Musicando A Semiótica

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Lurz TATIT

Musicando
a
Semiótica
-. ensatos-
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro

T219m
Tatit, Luiz
Musicando a semiótica ensaios I Luiz Tatit. - São Paulo
Annablume, 1997.
163 p. 14x21 cm.

ISBN 85-85596-87-2

1. Música - Semiótica. 2. Semiótica. I. Título.

CDD-149.946

MUSICANDO A SEMIÓTICA

Luiz Tatit

Revisão:
Dida Bessana
Mara Guasco

Capa:
Ricardo Matsukawa

CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peíiuela Ca:iíizal
Norval Baítello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Gilberto Mendonça Teles
Maria de Lourdes Sekeff
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Jacobi
Gilberto Pinheiro Passos

1a edição: janeiro de 19 9 8

<§ Luiz Tatit

ANNABLlllviE editora . comunicação


Rua Padre Carvalho, 27 5 . Pinheiros
05427-100 . São Paulo. SP. Brasil
Te!. e Fax. (011) 3812.6764 - Televendas 3031.9727
http://www.annablume.com.br
Sumário

f\presentação 7

PRIMEI.Rf\ Pf\RTE:
MUSICf\NDO f\ SEMIÓTICf\

CAPÍTULO I - Musicalização da semiótica 11 iA 1 ·


CAPíTIJLo II - f\ semiótica e Merleau-Ponty 29 ·;:. J ·:
CAPíTIJLo III - Corpo na semiótica e nas artes 35 ' " " ~
CAPÍTULO IV - Silêncio e luzes na apreensão estética 49
CAPíTULo V Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade 61
CAPiTULo VI - Semiótica, enunciação e polifonia 73 · "~ '7

CAPÍTULO VII f\ construção do sentido na canção popular 87 1""

SEGUNDA PARTE:
ANALISANDO A CANÇÃO

1O1 : ~'" .
0 1
CAPiTIJLo VIII - Elementos para a análise da canção popular -.

CAPÍTULO IX - Valores inscritos na canção popular 117


CAPíTIJLo X - Tempo e tensividade na análise da canção 129 / ·" : " " '
CAPiTULo XI - Manifestação das categorias temporais 147 ' "" ;

Bibliografia mencionada 161


Apresentação

Os textos aqui reunidos propõem à semiótica uma parceria. Sabe-se que,


·depois de muita dedicação às "letras", o modelo semiótico vem reclamando a
presença da porção musical necessária a qualquer reflexão conseqüente sobre
a construção do sentido. Já contamos com balizas conceituais de grande enver-
gadura, decorrentes dos princípios de percurso gerativo da significação e de
sintaxe modal e narrativa, que elevaram a ambição epistemológica da teoria
mas que, em contrapartida, acentuaram suas insuficiências descritivas. Afinal,
temos as formas mas não podemos ainda abordar as forças; temos categorias
mas faltam, entre elas, as modulações de passagem; sabemos demarcar a ori-
gem e o ponto de chegada mas temos dificuldade em considerar a duração; fal-
ta, enfim, um projeto de dinamização do modelo, semelhante àquele que trans-
forma um poema em canção.
Algirdas Julien Greimas, fundador da semiótica como um projeto de
ciência, dedicou seus últimos trabalhos à proposição de um nível de precon-
dições para a geração do sentido, no qual inseriu os estágios contínuos -
relacionados às faculdades perceptivas e às disposições afetivas do sujeito -
que nem sempre podem ser submetidos à discretização e às reduções
categoriais próprias dos estágios intelectivos. Outros autores contemporâneos,
que serão convocados à-frente, vêm solicitando nada menos que a "musicali-
zação" da semiótica, incitando os pesquisadores a incorporar à teoria as oscila-
ções tensivas presentes em quase todas as fases de produção e de compreensão
do discurso, seja este verbal ou não-verbal.
Os sete capítulos que compõem a primeira parte deste volume,
"Musicando a semiótica", têm por finalidade não apenas a focalização dos
principais planos semióticos submetidos à atual reformulação, mas também
o lançamento de objetos de pesquisa que possam contribuir diretamente para
esse esforço geral de dinamização do modelo teórico. Entre esses objetos
destacam-se as noções de corpo (Capítulos II e III), de estética (Capítulos
8 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

IV e V), de enunciação (Capítulo VI) e, sobretudo, de canção (Capítulos I


e VII).
O tema da canção estende-se por toda a segunda parte, "Analisando a can-
ção", na qual são traçados alguns parâmetros descritivos, imediatamente apli-
cados em casos concretos. Uma certa evolução do enfoque teórico pode ainda
ser registrada, do Capítulo VIII ao XI, na adoção cada vez mais ampla de cri-
térios rítmicos e temporais para a análise da sintaxe cancional, ou seja, das de-
terminações melódicas e lingüísticas e da compatibilidade entre elas.
Resta dizer que os textos selecionados para a segunda parte são anterio-
res aos da primeira no que tange à sua produção. Isso pode sugerir uma leitura
às avessas, da segunda para a primeira parte, na medida em que as preocupa-
ções daquela converteram-se em ocupações desta. Sem preterir esse encami-
nhamento, igualmente proveitoso no nosso entender, a ordem proposta parece-
nos mais adequada para o tratamento das questões pendentes no campo da aná-
lise do sentido que se configura no espírito humano independentemente dos
sistemas que o modelizam e veiculam. De posse de alguns recursos gerais que
participam de todo e qualquer processo de construção do sentido, o leitor reu-
nirá melhores condições para o exame de um sistema específico, neste caso o
da canção popular. No mais, se a segunda parte exibe uma certa propensão para
despertar o interesse preferencial dos cancionistas, a primeira foi concebida
com a esperança de merecer a atenção de todos da área de humanidades.

Nota

Os trabalhos que seguem foram, a princípio, destinados a revistas


especializadas ou obras coletivas. Até o presente, já foram efetivamente publi-
cados os Capítulos I, in: E. Landowski (ed.), Lire Greimas, tradução para o
francês de Eric Landowski, Limoges, Pulim, 1997; II, in: A. C. Oliveira e E.
Landowski (eds.), Do inteligível ao sensível, São Paulo, Educ, 1995; III, in: I.
A. Silva (ed.), Corpo e sentido, Araraquara, Unesp, 1996; V, in: E. Landowski
e J. L. Fiorin (eds.), O gosto da gente, o gosto das coisas. Abordagem
Semiótica, São Paulo, Educ, 1997; VI, in: Significação, n. 11/ 12, São Paulo,
AnnaBlume/C.E.S., 1996; VII, in: Língua e Literatura, n. 21 , F.F.L.C.H., 1994-
5; VIII e X, in : Cadernos de estudo: análise musical, n. 1 e 3, São Paulo,
Atravez, 1989 e 1990; e XI, in: Cruzeiro semiótica, n° 16, Porto, A.P.S., 1992.
Para a constituição deste volume, as citações em língua estrangeira rece-
beram tradução em português. Além disso, todos os textos foram revisados e
atualizados pelo autor.
PRIMEIRA PARTE

Musicando
a
Semiótica
CAPíTULO I

Musicalização da semiótica

Introdução

Ao escrever o "Avant-propos" do segundo volume do Dicionário de


semiótica, 1 Greimas chamou a atenção dos scmioticistas para um mal que
rondava a atividade dos pesquisadores e que poderia ser definido como "a
atração pela profundidade". Dentre as conseqüências imediatas deste mal -
resultante de uma certa confusão entre "aprofundamento das problemáticas" e
"sua instituição nos rúveis profundos" - o escritor destacava a iminência de um
congestionamento conceitual justamente na instância profunda do modelo
gerativo que, por ptincípio, deveria receber um tratamento sumário, abtigando
apenas o "minimum epistemológico" suficiente para sustentar a teoria e
deixando de lado questões que competem a outros domínios do pensamento
como à filosofia.
Greimas identificava, ainda nesta introdução ao Dicionário, três fortes
tendências regendo o tom das colaborações- cabe lembrar que as entradas deste
segundo volume foram assinadas por diversos estudiosos da semiótica
greimasiana - , o que, evidentemente, abriam perspectivas distintas para o
desenvolvimento imediato da teoria. Mesmo apontando a complementaridade
dos três enfoques, Greimas não deixava de manifestar sua predileção pelo
terceiro que, àquela altura, cumpria o seu projeto explícito de operacionalização
da semiótica junto às demais ciências sociais. Nas palavras do autor: "Um núcleo
sólido trabalha enfim pela conquista de novos territórios e pelo refmamento do
instrumental, convencido de que a vocação da semiótica é a de contribuir para a
metodologia das ciências humanas e sociais".2

1. Greimas, A. J. e Courtés, J. Sémiotique. Dictionnaíre raisonné de la théorie du langage, II,


Paris. Hachette, 1986.
2. lbid. , p. 6.
12 ___________ Musicando a semiótica

As duas outras tendências, talvez mais periféricas mas igualmente sólidas,


ressaltavam, no primeiro caso, a necessidade de fortalecimento do instrumental
epistemológico da semiótica por meio de formalização matemática dos seus
conceitos fundadores e, no segundo, a necessidade de dinamização das
estruturas e de concepção de um plano especial para se considerar as oscilações
tensivas.
Hoje, onze anos após a publicação do citado volume, contamos com outros
elementos para avaliar os vínculos e os compromissos do autor de Semântica
estrutural com as tendências então registradas. De fato, Greimas sempre zelou
pelo aspecto operacional do modelo semiótico e pelas contribuições
metodológicas que esta teoria poderia trazer às demais ciências humanas .
Tratava-se, como já dissemos, de um projeto explícito cujo objctivo principal, no
nosso entender, era o de concentrar esforços no aprimoramento técnico do
modelo, já que a semiótica deveria ser, acima de tudo, uma "práxis".3 Entretanto,
nos anos seguintes, a julgar pela publicação de obras como De l 'imperfection
(1987) e Sémiotique des passions (1991 , em colaboração com J. Fontanille),
Greimas passou a conduzir simultaneamente um ouh·o projeto, menos explícito
sem dúvida, mas claramente afinado com suas preferências e convicções
subjetivas.
Em outras palavras, se Greimas em momento algum sentiu necessidade
premente de formalização matemática de seus pressupostos teóricos, não se pode
dizer o mesmo com relação à abordagem das oscilações tensivas. Tudo leva a
crer, pelas inflexões adotadas em seus últimos textos e últimos depoimentos, que
a própria execução do projeto de operacionalização da semiótica passou a
depender de uma revisão profunda do modelo padrão à luz das contribuições
provindas diretamente dos estudos da tensividade. No quadro geral de evolução
da teoria, dois objetivos imediatos tornaram urgente o reconhecimento dos
fatores contínuos que participam da construção do sentido: a implantação de uma
semiótica das paixões e o tratamento do processo de enunciação.

