Musicando A Semiótica
Musicando A Semiótica
Musicando A Semiótica
Musicando
a
Semiótica
-. ensatos-
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
T219m
Tatit, Luiz
Musicando a semiótica ensaios I Luiz Tatit. - São Paulo
Annablume, 1997.
163 p. 14x21 cm.
ISBN 85-85596-87-2
CDD-149.946
MUSICANDO A SEMIÓTICA
Luiz Tatit
Revisão:
Dida Bessana
Mara Guasco
Capa:
Ricardo Matsukawa
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peíiuela Ca:iíizal
Norval Baítello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Gilberto Mendonça Teles
Maria de Lourdes Sekeff
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Jacobi
Gilberto Pinheiro Passos
1a edição: janeiro de 19 9 8
f\presentação 7
PRIMEI.Rf\ Pf\RTE:
MUSICf\NDO f\ SEMIÓTICf\
SEGUNDA PARTE:
ANALISANDO A CANÇÃO
1O1 : ~'" .
0 1
CAPiTIJLo VIII - Elementos para a análise da canção popular -.
Nota
Musicando
a
Semiótica
CAPíTULO I
Musicalização da semiótica
Introdução
instituir de vez um modelo que desse conta dos conteúdos passionais foi
necessário repropor o nível epistemológico da teoria com o auxílio de dois
simulacros complementares, um tensivo e outro fórico, para configurar as
precondições que engendrariam o ser do sentido. Este "ser" não está muito
longe, a nosso ver, da construção de um simulacro do sujeito enunciativo,
possuidor, como tal, de percepção e sentimento. Mesmo não considerando ·
diretamente a presença desse sujeito desde as etapas mais abstraías do percurso
gerativo, Grcimas e Fontanillc reconheceram que a abordagem do componente
passional por si só já exigia ajustes teóricos que certamente repercutiriam nos
estratos profundos do modelo.s E isso não mais resultava de uma simples
"atração pela profundidade" mas da própria necessidade de expansão do projeto
semiótico.
De acordo com nossa avaliação, os autores exploraram, em última
instância, um lugar teórico que sempre esteve subjacente ao esquema
narratológico concebido pelo próprio Greimas. Por trás das desc9ntinuidades
que asseguravam a nitidez da relação dos homens com o mundo e idos homens
entre si- dando origem a noções funcionais como sujeito, objeto, 'destinador e
destinatário - flutuavam diversos conceitos de natureza contínua que pediam
atenção especial. As noções de junção, contrato, identidade e fidúcia, por
exemplo, faziam parte desse elenco de pressupostos mencionados mas muito
pouco investigados. Quando as mesmas articulações narrativas que regiam a
semiótica da ação foram reconhecidas, de forma embrionária, no universo do
"ser", ou seja, no esquema passional do sujeito, numa fase aquém ou além da
manifestação actancial, então aqueles pressupostos condenados a uma espécie de
"limbo" ontológico foram sendo reabilitados e reconstruidos pelos autores como
precondição para se compreender as etapas narrativas e ctiscursivas do modelo.
Ativando sua principal arma de combate à ontologia - o gerador de
simulacros- a semiótica chegou enfim a uma espécie de protótipo do sujeito da
enunciação realizado nos contornos de uma prefiguração profunda das
percepções e dos sentimentos e definido como "tensividade fórica". Construindo
o simulacro, mítico de um lado e merleau-pontiano de outro, de um "corpo que
sente" assimilando e transformando os "estados de coisas" por meio da
competência contida nos "estados de alma", a teoria recuperou um plano de
existência homogênea nos estratos profundos do modelo para poder explicar os
desvios, mormente os passionais, que se processam em superficie.
4. Cf. Greimas. A. J. e Fontanille, J. Semiótica das paixões, São Paulo, Ática, 1993, p. 21-100
(Sémiotique des Passions. Des Etats de Choses aux Etats d'áme. Pa1is, Seuil, 1991).
5. lbid., p. 20.
14 -~----------------------------Musicando a semiótica
A idéia de foria
9. Jbid., p. 97-113.
1O. Veremos adiante que esse conceito, assim como o de extensão, tem origem na silabaçào
saussuriana.
J'vlusicali::ação da semiótica 17
Nível missivo
,•
A categorização da tensividade-fórica configura-se, portanto, como um '
recurso do nível missivo (embora seja diticil uma delimitação precisa entre os
estágios tensivo e missivo), onde os valores remissivos e emissivos articulam-se
sintáxica e ritmicamente gerando as matrizes das descontinuidades e
continuidades que estruturam os discursos verbais e não-verbais.
Parte dos processos de conversão dos níveis gerativos pode ser explicada
pela negação dos valores missivos nos níveis posteriores, Quando o fazer
remissivo dissemina os limites por toda a extensão discursiva, a tendência
natural é o surgimento de transgressões que ultrapassam as barTeiras dos limites
negando a insuficiência: a aparição da falta, da exclusão ou, ainda, da proibição
num nível ocasiona sempre sua negação (ou sua liquidação) num outro níveL De
maneira inversa, a seleção do fazer emissivo como força dominante de expansão
pode provocar, com suas passâncias e contínuas transgressões de limites, um
excesso suscetível de ser rechaçado nos níveis seguintes. Enquanto a
insuficiência tende a despertar a atuação reparadora do /querer/, o excesso
suscita uma resposta modal no âmbito do /dever/.
Ao lado desse mecanismo rítmico de recusa e adoção de valores (uma ·•
espécie de busca de equilíbrio subjctal) há que se considerar, durante todo o
itinerário gerativo, um processo de conservação dos valores primordiais
escolhidos no nível missivo. Assim, são os próprios elementos remissivos que
vão instruir as modalidades deônticas, os estados de disjunção, as interações
éticas e as regulamentações do bem coletivo. Os valores emissivos reaparecerão
como modalidades volitivas, como relações contratuais, relações conjuntivas ou
mesmo na forma de atração estética,
De qualquer modo, o nível tensivo-fórico permanece como horizonte
ontológico, sustentando a crença de que o homem visa preservar sua
integridade interior: tudo que provém da primeira parada, da primeira tomada
de posição remissiva, é um esforço no sentido de restabelecer o contínuo, esse
elo profundo que neutraliza as funções actanciais em virtude da junção plena,
A hipótese de um fluxo fórico anterior justifica as noções de "sentimento de
falta", de "espera", de "desejo", e até daquilo que chamamos, na perspectiva
do desenvolvimento narrativo, de retorno ao equilíbrio, Com o nível tensivo-
fórico, compreendemos que o homem busca a junção abandonada no primeiro
18 _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
11 . Cf. entrevista concedida a A. Zinna, "A1girdas Julien Greimas - conversation", Versus, 43,
1986, p. 57.
