu, e ainda menos o direito de desfazer aquilo que ele tenha feito. Jesus
não pode ter consagrado tal princípio. Se, portanto, conforme o sentido que se
dê a essas palavras, o Espírito do mal tivesse o poder de fazer prodígios tais
que enganassem até mesmo os eleitos, o resultado seria que, podendo fazer o
que Deus faz, os prodígios e os milagres não são privilégio exclusivo dos
enviados de Deus, e não provam nada, já que nada distingue os milagres dos
santos dos milagres do demônio. Então, é preciso procurar um sentido mais
racional para aquelas palavras.
Aos olhos do vulgo ignorante, todo fenômeno cuja causa é desconhecida
passa por sobrenatural, maravilhoso e miraculoso; uma vez conhecida a
causa, reconhece-se que o fenômeno — por mais extraordinário que pareça
— não é outra coisa senão a aplicação de uma lei da natureza. É assim que o
círculo dos fatos sobrenaturais se restringe à medida que o da ciência se
estende. Em todos os tempos, em proveito da sua ambição, dos seus
interesses e da dominação, os homens exploraram certos conhecimentos que
possuíam, a fim de garantir para si o prestígio de um poder dito sobre-
humano, ou de uma pretensa missão divina. São esses os falsos cristos e os
falsos profetas; mas a difusão das luzes destrói o crédito deles, e é por isso
que o seu número diminui na proporção que os homens se esclarecem. O fato
de operar aquilo que, aos olhos de algumas pessoas, passa por prodígios não
constitui, pois, o sinal de uma missão divina, já que isso pode resultar de
conhecimentos que cada um pode adquirir ou de faculdades orgânicas
especiais que a pessoa mais indigna pode possuir tão bem quanto a mais
digna. O verdadeiro profeta é reconhecido por características mais sérias — e
exclusivamente morais.
Os falsos profetas
8. Se lhes disserem isso: “Cristo está aqui”, não vão até lá, mas ao contrário,
fiquem atentos, porque os falsos profetas serão numerosos. Então vocês não
estão vendo as folhas da figueira que começam a embranquecer? Não estão
vendo seus brotos numerosos esperando a época da floração? Pois o Cristo
disse a vocês: Reconhece-se uma árvore pelo seu fruto, não disse? Portanto, se
os frutos forem amargos, vocês podem julgar que a árvore é má; porém, se
eles forem doces e saudáveis, vocês podem dizer: Nada de puro pode sair de
um toco de árvore má.
É assim, meus irmãos, que vocês devem julgar; essas são as obras que
vocês precisam examinar. Se os que se dizem investidos de poder divino estão
acompanhados de todas as marcas de tal missão, quer dizer, se eles
possuírem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas — a caridade, o
amor, a indulgência, a bondade que concilia todos os corações — e se, em
apoio das palavras, eles acrescentarem ações, então vocês poderão então
dizer: Estes realmente são os enviados de Deus.
Todavia, desconfiem das palavras melosas, desconfiem dos escribas e
fariseus que rezam nas praças públicas, vestidos de longas túnicas.
40 Ver, sobre a distinção dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, 2ª parte, cap. XXIV e seguintes.
285 – O Evangelho segundo o Espiritismo
10. Os falsos profetas não estão somente entre os encarnados; eles estão
também — e em número bem maior — entre os Espíritos orgulhosos que, sob
a falsa aparência de amor e de caridade, semeiam a desunião e retardam a
obra emancipadora da humanidade, misturando-a com os seus sistemas
absurdos que eles promovem através dos seus médiuns. E, para melhor
fascinarem aqueles a quem eles querem iludir, para darem mais peso às suas
288 – Allan Kardec
(Ver na Introdução deste livro o item II: Controle universal do ensinamento dos
Espíritos, e em O livro dos médiuns, 2ª parte, cap. XXIII, Obsessão.)
11. Eis o que diz o Senhor dos exércitos: Não escutem as palavras dos
profetas que lhes profetizam e que os enganam. Eles publicam as visões de
seus corações, e não o que aprenderam da boca do Senhor. — Eles dizem aos
290 – Allan Kardec
que de mim blasfemam: O Senhor o disse, vocês terão a paz; e a todos os que
andam na corrupção de seus corações: Não lhes ocorrerá nada de mal. — Mas
qual dentre eles seguiu o conselho de Deus? Quem o viu e escutou o que ele
disse? Eu não enviava esses profetas, e eles corriam por si mesmos; eu não
lhes falava, e eles profetizavam de suas cabeças. Eu ouvi o que disseram esses
profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei, sonhei.
— Até quando essa imaginação estará no coração dos que profetizam a
mentira e cujas profecias não são senão seduções dos corações deles? Se,
pois, esse povo, ou um profeta, ou um sacerdote lhes interrogar e lhes disser:
Qual é o fardo do Senhor? Vocês dirão a eles: É vocês mesmos que são o fardo,
e eu os lançarei para bem longe de mim, diz o Senhor. (JEREMIAS, 23: 16 a 18,
21, 25 e 26, 33)
CAPÍTULO XXII
Indissolubilidade do casamento
2. Não há nada de imutável exceto o que vem de Deus; tudo que é obra dos
homens está sujeito a mudanças. As leis da natureza são as mesmas em todos
os tempos e em todos os lugares; já as leis humanas, elas mudam de acordo
com as épocas, os locais e o progresso da inteligência. No casamento, o que é
de ordem divina é a união dos sexos, para operar a renovação dos seres que
morrem; mas as condições que regulam essa união são de ordem tão humanas
que não há no mundo inteiro — nem mesmo na cristandade — dois países
onde elas sejam absolutamente as mesmas, e que não há nenhuma onde essas
293 – O Evangelho segundo o Espiritismo
leis não tenham sofrido alterações com o passar do tempo. Disso resulta que,
aos olhos da lei civil, o que é legítimo num país e em dada época é adultério
em outro país e em outra época; isso é assim porque a lei civil tem por
finalidade regrar os interesses das famílias, e esses interesses variam segundo
os costumes e as necessidades locais. É assim, por exemplo, que em certos
países o casamento religioso é o único legítimo; em outros é preciso também
o casamento civil; noutros mais, finalmente, basta apenas o casamento civil.
3. Mas na união dos sexos, ao lado da lei divina material, comum a todos os
seres vivos, há outra lei divina, imutável como todas as leis de Deus,
exclusivamente moral: a lei de amor. Deus quis que os seres se unissem não
somente pelos laços da carne, mas também pelos da alma, a fim de que a
afeição mútua dos cônjuges se estendesse aos filhos, e que fossem dois, e não
só um, a amá-los, a cuidar deles e a fazê-los progredir. Será que nas condições
regulares do casamento é levada em consideração essa lei de amor? De jeito
nenhum; o que se leva em conta não é o afeto de dois seres atraídos um para o
outro por um sentimento mútuo — já que na maioria das vezes essa afeição é
rompida. O que se busca não é a satisfação do coração, mas sim a do orgulho,
da vaidade, da cupidez; em suma, de todos os interesses materiais, e quando
tudo vai bem, conforme esses interesses, diz-se que o casamento é
conveniente, e quando os bolsos estão bem harmonizados, diz-se que os
cônjuges também se combinam e devem estar muito felizes.
Porém, nem a lei civil nem os compromissos que ela determina podem
suprir a lei de amor, se esta lei não preside à união; disso resulta que muitas
vezes aquilo que se une pela força se separa por si mesmo; que o juramento
pronunciado ao pé do altar se torna um perjúrio, quando for dito como uma
formalidade banal. Daí vem as uniões infelizes, que acabam por se tornarem
criminosas — uma dupla desgraça que seria evitada se, nas condições do
matrimônio, não fosse esquecida a única condição que a sanciona união aos
olhos de Deus: a lei de amor. Quando Deus disse: “Vocês não serão mais do
que uma só carne”, e quando Jesus disse: “Não separem o que Deus uniu”, isso
deve ser entendido como a união conforme a lei imutável de Deus, e não
conforme a lei mutável dos homens.
294 – Allan Kardec
4. Então, será que a lei civil é supérflua? E será que devemos voltar aos
casamentos segundo a natureza? Não, certamente; a lei civil tem como
objetivo regular as relações sociais e os interesses das famílias, conforme as
exigências da civilização; eis por que ela é útil, necessária — porém variável.
Essa lei deve ser previdente, porque o homem civilizado não pode viver como
um selvagem; mas nada, absolutamente nada se opõe a que ela seja um
corolário da lei de Deus. Os obstáculos ao cumprimento da lei divina vêm dos
preconceitos, e não da lei civil. Esses preconceitos, se bem que ainda estejam
ativos, já perderam sua influência entre os povos esclarecidos; eles vão
desaparecer com o progresso moral, que finalmente abrirá os olhos quanto
aos incontáveis males, as faltas, inclusive os crimes que resultam das uniões
contraídas com vistas unicamente aos interesses materiais. E um dia nós
perguntaremos se é mais humano, mais caridoso e mais moral manter presos
um ao outro dois seres que não conseguem viver juntos, ou devolver a eles a
liberdade; perguntaremos também se a perspectiva de uma obrigação
indissolúvel não aumenta o número de uniões irregulares.
O divórcio
5. O divórcio é uma lei humana que tem por finalidade separar legalmente o
que de fato já está separado; essa lei não é contrária à lei de Deus, porque ela
só reforma aquilo que os homens fizeram, e ela só é aplicável nos casos em
que não foi levada em conta a lei divina; se o divórcio fosse contrário a esta
lei, a própria Igreja seria forçada a considerar como prevaricadores aqueles
que, por sua própria autoridade e em nome da religião, impuseram o divórcio
em mais de uma circunstância — que é uma dupla prevaricação, porque foi
com vistas unicamente aos interesses do momento, e não para satisfazer à lei
de amor.
Mas nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do
casamento. Ele quem disse “Foi por causa da dureza dos seus corações que
Moisés permitiu despedir suas mulheres”, não disse? Isso significa que, desde
o tempo de Moisés, como a afeição mútua não era o único propósito do
matrimônio, a separação podia se tornar necessária. Porém, ele acrescenta:
295 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XXIII
MORAL ESTRANHA
Quem não odiar seu pai e sua mãe – Deixar pai, mãe e filhos
– Deixem aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos –
Eu não vim trazer a paz, mas a divisão
1. Uma grande tropa de pessoas caminhando com Jesus, ele se volta para elas
e diz: Se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus
filhos, seus irmãos e irmãs, e até mesmo a sua própria vida, este não pode ser
meu discípulo. E aquele que não carrega a sua cruz e não me segue, este não
pode ser meu discípulo. Assim, qualquer um dentre vocês que não renunciar
a tudo o que tem não pode ser meu discípulo. (São Lucas, 14: 25 a 27 e 33)
2. Aquele que ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, este não é digno de
mim; aquele que ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, este não é
digno de mim. (São Mateus, 10: 37)
41Non odit em latim, Kaï ou miseï em grego, não quer dizer odiar, mas amar menos. O que o verbo grego
miseïn exprime, o verbo hebreu do qual Jesus deve ter se servido o exprime ainda melhor: não significa
apenas odiar, mas também amar menos, não amar tanto quanto, não igual a outro. No dialeto siríaco, do
qual dizem que Jesus usava com mais frequência, essa significação é ainda mais acentuada. É nesse
sentido que foi dito no Gênesis (29: 30 e 31): “E Jacó amou também a Raquel mais do que a Lia, e Jeová
vendo que Lia era odiada...” É evidente que o verdadeiro sentido aqui é menos amada. É assim que deve
ser traduzido. Em vários outras passagens hebraicas, e sobretudo siríacas, o mesmo verbo é empregado
no sentido de não amar tanto quanto a outro, e seria um contrassenso traduzi-lo por odiar, que tem
outra acepção bem determinada. A propósito, o texto de são Mateus afasta qualquer equívoco. — Nota
do Sr. Pezzani.
André Pezzani foi um advogado na corte imperial de Lyon, um dos ativistas pioneiros do
Espiritualismo Moderno na França, autor de algumas obras espiritualistas que, contudo, por
vezes defendia determinados conceitos claramente divergentes com a Doutrina Espírita; ainda
assim, Allan Kardec considerou válido aproveitar a nota acima, para melhor contextualizar o
significado da palavra em questão. — N. T.
298 – Allan Kardec
4. Todo aquele que tiver deixado pelo meu nome sua casa, os seus irmãos, ou
suas irmãs, ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou suas
terras, receberá o cêntuplo de tudo isso e terá como herança a vida eterna.
(São Mateus, 19: 29)
5. Então Pedro lhe disse: Quanto a nós, o senhor vê que nós deixamos tudo e
te seguimos. — Jesus lhe disse: Em verdade eu lhes digo, que ninguém
deixará pelo reino de Deus sua casa, ou seu pai, ou sua mãe, ou seus irmãos,
ou sua mulher, ou seus filhos, e que não receba já neste mundo muito mais, e
no século vindouro a vida eterna. (São Lucas, 18: 28 a 30)
9. Não pensem que eu tenha vindo trazer paz à Terra; eu não vim trazer a paz,
mas a espada; pois eu vim separar o homem do seu pai, a filha da sua mãe e a
nora da sua sogra; e o homem terá por inimigos aqueles da sua própria casa.
(São Mateus, 10: 34 a 36)
301 – O Evangelho segundo o Espiritismo
10. Eu vim para lançar fogo na Terra; e o que é que eu desejo senão que ele se
acenda? Eu devo ser batizado com um batismo e quanto me sinto apressado
para que ele se cumpra!