Categorização no nível profundo

Semiótica das paixões é um trabalho denso que trouxe relativa organização


a toda essa reviravolta semiótica e apresentou, de forn1a sincrétíca, esses dois
objetivos já no título de sua primeira parte: "A epistemologia das paixões".4 Para

3. Cf. entrevista concedida a Frédéric Nef. ln : Net~ F. Structures Elémentaires de la Signijication.


Bruxelles, Complexe, 1976, p. 26.
Musicalização da semiótica 13

instituir de vez um modelo que desse conta dos conteúdos passionais foi
necessário repropor o nível epistemológico da teoria com o auxílio de dois
simulacros complementares, um tensivo e outro fórico, para configurar as
precondições que engendrariam o ser do sentido. Este "ser" não está muito
longe, a nosso ver, da construção de um simulacro do sujeito enunciativo,
possuidor, como tal, de percepção e sentimento. Mesmo não considerando ·
diretamente a presença desse sujeito desde as etapas mais abstraías do percurso
gerativo, Grcimas e Fontanillc reconheceram que a abordagem do componente
passional por si só já exigia ajustes teóricos que certamente repercutiriam nos
estratos profundos do modelo.s E isso não mais resultava de uma simples
"atração pela profundidade" mas da própria necessidade de expansão do projeto
semiótico.
De acordo com nossa avaliação, os autores exploraram, em última
instância, um lugar teórico que sempre esteve subjacente ao esquema
narratológico concebido pelo próprio Greimas. Por trás das desc9ntinuidades
que asseguravam a nitidez da relação dos homens com o mundo e idos homens
entre si- dando origem a noções funcionais como sujeito, objeto, 'destinador e
destinatário - flutuavam diversos conceitos de natureza contínua que pediam
atenção especial. As noções de junção, contrato, identidade e fidúcia, por
exemplo, faziam parte desse elenco de pressupostos mencionados mas muito
pouco investigados. Quando as mesmas articulações narrativas que regiam a
semiótica da ação foram reconhecidas, de forma embrionária, no universo do
"ser", ou seja, no esquema passional do sujeito, numa fase aquém ou além da
manifestação actancial, então aqueles pressupostos condenados a uma espécie de
"limbo" ontológico foram sendo reabilitados e reconstruidos pelos autores como
precondição para se compreender as etapas narrativas e ctiscursivas do modelo.
Ativando sua principal arma de combate à ontologia - o gerador de
simulacros- a semiótica chegou enfim a uma espécie de protótipo do sujeito da
enunciação realizado nos contornos de uma prefiguração profunda das
percepções e dos sentimentos e definido como "tensividade fórica". Construindo
o simulacro, mítico de um lado e merleau-pontiano de outro, de um "corpo que
sente" assimilando e transformando os "estados de coisas" por meio da
competência contida nos "estados de alma", a teoria recuperou um plano de
existência homogênea nos estratos profundos do modelo para poder explicar os
desvios, mormente os passionais, que se processam em superficie.

4. Cf. Greimas. A. J. e Fontanille, J. Semiótica das paixões, São Paulo, Ática, 1993, p. 21-100
(Sémiotique des Passions. Des Etats de Choses aux Etats d'áme. Pa1is, Seuil, 1991).
5. lbid., p. 20.
14 -~----------------------------Musicando a semiótica

A idéia de foria

A aproximação do conceito de "corpo" ao conceito de "faria", com suas


oscilações tensivas, sugere outra interessante aproximação conceituai- sempre
no plano dos simulacros - desta vez entre espaço e tempo. Ao promover uma
verdadeira intersecção da protensividade, que defme a função de sujeito, com o
poder de atratividade, que defme o actante objeto, a noção de corpo circunscreve
'-- um espaço teórico de junção, de onde emana o sentido de unidade do ser. A
epistemologia das paixões proclama, nesses termos, uma tensividade original
que, na preservação do elemento uno, assegura a identidade integral do sujeito
(protensividade do sujeito mais potencialidade do objeto) e que, na partição
desta unidade básica, cria a alteridade e o próprio sentido de busca (recuperação
da integridade do ser). Integração e cisão constituem imagens que articulam a
dimensão espacial do modelo e ajudam a representar, desde os níveis mais
profundos, as manobras continuas e descontínuas dos discursos.
Se a noção de corpo opera uma junção entre valores que darão origem, nos
estratos narrativos, às funções de sujeito e objeto, podemos dizer, para empregar
um dispositivo teórico caro a Hjelmslev, que tal operação se processa numa
ordem intensa. Quando a mesma junção se produz na ordem extensa, o conceito
de faria toma-se bem mais adequado.6
A faria deve ser concebida como um fluxo temporal que só se desagrega a
partir da primeira interrupção. A manifestação narrativa de um destinador que
manipula com êxito o destinatário, instaurando-o como sujeito de um processo
de busca do objeto, por exemplo, pode ilustrar- se de fato não houver qualquer
acidente polêmico nesse percurso - uma possibilidade de resolução fórica,
baseada, nesse caso, num contrato de alto teor fiduciário que garante um trânsito
livre até a configuração da primeira atividade antagonista. As tensões que
irnpelem o sujeito ao restabelecimento do uno e, assim, à recuperação da própria
identidade (sujeito e objeto conciliados pela ação de um corpo que sente) são as
mesmas que operam na recomposição do contínuo fórico representativo de um
,; elo temporal entre sujeito e objeto. Nessa versão fórica, o elo apresenta-se como
um simulacro do progresso narrativo justificando as noções de "espera",
"desejo", "atração", e, sobretudo, a noção de "valor". Afmal, o vínculo profundo
(ou extenso?) do sujeito não é com o objeto mas com o valor. O esforço dos
autores de Semiótica das paixões para distinguir o objeto imediato do valor
perene reflete bem essa necessidade de concepção de um lugar teórico em que os
actantes (sujeito e objeto) anulam-se diante de um contínuo que os absorve
constituindo uma única entidade. Daí os sucessivos (e talvez excessivos) graus

6. Cf. Sémiotique. Dictionnaire, op. cit., vol. II (entradas "Intense" e "Extense").


7. "Uma estrutura profunda é simplesmente mais extensa que uma outra", Zilberberg, C.
"Relativité du rythme", Protée, XVIII, I, 1990, p. 41.
Musicalização da semiótica 15

de abstração metalingüística para traduzir uma anterioridade, na qual o sujeito se


configuraria como um espectro protensivo e o objeto como valor, valor do valor,
sombra de valor, valência, tudo para indicar uma continuidade já contida no
conceito de foria.

Seleção dos valores tensivos

Nesse ponto, vemos com entusiasmo os aprimoramentos epistemológicos


c técnicos introduzidos por Claude Zilberberg. Em busca de uma serniotização
completa do percurso gerativo, este autor propõe novos patamares de abstração,
onde as oscilações tensivas são tratadas como valores primordiais selecionados
pelo sujeito da enunciação nas etapas mais sumárias de configuração do
sentido.
Portanto, a própria enunciação já se produz, em Zilberberg, nos termos de
uma oscilação tensiva que privilegia ora os limites e as contraÇÕes, ora as
cprogressões e as expansões do fluxo fórico. No primeiro caso, temos a criação
do tempo com suas tensões expectantes e, no segundo, a criação do espaço com
suas difusões e desdobramentos narrativos. Q árbitro regulador de toda essa
alternância rítmica é o eu em posição de sujeito enuncÍador. 8 Aliás, só
~conhecemos os valores fóricos a partir das escolhas e das manobras rítmicas
realizadas por esse sujeito. A foria em estado bruto é, evidentemente, uma
hipótese teórica cuja pressuposição é necessária para o desenvolvimento das
etapas mais concretas do percurso gerativo.
Em vez de operar com os termos asserção/negação, indicativos da
inspiração lógica de Greimas, Zilberberg adota as noções de parada e parada da
parada, cujo teor temporal confere maior rendimento à descrição da foria. Se a
semiótica já concebia a primeira apreensão do sentido positivo como uma
operação de dupla negação (negação dos termos diferenciais que se negam
mutuamente), Zilberberg compreende que o sentido fórico só se estabelece a
partir da intervenção rítmica do sujeito que, rejeitando um tempo fora de
controle, um fluxo indeterminável e imprevisível, propõe, por meio da
enunciação, uma redistribuição das descontinuidades e continuidades em forma
de paradas e paradas das paradas. Nesses termos, a própria enunciação
constitui, em última instância, a parada da parada de um fluxo interrompido ou,
se preferirmos, o restabelecimento de uma continuidade que ela mesma ·
estancou. Daí então o aforismo de P. Valéry muitas vezes citado pelo autor: "tout
commence par une interruption".

