Annie Ernoux o Acontecimento
Annie Ernoux o Acontecimento
Annie Ernoux o Acontecimento
O acontecimento
Tradução
ISADORA DE ARAÚJO PONTES
Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
Epígrafe
O acontecimento
Notas
Sobre a autora
Meu duplo desejo: que o
acontecimento se torne escrita.
E que a escrita seja acontecimento.
MICHEL LEIRIS
YŪKO TSUSHIMA
DESCI NA ESTAÇÃO BARBÈS. Como da última vez, um grupo de homens
esperava debaixo do metrô elevado. As pessoas avançavam na
calçada com sacolas rosa das lojas Tati. Peguei a avenida Magenta,
reconheci a loja Billy, com anoraques pendurados do lado de fora.
Uma mulher vinha na minha direção, usava meias pretas com
desenhos que cobriam suas pernas grossas. A rua Ambroise-Paré
estava praticamente deserta até os arredores do hospital. Segui o
longo corredor de arcos do pavilhão Élisa. Da primeira vez, eu não
tinha percebido o coreto no pátio que acompanha o corredor
envidraçado. Eu me perguntava como veria tudo isso depois,
quando fosse embora. Abri a porta 15 e subi os dois andares. Na
recepção do serviço de exames, entreguei o cartão com o meu
número. A mulher procurou numa pasta e retirou um envelope pardo
que continha alguns documentos. Estendi a mão, mas ela não me
entregou o envelope. Deixou-o sobre o balcão e me disse para
sentar e esperar ser chamada.
Na noite anterior, tinha ido ver Minha luta com umas garotas da
cidade universitária. Eu estava muito agitada e pensava sem parar
no que ia fazer no dia seguinte. Mas o filme me lembrou de algo
evidente: o sofrimento que eu ia me impor não era nada comparado
àquele vivido nos campos de concentração. Eu tirava dali coragem e
determinação. Saber que me preparava para fazer o que tantas
outras já tinham feito antes de mim também me dava forças.
Na manhã seguinte, me deitei na cama e introduzi com cuidado
a agulha de tricô no meu sexo. Eu tateava sem encontrar o colo do
útero e parava logo que sentia dor. Percebi que não conseguiria
sozinha. Minha impotência me desesperava. Eu não era capaz.
“Nada. Impossível, que droga. Estou chorando e não aguento mais.”
Houve uma dor atroz. Ela dizia “pare de gritar, querida” e “eu
preciso fazer meu trabalho”, ou talvez outras palavras que queriam
dizer a mesma coisa, a obrigação de ir até o fim. Palavras que
encontrei depois nos relatos de mulheres que abortaram
clandestinamente, como se naquele momento só pudesse haver
essas palavras de necessidade e, às vezes, compaixão.
Não sei mais quanto tempo ela demorou para introduzir a sonda.
Eu chorava. Parei de sentir dor, apenas uma sensação de peso no
ventre. Ela disse que tinha acabado, que eu não devia tocar em
nada. Tinha posto uma boa camada de algodão, caso vazasse um
pouco de água. Podia ir ao banheiro tranquilamente, andar. Em um
ou dois dias aquilo iria embora, caso contrário eu devia ligar.
Tomamos café na cozinha. Para ela também tinha sido difícil, mas
estava feito. Não lembro em que momento dei o dinheiro.
Sábado, dia 18, peguei bem cedo o trem para Paris. Fazia muito
frio, tudo estava branco. No vagão, atrás de mim, duas garotas
falavam sem parar e riam de tempos em tempos. Escutando-as, eu
me sentia sem idade.
A sra. P.-R. me recebeu com exclamações sobre o frio glacial e
me fez entrar rapidamente. Um homem estava sentado na cozinha,
mais jovem do que ela, com uma boina na cabeça. Ele não parecia
surpreso ou incomodado por me ver. Não lembro se ficou ou se foi
embora, mas deve ter dito algumas palavras, pois achei que fosse
italiano. Na mesa havia uma bacia cheia de água fumegante onde
boiava um cano fino e vermelho. Compreendi que era a nova sonda
que ela pretendia enfiar em mim. Eu não tinha visto a primeira.
Aquilo parecia uma serpente. Do lado da bacia, havia uma escova
de cabelo.