Vocês acham que eu vim trazer paz à Terra? Não, eu lhes asseguro; ao
contrário, vim trazer divisão; porque doravante se houver cinco pessoas
numa casa, elas estarão divididas umas contra as outras: três contra duas e
duas contra três. O pai estará em divisão com o filho e o filho com o pai, a mãe
com a filha e filha com a mãe, a sogra com a nora e a nora com a sogra. (São
Lucas, 12: 49 a 53)
11. Será mesmo que Jesus — a personificação da doçura e da bondade, ele que
não cessava de pregar o amor ao próximo — poderia ter dito: “Eu não vim
trazer a paz, mas a espada; eu vim separar o filho do pai, o esposo da esposa;
eu vim lançar fogo na Terra e tenho pressa que ele se acenda”? Essas palavras
não estarão em flagrante contradição com os seus ensinamentos? Não seria
uma blasfêmia lhe atribuir a linguagem de um conquistador sanguinário e
devastador? Não, não há blasfêmia nem contradição nessas palavras, pois foi
ele mesmo quem as pronunciou, e elas testemunham sua alta sabedoria;
apenas a forma, um tanto equívoca, não reproduz exatamente o seu
pensamento, o que fez com que interpretem mal o seu verdadeiro sentido.
Tomadas ao pé da letra, essas palavras tenderiam a transformar sua missão
inteiramente pacífica numa missão de perturbações e de discórdias, —
consequência absurda que o bom senso descarta, pois Jesus não podia se
desmentir. (Cap. XIV, item 6.)
12. Toda ideia nova forçosamente encontra oposição e não há uma única que
tenha se estabelecido sem lutas; ora, em tal caso, a resistência é sempre
proporcional à importância dos resultados previstos, porque quanto maior
ela for, mais interesse ela despertará. Se for notoriamente falsa e se a
julgarem sem efeito prático, ninguém se importará com ela e a deixarão
passar, achando que ela não tem vitalidade. Porém, se ela for verdadeira, se
está fundamentada em uma base sólida, se preveem um futuro para ela, então
um secreto pressentimento adverte os seus antagonistas de que essa doutrina
é um perigo para eles e para a ordem de coisas às quais eles têm interesse em
302 – Allan Kardec
preservar; eis por que eles avançam contra ela e contra os seus adeptos.
A medida da importância e dos resultados de uma ideia nova se encontra
então na emoção que ela provoca em seu aparecimento, na violência da
oposição que ela desperta, assim como no grau e na persistência da ira de
seus adversários.
13. Jesus veio proclamar uma doutrina que minava pela base os abusos de
que sobreviviam os fariseus, os escribas e os sacerdotes do seu tempo; assim,
eles o levaram à morte, achando que poderiam matar a ideia ao matar o
homem; só que a ideia sobreviveu, porque ela era verdadeira, e ela cresceu,
porque estava nos desígnios de Deus e, oriunda de um modesto vilarejo da
Judeia, essa ideia foi fincar sua bandeira na própria capital do mundo pagão,
diante dos seus inimigos mais ferozes, daqueles que tinham mais interesse em
combatê-la, porque ela subvertia crenças tradicionais às quais muitas vezes
eles se apegavam mais por interesse do que por convicção. Ali, lutas mais
terríveis esperavam seus apóstolos; as vítimas foram inumeráveis, mas a ideia
cresceu sempre e saiu triunfante, porque prevaleceu como verdade sobre as
suas antecessoras.
homens de sua época estavam à altura das ideias cristãs, mas havia uma
aptidão mais generalizada para as assimilar, pois já começavam a sentir o
vazio que as crenças vulgares deixavam na alma. Sócrates e Platão haviam
aberto o caminho e preparado os ânimos. (Ver na Introdução, o item IV:
Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo.)
humana, que não podia se transformar de uma vez. Era preciso que o
cristianismo passasse por essa longa e cruel prova de dezoito séculos para
mostrar toda a sua potência; porque, apesar de toda a maldade cometida em
seu nome, o cristianismo saiu dela puro, pois ele jamais deu razão a essa
maldade; a culpa sempre recaiu sobre aqueles que abusaram dele. A cada ato
de intolerância, sempre se disse: Se o cristianismo fosse mais bem
compreendido e mais bem praticado, isso não teria acontecido.
16. Quando Jesus disse: “Não creiam que eu tenha vindo trazer a paz, mas sim
a divisão”, seu pensamento era este:
“Não creiam que a minha doutrina se estabeleça pacificamente; ela trará
lutas sangrentas, para as quais o meu nome será o pretexto, porque os
homens não terão me compreendido, ou não terão querido me compreender.
Os irmãos, separados por suas respectivas crenças, desembainharão a espada
um contra o outro e a divisão reinará entre os membros de uma mesma
família que não tiverem a mesma crença. Eu vim lançar fogo na Terra para
limpá-la dos erros e dos preconceitos, assim como se põe fogo num campo
para nele destruir as ervas daninhas, e eu tenho pressa para que o fogo se
acenda para que a depuração seja mais rápida, pois a verdade sairá triunfante
desse conflito. A guerra será substituída pela paz; o ódio partidário, pela
fraternidade universal; as trevas do fanatismo, pela luz da fé esclarecida.
Então, quando o campo estiver preparado, eu lhes enviarei o Consolador, o
Espírito de Verdade, que virá restabelecer todas as coisas; quer dizer, que
dando a conhecer o verdadeiro sentido das minhas palavras, que os homens
mais esclarecidos poderão enfim compreender, ele colocará um fim à luta
fratricida que divide os filhos do mesmo Deus. Finalmente, cansados de um
combate sem resultado — que não traz consigo nada além de desolação e que
causa perturbação até no seio das famílias —, então os homens reconhecerão
onde estão os seus verdadeiros interesses para este mundo e para o outro;
eles verão de que lado estão os amigos e os inimigos do seu repouso. Com
isso, todos virão se abrigar sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas
serão restabelecidas na Terra, de acordo com a verdade e os princípios que eu
ensinei a vocês.”
305 – O Evangelho segundo o Espiritismo
18. Portanto, aquelas palavras de Jesus devem ser entendidas com relação às
cóleras que ele previa que a sua doutrina iria despertar, os conflitos
momentâneos a que seriam a consequência dessa doutrina, às lutas que ela
teria que sustentar antes de se estabelecer, como aconteceu com os hebreus
antes de sua entrada na Terra Prometida, e não como um desígnio
premeditado da parte de Jesus em semear a desordem e a confusão. O mal
viria dos homens e não dele. Ele era como o médico que vem curar, mas cujos
remédios provocam uma crise salutar, removendo os humores doentios do
paciente.
306 – Allan Kardec
CAPÍTULO XXIV
1. Não se acende uma candeia para pô-la debaixo do alqueire; mas, põem-na
sobre o candeeiro, a fim de que ela ilumine a todos que estão na casa. (São
Mateus, 5: 15)
2. Não há ninguém que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um
vaso ou a ponha debaixo da cama; mas, põe-na sobre o candeeiro, a fim de
que aqueles que entrarem vejam a luz; pois não há nada de secreto que não
deva ser descoberto, nem nada de oculto que não deva ser conhecido e nem
apareça publicamente. (São Lucas, 8: 16 e 17)
3. Seus discípulos, aproximando-se, lhe disseram: Por que o senhor fala com
eles por parábolas? — E, respondendo-lhes, ele disse: É porque, para vocês,
foi-lhes dado a conhecer os mistérios do reino dos céus; mas para os outros,
isso não foi dado a eles. Eu falo a eles por parábolas porque vendo, eles nada
enxergam, e ouvindo, eles nada escutam e nem compreendem. E a profecia de
Isaías se cumpre neles, quando diz: Vocês ouvirão com os ouvidos e nada
entenderão; vocês verão com os olhos e nada enxergarão. Pois o coração
307 – O Evangelho segundo o Espiritismo
4. É de se admirar ouvir Jesus dizer que não se deve colocar a luz debaixo do
alqueire, enquanto ele próprio constantemente esconde o sentido de suas
palavras sob o véu da alegoria que não pode ser compreendida por todos. Ele
se explica dizendo a seus apóstolos: “Eu falo a eles por parábolas porque não
eles estão em condições de compreender certas coisas; eles veem, olham,
ouvem e não entendem; dizer tudo a eles seria, pois, inútil neste momento;
mas a vocês eu digo, porque é dado a vocês compreenderem esses mistérios.”
Portanto, Jesus agia com o povo como se faz com crianças cujas ideias ainda
não estão desenvolvidas. Com isso, ele indica o verdadeiro sentido da
máxima: “Não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, mas sobre o
candeeiro, a fim de que todos que entrem possam vê-la.” Não significa que
seja preciso revelar inconsideradamente todas as coisas; todo ensinamento
deve ser proporcional à inteligência daquele a quem é dirigido, pois há
pessoas a quem uma luz muito viva deslumbraria sem as esclarecer.
Ocorre com a humanidade em geral como com os indivíduos; as gerações
têm sua infância, sua juventude e sua idade madura; cada coisa deve vir a seu
tempo; o grão semeado fora da estação não frutifica. Mas o que a prudência
manda calar momentaneamente cedo ou tarde deve ser descoberto, porque,
tendo chegado a certo grau de desenvolvimento, os próprios homens
procuram a luz viva, já que a obscuridade lhes pesa. Como Deus lhes deu
inteligência para compreender e para se guiar sobre as coisas da Terra e do
céu, eles querem raciocinar sobre sua fé; é aí que não se deve pôr a candeia
debaixo do alqueire, pois sem a luz da razão, a fé se enfraquece. (Cap. XIX,
item 7.)
8. Jesus enviou seus doze (apóstolos) depois de lhes ter dado as instruções
seguintes: Não vão ao encontro dos gentios, e não entrem nas cidades dos
samaritanos; mas, antes, vão às ovelhas perdidas da casa de Israel; e nos
lugares aonde forem, preguem, dizendo que o reino dos céus está próximo.
(São Mateus, 10: 5 a 7)
10. Essas palavras podem ser aplicadas aos adeptos e aos propagadores do
espiritismo. Os incrédulos sistemáticos, os zombadores obstinados e os
adversários interessados são para eles aquilo que eram os gentios para os
apóstolos. A exemplo dos apóstolos, que os espíritas procurem antes fazer
prosélitos entre as pessoas de boa vontade, entre aquelas que desejam a luz,
em quem se encontra uma semente fecunda e cujo número é grande, sem
perder tempo com quem não recusa ver e ouvir, endurecendo-se ainda mais,
por orgulho, quanto mais parece que se dê valor à conversão deles. Mais vale
abrir os olhos de cem cegos que desejam ver claramente do que abrir os olhos
de um só que se contenta na escuridão, porque isso é aumentar o número dos
sustentadores da causa numa maior proporção. Deixar os outros tranquilos
não é indiferença, mas apenas diplomacia; a vez deles chegará quando eles
estiverem dominados pela opinião geral e quando ouvirem a mesma coisa
repetida sem parar em torno deles; então eles acharão que vão aceitar a ideia
voluntariamente e por eles mesmos, e não por pressão de outrem. Depois, há
ideias que são como as sementes: elas não podem germinar antes da estação,
e só brotam num terreno preparado. É por isso que é melhor esperar o tempo
propício e cultivar primeiramente aquelas que germinam, para evitar que as
outras abortem, pressionando-as demais.
No tempo de Jesus, e em consequência das ideias estreitas e materiais da
época, tudo era limitado e localizado; a casa de Israel era um pequeno povo;
os gentios eram outros pequenos povos circunvizinhos. Hoje, as ideias se
universalizam e se espiritualizam. A luz nova não é privilégio de nenhuma
nação; para ela não existem mais barreiras e tem o seu foco em toda a parte e
todos os homens são irmãos. Mas também os gentios já não são mais um
povo, e sim uma opinião que se encontra em toda parte e da qual a verdade
triunfa pouco a pouco, como o cristianismo triunfou sobre o paganismo. Já
não é mais com as armas de guerra que os combatemos, mas com a força da
ideia.
311 – O Evangelho segundo o Espiritismo
11. Estando Jesus à mesa na casa daquele homem (Mateus), vieram ali muitos
publicanos e gente de má vida que se puseram à mesa com Jesus e seus
discípulos; tendo visto isso, os fariseus dissessem aos discípulos: Por que o
Mestre de vocês come junto com publicanos e pessoas de má vida? — Mas
Jesus, tendo-os ouvido, disse a eles: Não são os que estão com saúde que
precisam de médico, mas sim os enfermos. (São Mateus, 9: 10 a 12)
12. Jesus se dirigia sobretudo aos pobres e aos deserdados, porque são estes
que mais necessitam de consolações; aos cegos dóceis e de boa-fé, porque eles
pedem para ver, e não aos orgulhosos que acham que possuem toda a luz e
que não precisam de nada. (Veja na Introdução os itens Publicanos e
Portageiros.)
Essas palavras, como tantas outras, encontram sua aplicação no
espiritismo. Há quem muitas vezes se admire de que a mediunidade seja
concedida a pessoas indignas e capazes de fazerem dela um mal uso; parece
— dizem — que uma faculdade tão preciosa deveria ser atributo exclusivo
dos mais merecedores.
