Entrelugares Do Saber Leitura Literatura

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Coleção Literatura, Leitura & Ensino – vol.

ENTRELUGARES DO SABER:
LEITURA, LITERATURA E ENSINO

TECLIN/UEPB/CNPq

1
Coleção Literatura, Leitura & Ensino

A coleção Literatura, Leitura e Ensino tem por objetivo divulgar estudos que
tratam de diferentes perspectivas teórico-metodológicas para refletir as
concepções e práticas entre literatura, leitura e ensino. Esta coleção reúne
diferentes abordagens sobre prática pedagógica da leitura literária, formação
do leitor, políticas públicas e metodologia de trabalho para o ensino de
literatura, propiciando alternativas para professores e ao público em geral
para a compreensão da função da literatura no ensino e na formação do ser
humano.

Conselho editorial

Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA)


Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB)
Prof. Dr. Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE)

Comitê científico da obra

Prof. Dr. Afrânio Mendes Catani (USP)


Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA)
Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB)
Prof. Dr. Fernando Zolin-Vesz (UFMT)
Prof. Dr. José Alberto Miranda Poza (UFPE)
Prof. Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly (Aswan University)
Profa. Dra. Maria Manuela Pinto (Universidade do Porto)
Prof. Dr. Marcelo Medeiros da Silva (UEPB)
Profa. Dra. María Isabel Pozzo (IRICE-Conicet-UNR, Argentina)
Profa. Dra. Marta Lúcia Cabrera Kfouri-Kaneoya (UNESP)
Prof. Dr. Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE)
Profa. Dra. Pricila Gunutzmann (UAM, Laureate Universities International)
Profa. Dra. Rosa Ana Martín Vegas (USAL, Espanha)
Profa. Dra. Selma de Cássia Martinelli (UNICAMP)

2
Cristiane Navarrete Tolomei
Fábio Marques de Souza
José Veranildo Lopes da Costa Junior
Nefatalin Gonçalves Neto
(Organizadores)

ENTRELUGARES DO SABER:
LEITURA, LITERATURA E ENSINO

TECLIN/UEPB/CNPq

3
Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser


reproduzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em
conta os direitos dos autores.

Cristiane Navarrete Tolomei, Fábio Marques de Souza, José Veranildo


Lopes da Costa Junior, Nefatalin Gonçalves Neto [Organizadores]

Entrelugares do saber: Leitura, Literatura e ensino. São


Paulo: Mentes Abertas, 2019, 176 p.

ISBN 978-65-80266-00-5

1. Literatura. 2. Leitura. 3. Linguagens. 4. Ensinar. 5. Aprender. I.


Título.

Capa: Lucas de França Nário Oliveira – lucas@lucasdefranca.com

Revisão:
Carla Ranzani Magatti
Élida Ferreira Lins

www.mentesabertas.com.br

2019

4
SUMÁRIO

EMBATE E VALOR: TEORIZAR NA 7


CONTEMPORANEIDADE
Nefatalin Gonçalves Neto

APRESENTAÇÃO 13
Éderson Luís da Silveira

PELO DIREITO AO ENSINO DE 21


LITERATURAS LATINO-AMERICANAS NO
BRASIL
José Veranildo Lopes da Costa Junior

TITA DE LA GARZA, REVOLUÇÕES E 39


AFETIVIDADES: REFLEXÕES SOBRE
LITERATURA E HISTÓRIA DA
ALIMENTAÇÃO NO ENSINO DE HISTÓRIA
Gabriela Borba de Lima

LENDO A OBRA DE EÇA DE QUEIRÓS PELA 51


PERSPECTIVA PSICOLÓGICA
Cristiane Navarrete Tolomei

A COESÃO E A COERÊNCIA NO 65
HIPERCONTO MULTISSEMIÓTICO “UM
ESTUDO EM VERMELHO” (2009):
IMPLICAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DO
SENTIDO
Fernanda Karyne de Oliveira
Amasile Coelho Lisbôa da Costa Sousa

5
TRAÇOS DA IDENTIDADE LINGUÍSTICO- 97
DISCURSIVA EM JOSÉ LUANDINO VIEIRA
Lilian Barbosa
Fábio Marques de Souza

LEITURA DE CORDEL NA ESCOLA: UMA 107


PERSPECTIVA MULTIMODAL
Rodrigo Nunes da Silva
Linduarte Pereira Rodrigues

NARRATIVA E TRAGICIDADE: 127


APONTAMENTOS PARA A SALA DE AULA
Marcelo Medeiros da Silva

UMA PROPOSTA DIDÁTICA PARA O 151


ENSINO DE LITERATURA MEDIADO POR
MEMES
Maria da Conceição Almeida Teixeira

SOBRE OS AUTORES 173

6
EMBATE E VALOR: TEORIZAR NA
CONTEMPORANEIDADE

Em tempos de pós-verdade e da criação de


sensacionalismos como forma de lucratividade, o
surgimento de livros que reflitam teórica e analiticamente
sobre literatura, artes, formação do conhecimento,
disseminação do saber e suas reinvenções em novos
suportes é, mais que motivo de aplauso, uma vitória para
a área de Humanidades em geral. Em um país no qual a
pesquisa é relegada a segundo plano e sua aplicabilidade
substituída por propostas ultrapassadas de formação em
um contexto no qual a tônica deixa de ser o conhecimento
amplo em favor de espaço de aprendizagem de técnicas e
modelos de trabalho, excluindo os conhecimentos não
utilitários, livros como Entrelugares do saber se tornam
peça-chave na promoção do conhecimento e da
intelectualidade.
Em um país no qual a maioria dos textos analíticos são
de uma pobreza invejável, a disseminação de conteúdos
quase impotente e o conhecimento é axilar (não é
desconhecido, nos corredores dos cursos de Letras o
famoso leitor axilar – sujeito que vive com um livro
diferente debaixo da axila a cada nova semana, mas
quando indagado sobre a leitura do texto que carrega,
possui apenas os conhecimentos disseminados pela
Wikipédia) livros que prezam menos por uma coletânea de
assuntos específicos, mas avançam na selva da
problemática para daí extrair reflexões categóricas são de
se louvar e agradecer.

7
A fim de tornar evidente minha afirmativa descrevo o
empenho que, implicitamente, Entrelugares do saber
promove – quando não, propicia. Há, em primeiro, o
cuidado do livro em não ser, como já apontamos, um
simples ajuntamento de textos de mesma função. Temos
um universo de estudos diferenciados sobre a questão do
literário em seus diversos modos de realização: cordel,
hiperconto, literatura digital, quadrinhos, memes,
literatura engajada e literatura e história. Ora, ao leitor
mais atento cumpriria logo perguntar “por que louvável
algo tão usual?”, e mais, “onde a pluralidade se todos os
textos dissertam sobre questões literárias?”. Sem rodeios,
podemos notar que, apesar do fio literário que perpassa os
artigos reunidos, cada um tem alta independência e possui
a qualidade ímpar para apontar caminhos de pesquisa e
possibilidades de inserção de novos conteúdos e
tecnologias na malfadada aula de literatura tradicional,
cujo foco se centra na história de seu desenvolvimento, no
mero conhecimento da vida dos autores e na explicação de
trechos de obras célebres. Arguto, profundo, atual, mas
sem deixar de ser acessível, Entrelugares do saber é um
verdadeiro locus de disseminação para a (in)formação
íntegra e ampla do sujeito. Em outros termos, mais que
apresentações, os artigos que formam o livro trazem a
pesquisa em seu estado latente, apresentam modos de
auxiliar o professor a desenvolver conteúdos e a
implementar avanços, ultrapassando a dicotomia
simplista professor-pesquisador. Há, nas páginas do livro,
a disposição de textos que escondem pesquisadores que
teorizaram, analisaram e trabalharam com a linguagem
em seu estado vivo de sala de aula. Sem fugir ao midiático,
ao múltiplo ou mesmo ao difícil e complexo, os

8
professores-pesquisadores se embatem com as mais novas
possibilidades para promover saberes por meio de
reflexões desveladoras frente ao impressionismo barato
que tumultua nossa educação.
Não é segredo que o conhecimento das humanidades
em geral – e a Educação em específico – vive momentos de
tensão e ataque constantes, quando não um processo de
desvalorização de proporções inimagináveis. Esse
contexto provém de uma trajetória histórica muito similar
a todos os países latino-americanos e que sustém uma
proposta final específica: industrializar o saber. E isso se
prova por meio de uma anedota conhecida contada por
Luiz Costa Lima:

O curso de Letras continuava tão desqualificado


como teria sido quando Antonio Candido se
preparava para fazer sua escolha universitária. (...)
sendo amigo de Mário de Andrade, pedira seu
conselho. Mário lhe teria respondido: não faça
Letras, porque aí você só aprenderá um pouco de
história da literatura e de gramática (Apud
BASTOS, 2010, p. 86).

Tomado o devido cuidado de não transformar o dito


em regra inquebrável, sabemos que o comum dos cursos
superiores – e não apenas de Letras – atualmente é apenas
o de depositar informações sem reflexão. Desde 2009,
quando adentrei o Ensino Superior, meu contato com as
turmas universitárias dos cursos de Letras, Pedagogia e
Administração (isso tanto no Sudeste quanto no Nordeste
do país, em universidades públicas e/ou privadas)
apresentou apenas exceções que não provinham da classe

9
média baixa ou do proletariado. Essa procura, justificam
os alunos, se dá menos por interesse na área ou vontade
de aprofundamento e muito mais pelo status que o
diploma fornece. Além do que, como ouvi de um
professor que analisava o desenvolvimento da escrita nas
universidades, a facilidade de se adquirir formação nos
cursos de Humanas incentiva os estranhos à carreira, pois o
diploma de nível superior – acreditam – facilita a ascensão
social. Por outro lado, os cursos universitários em nosso
país são formatados a partir de um modelo europeizado e
elevado obrigando o interessado a tomar duas posturas
distintas: abandonar suas identificações culturais em favor
de uma nova realidade ou simplesmente fingir ser um
sujeito familiarizado com o ambiente inócuo.
Diante de tal aridez, a contribuição original de
Entrelugares do saber ultrapassa a famosa ideia de
apresentar conceitos, optando antes pelo enfrentamento
da problemática por meio de noções e categorias abertas,
operadores que estruturam o pensamento crítico-reflexivo
de maneira dinâmica. Em outros termos, não há análise ou
crítica, mas mobilização de forças que possibilitam a
resistência ao niilismo da descrença educacional. A nova
geração de acadêmicos e pesquisadores aqui apresentada
não foge aos desafios prementes. Frente aos
conhecimentos emergentes, eles partem à luta não para
fornecer soluções, antes para promover veredas na selva
do novo e assustador.
Mas, antes que se pense que o livro apresenta receitas
e fórmulas prontas, para não escapar à oportuna metáfora,
os artigos ensinam possibilidades de sair da caverna do
desconhecimento e auxilia o leitor a alcançar a liberdade
das correntes que nos prendem longe do conhecimento em

10
construção. Contra a doxa imposta da morbidez pseudo-
sapiencial, os artigos demonstram que a compreensão não
significa apresentar uma verdade. Ao contrário, os autores
transportam o leitor a uma trajetória de articulações que
se afrouxam e permitem um sutil jogo: aprender,
apreender e aplicar em novas realidades. E, não mais que
de repente, temos que o conhecimento se apresenta e
permeia cada momento exigindo do leitor uma atitude e
suscitando-o a refletir e a criar, ele mesmo, novos
caminhos quando da aplicabilidade dos conhecimentos
tratados no livro em sala de aula. Ora, é na práxis
promovida pelos textos que maviosamente enxergamos o
tão bem vislumbrado por Guimarães Rosa: “o real não está
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no
meio da travessia” (ROSA, 1986, p. 52).
Inscritos em uma ação de longo prazo que visa
estabelecer a inteligibilidade do debate, a leitura dos
textos aqui reunidos é, antes de tudo, um ato que implica
efeitos articuladores de sentidos não-lineares e não-fixos.
Ponto caósmico de eterno retorno, os temas aqui discutidos
– ainda em estado nascente – releem o passado e
sobrecodificam nossas referências no e para o presente.
Assim, o conhecer de tais referências não implica um
partidarismo, mas tomadas de posições provisórias com
vistas à produção de visões heterogêneas, experimentação
encontrada sempre no meio. Diferente das correntes e
“logias” da moda, os artigos convidam o leitor para
adentrar uma discussão em condição de possibilidade.
Assim, se nossa sabedoria começa onde a do autor termina,
as respostas jamais poderão ser prontas, antes suscitam
um desejo: o de assumir a herança e manter a discussão
intelectiva em favor da melhoria educacional.

11
Destarte, não poderia terminar esta pequena reflexão
sem afirmar, contundentemente, que a edição dos artigos
de Entrelugares do saber precisa do leitor para enriquecer e
ampliar a discussão e os rumos da literatura em terras
brasílicas. Lançado o desafio de resistir na
intelectualidade, o livro nos convida a apropriarmo-nos
da discussão e continuá-la, quando não preservá-la viva.
Em utros termos, e para não faltar à condição metafórica,
os saberes disseminados no livro que ora segue são como
móbiles inacabados à espera de que seus construtores lhe
deem prática, uso e serventia a cada novo espaço em que
são “pendurados”.

Prof. Dr. Nefatalin Gonçalves Neto


Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)

Referências:

BASTOS, Dau (org.). Luiz Costa Lima: uma obra em questão. Rio
de Janeiro: Garamond, 2010.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão veredas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.

12
APRESENTAÇÃO

Para Antonio Candido, a literatura é um direito básico


do ser humano porque está associada (ou deveria estar) à
formação do caráter através de seu papel humanizador.
Falar em humanização quando estamos em meio a um
contexto que apregoa saudosismo aos períodos
escravagistas e ditatoriais no Brasil não é apenas uma
necessidade, é uma emergência. Mas a literatura
comumente está no rol dos campos de saber associados à
categoria de inutilidade.
As palavras não são minhas. São do italiano Nuccio
Ordine, docente de literatura italiana na Universidade de
Calabria, que publicou recentemente A utilidade do inútil
para falar de um conglomerado de saberes – nos quais
inclui a literatura – que, devido à sua natureza
desinteressadamente gratuita, por não objetivarem o lucro
mercadológico e se distanciarem de vínculos comerciais e
práticos imediatos, atuam no âmbito da educação do
espírito.
Não é à toa que o primeiro capítulo que tem aparição
neste livro se intitula “Pelo direito ao ensino de literaturas
latino-americanas no Brasil”, de autoria de José Veranildo
Lopes da Costa Júnior. Sua elaboração se deu a partir de
reflexões em torno da inclusão legal do espanhol como
língua nas escolas brasileiras e, posteriormente, da
exclusão do espanhol nas escolas bem como a partir da
criação da BNCC que resulta na uniformização do

13
currículo nacional. O direito à literatura se dá numa
urgência negada sob as vestes de uma legalidade que
resulta na subalternização da língua e da literatura
espanhola, sobretudo no âmbito latino-americano.
Vale destacar que a literatura também pode estar
presente no bojo de disciplinas como a História. É por isso
que no segundo capítulo, de autoria de Gabriela B. de
Lima, o inusitado elemento da alimentação vai emergir em
relação a uma necessidade de humanização do ensino de
História somado ao cenário da revolução mexicana que dá
contorno ao enredo de Como Água para Chocolate, de Laura
Esquivel. No livro mencionado, o elemento da história da
alimentação se destaca por causa da presença de receitas
no início de cada um dos doze capítulos associados ao
contexto mexicano e o lugar de cada receita no decorrer da
história da nação latino-americana, pois a cozinha também
é reduto da cultura de quem a pratica e dela podem ser
apreendidos costumes e a formação identitária de grupos
específicos.
O terceiro capítulo busca trazer uma abordagem
psicológica da obra de Eça de Queirós a partir de três
referenciais distintos produzidos em torno do tema em
questão. Nele, Cristiane N. Tolomei traz algumas
explicitações do universo onírico partindo da psique do
escritor mencionado associando-a à influência do
subconsciente na criação artística.
Bauman mencionou em uma entrevista anos atrás que
vivemos correndo sob uma fina camada de gelo. Se
pararmos de correr, o gelo se rompe; se ele se romper,
afundamos. Tal premissa, inspirada nos textos do poeta
estadunidense Ralph Waldo Emerson, está articulada ao
bojo das articulações teóricas relacionadas à modernidade

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líquida, cujos meandros o tornaram conhecido no campo
da sociologia. As autoras do quarto capítulo, Fernanda K.
de Oliveira e Amasile C. L. da Costa Sousa, associam a
liquidez dos tempos modernos ao advento das
Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação,
sobretudo no âmbito do desenvolvimento da internet
resultando em alterações históricas nas formas de
aprender, ler, escrever e agir na modernidade. Nesse
contexto, o meio digital é um recurso de aparição
frequente que possibilitou a reprodução e a utilização de
recursos diversos como imagens em movimento e também
o advento e a evolução da era dos hiperlinks. Assim,
somadas às transformações de leitura e escrita, surgem
novas roupagens para a configuração dos textos
produzidos. A partir do hiperconto Um estudo em
Vermelho, as autoras buscam refletir acerca da textualidade
e da incorporação dessas transformações em sala de aula
considerando o hipertexto como possibilitador de leituras
diversas e percursos múltiplos conferindo, dessa forma,
autonomia ao leitor.
José Luandino Vieira é um escritor que pode ser
considerado um dos expoentes responsáveis por auxiliar
na preservação da língua e divulgação de Angola no
exterior. Isso porque seus textos misturam a língua
portuguesa e a língua bantu. Essa escolha de estilo bilíngue
não manifesta um ineditismo aleatório, está associada ao
contexto angolano em que tais línguas são utilizadas no
cotidiano. O escritor engajado politicamente que recusou
o prêmio Camões por motivos pessoais fez mais do que
representar a língua de seu povo, pois a aparição de seus
textos na cena internacional ajuda a entender a
importância de combater o silenciamento das línguas

15
minoritárias no mundo. Por isso textos como o capítulo de
autoria de Lilian Barbosa e Fábio Marques de Souza são
necessários. Não porque buscam apenas explicitar, mas
porque ajudam a propagar e disseminar a importância da
existência de outras vozes na literatura. Desse modo, este
capítulo faz eco às vozes de escritores oriundos de lugares
subalternizados historicamente cuja voz precisa fazer coro
para ser cada vez mais escutada, refletida,
problematizada.
No capítulo escrito por Rodrigo N. da Silva e
Linduarte P. Rodrigues, temos reflexões acerca da
literatura de cordel e a perspectiva multimodal em sala de
aula. Dessa forma, o reconhecimento de elementos
extralinguísticos e as práticas educativas regionais visam
corroborar a necessidade de aperfeiçoamento linguístico
do leitor em processo de letramento escolar. O cordel é um
importante objeto cultural de representação da memória
cultural regional cujo conteúdo semântico é peculiar e cuja
escrita se aproxima da oralidade para traçar ensejos
ficcionais acerca de contextos sociais específicos.
Outrossim, a palavra, o uso da imagem, a configuração
dos espaços, a diagramação, os materiais utilizados para a
produção dos textos de literatura de cordel contribuem
para o entendimento do texto como um todo e não podem
ser negligenciados. Por isso, mais que promover o
envolvimento pela leitura, torna-se necessário que se
possibilite, no âmbito escolar, que os discentes reflitam
acerca dos contextos de produção das obras e se tornem
aptos a relacioná-los com seus próprios espaços de
(con)vivência.
Já no capítulo escrito por Marcelo Medeiros da Silva,
encontramos uma profunda provocação aos professores

16
(no sentido positivo, claro) para que possam se valer de
suas reflexões sobre a análise do conto O viúvo, de
Carolina Nabuco, em sala de aula. Ações didáticas, quebra
de padrões e propostas abertas marcam tanto a análise
quanto os passos didáticos descritos por Medeiros.
Os memes fazem parte da cultura mundial.
Recentemente, em 2017, na Universidade Federal
Fluminense, foi criado o primeiro museu de memes no
Brasil. Trata-se de um museu virtual criado no
Departamento de Cultura e Mídia da universidade que
tem os memes como objeto de pesquisa congregando
pesquisadores do país inteiro. É esse elemento que vai
estar no cerne do capítulo de Maria da Conceição A.
Teixeira que se articula à necessidade de destoar de
práticas de ensino e metodologias tradicionais puramente
informativas ou que se baseiem na reprodução de
conteúdos com respostas previamente estabelecidas.
Segundo a autora, além de castrar a aproximação entre
leitor e texto, tais metodologias não têm sido muito
produtivas. Por isso, ela vai apresentar uma proposta
didática para o ensino de literatura mediada por memes
articulando-se com a atualidade e com elementos que
fazem parte da vida dos educandos e da sociedade em
geral.
Diante disso, vale acentuar que o cenário atual não é
muito animador, pois a literatura, a história, a filosofia têm
sofrido tentativas de silenciamento que não são poucas.
Isso porque a repercussão da lógica neoliberal de lucro
relega frequentemente as atividades humanas e culturais,
em geral na contramão da “universidade empresa”, da
“escola de alunos-clientes”, ao território do inútil por se
contraporem à lógica neoliberal. Dessa forma, a ditadura

17
do lucro e do utilitarismo associa uma suposta utilidade
como adjetivo dos saberes e das ciências que resultam na
produção de benefícios materiais, nada mais distante das
Ciências Humanas, portanto.
Se nem tudo são flores, com a devida licença poética,
não podemos esquecer que também há flores que furam o
asfalto. Para além da lógica dos rendimentos monetários,
algumas ações se afirmam no sentido de reavaliar
posturas e resgatar a necessidade de exercer a busca pela
educação do espírito e pelo respeito à alteridade, ao invés
de focar na compensação material quantificável imediata,
dos estudos literários ou sobre a literatura, têm aparição
na contramão dessa lógica.
Reivindicar o bem comum, a solidariedade, o resgate
de subalternidades e a desnaturalização de saberes
eurocêntricos que resultam na massificação de outros
saberes e epistemologias são ações desafiadoras que se
instauram na contramão da corrupção causada pela busca
insaciável pelo dinheiro e poder. É esse o norteamento
que pode ser assinalado através de livros como este no
qual a literatura não agoniza, mas se torna produtiva,
retorna tal qual uma fênix ao sabor dos livros que,
conforme Italo Calvino, nunca terminaram de dizer o que
tinham para dizer. Por isso a literatura se atualiza,
sobrevive às transformações, se modifica, mostra a
produtividade de sua natureza heterogênea e, ao mesmo
tempo, assinala a necessidade de alimentar o espírito e se
contrapor aos mandos e desmandos daqueles que pautam
suas ações, discursos e (re)produções nas (tentativas) de
silenciamento das vozes que não cessaram de ressurgir em
meio ao caos. Se um galo sozinho não tece a manhã, este
livro é apresentado na intenção de unir-se a outros que

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vieram antes para inspirar os que vierem depois e lembrar
que não se pode ficar indiferente diante daquilo que nos
inspira e dá sentido à vida, humanizando-nos.

Boa leitura!

Éderson Luís Silveira


Florianópolis, 16 de fevereiro de 2019.

19
20
PELO DIREITO AO ENSINO DE LITERATURAS
LATINO-AMERICANAS NO BRASIL

José Veranildo Lopes da COSTA JUNIOR

1. PALAVRAS INICIAIS

Ao problematizar a discussão sobre o direito às


literaturas latino-americanas – e, em paralelo, a oferta do
ensino de Língua Espanhola no currículo da educação
básica – é necessário considerar três movimentos políticos
ocorridos nas últimas décadas. O primeiro destes
movimentos é a sanção da Lei 11.161, de 05 de agosto de
2005, assinada pelo então presidente Luís Inácio Lula da
Silva, que versa sobre o ensino de espanhol na educação
brasileira. O segundo movimento, é o Impeachment da
presidenta Dilma Rousseff, o qual resulta na formação de
um novo governo, caracterizado por uma agenda política
neoliberal, voltada para os interesses do mercado e dos
empresários. O terceiro movimento, resultante do
segundo, dá-se através de uma medida provisória, que
altera o currículo do ensino médio através da formulação
da Base Nacional Comum Curricular (doravante – BNCC)
e exclui a Língua Espanhola das disciplinas ofertadas pelo
currículo nacional.
Ao longo deste texto, portanto, buscamos apresentar
uma análise dos desdobramentos educacionais destes três
movimentos políticos citados anteriormente. Com isto,
nossas reflexões apontam para dois traços: I) Se antes do
Impeachment de Dilma discutíamos a construção de um
currículo multicultural, integrado e democrático, com o
governo de Michel Temer nos deparamos com um

21
currículo neoliberal, limitador e excludente; II) A retirada
do ensino de Língua Espanhola e, consequentemente, a
impossibilidade do contato com as literaturas latino-
americanas ilustra um movimento de ódio aos países da
América Latina, de rechaço ao socialismo e de
desintegração da América Latina.

2. TRÊS MOVIMENTOS POLÍTICOS

Dentre os principais acertos políticos implementados


por Luís Inácio Lula da Silva, na ocasião do seu primeiro
mandato como Presidente da República, é inegável que o
diálogo com os países da América Latina e da África
trouxeram acordos bilaterais que promoveram o
fortalecimento da economia entre os países envolvidos.
Além do mais, a parceria firmada com estes países não se
restringiu ao plano econômico, mas trouxe benesses para
o contexto educacional. Para citar dois exemplos, no seu
primeiro mandato, em 09 de janeiro de 2003, Lula
sancionou a Lei 10.639 que garante o ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e, em 05 de agosto de 2005, a Lei
11.161 que versa sobre o ensino de Espanhol é sancionada.
As duas leis em questão mostram a sensibilidade do
governo de Lula para estabelecer laços entre os países da
América Latina e da África. Concentrando nossa atenção
ao caso latino-americano, com a conhecida “Lei do
Espanhol”, presenciamos uma série de ações que
objetivavam a Integração da América Latina.
Em 2010, por exemplo, funda-se a Universidade
Federal da Integração Latino-Americana, em Foz do
Iguaçu, que tem como característica a oferta de educação
pública e de qualidade na tríplice fronteira, beneficiando

22
não apenas os brasileiros, mas a comunidade argentina e
paraguaia. Nesta mesma instituição, surgem dois
importantes Programas de Pós-Graduação: I) Integração
Contemporânea da América Latina e II) Interdisciplinar
em Estudos Latino-americanos, cujo foco é a Integração do
nosso continente.
Na Universidade de São Paulo, além do Programa de
Pós-Graduação em Letras (Língua Espanhola e Literatura
Espanhola e Hispano-americana), surge o Programa de
Pós-Graduação em Integração da América Latina, que tem
como característica a interdisciplinaridade e o diálogo
entre as Unidades Acadêmicas da USP, objetivando
fortalecer a produção de conhecimento em torno do
Pensamento Latino-Americano.
Posto um momento político de Integração da América
Latina, iniciado no primeiro mandato do governo de Lula,
nos deparamos em 2016 com o Impeachment de Dilma
Rousseff. Mesmo que tenhamos posições ideológicas
díspares, é inquestionável que a agenda política
implementada por Michel Temer, após a derrubada de
Dilma, destoa da proposta de governo eleita pelo povo.
Através de uma série de medidas provisórias e, sem
participação popular, Temer promoveu diversas ações
retrógadas.
Percebe-se, assim, uma filiação de Michel Temer aos
interesses do mundo neoliberal, mostrando-se apático ao
processo de Integração Latino-americana iniciado no
governo Lula. A formulação da Base Nacional Comum
Curricular e a retirada do ensino de Espanhol do conjunto
de disciplinas ofertadas é um exemplo de que a política de
Michel Temer se volta, portanto, para a desintegração da
América Latina.