12. Cf Zilberberg, C., op. cit., p. 108.
Musicalização da semiótica 19
16. Cf. Hjelmslev, L. "La syllabe en tant qu'wüté structurale". ln: Nouveaux Essais. Paris, PUF,
1985, p. 165-71.
17. Cf. Zilberberg, C., op. cit., p. 37-46.
18. Retomaremos o tema da interação dessas dimensões no Capítulo XI, p. 147 ss.
Musicalizaçào da semiótica _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 21
20. Cf. Tatit, L. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo, Escuta, 1994, p. 77.
26 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Conclusão
dos níveis profundos, sob pena de o modelo semiótica não vingar. Não foi por
acaso que Greimas dedicou seus últimos anos à estética e à paixão e inseriu
suas novas descrições no quadro de uma vasta reformulação epistemológica da
teoria geral.
CAPíTULO II
A semiótica e Merleau-Ponty
2. "Algirdas Julien Greimas nus à la question" . ln : Arrivé, M. et ai. Sémiotíque en jeu - A partir
et autour de l'oeuvre de A. J. Greimas, Paris/Amsterdã, Hades-Benjamins, 1987, p. 311.
A semiótica e Merleau-Ponty 31
Não haveria direção sem um ser que habite o mundo e que, por seu
olhar, trace ali a primeira direção-referência.ll
E, por fim, a própria instauração do ser que percebe (se é que o enfoque
fenomenológico pode admitir uma "instauração") não deixa de ser também um
comprometimento temporal nas palavras do próprio filósofo:
10. Cf. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.
370-1.
II. lbid., p. 576.
12. Jbid.
34 _ __ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Preliminares
Paixão e estética
conjunção disjunção
não-disjunção não-conjunção
7. lbid., p. 139.
40 _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ __________ Musicando a semiótica
8. Ibid.
9. lbid.
10. Cf. Greimas, A. J. De l'impe1jection, op. cit., p. 99.
Corpo na semiótica e nas artes 41
Corpo e continuidade
14. lbid.
Corpo na semiótica e nas artes 43
modo, mantêm acesa a chama tensiva do sujeito. Mas o que este de fato deseja é
restabelecer o elo contínuo com o objcto, única fmma hipotética de recuperação
do ser. Daí decorrem as noções, elaboradas em Semiótica das paixões, de
"sujeito protensivo" e de "valência", esta última definida como pressentimento
dos valores. IS
Instauradas as etapas seguintes do percurso gerativo -as estruturas
elementares, as operações actanciais etc. -a noção de corpo permanece como
metacategoria complexa pressuposta, !6 uma força síncrétíca que recebe
diferentes denominações de acordo com os termos articulados no modelo.
Assim, quando pensamos na força que impele a disjunção para a conjunção, a
metacategoria é a junção; quando das relações polêmicas para as relações
contratuais, corpo equivale à fidúcia; da disforia para a euforia, aparece como
faria e assim por diante.
Nossos discursos cotidianos promovem, de certa fom1a, em nome de uma
eficácia de comunicação, a conversão do corpo como totalidade e continuidade
fórica em desigualdades e dependências (elementos de reintegração) a que
chamamos "sentido". A semiótica da ação traduziu as relações de dependência
em determinações modais descontinuas, ou seja, em modalizações. A semiótica
das paixões revelou, em contrapartida, que as tensões fóricas continuam
participando do discurso, mesmo após a discretização cognitiva, em forma de
modulações contínuas que transparecem na superficie do texto, testemunhando
a onipresença do corpo que sente.
Dentro dessa concepção, corpo é um tempo presente extenso que acompa- ·
nha o enunciado como que lembrando que este jamais se liberta da enunciação.
Por trás da produção está sempre o agente sensível que a produziu.
Corpo e duração
CORPO
/~alma
corpo
Forma artística
27. Cf. "Poesia e pensamento abstralo" . ln: Va1éry, P. Variedades. São Paulo, Iluminuras, 1991,
p. 201-18.
28. lbid., p. 213.
Co1po na semiótica e nas artes 47
Conclusão
A fom1a artística exacerba, na verdade, urna característica encontradiça em
todo e qualquer discurso, mesmo naqueles que pretendem manter distância do
domínio estético. Não se pode conceber enunciação sem a participação de um
CORPO onipresente. Entretanto, também compete à atividade enunciativa dosar,
consciente ou inconscientemente, o grau dessa participação. Um discurso
científico ou de instruções técnicas (basta pensarmos, por exemplo, numa bula
de medican1ento) não traria provavelmente muitos elementos para a manifes-
tação do nível tensivo e das modulações sensíveis. A intenção enunciativa mais
gritante, nesse caso, é a de substituição imediata da expressão (gráfica ou
fonológica) pelo conteúdo, de maneira que os componentes materiais empre-
gados na comunicação se dissolvam diante da aquisição cognitiva puramente
abstrata. Mesmo nesse gênero extremo de atuação cognitiva, e podemos retomar
aqui o exemplo da bula, não é diflcil detectar a existência de modulações dis-
cursivas (que visan1 adequar dosagens medican1entosas às variações metabólicas
dos pacientes) que revelam, de certo modo, apreensões e cuidados do sujeito em
sua atividade enunciativa. Forçoso reconhecer, porém, que esses discursos
utilitários, ao mesmo tempo que tomam viável nossa vida social e objetivam
nossas ações cotidianas, restringem significativamente a expressão de nosso
corpo, constituindo-se em verdadeiros filtros de conteúdos emocionais.