Digamos, primeiro, que a mediunidade se deve a uma disposição
orgânica da qual todo homem pode ser dotado, assim como ele pode enxergar,
ouvir e falar. Não há nenhuma dessas disposições de que o homem não possa
abusar, em virtude do seu livre-arbítrio, e se Deus, por exemplo, tivesse
concedido a fala somente àqueles que são incapazes de dizerem coisas más,
então haveria mais mudos do que falantes. Deus dá ao homem as capacidades
e o deixa livre para usá-las, mas sempre pune aquele que abusa delas.
Se o poder de se comunicar com os Espíritos fosse dada apenas aos mais
dignos, quem é que ousaria pretender possuí-lo? Aliás, onde estaria o limite
da dignidade e da indignidade? A mediunidade é distribuída sem distinção a
fim de que os Espíritos possam trazer a luz a todas as categorias, em todas as
classes da sociedade, ao pobre como ao rico; aos sábios para fortalecê-los no
bem, aos viciosos para os corrigir. Estes últimos não são aqueles doentes que
necessitam de médico? Por que Deus, que não quer a morte do pecador, o
privaria do socorro que pode tirá-lo do atoleiro? Então os bons Espíritos vêm
312 – Allan Kardec
Coragem da fé
proclamar abertamente as ideias que não são aquelas de todo o mundo. Aqui,
como em tudo, o mérito está na razão das circunstâncias e da importância do
resultado. Sempre há fraqueza em recuar diante das consequências de sua
opinião e negá-la, mas há casos em que isso constitui uma covardia tão grande
quanto fugir no momento do combate.
Jesus condena essa covardia, do ponto de vista especial da sua doutrina,
dizendo que se alguém se envergonhar de suas palavras ele também se
envergonhará desta pessoa; que ele negará quem o tiver negado; que aquele
que o defender diante dos homens será reconhecido por ele diante do Pai que
está nos céus; noutras palavras: aqueles que tiverem medo de se
declararem discípulos da verdade não são dignos de serem admitidos no
reino da verdade. Estes perderão o benefício de sua fé, porque é uma fé
egoísta, que eles guardam para si e a escondem com medo de que ela não
traga prejuízo para eles neste mundo, ao passo que aqueles que a proclamam
abertamente, colocando a verdade acima de seus interesses materiais, estes
trabalham ao mesmo tempo para o seu futuro e para o futuro dos outros.
16. Assim será com os adeptos do espiritismo; já que a sua doutrina não é
outra senão o desenvolvimento e a aplicação da doutrina do Evangelho, é a
eles também que as palavras do Cristo se dirigem. Eles semeiam na Terra o
que vão colher na vida espiritual; lá eles colherão os frutos da sua coragem ou
da sua fraqueza.
18. Chamando para perto de si o povo e os seus discípulos, ele lhes disse: Se
alguém quiser vir após mim, então renuncie a si mesmo, carregue a sua cruz e
314 – Allan Kardec
me siga; pois aquele que quiser salvar a si mesmo se perderá, e aquele que se
perder por amor a mim e ao Evangelho, este se salvará. Com efeito, de que
serviria a um homem ganhar o mundo todo e perder a si mesmo? (São
Marcos, 8: 34 a 36; são Lucas, 9: 23 a 25; são Mateus, 10: 38 e 39; são João,
12: 25 e 26)
CAPÍTULO XXV
PROCUREM E ENCONTRARÃO
Ajuda-te e o céu te ajudará – Olhem os pássaros no céu
– Não se preocupem em ter ouro
4. É pela aplicação desse princípio que os Espíritos não vêm poupar o homem
do trabalho das pesquisas para lhe trazer descobertas e invenções todas
prontas e acabadas, de maneira que só lhe bastasse receber aquilo que é
colocado nas mãos, sem nem mesmo ter que se abaixar para apanhar, e nem
ter que pensar. Se fosse assim, o mais preguiçoso poderia se enriquecer e o
mais ignorante se tornaria sábio gratuitamente, e os dois poderiam se dar o
mérito daquilo que eles não teriam feito. Não, os Espíritos não vêm
dispensar o homem da lei do trabalho, mas vem lhe mostrar a meta que
ele deve alcançar e o caminho que a ela conduz, dizendo-lhe: Caminhe e
317 – O Evangelho segundo o Espiritismo
você chegará. Você encontrará pedras sob os teus passos; olha e retira-as
você mesmo; nós te daremos a força necessária, se você quiser empregá-la. (O
Livro dos Médiuns, 2ª parte, cap. XXVI, item 291 e seguintes.)
lhes declaro que nem Salomão, mesmo em toda a sua glória, jamais se vestiu
como um deles. Então, se Deus tem cuidado de vestir dessa maneira uma erva
dos campos, que existe hoje e que amanhã será lançada na fornalha, quanto
maior cuidado ele não terá em vestir vocês, ó homens de pouca fé!
Portanto, não se inquietem dizendo: O que vamos comer? Ou: o que
vamos beber? Ou: o que vamos vestir? — assim como fazem os pagãos, que
procuram todas essas coisas; porque o seu Pai sabe que vocês têm
necessidade dessas coisas.
Então, procurem primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e todas
essas coisas lhes serão dadas por acréscimo. Eis por que não devem se
inquietar com o amanhã, pois o amanhã cuidará de si mesmo. A cada dia
basta o seu mal. (São Mateus, 6: 19 a 21 e 25 a 34)
Deus deixa que ele sofra as consequências disso, a fim de que isso lhe sirvam
de lição para o futuro. (Cap. V, item 4.)
saírem dessa casa ou dessa cidade, sacudam a poeira dos seus pés. Em
verdade eu lhes digo, no dia do julgamento, Sodoma e Gomorra43 serão
tratadas menos rigorosamente do que essa cidade. (São Mateus, 10: 9 a 15)
11. Essas palavras que Jesus dirigiu a seus apóstolos, quando os enviou pela
primeira vez para anunciar a boa nova, nada tinham de estranho naquela
época; elas estavam de acordo com os costumes patriarcais do Oriente, onde o
viajante sempre era recebido sob a tenda. Mas então, os viajantes eram raros;
já entre os povos modernos, o aumento da circulação precisou criar outros
costumes; só se encontram costumes de tempos antigos em regiões remotas,
onde o grande movimento ainda não se desenvolveu, e se Jesus voltasse hoje,
ele não poderia mais dizer a seus apóstolos: Ponham-se a caminho sem
provisões.
Ao lado do sentido próprio, essas palavras têm um sentido moral muito
profundo. Daquela maneira, Jesus ensinava a seus discípulos que confiassem
na Providência; depois, como os discípulos não tinham nada, eles não
poderiam despertar a cobiça daqueles que os recebessem; esse era o meio de
distinguir os caridosos dos egoístas. Eis por que Jesus lhes disse: “Informem-
se sobre quem é digno de os receber”, quer dizer, quem é bastante humano
para albergar o viajante que não tem com o que pagar, pois esses são dignos
de escutar as suas palavras; é pela caridade deles que vocês os reconhecerão.
Quanto àqueles que não quisessem nem os receber nem os escutar, será
que Jesus mandou os seus apóstolos os amaldiçoar, impor-se a eles, usar da
violência e do constrangimento para os converter? Não; mas os mandou pura
e simplesmente irem a outros lugares, e procurarem pessoas de boa vontade.
Assim diz hoje o espiritismo a seus adeptos: Não violentem nenhuma
consciência; não obriguem ninguém a deixar a sua crença para adotar a sua;
não lancem anátema sobre aqueles que não pensam como vocês; acolham os
que venham a vocês e deixem em paz os que os rejeitam. Lembrem-se das
palavras do Cristo; antigamente o céu era conquistado pela violência; hoje, é
pela brandura. (Cap. IV, itens 10 e 11.)
43 Segundo o relato bíblico do livro Gênesis, cap. 18 e 19, Sodoma e Gomorra correspondiam a duas
cidades que foram destruídas por Deus devido os pecados de seus habitantes. — N. T.
321 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XXVI
Dom de curar
Preces pagas
3. Ele disse em seguida aos seus discípulos, na presença de todo o povo que o
escutava: Tenham cuidado com os escribas que se exibem a passear com
longas túnicas, que gostam de ser saudados nas praças públicas e de ocupar
os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes;
322 – Allan Kardec
4. Jesus disse também: Não cobrem pelas suas preces; não façam como os
escribas que, “a pretexto de longas preces, devoram as casas das viúvas”,
isto é, apropriam-se das fortunas. A prece é um ato de caridade, um impulso
do coração; cobrar pela prece que se dirige a Deus em favor de outro é se
transformar em intermediário assalariado; a prece, nesse caso, torna-se uma
fórmula cujo comprimento é proporcional ao preço estipulado. Ora, de duas
coisas, uma: Deus mede ou não mede suas graças pelo número das palavras;
se for preciso muitas palavras, então por que dizer pouco ou quase nada por
aquele que não pode pagar? Isso é uma falta de caridade. Se uma só é
suficiente, o excedente é inútil; então por que cobrar por ela? Isso é uma
prevaricação.
Deus não vende os benefícios que concede; então, por que alguém — que
nem sequer é o seu distribuidor e que nem pode garantir a obtenção desses
benefícios — poderia cobraria por um pedido que talvez nem possa ser
realizado? Deus não pode subordinar um ato de clemência, de bondade ou de
justiça que solicitamos à sua misericórdia por uma soma em dinheiro; do
contrário, disso resultaria que se a soma não fosse paga, ou fosse insuficiente,
a justiça, a bondade e a clemência de Deus ficariam suspensas. A razão, o bom
senso e a lógica dizem que Deus — a perfeição absoluta — não pode delegar a
criaturas imperfeitas o direito de estipular um preço para a sua justiça. A
Justiça de Deus é como o Sol: ela existe para todo mundo, tanto para o pobre
como para o rico. Se consideramos imoral traficar as graças de um soberano
na Terra, seria então mais lícito vender as do soberano do Universo?
As preces pagas têm um outro inconveniente: é que aquele que as
compra, na maioria das vezes, acredita que está dispensado de orar ele
mesmo, porque se considera quite desde quando pagou com o seu dinheiro.
Sabe-se que os Espíritos ficam sensibilizados pelo fervor do pensamento de
quem se interessa por eles; qual pode ser o fervor daquele que encarrega uma
terceira pessoa de orar por ele pagando por isso? Qual será o fervor dessa
323 – O Evangelho segundo o Espiritismo
terceira pessoa quando delega o seu mandato a outro, este a um outro e assim
por diante? Isso não seria reduzir a eficácia da prece ao valor de uma moeda
corrente?
Mediunidade gratuita
encontra por toda parte; logo, cobrar por ela seria desviá-la do seu objetivo
providencial.
10. A mediunidade é uma coisa santa que deve ser praticada santamente,
religiosamente. Se há um gênero de mediunidade que requeira essa condição
de uma maneira ainda mais absoluta é a mediunidade curadora. O médico dá
o fruto de seus estudos, que ele fez ao custo de sacrifícios muitas vezes
penosos; o magnetizador doa do seu próprio fluido, às vezes até da sua saúde:
eles podem estabelecer o seu preço. O médium curador transmite o fluido
salutar dos bons Espíritos: ele não tem o direito de vender esse fluido. Jesus e
os apóstolos, conquanto pobres, nada cobravam pelas curas que operavam.
Portanto, aquele que não tem do que viver, que procure recursos
alhures, menos na mediunidade; que ele dedique, se for preciso, apenas o
tempo de que ele puder dispor materialmente. Os Espíritos levarão em conta
o seu devotamento e sacrifício, ao passo que se afastam daqueles que
esperam fazer deles um trampolim.
326 – Allan Kardec
CAPÍTULO XXVII
Qualidades da prece
3. Ele contou também esta parábola a alguns que colocavam a sua confiança
em si mesmos, como sendo justos, e desprezavam os outros:
Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro era
um publicano. O fariseu, mantendo-se de pé, orava assim, consigo mesmo:
327 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Meu Deus, eu te rendo graças por não ser como o resto dos outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros, incluindo esse publicano. Eu faço jejum
duas vezes na semana, eu dou o dízimo de tudo o que possuo.
O publicano, ao contrário, permanecendo afastado, não ousava sequer
erguer os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus, tenha piedade
de mim, que sou um pecador.
Eu declaro a vocês que este retornou para sua casa justificado, e não o
outro, pois aquele que se eleva será rebaixado e aquele que se rebaixa será
elevado. (São Lucas, 18: 9 a 14)
Eficácia da prece
5. Seja lá o que for que vocês pedirem na prece, creiam que vocês o obterão, e
assim será concedido a vocês. (São Marcos, 11: 24)
livre-arbítrio e sem iniciativa. Nessa hipótese, ele só teria que curvar a cabeça
sob o golpe de todos os acontecimentos, sem procurar evitá-los; não deveria
tentar desviar-se do raio. Deus não lhe deu a razão e a inteligência para ele
não a usar, nem a vontade para ele não querer, nem a atividade para ele ficar
inativo. O homem sendo livre para agir num sentido ou em outro, seus atos
têm — para ele mesmo e para os outros — consequências subordinadas ao
que ele faz ou deixa de fazer; por iniciativa dele, portanto, há eventos que
forçosamente escapam da fatalidade e que não destroem a harmonia das leis
universais, assim como o avanço ou o atraso do ponteiro de um relógio não
destrói a lei do movimento sobre a qual se estabelece o mecanismo. Sendo
assim, Deus pode conceder certos pedidos sem derrogar a imutabilidade das
leis que regem o conjunto, estando essa sua concessão sempre subordinada à
sua vontade.