23
O terceiro movimento político que nos interessa
discutir é a formulação da BNCC. No Brasil, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000)1 e as Orientações
Nacionais Comuns Curriculares (BRASIL, 2006) foram
instituídos, por mais de uma década, como as mais
importantes Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio. A diferença entre a BNCC e os PCNs
(BRASIL, 2000) já se institui no significado lexical dos
referidos documentos. A Base Nacional surge como um
documento que se caracteriza por três palavras
niveladoras: I) Base; II) Nacional e III) Comum, na qual
percebemos uma tentativa de uniformização do currículo
brasileiro.
Por outro lado, os PCNs (BRASIL, 2000) são tidos
como diretrizes, ou seja, como orientações aos docentes e
não como um documento uniformizador. Esta é uma
crítica pertinente quando pensamos no significado de uma
educação uniforme num país heterogêneo, como o Brasil,
marcado pela desigualdade e pelo abismo entre ricos e
pobres. Dito com outras palavras, a Base Nacional Comum
Curricular parece ser o primeiro documento que legaliza
a desigualdade educacional na história do Brasil
contemporâneo.
Neste sentido, a Base Nacional tem outra
característica importante. É o primeiro documento que
retira disciplinas do currículo do ensino médio. Com os
Parâmetros Curriculares Nacionais, presenciamos a

1 O referido documento foi escrito na década dos anos 90 e


reconhecido nacionalmente a partir da Resolução CEB Nº 03, DE
26 de junho de 1998. Neste texto, optamos por citar a data dos
documentos consultados.

24
inserção de disciplinas no currículo nacional, como a
Filosofia, a Sociologia e o Espanhol. Este movimento
transformou o currículo da escola pública numa proposta
crítica, interdisciplinar e democrática. Em contrapartida,
com a Base Nacional Comum Curricular nos deparamos
com a exclusão de disciplinas. Institui-se a Língua
Portuguesa e a Matemática como únicas disciplinas
obrigatórias. Os demais componentes curriculares
tornam-se facultativos.
Reconhecemos que a discussão que estamos
propondo neste ensaio é muito mais complexa e diz
respeito à uma série de outras variantes e interesses
políticos. Entretanto, acreditamos que estes três
movimentos políticos são fundamentais para que
possamos compreender a situação da educação brasileira
do presente e questionar o ensino de Espanhol e o direito
às literaturas latino-americanas como política de estado.

3. A LITERATURA SOB AMEAÇA

O crítico paulista Antonio Candido (2004) foi


assertivo ao estabelecer uma relação entre literatura e
direitos humanos. De acordo com o autor, esta discussão
tem um pressuposto básico: “reconhecer que aquilo que
consideramos indispensável para nós é também
indispensável para o próximo” (CANDIDO, 2004, p. 172).
Antonio Candido, além de ter se destacado no campo da
crítica literária, teve diversos trabalhos reconhecidos no
campo das ciências sociais. Como estudioso e sociólogo,
Candido observou os emaranhados da realidade brasileira
e, dentre outras contribuições, buscou democratizar o

25
acesso à literatura no Brasil. Ao refletir sobre os direitos
humanos, o eminente professor afirmou:

Na verdade, a tendência mais funda é achar que os


nossos direitos são mais urgentes que os do
próximo. Nesse ponto as pessoas são
frequentemente vítimas de uma curiosa
obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem
direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais,
como casa, comida, instrução, saúde, coisas que
ninguém bem formado admite hoje em dia que
sejam privilégio de minorias, como são no Brasil.
Mas será que pensam que o seu semelhante pobre
teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos
de Bethoven? Apesar das boas intenções no outro
setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. Ora, o
esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco
de bens que reivindicamos está na base da reflexão
sobre os direitos humanos (CANDIDO, 2004, p.
173).

A citação de Candido é atemporal quando


consideramos a conjuntura brasileira. No nosso país, a luta
de classes não está superada, muito pelo contrário, todos
os dias travamos uma batalha incessante contra as elites
que comandam o país. Neste sentido, em pouco mais de
48 meses do governo de Michel Temer, nos deparamos
com três medidas de austeridade: I) A reforma do Ensino
Médio; II) A formulação da Base Nacional Comum
Curricular e III) A proposta de reforma do Exame
Nacional do Ensino Médio, as quais não representam uma
preocupação com a melhoria educacional por parte do
governo de Michel Temer, mas configuram uma série de

26
retiradas de direitos educacionais e constituem as
primeiras ações de entrega da educação para os grandes
conglomerados educacionais do nosso país.2
Considerando esta conjuntura, tomo de empréstimo a
expressão fundada por Tzvetan Todorov (2009) para
afirmar que, no Brasil, a literatura encontra-se em perigo.
Recentemente, setores ultraconservadores da direita
brasileira decidiram discutir a educação pública (sic).
Além do grotesco episódio em que o então ministro da
Educação Mendonça Filho recebeu o ator pornô
Alexandre Frota para um debate sobre a educação pública,
soma-se a isto as propostas de criminalização da educação
pública, ilustradas por dois projetos escritos por
entusiastas da direita brasileira: I) O famigerado Escola
sem Partido e II) O projeto Ideologia de gênero. Estes dois
projetos têm um mesmo traço em comum: criminalizam a
reflexão crítica e a ação docente. Em 2016, José Ruy Lozano
publicou um artigo intitulado O que seria da literatura numa
“escola sem partido?”, no portal do jornal El país. Nas
palavras do crítico:

Para os defensores da ideia de uma “escola sem


partido”, que ameaça a educação nacional, Dom
Casmurro, obra-prima de Machado de Assis,
continuaria a ser um romance de adultério. E
Capitu, a Madame Bovary dos trópicos, a Anna
Kariênina que pudemos ter. A interpretação hoje
consagrada do narrador ambíguo e não confiável,

2 Cabe, ainda, recordar que a partir do período de


redemocratização do Brasil, nenhum governo ousou elaborar
propostas de reforma da educação por meio de medidas
provisórias, o que ilustra a falta de diálogo com a sociedade.

27
representante da elite patriarcal brasileira, que
suprime sua insegurança impondo cruel desterro à
esposa, seria considerada esquerdismo militante,
influência feminazi talvez. Para eles Capitu é
culpada, não há dúvidas (LOZANO, 2015, s/p).

O texto literário é um questionador nato da realidade


e, por isto mesmo, pode ser lido como uma simulação da
vida. Para setores conservadores, como àqueles que
militam a favor do Escola sem Partido, a literatura
incomoda porque consegue constituir-se como um retrato
fiel de quem somos. Para este setor conservador,
concordamos com Lozano (2016), Capitu sempre será
culpada, pois nesta ótica machista, a mulher sempre será
a adúltera, a puta, a filha do mundo. Discorrendo sobre as
funções do literário, Compagnon sinaliza para o poder da
literatura. Nas palavras do autor:

Uma segunda definição do poder da literatura,


surgida com o Século das Luzes e aprofundada
pelo romantismo, faz dela não mais um meio de
instruir deleitando, mas um remédio. Ela liberta o
indivíduo de sua sujeição às autoridades,
pensavam os filósofos; ela cura, em particular, do
obscurantismo religioso (COMPAGNON, 2009, p.
33).

Colocando a literatura como um instrumento de


justiça e de tolerância, em outras palavras, como um
remédio para a ignorância, Compagnon (2009, p. 34)
sustenta ainda que: “A literatura é de oposição: ela tem o
poder de contestar a submissão ao poder. Contrapoder,
revela toda a extensão de seu poder quando é

28
perseguida”. Esta citação do autor belga é fundamental
para que possamos compreender o poder da literatura e a
ameaça que o saber literário corre em sociedades
desiguais, como a brasileira. Portanto, não seria exagero
dizer que o perigo em que se encontra a literatura hoje diz
respeito à intervenção dos setores conservadores nas
pautas da educação pública.
O projeto Ideologia de gênero é um exemplo destes
setores. Levado à votação por inúmeras Câmaras de
Vereadores de todo o país, o que pudemos testemunhar,
nestas discussões, é a presença marcante de mulheres e
homens evangélicos e católicos que militam contra uma
suposta ideologia de gênero na escola.
Imaginemos, então, que vivemos num país onde o
projeto Ideologia de gênero é constitucional e plenamente
apoiado pela sociedade. Como seria, então, uma aula de
literatura numa escola sem partido, proibida de abordar
questões de gênero? O famoso “Com licença poética”, de
Adélia Prado (1993), por exemplo, estaria fora da sala de
aula e, certamente, os professores que ousarem trabalhar
com o referido poema seriam, certamente, criminalizados.
O poema diz o seguinte:

Quando nasci um anjo esbelto


Desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher,
Esta espécie ainda envergonhada
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

29
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
Já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição para homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou. (PRADO, 1993, p. 8)

Se aceitarmos as interferências do conservadorismo


na educação brasileira, Adélia Prado nunca será
convidada a entrar em sala de aula, dado que a partir de
“Com licença poética” podemos questionar o machismo
operante de uma sociedade marcada por uma hierarquia
de gênero. Para os homens que militam em torno destes
projetos conservadores, a mulher não deve ser
desdobrável, como o “eu” lírico de Adélia Prado, mas sim
submissa ao patriarcado e às vontades masculinas. Por
isto, Compagnon foi assertivo ao dizer que a literatura,
além de curar do obscurantismo religioso, contesta a
submissão ao poder, inclusive, ao poder dos homens
machistas sob os corpos femininos.

4. O DIREITO ÀS LITERATURAS LATINO-


AMERICANAS

O pressuposto fundamental para a discussão sobre o


direito às literaturas latino-americanas relaciona-se ao
efetivo ensino de língua espanhola na educação básica
brasileira. Com isto, defendemos a urgente manutenção
da oferta do idioma neolatino no currículo nacional, pois
entendemos que o direito às literaturas latino-americanas

30
só será plenamente assegurado através do ensino da
língua espanhola.
Como dito anteriormente, presenciamos durante o
governo de Luís Inácio Lula da Silva um processo de
integração latino-americana, propiciado através do
diálogo com outros países e com a sanção da conhecida
“Lei do Espanhol”. Com a derrubada de Dilma Rousseff,
formou-se um novo governo, ideologicamente contrário
às pautas desenvolvidas nas últimas décadas. A agenda de
Michel Temer, portanto, caracteriza-se pela submissão ao
mercado, ao neoliberalismo e, notadamente, aos interesses
norte-americanos.
Deste modo, voltamos a discutir temas que, até então,
eram considerados superados, como por exemplo, a
importância de oferecer mais de uma língua estrangeira
no currículo nacional, para promover uma diversidade
linguística e cultural. Assim, enfatizamos que um
currículo multicultural só é possível quando se assegura
uma pluralidade linguística.
Garantido o efetivo ensino de Espanhol no currículo
nacional, sinalizamos que o próximo passo a ser dado é o
fortalecimento do ensino de literatura latino-americanas.
A proposta que defendemos neste ensaio é a inserção de
um dispositivo nos documentos oficiais de ensino que
orientem os professores de língua espanhola e portuguesa
a abordarem, comparativamente, produções literárias dos
países de língua espanhola da América Hispânica e do
Brasil.
Esta proposta contribui com a Integração regional e se
assemelha a sugestão de críticos como Antônio Cândido e
Ángel Rama que objetivavam iniciar um processo de
democratização da literatura através da Biblioteca

31
Ayacucho. Para estes estudiosos, a referida biblioteca
possibilitava o contato com a literatura brasileira nos
países da América Hispânica e vice-versa, o que promove
trocas culturais.
Entretanto, percebemos que não há um interesse da
esfera política no ensino de literaturas latino-americanas,
principalmente, por questões políticas. Esta conjuntura de
negação da identidade latino-americana se acentua ainda
mais quando consideramos o momento político em que
vivemos, marcado pela desqualificação dos partidos de
esquerda e por uma “demonização” do socialismo e do
comunismo.
Além disto, é necessário recordar que o brasileiro, de
modo geral, não se identifica como sujeito latino-
americano. Isto se dá, provavelmente, por uma questão
linguística, dado que o Brasil é o único país da América
Latina que se comunica em Português e um dos poucos
que não tem o Espanhol como língua oficial. Constitui-se
um distanciamento identitário marcado por questões
linguísticas.
Soma-se a este contexto de negação da identidade
latino-americana o atual momento político de rechaço aos
partidos de esquerda no nosso continente, principalmente
com os escândalos de corrupção que envolvem o Partido
dos Trabalhadores, no Brasil, o Partido Justicialista, na
Argentina e a complexa conjuntura sócio-política que
envolve a Venezuela e a Guatemala. É necessário, ainda,
dizer que é preciso desconfiar das narrativas que são
contadas sobre estes países pela mídia hegemônica.
No senso comum, muitos brasileiros associam a
discussão sobre a América Latina ao comunismo e aos
partidos de esquerda, de forma irrestrita. Parece que

32
temos um ranço herdado dos nossos colonizadores
europeus, o que nos impede de reconhecermos a nossa
própria identidade latino-americana. Neste sentido,
quando falamos da América Latina, nos deparamos com
uma série de crenças e estereótipos difundidos pelos
partidos de direita e massificados pela grande mídia
hegemônica. Aliás, quem nunca escutou estas
provocações: “Vai pra Cuba, comunista!”, “O Brasil não
será uma Venezuela”, “O Brasil não pode se transformar
numa ditadura bolivariana” e tantas outras expressões
que sintetizam a nossa herança colonizadora e a vontade
de difundir ignorância sócio-política.
Outro caso que nos ajuda a compreender este contexto
teve como plano de fundo o primeiro debate com os
candidatos à Presidência da República, realizado em
agosto de 2018, pela TV Bandeirantes. O candidato Cabo
Daciolo (Patriota) questionou o também candidato Ciro
Gomes (PDT) sobre a sua vinculação com o Plano URSAL
(doravante União da República Socialista Latino-
americana). Ciro, ao responder que desconhecia o assunto,
ouviu: “Nós tamo falando aqui de um plano que chama-
se Nova Ordem Mundial, União de toda a América do Sul,
conexão de toda a América do Sul, tirando todas as
fronteiras, fazendo uma única nação [...] Quero deixar bem
claro que no nosso governo o comunismo não vai ter vez”.
É esta a imagem formada pelo senso comum, de pessoas
que desconhecem os debates sobre a Integração da
América Latina, que contribui com o rechaço à identidade
latino-americana e fortalece um sentimento de ódio aos
países do continente.
Contudo, o acesso às literaturas latino-americanas
como política de estado é um dos mecanismos que podem

33
fortalecer a identidade latino-americana e a própria
integração continental. Ao defender o direito às literaturas
latino-americanas (e a promoção do diálogo entre o Brasil
e os países que compõem o continente), partimos do
pressuposto de que o contato com as mais diversas
produções literárias em diálogos territoriais nos permite
conhecer a nossa própria história. Dito isto, poderíamos,
por exemplo, realizar o seguinte diálogo literário em sala
de aula:
TEXTO 01
Um dia a mãe de Fuizinha amanheceu
adormecida, morta. Os vizinhos tinham escutado a
pancadaria na noite anterior. A mulher gritara,
gritara, a Fuizinha também, também. Ouviu-se a
voz do Fuinha:
- Agora silêncio.
A mulher silenciou de vez. Fuizinha ainda
muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das
dores, ia vivendo apesar da morte da mãe e da
violência que sofria do pai carrasco. Ele era dono
de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da
vida da mulher até à morte. Agora dispunha da
vida da filha. Só que a filha, ele queria bem viva,
bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para
isto mesmo. Mulher é para tudo. Mulher é pra
gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para
gozar, assim pensava ele. O fuinha era tarado,
usava a própria filha (EVARISTO, 2017, p. 79).

TEXTO 02
¿por qué grita esa mujer?

34
¿por qué grita?
¿por qué grita esa mujer?
andá a saber

esa mujer ¿por qué grita?


andá a saber
mirá que flores bonitas
jacintos margaritas
¿por qué?
¿por qué qué?
¿por qué grita esa mujer?

¿y esa mujer?
¿y esa mujer?
vaya a saber
estará loca esa mujer
mirá mirá los espejitos
¿será por su corcel?
andá a saber

¿y dónde oíste
la palabra corcel?
Es un secreto esa mujer
¿por qué grita?
mirá las margaritas
la mujer
espejitos
pajaritas
que no cantan
¿por qué grita?
que no vuelan
¿por qué grita?
que no estorban
la mujer
y esa mujer

35
¿y estaba loca esa mujer?

Ya no grita.
(¿te acordás de esa mujer?) (THÉNON, 2001)

O texto 01 corresponde a um excerto do livro “Becos


da memória”, da escritora brasileira Conceição Evaristo
(2017) e o texto 02 é um poema da escritora argentina
Susana Thénon (2001). Os dois textos mencionados
anteriormente, embora pertencentes a gêneros diferentes,
podem ser levados para a sala de aula, exemplificando o
direito às literaturas latino-americanas. Ler Conceição
Evaristo e Susana Thénon, de forma comparada, significa
perceber pontos de congruência entre a cultura brasileira
e argentina. Com estes dois textos podemos discutir a
vulnerabilidade feminina na América Latina, num
continente caracterizado pelo machismo e pela violação
contra as mulheres. Este exercício de comparação é
fundamental para que possamos compreender a nossa
própria história e refletir sobre a nossa própria cultura.

5. ALGUMAS PALAVRAS FINAIS

Este texto apresenta uma rápida discussão sobre o


ensino de literatura no Brasil do presente, considerando a
conjuntura política em que vivemos como chave de
leitura. Mesmo correndo o risco de termos realizado uma
rápida argumentação, este ensaio é, antes de tudo, o
resultado de algumas inquietações pessoais sobre o ensino
de literatura num contexto político em que vozes
conservadoras tentam adentrar ao espaço escolar.

36
Um dos pontos principais de nossa argumentação
considera o direito às literaturas latino-americanas como
uma política de estado. Este direito se efetua a partir do
ensino de Espanhol no currículo nacional, de modo que
nos interessa motivar os diálogos literários entre o Brasil e
a América Latina e vice-versa na sala de aula. Utilizamos
o termo “política de estado” porque acreditamos que o
ensino de espanhol – e de literaturas latino-americanas –
não pode ser entendido como uma política partidária, mas
sim como um direito assegurado pelo estado.
Enfatizamos que as ciências humanas – e neste caso, a
língua espanhola e o ensino de literatura – sofrem um
movimento de perseguição de setores conservadores que,
marcados pelo preconceito, tentam cessar a discussão
sobre as diferenças na sala de aula. Temos uma tentativa
constante de silenciamento das diferenças e de
aniquilamento do heterogêneo.
Estamos convictos de que a exclusão do ensino de
Espanhol do currículo nacional e, deste modo, a retirada
do direito ao contato com as literaturas latino-americanas
significa negar a nossa própria história. Este panorama se
acentua quando consideramos um discurso de ódio
dirigido aos países latino-americanos, como resultado de
uma cultura de estigmas criada por parte da elite
brasileira.
No Brasil atual vivemos um movimento de ódio à
América Latina e ao socialismo. Bastaria dizer que, em
agosto de 2018, presenciamos um grupo de brasileiros, ao
som do hino nacional, queimando os pertences de
imigrantes venezuelanos na fronteira entre o Brasil e a
Venezuela, na cidade de Pacaraima. Para evitar que
episódios truculentos como este voltem a ocorrer,

37
defendemos o acesso às literaturas latino-americanas, pois
o texto literário é o remédio mais eficiente na cura contra
o preconceito, a ignorância e o ódio.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais. Ensino Médio.


Brasília: MEC, 2000.
BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília:
MEC, 2000.
CANDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. São
Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004.
COMPAGNON, A. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei
Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
LOZANO, J. R. O que seria da literatura numa “escola sem
partido?”. In: Opinião: El país, 2016. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/20/opinion/1469018989
_707134.html Acesso em 02 de agosto de 2018.
PRADO, A. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993.
THÉNON, S. La morada imposible. Buenos Aires: Corregidor,
2001.
TODOROV, T. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio
de Janeiro: DIFEL, 2009.

38
TITA DE LA GARZA, REVOLUÇÕES E
AFETIVIDADES: LITERATURA E HISTÓRIA DA
ALIMENTAÇÃO NO ENSINO DE HISTÓRIA

Gabriela Borba de LIMA

1. REVOLUÇÕES

Este ensaio visa analisar historicamente a narrativa


literária “Como Água para Chocolate” e da personagem
de Tita de La Garza, da autora Laura Esquível. Para isso, é
necessário compreender como o cenário - antes e durante
a Revolução Mexicana - foi construído e sua interferência
nas experiências de vida da protagonista do romance,
além da importância da literatura e da História da
Alimentação para a humanização do Ensino de História.
Durante o século XIX, o México, após ser invadido
pela França sob o governo de Napoleão III, foi ofertado a
Maximiliano de Habsburgo-Lorena, militar da marinha e
irmão do imperador austríaco Francisco I, com o intuito de
legitimar o domínio francês em parte da América. A elite
conservadora mexicana, descontente com a administração
liberal do presidente Benedito Juaréz, decidiu apoiar a
autoproclamação de Maximiliano como Imperador
Mexicano em 1864 por acreditar que o aval da França, da
Inglaterra e da Igreja Católica resultaria no poder político
e econômico local.
Ao se estabelecer, o novo Império Mexicano ganhou
notoriedade entre muitas potências europeias, mas só isso
não foi o suficiente, tendo em vista que os Estados Unidos
não reconheciam Maximiliano e, ao término da Guerra

39
Civil Americana em 1865, apoiaram maciçamente Juaréz e
seu exército para a retomada do poder. Dentre esses
líderes do exército, dá-se destaque a Porfírio Díaz,
defensor da laicização e da legitimação do governo de
Juárez durante a Guerra da Reforma, anos antes da
ascensão de Maximiliano ao poder.
Considerado um militar experiente, o general Porfírio
Díaz foi responsável por liderar o exército mexicano
contra o domínio francês. Assumiu, então, a presidência e
durante sua primeira administração (1876-1880) instituiu
diversas mudanças constitucionais, dentre elas, uma que
extinguia a reeleição. Após perceber que seu sucessor
planejava continuar no poder, Díaz tomou à força a posse
do governo com o pretexto de organizar o cenário político
do México. Também foi responsável pelo estreitamento
nas relações com governos estrangeiros e pelo
investimento na industrialização do país a partir da
construção de ferrovias, implantação de telégrafos,
melhorias na marinha mercante e formação de um sistema
bancário.
Porém, todo o trabalho feito para o setor industrial e
econômico do país restringia as beneficies às elites sociais
e cobrava das massas o financiamento de tais melhorias.
Influenciado por ideais liberais e militares, o
presidencialismo porfirista assumiu características
ditatoriais e manteve-se no poder por cerca de trinta anos,
até a Revolução Mexicana (1910), quando ele foi deposto e
exilado na França.
E como fazer uma revolução? Ideais filosóficos,
desigualdade socioeconômica e um povo com sede de
mudança são fatores comuns para desencadear os
processos revolucionários. O México seguiu os passos

40
apoteóticos da Revolução Francesa (1789) e Tita De la Garza
seguiu os passos do México ao ter sua vida narrada por
Laura Esquível.

2. COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

Apesar de a Revolução Mexicana ter acontecido entre


as décadas de 1910 e 1920, ela permanece viva no
imaginário popular por ser considerada um dos
acontecimentos mais fortes para a construção da
democracia mexicana. A História deste país se mescla com
a história privada de cada família mexicana e Esquível
traduz de forma extremamente afetiva tal acontecimento.
Como Água Para Chocolate vai além de uma literatura
ficcional, na medida em que promove uma intensa
aproximação entre leitor e obra: se por um lado, humaniza
os personagens dotando-os de emoções, por outro, seduz
o leitor para que este se identifique com os conflitos
vividos pelos personagens.
O livro é composto por doze capítulos e em cada
abertura capitular encontram-se receitas que fazem parte
do cotidiano mexicano, como chocolate e feijões grandes
com chile à Tezcucana. Além de listar os ingredientes, a
autora descreve o processo de preparo de cada prato
culinário no desenrolar da história. O estilo de escrita de
Esquível, enriquece sua relação com o leitor ao propor
uma troca sensorial e afetiva instigada pela descrição
detalhada de cada receita, porque “exatamente como a
linguagem, a cozinha contém e expressa a cultura de quem
a pratica, é depositária das tradições e das identidades de
grupo” (MONTANARI, 2009, p. 11).

41
A personagem principal é Tita De la Garza. Nascida
em um rancho no interior do México, foi criada pela
cozinheira da casa, Nacha, com quem aprendeu desde
muito cedo a arte da culinária e da medicina popular. Tita
é descrita como “o último elo de uma cadeia de
cozinheiras que desde a época pré-hispânica haviam
transmitido os segredos da cozinha de geração em
geração” (ESQUÍVEL, 2015, p.46), por ser a mais nova das
filhas de sua mãe, e por ser uma antiga tradição dos De la
Garza, ficou para ela a responsabilidade de cuidar de
Mamãe Elena e da alimentação da família após o
falecimento de Nacha.
Além do treinamento recebido por Nacha, Tita tem o
curioso dom de depositar suas emoções no preparo das
receitas e cada emoção resulta em diferentes reações
químicas naqueles que degustam suas iguarias, era “como
um poeta que brinca com as palavras, assim ela brincava
prazerosamente com os ingredientes e com as
quantidades, obtendo resultados fenomenais”
(ESQUÍVEL, 2015, p. 65).
E por que Como Água para Chocolate? O cacau
[Theobroma cacao] é encontrado com facilidade na América,
na região da bacia do rio Amazonas. Por apresentar sabor
apimentado, era comumente consumido pelos povos
Maias e Astecas como uma iguaria dada aos homens pelo
deus Sol.
O modo de consumo do cacau, na América pré-
hispânica, se assemelhava ao consumo do café: após
torrado e moído colocava-se água quente e bebia-se. Para
agradar o paladar do europeu, o cacau recebeu os
adicionais de leite e açúcar. Na publicação de Alexandre
Dumas, Grande Dicionário de Culinária, cuja primeira

42
edição foi publicada em 1873, encontra-se um verbete
destinado ao cacau e ao preparo de seus extratos

Manteiga de Cacau. Manteiga aqui se designa os


óleos vegetais quando solidificados. Esse extrato
de manteiga, de que aqui se trata, é ao da noz do
cacau, sobretudo nas ilhas, ligeiramente tostado e
aquecido na água fervente. O calor da água derrete
esse óleo, que se separa da amêndoa e flutua na
superfície do líquido. Esse óleo solidifica-se pelo
resfriamento, sendo purificado depois por duas
diluições sucessivas (DUMAS, 2006, p. 61).

Esquível também descreve os processos semelhantes


ao de Dumas, a adição da água durante o preparo do
chocolate permite a extração da manteiga de cacau, usada
como pomada para tratar pequenas feridas nos lábios ou
pequenas queimaduras sofridas na cozinha, lugar comum
de Tita. Essa permuta que existe entre a cozinha ancestral
mexicana e a cozinha francesa pode ser descrito por
constituir

[...] um extraordinário veículo de


autorrepresentação e de comunicação: não apenas
é instrumento de identidade cultural, mas talvez
seja o primeiro modo para entrar em contato com
culturas diversas, já que consumir o alimento
alheio parece mais fácil – mesmo que na aparência
– do que decodificar-lhe a língua. Bem mais do que
a palavra, a comida auxilia na intermediação entre
culturas, abrindo os sistemas culinários a todas as
formas de invenções, cruzamentos e
contaminações (MONTANARI, 2009, p.11).

43
Os cruzamentos citados por Montanari são as
adequações que cada receita passa quando não há
disponibilidade dos ingredientes utilizados em um
primeiro momento, como é o caso da receita de codornas
em pétalas de rosas

Súbito escutou claramente a voz de Nacha,


ditando-lhe ao ouvido uma receita pré-hispânica
onde se utilizavam pétalas de rosas. Tita tinha-a
meio que esquecida, pois para fazê-la eram
necessários faisões e no rancho nunca tinham se
dedicado a criar este tipo de ave. A única coisa que
tinham nesse momento era codornas; assim,
decidiu alterar ligeiramente a receita para poder
utilizar as flores (ESQUÍVEL, 2015, p.46).

Percebe-se que esses ajustes são necessários para


qualquer prática cotidiana. Não é diferente quando o
ensino pede reformulações em seus métodos para abraçar
à realidade de cada sujeito que compõe o processo de
ensino-aprendizagem. De nada adianta um escritor que
não tenha leitores que o compreendam, da mesma forma
que de nada serve um professor que discursa em uma
linguagem que não é alcançada pelos estudantes. A
literatura e a alimentação utilizadas como fonte no
processo de pesquisa e ensino histórico permitem maior
aproximação do estudante, e leitor, para se perceber
enquanto parte da construção um processo histórico.