8. Cf. Zilberberg, C. Raison et Poétíque du Sens. Paris, PUF, 1988, p. 104.


16 Musicando a semiótica

Não cabe aqui um esforço especial de decifração de todas as aJ.1icuiações


propostas pelo semioticista. Elas são complexas e por vezes bastm1te minuciosas.
Um dos objetivos desse Capítulo é chamar a atenção para as possibilidades de
categorização do nível profundo e, mais do que isso, para a necessidade de
fundação de uma proto-sintaxe que libere, de uma vez por todas, o nível
profundo das amarras do discurso verbal. Sempre haverá uma instância
hipotética, portadora de ondulações vagas não categorizáveis, onde a integração
dos valores é concebida como harmoniosa e absoluta , para justificar a
intervenção do homem que troca essa plenitude informe pelo percurso de busca
que dá "sentido" a sua vida. Esse horizonte fluido ainda é necessário para se
pensar não apenas o gesto da cisão prinlordial, em que o sujeito se aparta do
objeto, mas sobretudo o elo de atratividade que permanece após a cisão,
conduzindo o sujeito ao restabelecimento de sua identidade pela recuperação do
objeto. Em outras palavras, o distanciamento do objeto só intensifica os laços de
conjunção com o valor, cuja figuração mais precisa é a da nostalgia da fusão
plena, quando sujeito e objeto "faziam parte" do mesmo continuum .
O nível tensivo ou fórico já contém, em Zilberberg, essa dimensão pré-
teórica que, como tal, pode ser concebida mas não articulada. Ocorre, porém,
que a presença das oscilações tensivas nos discursos, verbais ou não-verbais, só
pode ser avaliada a partir das escolhas elaboradas pelo sujeito epistêmico e
passional que reapresenta a hipótese fórica em segmentos e demarcações estes
sim categorizáveis. As oscilações tensivas, para o autor, são os primeiros valores
com os quais o sujeito se compromete e que servirão de base para o
engendramento das categorias modais, actanciais e figurativas. Aqui reside, no
nosso entender, o interesse semiótica da proposta: as funções que regem os
niveis superficiais decorrem dos valores selecionados do nível tensivo-fórico. E
para instituir a instância na qual esses valores já aparecem selecionados e
ritmicamente articulados, Zilberberg apresentou um nível intermediário,
encarregado da conversão dos valores tensivos em valores modais. Trata-se do
nível "missivo" ou "aspectual".9
A foria pode ser apreendida sob a forma predominante da concentração 10
o que resulta numa contenção do fluxo e, conseqüentemente, numa valolização
das saliências (limites e demarcações). Nesse caso, a sclcção privilegia os
valores remissivos, cuja formulação figurativa é a parada já comentada
anteriormente. A resolução do nível fórico pode ser, por outro lado, efetuada
sob a predominância do fazer emissivo, valorizando as distensões e as formas
de expansão do fluxo (gradações e segmentações). A fmmulação figurativa

9. Jbid., p. 97-113.
1O. Veremos adiante que esse conceito, assim como o de extensão, tem origem na silabaçào
saussuriana.
J'vlusicali::ação da semiótica 17

parada da parada auxilia na compreensão sintáxica da relação entre os


valores escolhidos pois define a noção de continuidade como negação de uma
descontinuidade. Em renn.os de avaliação temporal do modelo, este enfoque
está mais para a epistemologia de Bachelard que para o vitalismo de Bergson.

Nível missivo
,•
A categorização da tensividade-fórica configura-se, portanto, como um '
recurso do nível missivo (embora seja diticil uma delimitação precisa entre os
estágios tensivo e missivo), onde os valores remissivos e emissivos articulam-se
sintáxica e ritmicamente gerando as matrizes das descontinuidades e
continuidades que estruturam os discursos verbais e não-verbais.
Parte dos processos de conversão dos níveis gerativos pode ser explicada
pela negação dos valores missivos nos níveis posteriores, Quando o fazer
remissivo dissemina os limites por toda a extensão discursiva, a tendência
natural é o surgimento de transgressões que ultrapassam as barTeiras dos limites
negando a insuficiência: a aparição da falta, da exclusão ou, ainda, da proibição
num nível ocasiona sempre sua negação (ou sua liquidação) num outro níveL De
maneira inversa, a seleção do fazer emissivo como força dominante de expansão
pode provocar, com suas passâncias e contínuas transgressões de limites, um
excesso suscetível de ser rechaçado nos níveis seguintes. Enquanto a
insuficiência tende a despertar a atuação reparadora do /querer/, o excesso
suscita uma resposta modal no âmbito do /dever/.
Ao lado desse mecanismo rítmico de recusa e adoção de valores (uma ·•
espécie de busca de equilíbrio subjctal) há que se considerar, durante todo o
itinerário gerativo, um processo de conservação dos valores primordiais
escolhidos no nível missivo. Assim, são os próprios elementos remissivos que
vão instruir as modalidades deônticas, os estados de disjunção, as interações
éticas e as regulamentações do bem coletivo. Os valores emissivos reaparecerão
como modalidades volitivas, como relações contratuais, relações conjuntivas ou
mesmo na forma de atração estética,
De qualquer modo, o nível tensivo-fórico permanece como horizonte
ontológico, sustentando a crença de que o homem visa preservar sua
integridade interior: tudo que provém da primeira parada, da primeira tomada
de posição remissiva, é um esforço no sentido de restabelecer o contínuo, esse
elo profundo que neutraliza as funções actanciais em virtude da junção plena,
A hipótese de um fluxo fórico anterior justifica as noções de "sentimento de
falta", de "espera", de "desejo", e até daquilo que chamamos, na perspectiva
do desenvolvimento narrativo, de retorno ao equilíbrio, Com o nível tensivo-
fórico, compreendemos que o homem busca a junção abandonada no primeiro
18 _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

gesto enunciativo. Compreendemos também porque Greimas fez do programa


narrativo a "base de um fazer semiótico" Jl
A seleção do fazer emissivo responde pela reapresentação da continuidade
no nível narrativo tanto do ponto de vista objetal como do ponto de vista
subjetal. No primeiro caso, a base emissiva oferece elementos para a
compreensão do elo de identidade que institui entre os actantes sujeito e objeto
uma relação de dependência. Para traduzir a pregnância da função de sujeito na
esfera do objeto, Zilberberg propõe a formulação "sujeito/sub-objeto". No plano
subjetal, do mesmo modo, o fazer emissivo assegura a continuidade fiduciária e,
portanto, o elo de identidade entre destinador e destinatário numa relação que
poderia ser equacionada como "trans-sujeito/sujeito;', indicando também a
presença de um sujeito na instância do outro. Seguindo a mesma orientaçã.o, a
influência da seleção remissiva sobre o nivel narrativo aparece, no plano objetal,
como descontinuidade entre sujeito e objeto, ou seja, como relação "sujeito/
abjeto" e, no plano subjetal, como descontinuidade entre dois sujeitos. Daía
formulação já consagrada: "sujeito/anti-sujeito" .l2

Oscilações tensivas e semiótica musical

Essa concepção temporal dos níveis fórico e missivo mantém estreita


correspondência com o esforço semiótico de análise musical. Com mn modelo
moldado por descrições literárias, sobretudo no nivel superficial (narrativo e
discursivo), e por concepções topológicas no nível profundo (sintaxe sumária do
quadrado semiótico), a semiótica sempre se comportou de forma lacônica com
relação ao discurso musical. Isso se deve em parte à tradição espacializante do
estruturalismo que, em nome de uma certa cientificidade, procurou fazer
economia dos temas temporais mas, acima de tudo, ao tomar o discurso como
objeto de análise e a narrativa como sua sintaxe, a semiótica alijou de seu campo
de interesse o plano da expressão que fora, de um lado, ponto de partida da
reflexão saussuriana e, de outro, ponto central- integrando o conceito de função
semiótica - da teoria da linguagem de Hjelmslcv.
O plano da expressão que interessa à semiótica não é mais, evidentemente,
aquele que tratava das oposições fonológicas ou das realizações fonéticas. Nada
tem a ver também com a crença de que o som funcionaria como a materialização
direta do sentido ou como representação auditiva do continuum fórico, de modo
que a descrição sonora pudesse parafrasear a descrição do sentido. O plano da
expressão pertinente, nessa fase de pesquisa em que o objeto descritivo possui a