O estudo da criação artística como prática de elaboração do plano da ex-
pressão possui àssim um sentido de rejeição a uma determinação sintáxica típica
das construções abstratas do conteúdo. De fato, mergulhado na macrossemiótica
Por tudo isso, cremos que o estudo do corpo na semiótica está bem
equacionado cm Semiótica das paixões e melhor ainda em De l'impe!fection
que adota, como horizonte privilegiado, a estética literária. Claude Zilberberg,
por sua vez, vem realizando um trabalho ininterrupto de ajuste e aprimoramento
do modelo, estribado em grande parte nas reflexões rutísticas de P. Valéry. Falta,
talvez, reconhecer que um estudo dessa natureza não beneficiaria apenas o
âmbito das artes mas todo o campo semiótica e seu objetivo de descrição do
sentido construído nas diferentes linguagens verbais e não-verbais. A pesquisa
que acompanhar de perto a luta humana de reconstituição do corpo nos discursos
estará provavelmente depreendendo os históricos mecanismos de construção da
liberdade.
30. Valéry, P. Cahiers, I, op. cit., p. 764. Trecho também citado por Zilbcrberg, C., op. cit., p. 24.
CAPíTULO IV
Silêncio e luzes
na apreensão estética
L Valéry, PauL "Poésic et Pensée Abstraite". Oeuvres, I, Paris, Gallimard/La Plêiade, 1957, p.
1326. Embora a tradução deste ensaio já esteja disponível no volume Variedades, op. cit., a
solução em português do trecho citado não contribui para nossos fins.
50 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Apreensão estética
Apego e desapego
4_ Cf Zilberberg, c_ "Análise discoursive et énonciation", Sémiotique & Bible, Lyon. Centre pour
l'Analyse du Discours Réligieux, 69, mars 1993, p. 28. Em vez da palavra "efeito" o texto
original emprega "valor".
5. Assunto amplamente tratado em nosso trabalho Semiótica da canção. op_ cit_ c retomado,
adiante, no Capítulo VII.
Silêncio e luzes na apreensão estética - - - - - - - - - - - - - - - - 53
rápido lento
apego união aproximação
desapego ruptura distanciamento
6. Esses a.ITanjos nos foram sugeridos por Zilberberg, C. no artigo "Piaidoyer pour Ie tempo". ln:
Fontanille, J. (ed.). Le devenir, Lirnoges, Pulirn, 1995.
7. Distância e dmação são dimensões, espacial e temporal respectivamente, que se alteram com
w1iformidade sob a i'níluência do andamento. Se este acelera, diminuem a distância e a duração
até os limites do ponto e do instante. Se desacelera, a distância aumenta progressivamente até
o que entendemos por "infinito", enquanto a duração se desfaz na "eternidade".
8. A conjnnção pe1feita de sujeito e objeto é nn1a utopia harmoniosa mas sem sentido, não apenas
pela impossibilidade de realização, mas, sobretudo, pela falta de direção implicada em
qualquer processo histórico (incluindo a história de vida do indivíduo). O afastamento do )<,
objeto é um imperativo para a caracterização do sujeito como alguém que segue uma direção
(a direção do objeto) e, portanto, compromete-se com um sentido.
54 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Surpresa e espera
Tudo ocorre como se nossa vida afetiva fosse dojá ao não ainda - ou
vice-versa - modulando os adiantamentos e os atrasos de acordo com a
capacidade do sujeito de tolerar o inesperado e programar a espera. Note-se
que ambas as noções (a surpresa e a espera), mesmo em suas disposições
extremas, pressupõem um certo equilíbrio das funções de sujeito e de objeto.
Se este for rápido demais, a ponto de ultrapassar a esfera daquilo que
conhecemos como surpresa, acaba perdendo seus contornos ele identificação e,
conseqüentemente, o objeto escapa do sujeito. Podemos nos limitar ao exemplo
de algumas formas de manifestação da vanguarda attística, em que o produto
estético, de tão novo e imprevisível, nem chega a ingressar no campo de
percepção do espectador: é a instalação que sequer foi notada no salão de a1tes
plásticas ou a música que não se ouviu. Em outras palavras, para além da
surpresa, o excesso de instantaneidade confunde os limites de identificação do
objeto de tal maneira que adentramos repentinamente na escuridão e no
silêncio.
9. Cf. Valéry, P. Cahiers, T, op.. cit., p. 1290. Propusemos uma tradução livre da passagem:
"Notion des retards. Ce qui est (déjà) n'est pas (encore) - voici la surpri se. Ce qui n' cst pas
(encore) est (déjà)- voilà l'attente." Hesitamos entre "atrasos" e "demoras" para "retards" .
Silêncio e luzes na apreensão estética - - - - - - - - - - - - - - - - 55
Mas voltando ao plano dos sons e das luzes, entre a surpresa e a espera,
consideramos como extremamente oportunos os estudos que incidem sobre os
afetos (ou emoções) pontuais - aqueles que já possuem um estatuto lingüístico-
cultural definido - e que vão iluminando, pouco a pouco, as etapas do
continuum passionaL lO
Ao examinar de peito as variações subjetivas mobilizadas no campo da
surpresa, o semioticista Claude Zilberberg distinguiu, com nitidez, pelo menos
duas reações decorrentes da alta velocidade envolvida nesta disposição
afetiva.ll Se a velocidade realmente verificada define-se como maior que a
velocidade suposta, teremos o estado típico do sujeito confuso. Se, ainda dentro
do quadro da surpresa, a velocidade verificada iguala-se à velocidade suposta,
1O. Referimo-nos aos afetos já dicionari zados cujas definições, por pouco rigorosas que sejam,
oferecem quase sempre alguma orientação sobre a temporalidade implicada no conceito. A
definição de angústia, por exemplo, pode aparecer com a seguinte fonnulação: "mal psíquico
ou fisico , nascido do sentimento da iminência de um perigo". Além do sentido prospectivo,
esta abordagem registra também a presença do regime acelerado ("iminência") no interior da
noção. Podemos encontrar ainda as vizinhanças afetivas que também auxiliam na
continuidade da pesquisa: " ... é um mal caracterizado por um temor difuso podendo ir da
inquietude ao pânico ..." - grifo nosso.