44
3. LITERATURA E HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO
NO ENSINO DE HISTÓRIA

A literatura de ficção é tecida por um narrador, a


alimentação por um cozinheiro e a História, quem escreve
e para quem escreve? Quando se fala sobre o processo de
escrita da história, fala-se também do processo de ensino.
Pois, como pontuado anteriormente, de nada adianta
professar e não ser compreendido. A primeira
problemática da historiografia é quem a constrói e como
ela é construída, o historiador-pesquisador que
retroalimenta a academia não assume seu papel formador
na sociedade. A diferença que existe entre o pesquisador e
professor é fortemente debatida por Selva Guimarães
Fonseca quando ela fala sobre o ensino da história e da
escola como um dos locais possíveis para trocas culturais,
conflitos e formação dos cidadãos.

A história e seu ensino são fundamentalmente


formativos. Essa formação não se dá
exclusivamente na educação escolar, mas é na
escola que experienciamos as relações entre a
formação, os saberes, as práticas, os discursos, os
grupos e os trabalhos cotidianos. [...] É na
instituição escolar que as relações entre os saberes
docentes e os saberes dos alunos defrontam-se com
as demandas da sociedade em relação à
reprodução, à transmissão e à produção de saberes
e valores históricos e culturais (FONSECA, 2003, p.
70).

Ao trazer essas discussões para dentro do processo de


formação de professores, Fonseca abre espaço para a

45
multiplicidade que é a construção da narrativa histórica.
Onde não se precisa mais estar acoplada a uma
linearidade de início, meio e fim, mas que se alarga para
abranger situações e sujeitos, antes marginalizados, na
pesquisa e no ensino historiográfico, como o uso da
Literatura e da Alimentação como fontes.
Um segundo problema dentro da narrativa histórica é
que, durante muito tempo, ela foi elaborada como algo
intocável, inquestionável e inflexível. Popularmente,
acreditava-se que a verdade que se encontrava nos livros
de história, era a verdade absoluta. Como pode ser
verdade absoluta se não foi escrita pelo povo do qual ela
fala? Essa é a terceira problemática do ensino e pesquisa
de História na América. Majoritariamente, a história dos
povos americanos foi escrita através do olhar de
historiadores europeus, a História dos Colonizadores.
O México possui um amplo quadro de artistas visuais,
musicais, e literários, que cantam e contam as diversas
visões sobre os seus processos revolucionários. Por não ser
construída dentro dos moldes acadêmicos, a História deve
ignorar a existência dessa pluralidade de informações ou
o historiador deve trançar essa historiografia a uma micro-
história? “Demonstrar a existência de convergências
intelectuais e, ao mesmo tempo, a ausência de contatos
diretos muitas vezes é uma operação nada fácil”
(GINZBURG, 2007, p. 270) É, então, função da micro-
história acolher os relatos dessa história pública,
referindo-se a “historiadores que se utilizavam da
metodologia histórica fora dos muros da academia”
(MALERBA, 2014, apud CADENA, 2018, p. 33), construída
a partir das contribuições de cotidiano; dentro das
cozinhas, nas canções do rádio, nos romances nacionais.

46
A adoção da história pública dentro da sala de aula
permite maior aproximação do estudante com o conteúdo
estudado por dar ares humanizados na construção da
narrativa histórica. Se literário, em Como Água para
Chocolate, o personagem se alimenta, se apaixona, faz
tarefas cotidianas, sofre e permite ao leitor se identificar
com sua história. Ginzburg diz que:

[...] essa relação direta com a realidade, só pode se


dar (ainda que não necessariamente) no terreno da
ficção: ao historiador, que só dispõe de rastros, de
documentos, a ele é por definição vedado. Os
afrescos historiográficos que procuram comunicar
ao leitor, com expedientes muitas vezes medíocres,
a ilusão de uma realidade extinta, removem
tacitamente esse limite constitutivo do ofício do
historiador. A micro-história escolhe o caminho
oposto: aceita o limite explorando as suas
implicações gnosiológicas e transformando-as num
elemento narrativo. (GINZBURG, 2007, p. 271)

A alimentação presente no texto de Como Água para


Chocolate é um atrativo substancial para aproximar os
estudantes das práticas culturais mexicanas. Outro fator
que facilitaria o uso do livro como complemento dos
conteúdos didáticos é a percepção fantástica dentro da
narrativa de Esquível. “O fantástico implica, portanto não
apenas a existência de um acontecimento estranho, que
provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa
maneira de ler [...]” (TODOROV, 2010, p. 38) já que dentro
da trama encontramos receitas culinárias, receitas
medicamentosas e receitas de utensílios, como o fósforo.

47
Para se complementar a concepção de literatura fantástica
são definidas três condições;

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a


considerar o mundo das personagens como um
mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma
explicação natural e uma explicação sobrenatural
dos acontecimentos evocados. A seguir, esta
hesitação pode ser igualmente experimentada por
uma personagem; desta forma o papel do leitor é,
por assim dizer, confiado a uma personagem e ao
mesmo tempo a hesitação encontra-se
representada, torna-se um dos temas da obra; no
caso de uma leitura ingênua, o leitor real se
identifica com a personagem. Enfim, é importante
que o leitor adote uma certa atitude para com o
texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica
quanto a ‘poética’ (TODOROV, 2010, p.38).

Desta forma entende-se que o uso de literatura


possibilita maior fluidez e coragem na prática docente, por
propor a investigação comparativa entre a narrativa
literária e a histórica, e elaborar uma reflexão
argumentativa sobre o conhecimento histórico.

4. AFETIVIDADES

Sem dúvida que a utilização de literatura e


alimentação são pontos de contribuição positiva para o
fazer didático e historiográfico. Ao adotar práticas de
ensino que promovem o cotejamento entre os diversos
saberes, os professores, propõem aulas participativas que

48
não deixam mais espaço para os monólogos encharcados
de conteúdos.
Instigar a investigação e despertar a sede do
conhecimento é o entrecruzar de caminhos. Não existe
mais uma verdade absoluta ou a segregação do espaço
entre o alumno, ser sem luz, e aquele que professa o
conhecimento de maneira verticalizada. Existe agora a
multiplicidade da História

[...] em vez de falar de uma História única e


unificada com “h” maiúsculo. Essa perspectiva
permite também a observação de que estas
histórias estão ligadas e que se comunicam entre
elas. Diante de realidades que convém estudar sob
diversos aspectos, o historiador tem de converter-
se numa espécie de eletricista encarregado de
restabelecer as conexões internacionais e
intercontinentais que as historiografias nacionais e
as histórias culturais desligaram ou esconderam,
entaipando as suas respectivas fronteiras
(GRUZINZKI, 2003, p. 323).

E das práticas docentes ao ensino horizontal e afetivo,


onde além de dotado de conhecimento o estudante se vê
como parte integrante e ativa da narrativa. Que, por sua
vez, apresenta um contexto psicológico do personagem ao
qual o estudante se reconhece.

49
REFERÊNCIAS

CADENA, Sílvio R. G. Narrativas digitais e a história do Brasil:


uma proposição para a análise de memes com temáticas
coloniais e seu uso nas aulas de História. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal Rural de Pernambuco,
Programa de Pós-Graduação em História, Recife, PE, 2018. p.
214
DUMAS, Alexandre. Grande Dicionário de Culinária. Trad. André
Telles; seleção das receitas Sandra Sechin. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 2006.
ESQUÍVEL, Laura. Como Água para Chocolate. Trad. Olga Savary.
2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 2015.
FONSECA, Selva G. Didática e Prática de Ensino de História. 11ª
ed. Campinas, SP: Papirus, 2003.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício.
Trad. Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
GRUZINSKI, Serge. “O historiador, o macaco e a centaura: a
‘história cultural’ no novo milênio”. Revista Estudos
Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 321-342, set./dez. 2003.
MONTANARI, Massimo. “A cozinha, lugar de identidades e das
trocas” In: MONTANARI, Massimo (Org.). O mundo na
cozinha: história, identidade, trocas. Trad. Valéria Pereira da
Silva. São Paulo : Estação Liberdade : Senac, 2009, p. 11-17.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad.
Maria Clara Correa Castello. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

50
LENDO A OBRA DE EÇA DE QUEIRÓS PELA
PERSPECTIVA PSICOLÓGICA

Cristiane Navarrete TOLOMEI

Na primeira metade do século XX, no Brasil, a obra de


Eça de Queirós recebe três leituras na abordagem
psicológica: dois ensaios do Livro do Centenário de Eça de
Queirós (1945) intitulados “Conceito e técnica do romance
em Eça de Queiroz”, de Olívio Montenegro e “Os temas
religiosos de Eça de Queiroz”, de Luiz Delgado; e o livro
Eça, literária, psicoanaliticamente (1948), de Constantino
Paleólogo. Essa abordagem crítica consiste em explicitar a
literatura por meio de um determinado universo onírico
embasado na psique do escritor. No caso específico desses
estudos, eles propõem verificar como o subconsciente teve
papel considerável na criação artística. Embora tratem da
vida do autor, esses críticos brasileiros optaram por
procurar nas obras os motivos recorrentes que poderiam
determinar quem é o artista do ponto de vista psicológico.
Desse modo, o que eles produziram é o que a psicologia
chamaria de psicobiografias, termo presente nos estudos
dos analistas do início do século XX.
Tanto Olívio Montenegro quanto Luiz Delgado como
Constantino Paleólogo fazem a análise da ação dramática,
que teria origem em traumas que Eça teria sofrido e
transferido para a sua produção escrita. Para o primeiro, a
obra queirosiana é resultado da “observação e da
experiência pessoalmente vivida” e da “imaginação
criadora” (MONTENEGRO, 1945, p. 109) do autor.
Pensando, dessa forma, o ensaísta faz uma ligação entre
essa postura de criar de Eça com o Romantismo,

51
procurando destacar, na produção fictícia do autor, o
caráter novelístico.

A visão persistente do detalhe leva sempre a certo


pessimismo de imaginação e de ideia, a uma
involuntária atitude de combate e de crítica, a um
minucioso luxo de análise, pois só um instinto
dramático muito forte pode produzir um interesse
romântico vivo e duradouro (MONTENEGRO,
1945, p. 11).

Além disso, Olívio Montenegro compreende que esse


aspecto de não-lugar da obra de Eça, por transitar entre as
estéticas romântica, realista e naturalista, é ocasionado por
um motivo psicológico do autor que, mesmo aderindo às
características do Romantismo, escolhera o Naturalismo
para conseguir satisfazer sua vontade de “valorizar o
detalhe, para exagerá-lo, multiplicá-lo, sublimá-lo em
pitoresco” (MONTENEGRO, 1945, p. 111).

Quando na obra de ficção se exagera o minúsculo


ou o acidental pelo excesso de análise, e atrás de
refazer a natureza em modelos que seriam de um
interesse mais científico do que artístico, a
observação, por menos que pareça, perde sempre
aí o melhor da sua elasticidade para ficar em
relação à liberdade de conhecer e julgar. O caso de
Eça, entretanto, é diferente. Na sua preocupação do
detalhe não se descobre o especiosismo científico
dos naturalistas [...] E por isto o que nele perde a
observação em efeito minuciosamente fotográfico
de representação, ganha em intensidade e colorido
de visão (MONTENEGRO, 1945, p. 112).

52
Nesse trecho, observa-se que Olívio Montenegro
considera a produção literária de Eça como uma pintura
que reproduz e que recria a realidade, colocando o autor
no campo da fantasia e não no da imaginação,
contrariando muitos críticos queirosianos que o
antecederam. Assim, para o brasileiro, a obra de Eça fora
dominada pelo “ar de novela” (MONTENEGRO, 1945, p.
112) tanto na produção ficcional quanto na jornalística e
epistolar. Ao fantasiar a realidade, de acordo com Olívio
Montenegro, Eça empregaria a comicidade, pois “o riso foi
a arma de crítica de que mais se serviu Eça de Queirós, e
que ele próprio estimava de uma força de demolição
inestimável” (MONTENEGRO, 1945, p. 114). Assim, Eça
usaria a ironia porque ela “não está propriamente na
atitude de quem observa para o sutil prazer de descobrir,
mas de quem observa para a satânica alegria de condenar”
(MONTENEGRO, 1945, p. 115).
Nota-se que Montenegro compreende a obra
romanesca de Eça, em sua maior parte, voltada para a
moralidade incluindo aí O crime do padre Amaro, O primo
Basílio, O mandarim, A relíquia. Por isso o brasileiro teria
realizado uma aproximação entre a função moralizante da
literatura do escritor português com a produção
caricatural dos personagens. Para o brasileiro, a crítica
caricatural só alcançaria um resultado: desvendar a sua
principal personagem, Portugal. Olívio Montenegro elege
Os Maias como o romance melhor concebido pelo escritor
português, apesar do que concebe como problemas:

Os Maias são uma obra mais expressiva, a obra em


que mais ficam à mostra as suas qualidades mais
fortes, tanto quanto os seus defeitos de escritor. E o

53
romance onde o seu talento pictural, a sua
penetração psicológica, a sua força descritiva se
exercem em cenas sucessivas com mais surpresa, e
tam- bém onde as suas prevenções de espírito, se
abrem em crí- ticas da mais premeditada
caricatura, não ganhando aí a sua ironia em
mordacidade senão para perder em finura e onde o
seu secreto senso moralista toma em certas páginas
um acento mais ostensivo (MONTENEGRO, 1945,
p. 117).

Todavia, de acordo com o crítico, não é a caricatura a


maior qualidade dos personagens, mas o traço de
humanidade que eles contêm. Segundo Montenegro, isso
ocorre devido ao fato de Eça haver recebido duas
influências: o Naturalismo e o Romantismo. Deles, retirara
a observação detalhada e idealista, respectivamente, da
realidade, pintando-a como ele a sentira.
Montenegro nota que o gosto pela dramatização do
passado encontra-se em A relíquia, A ilustre casa de Ramires
e O mandarim, (re)inventando a realidade em uma
preocupação com o dizer, usando a sensibilidade de um
artista e não o relato de um cientista.

Não há escritor – salvo os que fazem das mãos pés,


e escrevem como quem escarva – que, para
exprimir uma ideia ou uma imagem, não procure,
entre muitas frases ou palavras, aquela que pareça
a mais harmoniosa, a mais musical. Acontece
porém que essa harmonia e essa música são
impossíveis quando o fato não se encontra com a
ideia, e a ideia não se encontra com a sua forma
real, precisa, verdadeira e a que somente conduz a

54
sensibilidade e o gosto individuais
(MONTENEGRO, 1945, p. 126).

Para Montenegro, Eça buscara a perfeição da


observação e da escrita, isto é, o máximo de expressão em
arte. Isso se justifica pelo fato de o autor sofrer de algumas
deficiências de temperamento que o conduziam a uma
visão unilateral da realidade.
Verifica-se que a crítica de Olívio Montenegro oscila
entre aquela que encara o texto literário como uma
projeção psíquica e individual e outra que projeta no texto
uma preocupação coletiva.
Luiz Delgado também compartilha desse
posicionamento crítico e afirma que muito da
personalidade de Eça está presente na produção do autor
português. Nesse caso, ele aponta a educação religiosa
como tema recorrente nos textos queirosianos. Delgado
considera que Eça estava dividido entre os sentimentos de
revolta e piedade. Esse dualismo transpareceria nos
personagens queirosianos como um retrato da condição
espiritual do escritor. Segundo o brasileiro, Eça transitara
no tema religioso entre o que existia (a crítica e a sátira à
sociedade clerical) e o que via (afinidades e simpatias por
figuras religiosas), uma vez que ele “viu apenas que a
religião não consiste nas cavilações do padre Negrão ou
nas estultices da tia Patrocínio, mas inspira a bondade, a
elevação, a pureza” (DELGADO, 1945, p. 236).
Acerca da narrativa queirosiana, Luiz Delgado nota a
presença da psicologia do autor que apareceria em dois
momentos: num primeiro momento, em que a visão de
Eça perante a sociedade religiosa em Portugal está
reduzida a uma “irritação suspeita [...] semeando aqui e

55
ali julgamentos de valor, juízos próprios que transpõem os
limites da arte e penetram nos campos da objurgatória e
do panfleto” (DELGADO, 1945, p. 233); e, num segundo
momento, em que a visão do escritor clareia e passa a ver
melhor, notando que além de padres infiéis existia
“também almas sedentas de elevação e perfeição”
(DELGADO, 1945, p. 233). Mesmo assegurando que Eça
tinha compreendido que não só o que via existia, Luiz
Delgado observa que há limitações na apresentação de
temas religiosos por parte de Eça de Queirós, pois, para o
brasileiro, toda religião segue três premissas:

A noção de existência de um ser superior ou


supremo; a de uma relação de dependência do
universo para com ele; e a da possibilidade e do
dever de entrar o homem em comunicação com Ele
pela observância de uma lei ou pelo exercício de
um culto (DELGADO, 1945, p. 233).

Eça aparentaria ignorar tais noções, já que não seria


compreensível como o autor não fizera com que seus
personagens religiosos não se sentissem culpados pelos
atos contra a religião e, em vez disso, penalizava a
consciência das outras personagens, por exemplo, a de
Amélia. Sobre isso, Delgado salienta:

Parece que só uma razão pode explicá-lo: a visão


puramente social da vida religiosa olhando a
religião menos como um fato espiritual do que
como um costume coletivo, era, ainda mais,
dominada por um partidarismo, por uma oposição
talvez inconsciente à figura e à ação do sacerdócio.
O sentimento religioso que não trouxe em si

56
mesmo, Eça de Queirós não soube também vê-lo
nem colocá-lo nos outros (DELGADO, 1945, p. 234-
235).

Antes de Luiz Delgado, Álvaro Lins (1939) já havia


ponderado sobre o posicionamento de Eça diante de
assuntos religiosos e também detectado que o escritor
português tinha mais uma preocupação social e estética do
que religiosa. Todavia, Delgado vê que, por forças
misteriosas, Eça mudara o seu posicionamento nos
últimos livros e compreendera que havia uma figura a
admirar: Jesus Cristo.
Na verdade, o brasileiro acaba por defender a ideia de
que Eça acreditaria na mediação entre o homem e Jesus
para atingir a eternidade, visto que o romance como A
relíquia retrata o sentimento de solidão e insegurança que
dominam o homem e que podem ser amenizados pela
imagem de Cristo.
Enfim, Luiz Delgado retoma, em seu ensaio, a
discussão em torno da situação do homem do século XIX
frente à religião, uma vez que o indivíduo novecentista
estava propício a repudiar os mitos, as lendas, o
sobrenatural como o fazia Eça. Consegue aproximar Eça
da religião, pois entende que, para o escritor, havia a
necessidade da existência real e, por isso, ele teria escrito a
vida dos santos, isto é, de pessoas que existiram e que
foram santificadas. Assim, observa-se que a religiosidade
do autor levantada por Delgado se aproxima da atitude do
apóstolo São Tomé a respeito da fé: “ver para crer”.
Em um estudo mais detido sobre o psicologismo na
obra queirosiana, Constantino Paleólogo se esforçou para
não retomar a abordagem biográfico-psicológica da

57
maneira como fizeram os primeiros queirosianos do
século XX para desenvolver um estudo analítico-
interpretativo da obra de Eça por meio da observação das
“intrigas” dos romances, no entanto, o que surge nas
linhas do crítico brasileiro é a visão tradicional enraizada
pela crítica seminal: “O romance é, no caso de Eça de
Queirós e de muitos outros, uma compensação da vida. O
criador faz com que seus personagens façam o que ele, por
motivos diversos, não pôde, não ousou fazer ou talvez
nunca pensasse conscientemente em fazer”
(PALEÓLOGO, 1948, p. 21). O crítico determina quatro
classificações para a compreensão da obra de Eça: a
primeira, obras evocativas, são aquelas inseridas na
primeira fase de produção literária do escritor e que estão
centradas nas descrições da vida familiar, da vida escolar
e da vida amorosa, ou seja, são obras de alto teor
emocional e afetivo, mas que, segundo o crítico, não
revelam o grande escritor; a segunda, obras imitativas, são
aquelas em que Eça recebera a “influência” de seus
autores preferidos; a terceira, obras de criação dirigida, são
aquelas sem um fundo psicológico, mais voltadas à
verdadeira manifestação artística distribuídas pelas
crônicas, ensaios, críticas; e a quarta, obras de criação
espontânea, são aquelas oriundas supostamente do
subconsciente do autor.
Na análise psicológica que Constantino Paleólogo
empreende, justifica-se a escolha de Eça pelo Realismo-
Naturalismo, pois tais vertentes estéticas conseguiriam
dar suporte para que o autor expressasse os seus
fenômenos psíquicos de maneira livre, sem as amarras do
Romantismo. Retoma-se da crítica seminal a ideia de que
Eça precisava desabafar na escrita as angústias da infância.

58
Esse triste início de vida pode ser facilmente
reconstituído. De- pois de viver cerca de quatro
anos em casa de gente desconhecida, de condição
modesta, Eça vai morar em casa da avó e depois na
dos pais. Ora, na casa do alfaiate e da costureira era
um estranho, filho de outros. Diante dos amigos eles
certamente murmurariam: “é filho natural de
fulano e de sicrana”. E perguntariam de quando em
vez: “então, os pais dele quando é que se casam?”
O menino ouviria tais palavras, que se gravariam
de modo indelével em seu coração frágil e delicado,
trazendo-lhe os primeiros sofrimentos. Já na casa
da avó teria sido recebido secamente, com altivez,
porque, pobre dele, era um fruto do pecado. Na
casa dos pais, em seguida, sua posição deveria ser
demasiado esquerda. “Como? Casados há tão
pouco tempo já tinha um filho daquele tamanho?”
Podemos imaginar o peque- no José Maria
escondido quando chegava alguma visita de
cerimônia a fim de evitar perguntas indiscretas e
embaraçosas. Por- que, após o casamento, a família
tornou-se respeitável, séria e somente havia uma
criaturinha que com a sua simples presença,
destruía irremediavelmente toda aquela aparência
de circunspeção: o magro José Maria
(PALEÓLOGO, 1948, p. 45-46).

Realizando o percurso pelas possíveis perguntas


realizadas pela família ou por outras pessoas durante a
infância de Eça, Paleólogo argumenta que, nos textos de
criação espontânea, são revelados, com base nas
experiências negativas de Eça de seus primeiros anos,
“satisfação do impulso incestuoso; representação
diminuidora da personalidade paterna; caracterização da

59
falsidade dos sentimentos da avó; glorificação do avô”
(PALEÓLOGO, 1948, p. 48).
Destaca-se, na crítica de Paleólogo, a sua imaginação,
isto é, como ele “reinventa” o passado de Eça, colocando-
se na posição do escritor como se ele estivesse lá,
vivenciando os seus momentos íntimos. A sensação que se
tem, ao ler a análise do crítico brasileiro, é a mesma de
quando se lê um roteiro: as falas e as personagens estão
prontas, construídas como o roteirista e o diretor desejam.
O que se quer dizer com isso? Que, forçosamente,
Paleólogo tem por objetivo persuadir seu leitor de que a
obra de Eça foi embasada na sua infância triste. Contudo,
nada o comprova: talvez tenha acontecido como ele
descreve, talvez não – é o máximo de conclusão a que se
pode chegar.
Dando continuidade a essa perspectiva, Paleólogo
determina a ida de Eça a Coimbra como uma “fuga
psicológica”, confirmando a opinião dos textos
fundadores, que prosseguiria na viagem ao Oriente, e
dela, como afirma Paleólogo: “Eça de Queiroz voltou
outro homem [...]” (PALEÓLOGO, 1948, p. 51). Esses dois
momentos de fugas apontados pelo crítico brasileiro
foram colocados na posição de responsáveis pelo fim da
“censura” na personalidade de Eça, que fora construída
com base em ensinamentos morais, religiosos e sociais.

Coimbra foi um poderoso agente demolidor da


censura do romancista que, ouvindo as ideias
arrojadas dos que então pontificavam, começou a
empurrar para um plano secundário as noções
morais que havia adquirido na infância.
Inconscientemente suspeitou que, aderindo às

60
idéias dominantes, encontraria um caminho seguro
para a libertação de seus recalques. Foi, aos poucos,
vencendo a timidez que o tolhia e dentro em breve
entrou a tomar parte ativa nos acalorados debates
em que se discutia a existência de Deus e se
vituperava a estupidez e o fingimento dos
burgueses (PALEÓLOGO, 1948, p. 53-54).

Verifica-se, na análise de Paleólogo, uma linha


freudiana, uma vez que, para ele, o processo de construção
literária de Eça advinha do subconsciente, que
representava o impulso sexual do escritor. Assim,
partindo desse princípio, é possível observar que o
brasileiro estabelece a seguinte relação: “Amaro é ele
próprio, o cônego é seu pai, a S. Joaneira sua mãe e Amélia
a irmã” (PALEÓLOGO, 1948, p. 64). Tudo isso para provar
que Eça, molestado pelo “problema angustiante do sexo”
(PALEÓLOGO, 1948, p. 67), servira-se da figura de um
padre para controlar o seu impulso incestuoso, isto é, para
Paleólogo a escolha do personagem principal do Crime ter
sido um padre representara o desejo de Eça de se ver
“forçado a conservar a castidade” (PALEÓLOGO, 1948, p.
68). Na verdade, o que o crítico brasileiro defende é que
Eça tivera como objetivo principal: representar o “erro”
dos seus próprios pais. Os mesmos encontros proibidos
entre Amaro e Amélia, o Cônego e S. Joaneiro, serviram
como forma de representação do encontro com José Maria
e Carolina e, deste ato amoro- so, a concepção do fruto
proibido.
Ao comentar sobre O primo Basílio, Paleólogo afirma
que o segundo romance fora resultado de uma progressão
e “feita a experiência inicial, o romancista se afoita a

61
representar com mais verdade o problema do sub-
consciente” (PALEÓLOGO, 1948, p. 93). Para ele, os
romances o Crime e o Primo foram escritos com fins morais
e educativos e que Eça utilizaria da imoralidade para
passar a moral à sociedade portuguesa, ou seja, “o
consciente de Eça, convicto de que trabalha pela
moralização da sociedade portuguesa, não se perturba ao
tratar dos mais escabrosos assuntos [...]” (PALEÓLOGO,
1948, p. 96).
Se no Primo Eça recorrera a imagens fortemente
eróticas nos encontros entre Basílio e Luísa, isso se
justifica, segundo Paleólogo, ao próprio temperamento do
escritor. Em vista disso, o crítico brasileiro abrange toda a
produção literária de Eça regida por um único motivo: “a
necessidade de satisfazer os seus impulsos inconscientes”
(PALEÓLOGO, 1948, p. 97).
Mais adiante, o crítico retoma a ideia de O primo
também ser a representação de desejos sexuais destituídos
de uma base moral, por isso volta a fazer relações
afirmando que a personalidade de Eça estava fragmentada
no romance: “Basílio, o impulso incestuoso; Sebastião e
Jorge, duas metades do irmão que protege; Juliana, a
censura corrompida” (PALEÓLOGO, 1948, p. 108).
Para o crítico, o romance Os Maias fora um divisor de
águas. Antes, Eça apresentava um comportamento
explosivo e, depois, um comportamento passivo.
Pensando nisso, Paleólogo nota que o escritor português,
a partir desse romance, conseguira resolver seu problema
psíquico “e a sua consequente libertação das cadeias
sensuais que lhe deformavam a visão dos homens e das
coisas” (PALEÓLOGO, 1948, p. 125).