(Se eu tivesse de representar por um único quadro esse
acontecimento da minha vida, pintaria uma mesa pequena
encostada na parede, coberta de fórmica, com uma bacia esmaltada
onde flutua uma sonda vermelha. Ligeiramente à direita, uma
escova de cabelo. Não creio que exista um Ateliê da fazedora de
anjos em nenhum museu do mundo.)
(Sinto que nada vai mudar quando este livro estiver pronto.
Minha determinação, meus esforços, todo esse trabalho secreto, até
clandestino, pois ninguém desconfia que estou escrevendo sobre
isso, vai desaparecer imediatamente. Não terei mais nenhum poder
sobre meu texto, que será exposto como foi meu corpo no Hôtel-
Dieu.)
Uma única lembrança dos dias na casa dos meus pais, depois
do hospital. Estou meio recostada na cama, com a janela aberta,
lendo Gérard de Nerval, na edição da coleção 10-18. Olho minhas
pernas de meias finas pretas estendidas no sol; são as pernas de
uma outra mulher.
Não devolvi a sonda à sra. P.-R. Achava que, pelo preço que
pagara, podia evitar isso. Um dia peguei o carro dos meus pais e fui
jogá-la numa mata à beira da estrada. Mais tarde me arrependi
desse gesto.
1. Livro didático em dez volumes sobre literatura francesa da Idade Média até o século 21,
lançado em 1948 e adotado nas escolas por décadas. (N.E.)
2. “Impasse”, em francês, além de designar uma situação difícil, também é um “cul-de-sac”,
uma rua sem saída. (N.T.)
3. Cerca de 900 euros em 2022.
4. Escrever a data é para mim uma necessidade ligada à realidade do acontecimento. E é
a data que, em certo momento, para John Fitzgerald Kennedy — 22 de novembro de 1963
—, para todo mundo, separa a vida da morte. (N.A.)
5. Não tenho certeza do nome desse antiespasmódico uterino, que não é mais vendido.
(N.A.)
6. IVG, Interruption Volontaire de Grossesse [Interrupção Voluntária da Gravidez], designa
na França, desde 1975, os casos de aborto por razões não médicas. (N.T.)
7. E que eu logo reconheci em John Irving, em seu romance As regras da casa de sidra.
Sob a máscara de um personagem, ele olha as mulheres morrendo em abortos
clandestinos atrozes, depois as ajuda a abortar propriamente em uma clínica modelo ou
educa a criança que elas abandonam após o parto. É um sonho de sangue e de glória em
que ele conquista e regulamenta o poder sobre a vida e a morte das mulheres. (N.A.)
Catherine Hélie
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada
ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por
escrito da Editora Fósforo.
Ernaux, Annie
O acontecimento [livro eletrônico] / Annie Ernaux ; tradução Isadora
Pontes. -- 1. ed. -- São Paulo, SP : Fósforo, 2022.
ePub
Editora Fósforo
Rua 24 de Maio, 270/276
10o andar, salas 1 e 2 — República
01041-001 — São Paulo, SP, Brasil
Tel: (11) 3224.2055
contato@fosforoeditora.com.br
www.fosforoeditora.com.br
O lugar
Ernaux, Annie
9786589733034
72 páginas
Considerado pelo The New York Times "a bíblia de uma geração de
escritores à procura de dicas para uma prosa límpida e atrativa",
Como escrever bem é mais que um manual para jornalistas, autores
de não ficção e profissionais de texto: é uma ferramenta preciosa
para todos que se manifestam pela forma escrita, seja numa
reportagem, num livro ou num simples e-mail. Não importa o
conteúdo, há sempre uma técnica para transmiti-lo da melhor forma
possível, com graça e coerência. Levando a sério os próprios
ensinamentos — que já lhe renderam mais de 1 milhão de
exemplares vendidos —, William Zinsser alia no livro a precisão do
texto, a força do estilo e a profundidade das ideias para transmitir
aos leitores um método eficiente de lidar com as complicações da
escrita. Esta tradução se baseia na edição comemorativa dos trinta
anos do livro, revista à luz das inovações trazidas pela escrita na
internet, e contém um capítulo sobre a redação de histórias de
família e de memórias. Passadas três décadas, nove edições e
quatro atualizações desde sua primeira publicação, Como escrever
bem continua sendo uma referência incontornável, e seu espírito
permanece inalterado, com lições essenciais e perenes sobre
criação e estilo.
Compre agora e leia
Psiconautas
Leite, Marcelo
9786589733010
264 páginas