11. Cf. Zilberberg, C. "Remarques sur la profondeur du temps", xerocópia de trabalho ainda não
publicado.
56 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ __ _ _ _ Musicando a semiótica
podemos ter a figura do sujeito sangue-frio, aquele que não perde o controle da
situação.
A canção popular nos fornece, a esse respeito, um outro exemplo interes-
sante. A letra da famigerada Nervos de aço, de Lupicínio Rodrigues, descreve
uma situação característica do sentimento de surpresa:
12. A letra na íntegra: Não chore ainda não I Que cu tenho um violão I E nós vamos cantar I
Felicidade aqui pode passar e ouvir I E se ela for de samba I Há de querer ficar I Seu padre,
toca o sino I Que é pra todo mundo saber I Que a noite é criança I Que o samba é menino I
Que a dor é tão velha I Que pode morrer I O lê olé olé olá I Tem samba de sobra I Quem sabe
sambar I Que entre na roda I Que mostre o gingado I Mas muito cuidado I Não vale chorar I
Não chore ainda não I Que eu tenho uma razão I Pra você não chorar I Amiga me perdoa I Se
eu insisto à toa I Mas a vida é boa I Para quem cantar I Meu pinho toca forte I Que é pra todo
mundo acordar I Não fale da vida I Nem fale da morte I Tem dó da menina I Não deixa chorar
I Olé olê olê olá I Tem samba de sobra I Quem sabe sambar I Que entre na roda I Que mostre
o gingado I Mas muito cuidado I Não vale chorar I Não chore ainda não I Que eu tenho a
impressão I Que o samba vem aí I É um samba tão imenso I Que eu às vezes penso I Que o
próprio tempo I Vai parar pra ouvir I Luar espere wn pouco I Que é pro meu samba poder
chegar I Eu sei que o violão I Está fraco , está rouco I Mas a minha voz I Não cansou de
chamar I Olé olê olê olá I Tem samba de sobra I Ninguém quer sambar I Não há mais quem
cante I Nem há mais lugar I O sol chegou antes I Do samba chegar ( Quem passa nem liga I
Já vai trabalhar I E você, minha anriga I Já pode chorar.
Silêncio e luzes na apreensão estética - -- - - - - - - - - - - - - - 59
Considerações finais
13. A parada da parada, como já tivemos ocasião de verificar, esclarece que a continuidade só
pode ser concebida como decorrência da própria descontinuidade, dado que nossas narrativas
ou histórias de vida dependem visceralmente dos episódios tensivos. A continuidade como
termo positivo, ou relaxamento absoluto, equivale à noção de morte.
60 _ _ _ _ _ _ _ ______ __ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
das, nosso desejo se volta para as formas contínuas e desaceleradas que nos
proporcionam um tempo de convívio com o objeto. Os discursos verbais e não-
/ verbais manifestam com clareza esse verdadeiro ritmo de nosso imaginário. A
espera e a surpresa valerianas, com suas numerosas modulações de velocidade
- que podem certamente ir bem além das tratadas aqui -, oferecem uma pos-
sibilidade concreta de elaboração sintáxica (leia-se um mínimo de relações de
determinação e de previsibilidade) dos campos afetivos, na medida em que
reintroduzem o tempo no coração da teoria, não somente como indagação filo-
sófica, mas, acima de tudo, como tensão que se acirra e se descontrai de acordo
com as variações de andamento. E o tempo é a medida do afeto.
Acelerando e desacelerando seu tempo interno, o homem "equilibra" seus
afetos e os projeta em discurso. Com os mesmos procedimentos, mas alimen-
tando mais um lado do que outro, o homem "desequilibra" seus afetos e
também os projeta em discurso. As artes são beneficiárias históricas dessas
duas tendências. Entretanto, como já vimos, tanto a aceleração como a desa-
celeração podem assumir um paroxismo tal que os objetos não mais "afetam"
o sujeito. É quando não há mais discurso. Apagam-se as luzes e reina o silêncio.
CAPÍTULO v
1. Cf. Andrade, Mário de. O banquete. São Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 69.
2. Jbid.
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade 63
Coalescência sensorial
Imperfeição e estética
convive com a imperfeição porque esta lhe sugere índices do que seria sua
própria superação. Se a tensão passional aumenta com a distância e com a
espera, ela se desfaz com a proximidade e com o encontro por mais efêmeros que
sejam. Afinal, tudo que sabemos sobre a eternidade concentra-se, parado-
xalmente, nesses breves e raros momentos, proporcionados pela estesia, de
neutralização das funções de sujeito e objeto. E a vida vale, em grande parte,
pela espera desses instantes que, quase sempre, sobrevêm de modo inesperado.
Pode-se compreender, assim, a formulação greimasiana "espera do inesperado"
como a inserção do homem no universo da figuratividade, onde a imperfeição
esconde e, ao mesmo tempo, deixa entrever - o suficiente para despertar o
desejo - a instância do ser.
A opinião de Janjão sobre arquitetura suspendeu abruptamente o processo
de adesão de Pastor Fido e provocou, por conseguinte, uma descontinuidade
actancial entre as personagens. De simples destinatário cativo, o estudante
passa a destinador julgador, dispondo de distância crítica suficiente para poder
emitir um juízo lúcido e severo sobre o pensamento artístico de Janjão. Nessa
condição, o jovem demonstra que o compositor tem dificuldade em enxergar
com clareza não apenas outros domínios artísticos, como a arquitetura, por
exemplo, mas também- e aí está o problema maior - o seu próprio campo de
atividade. Se, de um lado, não pode se aproximar da linguagem arquitetônica
por falta de recursos técnicos, de outro, mantém-se afastado afetivamente da
linguagem musical por excesso desses mesmos recursos. Para além das
palavras de Pastor Fido, podemos ainda dizer que Janjão não reúne as
condições minímas para remover as barreiras que o afastam da Arte (no sentido
empregado pelo estudante): deixa de saborear a arquitetura moderna porque a
vê como anti-objeto- ou abjeto -,desligado de sua cultura, e isso não o motiva
a ultrapassar a superficialidade do contato visual; 14 deixa de saborear igual-
mente a música modema porque só admite um contato intelectivo com as obras,
calcado na consciência da técnica expressiva revolucionária.