62
Paleólogo, muito mais do que nos Maias, verifica que
fora em As cidades e as serras que Eça encontrara paz e se
reconciliara com Portugal e com a família, abrindo
caminho para escrever as lendas dos santos. Logo,
verifica-se que, na concepção de Constantino Paleólogo, a
obra de Eça é fragmentada, porém, não como os outros
queirosianos a colocaram, embasada nas mudanças
comportamentais, e sim determinada pela psicologia do
autor: “partindo da violação chegou ao incesto, sempre
num crescendo de sensualidade e, depois de liberto, seguiu
num crescendo de espiritualização, até alcançar o Cristo por
intermédio das Lendas dos Santos” (PALEÓLOGO, 1948, p.
201).
Em suma, Paleólogo remonta a evolução psíquica de
Eça, afirmando que as críticas realizadas pelo escritor à
religião, à família, à sociedade portuguesa causaram-lhe
“satisfação intrapsíquica de seus impulsos”
(PALEÓLOGO, 1948, p. 229). Assim, o estudo
psicanalítico realizado por Paleólogo sobre Eça destaca o
complexo de Édipo instaurado na obra do escritor,
determinante na construção dos personagens
queirosianos.
Diante do exposto, parece que há um leve movimento
em direção a uma nova crítica sobre Eça em meados do
secúlo XX, todavia, o que existe é um aprofundamento da
abordagem psicológica nos três críticos, que já havia sido
trabalhada pela crítica seminal do início do século passado
de maneira menos pontual.
Em uma espécie de montagem de um quebra-cabeça,
esses estudos que ecoaram a crítica seminal relacionam-se
e complementam-se no intuito de retomar o retrato do
autor com psique frágil e dândi talentoso que os textos

63
fundadores divulgaram e instituíram como única
verdade.

REFERÊNCIAS

DELGADO, Luiz. Os temas religiosos de Eça de Queiroz. In:


MIGUEL-PEREIRA, Lúcia; REIS, Câmara (orgs.) Livro do
Centenário de Eça de Queirós. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições
Dois Mundos, 1945, p. 230-236.
LINS, Álvaro. História lietrária de Eça de Queiroz. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1939.
MONTENEGRO, Olívio. Conceito e técnica do romance em Eça de
Queiroz. In: MIGUEL-PEREIRA, Lúcia; REIS, Câmara (orgs.)
Livro do Centenário de Eça de Queirós. Lisboa/Rio de Janeiro:
Edições Dois Mundos, 1945, p. 109-126.
PALEÓLOGO, Constantino. Eça, literária, psicoanaliticamente.
Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1948.

64
A COESÃO E A COERÊNCIA NO HIPERCONTO
MULTISSEMIÓTICO “UM ESTUDO EM
VERMELHO” (2009): IMPLICAÇÕES PARA A
CONSTRUÇÃO DO SENTIDO3

Fernanda Karyne de OLIVEIRA


Amasile Coelho Lisbôa da Costa SOUSA

INTRODUÇÃO

As Tecnologias Digitais da Informação e


Comunicação (TDIC) redesenharam as práticas sociais
contemporâneas e delinearam novos espaços de
convivência e de interação. Vivemos a chamada era da
“modernidade líquida” marcada, sobretudo, pela fluidez
das coisas, estas que “não conseguem manter a forma por
muito tempo” (BAUMAN, 2005 p. 57). A liquidez dos
tempos propiciou mudanças rápidas, constantes, que
obrigaram os sujeitos sociais a engendrarem diferentes
estratégias com o objetivo de se adequarem a essas
mudanças propiciadas pela fluidez dos tempos. Assim,
não é equivocado pensarmos que as mudanças históricas
e sociais foram e são mediadas pelo advento das TDIC, da
internet, da informação bilatelarizada, disponibilizada na
rede. Tudo isso aponta para transformações do que é
aprender, saber e fazer coisas na modernidade.

3 As reflexões dispostas neste artigo, dizem respeito ao capítulo de análise do


Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “(Des)construindo o sentido: a
coesão e a coerência no Hiperconto Multissemiótico” apresentado na
Universidade Estadual da Paraíba – Campus I, para a obtenção do grau de
Licenciatura em Letras.

65
Nesse contexto marcado por intensas mudanças,
podemos dizer que as questões relacionadas à leitura e à
escrita também sofreram transformações. A comunicação
mediada pela tecnologia provoca mudanças em nossa
maneira de ler e escrever. Essas mudanças surgem pela
necessidade de utilizar os recursos do meio digital.
Linguagens que antes eram periféricas tornam-se salientes
e, em muitos casos, são as protagonistas em eventos
comunicativos, como é o caso de imagens fixas ou em
movimento, destacando outras áreas como o design,
sobretudo, a programação visual (GOMES, 2007).
Imersos nesse universo propício ao surgimento de
novas práticas, neste caso, de leitura e escrita, surgem
novas roupagens para a matéria textual, que passa do
estágio estritamente linguístico para o estágio semiótico,
multimodal, interativo, e, virtual. Assim, não falamos
apenas em texto, mas sim em “hipertexto”. O conceito é
amplamente estudado por outras áreas, mas é do nosso
interesse discuti-lo pelo viés linguístico, principalmente,
questões relacionadas à textualidade, ressaltando também
a importância de incorporar essas mudanças no trabalho
com o texto na escola.
Desse modo, é possível definirmos o hipertexto como
um texto exclusivamente virtual que possui a presença de
links, capazes de mobilizar diferentes recursos semióticos
e gráficos e servir como pontes para outros textos
(GOMES, 2007), permitindo diferentes percursos de
leitura, conferindo autonomia ao leitor durante o ato de
ler. Os links são entendidos como elementos constitutivos
e principais da matéria hipertextual, pois estes propiciam
diferentes relações de sentido, de acordo com a forma e a
posição em que estão inseridos. Outrossim, suas funções

66
estruturais e discursivas dependem do papel que
desempenham no hipertexto. Toda esta situação nos
permite observar de que forma se dão os fatores de
textualidade, especificamente a coesão e coerência.
Diante das constantes ressignificações sofridas pelo
texto, bem como de sua potencialização pelos recursos
hipermidiáticos, temos o Hiperconto Multissemiótico.
Considerado como um gênero da literatura digital
(MESTRE, 2017), o gênero em questão denomina-se
hiperconto pelo fato de ser um conto para era digital que
se utiliza das ferramentas tecnológicas para potencializar
a narrativa (SPALDING, 2009). O Hiperconto
Multissemiótico apresenta-se como um hipertexto, pois é
construído a partir da interatividade entre o leitor e o texto
digital, permitindo diferentes percursos de leitura, além
da criação de novas histórias, mediante a escolha dos links
clicados (ou não) (SANTAELLA, 2008).
Impulsionados pelo seguinte questionamento: de que
forma os links atuam nos processos de coesão e coerência
no Hiperconto Multissemiótico?, e, no intuito de
respondermos a questão levantada, objetivamos com este
trabalho, estudar o papel dos links na construção dos
processos de coesão e coerência no Hiperconto
Multissemiótico. No intento de alcançarmos o referido
objetivo, traçamos os seguintes objetivos específicos: 1)
Investigar a natureza dos links, no que diz respeito as suas
funções estruturais e discursivas 2) Avaliar quais as
contribuições dadas pelos links no processo de coesão no
Hiperconto Multissemiótico; 3) Compreender como a
participação do leitor influencia no processo de coerência
do Hiperconto Multissemiótico.

67
Metodologicamente, de início, realizamos um
levantamento bibliográfico de forma a nos subsidiar na
elucidação das reflexões apresentadas, dentre os quais
destacamos GOMES (2007, 2011), HISSA (2009), KOCH,
(1990), ROJO (2013), entre outros. Em seguida, escolhemos
o corpus da nossa pesquisa, constituído de um Hiperconto
Multissemiótico intitulado “Um Estudo em vermelho”
(2009), escrito por Marcelo Spalding.
O texto em questão faz parte de um movimento
intitulado “Literatura Digital”, que tem início com a
defesa da Tese do professor Marcelo Spalding intitulada
“Alice do livro impresso ao e-book: adaptação de Alice no
País das Maravilhas e de Através do Espelho para ipad” (2012),
apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, visando à promoção da Literatura Digital.
A construção do Hiperconto Multissemiótico “Um
Estudo em Vermelho” se dá nas respostas aos e-mails
trocados entre personagem principal, detetive Mr. Dupin,
e o lautor4. A solução do caso perpassa necessariamente
pela troca de mensagens pelo correio eletrônico, já que o
personagem inspirado pela obra de Conan Doyle necessita
colher informações da pessoa que solicitou seus serviços
para solução do caso.

4 Denominação criada por Rojo (2013), para designar o leitor/usuário que, na


web 2.0, tem a oportunidade de realizar simultaneamente os processos de leitura
e escrita.

68
ESTUDANDO O PAPEL DO LINKS

Anteriormente descrito, o corpus escolhido para


análise diz respeito ao HM produzido pelo professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Marcelo
Spalding, “Um estudo em Vermelho” 5 (2009) (figura 1).
Sua produção foi consequência da eclosão do movimento
liderado pelo professor em defesa da literatura digital6, a
partir da apresentação de sua tese7, impulsionado também
por suas inquietações no que concerne à escassez de
bibliografia encontrada com relação ao assunto na web.
Ademais, em defesa do trabalho com a literatura digital,
diferenciando, pois, do livro digital e-book, escreveu
juntamente com um grupo, um manifesto8 que lista dez
premissas básicas e necessárias para o entendimento desta
vertente literária.
Destacamos das dez premissas, três que acreditamos
ser fundamentais para o desenrolar desta análise, são elas:
a segunda, a terceira e a sexta premissa do manifesto. A
segunda premissa menciona o fato de a literatura digital
criar uma nova experiência de leitura para o usuário, a

5 Destacamos que os prints que compõem o corpus de análise dizem respeito à


produção do hiperconto pela autora do trabalho. Pelo seu caráter interativo,
outros autores podem produzir percursos de leitura diferentes.
6 “Aquela obra literária feita especialmente para mídias digitais, impossível de

ser publicada em papel, pois utiliza ferramentas próprias das novas


tecnologias, como animações, multimídia, hipertexto, construção colaborativa”.
Disponível em: http://www.literaturadigital.com.br/. Acesso em 25 de
novembro de 2017.
7 Disponível em:

http://www.literaturadigital.com.br/tese/teseLiteraturaDigital.pdf. Acesso em
25 de novembro de 2017.
8 Disponível em: http://www.literaturadigital.com.br/?pg=25012 Acesso em 25

de novembro de 2017.

69
terceira, sob essa perspectiva, chama atenção para o fato
de ela requisitar um novo tipo de texto, bem como um
novo tipo de autor. A sexta focaliza a possibilidade de a
literatura digital poder ser multimodal, hipertextual,
colaborativa, sem que necessariamente sejam recursos
utilizados concomitantemente.
Olhando para as premissas citadas e o Hiperconto
destacado, percebemos que, de fato, consiste em uma obra
de literatura digital. Ressaltamos aqui que embora nos
interesse para esta análise a materialidade textual no que
referencia à construção do hipertexto, é crucial que
estabeleçamos um elo com as definições literárias para
que, por sua vez, entendamos o processo de construção do
gênero digital literário, aludindo para a forma como os
fatores de textualidade se apresentam. Para fins
classificatórios no que tange aos links, utilizaremos as
classificações de Hissa (2009) e Gomes (2011) que os
categorizam levando em consideração suas funções
estruturantes e discursivas como resultado das funções
que eles desempenham no hipertexto, desembocando em
sua atuação como elementos coesivos.
Entendemos que o HM, por ser uma obra de literatura
digital criada nos moldes mencionados é, inevitavelmente,
um hipertexto, pois é construído a partir da interatividade
entre o leitor e o texto digital, permitindo diferentes
percursos de leitura, bem como a criação de novas
histórias, mediante a escolha dos links clicados (ou não),
proporcionando também o que é posto na primeira
premissa que destacamos: a criação de uma nova
experiência de leitura.
Baseado no método da análise combinatória, o HM
escolhido para análise é construído a partir das

70
interferências proporcionadas pelo lautor durante sua
leitura/escritura, fazendo, então, com o que o final possa
ser mudado, de acordo com o que é visto na interface
inicial (FIGURA 1) (destacado de verde). Podemos dizer
que ele é estabelecido na e pela coautoria do material,
ainda que não se tenha controle do conteúdo interno
disponibilizado, mas a maneira com que se define a
sequência dos tópicos, interligando o conteúdo a outro em
diferentes ordens, define e, por vezes, altera o próprio
contexto (SANTAELLA, 2008), o que justifica a segunda
premissa destacada, no caso, um novo tipo de texto para
um novo tipo de autor.
Ainda com relação à estruturação do hipertexto e,
consequentemente da estruturação do gênero, temos que
os hipertextos podem ser classificados em duas grandes
categorias: abertos e fechados (GOMES, 2011). Os
hipertextos abertos têm nos seus links a possibilidade de
serem levados a servidores distintos e os fechados
referem-se a conteúdos que se encontram armazenados
numa única unidade de armazenamento. Podemos
considerar este HM em específico como um hipertexto
misto, pois os links dispostos não somente levam a lugares
dentro do próprio documento, mas também a sites postos
na web. Sua própria estruturação delineia o dinamismo do
gênero, que ao mesmo tempo em que fornece uma
história, conecta outros assuntos.
No que tange à estruturação do HM escolhido para a
apreciação, este se estrutura em formato de e-mail,
hibridizando9 o gênero. A construção do hiperconto pelo

9 Admitimos para esta análise que o termo hibridismo refere-se à confluência de

linguagens (verbal, visual, visual, sonora, multimodal, entre outras) que se inter-
relacionam, ou seja, que se cruzam para significar.

71
lautor se dá nas respostas ao e-mail trocado com o
personagem principal (Mr. Dupin). A trama versa na
solução de um caso pelo detetive em questão, personagem
principal da história necessita colher informações da
pessoa que solicitou seus serviços, no caso, o lautor, no
intuito de solucionar o caso.
Há no gênero relações intertextuais bem delimitadas
e possíveis de serem identificadas, não só pelo auxílio dos
links em si, mas pela própria ideia no projeto de literatura
digital pensada pelo autor, que se inspira no primeiro
romance de Conan Doyle e no seu personagem mais
famoso, o detetive Sherlock Holmes, para arquitetar a
narrativa digital. Os links em vermelho, sobrepostos uns
aos outros (FIGURA 1) (destacados de cor azul), quando
clicados, também propiciam tais relações intertextuais,
tanto com sites como com textos acadêmicos e livros. As
intencionalidades do autor bem como a aceitabilidade do
lautor se demonstram na forma e disposição dos links, na
capacidade de se construir colaborativamente a narrativa
digital.
Quanto à estrutura e à flexibilidade de navegação do
hipertexto, podemos caracterizá-lo em quatro tipos:
sequencial, hierárquico, reticulado e em rede (GOMES,
2011). O modelo sequencial assemelha-se aos textos
impressos por sua disposição linear, e, no máximo,
bidirecional. No modelo hierárquico, temos uma entrada
principal que dá acesso ao documento, e, através dela,
temos acessos a outros documentos de forma hierárquica.
O modelo reticulado permite maior liberdade, embora não
integre todos os documentos, e, o mais idealizado entre os
hipertextos, o modelo em rede, que é descentralizado e

72
não é hierárquico, permitindo que todos os documentos
possam ser acessados a partir de qualquer ponto.
Percebemos na classificação quanto à estrutura e
flexibilidade, que é possível depreendermos o Hiperconto
como sequencial, pois à medida que acontece a troca de e-
mails, temos uma leitura linear, que depende
prioritariamente das respostas conferidas pelo lautor, no
caso o contratante dos serviços do detetive, e também
como hierárquico, pois os links em vermelho (FIGURA 1)
(destacados de azul) funcionam como entrada primeira e
lá dão acesso a outros documentos, como já mencionado.
Figura 1: Interface inicial

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

Enveredando pelo viés classificatório proposto por


Hissa (2009) e rearticulado por Gomes (2011), os links
destacados em azul podem ser classificados como textuais,
segundo a morfologia. Links dessa natureza podem vir
sublinhados, com cores diferentes, também podendo
variar conforme o tipo e o formato da letra, induzindo ao

73
clique. Os links em vermelho levam o usuário a
informações adicionais, como dados do autor, discussões
sobre o conceito de literatura digital, sobre o próprio
conceito de hiperconto, ampliando na própria narrativa os
horizontes de leitura do lautor.
Olhando para sua atuação como elemento coesivo,
dizemos que eles podem atuar como referenciais
exofóricos (KOCH, 1990), por terem em seus textos links
implicados, isto é, que aparecem como parte do texto ou
da imagem, ficando embutidos no próprio texto, ainda
que estes também sejam textuais, o coautor do texto
interfere em sua construção mediante a escolha de um dos
links. Cada link proporciona ao lautor um percurso de
leitura e construção textual diferente, como por exemplo,
o link “literatura digital” que apresenta dentro dele outro
link que leva ao site do Movimento “Literatura Digital”.
Ainda seria possível dizermos que os links em
destaque da cor azul estabelecem um processo de coesão
sequencial, realizada pelos elementos conectivos capazes
de estabelecer diversos tipos de relações semânticas
(KOCH, 1990). Como enfatizado, o hipertexto se constrói
a partir de escolhas, mesmo que reguladas, como no texto
do corpus de análise. Por outro lado, ainda se configuram
como escolhas, pois a partir do clique ou até mesmo do
não clique dos links implicados anteriormente
mencionados, o percurso de leitura se diferenciará, se
constituirá sempre outro para cada lautor, semelhante, em
alguns momentos, ao que ocorre no texto impresso, pois
não podemos perder de vista que o hiperconto também é
linear:
Não podemos ignorar que na construção de textos
impressos o autor busca orientar seu leitor virtual

74
através de marcas explicitas de coesão e também
através da determinação de uma certa seqüência de
leitura, na qual os segmentos anteriores são um
contexto pressuposto para as informações que
seguem. Essa ordem é pressuposta mesmo quando
o leitor opta por caminhos alternativos (lê a
conclusão antes do início do texto, por exemplo)
(BRAGA, 2005, p. 758).

Com relação à parte destacada em amarelo, ao digitar


o nome e o e-mail, o lautor tem acesso ao hiperconto e
também se torna coautor dele, tornando-se responsável
pela produção da história. A palavra “entrar” também
pode ser classificada como link textual, pelas questões já
mencionadas. O clique no link “entrar” proporciona ao
lautor adentrar no hiperconto e construí-lo. A própria
localização do link o dá uma maior importância e confere
a ideia de continuidade (GOMES, 2011). Diferentemente
dos links mencionados, este atua enquanto um elemento
endofórico de natureza catafórica, porque vai antecipar um
item que ainda não foi expresso no texto, no caso, a partir
dele é que se iniciará a narrativa. Além do mais, a própria
semântica do termo “entrar”, de certa forma, conflui para
sua própria atuação.
O último link que destacamos nesta interface inicial,
em que o autor denomina de capa do hiperconto é o
destacado de laranja. Outro link textual, desta vez
responsável pela integração de som à narrativa. Sua
colocação na capa do hiperconto, na parte inferior do
design, confere importância ao link e instiga a clicá-lo. O
som promove a ambientação da história e, com isso,
prepara o lautor para a narrativa que ele irá,

75
posteriormente, ler e construir. Não percebemos sua
atuação como elemento coesivo em si, embora seja parte
importante para a criação de uma atmosfera contextual,
por assim dizer.
Na interface inicial, também é possível enxergar a
colocação de imagens que permanecerão por toda a
narrativa, dispostas estrategicamente, pois a caricatura
colocada para representar o personagem principal pode,
da forma como disposta, representar não somente o Mr.
Dupin, como o próprio Marcelo Spalding. Há também a
imagem de um livro, que reforça uma das premissas do
próprio manifesto que diz que não é pretensão deste tipo
de literatura abolir ao livro, e sim promover o diálogo
entre a mídia impressa e a mídia digital.
O jogo de articulação da imagem propicia uma leitura
multimodal, não só pela colocação do áudio, mas também
pela integração da imagem, comprovando o destacado na
sexta premissa. De acordo com a professora Denise Bertoli
Braga, uma das dificuldades que recai na produção do
hipertexto se dá justamente na capacidade de articular
linguagens, propiciando essa integração multimodal e
harmônica capaz de significar:

Outra dificuldade que se coloca para a produção de


hipertextos é a integração de linguagens. Para que
a comunicação seja eficiente, a junção das
diferentes modalidades precisa ser feita de forma
complementar e funcional. Embora a comunidade
letrada esteja, em geral, acostumada a interpretar
as imagens veiculadas por diferentes meios de
comunicação, a interpretação dessas imagens é,
muitas vezes, feita de forma não analisada e não
crítica (BRAGA, 2005, p.758).

76
A interface dois, ou primeira página do hiperconto,
associando a uma experiência de leitura em texto escrito
impresso, traz o primeiro e-mail trocado entre o lautor e o
detetive. Percebemos a relação quase que totalitária, haja
vista a supressão de alguns recursos como a inserção de
emoticons, imagens, arquivos, com o gênero e-mail.
Destinatário, assunto, corpo do texto e a palavra “enviar”
permanecem na narrativa. Como enfatizado
constantemente nesta análise, a possibilidade de escolher
é o que rege a produção dessa narrativa. Tal lógica
também é valida para o conteúdo regulado pré-
estabelecido. Assim, para o autor do hiperconto, não há a
necessidade dos recursos suprimidos anteriormente
citados, bastando apenas os dispostos para atingir seus
objetivos.
Ao lermos o enredo, vemos que ao lautor é conferida
a condição de personagem da história, em um contexto
previamente delimitado: o desaparecimento de sua irmã.
A nova experiência de leitura dada ao lautor, não recai
somente na capacidade dele interagir na narrativa através
de sua coprodução, mas também ocorre por meio da
delegação de outros papeis, nesse e-mail
especificadamente o papel de personagem secundário,
mas responsável pelo desenrolar da narrativa, o que, nesse
contexto, convida-o a interagir. Essa nova experiência de
lescritura10 se dá também a partir do contato dele com a
manipulação e adaptação com o metamorfoseamento dos
gêneros pela narrativa digital, no caso, o rearranjo do

10 Neologismo criado pela autora do trabalho para explicitar o processo em

questão.

77
gênero e-mail para o atendimento das necessidades do
hiperconto.
Centrando na disposição geral da interface
evidenciada, destacamos que os links em vermelho e o link
referente ao projeto de literatura digital permanecem.
Podemos entender a sua fixidez se os identificarmos
também como links de expansão, pelo seu caráter
sumarizador. Mas também é possível dizermos que ao
mesmo tempo em que assumem as funções que já foram
destacadas, podem também ser considerados links de
referência, por levarem a outras páginas ou seções da
mesma página. A fixidez desses links por toda a narrativa
pode ser justificada pela própria característica do
hipertexto, a de idas e vindas, tomadas e retomadas.

78
Figura 2: Interface dois

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

Com relação ao link “enviar”, além de textual é


também superposto. Os links superpostos por estarem de
forma explícita na página, muito pelo seu caráter textual,
são convidativos e pressupõem necessariamente o seu
clique. A estrutura enredística dada pelo texto necessita
que o link seja clicado, não só pela estruturação em forma
de e-mail, que requer o envio e, consequentemente,
resposta, mas pela própria demanda colocada pela
história: urgência em resolver o desaparecimento da irmã
do lautor.
Coesivamente, podemos atribuí-lo a função
referencial endofórica de caráter catafórico. Além da
coesão referencial ele também estabelece o processo de
coesão sequencial por conferir progressão temática ao

79
texto. Os links que aludem à troca de respostas entre os
personagens podem ser considerados dêiticos, pois
convidam o leitor a um movimento de projeção (XAVIER,
2004), que pode ser realizado também pelo acionamento
dos seus esquemas interpretativos, já que sabemos que os

Figura 3: Interface Três

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

links fazem mais do que conectar documentos ou


continuar textos, eles acionam esquemas interpretativos
antes mesmo de que o novo documento esteja aberto, por
meio do direcionamento conferido pelo link, como na
disposição da interface três (FIGURA 3), nos links
destacados em azul.

80
A resposta de Mr. Dupin ao e-mail enviado pelo
lautor, que no texto pede explicitadamente que se refira a
ele de outro modo, fazendo menção a outra relação textual
marcadamente explícita, no caso, o diálogo com as obras
do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, necessita
pela primeira vez de uma intervenção mais incisiva, por
assim dizer. Para que o e-mail seja respondido, é necessário
que o lautor coloque mais veementemente sua impressão
sobre o caso. As duas possíveis respostas mediatizadas em
forma de links dão cada uma um rumo diferente a história.
Por isso que cada narrativa construída é diferente, pois a
escolhas dependerão de cada lautor que construí-las. A
respeito desse processo de escolhas, comenta o autor do
hiperconto:

Vale lembrar que há autoria na escolha dos finais e


sua relação com o caminho percorrido, não sendo
os finais de forma alguma aleatórios. Por exemplo,
se o leitor foi sempre intempestivo nas suas
escolhas, acabará com um final violento, talvez até
morrendo. Há uma relação lógica e de valores
expressa nisso, daí a importância da autoria na
montagem desses finais. Outro autor
possivelmente faria outros finais com as mesmas
combinações (SPALDING, 2009, disponível em
http://www.artistasgauchos.com.br/_estudoverme
lho/. Acesso em 20 de novembro de 2017).

Os dois links em destaque são também textuais e


superpostos, pelas mesmas características explicitadas nos
itens anteriores. Vale ressaltar que os links não foram
dispostos de forma aleatória, prova disto é que as
possíveis respostas a serem dadas assumem o valor

81
discursivo do link “enviar”, que apareceu nos e-mails
anteriores. A experiência de imersão de leitura, bem como
de escrita, se dá justamente pela importância da escolha,
que legitima o processo de autoria do hiperconto e
fundamenta o conceito de coprodução. Os links em
destaque não só induzem ao clique, como restringem, no
sentido de direcionar a produção e a leitura do hiperconto.
A escolha (ou não escolha) do link aprofunda o
processo imersivo e demanda o acionamento de esquemas
de leitura. A escolha é influenciada de acordo com os
conhecimentos de mundo e a bagagem de leitura de cada
um, bem como de suas preferências em relação à leitura. É
importante não perdermos de vista que a colocação dos
links tem haver com a ordem semântico-discursiva
conferida pelo autor ao texto, o que justifica a colocação de
dois links para uma posterior resposta, atentando para o
fato que “é necessário pensar em sua estrutura, em como
os diversos textos serão interconectados, pois essa
indecisão influenciará na forma de busca e de recuperação
de informações e afetará grandemente os percursos de
leitura possíveis e a construção de sentidos” (GOMES,
2011, p. 45).

82
Figura 3: Interface quatro

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

A resposta que figura na interface quatro (FIGURA 4)


se deu devido à escolha da segunda opção. O e-mail abre-
se como uma espécie de justificativa do autor por ter
colocado a primeira opção para ser escolhida.
Vislumbrando essas nuances, apreendemos que a
interatividade não se dá somente pelos links, mas também
pela forma como a história é articulada. Quanto ao link
“responder” (destacado de verde), ele também pode ser
classificado como textual e superposto. Apresenta
também natureza endofórica de caráter catafórico.
Reforçando o caráter interativo e dinâmico do
hiperconto, temos a interface cinco, que intima de
imediato a escolha de um dos e-mails como resposta
mediante a seguinte afirmação “escolha sua resposta”. Um

83
lautor menos aguerrido optaria pela primeira resposta,
diferentemente de um lautor audacioso que escolheria
prontamente a segunda opção.

Figura 4

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

Como pujante nesta análise, as escolhas, ainda que


reguladas, são as responsáveis pelos percursos de leitura,
uma construção altere multilinear, marcada por
fragmentações, descorpórea e volátil, mas marcadas pelo
exercício dos saberes:

No hipertexto – como, aliás em todos os demais


usos da linguagem – há sempre a consideração do
outro, mas nele ela é levada às últimas
consequências. Ainda que a única tarefa do autor

84
fosse a marcação dos links, ele teria sempre em seu
horizonte a projeção da imagem do leitor. E este
será sempre coautor, já que o acabamento do
(hiper)texto não pode prescindir de sua
participação. Trata-se, no caso, de uma alteridade
multilinearizada, fragmentada, descorporalizada,
volatilizada, mas fundada em nossos saberes,
nossas relações com o mundo e nossa inserção em
dada cultura (KOCH, 2007, p. 35).