11 . Cf. entrevista concedida a A. Zinna, "A1girdas Julien Greimas - conversation", Versus, 43,
1986, p. 57.
12. Cf Zilberberg, C., op. cit., p. 108.
Musicalização da semiótica 19

dimensão do discurso e seus elementos articulam-se na extensão sintagmática, é


aquele que compreende as leis rítmicas da silabação. A importância da sílaba
como categoria abstrata foi introduzida por Saussure, definida e estendida ao
plano do conteúdo por Hjelmslev e generalizada por Zilberberg na qualidade de
categoria universal para a aplicação em todos os domínios semióticos.l3 Os
teóricos que vêem com bons olhos a musicalização da semiótica,l4 como um
reflexo direto do reingresso do tempo no centro da epistemologia
contemporânea, encontrarão certamente um terreno de pesquisa mais fértil se
contarem com a mediação silábica.
A silabação oferece uma idéia muito precisa do controle que o ritmo exerce
sobre a expansão do tempo cronológico. Não bá sinal de abertura sonora que não
aponte para o seu fechamento iminente e vice-versa. A partir desse modo
inevitável de articulação das soantes com as consoantes, Saussure define as leis
do movimento seqüencial como uma constante atração pelo termo ausente. O
destino inexorável da in1plosão é o de se converter em explosão e vice-versa, a
menos que se interrompa o discurso. Uma soante será sempre delinlltada por
uma consoante que, por sua vez, anunciará a fmmação de nova soante e assim
sucessivamente. Esse ritmo dá migem, em Saussure, aos conceitos de "fronteira
silábica" e "ponto vocálico", o primeiro representando as demarcações e os
limites e o segundo as segmentações e as extensões.l5
Basta amplirun1os de novo a dimensão e voltarmos ao plano do conteúdo ·
para reencontrarmos o mesmo ritmo regulando a alternância dos valores
missivas. A intervenção remissiva, referente aos linlltes, convoca forçosamente
um fazer emissivo, referente à extensão gradativa, para retomar a contínuidade
ameaçada. Do mesmo modo, o excesso das forças emissivas sempre resultará em
parada, em imposição de limites comprometidos com os valores remissivos.
Nada impede, portanto, uma homologação das categorias silábicas com as
categorias aspectuais que estão na base da construção do sentido no plano do
conteúdo.
Hjelmslev, que já propõe a sílaba como categoria comum aos dois planos
da linguagem, atribui um peso especial ao caráter teórico e, portanto, apenas
abstrato desta noção. A sílaba é precisamente uma categoria que subsume a
relação dos funtivos vogal e consoante, assim como o substantivo, no plano do
conteúdo, é uma categoria que relaciona um radical com um elemento de
derivação. De outra parte, a sílaba pressupõe o acento que pertence à ordem

I 3. C. Zilberberg estabelece, a rigor, uma prosodização da semiótica.


14. Cf. Parret, H. " Postface", Actes Sémiotiques, 42, 1983, p. 3 I eLe sublime du quotidien, Paris/
Amsterdam, Hadi:s-Benjamins, 1988, p. 255. Cf. também Zilberberg, C. ln: P!Vtée, op. cif.,
p. 39.
15. Cf. Saussure, F. Curso de lingüística geral. São Paulo, Cultrix, 197 1, p. 70.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Afusicando a semiótica
20

intensa dos elementos caracterizantes do plano da expressão (identifica-se, nesse


sentido, aos morfemas nominais no plano do conteúdo). Na ordem extensa,
teríamos a entonação na Expressão e os morfemas verbais no Conteúdo. Como
categoria, portanto, a sílaba constitui uma "classe munida de uma função", o que
significa, de acordo com a glossemática, que ela ocupa uma posição hierárquica
num conjunto de relações e ainda tem capacidade de interagir com os demais
elementos da cadeia sintagmática. De fato, a função (em ocorrência, a recção)
que liga a parte central da sílaba (a vogal) à sua pmte periférica (a consoante)
estabelece uma lei sintáxica minima para a manifestação do continuo fônico. Ao
mesmo tempo, seu pressuposto acentual já contém a força sintagmática dos
elementos caracterizantes.l6
Buscando recuperar um instrumental teórico comum para a análise dos dois
planos da linguagem, Zilberberg detecta, nas concepções silábicas dos dois
grandes lingüistas, as formas fundamentais para se propor um modelo da
"expansão". Se Saussure fornece a base para o tratamento rítmico, Hjelmslev
oferece elementos para se pensar o ritmo como uma sintaxe tanto da expressão
como do conteúdo. Mais que isso, Zilberberg ainda aproveita do pensador
dinamarquês a oposição universal entre dimensão intensa e dimensão extensa,
elevando a temática da expansão a um amplo estudo sobre as oscilações do
tempo. Daqui surge grande parte dos fundamentos teóricos para se operar com
as oscilações tensivas.
Em estudo muito interessante sobre a "Relatividade do Ritmo", 17
Zilberberg identifica quatro dimensões temporais operando simultaneamente
para produzir o fenômeno que compreendemos integralmente como "tempo".
/ Situa numa ordem intensa as conhecidas dimensões cronológica e rítmica, a
primeira representando a seqüencialídade ineversível e a segunda a regularidade
do encaminhamento. Ambas as dimensões, segundo o autor, sofrem a
sobredeterrninação de duas outras, mais profundas por pertencerem a uma ordem
extensa, classificadas de acordo com suas propriedades mnésicas ou
cinemáticas.IS
Desses processos sintáxicos de sobredeterrninação dos tempos extensos
sobre os tempos intensos vão sendo extraídos os conceitos de coucentração e
extensão que, por sua vez, são inspirados nos conceitos saussurianos de
implosão e explosão. Ou seja, das propostas sintáxicas de Hjelmslev o
semioticista depreende a proposta rítmica de Saussure num plano teórico comurn

16. Cf. Hjelmslev, L. "La syllabe en tant qu'wüté structurale". ln: Nouveaux Essais. Paris, PUF,
1985, p. 165-71.
17. Cf. Zilberberg, C., op. cit., p. 37-46.
18. Retomaremos o tema da interação dessas dimensões no Capítulo XI, p. 147 ss.
Musicalizaçào da semiótica _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 21

aos dois planos da linguagem e, ao mesmo tempo, sem compromisso com


qualquer prática semiótica específica.
Tudo ocorre como se as interações entre essas dimensões temporais
reproduzissem as tensões e distensões, as descontinuidades e continuidades,
enfim, as oscilações a serem selecionadas do nível fórico, num plano de reflexão
ao alcance da categorização descritiva. Se o tempo cronológico representa a
sucessividade descontínua, o antes e o depois em progressão infmita, o tempo
rítmico, que o acompanha pari passu, representa a instauração da lei, das
identidades, das alternâncias, numa palavra, da continuidade que neutraliza, até
certo ponto, as referências do progresso.
Em contato com a extensionalidade do tempo nmésico, as leis rítmicas se
expandem pelo discurso controlando ainda mais a evolução cronológica. Assim,
a memória e a previsibilidade espalham-se pelo contínuo criando efeitos de
presentificação e de simultaneidade. A expansão das leis, embora constitua um
caso de explosão silábica (de extensão), significa no fundo uma difusão de ritos
ordenados que contribuem para a desaceleração do discurso. A contenção da
sucessividade, por sua vez, representa a luta contra a dispersão do sentido ou, se
for preferível, contra a dominância exercida pelo tempo cronológico. A
concentração pode ser considerada, assim, como um processo de introversão ou
de retomo ao núcleo constituído de identidades.
No nosso entender, antes mesmo de falar do tempo cinemático, responsável
pela articulação entre aceleração e desaceleração, Zilberberg já está
considerando as variações de velocidade como parâmetro fundamental para o
estudo do tempo semiótica (incluindo aí o ritmo, o aspecto, as oscilações
tcnsivas e toda reflexão envolvendo continuidade e descontinuidade). A atuação
dos tempos rítmico e mnésico sobre o tempo cronológico pressupõe a expansão
de leis de repetição imediata, de iteração a distância, de gradação contínua,
enfim, de relações de identidade cuja função básica é deter o progresso do
discurso e, com isso, assegurar, ainda que parcialmente, a integridade do sujeito.
Ora, todos esses processos que evitam rupturas muito bruscas entre os elementos
do discurso, mantendo seus laços de continuidade como um sujeito que não
perde o valor do objeto (ou, pelo menos, o valor do valor), constituem manobras
da desaceleração que visam devolver ao sujeito a duração necessária ao seu
convívio com o objeto.
Considerando que o ritmo absorve, juntamente com as identidades, as
predicações - sem as quais não poderíamos falar de evolução rítmica- não há
como negar a permanência de um movimento cronológico expresso nas
desigualdades que dão sentido de progresso ao fazer discursivo. Ao expandir as
similaridades, o tempo mnésico expande também as desigualdades
representativas da cisão primordial de modo a justificar a eterna busca do
elemento uno a partir das identidades parciais, das continuidades momentâneas
entre sujeito e objeto. Mas, além de responderem pela força antagonista que,
22 Musicando a semiótica

resistindo, valoriza a evolução narrativa, as desigualdades rompem os


mecanismos de expectativa e de previsibilidade do discurso impondo uma
aceleração, uma passagem brusca, que retira o sujeito de seu tempo e lhe atribui
a missão de recuperar os elos da continuidade. Quanto mais desigualdades mais
aceleração e dispersão de sentido. O excesso de continuidade, por outro lado,
pode desacelerar demais o discurso -cuja existência afinal decone de uma falta
original, de uma fratura do contínuo - transformando-o em algo quase sem
metas, sem direcionalidade, numa palavra, sem sentido. Cabe ao sujeito
encontrar um ritmo adequado às suas aspirações manobrando essas variedades
de andamento.
A atuação direta do tempo cinemático sobre o tempo rítmico - portador,
como vimos, das identidades e desigualdades - tende certamente a reforçar a
influência do tempo mnésico. Sob o modo da aceleração, o tempo cinemático
produz as descontinuidades que omitem etapas do discurso, abreviam as
durações, provocam síncopes, metáforas, precipitações e colaboram para um
processo de ampla concentração (no sentido silábico). Sob o regime da
desaceleração, o andamento recobra as continuidades c, com elas, a duração,
o percurso, as etapas intermediárias, as gradações, as hipérboles, o processo
metonímico, fazendo com que o ritmo recupere a extensão (abertura silábica).