Preocupado em caracterizar a função da arte em sua época (como a de
"remediar uma das faltas de perfeição da vida humana"), Janjão acredita que o
"fazer melhor" dentro da técnica expressiva musical corresponde à "certeza" e
à "verdade" em arte, de tal maneira que somente a produção incessante de
novas obras, que aprimorem as anteriores, poderia atenuar a imperfeição
inerente à estética: "fazer outra arte é a única receita para a doença estética da
imperfeição". 15
14. A impressão positiva que a mansão de Sarah Light causa em Pastor Fído, que exibe o mesmo
despreparo técnico de Janjão em matéria de arquitetura, demonstra que é possível uma
aproximação exclusivamente sensível do objeto.
15. Cf. Andrade, M. de, op. cit., p. 60.
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade 69
Na verdade, por uma inversão perversa dos valores, provocada talvez por
sua rigidez ética, Janjão vem, ao que tudo indica, se distanciando cada vez mais
de seu objeto geral (a arte) e de seu objeto específico (a música), justamente
por não mais contatá-los no nível do ser. De fato , em ambos os casos, o conhe-
cimento técnico se interpõe- por insuficiência ou por excesso- entre sujeito e
objeto dificultando, ou impossibilitando, toda relação que não se processe no
nível do saber. Assim, Janjão rejeita a arquitetura modema porque não se per-
mite apreciá-la diretamente - já que desconhece sua fonna expressiva - por meio
dos órgãos sensoriais; do mesmo modo, o músico só identifica como obra de arte
as criações musicais que promovem transformações na técnica de composição e,
com isso, despreza a fruição popular cujo alcance, segundo o artista, não
70 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Conclusão
2. Cf. Benveniste, E. "Os níveis da análise lingülstica", Problemas de lingüística geral. Cia.
Editora Nacional e Edusp, 1976, p. 127-40.
Semiótica, enunciação e polifonia 75
A abordagem semiótica
13. Cf. Brandão, H. Introdução à Análise do Discurso. Campinas, Unicamp. 1991, p. 68.
14. Cf. Maingueneau, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, Ed. da Unicamp
e Pontes, 1989, p. 117, 120 e 125.
80 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
21. Cf. E. Landowski. "De quelques conditions sémiotiques de l'interaction", Actes Sémiotiques
- Documcnts, 50, p. 15.
22. Cf. Zilberberg, C. Raison et poétique du sens, op. cit., p . 107.
Semiótica, enunciação e polifonia 83
estado, típico da fase passional, define o sujeito por sua disjunção espacial com ·
o objeto de valor mas, por outro lado, por sua conjunção temporal com esse
mesmo objeto manifestada na noção de espera. A fase correspondente à ação
propriamente dita (ao fazer) pressupõe a superação da fase passional e uma
constante interação com o /saber/ e o /poder/ do destinador, pois dessas
modalidades depende a formação plena da competência do sujeito. O sujeito
competente equivale ao sujeito que realiza sua performance e conquista seu
objeto. Fora disso e sem o auxílio constante do destinador, o sujeito, muitas
vezes, não consegue identificar seu objeto, até porque não tem condições epis-
têmicas de reconhecer os seus valores.
A última etapa do esquema geral da narrativa prevê o restabelecimento dos
valores comunitários, agora por meio da função de destinador julgador. Este
actante opera com as modalidades veridictórias e extrai de suas articulações no
quadrado semiótica as noções de verdadeiro (ser+ parecer), de falso (não ser+
não parecer), de ilusório (parecer + não ser) e de secreto (ser+ não parecer). Em
vez de persuadir, este destinador interpreta, na fase final da nàrrativa, o sentido
adotado pelo sujeito em sua missão de conquista do objeto. Da possibilidade
desse reconhecimento por parte do destinador julgador decorrem as medidas de
recompensa ou punição social.
Essas etapas narrativas, sucintamente descritas, constituem uma verdadeira
gramática textual, com princípios relacionais bem engendrados e investimentos
semânticos (valores e modalidades) de caráter universal e abstrato. O desenvol-
vimento desses instrumentos formais pela semiótica tem apresentado resultados
bastante consistentes, sobretudo para a descrição dos textos figurativos e
polifônicos.
Um exemplo
23. Tomamos a liberdade de reproduzir aqui (substituindo o termo avaliador por destinador
julgador) um trecho d e outro tra balho, no qual j á havíamos relacionado as vozes aos
respectivos actantes. Cf. Tatit, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. São
Paulo, Edusp, 1996, p. 286.
24. Ibid. , p. 296-7.
86 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
A construção do sentido
na canção popular
Interinidade oral
mente" durante o tempo de interpretação. Que ele não era um ator mas o sujeito
real de todos os sentimentos, eufóricos ou disfóricos, transmitidos por sua
emissão vocal. Quem ouve sabe que as emoções ou os conteúdos registrados
naquela emissão foram criados num tempo passado, no entanto, a presença
fisica da voz sustenta a crença de que tudo está sendo fielmente reproduzido ou,
melhor, passado a limpo durante a interpretação. Quem canta sabe que se não
recuperar os conteúdos virtualizados na composição, durante o período da
execução, deixando transparecer uma inegável cumplicidade com o que está
dizendo (o texto) e com a maneira de dizer (a melodia), simplesmente inutiliza
o seu trabalho e se desconecta do ouvinte.
Não há canção sem impressão enunciativa, sem a sensação de que o que
está sendo dito está sendo dito de maneira envolvida. Por isso, o reco-
nhecimento dos cantores e de seus estilos é, por si só, um fato r de credibilidade
e confiança.
Perenidade estética
3. Cf. Valéry, P. Oeuvres. I, op. cit., p. 1449, ou Variedades, op. cit., p. 201-18. Já desenvolvemos
essa matéria no Capítulo IV.
4. Cf. Attali, J. Bruit. Paris, PUF, 1977 e Wisnik, J. M. O som e o sentido. São Paulo, Companhia
das Letras, 1989.