Com relação à interface seis, ela foi gerada a partir da


escolha do primeiro link da interface cinco. Possivelmente,
a escolha do outro link ofereceria outro percurso de leitura.
O link destacado na interface corresponde ao próprio
corpo do texto e, automaticamente, a um ícone
responsável por enviar a mensagem. A hibridez da
narrativa a confere e porque não dizer, autoriza realizar
tais reformulações, contudo, sem perder de vista seu
propósito: a solução do caso pelo detetive inspirado na
obra de Poe e Doyle. Tal proposição justifica sua natureza
textual e implicada, como também seu caráter referencial
endofórico de natureza catafórica.

85
Figura 4: Interface seis

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

A interface sete (FIGURA 7) possui algumas


peculiaridades no que é referente às informações que
compõem o corpo dos textos dos e-mails das respostas e
também em sua própria disposição. Esta interface começa
de forma diferente: o texto destacado de amarelo refere-se
ao lautor, aqui em específico, ao personagem secundário,
direcionando, pois, a resposta a ser dada, a mudança ou
continuidade em seu percurso de leitura:

Há que se considerar também que, ao contrário do


que ocorre na leitura de textos impressos, cabe ao
hiperleitor escolher caminhos de leitura e construir
a coesão entre as diferentes informações acessadas.

86
Como faz uma criança ao montar diferentes figuras
a partir de peças isoladas de jogos como o Lego, por
exemplo, cabe ao hiperleitor juntar e relacionar de
forma ativa os diferentes segmentos textuais lidos,
de modo a construir um todo coeso que lhe faça
sentido (BRAGA, 2005, p. 759).

Aqui nesta narrativa é possível considerarmos legos11


não só os links que vão sendo juntados e conferindo coesão
ao que está sendo lido, mas também os próprios elementos
contextuais subsidiados por eles, ou seja, as informações
que eles vão dispondo. Os dois contextos apresentados na
narrativa para a escolha são cruciais para seu final.
Podemos dizer então que sejam os links com maior poder
de decisão. O primeiro contexto apresentando mostra o
lautor desconfiado do envolvimento do detetive no
desaparecimento da irmã e para isso convoca a polícia
para investigar.
A resposta do segundo contexto é diferente: o
personagem secundário convoca outro personagem, Big,
para ir com ele interrogar o detetive, sem a ajuda da
polícia. Os dois direcionamentos conferem caminhos
distintos a narrativa, haja vista seus teores: um comedido
e outro audacioso. Percebemos, desta forma, que as
escolhas sempre giram em torno destes universos
contextuais, com o objetivo de satisfazerem diferentes
tipos de leitores. Os links em verde mantém as mesmas
classificações já reiteradas.

11 Metáfora alusiva ao processo construção do hipertexto.

87
Figura 5: Interface sete

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

Por fim, a última interface (FIGURA 7) mostra o


desfecho da história. Nesse caso, a história teve final 5,
mas ela poderia ter tido outros finais devido ao método de
utilização de construção da narrativa: a análise
combinatória (SPALDING, 2009). No final 5, o lautor
morre devido as escolhas dos links anteriormente
realizadas. Os quatro links destacados de vermelho na
interface assumem papeis diferentes.

88
Figura 6: Interface oito

Fonte: http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/
Acesso em 10 de outubro de 2017

O link que integra mais uma vez sonoridade a


narrativa, tenta exprimir a cena final através de uma
experiência sonora, por conseguinte, multimodal. Já o link
intitulado “imprima sua versão” leva o usuário à outra
janela fora do documento, mostrando o conto com outra
formatação, mais próxima do impresso, como se cada
interface correspondesse a um capítulo. O outro link
“indique para um amigo” também abre uma janela, mas
dessa vez para uma caixa que permite enviar um e-mail
denominado de “formulário”, propiciando não só uma
leitura colaborativa como também a divulgação da
literatura digital. O último link a ser analisado neste
trabalho é o link “terminar” que tem a função de
redirecionar o leitor para o mural, o local onde o lautor

89
pode comentar como foi sua experiência de leitura e o que
ele achou do hiperconto, como também ler as experiências
de outros lautores que também realizaram o processo.
Quanto a suas classificações, o link que atribui
sonoridade pode ser considerado como um link gráfico
por ser uma semiose que não corresponde a uma forma
nominal. Os links dispostos abaixo da integração de som
a narrativa podem ser classificados como links externos,
pois levam para outras janelas foras do documento, já o
último link pode ser considerado superposto. Enquanto o
link de som e o link “terminar” são referenciais endofórico
de natureza catafórica, os links “indicar para um amigo” e
“imprima sua versão”, são referenciais exofóricos de
natureza anafórica porque vão fazer referência a um
elemento que está dentro do texto, no caso, o próprio
hiperconto.
Depois de demonstrado como se manifesta o processo
de coesão, passemos então a construção do processo de
coerência. Percebemos a importância do leitor no
hipertexto, que aqui estamos considerando como lautor,
segundo os pressupostos de Rojo (2013), pois ele é o
responsável pelos movimentos que constroem o sentido,
entretanto, isso não é uma tarefa somente do lautor, já que
a coerência não é uma propriedade estrutural do texto,
mas uma operação dada em uma perspectiva interativa.
Para garantir o processo de construção de coerência
no hipertexto, é importante que o produtor considere
quais os conhecimentos necessários para a compreensão
dos outros tópicos, isto é, aqueles módulos de que o lautor
necessita para compreender o módulo em tela, estes
oferecidos pelos links. Para Koch (1990), a coerência é o
resultado da atualização de significados que configuram

90
os sentidos. A cada link clicado, escolhido ou não
escolhido, um sentido era atualizado, cada e-mail consistia
em uma peça para a construção do todo.
Embora seja um hipertexto linear, “Um estudo em
vermelho” (2009) mostra que o processo de coerência se
dá a partir da interatividade oferecida pelo gênero.
Mesmo que seja um texto regulado, são as escolhas do
lautor que a estabelecem. Vale ressaltar também que a
constante troca e os diferentes papeis assumidos pelo
lautor não afetaram o processo de coerência, ao contrário,
deixaram a narrativa mais interativa e convidativa a
leitura.
Cabe destacar, por fim, o papel dos links na
construção do processo de coerência. Muito mais que
ícones para navegação, demonstraram-se como os
atualizadores de sentido das interfaces, portanto,
responsáveis diretos pela instauração da coerência no
hipertexto. Ir para um link externo, voltar à narrativa e,
ainda assim, conseguir estabelecer um sentido de forma
coerente foi possível graças ao mapa de conexões
propostos pelos links.

CONCLUSÃO

Cada vez mais as pessoas estão se conectando


utilizando as TDIC’s, sobretudo com as tecnologias
móveis, como celulares, notebooks, tablets entre outros
dispositivos que permitem a conexão durante todo o dia.
Em tempos de web 2.0, todos os usuários também têm a
oportunidade de serem produtores e são, haja vista a
quantidade de conteúdo compartilhado na rede através
das redes sociais, sites, web pages, entre outros.

91
Este contexto produtivo favorecido pela sociedade
marcada por prefixos (hiper, multi, pluri, entre outros)
favoreceram o metamorfoseamento da produção escrita e
do ato da leitura, tornando-os também prefixais.
A incorporação de semioses, a interatividade e a
colaboratividade são marcas que delineiam a
(re)configuração desses processos. O acréscimo de ícones,
símbolos, gifs e links ajudaram no processo de legitimação
desta mudança, contribuindo, inclusive no surgimento de
novos gêneros digitais e também nas mudanças dos
papeis assumidos pelos sujeitos sociais, que além de
leitores e escritores, tornam-se lautores, já que realizam
simultaneamente os processos de leitura e escrita.
As novas formas de ler e escrever hoje são
acompanhadas das novas formas de ver e entender o
mundo, de novas práticas e de letramentos exercidos no
ciberespaço e por ele possibilitados. Desta maneira,
dizemos que as tecnologias digitais da informação e da
comunicação (TDIC’s) constituíram novas de formas de
ler e escrever utilizando interfaces novas como o teclado e
monitor, os navegadores específicos para leitura, os
editores de textos, dentre outros, que nos apresentaram
outras formas de construção de sentido.
Nesse sentido, estudamos o gênero da literatura
digital Hiperconto Multissemiótico intitulado “Um Estudo
em Vermelho” (2009), de Marcelo Spalding. Percebemos
que além de uma obra digital, pois utiliza recursos
multimidiáticos para potencializar o texto, é também um
hipertexto por se construir a partir de “maneiras
alternativas [...] que ajuda a contornar as dificuldades
impostas à leitura do texto na tela e também a explorar os
recursos oferecidos pelo meio digital, como os links e a

92
inserção de imagens” (GOMES, 2011, p. 45). Além disto,
também pode ser considerado um gênero emergente da
tecnologia digital (MARCUSCHI, XAVIER, 2004), por
possuir similaridades com o texto impresso, no caso, o
gênero conto.
De acordo com os objetivos propostos, com relação ao
papel e à atuação dos links no Hiperconto, percebemos
que, em sua maioria, atuam como elementos coesivos,
configurando-se como estabelecedores tanto do processo
de coesão referencial quanto do processo de coesão
sequencial (KOCH, 1990), por considerarmos que os
fatores acima mencionados, assim como os processos de
leitura e escrita que se metamorfoseiam, a eles são
conferidos novas roupagens, muito pelo local em que
estão alocados: o ciberespaço. Também depreendemos que
suas funções estruturais e discursivas influem
diretamente para sua atuação como elementos coesivos,
haja vista que a quantidade, a saliência, o local em que
estão inseridos, influenciam na construção do sentido
(GOMES, 2007).
Quanto ao papel do leitor para o estabelecimento do
processo de coerência, apreendemos que por ser o
hipertexto um lugar de coprodução de sentidos, o leitor,
aqui lautor, por desempenhar os processos de leitura e
escrita simultaneamente, tem um papel crucial na junção
dos legos (links) para a construção do brinquedo,
metaforicamente fazendo referência ao processo de
construção do hiperconto, sem perder de vista que a
interpretação de construções hipermodais exige que as
informações veiculadas pelas diferentes modalidades
sejam integradas de forma a auxiliar a interpretação de
segmentos particulares ou a construção de um sentido

93
global (BRAGA, 2005). Temos então um leitor diferente,
que é responsável por construir seu percurso na rede,
devido ao caráter interativo e colaborativo do gênero da
literatura digital.
Em tempo, vimos que um trabalho desta natureza
abre espaço para que sejam pensados novos caminhos
para o trabalho com a leitura e com a escrita, mediado
pelos novos gêneros e por todas as potencialidades
oferecidas pelo ciberespaço, já que sabemos que para
transitar neste meio, as capacidades e competências de
leitura e produção não podem ser as mesmas (ROJO,
2013).

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi; tradução,


Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BRAGA, D.B. Hipertexto: questões de produção e leitura. In:
ESTUDOS LINGUÍSTICOS. São Paulo: Editoração Eletrônica:
Mara L. F. Andrade e Claudia R. F. Andrade Aguiar, v. 34, 2005.
Anual, p. 756-761.
GOMES, L.F. Hipertexto no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez,
2011.
__________. Hipertextos multimodais: o percurso de apropriação
de uma modalidade com fins pedagógicos. 2007. 212 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Letras, Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2007.
HISSA, D. Uma proposta de classificação dos links hipertextuais a
partir de critérios navegacionais e informacionais. In: III
Congresso Nacional sobre Hipertexto. Belo Horizonte – MG,
2009.
KOCH, I.V. Coesão Textual. São Paulo: Contexto, 1990.

94
MARCUSCHI, L.A; XAVIER, A.C.S. Hipertextos e gêneros
digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro.
Lucerna, 2004.
MESTRE, A.I.B. Literatura 2.0: para uma cartografia da narrativa
digital. Tese (Doutorado) - Curso de Comunicação, Cultura e
Artes, Universidade do Algarve, Algarve, 2017.
ROJO, R. et al (Org.). Escola Conectada: os multiletramentos e as
TICS. São Paulo: Parábola, 2013.
SANTAELLA, L. O novo estatuto do texto nos ambientes de
hipermídia. In: SIGNORINI. I. (org). [Re]discutir texto, gênero
e discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SPALDING, M. Um Estudo em Vermelho. Disponível em <
http://www.hiperconto.com.br/estudoemvermelho/ > Acesso
em 10 de outubro de 2017.
XAVIER, A. C. Leitura, texto e Hipertexto. In: MARCUSCHI, L. A;
XAVIER, A. C.S. Hipertextos e gêneros digitais: novas formas
de construção do sentido. Rio de Janeiro. Lucerna, 2004.

95
96
TRAÇOS DA IDENTIDADE LINGUÍSTICO-
DISCURSIVA EM
JOSÉ LUANDINO VIEIRA

Lilian BARBOSA
Fábio Marques de SOUZA

Nas sociedades orais, sobretudo aquelas que não


apresentam nenhum tipo de contato com a cultura escrita,
o risco de que as informações ou parte da tradição acabe
por ser destruída é grande e preocupante. A memória é o
mecanismo utilizado no propósito de preservar o aparato
cultural dessas sociedades e, deste modo, a literatura oral
tem uma função imprescindível para esse tipo de cultura.
Se nos circunscrevermos à realidade angolana,
constataremos que o escritor José Luandino Vieira
apresenta um cuidadoso trabalho literário capaz de unir a
tradição oral e mitológica de uma língua bantu,
pertencente à tradição angolana, com a língua portuguesa
escrita.
O conto “O caso da galinha e do ovo” presente no
livro de contos Luuanda – obra escrita em cárcere e datada
de 1964 – retrata o bilinguismo da capital Luanda, onde o
português, imposto como língua oficial pelo colonizador,
convive com o quimbundo, a língua materna, do lar e, por
consequência, usada no cotidiano, sobretudo – porém, não
exclusivamente das pessoas mais velhas. A obra de
Luandino Viera foi considerada hermética durante um
tempo, isto porque seus textos possuíam uma linguagem
inédita, gerada pela mistura da língua portuguesa com a
língua bantu, em um movimento simbiótico. Destarte, não

97
é possível considerar o discurso empregado em Luuanda
como integrante do português padrão, pois o texto utiliza
palavras da língua portuguesa, mas ora as encaixa em
estruturas gramaticais do quimbundo, ora emprega
palavras, frases inteiras e ditos populares em língua bantu.
Apenas na década de 1980, surgiram alguns glossários, o
que veio a facilitar a leitura para o público não-angolano –
e esta particularidade auxiliou, sobretudo o público
brasileiro que iniciava o consumo da literatura angolana.
De acordo com a crítica especializada em literaturas de
língua portuguesa, além do emprego dos dois idiomas,
Luandino Vieira é responsável, ainda, por divulgar e
preservar a cultura angolana. Seus textos estao próximos
tanto do português quanto do quimbundo, e bem íntimo,
também, do popular, e ainda, não está isolado na estrutura
escrita, pois carrega forte carga oral, tanto na formalização
da narrativa, quanto no conteúdo (BARBOSA, 2012, p. 82).
Luuanda foi galardoada com inúmeras honrarias
literárias como, por exemplo, o prêmio angolano Mota
Veiga, em 1964, e o Grande Prêmio de Novelística da
Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965. José
Luandino Vieira, tornou-se conhecido por meio da revista
Cultura, de 1957 e, após muita opressão, teve seu talento
reconhecido internacionalmente. Em 2006, recusou o
Prêmio Camões alegando questões pessoais.
O desempenho político do escritor se faz presente no
MPLA (Movimento pela Libertação de Angola). Este fator
reflete na urdidura de uma literatura engajada na luta pela
independência. Em seus inúmeros romances e contos,
podemos encontrar retratadas as convivências
sociolinguísticas, expressas em conflitos de gerações,
etnias e ideologias. No caso da galinha e do ovo, o espaço é

98
o musseque Sambizanga, bairro pobre e, portanto, vítima
da discriminação e opressão econômica. O conto é uma
mostra da luta, no e pelo discurso, da mudança social. O
autor ajuda a reconstruir a cultura de uma nação que, por
muito tempo, foi desenraizada pelos processos
colonialistas perpetrados por Portugal.
A busca pela mudança social, como dissemos, se dá
no e pelo discurso. O termo “discurso” refere-se à
linguagem como prática social. Segundo Fairclough
(2001), o discurso permite às pessoas agirem sobre o
mundo e sobre os outros, de tal modo que a prática, tanto
de representação quanto de significação do mundo, o
molda e o restringe.
Ao construir o mundo, o discurso também constrói
identidades sociais, estabelece relações que contribuem
para a formação de representações sociais. A prática
discursiva, então, além de reproduzir a sociedade,
também a transforma. Para Foucault (1996), a ideia de
verdade é o instrumento que possibilita controlar e
dominar essas relações sociais. É no discurso que se
constrói a verdade, portanto, possuir o discurso
dominante é poder institucionalizar a verdade e favorecer-
se dela. Nesse ponto, gera-se um embate político que tem
como objetivo controlá-lo: “O discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder
do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p.
10).
O escritor nega sua origem portuguesa e acrescenta
“Luandino” ao nome como forma de afirmar sua
identidade africana e promove, ainda, a identidade do
povo angolano por meio da busca pela tomada do

99
discurso e imposição da verdade desde o ponto de vista
dos angolanos. Neste intuito, introduziu em seu texto o
coloquialismo da língua falada nos musseques e o
quimbundo, apresentando-o não de forma exótica, mas
integrada ao contexto maior da história e buscando
restaurar a identidade do povo.
Na obra que tentamos contemplar, a trama se
desenvolve em torno da disputa por um ovo, que
podemos entender como símbolo da identidade daquele
grupo. A briga pelo dito ‘prêmio’ nos apresenta duas
possibilidades de existência daquela comunidade
linguística: i) o conflito interno, ou ii) a união para se
defender da opressão econômica, racial, policial externa.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA VERDADE PELO


DISCURSO

O narrador nos apresenta, no conto em destaque,


duas personagens vizinhas, pobres habitantes do
musseque que, “na hora das quatro horas” disputam a
propriedade de um ovo. Nga Zefa cria galinhas e, uma
delas, passeia diariamente pelo quintal de Nga Bina, que
tem o marido preso, está grávida e não tem criações.
Nga Bina alimenta a ave com milho até que, um dia, a
galinha põe um ovo em seu quintal. As vizinhas brigam,
uma reivindicando o direito à propriedade da galinha e do
ovo, a outra, reivindicando o direito ao ovo já que a
galinha comeu seu milho e botou em seu território. Outras
mulheres vizinhas aparecem para escutar e opinar, com a
mediação da mais velha do grupo, a Vavó Bebeca. Diz Nga
Bina:

100
- Sukuama! O que é eu preciso dizer mais, vavó?
Toda a gente já ouviu mesmo a verdade. Galinha é
de Zefa, não lhe quero. Mas então a galinha dela
vem no meu quintal, come meu milho, debica
minhas mandioqueiras, dorme na minha sombra,
depois põe o ovo aí e o ovo é dela? Sukuá! O ovo
foi o meu milho que lhe fez, pópilas! Se não era eu
dar mesmo a comida, a pobre nem que tinha força
de cantar... Agora o ovo é meu, ovo é meu! No olho!
(VIEIRA, 1982, p. 79).

Uma roda de vizinhas, à moda de O cortiço, é formada


para arbitrar o caso, e os que passam na rua são
convidados a dar sua opinião. Dentre essas pessoas temos
um aspirante a seminarista (poder clerical); um ex-notário
e beberrão (a burocracia); os maridos que não ajudam as
mulheres (patriarcado); um homem branco/português
proprietário das cubatas (colonizador), o dono da venda
(exploração econômica) e os sargentos (a força policial).
Todos os que são convidados a opinar procuram tirar
proveito da desunião do grupo, tentam tornar seu
discurso como dominante, obtendo a propriedade do ovo
em benefício próprio. Esta situação pode ser ilustrada com
o caso do sô Zé pela fala da anciã:

Minhas amigas, a cobra enrolou no muringue! Se


pego o muringue, cobra morde, se mato a cobra, o
moringue parte!...Você, Zefa, tem razão: galinha é
sua, ovo da barriga dela é seu! Mas Bina também
tem razão dela: ovo foi posto no quintal dela,
galinha comia milho dela... O melhor perguntamos
ainda no sô Zé... Ele é branco!... (VIEIRA, 1982, p.
105, grifos nossos).

101
Temos, neste exemplo, a marca clara da desunião do
grupo favorecendo a ideologia da inferioridade racial: Ele
é branco! Esta ideia dá força ao discurso do outro para que,
nos termos de Foucault (1996), sô Zé possua o discurso
dominante e possa institucionalizar sua verdade,
favorecendo-se dela e requerendo a propriedade do ovo
para si:

Sô Zé concordou. Veio mais junto das reclamantes


e com seu bonito olho azul bem na cara de Zefa
perguntou:
- Então, como é que passou?
[Ele ouve atentamente e tenta tirar proveito]
- Dona Bebeca, o ovo é meu! Diga-lhes para me
darem o ovo.
O milho ainda não foi pago!... (VIEIRA, 1982, p.
106).

Finalmente, aparece a instância de opressão maior na


forma da polícia que discrimina os negros pobres do
musseque. O sargento da tropa diz que não são permitidas
reuniões, e tenta se apropriar, não do ovo, mas da galinha.
A chegada da polícia representa uma ameaça mais
concreta vinda de fora que, de certa forma representa a
opressão política sofrida antes da independência. Essa
ameaça concreta e externa à dinâmica do grupo é
suficiente para eles tomarem novamente consciência de si,
e recuperar a união perdida e requerer a posse do
discurso.

102
CONSIDERAÇÕES

Com a chegada da polícia o grupo toma consciência


de si e uma artimanha de garotos salva a galinha das mãos
aproveitadoras do sargento e a tensão interna do grupo se
dissolve. O sargento vai embora, e as vizinhas que
brigavam se reconciliam: a mulher mais velha do grupo, a
vavó Bebeca, oferece o ovo a Nga Bina, e Nga Zefa, feliz por
ter recuperado a galinha, depois de uma breve reticência
constrangida, de bom grado concorda em dar o ovo à
mulher grávida:

-Posso, Zefa?
Envergonhada ainda, a mãe de Beto não
queria soltar o sorriso que rebentava na cara dela.
Para disfarçar, começou dizer só:
- É, sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu
sei... E depois o mona na barriga reclama! (VIEIRA,
1982, p. 123).

A cena da narrativa termina com uma imagem que


reitera a mensagem do conto:

De ovo na mão, Bina sorria. O vento devagar e,


cheio de cuidados e amizade, soprou-lhe o vestido
gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o
sol punha pequenas escamas vermelhas lá embaixo
nas ondas mansas da Baía. Diante de toda a gente
e nos olhos admirados e monandengues de miúdo
Xico, a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo

103
do vestido, parecia era um ovo grande, grande...
(VIEIRA, 1982, p. 123).

Esta oposição do vestido gasto, representando um povo


cansado de dominação, contra o corpo novo, trazendo à luz
a esperança de mudanças colabora com os demais
elementos em uma combinação plástica que propicia ao
leitor uma cena imagética com sentido de regozijo, como
podemos perceber nas palavras de Bebiano (2004):

A imagem da galinha voando em liberdade em


direção ao sol, à presença da Nga Bina com sua
imensa barriga segurando o ovo, e a própria
barriga parecendo um imenso ovo, são símbolos
ligados ao princípio da vida, que está direcionado
para o futuro com promessas da nova sociedade
que irá surgir. E a nova sociedade, para Luandino
Vieira, tem potencial para nascer a partir da união
do povo simples e pobre dos musseques, das
mulheres negras, e da língua misturada falada
verdadeiramente pelo povo.

O excerto citado evidencia a grande metáfora que


o conto constrói, ou seja, o ovo como signo do novo. A
barriga “parecendo um imenso ovo” representa a
esperança no futuro e nas próximas gerações. Em suma “o
projeto literário do escritor identifica-se com os ideais da
geração de Mensagem, cujas propostas político-culturais
visavam uma Angola independente e igualitária, assim, o
texto luandino ataca as desigualdades causadas pelo
regime colonial, então em voga.” (BARBOSA, 2012, p. 78).
Na busca por uma construção identitária nacional
angolana, o trabalho realizado com a linguagem e com a

104
cultura foi um dos aspectos mais importantes. Visto que a
escrita angolana fora por muito tempo influenciada por
Portugal, assim, devia seguir padrões gramaticais
demarcados que primavam pelo preciosismo linguístico.
Com isto, o texto de muitos escritores angolanos foi, por
algum tempo, um tanto quanto artificial, já que deixava de
lado as outras línguas faladas em Angola, como o
quimbundo e o umbundo. Luandino Vieira não foi o
primeiro a produzir textos possuidores de caracteres
angolanos, mas foi o pioneiro na realização de um
trabalho que mesclava tão fortemente o português e as
línguas angolanas, dando “voz” a fala marginalizada da
população.
O conto implica, ainda, uma série de questões, tanto
sociais quanto linguísticas, nas quais essa simbiose se
apresenta. Para além disso, o texto em análise ainda
acarreta uma outra característica de alta importância: a
realidade dos musseques em sua experiência de vida
cotidiana. No conto temos os embates, dificuldades,
alegrias e problemáticas de uma realidade diferencial.
Contra o jugo do ainda colonizador Portugal à época, a
narrativa de Luandino apresenta a solidariedade da
comunidade, a força das mulheres e a alegria das crianças
como motor de esperança e resistência – possibilidade de
verdade a ser implantada. O fim explicitado pelo conto
antevê um futuro no qual o enfrentamento protagonizado
possibilita o afastar das figuras de mando, poder e engano
(simbolizadas pelos homens cujo conselho inicialmente é
solicitado). Alegoria da trajetória da ingenuidade à
consciência, o conflito permite, em consonância com o
restante dos textos presentes em Luuanda, a resistência e a

105
busca pela instauração daquela ideia de verdade proposta
por Foucault.
Destarte, tanto o conto analisado quanto a totalidade
de Luuanda são considerados possuidores de um processo
de hibridação em diversoso graus – linguístico, literário,
social, entre outros – cujas marcas a serem levantadas não
cabem nos limites deste capítulo. Contudo, a maior
hibridização – a linguística – acaba por conciliar todas as
outras e demanda a valorização da diferença como
elemento constituinte da identidade cultural e literária de
Angola.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, L. Turbilhão silencioso: oralidade e literatura em


Luandino Vieira e Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Oficina da
Leitura, 2012.
BEBIANO, D. P. Língua portuguesa e identidade nacional em José
Luandino Vieira In: Revista Tesseract, Edição especial 2004.
Disponível em: http://tesseract.sites.uol.com.br [acesso:
11/10/2018].
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB, 2001.
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo: Ática, 1982, p. 99-123.
TRIGO, Salvato. Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-
Brasileira. Lisboa: Vega Universidade, 1985.

106
LEITURA DE CORDEL NA ESCOLA: UMA
PERSPECTIVA MULTIMODAL

Rodrigo Nunes da SILVA


Linduarte Pereira RODRIGUES

1. INTRODUÇÃO

Um dos grandes desafios contemporâneos no


contexto do ensino de Língua Materna é a superação de
práticas de leitura inoperantes em sala de aula.
Entendemos o leitor a partir da perspectiva “bakhtiniana”,
aquele que é “responsivo”, que interage e se comunica.
Por isso, os novos estudos dos multiletramentos na escola
discutem como os professores podem elaborar propostas
de ensino com vistas a desenvolver nos alunos habilidades
de leitura crítica, observando os fenômenos linguísticos e
a produção de textos multissemióticos, relacionando a
pedagogia dos multiletramentos, da diversidade cultural
e de linguagens no contexto escolar. Diante do exposto,
destaca-se que a formação de leitores fluentes é um dos
objetivos mais caros ao professor que atua com o ensino
de língua materna. Mas como definir um leitor crítico?
Podemos dizer que as linguagens se tornaram
multimodais. Segundo os PCN (BRASIL, 1998, p.5), “a
principal razão de qualquer ato de linguagem é a
produção de sentido”. Os textos, entendidos como
unidades linguísticas que organizam a lógica da
comunicação são tomados como objetos que produzem
sentidos a partir da interação entre os interlocutores. Deles
são possíveis os efeitos de sentido e a atualização da

107
linguagem, tendo em vista o contexto social em que são
veiculados.
Percebe-se que o trabalho com folhetos de cordel vem
ganhando espaço nos projetos pedagógicos pelo fato dessa
manifestação artística da cultura popular entremear e
manter uma relação de interdependência entre o contexto
social e o literário, entre o erudito e o popular, o que
ocasiona o despertar do interesse dos alunos para aspectos
de sua realidade. Portanto, nosso objetivo é apresentar
uma possibilidade de letramento visual para o ensino de
Língua Materna que contemple um trabalho com imagens
de capas de folhetos de cordel para o desenvolvimento de
abordagens de reflexão sobre a língua(gem), perpassando
pelos estudos de memória, identidade e imaginário. Para
tanto, analisamos capas de folhetos de cordel que
narrativizam boa parte da experiência sociocultural do
aluno do nordeste brasileiro, ao passo que atualizam os
efeitos de sentido e os discursos que configuram suas
identidades, históricas, memórias e imaginários.
Diante disso, propomos fomentar uma reflexão sobre
o cordel nas aulas de leitura, atentando para os elementos
extralinguísticos que possam estar vinculados aos efeitos
de sentido promovidos pela leitura numa perspectiva
multimodal. Assim sendo, mediante os estudos dos
multiletramentos, partimos das leituras efetuadas em
Rodrigues (2011; 2012; 2014), Bakhtin/Voloshinov (2004),
Street (2014), Rojo (2009) e Brasil (1998), para o
desenvolvimento de uma abordagem do letramento visual
no ensino da leitura. A proposta ora apresentada encontra
seu valor nas práticas educativas regionais, evidenciando
aspectos semióticos importantes para o aperfeiçoamento
linguístico do leitor em processo de letramento escolar.