O caso da canção popular

Sob esses aspectos -e não são os únicos- as relações entre pensamento


semiótica e pensamento musical podem ser extremamente proveitosas para
ambos os campos. Todos os modelos de análise musical baseiam-se nas formas
de identidade e desigualdade da progressão musical, nas formas de contraçào e
expansão do material melódico, nas regularidades intervalares, harmônicas ou
contrapontísticas etc., e, no entanto, jamais se propuseram a investigar o lugar
teórico desses conceitos que, em última análise, visam descrever o sentido. Do
mesmo modo, falta à semiótica um olhar atento sobre o processo musical cujas
leis de ordenação sintagmática constituem uma das maneiras mais antigas de
tratamento do tempo.
A manifestação musical em forma de canções populares oferece, a nosso
ver, um campo de pesquisa privilegiado para o aprimoramento das articulações
concebidas no nível profundo, em estágio anterior à configuração dos sistemas
semióticos específicos. Compreendendo um componente lingüístico e um
componente melódico - além da instrumentação de base - de algum modo
compatibilizados para expressar uma significação homogénea, a canção popular
ilustra com desenvoltura os mecanismos básicos de concentração c extensão,
além de fornecer importantes aquisições para se estabelecer um percurso
Musicalização da semiótica 23

gerativo no plano da expressão. Para os limites deste capítulo , pensamos


sobretudo no componente melódico conduzido pela voz do intérprete que,
juntamente com o componente lingüistico, dão identidade à canção (a
instrumentação, os arranjos etc., são variáveis de cada execução). Resta dizer
que nossa referência é a canção brasileira de consumo (o que não impede um
exercício de generalização das observações aqui levantadas), sabidamente um
dos campos estéticos mais ativos do país.
A experiência direta com a canção popular, para um ouvinte atento, pode
dar indícios de uma inversão de valores que, coincidentemente, também
caracterizou um longo período da semiótica. Estamos nos referindo à abordagem
da aspectualização, das modulações tensivas e das referências espaço-temporais
que sempre esteve associada às variações ocorridas na superficie do discurso.
Nesta fase recente da semiótica, dedicada às paixões e às axiologias epistêmicas,
éticas e estéticas, em que o plano da expressão volta a ser estudado como face
complementar indispensável, a própria noção de sintaxe, cuja versão sumária
desencadeava a fom1ação do sentido em nível profundo, já está sendo tratada-
e esse avanço é patente em Claude Zilberberg - como deconência dedutiva de
valores tensivos ou, mais diretamente, de valores temporais.
Do mesmo modo, as variações de velocidade, no universo da canção,
sempre foram consideradas marcas de virtuosismo ou de originalidade dos
executores (arranjadores, intérpretes ou instrumentistas), pois que jamais
afetam a estrutura básica da obra concebida pelo compositor. Em parte isso é
coneto pois uma canção não deixa de ser o que é por ter sido executada de
forma mais rápida ou mais lenta. Entretanto, com a radicalização dos estilos
de execução de uma obra - que reproduz concretamente a projeção extensa do
tempo desacelerado sobre um ritmo que, a princípio, tenderia à aceleração, ou
vice-versa -, sobretudo a partir da década de 1960, algo de novo começou a
transparecer por trás das relações matemáticas entre durações e tons.
Acontece que, dos diversos valores investidos numa obra pela atividade
de composição, apenas alguns se manifestam durante o processo de execução.
Uma canção acelerada proporciona em geral grande proximidade a seus ·
elementos melódicos de modo que as similaridades e os contrastes tomam-se
flagrantes. Quase não há percurso porque quase não há necessidade de busca.
São conjunções (ou mais raramente disjunções) relativamente estáveis que vão
repercutir nos momentos da letra em que o sujeito manifesta satisfação pela
integração com o objeto sob a forma de exaltação de suas qualidades. A mesma
canção, interpretada sob a influência da desaceleração, tem suas durações
fisicas naturalmente ampliadas criando tensões de percurso mais compatíveis
com os sinais do desejo , da espera e do próprio itinerário narrativo.
Imediatamente, os conteúdos da letra camuflados na primeira versão vêm à
tona, muitas vezes ressaltando sentimentos de falta ou dramatizações até então
insuspeitados dentro da obra. Um notável exemplo internacional é o da canção
24 _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ lvfusicando a semiótica

With a little help from my friends, conhecida na interpretação original dos


Beatles (versão acelerada) e ressurgida, pouco mais tarde, na insólita e
impressionante versão desacelerada de Joe Cocker no festival de Woodstock.
Aqui no Brasil, essa prática é largamente utilizada por nomes como Gal Costa,
Caetano Veloso, João Gilberto, Elis Regina e Jorge Ben Jor, entre outros.
·/ Esses casos extremos ajudam a pensar sobre o estatuto do andamento na
· construção do sentido tanto no plano do conteúdo como no plano da expressão.
De fato, o controle da velocidade em seus diversos níveis de ocorrência constitui
uma das chaves para a compreensão do ato criativo. Há composições, como a
conhecida Garota de Ipanema, que propõem um movimento mais acentuado e
ágil para a primeira parte em contraste com durações que desaceleram o
movimento na segunda e, como se cumprisse as normas de um modelo exemplar,
reserva para a parte inicial uma letra de plena interação entre sujeito e objeto,
deixando para a segunda as tensões disjuntivas.l9
Mas a atuação do andamento sobre as dimensões melódicas vai bem além
disso. Ao optar pelas tendências velozes do pulso, dos ataques, das acentuações
ou, se preferirmos, do ritmo sonoro, o compositor corre um risco hipotético de
embarcar num processo desenfreado, numa espécie de tempo cronológico sem
controle rítmico, em que o sujeito certamente perderia de vista o objeto dada a
ausência total de identidades, de elos contínuos e de previsibilidade. Assim, para
assegurar a inteligibilidade melódica e, ao mesmo tempo, rejeitar uma possível
perda de orientação (decorrente da perda do objeto) em meio às
descontinuidades imprevistas, o sujeito-compositor cria imediatamente as
repetições, as iterações, os núcleos de constante retomo melódico, enfim, os
conhecidos recursos de contenção do tempo. Mesmo que não se apóie em base
etimológica comprovada, a palavra refrão soa perfeitamente quando se trata de
designar esse movimento de desaceleração que refreia o fluxo temporal. Se o
refrão constitui um núcleo de retomo para toda a canção, numa ordem extensa
portanto, propomos o conceito de tematização para dar conta de todas as
reconências, contínuas ou descontínuas, que respondem pelas identidades
internas da melodia numa ordem intensa. Ambos os conceitos descrevem a
tendência "involutiva" da canção acelerada. A função de tal tendência é
justamente a de negar o excesso de velocidade e recobrar a conjunção entre
sujeito e objeto, por meio de uma verdadeira fusão de seqüências melódicas
recorrentes.
Para contrabalançar a força de continuidade c desaceleração da involução,
dois outros comportamentos participam do jogo reforçando a ruptura c a
velocidade. Na ordem extensa, temos a noção de segunda parte e, na ordem

19. Cf adiante, p. 154 s., análise mais detalhada deste exemplo.


Musicalização da semiótica 25

intensa, a noção de desdobramento, ambas introduzindo novos materiais


melódicos e garantindo com isso um minimo de "evolução" sintagmática. A
força de concentração, de grande destaque nas canções aceleradas, depende
tanto dos elementos da evolução como dos da involução para realçar, de uma só
vez, o valor do objeto c sua conservação no plano do sujeito.20

concentração ordem intensa ordem extensa


involução tematização refrão
- - -------------------
evolução desdobramento segunda parte

Ao sclccionar os valores continuas da desaceleração, o sujeito passa a


investir nos alongamentos vocálicas de tal maneira que os estágios cm cada tom
acentuam a importância dos contornos melódicos e, conseqüentemente, das
oscilações de altura. Temos então a valorização imediata do eixo vertical do
campo de tessitura pelo qual transitam esses contornos que estabelecem a
orientação do percurso melódico. Dessa escolha inicial decorrem dois
comportamentos da curva entoativa: a confirmação da desaceleração por meio de
leis que asseguram a continuidade (repetição, gradação ascendente ou
descendente) ou a negação das durações tipicas dos movimentos previsíveis, por
intervenção das descontinuidades horizontais (desdobramento de partes por
exemplo) ou verticais (saltos intervalares por exemplo).
Se, por um lado, a desaceleração reserva ao sujeito um tempo de interação
com o objeto, nem que seja a distância, em forma de desejo ou de espera, por
outro, ela pode tomar uma proporção excessiva, no sentido de eternizar um
compasso morno de espera, permanecendo numa continuidade imutável. Daí a
vitalidade das mudanças bruscas de registro de tessitura como forma de infundir
o inesperado, e, portanto, a velocidade, no interior de um percurso regido pelo
andamento lento. A extensão melódica, composta de movimentos "conjuntos" e
"disjuntos" encarregados de modular a desaceleração, constitui o modo de
expansão que melhor traduz a relação entre oscilações objctivas do espaço de
tessitura e oscilações subjetivas das durações passionais vividas pelo sujeito.
Interessante observar, nesse sentido, a correspondência quase imediata entre as
grandes inflexões melódicas de tessitura e as tensões emocionais reveladas pelos
cantores de temas românticos. Tudo ocorre como se o eixo vertical da melodia
representasse o espaço ocupado pela canção c, como tal, refletisse a duração (ou
seja, o tempo interno) vivida passionalmente pelo sujeito.
Para expressar o movimento conjunto da extensão melódica, em sua >~
dimensão intensa, propomos o conceito de graus imediatos, cuja ordem