A construção do sentido na canção popular 91
6. Essas idéias aparecem pormenorizadas em outro trabalho. Cf. Tatit, L. Semiótica da canção.
op. cit., p. 237.
A construção do sentido na canção popular - - - - - - - - - - - - - 93
7. "Le grain de la voix". ln: Musique en j eu, n° 9, Paris, Seuil, nov. de 1972.
8. Cf. Greimas, A. J. e Courtés, J. Sémiotique. Dictionnaire, II, op. cit., p. 82.
9. Cf. Zilberberg, C. Raison et poétique du sens. op. cit., p. llO.
10. Esse tema é largamente tratado por Greimas, A. J. e Fontanille, J. Semiótica das paixões, op
cit. (I" parte).
94 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
11. Para a semiótica não há percepção de conteúdos semânticos (biológicos, sociais, psicológicos
etc.) sem envolvimento afetivo do sujeito. Não há análise de conteúdo que não implique um
sentimento anterior como primeiro critério de categorização: fatos que nos atraem, uos
repelem ou nos causam indiferença. Alguns modelos recentes, já incorporados no segundo
volume do Dicionário de Semiótica (op. cit.), chegam a propor que, antes de nos engajarmos
com os conteúdos culturais, escolhemos os valores fóricos, contínuos (eufóricos) ou
descontínuos (disfóricos), que nos servirão de parâmetro para a seleção posterior dos objetos.
A constrnção do sentido na canção popular - - - - - - - - - - - - 95
13. Estudamos minuciosamente esses aspectos de fonnação da canção nos Capítulos III e IV de
Semiótica da canção, op. cit., p. 59-191. Outra formulação sobre o mesmo assunto pode ser
encontrada acíma, no Capítulo inicial.
A r:onstrução do senÍido na canção popular _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ " 97
Ritmo e sintaxe
Composição e liberdade
Analisando
a
Canção ·
CAPÍTULO VIII
É comum alguém dizer que ouviu um samba de Tom Jobim, um rock dos
. Titãs ou mais uma canção romântica de Roberto Carlos. Todas essas designações
de gênero denotam a compreensão global de uma gramática. Significa que o
ouvinte consegúiu integrar inúmeras unidades sonoras numa seqüência com
outras do mesmo paradigma. Sambas, boleros, rocks, marchas ... são ordenações
rítmicas gerais que servem de ponto de partida para uma investigação mais
detalhada da composição popular.
Uma outra forma de apreciação empírica da canção é a identificação dos
estribilhos e dos mecanismos de reiteração. Trata-se também de um dispositivo
de gramática melódica, fundamental para a retenção da memória e para as
faculdades de previsão que esse tipo de linguagem temporal exige. A reiteração
toma significativo o fluxo inexorável do tempo. Basta um ligeiro apuro musical
do ouvido para se depreender reiterações.
Pouco mais refinada é a captação da tonalidade musical. No entanto, a
sensação de que a melodia está mais tensa ou menos tensa é um efeito físico que
o ouvinte, antes de compreender, já sente. Não é difícil demonstrar que as
tensões harmônicas obedecem a uma hierarquia de graus que regulamentam a
trajetória da melodia e que toda vez que a tensão regride, o movimento
corresponde à finalização. --
E não é só a tonalidade que assegura a tensão. Toda inflexão da voz para a
região aguda, acrescida de um prolongamento das durações, desperta tensão pelo
próprio esforço fisiológico da emissão. Esta tensão física corresponde, quase
sempre, a uma tensão emotiva e o ouvinte já está habituado a ouvir a voz do
cantor em alta freqüência relatando casos amorosos, onde há alguma perda ou
separação que gera um grau de tensão compatível.
102 _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ __ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Melodia e letra
Amostra de análise
Primeira parte:
va ros
· ····- -------··· -------·tr----a·õs---····----·------·-saõ·-·---·--ae-····-----------------·----·-··
·---- -------·--·-· ·- --·- · -·--· · -···--····--··----------·--------------------rnãrs----------- --·-------------
os
3. Vimos propondo um mapeamento dos contornos melódicos a partir da própria letra da canção,
como um campo de referência aos nossos comentários, esperando que o leitor-ouvinte elabore
mentalmente o exemplo. A acentuação naturdl das palavras sugere, por si só, um tratamento
rítmico que se defme num contexto de familiaridade com a música. Os espaços entre as linhas
determinam as gradações em semitons, enquanto as linhas mais espessas deli:mjtan1 a região de
tcssitura ocupada pela canção.
Elementos para a análise da canção popular 105
Segunda parte
4
--- ~--- -----------·-- ·····aós· ·····tros________________ · -·· ··· ·---·· ··---~~---------- ---·-- --
nos
106 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ Musicando a semiótica
Primeira parte
4. Grav. n° 63558912 ln: O salvador da pátria, Som Livre, 1989. Escolhemos, desta canção, o
trecho consagrado pela citada novela da Rede Globo de TV. A música completa compreende
duas versões de texto referentes à mesma melodia. Nossa escolha se deve: 1) à provável
familiaridade do leitor com este trecho; 2) à similaridade dos procedimentos de composição
nas duas versões; e, por fim, 3) à intenção de não estender demasiadamente os limites da
análise. Transcrevo, aqui, a versão não considerada: Se os frutos produzidos pela terra I Ainda
não são tão I Doces e polpudos quanto às pêras I Da tua ilusão I Amarra o teu arado a wna
estrela I E os tempos darão I Safras e safras de sonhos I Quilos e quilos de amor I Noutros
planetas risonhos I Outras espécies de dor.
Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - - 107
os ··ao··
1 2
se os se os
os ······· tos··
108 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
5. "Le rôle du temps dans le discours musical". ln: Arrivé, M. e Coquet, J.-C. (cds.), Sémiotique
en jeu, op. c it., p. 127.
6. Tarasti transfere as modalidades do /ser/ e do /fazer/ de seu habitual contexto narrativo para o
domínio da música erudita. Cogitamos que essa derivação ganharia um peso ainda maior no
terreno da canção popular, onde melodia e letra sâo regidas pelos mesmos princípios.