108
2. LEITURA, MULTILETRAMENTOS E
MULTIMODALIDADE

Atualmente, as práticas de letramento presentes em


muitas escolas não contribuem para o desenvolvimento de
leitores críticos e participativos na sociedade, uma vez
que, muitas vezes, não transitam pelas diversas práticas
sociais em que a leitura e escrita são demandadas (ROJO,
2009). Autores como Geraldi (2010) defendem que à
política de expansão de leitura se faz necessário acoplar
um trabalho de formação docente, para debater as
demandas de letramentos da contemporaneidade. Na
mesma perspectiva, os PCN (BRASIL, 1998, p.69) explicam
que
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um
trabalho ativo de compreensão e interpretação do
texto, a partir de seus objetivos, de seu
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de
tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata
de extrair informação, decodificando letra por
letra, palavra por palavra. Trata-se de uma
atividade que implica estratégias de seleção,
antecipação, inferência e verificação, sem as quais
não é possível proficiência.

Para Rodrigues (2011), o texto vai além de seu suporte


verbal ou vocal, envolvendo aspectos que estão no seu
exterior, condizentes ao universo contextual, o que nos faz
entender a leitura como um ato de performance que amplia
a ação da leitura. Segundo o autor

[...] a leitura não se dá simplesmente através da


palavra escrita, mas também das ‘expressões

109
simbólicas’, [...] a leitura é um processo que integra
autor e leitor, um Eu que se faz o Outro na medida
em que trabalha pela coerência necessária para o
entendimento do texto (RODRIGUES, 2012, p. 638).

Diante do fenômeno da multimodalidade textual, faz-


se necessário também uma reflexão sobre a realidade
social do sujeito leitor e sobre as práticas de leitura por ele
realizadas. Com isso, iremos trilhar por um caminho no
qual se reconhece a leitura para além de uma atividade
cognitiva ou intelectual, inserida em práticas sociais
evidenciadas na contemporaneidade pelos estudos do
multiletramento. Tais estudos perpassam pela busca de
explicações/descrições sobre um fenômeno com interesse
socioeducativo.
Lembremos que hoje o letramento é visto e praticado
dentro de um quadro amplo, mas evidenciamos a
escolarização (STREET, 2014, p. 117), isto é, o letramento
escolar. Observa-se que no contexto escolar, o letramento,
como prática de imposição de códigos a partir do codificar
e recodificar letras e números, não surte efeitos
satisfatórios, por estar desvinculado das práticas e usos
sociais efetivos (MACÁRIO; RODRIGUES, 2014). Por
outro lado, o letramento como prática social busca a
formação de um leitor competente que saiba extrapolar o
campo textual, permitindo múltiplas leituras do discurso
instaurado.
A cultura local de um povo deve fazer parte do
cotidiano das escolas. Nesse sentido, Rodrigues (2014, p.
108) destaca que em grande parte das escolas não há o
interesse “pelo letramento enquanto prática social, mas
pelo letramento como imposição de uma tecnologia de

110
códigos que se prestam à elaboração de textos e sua
reprodução sem nenhuma função social, isto é, a
alfabetização”. O autor se apega as ideias de Street (2014),
ao discorrer sobre um modelo de letramento aproximado
do ideal, o ideológico, o qual chama de “modelo de
letramento melhorado e que objetiva ser a luz que
iluminará as coordenadas do educador comprometido
com um trabalho voltado para práticas plurais de
letramento” (RODRIGUES, 2014, p. 108).
A partir das novas demandas de ensino se faz
necessário planejar atividades de leitura numa
perspectiva ampla, dialógica, levando em consideração os
aspectos multimodais encontrados nos gêneros textuais
que circulam na comunidade local. Isso possibilitará aos
alunos encararem os multiletramentos emergentes e
revisitar práticas de linguagem que possuem raízes
culturais, ressignificando atividades corriqueiras de
leitura através de uma “atitude responsiva ativa”
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2004).
Entendemos a multimodalidade num contexto em
que a produção de sentidos é realizada socialmente,
referindo-se ao “uso integrado de diferentes recursos
comunicativos, em textos multimodais e eventos
comunicativos” (VAN LEEUWEN, 2011, p. 668). A
integração entre os elementos verbais e não verbais,
imagem e texto, assumem funções distintas que colaboram
na compreensão comunicativa. Logo, por essência,
podemos afirmar que não existe texto “monomodal”, uma
vez que somente o uso da linguagem verbal se mostra
insuficiente para a compreensão dos sentidos
representados por um gênero textual.

111
Assim, ao tentar conciliar a leitura com a realidade
cultural discente, numa perspectiva local de ensino,
estaremos transitando pelos letramentos multissemióticos
(ROJO, 2009), ampliando a discussão sobre o cotidiano
para além da modalidade verbal. A imagem, o desenho,
enfim, todo arranjo visual da capa de um monumento
linguístico (RODRIGUES, 2011), a exemplo do folheto de
cordel, leva o aluno a se inserir numa prática de
letramento que se diferencia da comumente encontrada na
escola. O resultado pode ser o desenvolvimento de
competências básicas para lidar com a leitura de forma
crítica e participativa, uma vez que se desenvolverá
“numa nova estratégia de produzir sentido” (ROJO, 2009,
p. 85).

3. MEMÓRIA, IDENTIDADE CULTURAL E


IMAGINÁRIO POPULAR

A identidade cultural pode ser definida como o


conjunto de relações sociais que envolvem patrimônios
simbólicos, valores, modos de viver, entre outros
elementos compartilhados por um povo que vê o mundo
de uma forma, identificando-se através de suas
manifestações culturais. Nesse momento de
“reconfiguração do contemporâneo”, levar temas que
ressaltem a identidade dos sujeitos em sala de aula é
extremamente relevante, pois se vivencia a realidade local,
demonstrando formas de conceber o mundo, maneiras e
costumes de agir e viver, com vistas à valorização da
própria cultural e do modo de pensar do outro.
Para Hall (1997), o estudo da identidade e da cultura
de um povo rompe com a identificação de objeto, tomando

112
o termo cultura como uma prática de sentido que atua na
produção de significados, revelado pelas múltiplas
constituições que formam a cultura de um povo e suas
relações sociais.
Na sala de aula, as vivências e aprendizagens
intersubjetivas dos alunos se relacionam com a dimensão
social de identidade deles no momento de interação. Por
isso, é de fundamental importância o trabalho com
atividades reflexivas que possam levá-los a compreender
e valorizar a sua formação identitária, com um olhar para
os variados aspectos culturais da região em que se aplica;
uma vez que o sujeito aluno é ao mesmo tempo
transformado e também agente transformador do sistema
cultural em que está inserido. Segundo Rodrigues (2011,
p.104), “o cordel é um ‘monumento’ de uma cultura
imaterial”. De acordo com o autor, “A letra é memória das
vozes e, por isso, nunca exata”.
O cordel é um exemplo típico de
documento/monumento das vozes e escrituras – que deve
ser entendido como “monumento linguístico”: um
arquivo da memória coletiva que permite estudarmos a
performance do sujeito como aspecto da memória local e
que depende da estrutura social, promotora de imagens,
para a promoção de vozes apropriadas ao “tempo-espaço
de atuação dos sujeitos, dos objetos e dos valores que
surgem dessa relação” (RODRIGUES, 2011, p. 139). Nesse
sentido, as narrativas e histórias dão sentido as nossas
vidas ao se tornarem suportes da memória coletiva e
individual (HALBWACHS, 2006).
O povo da região Nordeste acaba por recorrer às
tradições populares e ao imaginário local para reafirmar
sua identidade cultural. Por isso, falar do imaginário de

113
um povo sugere levar em consideração a história e a
cultura, isto é, crenças e costumes de uma sociedade que
fazem transparecer representações e símbolos que ligam e
religam tradição e modernidade. Reafirmamos que o
cordel traz, através de seus mais variados temas,
representações do imaginário popular e da cultura local
do homem identificado e figurativizado em suas
narrativas, perpassando pelas vias transitórias da
constituição de uma visão de mundo já arquitetada, além
de revelar uma maneira de ser comum aos sujeitos que
atualizam essas vozes e materializam-se como memória
viva da localidade.

4. A AULA DE LEITURA MEDIADA POR FOLHETOS


DE CORDEL

O cordel é importante instrumento de representação


da memória popular, revelando “retratos” de uma região
e de uma sociedade. Ele descreve, de maneira
significativa, valores, crenças e costumes de um povo em
contato com o meio social, a cultural local e a história que
dá coerência aos atos humanos. Rodrigues (2006; 2011)
argumenta que o cordel atua como instrumento de uma
memória coletiva através do desenvolvimento de temas
que envolvem heroísmo, o sagrado, histórias
míticas/místicas e lendárias, que perpassam e entrelaçam
o real e o ficcional. Para o autor, observa-se nesta
expressão linguístico-literário grande variedade de temas,
tradicionais ou contemporâneos que refletem a vivência
de um povo, mediante narrativas inspiradas no
imaginário popular e proveniente da cultura oral.

114
O cordel conserva, enquanto narrativa da cultura oral,
características da tradição, como a função de educar e
divertir, fazendo uso de temas do cotidiano atual como
pano de fundo para suas produções. No Nordeste, as
crianças fazem uso desse gênero textual em suas práticas
de letramento, lendo e escrevendo, mesmo antes de
frequentarem a sala de aula. Por isso sua utilização em
eventos de letramento escolar que permitem a realização
de práticas pedagógicas exitosas em universos escolares
diversos. Esse tipo de “manifestação” artístico-popular
constrói uma trama que articula símbolos de identidade,
símbolos de experiência e trocas diversas de experiência
com as diversas camadas da sociedade brasileira.
Diante do apresentado, observa-se que um projeto de
leitura não pode deixar de levar em consideração fatores
ligados à realidade social dos educandos. Para Geraldi
(2010), a atividade docente deve se vincular às atividades
de leitura que perpassam pelas tradições orais de
transmissão cultural. Por essa razão, levar folhetos de
cordel para sala de aula é enriquecer este ambiente através
de um gênero textual que possui uma linguagem próxima
dos seus usuários, revelando um vocabulário típico, cujo
conteúdo semântico é expressivo e peculiar. Isso permite
um trabalho interdisciplinar processual, trazendo a
possibilidade de encontrar na sua riqueza temática uma
prática eficaz de letramento, com tendência à formação de
leitores competentes, aqueles que conseguem estabelecer
estratégias adequadas para abordagem dos textos que
circulam na sociedade, percebendo o que se diz nas
entrelinhas, levantando os elementos implícitos e
relacionado o texto (verbal e não verbal) com seus
conhecimentos prévios (BRASIL, 1998).

115
4.1 Folhetos de cordel em sala de aula de língua
materna: abordagem multimodal

As capas de folhetos de cordel, tradicionalmente,


apresentam-se em xilogravura, uma arte popular
medieval muito difundida pela cultura portuguesa e que
no Brasil encontrou no cordel terreno fértil de
desenvolvimento dessa arte, principalmente com o
desenvolvimento do cordel pedagógico, muito utilizado
pelos catequizadores dos primeiros brasileiros,
ampliando-se com a utilização de outros desenhos
gráficos, fotografias, etc. O uso de tal recurso de
linguagem permite o desenvolvimento de uma carga
semântica riquíssima para compreensão da
mensagem/discurso que o poeta quer transmitir com o
texto do folheto.
Na leitura de capa de um folheto de cordel, o leitor
pode criar diferentes efeitos de sentido e ao mesmo tempo
pode ignorar outros. Isso acontece pelo fato de que cada
leitor possui conhecimentos prévios distintos,
relacionados através de um processo de referenciação e
atualização do discurso pela linguagem. Tema produtivo
para debate no meio escolar.
A capa do folheto de cordel “Viagem a São Saruê”, de
Manoel Camilo, é um exemplo desse fenômeno
multimodal. Essa narrativa simboliza a história de vida de
grande parte dos nordestinos que por décadas, e
motivados pelo fenômeno climático da seca, saem de sua
terra natal com o ideal de sobrevivência. A imagem de
capa possui um caráter polissêmico, gerador de múltiplos
sentidos. Observe a imagem da capa:

116
Figura 1. Capa do cordel “Viagem a São Saruê”

Fonte: Átila Almeida – UEPB.

Na capa do folheto, percebe-se o desenho de uma


paisagem arquetípica de terra prometida, terra encantada,
dotada de riquezas e maravilhas, sem qualquer problema,
um paraíso fruto do imaginário que simboliza fartura, mas
que se torna difícil de alcançar para qualquer um, uma vez
que o caminho para esse lugar é sinuoso, cheio de curvas,
de difícil chegada. Essa viagem é produto da imaginação
do poeta, uma viagem ao fantástico, mas que é guiada pela
“estrella da poesia”, possivelmente o poeta
inspirado/inspirador que se coloca como guia divino, pois
iluminado pela estrela que pretende simbolizar.
Neste caso, o docente pode conduzir a aula de leitura
evidenciando fatos do cotidiano dos leitores que se
identificam com o narrado e discursivizado pelo poeta

117
popular, tais como a estrada ser cheia de curvas, símbolo
de uma vida cheia de obstáculos, porém quando se trilha
o caminho com esforço e dedicação, conquista-se a
recompensa, no caso de Camilo (personagem principal da
trama), o objeto de valor é a cidade de ouro e cristal. E a
estrela ilustrada na xilogravura? Seria um tipo de metáfora
visual? Ao realizar a leitura do folheto, alunos e professor
podem retomar as evidências levantadas na síntese visual
da capa mediante recorrentes leituras do material gráfico
que compõe as estrofes do folheto.
Na sequência, reproduziremos mais três exemplos de
capa. Na capa correspondente à figura 2 temos um homem
de joelhos na terra seca, um a performance de súplica,
referência à atitude do homem da região que não tendo a
quem recorrer na Terra vê em Deus sua única esperança
por dias melhores (discurso proveniente ao imaginário
religioso).

118
Figuras 2: Capa do folheto “ABC do Nordeste

flagelado”

Fonte: Átila Almeida – UEPB

Já a capa do folheto posterior (figura 3) apresenta


duas crianças estirando as mãos suplicando ajuda, além de
cactos e um sol brilhante. Os cactos representam/fazem
lembrar “candelabros”, que no imaginário popular
judaico/cristão se apresentam como objetos que buscam
iluminar o que está nas trevas, oculto, possivelmente o
sofrimento do povo nordestino. A imagem de capa faz eco
com o material linguístico do cordel e traz a denúncia da
realidade cruel, de exclusão e miséria, e de revolta do
homem do campo, fragilizado, mas homem de fé.

119
Figuras 3: Capa do folheto Seca, fome e miséria...”

Fonte: Átila Almeida – UEPB.

Finalmente, a capa do folheto “As ignorâncias de Seu


Lunga” (figura 4) apresenta objetos que fazem referência
à representação do homem da região: o chapéu,
sobrancelhas franzidas, camisa desabotoada, o bigode, etc.
As histórias de Seu Lunga expressam a vida e a figura do
homem que vive na região Nordeste, atrelado a uma
cultura colonial preservada, de forma rudimentar,
evidenciando a nordestinidade.

120
Figuras 4: Capa do folheto “As ignorâncias de Seu Lunga”

Fonte: Átila Almeida – UEPB.

Como observado, o professor pode levar para sala de


aula atividades de leitura com o intuito de fazer o aluno
desenvolver-se como leitor que pratica a leitura numa
concepção ampla, discursiva, dialógica: multimodal. Ele
pode ser agente de transformação socioeducativa que
aposta no aprimoramento do potencial de leitura do aluno
mediante o recurso da multimodalidade. Dessa forma, fica

121
evidente que assim como outros textos, os folhetos
selecionados para essa amostra de leitura permitem a
abertura de temas significativos e podem ser ponte para
um trabalho que gere conhecimentos múltiplos,
importantes para a formação do leitor em processo de
escolarização.
Partimos da assertiva de que, assim como a palavra, o
uso da imagem permite o desenvolvimento de uma carga
semântica riquíssima para compreensão da
mensagem/discurso que o autor do texto quer transmitir.
Evidenciamos que em nosso estudo, as cores, figuras,
desenhos, a diagramação, o tipo de papel dos folhetos de
cordel, etc. contribuíram para o entendimento do texto,
configurando-se como arranjo visual. Dessa forma, a capa
do cordel é porta de entrada para um trabalho que permite
o aperfeiçoamento linguístico e multimodal dos alunos da
Educação Básica.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos desafios encontrados pelos professores,


principalmente da Educação Básica, advindos das
necessidades da sociedade pós-moderna, em que há
rupturas de paradigmas, confrontos/conflitos de gerações,
faz-se necessário pensar em novas possibilidades de
ensino-aprendizagem e a reformulação de práticas
pedagógicas para que se possa elaborar um Currículo
escolar que leve em consideração políticas de inclusão,
tendo em vista o contexto das novas gerações que
necessitam de um novo fazer pedagógico.
Nosso trabalho adentra nesse cenário como forma de
subsidiar e fomentar propostas para superar a consciência

122
de que o ato de ler é apenas um mero processo de
decodificação que se volta para uma concepção de língua
como estrutura. Apresentamos uma possibilidade de
letramento escolar, levando em consideração a memória,
identidade e imaginário de nossa região nas aulas de
língua materna, tendo em vista as diversas transformações
que ocorrem na vida social dos sujeitos.
Vimos que as práticas de letramento mediadas por
folhetos de cordel ocorrem através de atividades variadas
e multifacetadas, que decorrem de forma prazerosa, pelo
fato de essa forma de expressão popular ter como marca a
tradição oral, o humor, entre outros aspectos necessários
ao desenvolvimento de práticas exitosas que motivem os
alunos para uma aprendizagem satisfatória. As imagens
de capas dos folhetos analisados refletem uma visão de
mundo, identidade e memória. Trata-se de uma
antecipação da leitura do folheto, bastante sugestiva, por
retratar um cenário típico do discurso pós-moderno,
religioso, servindo de referência e representação do
homem da região em que se aplica a proposta.
Dessa forma, fica evidente que a leitura das imagens
de capas dos folhetos de cordel, mediante eventos de
letramento aplicados ao ensino de linguagem, permite
percorrer a dimensão social do sujeito leitor, uma vez que
os alunos podem estabelecer conexões com outros textos e
com a própria vida, valorizando a identidade coletiva. Isso
faz com que ele se torne protagonista de sua história.
Assim, a proposta encontra seu valor nas práticas
educativas da região Nordeste que a Educação Básica
poderá agenciar em prol de um letramento escolar exitoso.

123
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov). Marxismo e filosofia da


linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino Fundamental de Língua Portuguesa.
Brasília: MEC, 1998.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos, SP: Pedro
e João Editores, 2010.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro,
2006.
HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro,
IPHAN, 1997.
MACÁRIO, R. O. RODRIGUES, L. P. Práticas interculturais no
currículo da escola: tecendo os fios e redes do ensino
fundamental. IV Colóquio Internacional de Educação,
cidadania e exclusão: didática e avaliação. Campina Grande,
2014.
RODRIGUES, Linduarte Pereira. O apocalipse na literatura de
cordel: uma abordagem semiótica. João Pessoa: UFPB, 2006.
(Dissertação de mestrado)
______. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras
midiáticas. João Pessoa: UFPB, 2011. (Tese de doutorado)
______. Atitude responsiva na interação verbal: a relevância do
contexto para a significação/compreensão leitora. Revista
Linguística aplicada em foco: Práticas e propostas de ensino de
língua materna na formação continuada de professores,
Campina Grande, PB: Realize, 2012, p.637-649.
______. O “entre-lugar” dos folhetos de cordel no século XXI. In:
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL.
Londrina, PR: Boitatá, 2014, p. 158-176.
ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São
Paulo: Parábola, 2009.

124
STREET, Brian V. Letramentos Sociais: abordagens críticas do
letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação.
Tradução Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2014.
VAN LEEUWEN, T. Multimodality. In: SIMPSON, J. (Ed.). The
Routledge handbook of applied linguistics. New York:
Routledge, 2011. p. 668-682.

Folhetos

ASSARÉ, Patativa. ABC do Nordeste Flagelado. s/l. s/d.

PERON, João. As ignorâncias de Seu Lunga. s/l. s/d.

SÃ DE JOÃO PESSOA. Seca, fome e miséria. s/l. s/d.

SANTOS, Manoel Camilo dos. Viagem a São Saruê. Soledade/PB:


Cordelaria e Editora Leandro Gomes de Barros, 2013.

125
126
NARRATIVA E TRAGICIDADE: APONTAMENTOS
PARA A SALA DE AULA

Marcelo Medeiros da SILVA

INTRODUÇÃO

O vocábulo trágico pertence à categoria daquelas


palavras possuidoras de uma grande extensão semântica:
pode designar aqueles que escrevem ou representam
tragédias ou o princípio filosófico ou categoria estética que
encontra sua expressão mais pura na tragédia, embora se
manifeste (ou possa vir manifestar-se) também no
romance, na música, nas artes plásticas, na poesia ou
mesmo em situações da vida real. Antes de apresentarmos
uma “definição” do que seja o trágico, gostaríamos de
reproduzir aqui o trecho final de Antígona, tragédia de
Sófocles, no qual o Coro, como palavra final, fala em
resposta a Creonte:

CREONTE – Todo o meu desejo expresso em uma


única súplica! Ouvi!
CORO – E não formules desejos. A vida é breve, e
um erro traz sempre um erro. Desafiando o
destino, tudo será destino. E aos mortais não cabe
evitar as desgraças que o destino traz
(SÓFLOCLES, 2006, p. 201).

Embora, como apregoam os formalistas russos, a


literatura não possa ser usada como argumento para
formulações, verdades ou definições científicas, as
palavras do Coro a Creonte, tirano cuja obsessão pelo

127
poder levou esposa e filho à morte, acreditamos ser uma
belíssima “definição” do que vem a ser o trágico que, na
fala acima, é apresentado, metaforicamente, sob o nome
de Destino. Ou seja, como o trágico diz respeito àquele
evento de intenso dinamismo que irá acontecer e que não
podemos evitar, ele é este acontecer cujas desgraças nós
não podemos evitar, pois é fruto de um infortúnio do
Destino ou de um erro nosso, eis o perigo com que
convivemos, dos quais podem nascer a desgraça e o
sofrimento. Em conversação normal, o predicado trágico é,
portanto, associado a acontecimentos que apresentam as
seguintes características: são geralmente tristes; envolvem
uma perda irreparável de um indivíduo único; tendem a
envolver morte, particularmente a morte inesperada,
desnecessária e prematura (MOST, 2001). Ainda de acordo
com esse autor, o termo trágico, neste caso, “distingue e
enobrece situações que expressam com particular
pungência uma contradição fundamental entre os desejos
mais profundos de satisfação e plenitude dos seres
humanos e o indiferente universo no qual eles devem
viver e fracassar” (MOST, 2001, p. 22-23). Neste sentido, o
vocábulo trágico não apresenta o mesmo significado que o
seu homônimo grego: “Em síntese, tragikon descreve, na
maioria das vezes pejorativamente, algo ou alguém que
excede, ou especialmente quer exceder, as normas
humanas comuns aplicadas a todos os outros” (MOST,
2001, p.23). Paralelamente a esse moderno uso estendido
do trágico, um outro conceito mais complicado
desenvolveu-se entre filósofos e intelectuais nos últimos
séculos e apresenta as seguintes características:

128
Uma aparência de significação que esconde a
arbitrariedade fundamental das coisas; uma
responsabilidade pessoal esmagadora que vai
muito além dos estreitos limites da liberdade de
ação e não é diminuída pelas limitações evidentes
da necessidade cega; uma nobreza indestrutível no
espírito humano, revelada especialmente no
sofrimento, na insurgência, na renúncia e na
compreensão; um inextrincável nó do destino,
cegueira, culpa e expiação; uma sabedoria final a
respeito da grandeza e da inconsequência do
homem no universo, finalmente alcançada através
da purificação conferida por um profundo
sofrimento no mínimo parcialmente não merecido
e às vezes pagando o preço de total aniquilação
(MOST, 2001, p. 24).

Devido a sua polissemia, o trágico apresenta-se, na


visão de Lesky (1996), como um “problema” que não pode
ser resolvido em toda a sua extensão e profundidade, pois
“é da natureza complexa do trágico o fato de que, quanto
maior a proximidade do objeto, tanto menor é a
possibilidade de abarcá-lo numa definição” (LESKY, 1996,
p. 21). Por isso, segundo Vecchi (2004, p. 113), “nomear o
trágico significa de imediato assumir o risco do labirinto,
cair em uma rede de incertezas, ser levado através de um
Dédalo a procurar até mesmo linguisticamente figuras
recompositivas de um conflito – o quiasmo, o oxímoro –
que apaziguem temporariamente o perturbante contato
do extremo”. Noutras palavras, buscar uma conceituação
normativa do trágico moderno e uma definição excludente
dessa categoria é, nas palavras de Sterzi (2004), deparar-se
inexoravelmente com a desilusão, pois inúmeras são as

129
visões hermenêuticas sobre o trágico, muitas delas
coexistindo em conflito entre si. Por isso, neste trabalho,
consciente da impossibilidade de obter uma definição
fechada para um vocábulo que refrata uma definição
única, pois retém em si várias outras, não nos interessa
apresentar uma definição estanque sobre o que é o trágico,
mas mostrar como aspectos dele estão plasmados na prosa
de O Ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969), de
Carolina Nabuco, notadamente no conto “O viúvo”. Após
a análise da presença do trágico, apresentamos, nas
considerações finais, alguns apontamentos que sugerem
como a autora e o conto dela escolhido para este trabalho
podem ser abordados em sala de aula.