20. Cf. Tatit, L. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo, Escuta, 1994, p. 77.
26 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

extensa poderia ser estabelecida, simplesmente, como gradação. O movimento


disjunto que incide sobre a evolução vertical da melodia em ordem intensa
corresponde ao salto intervalar; em dimensão extensa, sugerimos, na falta de
um termo melhor, a noção de transposição, no sentido de mudança repentina
de registro de tessitura sem qualquer implicação necessária de alteração de
tonalidade.21

extensão ordem intensa ordem extensa I


movimento conjunto graus imediatos gradação
!llovimento disjunto salto intervalar transposição ·i
Depreende-se dos textos mais recentes de Claude Zilberberg uma
interessante relação entre descontinuidade e aceleração, esta entendida como
precipitação ou passagem brusca de um lugar (ou um tempo) a outro. De modo
complementar, as junções que restabelecem a continuidade entre sujeito e objeto
(ou, a partir do que vimos, entre dois ou mais motivos melódicos) dependem de
um reencontro do sujeito com a sua duração, com o seu tempo, o que se obtém,
em geral, com os processos de desaceleração, de recuperação dos elos e dos
percursos entre actantes.
A introdução de um nível missivo, conjuminada à introdução do tempo
cinemático nessa fase das primeiras seleções dos valores, pode render muito cm
termos de uma efetiva categorização das instâncias fundamentais- consideradas,
a essa altura, como instâncias plurais. Sempre haverá, como já sugerimos, um
nível hipotético reservado ao continuum indiferenciado anterior à atuação de um
sujeito. Entretanto, a p<gtir da escolha de algumas predominâncias tensivas ou,
nesse caso, missiva·s, já podemos entrever um sujeito manobrando valores que
farão o discurso progredir de maneira concentrada ou extensiva, antes mesmo
das configurações modais, actanciais ou temático-figurativas.

Conclusão

Vê-se, portanto, a partir dessas indicações ainda incipientes, que os


trabalhos em andamento sobre a canção e, de maneira geral, as pesquisas sobre
a música têm-se mostrado fecundos no que diz respeito à possibilidade de
instituição de um modelo descritivo homogêneo para os dois planos da
linguagem. E quanto mais avançamos nesta direção, mais parece claro que o
valor metodológico dos estudos empíricos dependem da revisão permanente

21. Ibid. , p. 128.


Musicalização da semiótica - - - -- - - - -- - -- · 27

dos níveis profundos, sob pena de o modelo semiótica não vingar. Não foi por
acaso que Greimas dedicou seus últimos anos à estética e à paixão e inseriu
suas novas descrições no quadro de uma vasta reformulação epistemológica da
teoria geral.
CAPíTULO II

A semiótica e Merleau-Ponty

A importância de aproximar a semiótica de Greimas da fenomenologia,


sobretudo na versão merleau-pontiana, está mais na convergência profunda dos
resultados obtidos até o presente do que na restauração das origens do
pensamento semiótica, quando Greimas, esporadicamente, fazia alusão à
presença da fenomenologia em seus princípios teóricos. Paradoxalmente,
à medida que o grande semioticista foi deixando de mencir,.lar os fundamentos
da percepção fenomenológica em seus principais trabalhos, estes foram se
acercando cada vez mais das mesmas indagações que atormentavam Merleau-
Ponty.
Há, como frisou Greimas diversas vezes, um componente fenome-nológico 1

no conceito de "existência semiótica" do objeto (ou do discurso), na medida em


que o sentido, neste caso, deve ser sempre considerado como imanente à expres-
são, seja esta de nanrreza verbal ou não-verbal, e, mais que isso, na medida em
que esta concepção supera definitivamente a dicotomia entre pensamento e lin-
guagem.! Mas, nesse reconhecimento, que data dos primórdios da semiótica, di-
fiei] distinguir o que é original do pensamento do filósofo francês e o que deve
ser debitado diretamente aos cursos do lingüista suíço. Sabe-se que Merleau-
Ponty também bebeu em fontes saussurianas.
Muito mais que essa apreensão do objeto como um todo, incluindo a
participação inevitável dos órgãos sensoriais, a aproximação da semiótica aos
fundamentos da fenomenologia de Merleau-Ponty verifica-se, em nossos dias,
no modo de aderência do sujeito ao objeto e vice-versa.
Numa primeira etapa, a convergência entre as duas áreas de pensamento
está na adoção do conceito de corpo. Central na filosofia de Merleau-Ponty, essa
noção passou a ocupar posição de destaque no quadro epistemológico da
semiótica das paixões. Em seguida, entendemos que ambas as áreas caminharam

I. Cf. Greimas, A. J. "L'actualité du saussurisme". Le François moderne, n° 3, 1956, p. 193.


30 .Musicando a semiótica

para a noção de tempo, como decorrência natural da primeira etapa. Se, em


Merleau-Ponty, a noção ganhou um alcance de pressuposto teórico indisfarçável,
na semiótica, ela ainda vem contlibuindo para a instauração de uma instância de
sintaxe profunda de onde se depreendem os valores primordiais que, após as
devidas conversões, circulam pelos estratos do percurso gerativo.
Cabe lembrar que Greimas, ele próprio, não chegou a identificar
explicitamente as modulações tensivas e fóricas com as dimensões espaço-
temporais. Esse trabalho de categorização (temporal) dos níveis pré-narrativos e
pré-modais vem sendo executado por autores como Claude Zilberberg e Hennan
Parret, de uma forma ao mesmo tempo crítica e integrada à teoria padrão.
Este último autor, por exemplo, durante uma das mais importantes
entrevistas concedidas por Greimas, formulou-lhe duas questões das quais
destacamos a primeira: "Por que o senhor fez abstração da dimensão tempo-
ralizada da percepção, tão presente em Merleau-Ponty?"2 Alegando não ter tido
oportunidade de ler Signes, a obra que fundamentou a questão proposta por
Parret, Greimas nem sequer mencionou, em sua resposta, a dimensão temporal,
limitando-se a reforçar o conceito de existência semiótica, até certo ponto
inspirado em Merleau-Ponty.
·• 1 Essa espécie de recalcamento do tempo não é apenas um traço caracterís-
tico da semiótica mas de todo o pensamento estrutural que norteou sua formação.
Entretanto, sem fazer alusão explícita ao conceito - mas discutindo-o, sem
dúvida, em termos de aspectualização - , o grande semioticista acaba preparando
um terreno verdadeiramente fecundo para a sua reflexão, ao circunscrever um
espaço teórico destinado à conceptualização de uma tensividade jórica.
Antes, porém, de abordarmos as questões de temporalidade, voltemos ao
primeiro elo contemporâneo que, no nosso entender e a despeito dos itinerários
diversos adotados por Merleau-Ponty e Greimas, une as epistemologias
construídas pelos dois pesquisadores. Trata-se da noção de corpo.
\ Corpo, em Merleau-Ponty, é um conceito utilizado para superar a distância
teórica entre sujeito e objeto, uma tônica na história do pensamento ocidental, e,
conseqüentemente, diluir as dicotomias que reproduzem a oposição entre
subjetivismo e objetivismo em pares como idealismo filosófico versus
/ empirismo científico ou metafísica versus positivismo. O corpo contém, ao
· mesmo tempo, o sujeito da observação e o objeto observado, já que ele pode se
ver, se sentir, se tocar, acumulando, assim, tanto as funções geralmente atribuídas
à consciência, à reflexividade, como aquelas atribuídas à instância do objeto, à
visibilidade. A experiência de percepção do corpo, para o filósofo francês, é
extensiva à experiência de percepção do mundo. O sujeito compreende o mnndo

2. "Algirdas Julien Greimas nus à la question" . ln : Arrivé, M. et ai. Sémiotíque en jeu - A partir
et autour de l'oeuvre de A. J. Greimas, Paris/Amsterdã, Hades-Benjamins, 1987, p. 311.
A semiótica e Merleau-Ponty 31

ao mesmo tempo em que é "compreendido" por este. O corpo encerra uma


perspectiva, uma ancoragem no instante e no espaço e o sentido transcorre pelos
canais perceptivos sem qualquer solução de continuidade entre ser-observador e
ser-observado.
A epistemologia das paixões, escrita por Greimas e Fontanille, apresenta
uma noção de corpo, em larga medida, equivalente à de Merleau-Ponty.3 O
próprio subtítulo da obra original, "des états de choses aux états d'âme",
prefigura, de algum modo, a resolução da dicotomia entre mundo (estados de
coisas com seus semas exteroceptivos) e sujeito (estados de alma com seus
semas interoceptivos) por obra de um corpo que percebe, sente e introduz,
assim, os semas proprioceptivos (responsáveis pelos sentimentos de atração e
repulsa). Ao dissipar a separação entre mundo e sujeito, o corpo, como terceiro
termo e eixo de uma estrutura participativa,4 acaba adquirindo também os semas
exteroceptivos e interoceptivos.s
A noção de perceber, na semiótica, cobre uma região teórica onde se
processam as flutuações tensivas alternando saliências e "passâncias".
Pressupõe, portanto, a noção de sentir que, pertencendo aos domínios daforia,
define tanto a predominância dos estados de retenção (disforia) como a
predominância dos estados de distensão (euforia). Ora, quando, de um lado,
falamos em saliências, retenções ou disforia e, de outro, em passâncias,
distensões ou euforia, estamos articulando em descontinuidade e continuidade,
respectivamente, um sincretismo categorial correspondente ao que a semiótica
chama de tensividadefórica.6 Este conceito, com seu sentido de "transporte", de
"transitividade" ou de "passagem", supõe o estabelecimento abstrato de um
fluxo contínuo perante o qual a descontinuidade provoca uma parada e a
continuidade uma parada da parada,7 ou seja, tudo começaria por uma
interrupção e só prosseguiria por meio de uma nova interrupção incidindo sobre
a primeira.
Este processo de dupla negação está de acordo com a sintaxe fundamental
concebida por Greimas em suas operações de asserção e negação praticadas
sobre o quadrado semiótica. Por outro lado, a identificação de corpo percebedor
e tensividade fórica não deixa de constituir un1a conversão de características
existenciais, típicas da fenomenologia, em valores funcionais (sintáxicos) que
possam responder às necessidades semióticas.