Elementos para a análise da canção popular _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 109
ra
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Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - 111
Segunda Parte
-- ----~---------~-
a·ra:v:r:a:aor:·rau:··
Temos iconização toda vez que aparecem diversos traços para configurar a
mesma imagem, o mesmo objeto, a mesma personagem ou até o mesmo
sentimento. De qualquer forma, a característica marcante desse processo é a
enumeração lingüística desses traços que faz ressoar as reiterações dos temas
melódicos. Tudo ocorre como se a canção engendrasse um novo signo, em que
o plano da expressão se define pela recorrência dos temas melódicos e o plano
do conteúdo pela enumeração dos traços que compõem um ícone integral. Se a
melodia assim concebida mexe diretamente com o nosso corpo pelos canais
auditivo e tátil, a letra atinge nossa mente por esses mesmos ou por outros canais
sensitivos. Nesta canção, por exemplo, as movimentações descritas na dimensão
espacial evidenciam um apelo visual: "O lavrador louco dos astros I O camponês
solto nos céus".
Assim, a dinamização do andamento melódico mais a equivalência de suas
unidades rítmicas para excitar o processo reiterativo passam a ser o tema musical
do camponês-lavrador impregnando-se de suas características. Este é o resultado
geral da tcmatização que ocupa, nesta composição, o primeiro posto na
hierarquia das estratégias persuasivas. De qualquer modo, é pela presença
concomitante e coerente dos outros dois processos (passionalização e figura-
tivização) preenchendo outras esferas do seu sentido, que Amarra o teu arado a
uma estrela integra-se na economia geral de sua linguagem e renova, a cada
execução, o encanto e a eficácia da canção popular.
CAPíTULO IX
Valores inscritos
na canção popular
Introdução
l . Sem i-simbólicos são os sistemas signiticantes que não possuem a mesma conformidade entre
~s unidades do plano da expressão e as do plano do conteúdo, como ocorre no sistema
língüístico (considerado, em semiótica, sistema simbólico por excelência) . As relações entre os
dois planos são estabelecidas por categorias. Por exemplo, a categoria que articula ascendência
e descendência melódica, no plano da expressão, pode estar relacionada à categoria que
articula, no plano do conteúdo, as noções de prossecução e conclusão. Para o aprofundamento
da noção de sistema semi-simbólico, consultar o trabalho de Jean-Marie Floch, Petites
mythologie de / 'oeil et de l 'esprit - pour une sémiorique plastique, Paris-Amsterdã, Hades-
Benjamíns, 1985, principalmente a partir da p. 79.
118 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A1usicando a semiótica
Adequação ao objeto
Projeto enunciativo
A segunda parte nos traz uma reiteração temática explícita que dispensa
comentários:
to
Tempo e tensividade
na análise da canção
Uma canção
Uma teoria
Uma reformulação
2. Essas instâncias mantêm entre si relações de conversão do nível mais abstrato (fundamental)
ao nível mais concreto (discursivo) e relações de pressuposição no sentido contrário. Já há
trabalhos de semioticistas brasileiros explicando, com clareza e simplicidade, o funcionamento
do percurso gerativo. Recomendamos, por exemplo, o livro de Diana L. P. Barros, Teoria do
discurso, op. cit., p. 15 e o de J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso, São Paulo,
Contexto, 1989, p. 15.
3. Cf. Hjelmslev, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva, 1975, p.
11.
132 - - - - - - - -- _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ]l,fusicundo a semiótica
4. Cf. Zilberberg, C. Raison ... , op. cit., p . 121. Ver também, do mesmo autor, "Modali tés et
pensée modale. ln: Nouveaux Actes Sémiotiques, III, p. 21.
5. Cf. Hjelmslev, L. Ensaios lingüísticos. São Paulo, Perspectiva, 197 1, p. 175.
Tempo e tensividade na análise da canção - - - - - - - - - - - - - 133
quando verificamos que algwnas forças vitais que comandam, por exemplo,
wna narrativa já estão programadas nos níveis tensivo e aspectual.
Os limites, próprios da parada da continuação, instruem a noção de falta
(ou perda) que, em geral, desencadeia wn processo narrativo de liquidação da
falta. Por outro lado, o sujeito do querer, aquele que deseja recuperar algo
perdido, é sempre alguém que assume a parada da parada e projeta à sua
frente a extensão que deve conduzi-lo ao objeto.
Assim também, a parada da continuação versus parada da parada
representa o "regime imanente do polêmico"6 entre sujeito e anti-sujeito, entre
herói e vilão, entre o progresso narrativo e seus obstáculos. Ou, se quisermos
ir adiante, a expansão tensiva regula o querer que, por sua vez, regula a
atividade estética. A concentração tensiva, a parada, a descontinuidade
regulam a modalidade do dever e, conseqüentemente, a atividade ética.
Uma análise
1
eho
1O. Esse é um exemplo de arranjo eficiente para a canção popular: explicita os conteúdos e os
valores que já constam da composição. Esse dom é característico do ananjador-cancionista.
1! . O termo retensivo (ou remissivo) corresponde à parada no nível tensivo. Opõe-se, portanto,
a distensivo (cf. Zilberberg, C. Raison ... , p. 55 e 126). A melodia retensiva é a que suspende
a recorrência ou qualquer fluxo de continuidade. Por isso aparece quase sempre modalizada
pelo /ser/ e configurada pelos recursos passionais.
136 - - - - - -- - - - - -- - - - - - - - M usicando a semiótica
a) Sintaxe melódico-passional
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Tempo e tensividade na análise da canção - - - - - - - - - -- - - 137
... .. v:ar··
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138 _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A;fusicando a semiótica
b) Sintaxe melódico-temática
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3 1
Tempo e tensividade na análise da canção 139
za
12. Na interpreta.ção original desta canção, realizada pelo bloco Muzernza (Muzemza do reggae,
São Paulo, Continental, 1988), sequer são articuladas as inflexões temáticas do terceiro e do
quinto segmentos. O desprezo total às nuanças do perfi l melódico se justifica pela
predominância do processo figurativo (alguém dizendo alguma coisa) sobre a tematização e
a passio nalização. Essas últimas supõem uma defin ição semântica da melodia que não
interessa ao bloco carnavalesco.