Antes da sala de aula: considerações sobre o trágico em


“O viúvo”, de Carolina Nabuco

Romancista, memorialista, biógrafa e mulher de


grande cultura, Maria Carolina Nabuco de Araújo nasceu
em 1890 e faleceu em 1981 (COELHO, 2002). Filha de D.
Evelina Torres Ribeiro Nabuco e de Joaquim Aurélio
Nabuco de Araújo, escritor e deputado do Império, ela,
segundo Schumaher e Brazil (2000), consagrou-se por
possuir um estilo simples e erudito, rico e profundo em
conteúdo. Após o lançamento de A vida de Joaquim Nabuco,
que foi, à época, um êxito de livraria, a escritora lançou
dois únicos romances que escreveu: A sucessora (1934) e
Chama e cinzas (1947). Simultaneamente à composição do
segundo romance, Carolina Nabuco desviou-se um pouco
e escreveu um livro de instrução religiosa, Catecismo
historiado – doutrina cristã para primeira comunhão (1940), e
mais duas biografias: A vida de Virgílio de Melo Franco

130
(1962) e Santa Catarina de Sena (1957). Enquanto escrevia
essas biografias, Carolina Nabuco, não abandonando
inteiramente a ficção, escreveu uma história e outra que
foram reunidas no livro O ladrão de guarda-chuvas e outras
dez histórias (1969). Um outro livro escrito por ela foi
Retrato dos Estados Unidos à luz de sua Literatura (1967).
Ainda tendo os Estados Unidos como pano de fundo,
Carolina Nabuco escreveu, anos antes, um livro de
viagens: Visão dos Estados Unidos (1953). Além de ficção,
biografia e crítica literária, integram o acervo de Carolina
Nabuco mais dois outros livros: Oito décadas (1973) e Meu
livro de cozinha (1977). Este um livro que reúne várias
receitas; aquele, suas memórias, espécie de testamento
literário da autora.
Do conjunto dessa obra vamos nos ater apenas, neste
artigo, ao conto “o viúvo”. Esta narrativa curta apresenta
um narrador homodiegético que conta os fatos depois que
eles aconteceram e dos quais ele mesmo participou não
como protagonista, mas como personagem secundária
estreitamente ligada ao protagonista:

Este caso, de que fui testemunha há muitos anos,


ocorreu a bordo de um transatlântico rumo à
Europa. Eu era moço e sentia-me feliz por ir
conhecer novas terras, viajando com meus
primeiros proventos de arquiteto.
Esse estado de satisfação talvez me tenha sido um
dos fatores que, por pena de seu manifesto
isolamento, me lavaram a apadrinhar um
passageiro idoso e triste cuja presença constrangia
as rodas alegres (NABUCO, 1969, p. 111).

131
A partir da focalização homodiegética, os
acontecimentos ocorridos na diegese narrativa do referido
conto são oferecidos ao narratário depois que filtrados
pelo olhar e pela consciência do narrador. É ele quem
manipula a narração, oferecendo-nos fatos que já
aconteceram. Neste caso, narrar o que já aconteceu
acentua o sentido trágico daquilo que vai ser narrado,
pois, segundo F. L. Lucas (apud LUNA, 2005, p. 242), “o
pretérito é realmente o mais trágico dos tempos. Se foi
feliz, não é mais; se foi desastroso, não pode ser desfeito”.
Em outras palavras, no conto em comento, “as causas que
engendraram a catástrofe não mais podem ser alteradas e
essa terrível imutabilidade da ordem das coisas passadas
contribui poderosamente para acentuar o sentido trágico
da ação” (LUNA, 2005, p. 242). Além disso, a morte está
presente na trama do referido conto e traz consigo as
marcas do “trágico”. Apesar de existirem fatos que são
trágicos, mas não resultam em morte, esta participa
frequentemente das representações do trágico. A presença
marcante da morte como elemento desencadeador (ou
resultante) de eventos trágicos deve-se ao fato de que,
“dentre os fenômenos da vida, a morte é aquele que mais
efetivamente alia os dois traços essenciais à tragicidade:
sofrimento e resistência à razão” (LUNA, 2005, p. 19).
Assim, a morte é responsável pela deflagração do estado
lutuoso da personagem que dá título ao conto em análise.
Este personagem era “um velho chileno estancieiro, viúvo,
que ia pela primeira vez à Europa a fim de visitar, na Itália,
uma filha casada com diplomata” (NABUCO, 1969, p.
111). Ele usava luto fechado, pois perdera a esposa e sem
ela a sua existência era um fardo pesado. E, como lembra
Caruso (1989), a separação daqueles a quem se ama é uma

132
das mais dolosas experiências na vida humana – se não
for, talvez, a mais dolorosa. Nenhum ser humano é
estranho a esse fato e, diante dele, pode expressar, como
reação, sentimentos de rebeldia e resignação, o que varia
conforme a história de vida de cada indivíduo e o seu
condicionamento específico.
No caso do personagem do conto em pauta, ele
prefere, em decorrência da separação conseqüente à morte
física de sua amada esposa, manter luto fechado. Aliás,
como lembra Freud (1990), sendo uma reação à perda de
um ente querido ou de alguma abstração que ocupou o
lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o
ideal, o luto possui alguns traços distintivos, tais como:
desânimo profundamente penoso, cessação de interesse
pelo mundo externo, perda da capacidade de amar,
inibição de toda e qualquer atividade. Ou seja, o luto
profundo, a reação à perda da pessoa amada, acarreta:

O mesmo estado de espírito penoso, a mesma


perda do interesse pelo mundo externo – na
medida em que este não evoca esse alguém –, a
mesma perda da capacidade de adotar um novo
objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o
mesmo afastamento de toda e qualquer atividade
que não esteja ligada a pensamentos sobre ele
(FREUD, 1990, p. 276).

Sem querer fazer uma análise psicanalítica do conto


em pauta, aliás, os formalistas russos repudiavam toda e
qualquer análise que se baseasse em dados exteriores ao
literário, podemos dizer que alguns desses traços distintos
do luto são apresentados pela personagem em pauta, uma

133
vez que ele, devido à perda da esposa, enredava-se, cada
vez mais, na “concha da tristeza” e, por isso, era avesso às
pessoas ou a qualquer companhia que fosse. Perder a
pessoa amada gera uma frustração especialmente
dolorosa. A separação amorosa ocasiona uma dor que
talvez possa ser vista como uma das mais difíceis de ser
suportada. De acordo com Caruso (1989, p.13), não é por
acaso que, em todos os mitos religiosos, “o estado
idealizado de dor absoluta após a morte física do pecador
[seja] equiparado à separação absoluta do objeto
amoroso”.
Como um ser em profundo estado lutuoso, o chileno
vê o mundo como algo que se tornou pobre e vazio, pois,
conforme afirma Luna (2005, p. 20), além da morte, “a
ausência do trágico se prolonga na dor e no sofrimento
provocados pela ausência do ser, pela perda da existência.
É o que podemos chamar de ‘efeito trágico’, a lutuosidade
que se instala como processo de transposição para o
além”:

Não se consolava da perda da esposa. Lastimava-


se sempre nas nossas conversas dos anos,
provavelmente muitos, que ainda lhe restavam de
vida. “Tenho uma saúde de ferro”, queixava-se. A
seu gosto, dizia-me, não teria saído da fazenda
distante, onde passara a vida e que percebi ser
muito próspera e de grande desenvolvimento. Os
filhos, porém, obrigavam-no a mudar um pouco de
ambiente, com a esperança – ilusória, dizia-me ele
– de que a viagem poderia distrair-lhe os
pensamentos (NABUCO, 1969, p. 111-112).

134
Como veremos, a viagem será mesmo importante não
só para distrair-lhe os pensamentos, mas, sobretudo, para
que ele rasgue o luto. Entretanto, por ora, resta-nos frisar
que, conforme o trecho acima, o chileno, diante da perda
do objeto amoroso, vivia, por assim dizer, em plena
adoração desse objeto. Ele trazia consigo, como prova
dessa devoção à esposa, um retrato dela que foi tirado em
Paris quando ela precisou viajar para levar a mãe,
gravemente doente, para ser tratada e que, além de
registrar a beleza da morta, punha em evidência “aquele
sorriso, que não chegava a sorrir, [que] guardava um
extraordinário poder de comunicabilidade e era uma
autêntica mensagem, ou confissão, de amor feliz. Pensei:
‘Esta mulher ama e é amada [...]’” (NABUCO, 1969, p.
113). Como veremos, a referência a esse retrato e às
circunstâncias em que ele foi retirado não é aleatória.
Aliás, como afirmam os formalistas russos, na fábula nada
deve ser gratuito, pois deve haver, entre os elementos da
obra, uma relação orgânica: “Nenhum acessório deve ficar
inutilizado pela fábula. Tchekov pensou na motivação
composicional dizendo que se no início da novela diz-se
que há um prego na parede, é justamente neste prego que
o herói deve se enforcar” (TOMACHEVSKI, 1976, p.184-
185).
Pelo que nos conta o narrador, o luto apresentado
pelo chileno parecia ser eterno, pois se tornara “um
homem de poucas palavras, avesso ao convívio social e à
troca de amenidades” (NABUCO, 1969, p. 112).
Entretanto, como afirma Freud (1990), o luto, apesar de
envolver graves afastamentos, é superado após certo lapso
de tempo, o que acontecerá para esta personagem após
uma conversa banal. Em uma das noites da viagem, como

135
que por acaso, o chileno, que era avesso ao contato com os
demais, resolvera participar de uma conversa entre o
narrador e um casal de argentinos que estava em lua de
mel:
Revolta-me a terrível coincidência desse encontro
que era tão fácil não ter ocorrido, da tragédia que o
destino jogou tão desnecessariamente em seu
caminho. Por que escolhera esta noite para se
juntar ao meu grupo, ele que costumava tratar os
passageiros como se fossem inimigos? Teria havido
uma atração inconsciente, uma obra
verdadeiramente infernal para o que era
predestinado a saber, a destruição de todo o seu
passado e de quanto lhe restava de felicidade que
parecera indiscutivelmente sua? (NABUCO, 1969,
p. 118).

Fazia parte também da conversa uma terceira


personagem: um famoso escritor espanhol, o qual será
importantíssimo na configuração do elemento “trágico”
nesta narrativa, pois é o responsável por deflagrar o
inevitável, o que estava predestinado e, assim, fazer com
que o chileno rasgasse o luto pela esposa. Na conversa
aparentemente banal, para a qual o chileno, segundo o
narrador, parece ter sido chamado, pois “devia estar se
sentido ainda mais triste que de costume, triste a ponto de
não poder mais suportar o peso da solidão” (NABUCO,
1969, p. 114), o espanhol, ao saber que fazia parte da roda
de amigos um chileno, disse que um de seus maiores
amores foi uma chilena. Ao saber disso, Mercedes, a
argentina que, juntamente com o marido, participava da
conversa, pensando que ouviria mais um daqueles
picantes casos amorosos, pede ao escritor espanhol que o

136
relate. Para o narrador, essa história seria apenas mais
uma insossa água com açúcar, mas, mesmo assim, ele não
sabia explicar por que sentia “uma inexplicável aflição,
como o de ver uma pessoa tomar um caminho errado que
poderia conduzir a desastre” (NABUCO, 1969, p. 115).
Como poderemos ver, o relato do espanhol tratará um
elemento surpresa que caracterizará uma situação
inesperada, ou melhor, a revelação de uma verdade
inesperada. Entretanto, antes de sabermos que verdade é
essa, voltemos ao relato do espanhol. Este, continuando a
sua história, conta que conhecera a tal chilena em um hotel
e, durante vinte dias, eles viveram uma paixão intensa e,
ao final desse período, se separaram e nunca mais se
encontraram: “quando partiu para seu país, proibiu que
eu a seguisse ou mesmo lhe escrevesse” (NABUCO, 1969,
p. 116). Novamente, o narrador pressente a revelação do
irremediável: “atravessou-me o cérebro uma ideia que me
teria horrorizado se eu não a tivesse logo afastado por
impossível” (NABUCO, 1969, p. 116). Essa idéia, que o
narrador não chega a formular, mas que o leitor, talvez, já
seja capaz de inferir qual seria, é esta: a mulher por quem
o escritor espanhol diz ter sido apaixonado é a mesma por
quem o chileno mantém luto. Isso é revelado quando o
espanhol confirma ter sido a sua amada uma mulher
casada que viera a Paris acompanhar a mãe que estava
doente de câncer.
A vivência como dona de casa em um mundinho
restrito à fazenda do marido fez com que essa mulher se
deslumbrasse com Paris. Estar ali era um verdadeiro
milagre: “Sua alegria em descobrir Paris, em gozar dos
passeios, das lojas, da arte, fazia tudo mais belo, mais
novo” (NABUCO, 1969, p. 115). A saída do ambiente

137
privado e o contato com um lugar mais público fazem com
que a esposa do viúvo não só desfrute dos prazeres
materiais advindos das compras em lojas parisienses, mas
também se permita viver, sentir outros prazeres amorosos,
ainda que no curto espaço em que estivera em Paris. Dessa
época de felicidade, o escritor espanhol diz ter guardado
apenas uma fotografia daqueles dias:

É um desses retratos de que é costume dizer que


falam, e o que ela diz nele do modo mais claro
possível é a sua felicidade no nosso amor. Ela disse-
me que o tirou pensando em mim e a mensagem
que me quis deixar esta realmente ali, radiosa e
eloquente (NABUCO, 1969, p. 117-118).

Nesse momento, o que para o narrador se revelara


apenas como uma leve intuição, uma suspeita efêmera se
revela como verdade: “Olhei depressa para o meu amigo.
Ele podia ter desconfiado antes por qualquer detalhe, mas
vi que só agora, com essa referência à operação da mãe,
veio-lhe, como a mim, a certeza” (NABUCO, 1969, p. 116).
A esse reconhecimento de alguma verdade antes
desconhecida, os gregos chamavam anagnorisis, a qual é
definida por Aristóteles (apud LUNA, 2005, p. 259) nos
seguintes termos: “o ‘reconhecimento’, como indica o
significado da própria palavra, é a passagem do ignorar ao
conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das
personagens que estão designadas para a dita ou a
desdita”. Segundo Luna (2005), Aristóteles chama atenção
para diversos tipos de reconhecimento, como, por
exemplo, os que podem ocorrer através dos sinais do
corpo ou do despertar da memória. Este último é o que se

138
manifesta no conto em análise, pois foi relembrando que
ouvira do chileno que a esposa deste estivera em Paris
para tratar da mãe enferma que o narrador descobriu ser
verdade aquilo que ele apenas intuíra. Já para o chileno, a
história do espanhol lhe revela uma verdade antes
desconhecida: a traição da esposa a quem ele, depois da
morte dela, se mantivera fiel vestindo o luto. Essa espécie
de reconhecimento, apesar dos vários tipos existentes, é a
que se mostra como melhor, pois, urdido da própria
trama, introduz um elemento surpresa que caracteriza
uma situação inesperada e faz com que a surpresa resulte
de modo natural. Diante dessa verdade que lhe era
desconhecida, o chileno teve como ímpeto inicial atirar-se
contra o espanhol, mas se conteve e recolheu-se ao seu
camarote Nesta mesma noite de revelação, ele atirou ao
mar o retrato de sua esposa cujo sorriso de amor e
felicidade captado naquele retrato guardado na carteira
dele não era para ele e, sim, para o outro, o amante dela,
como única recordação daquela paixão fugaz. Jogando ao
mar o retrato da esposa, a quem ele se manteve fiel e que
lhe fora infiel, o chileno estava relegando-a ao
esquecimento e, ao mesmo tempo, libertando-se daquele
luto, ainda que, para isso, não tenha escapado de uma
experiência trágica, pois o trágico é “uma descrição de
certos tipos de experiência ou de traços básicos da
existência humana, ou seja, está ligado à essência da
condição humana, em sua estrutura imutável ou como se
manifesta em circunstâncias excepcionais, catastróficas”
(MOST, 2001, p. 24). Nesse sentido, a existência do viúvo,
de agora por diante, poderá ser mais dramática, pois, se
antes do momento de revelação, ele sofria porque havia se
separado fisicamente da esposa, agora, uma vez sabendo

139
que ela lhe fora infiel, ele terá de separar-se
definitivamente dela. Ou seja, ele terá de provocar a morte
dela dentro dele mesmo, o que ele já fizera ao atirar para
o mar o retrato dela. Essa separação afetiva fará com que
a esposa, antes devotada, se torne um cadáver que nem
sequer o fará mais sofrer. O viúvo, uma vez superado o
luto, terá de viver uma outra fase, talvez mais dolorosa: a
do esquecimento.

Na sala de aula: reflexões e sugestões metodológicas

Ao entrar no século XXI, a literatura brasileira traz


consigo histórias e mudanças que precisam ainda passar
pelo crivo de um olhar mais acurado e crítico,
principalmente no que tange à formação do seu cânone,
processo marcado pelo desprezo sistemático à
contribuição da mulher e pela exclusão de escritoras em
geral. A política de exclusão, no campo literário, já está
incrustada na própria palavra cânone. Conforme lembra
Perrone-Moisés (1998), originário do grego Kánon, através
do latim cânon, tal vocábulo tinha como significado regra.
Depois, passou a adquirir o sentido específico de conjunto
de textos exatos, autorizados, modelares que eram escritos
por autores – quase nunca por autoras – reconhecidos
como mestres da tradição. De origem religiosa, o termo
cânone é, portanto, empregado a certos textos e autores que
assumem caráter paradigmático e, considerados os
píncaros do “espírito nacional”, são recolhidos num
“panteão dos imortais”.
Pensar nas vozes que lhe dão sustentação é ouvir as
outras vozes que foram silenciadas durante o processo de
edificação do cânone. Entre essas vozes, estão as de

140
mulheres-escritoras cuja integração ao universo da escrita
foi marcada por uma trajetória bastante dolorosa,
principalmente porque escrita e saber, além de serem
usados como forma de dominação “ao descreverem
modos de socialização, papéis sociais e até mesmo
sentimentos esperados em determinadas situações”
(TELLES, 2002, p. 402), eram tidas como ferramentas
exclusivas do espaço masculino. Por isso, durante muito
tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a
subjetividade necessárias à criação.
Conscientes da necessidade de incorporação de textos
dessas minorias entre os que, canonizados, já circulam em
nossas salas de aula, o presente artigo propõe, como uma
primeira sugestão, que o professor procure, em meio aos
textos tomados como corpus de sua prática pedagógica,
propiciar o contato dos alunos com obras que não
despontam em nossas vitrines literárias. Devemos
esclarecer que a sugestão de inclusão de textos de autoria
feminina ou de outras minorias em nossas salas de aula é
movida não pelo desejo da inclusão pela inclusão
simplesmente. Por isso, apresentamos a análise presente
nos parágrafos anteriores, a qual poderá subsidiar uma
abordagem, em sala de aula, do conto estudado, já que o
trabalho com o texto literário, apesar de visar despertar o
prazer do leitor pela leitura literária, não pode descurar do
exercício da análise literária, o qual não deixa de ser,
inevitavelmente, um ato de leitura.
Como a maior sugestão deste trabalho é a inclusão de
textos de autores/as à margem do cânone, devemos
reiterar que essa é uma postura que pode ser tomada como
um compromisso com a (re)construção de uma memória
dessas minorias em nossa literatura, visando trazer à tona

141
vozes há muito emudecidas e configurando-se, portanto,
como uma militância política que pode ser iniciada no
ensino fundamental e médio. Cremos que, para cumprir
com esse intento, a sala de aula revela-se um locus mais
que privilegiado. Afinal, é nela que se formam os nossos
futuros leitores!
No caso da autora que indicamos aqui, Carolina
Nabuco, o seu livro de contos, do qual retiramos o texto
anteriormente analisado, apresenta histórias que poderão,
pelo seu jeito simples de narrar eventos do cotidiano,
agradar ao público-leitor do ensino fundamental ou do
ensino médio. Já que o conto é um dos gêneros literários
que está presente nos livros didáticos de ambos os
segmentos da educação básica, o professor poderá valer-
se dos contos de Carolina Nabuco para explorar com os
seus alunos os elementos da narrativa, conteúdo sempre
presente nos livros didáticos. Antes disso, seria
interessante que o professor, se for trabalhar mesmo com
a autora aqui sugerida, peça aos alunos que busquem
informações sobre ela e sobre a obra a ser lida.
Essa atividade, pode ser pedida como um trabalho a
ser realizado em casa pelos alunos e servirá como
preâmbulo para questões que, embora complexas, não
podem ser deixadas da discussão em sala de aula: quais
autores figuram em nossos livros didáticos, por que lemos
esses e não outros. Essas questões ensejam despertar o
senso crítico dos alunos para aspectos ligados à formação
de nosso cânone literário e do cânone que circula na escola
via material didático. Será que os autores que fazem parte
de um são os mesmos que fazem parte do outro? Fora
esses autores, quais os outros que nossos alunos leem?
Essas perguntas dão, a nosso ver, uma ótima investigação

142
a ser realizada pelos alunos e a ser conduzida pelo
professor. O material de investigação pode ser os livros
didáticos, paradidáticos ou conversas entre os próprios
alunos e o professor sobre seus hábitos de leitura.
Caso o professor ache que as questões anteriores não
sejam pertinentes ao exercício e à reflexão em sala de aula,
ele pode optar por deter-se apenas no estudo do conto
aqui analisado, deixando de lado questões que
extrapolam, aparentemente, a esfera do literário. Neste
caso, o professor poderá, como já havíamos sugerido
antes, estudar os elementos da narrativa a partir do conto
do qual vimos falando ao longo deste trabalho. Essa
atividade poderá ser feita respaldando-se no que sobre o
assunto apresenta o livro didático ou, o que seria mais
interessante, no livro Como analisar narrativas, de Cândida
Villares Gancho, o qual é um bom livro de iniciação à
análise do texto ficcional. Não pensamos aqui em sugerir
um número determinado de aulas; conhecedor de sua sala
de aula, o professor é a pessoa mais indicada para saber
qual a melhor distribuição em aulas para determinado
assunto. Ainda assim, pensamos que o professor poderá
entregar exemplares de contos para que os alunos leiam e,
depois, ir incitando-os a perceberem a recorrência de
certos elementos: alguém que conta a história, alguém que
realiza determinadas ações, locais por onde circulam
determinadas pessoas, um tempo em que ocorrem
determinadas ações. A partir dessas primeiras impressões,
o professor poderá explanar, brevemente, sobre o que é
conto, como ele se caracteriza, se é possível, mesmo uma
caracterização para esse gênero escorregadio e avesso a
rígidas definições.

143
Após essas explanações, se o intuito for deter-se na
análise dos elementos que sustentam uma narrativa, a
partir do conto de Carolina Nabuco, é possível ao
professor, depois de explicados aos alunos os conceitos
sobre enredo, narrador, tempo, espaço e personagem,
aplicar tais conceitos ao conto em comento. Entretanto,
considerando-se, especificamente, o referido conto, mais
do que qualquer outro elemento narrativo, o professor
poderá, a nosso ver, explorar a função do narrador,
evidenciando como tal componente estrutural é
responsável não só pela condução dos eventos da diegese
narrativa, mas, sobretudo, pela produção do efeito
inesperado que se instaura ao final da intriga. Mais do que
identificar o narrador ou classificá-lo dentro de
determinada tipologia, prática que seja, talvez, a mais
corrente em nosso ensino de literatura, o aluno deverá
perceber de que forma o narrador, como componente
estrutural, funciona dentro da história lida, não só na
configuração dos espaços e das personagens, mas também
na criação da surpresa final, aspecto comum na maioria
dos contos escritos por Carolina Nabuco. O trabalho com
ênfase no papel do narrador no conto em tela pode ocorrer
durante uma leitura oral da obra, atividade em que o
professor pode suscitar a curiosidade dos alunos, parando
em determinados momentos do conto e fazendo
perguntas sobre o que vai suceder na história.
Sendo o narrador elemento de relevância extrema no
conto “O viúvo”, os alunos poderiam ser levados a
reescrever tal conto, mudando o foco narrativo da história.
No lugar de um narrador homodiegético “que, tendo
vivido a história como personagem, retirou daí as
informações de que carece para construir o seu relato, [...]

144
[participando] na história não como protagonista, mas
como figura cujo destaque foi de testemunha dos eventos
narrados” (REIS; LOPES, 1988), como seriam contados os
eventos, se o narrador fosse, agora, heterodiegético?
Entretanto, mesmo permanecendo como homodiegético,
se a função do narrador fosse ocupada por outro
personagem, que não o que foi escolhido pela autora, que
eventos esse outro personagem/narrador destacaria como
importantes para a construção do enredo? Sendo o viúvo
o próprio narrador, como poderiam ser apresentados por
ele os eventos da diegese narrativa de tal conto? Caso fosse
a esposa do viúvo a narradora da história, será que ela
confirmaria a traição? Ou será que daria um jeito, oblíquo
e dissimulado, de negá-la? Mais do que um exercício de
leitura, esses questionamentos apontam para um exercício
de reescritura, de maneira que o professor pode mostrar
ao aluno que, conforme seja o personagem ou os
personagens a deter a cena e os eventos da enunciação, o
discurso narrativo pode ser manipulado em favor de
quem quer ver os fatos a partir de determinada óptica que
pode estar, exclusivamente, relacionada apenas à
perspectiva do personagem detentor do discurso
narrativo. Essas questões, inevitavelmente, levarão os
alunos a sair da discussão dos elementos estruturais do
referido conto para os seus elementos temáticos que não
deixam de ser também um componente estrutural.
Dentro do âmbito da temática, o professor poderá
explorar com os alunos a relação amor e traição, pedindo
que eles analisem tal relação a partir do par de
personagens o viúvo e a esposa morta. Cremos ser esse o
momento em que a palavra deve ser facultada aos alunos
para que eles se posicionem sobre o assunto, emitam seus

145
juízos de valor, enfim, possam aprender a ser sujeitos de
seus próprios discursos. Nesse momento, ao professor
caberá, sempre que necessário, intervir – mas sem sair da
posição de mediador. A partir da discussão, sobretudo,
dos elementos temáticos, as aulas seguintes poderão
tomar outros rumos, às vezes, inesperados. Compete ao
professor estar atento às situações imprevisíveis que,
felizmente, tornam dinâmico o espaço da sala de aula.
Para finalizar, devemos ressaltar ainda dois aspectos.
O primeiro está ligado ao fato de que a leitura de gêneros
literários mais extensos pode ser prejudicada, ou mesmo
não realizada, no exercício em (ou para além da) sala de
aula, devido às inúmeras exigências que se impõem ao
professor e ao aluno para além do espaço escolar.
Considerando-se tal realidade, a leitura de contos pode ser
uma alternativa viável na captação do gosto dos alunos e
na transformação deles em leitores de literatura, devido à
relativa brevidade que parece caracterizar o conto e que
auxilia a leitura de tal gênero literário dentro do curto
espaço de tempo da sala de aula. Embora não descarte na
formação do leitor a importância de outros gêneros
literários, como a novela ou o romance, para cuja leitura o
trabalho com o conto pode convergir, a crença na
importância da leitura de contos como mediadora no
processo de formação de leitores apoia-se em alguns
aspectos inerentes a esta forma breve de narrativa, tais
como elencados por Alfredo Bosi, em sua introdução ao
livro que ele organizou e que intitulou de O conto brasileiro
contemporâneo:

O conto cumpre a seu modo o destino da ficção


contemporânea. Posto entre as exigências da

146
narração realista, os apelos da fantasia e as
seduções do jogo verbal, ele tem assumido formas
de surpreendente variedade. Ora é o quase-
documento folclórico, ora a quase-crônica da vida
urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês,
ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora,
enfim, grafia brilhante e preciosa votada às festas
da linguagem.
Esse caráter plástico já desnorteou mais de um
teórico da literatura ansioso por encaixar a forma-
conto no interior de um quadro fixo de gêneros. Na
verdade, se comparada à novela e ao romance, a
narrativa curta condensa e potencia no seu espaço
todas as possibilidades da ficção. E mais, o mesmo
modo breve de ser compele o escritor a uma luta
mais intensa com as técnicas de invenção, de
sintaxe compositiva, de elocução: daí ficarem
transpostas depressa as fronteiras que no conto
separam o narrativo do lírico, o narrativo do
dramático.
Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a
temática toda do romance, como põe em jogo os
princípios de composição que regem a escrita
moderna em busca do texto sintético e de convívio
de tons, gêneros e significados (BOSI, 1977, p. 07).