3. Cf. Greimas, A. .1. e Fontanille, J. Semiótica das paixões, op. cit.


4. No sentido empregado por Hjelmslev em seu trabalho La catégorie des cas, Munique, Fink,
1972, p. 113. Ver também mais adiante, p. 41 ss.
5. Cf. Zilberberg, C. Raison et poétique du sens, op. cit, p. 84.
6. Embora importantes tendências da semiótica ainda não considerem a possibilidade de
mticulação categorial no nível tensivo.
7. Zilberberg, C., op. cit., p. 101.
32 ---- - - - -- ---·- ··--·---Musicando a semiótica

E aqui começamos a tratar do segundo elo contemporâneo entre o pensa-


mento de Merleau-Ponty e a semiótica, diríamos, pós-greimasiana. Se conside-
rarmos a tensividade fórica como uma preto-sintaxe - uma orientação
·v pressuposta que neutraliza as tensÕes próprias da relação sujeito/objeto (proten-
·.:: sividade do primeiro/atratividade do segundo) e que constitui ponto de partida
~ para se pensar as articulações realizadas, em outros níveis, pelas operações de
parada e retomada da continuidade (parada da parada)-, estaremos então
concebendo, antes de tudo, um fluxo temporal cujo continuum é pressuposto
tanto pela descontinuidade como pela própria continuidade. Nessa linha de
teorização, compreende-se que os termos disjunção/conjunção pressuponham
junção, que disforia!euforia pressuponhamforia, que a forma pressuponha a
força e que, em últ'ima análise, as distâncias espaciais pressuponham as durações
temporais.
/ No trabalho Semiótica das paixões, já podemos verificar que há uma
precedência lógica das modulações contínuas em relação às modalizações que
têm caráter descontínuo. Entretanto, evitando conceber um modelo de categori-
zação nesse nível de "precondições de construção do sentido", os autores camu-
flanl, no nosso entender; mais uma vez, a questão do tempo profundo (aquele que
nos absorve em suas dimensões) e, com isso, perdem a ocasião de abordar,
segundo nova ótica, a circunstância enunciativa.
Nessa fase da teoria, vemos com interesse especial a participação de Claude
Zilberberg que concebe o sujeito enunciativo na interface do tempo/ espaço,
selecionando, como ponto de partida, valores da descontinuidade e/ou da
continuidade para, depois, convertê-los em objetos narrativos. Numa etapa mais
recente do seu modelo, Zilberberg vem estabelecendo um elo cada vez mais
estreito entre este sujeito profundo e uma das dimensões prioritárias do tempo,
definida como tempo cinemático.s Mesmo conendo o risco de "musicalizar"
excessivamente tal dimensão, talvez possamos adotar o conceito de andamento,
pois que seus termos compreendem o contraste entre aceleração e desaceleração.
Assim como o eu enunciativo responde por todas as operações semióticas de um
texto, o andamento controla a extensão da qual o agora e o aqui são pontos de
ancoragem. 9
Esse encontro com os pressupostos temporais do sentido assinala, talvez, o
maior ponto de convergência entre a fenomenologia merleau-pontiana e a
semiótica dos últimos anos. Algumas passagens da grande obra do filósofo
francês atestam esse enfoque:

8. Cf. Zilberberg, C. "Relativité du rythme". Protée, op. cit., p. 40.


9. Cf. Zilberberg, C. "Présencc de Wõlfflin" . Nouveaux Actes Sémiotiques. Limoges, Pulini,
1992, p. 23-4, p. 90.
A semiótica e Mer/eau-Ponty 33

Precisamos conceber um mundo que não seja feito apenas de coisas,


mas de puras transições
( ...)
as coisas se definem primeiramente por seu comportamento e não
por propriedades estáticas
( ...)
O ser pré-objetivo, o movente não tematizado não põem outro
problema que o espaço e o tempo de implicação dos quais já
falamos. Dissemos que as partes do espaço segundo a largura, a
altura e a profundidade não são justapostas, que elas coexistem
porque estão todas envo(vidas no poder único de nosso corpo sobre
o mundo, e essa relação já se iluminou quando mostramos que ela
era temporal antes de ser espacial. As coisas coexistem no espaço
porque estão presentes ao mesmo sujeito perceptivo e envolvidas na
mesma onda temporal. lO

De fato, para Merleau-Ponty, corpo e mundo constituem um campo de


presença de onde se depreendem todas as relações da vida perceptiva e do
mundo sensível. O sentido, por sua vez, é concebido como uma direção cujo '··.
traçado depende de uma ancoragem do ser no mundo:

Não haveria direção sem um ser que habite o mundo e que, por seu
olhar, trace ali a primeira direção-referência.ll

O ser que percebe, em Merleau-Ponty, é muito semelhante ao sujeito


enunciativo de Zilbcrberg que, antes de tudo, instaura um lugar dêitico e elabora
uma seleção de valores temporais (ou, como preferem alguns semioticistas, de
valores aspectuais):

O sentido de uma frase é o seu propósito ou sua intenção, o que


supõe ainda um ponto de partida e um ponto de chegada, uma
visada, um ponto de vista. 12

E, por fim, a própria instauração do ser que percebe (se é que o enfoque
fenomenológico pode admitir uma "instauração") não deixa de ser também um
comprometimento temporal nas palavras do próprio filósofo:

10. Cf. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.
370-1.
II. lbid., p. 576.
12. Jbid.
34 _ __ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

Se conseguirmos compreender o sujeito, não será em sua pura


forma, mas proc urando-o na intersecção de suas dimensões.
Portanto, precisamos considerar o tempo em si mesmo, e é seguindo
a sua dia/ética interna que seremos conduzidos a refazer nossa idéia
de sujeito. 13

As intuições temporais de Merleau-Ponty chegam a propor uma equiva-


lência entre eu e tempo, levando em consideração o presente enunciativo, 14 de
tal forma que podemos entrever até mesmo um primeiro equacionamento "se-
miótica" do tempo na relação sujeito/objeto:

... a análise do tempo ... ilumina as análises precedentes porque faz o


sujeito e o objeto aparecerem como dois momentos abstratos de uma
estrutura única que é a presença. É pelo tempo que pensamos o ser,
porque é p elas relações entre o tempo sujeito e o tempo objeto que
podemos compreender as relações entre o sujeito e o mundo.15

O progresso operacional dessa reflexão está, a nosso ver, na caracterização


do tempo profundo como uma seleção de andamento e dos regimes que decor-
rem tanto da aceleração como da desaceleração. De um lado, a influência da ve-
locidade no salto inesperado de urna etapa à outra, na surpresa, na precipitação,
e, em última instância, na geração de descontinuidades. De outro, a in1portància
da desaceleração na formação dos percursos, das etapas gradativas, das transi-
ções, ou, numa palavra, da continuidade. Esses estudos, que vêm sendo empre-
endidos notadamente por Zilberberg- considerando, à luz do andamento, algu-
mas relações entre figuras como a síncope e a hipérbole ou a metáfora e a
metonímia-, 16 prometem, com suas indagações de ponta, tuna considerável
reavaliação dos precursores mais influentes e, nesse processo, com toda a certe-
za, esses entrelaçamentos da filosofia de Merleau-Ponty com a semiótica, cada
vez mais, virão à tona.

13. fbid., p. 550.