7. Seria ilógico concluir desta máxima: “Seja lá o que for que vocês pedirem na
prece, assim será concedido a vocês”, que bastaria pedir para obter, e seria
injusto acusar a Providência se ela não atendesse a todo pedido que lhe fosse
feito, pois ela sabe melhor do que nós aquilo que é para o nosso bem. É o
mesmo que acontece com um pai sábio que recusa ao filho as coisas
contrárias ao interesse a este filho. O homem geralmente não vê além do
presente; ora, se o sofrimento for útil para a sua felicidade futura, então Deus
o deixará sofrer, como o cirurgião deixa o doente sofrer as dores de uma
operação que deve lhe trazer a cura.
O que Deus concederá ao homem, quando este se dirigir a Deus com
confiança, é a coragem, a paciência e a resignação. O que Deus também lhe
concederá são os meios de ele mesmo se livrar das dificuldades, com a ajuda
das ideias que Deus fará os bons Espíritos lhe sugerirem, deixando assim ao
homem o mérito. Deus auxilia os que ajudam a si mesmos, segundo esta
máxima: “Ajuda-te e o céu te ajudará”, e não aqueles que esperam tudo de um
socorro estranho sem fazer uso das suas próprias faculdades; entretanto, na
maior parte do tempo, o que o homem preferiria ser socorrido por um
milagre sem precisar fazer nada. (Cap. XXV, item 1 e seguintes.)
9. A prece é uma invocação; através dela, nós nos colocamos em contato pelo
pensamento com o ser a quem nos dirigimos. Ela pode ter como objetivo um
pedido, um agradecimento ou uma glorificação. Podemos orar por nós
mesmos ou por outros, pelos vivos ou pelos mortos. As preces endereçadas a
330 – Allan Kardec
11. Pela prece o homem atrai para si o auxílio dos bons Espíritos, que vêm
sustentá-lo nas suas boas resoluções e lhe inspirar bons pensamentos; assim,
ele adquire a força moral necessária para vencer as dificuldades e voltar ao
331 – O Evangelho segundo o Espiritismo
caminho correto, se estiver afastado dele. E com isso ele também pode desviar
de si os males que atrairia pelas suas próprias faltas. Por exemplo, um homem
vê sua saúde arruinada pelos excessos que cometeu, e arrasta até o fim de
seus dias uma vida de sofrimento; será que ele tem o direito de se queixar,
caso não obtenha a cura que deseja? Não, porque ele poderia ter encontrado
na prece a força para resistir às tentações.
12. Se dividirmos em duas partes os males da vida, uma delas sendo a dos
males que o homem não pode evitar e a outra sendo a parte das tribulações
de que ele mesmo é a principal causa, devido ao seu descuido e aos seus
excessos (cap. V, item 4), então veremos que esta segunda parte supera e
muito o número dos males em relação à primeira. Logo, fica bem evidente que
o homem é o autor da maior parte das suas aflições, e que ele se pouparia
desses males se agisse sempre com sabedoria e prudência.
Não é menos certo que essas misérias são o resultado das nossas
infrações às leis de Deus, e que, se observássemos pontualmente essas leis,
nós seríamos perfeitamente felizes. Se não ultrapassássemos o limite do
necessário na satisfação das nossas necessidades, não teríamos as doenças
que são a consequência dos excessos, nem teríamos as vicissitudes
acarretadas por essas doenças. Se colocássemos limites à nossa ambição, nós
não temeríamos a ruína; se não quiséssemos subir mais alto do que podemos,
não teríamos receio de cair; se fôssemos humildes, não sofreríamos as
decepções do orgulho abatido; se praticássemos a lei de caridade, nós não
seríamos nem maledicentes, nem invejosos, nem ciumentos, e evitaríamos as
querelas e dissensões; se não fizéssemos mal a ninguém, não temeríamos as
vinganças etc.
Admitamos que o homem não possa fazer nada com relação aos outros
males; que toda prece lhe seja supérflua para se preservar deles; já não seria
muito ficarmos livres de todos os males que vêm da nossa própria conduta?
Ora, aqui a ação da prece é facilmente concebida, porque ela tem por efeito
chamar a inspiração salutar dos bons Espíritos e lhes pedir a força para
resistir aos maus pensamentos cuja execução pode ser funesta para nós.
Nesse caso, não é o mal que eles afastam; eles apenas nos desviam do mau
332 – Allan Kardec
13. Atendendo ao pedido que lhe é endereçado, Deus muitas vezes tem em
vista recompensar a intenção, o devotamento e a fé daquele que ora; é por
isso que a prece do homem de bem tem mais mérito aos olhos de Deus, e
sempre tem mais eficácia, pois o homem vicioso e malvado não pode orar com
o fervor e a confiança que só é dado pelo sentimento da verdadeira piedade.
Do coração do egoísta, daquele que ora com os lábios, não podem sair mais do
que palavras, e não os impulsos de caridade que dão à prece toda a sua
pujança. Tanto compreendemos isso que, por um movimento instintivo,
preferencialmente nós nos recomendamos às preces daqueles cuja conduta
sabemos que deve ser agradável a Deus, porque eles são mais bem atendidos.
14. Se a prece exerce uma espécie de ação magnética, poderíamos crer que o
efeito dela está subordinado à força fluídica; porém, não é assim. Já que os
Espíritos exercem essa ação sobre os homens, eles suprem, quando isso é
necessário, a insuficiência daquele que ora — seja agindo diretamente em seu
333 – O Evangelho segundo o Espiritismo
nome, seja lhe dando momentaneamente uma força excepcional, quando ele é
considerado digno desse favor ou quando o objetivo pode ser útil.
O indivíduo que não se considere suficientemente bom para exercer uma
influência positiva não deve deixar de orar pelos outros, com a ideia de que
não é digno de ser escutado. A consciência da sua inferioridade é uma prova
de humildade, sempre agradável a Deus, que leva em conta a intenção
caridosa que motiva a pessoa. Seu fervor e sua confiança em Deus já são um
primeiro passo rumo ao retorno ao bem, ao qual os bons Espíritos ficam
felizes em incentivar. A prece que é rejeitada é aquela do orgulhoso, que tem
fé em sua força e em seus méritos, e acha que pode substituir a vontade do
Eterno.
15. A força da prece está no pensamento; ela não depende nem das palavras,
nem de lugar, nem do momento em que é feita. Portanto, podemos orar em
toda parte e a qualquer hora, a sós ou em grupo. A influência do lugar e do
horário dependem das circunstâncias que podem favorecer a concentração. A
prece em grupo tem uma ação mais poderosa quando todos aqueles que
estejam orando se associam de coração a um mesmo pensamento e têm o
mesmo objetivo, pois é como se muitos clamassem juntos e em uníssono; mas
que importa estar reunidos em grande número de pessoas se cada uma age
isoladamente e por conta própria? Cem pessoas reunidas podem orar como
egoístas, enquanto duas ou três, unidas por uma mesma aspiração, oram
como verdadeiros irmãos em Deus, e sua prece terá mais força do que a das
cem outras. (Cap. XXVIII, itens 4 e 5.)
Preces inteligíveis
Não é que a ação de vocês não seja boa, mas que os outros não estão assim
edificados. (São Paulo, I Coríntios, 14: 11, 14, 16 e 17)
17. A prece só tem valor pelo pensamento que a ela é agregado; agora, é
impossível agregarmos algum pensamento àquilo que não compreendemos,
pois aquilo que não compreendemos não pode tocar o coração. Para a imensa
maioria das pessoas, as preces numa língua incompreendida não passam de
um amontoado de palavras que não dizem nada ao espírito. Para que a prece
sensibilize, é preciso que cada palavra desperte uma ideia, mas se não a
entendermos, a palavra não pode despertar nenhuma ideia; ela será repetida
como simples fórmula que tem uma maior ou menor virtude conforme o
número de vezes que ela for repetida. Muitas pessoas oram por dever, outras
até mesmo para se adequar aos costumes; é por isso que eles se julgam quites
quando dizem uma oração num determinado número de vezes e nessa ou
naquela ordem. Deus lê no fundo dos corações; ele percebe o pensamento e a
sinceridade, e seria rebaixá-lo acreditar que ele fosse mais sensível à forma do
que ao fundo. (Cap. XXVIII, item 2.)
18. A prece é solicitada pelos Espíritos sofredores; ela é útil para eles porque,
ao verem que nós pensamos neles, eles se sentem menos abandonados,
menos infelizes. Mas a prece tem sobre eles uma ação mais direta: desperta a
coragem, inspira neles o desejo de se elevar pelo arrependimento e pela
reparação, podendo desviá-los do mau pensamento; é nesse sentido que a
prece pode não apenas aliviar, mas também abreviar seus sofrimentos. (Veja
em O Céu e o Inferno, 2ª parte, Exemplos.)
19. Certas pessoas não admitem a prece pelos mortos, porque, segundo a
crença delas, não há para a alma mais do que duas alternativas: ou ser salva
ou ser condenada às penas eternas, e que, nos dois casos, a prece é inútil. Sem
discutir o valor dessa crença, vamos admitir por um instante a realidade das
penas eternas e irremissíveis, e que as nossas preces sejam impotentes para
335 – O Evangelho segundo o Espiritismo
pôr um fim às penas. Perguntamos se, nessa hipótese, seria lógico, caridoso e
cristão negar a prece aos condenados? Tais preces, por mais impotentes que
fossem para os libertar, não seriam para eles uma demonstração de piedade
que poderia aliviar seus sofrimentos? Na Terra, quando um homem é
condenado à pena perpétua, mesmo quando não haja nenhuma esperança de
obter o perdão para ele, será que é proibido a uma pessoa caridosa ir carregar
seus grilhões para aliviá-lo desse peso? Quando alguém é atingido por uma
moléstia incurável, deveríamos abandoná-lo sem nenhum lenitivo, só porque
ele não tem nenhuma esperança de cura? Lembrem-se de que, entre os
réprobos pode haver uma pessoa que já foi querida, um amigo, talvez um pai,
uma mãe ou um filho, e, como se diz, porque ele não poderia esperar um
perdão, vocês lhe negariam um copo d’água para matar a sede dele? Ou um
bálsamo para secar suas chagas? Vocês não fariam por ele o que fariam por
um infeliz? Não lhe dariam um testemunho de amor, uma consolação? Não,
isso não seria cristão. Uma crença que resseca o coração não combina com a
crença de um Deus que coloca o amor ao próximo na primeira ordem dos
deveres.
A não eternidade das penas não significa a negação de uma penalidade
temporária, porque Deus, na sua justiça, não pode confundir o bem e o mal;
ora, neste caso, negar a eficácia da prece seria negar a eficácia da consolação,
dos encorajamentos e dos bons conselhos; seria negar a força que colhemos
da assistência moral daqueles que nos querem bem.
20. Outros se fundam numa razão mais ilusória: a imutabilidade dos decretos
divinos. Deus — dizem esses — não pode modificar suas decisões a pedido de
suas criaturas; sem isso, nada seria estável no mundo. logo, o homem não tem
nada a pedir a Deus, ele só tem que se submeter e adorá-lo.
Há nessa ideia uma falsa aplicação do princípio da imutabilidade da lei
divina, ou melhor, ignorância da lei no que se refere à penalidade futura. Essa
lei é revelada pelos Espíritos do Senhor, agora que o homem já está maduro
para compreender o que, na fé, é conforme ou contrário aos atributos divinos.
Segundo o dogma da eternidade absoluta das penas, não é levado em
conta em favor do culpado nem os seus remorsos nem o seu arrependimento;
336 – Allan Kardec
21. “O homem sofre sempre a consequência de suas faltas; não há uma única
infração à lei de Deus que não tenha a sua punição.
“A severidade do castigo é proporcional à gravidade da falta.
“Seja qual for a falta, a duração do castigo é indeterminada; ela está
subordinada ao arrependimento do culpado e ao seu retorno ao bem; a
pena dura tanto quanto a obstinação no mal; ela seria perpétua se a
obstinação fosse perpétua; ela é de curta duração se o arrependimento for
rápido.
“Desde que o culpado clame misericórdia, Deus o ouve e lhe envia a
esperança. Mas o simples remorso do mal não basta: é preciso uma reparação;
eis por que o culpado fica submetido a novas provas, nas quais, sempre por
sua vontade, ele pode fazer o bem em reparação ao mal que tenha feito.
“Assim, o homem é constantemente o árbitro da sua própria sorte; ele
pode abreviar ou prolongar o seu suplício indefinidamente; a sua felicidade
ou a sua infelicidade depende da sua vontade de praticar o bem.”
Esta é a lei, lei imutável e conforme à bondade e à justiça de Deus.
Então, o Espírito culpado e infeliz sempre pode se salvar por si mesmo: a
lei de Deus lhe diz em que condições pode fazer isso. O que lhe falta na
maioria das vezes é vontade, força e coragem; se, por nossas preces, nós lhe
inspiramos essa vontade, se o amparamos e o encorajamos; se, pelos nossos
conselhos, nós lhe damos as luzes que lhe faltam, em lugar de pedirmos a
Deus que derrogue a sua lei, nós nos tornamos instrumentos para a
337 – O Evangelho segundo o Espiritismo
Maneira de orar
22. O primeiro dever de toda criatura humana, o primeiro ato que deve
assinalar o seu retorno à vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos vocês
oram, mas quão poucos são os que sabem orar! Que importam ao Senhor as
frases que vocês ligam umas às outras maquinalmente, porque vocês têm isso
como um hábito, como um dever que vocês cumprem e que, como qualquer
dever, é um peso para vocês.