Caráter proteiforme, plasticidade, diversidade de


formas e temas são aspectos que podem atrair os alunos à
leitura e, daí em diante, quem sabe, fazê-los desencadear
o processo de sua própria formação como leitores e,
melhor ainda, leitores de literatura.
O segundo aspecto que queremos ressaltar, antes do
término deste trabalho, diz respeito ao fato de que o que
vai determinar a eficiência ou não dos apontamentos aqui

147
apresentados, como sugestões didáticas, é a sua aplicação
em sala de aula, laboratório infindável para inúmeras
experiências seja com literatura ou não. Por isso,
gostaríamos, aqui, de lembrar as palavras de Chiappini
(1983, p. 113) segundo as quais, na relação entre literatura
e ensino, “não há receitas; a única receita é a invenção e a
luta contra o medo paralisador. Invenção que, no limite, é
reinvenção de nós mesmos a cada momento e, por isso,
sempre prazerosa, mesmo quando dói”. Em virtude da
ausência de receitas e, talvez, mesmo elas existindo, em
virtude da falta de crença na operacionalidade de tais
receitas, de uns tempos para cá, inúmeros são os trabalhos
que, visando à reformulação do ensino de literatura, vêm
se preocupando em fazer com que esse ensino deixe de ser
marcado por protocolos e convenções que têm mais
distanciado os alunos do que propriamente os
aproximado do texto literário. Essa tem sido também a
preocupação de professores que têm consciência de que o
ensino de literatura é muito mais do que a mera
memorização de autores e de obras.
Por isso, cresce a importância de sugestões e/ou
experiências de ensino, as quais, somadas a outras
sugestões e/ou experiências, surgidas daqui ou de acolá,
podem fazer com que os professores venham a se tornar
sujeitos do processo de escolarização da literatura, e que o
trabalho com o texto em sala de aula possa ser atraente
para o aluno e para o professor, possibilitando, assim, a
externalização do prazer propiciado pela leitura do texto
literário. Por fim, todos esses trabalhos, voltados para a
reflexão sobre o ensino de literatura e alicerçados a partir
dos mesmos ou de diferentes pressupostos teóricos,
apontam, pelo menos, para uma certeza: a de que a

148
preocupação com o ensino de literatura é preocupar-se
com formas que possam evitar que a Literatura aprisione
a própria Literatura a partir de abordagens que veem o
texto literário como mero instrumento para transmitir
conhecimentos, ensinar regras gramaticais e/ou morais, o
que afasta definitivamente o leitor do texto e não
contribui, significativamente, para a sua formação.

REFERÊNCIAS

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SÓFOCLES. Édipo rei – Antígona. Trad. Jean Melville. São Paulo:
Martin Claret, 2006.
STERZI, Eduardo. Formas residuais do trágico – alguns
apontamentos. In: FINAZZI-AGRÒ, Ettore e VECCHI, Roberto
(orgs.). Formas e mediações do trágico moderno – uma leitura
do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora, 2004.
SZONZI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria
da literatura – os formalistas russos. Trad. Ana M. R.
Filipousski, Maria A. Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio C.
Honlfeldt. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976.
VECCHI, Roberto. O que resta do trágico – uma abordagem da
modernidade cultural brasileira. In: FINAZZI-AGRÒ, Ettore e
VECCHI, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico
moderno – uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora,
2004.

150
UMA PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DE
LITERATURA MEDIADO POR MEMES

Maria da Conceição Almeida TEIXEIRA

I INTRODUÇÃO/ JUSTIFICATIVA

O processo de formação de leitor literário na educação


básica tem se mostrado insatisfatório, principalmente
porque o processo de leitura não permite ao aluno
enxergar a Literatura como um fenômeno artístico, já que,
na maioria das vezes, o priorizado é o ensino da história
da Literatura e o trabalho com fragmentos das obras
literárias, tidas como canônicas, que não estimula o
estudante à prática de leitura.

Uma abordagem de ensino de literatura que se


limite a uma concepção informativa, estreitando o
trabalho com os textos a quadro históricos ou
estéticos de forma que cristalize as eventuais
leituras em padrões prévios, não permite, ou
permite em segundo plano, uma aproximação
efetiva do leitor com a obra (KELAFÁS, 2012, p. 3).

Além disso, o que percebemos é a leitura destes


fragmentos utilizada como pretexto para se trabalhar
conteúdos tidos como essenciais no ensino de língua
(gramática, principalmente), apresentados de forma
descontextualizada que não gera interesse por parte dos
alunos de conhecer, muito menos ler, a obra da qual
aqueles fragmentos foram retirados.

151
E quando essas obras são vinculadas à disciplina de
Literatura, o quadro que se apresenta também não é
animador. Pois o ensino de literatura se limita a um olhar
classificatório, linear e informativo que prioriza aspectos
como: relacionar a literatura a uma evolução cronológica;
fornecer um quadro histórico da época, com os principais
acontecimentos; apresentar as principais escolas literárias
a que pertence o autor estudado; apresentar os dados
biográficos do autor e, finalmente, o resumo da obra
(RANGEL apud KELAFÁS, 2012).
Desta forma, percebemos que há uma grande
necessidade de fazer com que as aulas de literatura, muito
mais do que estabelecer conexões entre os textos e seus
contextos, sejam provocadoras de transformações. Que o
aluno, ao ler, seja envolvido pela leitura, que ela a encante
ou incomode, mas que o faça refletir sobre os contextos de
sua produção e relacione-a ao seu próprio contexto.
Por causa deste contexto em que o ensino de literatura
e a leitura é posto na sala, é fácil ouvir dos alunos que
literatura é “chato” e, muito mais inquietante, que eles não
gostam de ler. Ou seja, eles não conseguem se enxergar
como leitores, embora o sejam a cada minuto de sua vida,
quando leem bilhetes, rótulos de produtos, revistas de
horóscopo, as mensagens nas redes sociais (Whatsapp,
Facebook, Instagram, etc).
Se pensarmos no contexto digital em que vivemos,
perceberemos que somos expostos a textos e,
consequentemente, à leitura deles a todo momento,
embora nem sempre se perceba que, ao ler um post no

152
Facebook, uma foto no Instagram ou os memes12 que são
produzidos, divulgados e compartilhados a todo
momento, se esteja praticando a arte da leitura.
Diante disso, nos propomos a apresentar meios de
ressignificar o ensino de Literatura e a leitura nas aulas de
língua espanhola, através da utilização e produção de
memes. Em uma proposta que visa o estímulo à leitura
crítica e significativa na escola, como proposta de
formação do leitor.

II PÚBLICO ALVO, PERFIL DA TURMA

Alunas do Componente Curricular “Linguística


Aplicada: Metodologias do ensino de espanhol II”. Eram
apenas quatro (04) alunas, que cursavam o 6º período do
curso de Letras/Espanhol. Destas duas (02) já tiveram
experiência no Programa de Iniciação à Docência – PIBID,
uma (01) com o Programa de Iniciação Científica – PIBIC
e a outra nunca teve experiência em sala de aula.

III NÚMERO DE AULAS


4 aulas (4 horas cada)

IV CONTEÚDO CIENTÍFICO ABORDADO


 Ensino de Literatura e formação do leitor
 Multimodalidade
 Gênero digital Meme

12 “artefatos culturais, elaborados por usuários que ressignificam assuntos

cotidianos, conteúdos midiáticos e discursos sociopolíticos” (LOPES, apud


SILVA, SOUZA e MENEZES, p. 154)

153
V INTERESSE E MOTIVAÇÃO

O ensino de literatura nas escolas de educação básica,


espaço para o qual as alunas estão sendo formadas para
trabalhar, nem sempre é percebido como produtivo, uma
vez que há uma predominância de uma perspectiva
historiográfica, e o trabalho se dá por meio de trechos,
descontextualizados de suas condições de produção e
também do cotidiano do aluno.
No caso do ensino de Literatura Hispânica, nem
mesmo este tipo de estudo é privilegiado nas escolas, pois
a preocupação maior está presente na preparação para as
provas de Enem e Vestibular, e com o repasso de normas
gramaticais, questões de vocabulário e, por vezes, cultura.
Com a mediação dos memes pode-se inserir o estudo
da literatura hispânica nas aulas de espanhol, de forma
dinâmica, divertida e prazerosa.

VI OBJETIVO GERAL

Ressignificar o ensino de Literatura e a formação de


leitor na educação básica, através do uso do gênero digital
“meme”.

VII QUADRO SINTÉTICO DAS AULAS


Título Objetivos Model
os
didáticos
O ensino de  Identificar a A
literatura e a visão que as partir dos
alunas textos

154
formação do possuem sobre teóricos,
leitor o ensino de teremos
literatura e a uma aula
formação do expositiva-
leitor na dialogada
educação em que
básica; discutirem
 Discutir sobre os sobre o
a formação do ensino da
leitor na escola; literatura
 Discutir sobre na
o ensino da educação
literatura na básica,
escola; como
principal
ferramenta
de
transforma
ção do
aluno em
um aluno-
leitor.
Multimodali  Perceber os Aula
dade e Redes gêneros expositiva-
Sociais multimodais dialogada
como em que
ferramenta no discutirem
processo de os sobre o
ensino e que são os
aprendizagem textos
multimoda

155
de língua is, suas
estrangeira característi
 Discutir sobre cas e
os textos adentrare
multimodais mos às
no processo de discussões
ensino/aprendi sobre sua
zagem de utilização
língua nas Redes
adicional; Sociais.
 Descobrir a
importância
das Redes
Sociais e suas
contribuições
para o
processo de
ensino
aprendizagem
de língua
adicional
Os memes e  Perceber os Matéri
o ensino de memes como a sobre
literatura ferramenta de professora
ensino de chilena
literatura e que propôs
formação de a
leitor; construção
 Apresentar de memes
estratégias de da obra
utilização dos “Cien años

156
memes no de
ensino de soledad”
Literatura na de Gabriel
educação García
básica. Marques.
Meme
s sobre a
obra Dom
Quixote de
la Mancha.
Apresentaçã  Apresentar os As
o dos memes memes alunas irão
produzidos produzidos; apresentar
 Avaliar se a os memes,
utilização dos por ela
memes no produzido
ensino de s, de
Literatura e na gêneros
formação de literários a
leitor seria sua
eficaz ou não. escolha. E
ao final
avaliaremo
s se a
utilização
dos memes
pode
tornar o
ensino de
Literatura
e a

157
formação
de leitor na
educação
básica
mais
eficaz.

VIII RECURSOS DE ENSINO

Aulas do tipo expositivas-dialogadas, com a


utilização de datashow, textos impressos, quadro-branco,
computadores, celulares (do tipo Smartphone), etc.

IX DESCRIÇÃO DAS AULAS

1º MOMENTO (4h/aula)

A aula foi iniciada com uma sondagem sobre a visão


que as alunas tinham sobre o ensino de literatura e a
formação de leitores na educação básica. Foi possível
perceber que suas experiências na área não foram
satisfatórias, pois só tiveram acesso à Literatura no Ensino
Médio e que este ensino se dava na utilização de modelos
antigos, em que era dada ênfase às escolas literárias, suas
características, principais autores e obras.
Quanto à leitura, as alunas relataram que não era uma
prática recorrente nas aulas de Língua Portuguesa e
inexistente nas de língua estrangeira. Quando se tinha
acesso à leitura era de fragmentos de obras ou então de
textos utilizados como pretexto para trabalhar gramática
ou a escrita.

158
Após essa sondagem, iniciamos a discussão teórica, a
partir do texto De alunos a leitores: o ensino da leitura na
educação básica, de Ferrarezi Jr e Carvalho, com o qual
vimos como se dá o processo de formação de leitores na
educação básica, e que é preciso enxergar a leitura como
ato civilizador e formador de pensadores críticos. O texto
também apresentou de que forma a leitura deve ser
trabalhada na Educação Infantil, em que a criança precisa
descobrir o prazer pela leitura; no Ensino Fundamental,
além do prazer, seria preciso avançar nas habilidades
leitoras, aproveitando-se a natureza questionadora dos
alunos, que, de forma intuitiva, devem aprender a inferir
informações implícitas do texto; no Ensino Médio, o
adolescente além do prazer e da intuição terá contato com
a teoria que envolve a leitura e a literatura (tipologia
textual, aspectos formais da arte literária, análise dos
textos...). Para tanto, seria necessário que ele tivesse
passado bem pelos processos anteriores.
Com isto, adentramos ao tema da literatura, a partir
do texto O que pode a literatura? Ou o dia em que Tzvetan
Todorov, Antonio Candido e Amara Moira conversaram, de
Carbonieri. O artigo nos trouxe a discussão de que encher
os alunos com teorias críticas e histórias literárias só traz
como resultado o afastamento deles da literatura e a visão
de que ela estaria fora de seu contexto cotidiano.
Carbonieri apresenta a conexão existente entre os três
autores mencionados em que, Todorov “alerta para a
ênfase excessiva na estética”, Cândido apresenta que “a
literatura também produz conhecimento, alargando nossa
visão a respeito das experiências humanas” e Moira
“entende a literatura como algo que pode emergir da
condição de marginalidade, a exemplo do travesti e da

159
prostituta, e que se revela primordialmente um
instrumento de transformação social” (CARBONIERI,
2017, p. 95).
Em sequência, discutimos o texto A Literatura e a
produção oral em Língua Espanhola: propostas didáticas para o
ensino na educação a distância, de Falcão e Silva, com o
objetivo de começarmos a perceber o uso da Literatura em
atividades distintas das vistas até o momento na escola
(gramática e escrita). As autoras trazem a proposta de
inserção de atividades orais a partir da leitura do texto
literário, pensados para os cursos de licenciatura em
língua espanhola à distância. Nesta leitura, demos ênfase
às três propostas apresentadas pelas autoras (uma para
cada nível linguístico do aluno: inicial, intermediário e
avançado), e discutimos sobre se estas atividades também
poderiam ser aplicadas na educação básica e de que forma.
Vimos que é possível sim, a partir das adaptações que
podem ser feitas por cada professor que atenda às
necessidades do seu público alvo.
Ao fim das discussões, vimos a importância de termos
feito todo esse percurso discutindo sobre a literatura, a
formação de leitores na escola e, principalmente, a
apresentação de propostas de trabalho que envolvessem
estas áreas.

2º MOMENTO (4h/aula)

Iniciamos a aula com a discussão sobre


multimodalidade, com o texto “Gêneros Poéticos em
interface com Gêneros Multimodais”, de Melo, Oliveira e
Valezi, no qual é apresentada uma “proposta de trabalho
em língua portuguesa, contemplando um gênero da esfera

160
literária, o poema, e sua interface temática e funcional com
outros gêneros organizados por diferentes linguagens,
como os videoclipes” (MELO, OLIVEIRA e VALEZI, 2012,
p. 148). A partir do texto, discutimos sobre a
multimodalidade nas novas práticas discursivas, a
concepção de ensino de literatura nos documentos oficiais
e a proposta pedagógica de multiletramento em espaço
interdisciplinar. Além disso, vimos uma proposta de
sequência didática, demonstrando a possibilidade de se
trabalhar, de forma interdisciplinar, a literatura em sala de
aula da educação básica.
Em seguida, com os textos “Textos Multimodais no
complexo processo de ensino-aprendizagem de português
como língua adicional” e “Redes Sociais e a linguagem on-
line: algumas contribuições dos memes para o ensino de
língua”, ambos de Silva, Souza e Menezes, discutimos
alguns aspectos teórico-metodológicos que envolvem a
multimodalidade e o processo de “transmutação em rede
utilizado na composição dos memes do Bode Gaiato13” e
suas possíveis contribuições no processo de
ensino/aprendizagem de línguas adicionais (SILVA;
SOUZA; MENEZES, 2018, p. 148).
Com isso, discutimos sobre as possibilidades
apresentadas na utilização de algo do cotidiano dos alunos
(os memes) para o ensino de língua materna ou adicional.
A partir dessa visão, levantou-se o questionamento sobre
o uso deste gênero digital no ensino de literatura como
forma de ressignificar a prática docente e a visão que o

13“Ambiente específico do ciberespaço que midiatiza e representa a vida social


e nordestina por intermédio da internet, configurando a representação do real
no virtual” (SOUZA, RODRIGUES apud SILVA, SOUZA e MENEZES, 2018, p.
154).

161
aluno possui desta disciplina e vimos que seria possível e,
inclusive, significativo para o aluno um trabalho que
envolva esta prática.

3º MOMENTO (4h/aula)

Neste momento, apresentamos a ideia do uso dos


memes como ferramenta de ensino/aprendizagem de
línguas adicionais. Para tanto, iniciamos com uma matéria
sobre a professora chilena Jacqueline Bustamante, que
teve a ideia de trabalhar com memes para ajudar seus
alunos a compreenderem de forma mais efetiva os textos
literários e, assim, dinamizar o processo de
aprendizagem14.
A obra escolhida pela professora foi Cien años de
soledad, do escritor Gabriel Garcia Marques e os alunos
deveriam recriar algumas passagens do romance em
memes. A ideia surgiu a partir da falta de interesse dos
jovens em ler, e a professora se viu na necessidade de
inventar algo que os motivasse a fazê-lo. Ela percebeu que
teria que ser algo que eles fizessem de forma natural e
pegou a ideia das redes sociais.
Os alunos foram advertidos de que a avaliação seria
diferente e eles de imediato gostaram da ideia. Entre os
memes produzidos haviam vários clássicos, como: Pedro,
o Macaco (Figura 1), “Quienes somos?” (Figura 2) e outros
de sua própria imaginação (Figura 3). A proposta da
atividade foi compreendida de imediato e executada,
apesar de não haver recurso digitais para sua produção

14Matéria disponível em https://www.okchicas.com/creatividad/maestra-pidio-


alumnos-memes-100-anos-soledad/. Acesso em: mai 2018.

162
(todos os memes foram produzidos manualmente, com
cartolina e lápis). A atividade foi um sucesso.
Ao final todos os memes produzidos foram expostos
nos corredores do colégio, para que as pessoas tivessem
acesso e fizeram muito sucesso. Foram tiradas fotos dos
trabalhos e publicados nas Redes Sociais, onde houve
maior notoriedade das produções.

Figura 1

Fonte: https://www.okchicas.com/creatividad/maestra-pidio-alumnos-
memes-100-anos-soledad/ Acesso em 11 jun 2018

163
Figura 2

Fonte: https://www.okchicas.com/creatividad/maestra-pidio-alumnos-memes-
100-anos-soledad/ Acesso em 11 jun 2018

164
Figura 3

Fonte: https://www.okchicas.com/creatividad/maestra-pidio-alumnos-memes-
100-anos-soledad/ Acesso em 11 jun 2018

Com a apresentação e discussão sobre a matéria,


vimos que os alunos foram motivados a ler uma obra com
mais de 400 páginas e que o fizeram com prazer, pois

165
sabiam que ao final não apenas responderiam a um teste
com perguntas sobre personagens, passagens do livro,
etc., mas ressignificariam o que leram, produzindo um
gênero digital de seu conhecimento e que este trabalho
seria divulgado na escola.
Ainda que o trabalho fosse feito em língua materna,
as alunas foram levadas a refletir se isso também seria
possível ao se trabalhar com língua adicional. Para ilustrar
essa questão, foram apresentados alguns memes
produzidos a partir da obra “Dom Quixote de la Mancha”,
de Miguel de Cervantes.
O primeiro (Figura 4) apresenta um trocadilho com o
nome do personagem que dá título à obra

166
Figura 4

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/372743306633456110/ Acesso em: 11 jun


2018

O segundo (Figura 5) que utiliza uma das passagens


mais conhecidas da Obra de Dom Quixote, o dos Moinhos
de Vento, para contextualizar o atual cenário político

167
brasileiro, mas especificamente a situação do juiz Sérgio
Moro.

Figura 5

Fonte: https://www.humorpolitico.com.br/sponholz/dom-quixote/ Acesso em


11 jun 2018

O terceiro meme apresentado (Figura 6), produzido


por mim, também se utiliza da passagem dos Moinhos de
Vento para contextualizar uma situação real e cotidiana
minha, em que os meus “moinhos de vento” se
concretizam na produção da Dissertação de Mestrado com
suas discussões, resultados, análises, metodologia, revisão
de literatura, etc.

168
Figura 6

Com isto, se mostra a possibilidade de aliar o ensino


de Literatura e a produção de memes, a partir dela. Dando
um objetivo real à leitura que poderá ser estimulada em
sala de aula e o, consequente, trabalho com o ensino de
Literatura.
Com esta explanação foi solicitado que as alunas
deveriam escolher um gênero literário ou obra literária a
seu critério, e, a partir dele, produzir memes que
representem sua temática ou alguma passagem de sua
história, principalmente as principais. No que foi
prontamente aceita pelas alunas, que, inclusive,
começaram a discutir sobre que gênero ou obra
trabalhariam.

4º MOMENTO (4h/aula)

169
Momento dedicado à apresentação das produções de
memes feitas pelas alunas. Não obtivemos autorização
para divulgação dos memes produzidos pelas alunas, por
isso apresentamos apenas quais gêneros ou obras foram
escolhidos por elas.
A primeira aluna a apresentar os memes produzidos,
escolheu como gênero literário o “poema”. Os memes
produzidos foram baseados em um formato de meme já
conhecido na internet “Y ahora, un poema”, conforme
modelo abaixo:
Figura 7

Fonte: https://www.yahoraunpoema.com/ Acesso em: 06 jan 2018

170
A segunda aluna escolheu como gênero literário o
conto “El cocinero del arzobispo”, de Juan Valera.
Enquanto, as outras duas escolheram a Obra Dom Quixote
de la Mancha, de Miguel de Cervantes para produzir seus
memes.

X – AVALIAÇÃO

A avaliação se deu de forma contínua, a partir da


leitura e discussão dos textos, participação nas discussões
em sala e na execução da atividade produção de memes, a
partir de um gênero ou obra literária.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Denise Lino de. O que é (e como faz) sequência didática?.


Entre palavras. Fortaleza, v.3, n.1, p. 322-334, jan./jul. 2013
CARBONIERI, D. O que pode a literatura? Ou o dia em que Tzvetan
Todorov, Antonio Candido e Amara Moira conversaram. In:
JESUS, D. M. de; ZOLIN-VESZ, F.; CARBONIERI, D. [Orgs].
Perspectivas críticas no ensino de línguas: novos sentidos
para a escola. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017, p. 89-96.
FALCÃO, C. A.; SILVA, G. M. da. A Literatura e a produção oral
em Língua Espanhola: propostas didáticas para o ensino na
educação a distância. In: GOMES, A. T.; PONTES, V. de O.
[Orgs]. Espanhol no Brasil: perspectivas teóricas e
metodológicas. 1. ed. Curitiba: Editora CRV, 2015, p. 57-67.
FERRAREZI JR, Celso; CARVALHO, Robson S. de. De alunos a
leitores: o ensino da leitura na educação básica. São Paulo:
Parábola, 2017.
KELAFÁS, Eliana. Corpo a corpo com o texto na formação do leitor
literário. São Paulo: Autores Associados, 2012.
MELO, E. de S. O.; OLIVEIRA, P. W. M. de; VALEZI, S. C. L.
Gêneros Poéticos em interface com Gêneros Multimodais. In:

171
ROJO, R. H. R e MOURA, E. [Orgs.]. Multiletramentos na
escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012, p. 147-164.
SILVA, A. C. P. da; SOUZA, F. M. de; MENEZES, R. D. de. Textos
Multimodais no complexo processo de ensino-aprendizagem
de português como língua adicional. In: SOUZA, F. M. de;
COSTA JÙNIOR, J. V. L. da; LINS, E. F.; SANTOS, E. C. dos
[Orgs.]. Tecnologias, culturas e linguagens para ensinar e
aprender. São Carlos: Pedro e João Editores, 2018, p. 147-165.
SOUZA, F. M. de; SILVA, A. C. P. da; MENEZES, R. D. de. Redes
Sociais e a linguagem on-line: algumas contribuições dos
memes para o ensino de língua. In: CASTRO, P. A. de [Org.].
Atualizações na profissionalização docente: PIBID/UEPB.
Campina Grande, PB: EDUEPB, 2018, p. 255-269.

172
SOBRE OS AUTORES

AMASILE COELHO LISBÔA DA COSTA SOUSA


Professora no Departamento de Letras e Artes da Universidade
Estadual da Paraíba, UEPB. Mestre em Língua Portuguesa.
Coordenadora do Projeto de Extensão “Nas Asas da Leitura”.
E-mail: amasilesousa@hotmail.com

CRISTIANE NAVARRETE TOLOMEI


Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa pela USP. Atua na UFMA como professora adjunta
da área de Literaturas de Língua Portuguesa e é docente
permanente no PGCult. Líder do Grupo de Estudos e de
Pesquisa Literatura, História e Imprensa (GEPELHI/UFMA-
DGP do CNPq).
E-mail: cntolomei@yahoo.com.br

ÉDERSON LUÍS DA SILVEIRA


Mestre e Doutorando em Linguística pela UFSC, graduado em
Letras - Português pela FURG.Tem interesse em (problematizar)
pesquisas situadas nos campos de Estudos da Linguagem,
Teoria da Literatura, Psicanálise Freudo-lacaniana e Estudos
Culturais.
E-mail: ediliteratus@gmail.com

FÁBIO MARQUES DE SOUZA


Professor no PPGFP e no curso de Letras (UEPB); no PPGLE
(UFCG), e no PPGEduC (UFPE). Cursou estágio de pós-
doutorado no PPGEduC, da UFPE. Mestre (UNESP) e Doutor
(USP) em Educação. Licenciado em Letras [Português, Inglês,
Espanhol e suas literaturas] e em Pedagogia.
E-mail: fabiohispanista@gmail.com

173
FERNANDA KARYNE DE OLIVEIRA
Graduada em Letras-Português pela UEPB. Mestranda na área
de "Linguagens, culturas e formação docente" do PPGFP-UEPB.
Membro do GP LITERGE/CNPq (Linguagem, Interação,
Gêneros Textuais/Discursivos). Professora de Redação e
Literatura no Ides Colégio e Curso (Picuí - PB).
E-mail: fernandakoliveira@gmail.com

GABRIELA BORBA DE LIMA


Licenciada em História (UFRPE) e especialista em Educação e
Ludicidade (FAFIRE). Professora da E.R.E.M. Ginásio
Pernambucano Aurora.
E-mail: profgabiborba@gmail.com

JOSÉ VERANILDO LOPES DA COSTA JUNIOR


Doutorando em Letras pela UERN. Mestre em Linguagem e
Ensino pela UFCG, Especialista em Ciências da Linguagem pela
UFPB e Licenciado em Letras-Espanhol pela UEPB.
E-mail: jveranildo@hotmail.com

LILIAN BARBOSA
Doutoranda em Letras pela USP. Licenciada e Mestre em Letras
pela UNESP, campus de Assis. Professora na UPE.
E-mail: lilianvotu@yahoo.com.br

LINDUARTE PEREIRA RODRIGUES


Doutor em Linguística pela UFPB. Professor do DLA e do
PPGFP na UEPB. Grupos de Pesquisa: Memória e imaginário
das vozes e escrituras; Linguagem, interação, gêneros textuais e
ou discursivos; Estudos em letramento, interação e trabalho;
Teorias do sentido: discursos e significações.
E-mail: linduartepr@gmail.com

174
MARCELO MEDEIROS DA SILVA
Professor no PPGFP e no curso de Letras (UEPB); coordenador
de área do subprojeto do PIBID. Mestre em Linguagem e Ensino
(UFCG) e Doutor em Letras (UFPB). Especialista em Literatura
e Estudos Culturais e Licenciado em Letras (UEPB).
E-mail: marcelomedeiros_silva@yahoo.com.br

MARIA DA CONCEIÇÃO ALMEIDA TEIXEIRA


Mestranda na área de Linguagens, Culturas e Formação
Docente no PPGFP-UEPB. Especialista em Letras: Estudos
Linguísticos e Literários e Licenciada em Letras-Espanhol pela
UEPB. Professora efetiva do curso de Letras Espanhol do
Campus VI da UEPB.
E-mail: abcteixeira@gmail.com

NEFATALIN GONÇALVES NETO


Doutor em Letras-Literatura pela Universidade de São Paulo
(USP), com estágio de pesquisa na Universidade Nova de Lisboa
(UNL), Mestre pelo mesmo programa, Licenciado em Letras
pela UNESP/Assis e em Pedagogia pela UNINOVE. Professor
na UFRPE.
E-mail: nefata12@yahoo.com.br

RODRIGO NUNES DA SILVA


Mestre em Formação de Professores pela Universidade Estadual
da Paraíba – Campus I – Campina Grande (PB). Grupo de
Pesquisa: Teorias do sentido: discursos e significações.
E-mail: rodryggonunes22@gmail.com

175
Coleção Literatura, Leitura & Ensino

1. Literatura, (língua)gem e ensino: momentos & reflexões .


2. Entrelugares do saber: leitura, literatura e ensino .

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176

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