140 Musicando a semiótica
na sen
c) Interação temático-passional
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Tempo e tensividade na análise da canção 141
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d) Figurativização enunciativa
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3 5 7
Um brilho de beleza
Assim, trata-se do relato de uma cena intensa mas que a qualquer instante
- e isso é decorrente da própria retenção do tempo - pode se distender pela
interrupção polémica da parada.
Importante assinalar que a coincidência dos sentidos da lett·a com os
sentidos da melodia no mesmo segmento da canção produz um efeito rendoso
mas não necessário. A ressonância entre os componentes (lingüístico e
melódico) se dá por correspondência de articulações no curso das cadeias
fônicas e semânticas independentemente dos encontros termo a termo. Em
Brilho de beleza, por exemplo, a articulação passionalização/tematização e a
urgência de suas sucessivas alternâncias são apreendidas tanto na melodia
como na letra.
Os termos tensivos devem ser vistos como valores oriundos diretamente
de nossa condição básica de um ser no tempo e no espaço: a retençã.o é a
interrupção do tempo passante e a circunscrição do espaço; a distensão é o
tempo que volta a se movimentar e o espaço que se abre. Antes de determinar
seu objeto, o sujeito se conjunta com os valores retensivos ou com os valores
distensivos deduzidos do nível aspectual.l 4 Só numa etapa gerativa mais
superficial, identificamos o objeto que cobrirá o valor escolhido. Em nosso
exemplo, o valor almejado é a continuação distensiva e o objeto é o reggae.
Nesse sentido, podemos observar na letra a dupla atuação do sujeito,
selecionando os valores distensivos no passado e no futuro:
a)
Quando ele explodiu pelo mundo
Ele lançou seu brilho de beleza
14. Cf. Greimas, A. J. e Courtés, J. Sémiotique: dictionnaire ... , Ii, op. cit., p. 100.
Tempo e tensividade na análise da canção - -- - - - - - - - - - - 145
b)
Bob Mahley pra sempre estará
No coração de toda a raça negra
4. Cf. Campos, A . Balanço da bossa e outras bossas. 2" cd., São Paulo, Perspectiva, 1974, p.
309.
5. Vimos tratando desse tema ao longo dos capítulos anteriores, mormente no IV e VII.
6. A relação de categoria a categoria é própria dos sistemas semi-simbólicos (cf. nota 1 do
Capítulo IX).
7. "Bem definidos" no sentido de clareza e estabilidade sonora.
150 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica
Melodia e letra
1• parte: J
3
2• parte:
J j ,J
i
Composição e interpretação
wna única seleção prévia dos valores missivas pelo sujeito.l5 Nesse caso, a
escolha do emissivo mantém o sujeito vinculado ao objeto por intermédio da
modalidade do crer. Tais letras manifestam-se como exaltação dos traços que
compõem a figura do objeto, 16 enquanto as melodias articulam um projeto
entoativo com medidas programadas em função do pulso. Este, como já foi dito,
é o elemento extenso que dissemina a continuidade (no sentido de parada da
parada) por toda a obra. Conseqüentemente, as medidas são características
locais, intensas, que, numa progressão emissiva, apresentam durações musicais
reduzidas e acentuadas por influência do próprio pulso subjacente.
Há canções cujo ajuste entre componente lingüístico e componente
melódico se processa em parâmetros estritamente estabelecidos dentro de uma
ordem emissiva. A wna letra recoberta pela celebração de wna figura ou de um
ator (pressupondo a conservação do objeto pelo sujeito), o compositor faz
corresponder um projeto entoativo praticamente fechado em seus elementos
intensos: dmações vocálicas reduzidas aos acentos, aliteração de consoantes e
articulação de pequenos intervalos de altura.l7 Uma canção assim concebida em
sua composição não permite muita mobilidade no nível da interpretação,
sobretudo no que diz respeito às oscilações do tempo cinemático. O pulso,
conduzindo ataques, acentos e intervalos reduzidos, pede aceleração.
Composições como Águas de março (Tom Jobinl), O que é que a baiana tem ?
(Dorival Caymmi), Expresso 2222 (Gilberto Gil), Camisa listada (Assis
Valente), Mulata assanhada (Ataulfo Alves) etc., podem ter suas interpretações
comprometidas se forem desaceleradas.(a menos que num contexto de paródia).
Da mesma forma, a seleção prévia de um fazer remissivo instrui o
componente lingüístico com as tensões típicas do estado passional. Nesse caso,
temos forças originantes que podem ser d.iscretizadas pelo querer mas, temos
também, necessariamente, a predominância dos limites impostos pelo dever ou
pelo saber que problematizam, no nível narrativo, o núcleo da junção (cf. a
segunda parte de Garota de Ipanema). O estado mais comum é o do sujeito em ··
disjunção com o objeto e em conjunção com o tempo (a espera, a saudade ou a
distância temporal que leva ao objeto). Paira por toda a letra, com maior ou
menor explicitação, a função de anti-sujeito.
15. Continuamos acompanhando - com certa liberdade -· o pensamento de Zilberberg para quem,
" antes de se conjuntar a wn objeto, o sujeito se conjunta ao valor deduzido da
aspectualidade". ln: Greimas, A. J. e Courtés, .L Sémiotique: Dictionnaire ..., II, op. cit., p.
I 00. O nível aspectual coincide, em vários textos do autor, com o nível missivo.
16. Exs.: Brasil pandeiro (Assis Valente), Eu quero um samba (1-Iaroldo Barbosa/Janet de
Almeida), Baião (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), A tua presença morena (Caetano
Veloso), Morena de Angola (Ch..ico Buarque), Falsa baiana (Geraldo Pereira) etc.
17. As questões relativas à altura musical - que compreendem os mecanismos de transposição
espacial no campo de tessitura - são, até certo ponto, paralelas e complementares a tudo que
vimos aqui, no nível da temporalidade. Para o desenvolvimento desse aspecto cf. Tatit, L.
Semiótica da canção. op. cit., p. 94 ss.
160 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ Musicando a semiótica