A prece do cristão, do espírita de qualquer culto que seja, deve ser feita
desde logo que o Espírito tenha retomado o jugo da carne; ela deve se elevar
aos pés da majestade divina com humildade, com profundeza, num ímpeto de
reconhecimento por todos os benefícios recebidos até esse dia; pela noite
passada e durante a qual lhes foi permitido, mesmos sem saber disso, voltar
para junto dos amigos, dos guias, para haurir no contato com eles mais força e
perseverança. A prece deve se elevar humilde aos pés do Senhor, para se
aconselhar sobre a própria fraqueza, para lhe pedir apoio, indulgência e
misericórdia. Ela deve ser profunda, pois é a alma de vocês que deve se elevar
em direção do Criador, que deve se transfigurar como Jesus no Monte Tabor, e
para chegar alva e radiosa de esperança e de amor.
A sua prece deve conter o pedido das graças de que vocês têm
necessidade, mas de uma necessidade real. Com isso é inútil pedir ao Senhor
para abreviar as provações de vocês, para lhes dar alegrias e riquezas; peçam
para ele lhes conceder os bens mais preciosos da paciência, da resignação e da
fé. Não digam, como acontece com muitos de vocês: “Não vale a pena orar,
porque Deus não me atende.” O que é que na maior parte do tempo vocês
pedem a Deus? Já pensaram alguma vez em lhe pedir o próprio
aperfeiçoamento moral de vocês? Oh, não! Bem poucas vezes! Mas vocês
338 – Allan Kardec
pensam logo em lhe pedir sucesso nos seus negócios terrenos, e depois
choram: “Deus não se ocupa conosco; se ele se ocupasse, não haveria tantas
injustiças”. Insensatos! Ingratos! Se vocês descessem ao fundo da própria
consciência, então encontrariam quase sempre em vocês mesmos o ponto de
partida dos males dos quais se queixam. Então, peçam antes de todas as
coisas o próprio aprimoramento, e aí verão que torrente de bênçãos e de
consolações se derramará sobre vocês. (Cap. V, item 4.)
Vocês devem orar sem cessar, sem que para isso vocês se recolham nos
seus santuários ou se lancem de joelhos nas praças públicas. A prece diária é o
cumprimento dos seus deveres, sem exceção de nenhum dos deveres,
qualquer que seja a natureza deles. Não é um ato de amor a Deus socorrer os
irmãos numa necessidade qualquer, moral ou física? Não é um ato de
reconhecimento elevar a ele o próprio pensamento quando uma felicidade se
realiza para vocês, quando um acidente é evitado, quando até uma simples
contrariedade os sensibiliza, se vocês dizem em pensamento: Bendito seja,
meu Pai!? Não é um ato de contrição se humilharem diante do juiz supremo,
quando vocês sentem que faliram, nem que fosse só por um pensamento
fugaz, para lhe dizerem: Perdoe-me, meu Deus, porque eu pequei (por
orgulho, por egoísmo ou por falta de caridade); dê-me a força para não
falir de novo e coragem para reparar minha falta!?
Isso independe das preces regulares da manhã, da noite e dos dias
consagrados; mas como vocês podem ver, a prece pode ser feita em todos os
instantes, sem trazer nenhuma interrupção aos seus trabalhos; dita assim, por
sua vez, ela santifica os trabalhos. E fiquem bem certos de que um só desses
pensamentos — partindo do coração — é mais percebido pelo seu Pai
celestial do que as longas orações ditas por hábito, frequentemente sem causa
determinante e às quais a hora convencional os chama maquinalmente.
Pr. MONOD (Bordeaux, 1862)
23. Venham, vocês que desejam crer: os Espíritos celestes acorrem a vem lhes
anunciar grandes coisas. Deus, meus filhos, abre seus tesouros para lhes dar
339 – O Evangelho segundo o Espiritismo
CAPÍTULO XXVIII
Preâmbulo
44A literatura religiosa tradicional estabelece que determinados rituais sacramentais, para que tenham
validade, devam ser realizados mediante certas prescrições especiais, por exemplo, o recital
padronizado de palavras, como que uma fórmula mágica cujo poder estaria contido exatamente no
cumprimento cerimonial. O Espiritismo, por sua vez, vem demonstrar a infantilidade dessas concepções
primitivas, ressaltando que o poder da oração está na verdadeira intenção de quem ora. — N. T.
341 – O Evangelho segundo o Espiritismo
vivos; 4ª) Preces pelos mortos; 5ª) Preces especiais pelos enfermos e pelos
obsidiados.
Com o propósito de chamar a atenção mais particularmente para o
objeto de cada prece, e de tornar mais compreensível o seu significado, todas
elas estão precedidas de uma instrução preliminar, uma espécie de exposição
de motivos, sob o título de prefácio.
I – PRECES GERAIS
Oração dominical
2. PREFÁCIO. Os Espíritos recomendaram que a Oração dominical fosse colocada no
início desta coletânea, não somente como prece, mas também como um símbolo. De
todas as preces, ela é a que eles colocam em primeiro lugar — seja porque ela vem do
próprio Jesus (São Mateus, 6: 9 a 13), seja porque ela pode suprir todas as outras,
conforme o pensamento relacionado a ela. Este é o modelo mais perfeito de concisão,
verdadeira obra-prima de sublimidade na simplicidade. Com efeito, sob a forma mais
singela, ela resume todos os deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e
para com o próximo; ela contém uma profissão de fé, um ato de adoração e de
submissão; o pedido das coisas necessárias à vida e o princípio da caridade. Dizê-la na
intenção de uma pessoa é pedir para ela o que se pediria para si mesmo.
Entretanto, até em razão da sua brevidade, o sentido profundo contido nas
poucas palavras de que ela se compõe não é percebido pela maioria das pessoas; é por
isso que geralmente ela é dita sem dirigir os pensamentos para as aplicações de cada
uma de suas partes; ela é recitada como uma fórmula cuja eficácia é proporcional ao
número de vezes que seja repetida, e quase sempre esse número é um daqueles
cabalísticos: três, sete, ou nove, tirados da antiga crença supersticiosa no valor dos
números usados nas operações da magia.
Para suprir o vazio que a conclusão dessa prece deixa no pensamento, após o
conselho e com a assistência dos Espíritos, foi acrescentado a cada proposição um
comentário que explica o seu significado e mostra as suas aplicações. Conforme as
circunstâncias e o tempo disponível, podemos então dizer a Oração dominical simples
ou na forma aqui desenvolvida.
3. PRECE. — I. Pai nosso, que está no céu, santificado seja o teu nome!
Nós cremos em ti, Senhor, porque tudo revela o teu poder e a tua
343 – O Evangelho segundo o Espiritismo
dependido de nós evitá-la; mas dizendo também que Deus nos deu a
inteligência para nos tirar do pântano, e que depende de nós fazer uso dela.
Já que a lei do trabalho é uma obrigação para o homem na Terra,
conceda-nos a coragem e a força para cumpri-la; dê-nos também a prudência,
a previdência e a moderação, a fim de não perdermos o fruto dessa lei.
Então, dê-nos, Senhor, nosso pão de cada dia, isto é, os meios de
adquirirmos pelo trabalho as coisas necessárias para a vida, pois ninguém
tem o direito de pedir o supérfluo.
Se o trabalho for impossível para nós, confiaremos na tua divina
Providência.
Se estiver nos teus desígnios nos experimentar pelas mais duras
privações, apesar dos nossos esforços, aceitaremos essas provações como
uma justa expiação pelas faltas que tenhamos cometido nesta vida ou numa
vida precedente, pois o Senhor é justo. Sabemos que não há penas imerecidas,
e que o Senhor jamais castiga sem uma causa.
Preserva-nos, ó meu Deus, de pensar em invejar aqueles que possuem o
que nós não temos, nem mesmo daqueles que têm o supérfluo enquanto nós
não temos sequer o necessário. Perdoa-lhes se eles esquecem a lei de caridade
e de amor ao próximo que o Senhor lhes ensinou. (Cap. XVI, item 8.)
Afasta também da nossa mente a ideia de negar a tua justiça enquanto
vemos a prosperidade do mau e a desgraça que às vezes recai sobre o homem
de bem. Sabemos agora — graças às novas luzes que o Senhor teve a bondade
de nos conceder — que a tua justiça sempre se realiza e não falta a ninguém;
que a prosperidade material do mau é efêmera como a sua existência corporal
e que terá terríveis consequências, ao passo que a alegria reservada àquele
que sofre com resignação será eterna. (Cap. V, itens 7, 9, 12, 18.)
V. Perdoe nossas dívidas assim como nós perdoamos aqueles que nos
devem. Perdoe nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos
têm ofendido.
Cada uma de nossas infrações às tuas leis, Senhor, é uma ofensa contra ti
e uma dívida contraída que cedo ou tarde precisaremos quitar. Nós pedimos à
tua infinita misericórdia a remissão dessa dívida, sob a promessa de fazermos
346 – Allan Kardec
Reuniões espíritas
4. Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome,
ali estou eu no meio deles. (São Mateus, 18: 20)
5. PREFÁCIO. Estar reunido em nome de Jesus não quer dizer que seja suficiente estar
reunido materialmente, mas que é preciso estar reunido espiritualmente, pela
comunhão de intenção e de pensamentos para o bem. Sendo assim, Jesus se faz
presente na assembleia — ele mesmo ou os Espíritos puros que o representam. O
Espiritismo nos faz compreender como os Espíritos podem estar entre nós; eles se
apresentam com o seu corpo fluídico, ou espiritual,46 e com a aparência que nos
permitiria reconhecê-los, se eles se tornassem visíveis. Quanto mais eles forem
elevados na hierarquia espiritual maior é o poder de irradiação deles; é assim que eles
possuem o dom da ubiquidade e que podem ser encontrados em vários lugares
simultaneamente: para isso, basta um raio de seu pensamento.
Por essas palavras, Jesus quis mostrar o efeito da união e da fraternidade; o que
o atrai não é o maior ou menor número, porque em vez de duas ou três pessoas ele
poderia ter dito dez ou vinte: o que atrai a presença de Jesus é o sentimento de
caridade de um para com os outros que motive a todos. Ora, para isso, basta que ali
haja duas pessoas; porém, se essas duas pessoas oram cada uma por seu lado, embora
elas se dirijam a Jesus, não há entre elas uma comunhão de pensamentos, sobretudo
se não forem motivadas por um sentimento de benevolência mútua; caso elas se
olhem com má intenção, com ódio, inveja ou ciúme, até as correntes fluídicas de seus
pensamentos se rejeitam, ao invés de se unirem num impulso comum de simpatia, e
então elas não estarão reunidas em nome de Jesus; assim, Jesus não passa de um
46 Também conhecido na literatura espírita como Perispírito. — N. T.
349 – O Evangelho segundo o Espiritismo
pretexto para a reunião, e não o seu motivo verdadeiro. (Cap. XXVII, item 9.)
Isto não significa que ele seja surdo à voz de uma única pessoa; se ele não disse
“Eu irei a qualquer um que me chamar”, é porque ele exige antes de tudo o amor ao
próximo — do qual podemos dar mais provas quando estamos entre muitos do que
no isolamento — e porque todo sentimento pessoal o afasta. Daí segue que, se numa
assembleia numerosa, somente duas ou três pessoas se unem de coração pelo
sentimento de uma verdadeira caridade, enquanto as outras se isolam e se
concentram em pensamentos egoísticos ou mundanos, Jesus estará com aquelas duas
pessoas e não com as outras. Logo, não é a simultaneidade das palavras, dos cânticos
ou dos atos exteriores que constitui a reunião em nome de Jesus, mas a comunhão de
pensamentos concordantes com o espírito de caridade personificado em Jesus. (Cap.
X, itens 7 e 8; cap. XXVII, itens 2, 3, 4.)
Tal deve ser o caráter das reuniões espíritas sérias, daquelas em que
sinceramente se deseja o auxílio dos bons Espíritos.
7. (Para o fim da reunião.) — Nós agradecemos aos bons Espíritos que vieram
de boa vontade se comunicar conosco; rogamos que nos ajudem a pôr em
prática as instruções que nos deram, para fazer que cada um de nós, ao sair
daqui, sinta-se fortalecido na prática do bem e do amor ao próximo.
Desejamos igualmente que essas instruções sejam proveitosas aos
Espíritos sofredores, ignorantes ou viciosos que puderam assistir a esta
reunião e para os quais nós imploramos a misericórdia de Deus.
Para os médiuns
9. PREFÁCIO. O Senhor quis que a luz se fizesse para todos os homens e que a voz dos
Espíritos penetrasse em toda parte, a fim de que cada um pudesse adquirir a prova da
imortalidade. É com essa finalidade que os Espíritos se manifestam hoje em todos os
pontos da Terra, e a mediunidade que se revela — nas pessoas de todas as idades e de
todas as condições, homens e mulheres, crianças e idosos — é um dos sinais do
cumprimento dos tempos preditos.
Para conhecer as coisas do mundo visível e descobrir os segredos da natureza
material, Deus deu ao homem a vista do corpo, os sentidos e os instrumentos
especiais; com o telescópio ele mergulha seus olhares nas profundezas do espaço e,
com o microscópio, descobriu o mundo dos infinitamente pequenos. Para penetrar no
mundo invisível, Deus lhe deu a mediunidade.
Os médiuns são os intérpretes encarregados de transmitir aos homens os
ensinamentos dos Espíritos; ou, melhor, os médiuns são os órgãos materiais pelos
quais os Espíritos se expressam para se tornarem inteligíveis aos homens. A
missão deles é santa, pois tem como objetivo abrir os horizontes da vida eterna.
351 – O Evangelho segundo o Espiritismo
faculdade que não lhe pertence, já que ela pode ser retirada dele, atribui a Deus as
boas coisas que obtém. Se as suas comunicações merecem elogios, ele não se
envaidece com isso, porque ele sabe que elas independem do seu valor pessoal, e
então ele agradece a Deus por ter permitido que os bons Espíritos viessem se
manifestar através dele. Se as comunicações derem motivo à crítica, o médium não se
ofenderá com isso, porque elas não são obra do seu próprio Espírito; ele dirá a si
mesmo que não foi um bom instrumento e que ele não possui todas as qualidades
necessárias para se opor à intromissão dos maus Espíritos. É por isso que ele procura
adquirir essas qualidades, pedindo, através da prece, a força que lhe falta.
invocá-lo sob o nome de um Espírito superior qualquer pelo qual nós sentimos uma
simpatia mais particularmente.
Além do nosso anjo guardião, que é sempre um Espírito superior, nós temos
Espíritos protetores que, por serem menos elevados, nem por isso deixam de ser bons
e benevolentes; são eles: os parentes, os amigos ou algumas vezes pessoas que não
conhecemos na nossa existência atual. Eles nos assistem com seus conselhos e muitas
vezes com suas intervenções nos atos da nossa vida.
Os Espíritos simpáticos são aqueles que se ligam a nós por uma certa
semelhança de gostos e de tendências; eles podem ser bons ou maus, de acordo com a
natureza das inclinações que os atraem até nós.
Os Espíritos sedutores se esforçam para nos desviar do caminho do bem,
sugerindo-nos maus pensamentos. Eles se aproveitam de todas as nossas fraquezas,
como de outras tantas portas abertas que lhes dão acesso à nossa alma. Alguns deles
se agarram a nós como a uma presa, mas eles se afastam quando reconhecem sua
impotência para lutar contra a nossa vontade.
Deus nos deu um guia principal e superior em nosso anjo guardião, e guias
secundários em nossos Espíritos protetores e familiares; mas seria um erro achar que
temos forçosamente um mau gênio posto ao nosso lado para contrabalançar as boas
influências. Os maus Espíritos vêm voluntariamente, quando eles encontram algum
domínio sobre nós — pela nossa fraqueza ou pela nossa negligência em seguirmos as
inspirações dos bons Espíritos. portanto, somos nós que os atraímos. Daí resulta que
nós jamais estamos privados da assistência dos bons Espíritos e que depende de nós o
afastamento dos maus. Por suas imperfeições, sendo o homem a causa primeira das
misérias que o afligem, quase sempre ele é o seu próprio mau gênio. (Cap. V, item 4.)
A prece aos anjos guardiões e aos Espíritos protetores deve ter por finalidade
solicitar a intercessão deles junto a Deus, pedindo-lhes a força para resistir às más
sugestões e a assistência deles nas necessidades da vida.
13. (Outra) — Meu Deus, permita que os bons Espíritos que me cercam
venham em meu auxílio quando eu estiver em dificuldade, e que me
sustentem se eu fraquejar. Faça, Senhor, com que eles me inspirem a fé, a
confiança e a caridade; que eles sejam para mim um apoio, uma esperança e
uma prova da tua misericórdia. Faça, enfim, com que eu encontre perto deles
a força que me falta nos desafios da vida e, para resistir às sugestões do mal, a
fé que salva e o amor que consola.
15. Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, porque vocês limpam por fora
o copo e o prato, mas que, por dentro, estão cheios de ganância e de
impurezas. Fariseus cegos, limpem primeiramente o interior do copo e do
prato, a fim de que o exterior também esteja limpo. Ai de vocês, escribas e
fariseus hipócritas, que se assemelham a sepulcros caiados, que por fora
parecem belos aos olhos dos homens, mas que, por dentro, estão cheios de
toda espécie de podridão. Assim, exteriormente vocês parecem justos aos
olhos dos homens, mas interiormente vocês estão cheios de hipocrisia e de
iniquidades. (São Mateus, 23: 25 a 28)
355 – O Evangelho segundo o Espiritismo
16. PREFÁCIO. Os maus Espíritos só vão aonde eles podem satisfazer a sua própria
perversidade; para afastá-los, não basta pedir ou até mesmo lhes mandar embora: é
preciso que exclui em si mesmo aquilo que os atrai. Os maus Espíritos farejam as
feridas da alma como as moscas farejam as feridas do corpo; do mesmo modo que
você limpa o corpo para evitar a contaminação pelos vermes, você também deve
limpar a alma de suas impurezas para evitar os maus Espíritos. Já que nós vivemos
num mundo onde pululam maus Espíritos, as boas qualidades do coração nem sempre
nos colocam a salvo das tentativas deles, mas elas nos dão a força para resistirmos a
esses maus Espíritos.
21. PRECE. — Deus Todo-Poderoso, não me deixe cair na tentação de falir que
eu tenho. Espíritos benevolentes que me protegem, afastem de mim esse mau
pensamento e me dê a força para resistir à sugestão do mal. Se eu cair, eu
merecerei expiar a minha falta nesta vida e na outra, porque eu sou livre para
escolher.
22. PREFÁCIO. Aquele que resistiu a uma tentação deve isso à assistência dos bons
Espíritos dos quais ele ouviu a voz. Ele deve agradecer a Deus e ao seu anjo guardião.
23. PRECE. — Meu Deus, eu te agradeço por haver permitido sair vitorioso da
luta que acabo de sustentar contra o mal; faça com que essa vitória me dê a
força para resistir a novas tentações.
E a ti, meu anjo guardião, agradeço a tua assistência; que a minha
submissão aos teus conselhos me faça de novo merecedor da tua proteção!
26. PREFÁCIO. Podemos pedir a Deus favores terrenos e ele pode concedê-los, quando
eles tiverem uma finalidade útil e séria; mas como nós julgamos a utilidade das coisas
conforme o nosso ponto de vista e como a nossa vista está limitada ao presente, nem
sempre nós vemos o lado mau do que desejamos. Deus, que vê melhor do que nós e
que só quer o nosso bem, pode então negar nosso pedido, como um pai nega ao filho
aquilo que lhe poderia ser prejudicial. Se o que pedimos não nos for concedido, não
devemos desanimar por causa disso; devemos, ao contrário, pensar que a privação
daquilo que desejamos nos é imposta como uma prova ou como expiação, e que a
nossa recompensa será proporcional à resignação com a qual tivermos suportado.
(Cap. XXVII, item 6; cap. II, itens 5 a 7.)
olhos, que os bons Espíritos que executam as tuas vontades venham em meu
auxílio para a sua realização.
O que quer que aconteça, meu Deus, que a tua vontade seja feita. Se meus
desejos não forem atendidos, é que está nos teus desígnios me testar, e eu me
submeto sem queixas. Faça com que eu não desanime por causa disso, e que
nem a minha fé nem a minha resignação sofram qualquer abalo.
(Formular o pedido.)
29. PRECE. — Deus infinitamente bom, que o teu nome seja bendito pelas
bênçãos que me tem concedido; seria indigno de minha parte delas se eu as
360 – Allan Kardec
31. PRECE. — Meu Deus, que é soberanamente justo: todo sofrimento neste
mundo há de ter então sua causa e sua utilidade. Eu aceito a causa da aflição
que acabo de experimentar como uma expiação das minhas faltas passadas e
como uma prova para o futuro.
Bons Espíritos que me protegem, deem-me a força para suportá-la sem
murmúrio; façam com que isso me seja uma advertência positiva; que faça
crescer a minha experiência; que combata em mim o orgulho, a ambição, a
tola vaidade e o egoísmo, contribuindo assim para o meu adiantamento.
a luz se faça bastante viva em minha mente para que eu aprecie toda a
extensão de um amor que me aflige porque quer me salvar. Submeto-me com
resignação, ó meu Deus. Ah, mas a criatura é tão fraca que, se o Senhor não me
amparar, eu temo sucumbir. Não me abandone, Senhor, pois sem ti eu não
consigo nada.
33. (Outra) — Elevei meu olhar a ti, ó Eterno, e me senti fortalecido. O Senhor
é a minha força, não me abandone! Ó meu Deus, sinto-me esmagado sob o
peso das minhas iniquidades! Ajude-me! O Senhor conhece as fraquezas da
minha carne, não desvie de mim o teu olhar!
Sou devorado por uma sede ardente; faça brotar a fonte da água viva e
eu serei saciado. Que a minha boca não se abra senão para entoar os teus
louvores, e não para me reclamar das aflições da minha vida. Sou fraco,
Senhor, mas o teu amor me sustentará.
Ó Eterno, o único que é grande, o único que é o propósito e a finalidade
da minha vida. Bendito seja o teu nome quando me ferir, pois o Senhor é o
Mestre e eu sou o servo infiel; eu curvarei minha fronte sem me lastimar, pois
só o Senhor é grandioso, só o Senhor é objetivo.
37. PRECE. — Meu Deus e meu anjo guardião, eu lhes agradeço o socorro que
me enviaram diante do perigo que me ameaçou. Que esse perigo seja para
mim uma advertência e que me esclareça sobre as faltas que possam tê-lo
atraído a mim. Eu compreendo, Senhor, que a minha vida está em tuas mãos e
que o Senhor pode tirá-la de mim quando te aprouver. Inspire-me, através
dos bons Espíritos que me assistem, o pensamento de empregar utilmente o
tempo que ainda me concedeu neste mundo.
Meu anjo guardião, ampare-me na resolução que eu tomo de reparar os
meus erros e de fazer todo o bem que esteja ao meu alcance, a fim de chegar
menos carregado de imperfeições no mundo dos Espíritos, quando Deus
quiser me chamar para lá.
juntar a ele nos curtos instantes que lhe são concedidos, e ao acordar ele vai se sentir
mais forte contra o mal, mais corajoso diante da adversidade.
39. PRECE. — Minha alma vai se encontrar por um instante com os outros
Espíritos. Que aqueles que sejam bons venham me ajudar com seus conselhos.
Meu anjo guardião, faça com que no meu despertar eu conserve desse
encontro uma impressão durável e aproveitável.
41. PRECE. — Meu Deus, eu creio em ti e na tua bondade infinita; eis por que
não posso crer que o Senhor tenha dado ao homem a inteligência para te
conhecer e nem a aspiração pelo futuro para mergulhá-la no nada.
Acredito que o meu corpo é apenas o envoltório perecível da minha alma
e que, quando eu tiver deixado de viver, acordarei no mundo dos Espíritos.
Deus Todo-Poderoso, eu sinto se romperem os laços que unem minha
alma ao meu corpo, e logo vou ter que prestar contas da utilização da vida que
vou deixar.
Vou sofrer as consequências do bem e do mal que fiz; lá, não há mais
ilusões nem subterfúgios possíveis: todo o meu passado vai se desenrolar
diante de mim e eu serei julgado segundo as minhas obras.
Nada levarei dos bens terrenos; honras, riquezas, satisfações da vaidade
e do orgulho, enfim tudo que diz respeito ao corpo vai ficar neste mundo; nem
a mínima parcela me acompanhará, e nada disso tudo será de utilidade
alguma para mim no mundo dos Espíritos. Levarei comigo somente o que diz
respeito à alma, isto é, as boas e as más qualidades, que serão pesadas na
364 – Allan Kardec
44. PREFÁCIO. Aquele que não é dominado pelo egoísmo se alegra com o bem que
acontece ao seu próximo, mesmo quando não o tiver solicitado pela prece.
45. PRECE. — Meu Deus, bendito seja pela felicidade que ocorreu com... [nome
do favorecido]
366 – Allan Kardec
Bons Espíritos, façam com que ele veja nisso um efeito da bondade de
Deus. Se o bem que lhe aconteceu for uma prova, inspirem nessa pessoa a
ideia de fazer um bom uso desse benefício e de não se envaidecer disso, para
que esse bem não se transforme para ele em prejuízo no futuro.
A ti, meu bom gênio que me protege e que deseja a minha felicidade,
afasta do meu pensamento todo sentimento de inveja ou de ciúme.
46. PREFÁCIO. Jesus disse: Amem até os seus inimigos. Este preceito é o ponto
sublime da caridade cristã; mas, com isso, Jesus não pretende que devamos ter para
com os nossos inimigos o carinho que nós temos para com os amigos; por essas
palavras ele nos diz para esquecermos as suas ofensas, para lhes perdoarmos o mal
que eles nos fazem, para lhes pagarmos o mal com o bem. Além do mérito que disso
resulta aos olhos de Deus, isso é mostrar aos olhos dos homens a verdadeira
superioridade. (Cap. XII, itens 3 e 4.)
47. PRECE. — Meu Deus, eu concedo o perdão a... [nome do favorecido] pelo mal
que ele me fez e pelo que ele me quis fazer, assim como desejo que o Senhor
me perdoe e ele também me perdoe os erros que eu possa ter cometido. Se o
Senhor o colocou no meu caminho como uma provação para mim, que a sua
vontade seja feita.
Desvia de mim, ó meu Deus, a ideia de o maldizer e de qualquer desejo
malévolo contra ele. Faça com que eu jamais experimente uma satisfação com
as desgraças que possam lhe ocorrer, nem qualquer tristeza com as bênçãos
que lhe possam ser concedidas, a fim de não contaminar minha alma com
pensamentos indignos de um cristão.
Que a tua bondade, Senhor, possa se estender a ele, levando-o a
melhores sentimentos para comigo!
Bons Espíritos, inspirem-me o esquecimento do mal e a lembrança do
bem. Que nem o ódio, nem o rancor, nem o desejo de lhe retribuir o mal com
outro mal jamais entrem no meu coração, porque o ódio e a vingança só
pertencem aos maus Espíritos — encarnados ou desencarnados! Que, ao
contrário, eu esteja pronto para lhe estender uma mão fraterna, a lhe pagar o
367 – O Evangelho segundo o Espiritismo
49. PRECE. — Meu Deus, na tua justiça, o Senhor achou por bem encher de
alegria o coração de... [nome do favorecido]. Agradeço-te por ele, apesar do mal
que ele me fez ou tem procurado me fazer. Se ele se aproveitasse desse bem
para me humilhar, eu receberia isso como uma prova para a minha caridade.
Bons Espíritos que me protegem, não permitam que conceba isso com
qualquer pesar; afastem de mim a inveja e o ciúme que rebaixam, mas ao
contrário, inspirem-me a generosidade que eleva. A humilhação está no mal, e
não no bem, e nós sabemos que cedo ou tarde a justiça será feita a cada um
segundo as suas obras.
alma; antes, porém, temam aquele que pode perder a alma e o corpo no
inferno. (São Mateus, 10: 28)
sua coragem, pela sua resignação e pela sua perseverança que Deus os reconhecerá
entre os seus servos fiéis, dos quais hoje ele conta para dar a cada um a parte que
lhe toca, segundo suas obras.
A exemplo dos primeiros cristãos, tenham a satisfação de carregar a sua cruz.
Creiam na palavra do Cristo, que disse: “Bem-aventurados aqueles que sofrem
perseguição por causa da justiça, porque o reino dos céus pertence a deles. Não
temam os que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. Ele também disse:
“Amem os seus inimigos, façam o bem aos que fazem o mal a vocês e orem pelos
que os perseguem”. Mostrem que vocês são seus verdadeiros discípulos e que a
doutrina de vocês é boa, fazendo aquilo que o Cristo disse e o que ele mesmo fez.
A perseguição será só por um tempo; então, esperem com paciência o
despertar da aurora, porque a estrela da manhã já se levanta no horizonte. (Cap.
XXIV, itens 13 e seguintes.)
52. PRECE. — Senhor, que mandou nos dizer pela boca de Jesus, o teu Messias:
“Bem-aventurados aqueles que sofrem perseguição por causa da justiça;
perdoem seus inimigos; orem pelos que perseguem vocês.” E ele mesmo nos
mostrou o caminho, orando pelos seus carrascos.
Pelo exemplo dele, meu Deus, nós pedimos a tua misericórdia para os
que desprezam os teus divinos preceitos, os únicos que podem assegurar a
paz neste mundo e no outro. Assim como o Cristo, nós te dizemos: “Perdoem-
lhes, meu Pai, porque eles não sabem o que fazem.”
Conceda-nos a força para suportar com paciência e resignação — como
provações para nossa fé e nossa humildade — as zombarias, as injúrias, as
calúnias e as perseguições dos nossos inimigos; afaste-nos de toda ideia de
represália, pois a hora da tua justiça soará para todos, e nós esperamos por
isso, submetendo-nos à tua santa vontade.
53. PREFÁCIO. Os Espíritos não chegam à perfeição senão depois de terem passado
pelas provas da vida corpórea; aqueles que estão na erraticidade aguardam que Deus
lhes permita retomar uma existência que deva lhes fornecer um meio de progresso —
seja pela expiação de suas faltas passadas através das vicissitudes às quais estão
sujeitos, seja desempenhando uma missão útil à humanidade. O seu avanço e a sua
370 – Allan Kardec
felicidade futura serão proporcionais à maneira pela qual eles tenham empregado o
tempo que deviam passar na Terra. A tarefa de guiar os seus primeiros passos e de os
dirigir para o bem foi confiado a seus pais, que responderão diante de Deus pela
maneira como tiverem cumprido seu mandato. Foi para facilitar a execução dessa
tarefa que Deus fez do amor paterno e do amor filial uma lei da natureza — lei que
jamais é transgredida impunemente.
54. PRECE. (Dos pais) Espírito que está encarnado no corpo do nosso filho,
seja bem-vindo entre nós. Bendito seja Deus Todo-Poderoso, que o enviou
para nós.
Este filho é um depósito que nos foi confiado e do qual deveremos
prestar contas um dia. Se ele pertence à nova geração de bons Espíritos que
devem povoar a Terra, obrigado, ó meu Deus, por essa graça! Se é uma alma
imperfeita, nosso dever é o de ajudá-lo a progredir no caminho do bem
através dos nossos conselhos e dos bons exemplos; se ele cair no mal por
nossa culpa, responderemos por isso diante de ti, já que não teremos
realizado nossa missão para com ele.
Senhor, ajude-nos em nossa tarefa e nos dê a força e a vontade de
cumpri-la. Se esta criança deve ser uma causa de provações para nós, que a
tua vontade seja feita!
Bons Espíritos que vieram presidir ao seu nascimento e que devem
acompanhá-lo durante a vida, não o abandonem. Afastem dele os maus
Espíritos que tentem induzi-lo ao mal; deem-lhe a força para resistir às
sugestões dos maus Espíritos, e a coragem para sofrer com paciência e
resignação as provas que o esperam na Terra. (Cap. XIV, item 9.)
56. (Outra) — Deus boníssimo, já que permitiu ao Espírito desta criança vir
novamente passar pelas provas terrenas destinadas a fazê-lo progredir,
371 – O Evangelho segundo o Espiritismo
conceda-lhe a luz para que ele aprenda a te conhecer, amar e adorar. Faça,
pela tua onipotência, com que essa alma se regenere na fonte das tuas divinas
instruções; que, sob a égide do seu anjo guardião, a inteligência dele cresça,
desenvolva-se e o faça desejar se aproximar cada vez mais de ti; que a ciência
do Espiritismo seja a luz brilhante que o esclareça através das dificuldades da
vida; que, enfim, ele saiba apreciar toda a extensão do teu amor, que nos testa
para nos purificar.
Senhor, lança um olhar paternal sobre a família à qual foi confiada essa
alma; que ela possa compreender a importância da sua missão e faça
germinar nessa criança as boas sementes, até o dia em que ela possa, por suas
próprias aspirações, elevar-se sozinha para ti.
Digna-te, ó meu Deus, de atender esta humilde prece, em nome e pelos
méritos d’Aquele que disse: “Deixem vir a mim as criancinhas, porque o reino
dos céus é para aqueles que se assemelham a elas.”
Por um agonizante
57. PREFÁCIO. A agonia é o prelúdio da separação da alma e do corpo; podemos dizer
que nesse momento o homem não tem mais do que um pé neste mundo e que tem um
pé no outro mundo. Algumas vezes essa passagem é penosa para aqueles que se
apegaram à matéria e viveram mais para os bens deste mundo do que para os do
outro, ou em quem a consciência está agitada pelas lamentações e remorsos. Por
outro lado, para aqueles cujos pensamentos se elevaram rumo ao infinito e se
desprenderam da matéria, então os laços são menos difíceis de romper e os seus
derradeiros momentos não têm nada de dolorosos; assim, a alma só fica ligada ao
corpo por um fio, enquanto no outro caso ela se prende ao corpo por raízes
profundas. Em todos os casos, a prece exerce uma ação poderosa sobre o trabalho de
separação. (Veja adiante, Preces pelos enfermos, e em O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. I
A passagem.)
58. PRECE. — Deus poderoso e misericordioso, eis aqui uma que está
deixando o seu envoltório terreno para retornar ao mundo dos Espíritos, sua
verdadeira pátria; que ela possa voltar em paz e que a tua misericórdia se
estenda até ela.’
372 – Allan Kardec
59. PREFÁCIO. As preces pelos Espíritos que acabam de deixar a Terra não têm por
objetivo somente lhes dar um testemunho de simpatia, mas também tem por efeito
ajudar no desprendimento deles e, desse modo, abreviar a perturbação que sempre se
segue a separação, e para tornar o seu despertar mais calmo. Mais ainda aí, como em
qualquer outra circunstância, a eficácia da prece está na sinceridade do pensamento, e
não na abundância de palavras ditas com maior ou menor pompa, e nas quais, na
maioria das vezes, o coração não tem participação nenhuma.
As preces que partem do coração ressoam em torno do Espírito, cujas ideias
ainda estão confusas, como as vozes amigas que vem nos tirar do sono. (Cap. XXVII,
item 10.)
ele possa ter cometido, assim como o desejo que lhe seja permitido de as
reparar, para acelerar o seu progresso rumo à vida eterna bem-aventurada.
[Nome do favorecido], você acaba de entrar novamente no mundo dos
Espíritos e, no entanto, continua aqui presente entre nós; você nos vê e nos
escuta, pois não há nada a menos entre você e nós do que um corpo perecível,
que você acaba de deixar e que em breve será reduzido a pó.
Você deixou o envoltório grosseiro, sujeito às vicissitudes e à morte, e já
conserva mais do que o envoltório etéreo, imperecível e inacessível aos
sofrimentos. Se não vive pelo corpo, então vive a vida dos Espíritos, e essa
vida é isenta das misérias que afligem a humanidade.
Você não tem mais o véu que encobre aos nossos olhos os esplendores
da vida futura; você pode então, de agora em diante, contemplar novas
maravilhas, ao passo que nós ainda continuamos mergulhados nas trevas.
Você vai percorrer o espaço e visitar os mundos em completa liberdade,
enquanto nós rastejamos penosamente na Terra, onde o nosso corpo material
nos retém, sendo para nós semelhante a um fardo pesado.
O horizonte do infinito vai se desenrolar diante de ti, e na presença de
tanta grandeza, você compreenderá a vaidade dos nossos desejos terrenos,
das nossas ambições mundanas e dos prazeres fúteis de que os homens fazem
seus deleites.
Para os homens, a morte não passa de uma separação material de alguns
instantes. Do lugar de exílio onde a vontade de Deus ainda nos retém, assim
como os deveres que temos a cumprir neste mundo, nós te seguiremos pelo
pensamento até o momento em que nos for permitido nos juntar a ti, como
agora você está se juntando àqueles que te precederam.
Se nós não podemos ir até você, você pode vir até nós. Venha, então,
entre os que te amam e que você amou; ajude-os nas provas da vida; vele
pelos que te são caros; proteja-os conforme puder e suavize os seus pesares,
pelo pensamento de que você é mais feliz agora, e pela consoladora certeza de
que eles um dia estarão reunidos contigo num mundo melhor.
No mundo onde você está, todos os ressentimentos terrestres devem se
extinguir. Que agora você possa, para a sua felicidade futura, estar inacessível
a esses ressentimentos! Por isso, perdoe aqueles que possam ter feito algo de
374 – Allan Kardec
errado contra você, como eles te perdoam por você ter feito algo contra eles.
47 Esta oração foi ditada a uma médium de Bordeaux no momento em que passava em frente às suas
janelas o cortejo de um desconhecido.
375 – O Evangelho segundo o Espiritismo
66. (Outra) — Nós te pedimos, Senhor, que derrame as graças do teu amor e
da tua misericórdia sobre todos que sofrem — seja no espaço como Espíritos
errantes, seja entre nós como Espíritos encarnados. Tenha piedade das nossas
fraquezas. O Senhor nos fez falíveis, mas nos deste a força para resistir ao mal
e vencê-lo; que a tua misericórdia se estenda sobre todos aqueles que não
puderam resistir aos maus pendores e que ainda estão seduzidos pelos maus
caminhos. Que os bons Espíritos os envolvam; que a tua luz brilhe aos olhos
deles e que, atraídos pelo calor vivificante, eles venham se prostar aos teus
pés — estando eles humildes, arrependidos e submissos.
Nós te pedimos também, Pai de misericórdia, por aqueles nossos irmãos
que não tiveram a força para suportar suas provas terrenas. O Senhor nos deu
um fardo a carregar e não devemos depositá-lo senão a teus pés; mas a nossa
fraqueza é grande e algumas vezes nos falta a coragem durante a jornada.
Tenha piedade desses servos indolentes que abandonaram a obra antes da
hora; que a tua justiça os poupe e permita aos bons Espíritos lhes trazerem o
alívio, as consolações e a esperança no futuro. A perspectiva do perdão é
fortificante para a alma; mostre-a, Senhor, aos culpados que se desesperam e,
sustentados por essa esperança, eles haurirão forças na própria grandeza de
suas faltas e de seus sofrimentos, para resgatarem o passado e se prepararem
para conquistar o futuro.
68. PRECE. — Senhor, foi do teu agrado chamar antes de mim a alma de...
[nome do favorecido]. Eu perdoo este irmão pelo mal que ele me fez e suas más
intenções a meu respeito; que ele possa se arrepender disso, agora que ele
não tem mais as ilusões deste mundo.
378 – Allan Kardec
Que a tua misericórdia, meu Deus, se estenda até ele e afaste de mim o
pensamento de me alegrar com a sua morte. Se cometi erros contra ele, que
ele me perdoe por isso, como eu esqueço o que ele tenha feito contra mim.
Por um criminoso
69. PREFÁCIO. Se a eficácia das preces fosse proporcional à duração delas, as mais
longas deveriam ficar reservadas para os mais culpados, porque eles têm mais
necessidade delas do que aqueles que viveram santamente. Recusá-las aos criminosos
é faltar com a caridade e ignorar a misericórdia de Deus; julgá-las inúteis só porque
um homem tenha praticado esse ou aquele erro, é prejulgar a justiça do Altíssimo.
70. PRECE. Senhor, Deus de misericórdia, não repulse esse criminoso que
acaba de deixar a Terra; a justiça dos homens pôde castigá-lo, mas ela não o
livrou da tua justiça, caso o coração dele não tenha sido tocado pelo remorso.
Tira a venda que esconde nele a gravidade das suas faltas; que o seu
arrependimento possa encontrar graça diante de ti e suavizar os sofrimentos
de sua alma! Que as nossas preces e a intercessão dos bons Espíritos também
possam levar até ele a esperança e a consolação, inspirar-lhe o desejo de
reparar suas ações más numa nova existência e lhe dar a força para não
sucumbir nas novas lutas que ele empreenderá!
Senhor, tenha piedade dele!
Por um suicida
71. PREFÁCIO. O homem jamais tem o direito de dar fim à sua própria vida, porque
somente a Deus cabe retirá-lo do cativeiro terreno, quando ele o julgue oportuno.
Todavia, a justiça divina pode abrandar seus rigores de acordo com as circunstâncias;
mas ele reserva toda a sua severidade para com aquele que quis se subtrair das
provas da vida. O suicida é como o prisioneiro que se evade da prisão antes de
cumprir sua pena, e que, quando recapturado, é tratado mais severamente. Assim é
com o suicida, que acha que pode escapar das misérias do presente e que mergulha
em desgraças ainda maiores. (Cap. V, itens 14 e seguintes.)
72. PRECE. — Nós sabemos, ó meu Deus, a sorte reservada aos que violam as
379 – O Evangelho segundo o Espiritismo
tuas leis, abreviando voluntariamente seus dias, mas sabemos também que a
tua misericórdia é infinita: digna-te de estendê-la sobre a alma de... [nome do
favorecido]. Que as nossas preces e a tua comiseração possam atenuar a
amargura dos sofrimentos que ele está experimentando por não ter tido a
coragem de esperar o fim de suas provações!
Bons Espíritos, cuja missão é ajudar os infelizes: tomem-no sob a
proteção de vocês; inspirem-lhe o pesar da falta cometida e que essa
assistência dê a ele a força para suportar com mais resignação as novas
provas que ele terá que experimentar para reparar tal falta. Afastem dele os
maus Espíritos que possam novamente arrastá-lo para o mal e prolongar seus
sofrimentos, fazendo-o perder o fruto de suas futuras provas.
A você, cuja infelicidade o fez causa das nossas preces: que a nossa
compaixão possa amenizar a tua amargura e possa fazer que nasça em ti a
esperança de um futuro melhor! Esse futuro está nas tuas mãos; confie na
bondade de Deus, cujo seio está aberto a todos os arrependidos e só se
mantém fechado aos corações endurecidos.
Os Espíritos hipócritas quase sempre são muito inteligentes, mas não possuem
no coração nenhuma fibra sensível; nada os toca e eles simulam todos os bons
sentimentos para captar a confiança, sentindo-se felizes quando encontram tolos que
os aceitam como santos Espíritos, a quem eles podem governar à vontade. O nome de
Deus, longe de lhes inspirar o menor temor, serve a eles de máscara para cobrir suas
torpezas. No mundo invisível, como no mundo visível, os hipócritas são os seres mais
perigosos, porque eles agem na sombra, sem que ninguém desconfie deles. Eles só
têm as aparências da fé, mas não a fé sincera.
Uma vez que você tenha dado um passo no bom caminho, o resto da
estrada te parecerá fácil. Então compreenderá quanto tempo você perdeu da
tua felicidade por tua própria culpa; mas um futuro radioso e pleno de
esperança se abrirá diante de ti e te fará esquecer o teu miserável passado,
repleto de perturbação e de torturas morais, que seriam para ti o inferno, se
elas tivessem de durar eternamente. Virá o dia em que essas torturas serão de
tal modo que você desejará encerrá-las a qualquer preço; porém, quanto mais
você demorar, mais isso será difícil.
Não ache que você ficará sempre no estado em que se encontra; não,
pois isso é impossível. Você tem duas perspectivas diante de si: uma, a de
sofrer muito mais do que tem sofrido até agora; outra, a de ser feliz como os
bons Espíritos que estão em torno de ti. A primeira é inevitável se você
persistir na tua teimosia; um simples esforço da tua vontade basta para te
tirar da má situação em que está. Apresse-se, então, pois cada dia de demora é
um dia perdido para a tua felicidade.
Bons Espíritos, façam com que estas palavras encontrem acesso nessa
alma ainda atrasada, a fim de que a ajudem a se aproximar de Deus. Nós lhes
pedimos isso em nome de Jesus Cristo, que tinha tão grande poder sobre os
maus Espíritos.
78. PRECE. (Do enfermo.) — Meu Deus, que é todo justiça: a doença que o
Senhor achou por bem me enviar, eu devo tê-la merecido, pois uma aflição
nunca é sem causa. Para minha cura, entrego-me à tua infinita misericórdia;
se te agradar me restituir a saúde, bendito seja o teu santo nome; se, ao
contrário, ainda devo sofrer, que seja bendito do mesmo jeito. Submeto-me
sem murmurar aos teus divinos decretos, porque tudo que o Senhor faz só
tem por objetivo o bem das criaturas.
Faça, ó meu Deus, com que esta enfermidade seja para mim um aviso
salutar e me leve a refletir sobre mim mesmo. Aceito-a como uma expiação do
passado e como uma prova para a minha fé e a minha submissão à tua santa
vontade. (Veja a prece do item 40.)
79. PRECE. (Pelo enfermo) — Meu Deus, teus desígnios são impenetráveis e,
em tua sabedoria, achou que devia afligir... [nome do favorecido] pela
enfermidade. Eu te suplico que lance um olhar de compaixão sobre os
sofrimentos dele e digna-te de lhes pôr um término.
Bons Espíritos, ministros do Todo-Poderoso: eu lhes peço que reforcem
o meu desejo de aliviá-lo; dirijam meu pensamento a fim de que ele vá
derramar um bálsamo salutar no corpo dele e a consolação na sua alma.
Inspirem-lhe a paciência e a submissão à vontade de Deus; deem-lhe a
força para suportar suas dores com uma resignação cristã, para que ele não
perca o fruto desta provação. (Veja a prece do item 57.)
80. PRECE. (Do médium curador) — Meu Deus, se bem quiser se servir de
384 – Allan Kardec
mim, por mais indigno que eu seja, eu poderei curar esta enfermidade, se tal
for a tua vontade, porque eu tenho fé em ti. Mas sem ti, eu nada posso.
Permita aos bons Espíritos me impregnarem com o seu fluido salutar, a fim de
que eu o transmita a esse enfermo, e desvie de mim todo pensamento de
orgulho e de egoísmo que pudesse alterar a pureza desse fluido.
Pelos obsidiados
81. PREFÁCIO. A obsessão é a ação persistente que um Espírito mau exerce sobre um
indivíduo. Ela apresenta características muito diferentes, desde a simples influência
moral, sem sinais exteriores perceptíveis, até a perturbação completa do organismo e
das faculdades mentais. Ela anula todas as faculdades mediúnicas; na mediunidade
para a escrita ela se traduz pela obstinação de um Espírito em se manifestar com
exclusão de todos os outros Espíritos.
Os maus Espíritos pululam em torno da Terra, em virtude da inferioridade
moral dos seus habitantes. Sua ação malfazeja faz parte dos flagelos contra os quais a
humanidade está em luta neste mundo. A obsessão — assim como as enfermidades e
todas as tribulações da vida — deve ser considerada como prova ou expiação e aceita
como tal.
Do mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições físicas que tornam o
corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado
de uma imperfeição moral que dá acesso a um Espírito mau. A uma causa física se
opõe uma força física; a uma causa moral é preciso opor uma força moral. Para
preservar das enfermidades, fortifica-se o corpo; para se livrar da obsessão, é preciso
fortificar a alma. Daí a necessidade de trabalhar a própria melhoria, o que na maioria
das vezes é o suficiente para se desembaraçar do obsessor, sem o auxílio de outras
pessoas. Esse auxílio se torna necessário quando a obsessão degenera em subjugação
e em possessão, porque então o paciente muitas vezes perde a sua vontade e o seu
livre-arbítrio.
A obsessão é quase sempre o fato de uma vingança exercida por um Espírito e
que com mais frequência tem sua causa nas relações que o obsidiado manteve com ele
numa anterior existência. (Veja o cap. X, item 6; cap. XII, itens 5 e 6.)
Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolvido e impregnado
por um fluido pernicioso que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repulsa. É
desse fluido que é preciso desembaraçá-lo; ora, um fluido nocivo não pode ser
eliminado por outro fluido nocivo. Por uma ação idêntica à do médium curador nos
385 – O Evangelho segundo o Espiritismo
82. PRECE. (Do obsidiado) — Meu Deus, permita aos bons Espíritos me
livrarem do Espírito malfazejo que está grudado em mim. Se for uma vingança
que ele está exercendo pelos erros que outrora eu tenha feito contra ele, o
Senhor assim o permite para a minha punição, meu Deus, e eu sofro a
consequência da minha culpa. Que o meu arrependimento possa fazer com
que eu mereça o teu perdão e a minha libertação! Mas, seja qual for o motivo,
eu peço em favor dele a tua misericórdia. Digna-te de facilitar a rota do
progresso que o desviará do pensamento de praticar o mal. Que eu, de minha
parte, ao lhe retribuir o mal com o bem, possa induzi-lo a melhores
sentimentos.
Mas eu sei também, ó meu Deus, que são as minhas imperfeições que me
tornam acessível às influências dos Espíritos imperfeitos. Conceda-me a luz
necessária para reconhecer essas imperfeiçoes; combata em mim sobretudo o
orgulho que me cega a respeito dos meus defeitos.
Qual não deve ser a minha indignidade, já que um ser malfazejo pode me
dominar!
386 – Allan Kardec
Faça, ó meu Deus, com que esse golpe desferido na minha vaidade me
sirva de lição para o futuro; que ele me fortifique a resolução que eu tomo de
me depurar para a prática do bem, da caridade e da humildade, a fim de opor
daqui por diante uma barreira às más influências.
Senhor, dê-me a força para suportar essa prova com paciência e
resignação; eu compreendo que, como todas as outras provas, ela deve ajudar
o meu avanço, se eu não perder os seus frutos com as minhas lamúrias, já que
ela me proporciona uma ocasião de mostrar a minha submissão e de exercitar
a minha caridade em favor de um irmão infeliz ao lhe perdoar o mal que ele
me fez. (Cap. XII, itens 5 e 6; cap. XXVIII, itens 15 e seguintes, 46 e 47.)
sobre ele; o mal que você o tenha feito, em vez de prejudicá-lo, servirá para o
adiantamento dele, e então ele será ainda mais feliz. Assim, a tua maldade terá
sido um grande desperdício e se voltará contra você.
Deus, que é Todo-Poderoso, e os Espíritos superiores, seus delegados,
que são mais poderosos do que você, poderão finalmente pôr um fim a essa
obsessão quando eles bem quiserem, e a tua resistência se quebrará diante da
suprema autoridade. Porém, até pelo fato de Deus ser bom, ele quer te dar o
mérito de cessar essa obsessão pela tua própria vontade. É uma concessão
que te é concedida; se você não a aproveitar, então sofrerá as deploráveis
consequências disso: grandes castigos e cruéis sofrimentos te esperam, e você
será forçado a implorar piedade e as preces da tua vítima, que já te perdoa e
ora por ti, o que é um grande mérito aos olhos de Deus e apressará a
libertação dela.
Portanto, reflita enquanto ainda é tempo, pois a justiça de Deus pesará
sobre você, como sobre todos os Espíritos rebeldes. Imagine que o mal que
está praticando neste momento terá forçosamente um término, ao passo que,
se você persistir no teu endurecimento, os teus sofrimentos aumentarão
incessantemente.
Quando você estava na Terra, não achava uma estupidez sacrificar um
grande bem por uma pequena satisfação de momento? O mesmo acontece
agora que você é um Espírito. O que você ganha com o que está fazendo? O
triste prazer de atormentar alguém, o que não impede de você ser infeliz —
diga o que disser — e que te deixará mais infeliz ainda.
Ao lado disso, veja o que está perdendo; observe os bons Espíritos que te
rodeiam e pense: a sorte deles não é melhor do que a tua? A felicidade de que
eles desfrutam também será compartilhada contigo, quando você quiser. O
que é preciso fazer para isso? Implorar a Deus e fazer o bem, em vez de fazer
o mal. Eu sei que você não pode se transformar de repente, mas Deus não
exige o impossível; o que ele quer é a boa vontade. Experimenta, então, e nós
te ajudaremos. Faça com que em breve possamos dizer em teu favor a prece
pelos Espíritos arrependidos (item 73), e não mais te classificar entre os maus
Espíritos, enquanto esperamos poder contar contigo entre os bons.
(Veja também, o item 75: Preces pelos Espíritos endurecidos.)
388 – Allan Kardec
ANEXO
CITAÇÕES BÍBLICAS
www.luzespirita.org.br/peade
392 – Allan Kardec