14. Encontramos quase a mesma formulação em P. Valéry, nos estudos sobre o tempo. Cf.
Cahiers, Tome I, Paris, Gallimard/La Pléiade, 1973, p. 1369.
15. Merleau-Ponty, op. cit., p. 577.
16. Cf. Zilberberg, C. "Pour une poétique de l'attention".ln : Berrendonner, A. e Parret. H.
L'interaction communicative. Beme, P. Lang, 1990.
CAPíTULO III

Corpo na semiótica e nas artes

Preliminares

O ingresso do conceito de corpo na teoria semiótica decorre diretamente


dos estudos dedicados à paixão. As categorias topológicas e sêrnio-narrativas
que impulsionaram as pesquisas nas décadas de 1960 e 1970 foram se
revelando insuficientes para explicar toda a riqueza discursiva produzida na
superfície dos textos. Afinal , o percurso gerativo fora concebido para -./
manipular grandezas descontínuas (termos do quadrado, modalidades, actantes
etc.), por meio de operações morfológicas e sintáxicas, de tal maneira que as
oscilações de intensidade próprias do conteúdo afetivo eram rapidamente
convertidas em categorias fixas e submetidas ao mesmo tratamento reservado
aos dados cognitivos.
A proliferação das análises de figuras passionais (o "desespero", a ·.:
"indiferença", a "cólera" etc.), durante a década de 1980, chamou a atenção dos
pesquisadores- que até então abordavam as emoções como efeitos de sentido
produzidos na última etapa do processo gerativo - para a necessidade urgente
de revisão das instãncias intermediárias e profundas do modelo semiótica. As
próprias descrições alastravam-se invariavelmente por essas áreas demons-
trando que a ênfase sobre a ação (o /fazer,), traço característico da primeira fase
de elaboração da teoria, já não preenchia os requisitos mínimos de um "projeto
de ciência" cujo horizonte se estendia até nada menos que as formas de funcio-
namento do imaginário antropomórfico.
Se todo texto pressupõe uma enunciação humana, não havia como apartá- ··
lo do universo passional sob pena de vê-lo transformado em objeto de análise
fictício, destituído de suas partes essenciais. A última década foi então marcada
por uma significativa mudança de inflexão. As investigações sobre o /ser/
narrativo foram adquirindo cada vez mais prestígio teóricc até se tomarem o
centro de reflexão dos semioticistas, a começar de A. J. Greimas.
36 Musicando a semiótica

O projeto de descrição das paixões foi inaugurado no interior da


semiótica, para todos os efeitos, com um pequeno artigo de Greimas intitulado
\ "De la modalisation de 1' être" .1 Não se pode esquecer que, nessa época, a
semiótica já dispunha de um lugar conceptual no modelo para receber as
descobertas que hoje relacionamos com a presença do corpo na construção do
sentido. Tratava-se então da categoria tímica concebida como uma resolução
formal do ser vivo e animado nas etapas primordiais - e portanto elementares
- do percurso gerativo. Funcionando como "um sistema de atrações e
repulsões"2 e articulada cm euforia e disforia, esta categoria tinha o dom de
sobredeterminar, já em profundidade, as categorias semânticas e de transformá-
las em verdadeiras axiologias (ou sistemas de valores éticos, estéticos,
epistêmicos etc.). O objetivo do autor no estudo mencionado não era apenas o
de reafirmar a necessidade do espaço tímico desde o nível das estruturas mais
abstratas do modelo, mas, sobretudo, o de estabelecer, no nível sêmio-
narrativo, suas correspondências modais. Cioso, como sempre, do estatuto
científico de suas construções teóricas, Greimas limitava-se então a propor,
com o auxílio das quatro modalidades principais (querer, devei~ poder e saber),
articuladas no quadrado semiótica, um sugestivo paradigma de definições da
existência modal do sujeito de estado. Seu interesse pelas invariâncias modais
tinha um caráter bem mais descritivo que especulativo.
Entretanto, na fase final do artigo, Greimas referia-se à existência modal
como um lugar de conflito dos valores, ou seja, um lugar onde se questiona o
"valor comparativo dos valores" , configurando, assim, um universo de
desigualdades e de desequilíbrios objetais e subjetais regido por oscilações
tensivas que privilegiam ora um, ora outro dos valores implicados . Esta
condição, de acordo com os termos do trabalho, Jazia dos sujeitos de estado
"sujeitos inquietos" (assim como os sujeitos do fazer são sempre "sujeitos
veleidosos") portadores de uma apetência que pode ou não se converter em
açào concreta.3 Ora, pelo menos duas conquistas fundadoras, que iriam mais
tarde influenciar a construção de uma epistemologia das paixões, podem ser
retiradas dessas considerações finais do grande scmioticista:
(1) a noção de "valor do valor" que substitui o mero reconhecimento do valor
do objeto pela crença em seu estatuto, ou seja, pelo compromisso fiduciário
do sujeito com o valor;
(2) a primazia das forças tensivas na caracterização dos valores.
Ambas tiveram importância capital para o estabelecimento de um nível
mais profundo no percurso gerativo, anterior às categorizações elementares,

1. Actes sémiotiques -/e bul/etin, II, 9, p. 9-19.


2. Jbid., p. 9.
3. lbid., p. 19.
Corpo na semiótica e nas artes 37

em que foram reunidas as precondições para uma ordenação do sentido. Ambas


tiveram ainda como meta a incorporação teórica de um sujeito que percebe, sente
e utiliza essas faculdades para promover uma reorganização do mundo com o
qual se relaciona. Os conceitos de "tensividade" e "foria" entraram, assim,
defmitívamente na semiótica como verdadeiros dublês operacionais da noção-
ainda considerada pouco científica- de "corpo".

Paixão e estética

O auge epistêmico de elaboração dessas novas aquisições foi atingido em


Semiótica das paixões;4 o auge estético, em De l 'imperfection.S
De acordo com a perspectiva conduzida em Semiótica das paixões, o .,.
mundo transforma-se em sentido no interior do sujeito pela mediação de um
corpo que percebe e acrescenta, nesse processo, uma fase de sensibilização. Esta
condição de existência semiótica é, evidentemente, extensiva ao próptio sujeito
epistemológico que, ao construir as etapas de catcgotização do percurso gerativo,
não pode deixar de recorrer também às marcas de continuidade impressas pela
referida intermediação somática. Dentro do jargão científico da semiótica, a
interação entre categorias exteroceptivas e categorias interoceptivas jamais
prescinde da intervenção homogeneizante das categorias proptioceptivas, as
quais permitem de fato a humanização do sentido global. Desse modo, os
conteúdos do mundo já são organizados em profundidade, sob o influxo das
modulações perceptivas e das disposições afetivas do sujeito do saber, antes que
este possa pôr em prática sua aptidão para a categorização lógica.
Esse nível hipotético consagrado à tensividade fórica constitui aquele '
mínimo epistemológico, isento de comprovação, necessário a todo projeto
científico de maior alcance. Sua instauração como espaço teórico imaginário, :\
anterior ao procedimento discretizante do sujeito cognitivo, foi um imperativo da
própria atividade descritiva que já não podia mais se satisfazer com a concen-
tração do enfoque passional apenas no nivel discursivo. Dificil aceitar que as
emoções só apareçam no !mal do percurso gerativo para revestir as operações
lógicas que, até então, estatiam imunes a qualquer ação sensibilizante. O sujeito
epistemológico, ele próprio, construiu seu modelo a partir de um contato sensível
como mundo.
Para propor esse estágio pré-cognitivo, a semiótica teve de conceber um ,
sujeito e um objeto ainda despidos de traços categoriais e mesmo de definições
funcionais, como se esses elementos ainda oscilassem, nesta fase, entre a
indeterminação dos papéis- espécie de fusão num todo unitário - e a possibi-

4. Cf. Grei mas, A . J. c Fontanille, J. Semiótica das paixões, op. cit.


5. Cf. Grcimas, A. J. De l'impeifection. Périgueux, Pierre Fanlac, 1987.
38 _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

lidade de cisão e formação categorial das funções. Os autores de Semiótica das


paixões falam então de um "quase-sujeito" em interação com uma "sombra de
valor", como se pairasse, em profundidade, um pressentimento das atrações
x. posterionnente modalizadas. A importância desse estágio é que ele sobrevive aos
processos de discretização e acaba por instruir as gradações aspectuais proces-
sadas no discurso. Além disso - e tocamos assim no centro do nosso tema -
constitui a única porta de entrada para a noção de corpo na semiótica.
Após os procedimentos de discretização e categorização, esse quase-sujeito
se converte, segundo Greimas, em sujeito do saber (sujeito virtualizado), apto a
articular as estruturas elementares da significação. A incorporação da sintaxe
narrativa permite a transfonnação desse sujeito cognitivo em sujeito de busca
(sujeito atualizado), submetido às condições ativas e passionais próprias desse
nível operatório. Para que tudo isso se manifeste na superfície do texto, a
semiótica prevê uma última fase de convocação dos elementos tratados nas eta-
pas anteriores, o que dá origem à instauração de um sujeito que discorre (sujeito
realizado).
A elaboração dessa passagem do sujeito da busca para o sujeito que
discorre, ou seja, a atividade de discursivização propriamente dita, depende da
práxis enunciativa e mediadora de um "sujeito potencializado".6
Embora reconheçam que há boa margem de identidade entre o sujeito
potencializado e o chamado quase-sujeito do nível tensivo, já que este último
está "potencialmente" exposto a se converter em sujeito do saber na instância ab
quo do percurso gerativo ou a ser convocado diretamente para compor o sujeito
discursivo passional na instância ad quem, Greimas e Fontanille preferem
conceber a potencialização como um processo que, de um lado, pressupõe a
instauração da categoria juntiva e, de outro, decorre do próprio uso das opera-
ções semióticas. Examinemos essa dupla condição.
No primeiro caso, cumpre assinalar que o percurso dos modos de existência
semióticos tem por base as articulações da categoria da junção que como toda
categoria é descontínua e não pode ser incluída, de acordo com a visão dos
autores, no nível tensivo. Vejamos como funciona o modelo a partir de sua pro-
jeção no quadrado semiótica:

6. Cf. Greimas, A. J. e Fontanille, J., op. cit., p. 138.


Corpo na semiótica e nas artes 39

conjunção disjunção

não-disjunção não-conjunção

O sujeito realizado é um sujeito em conjunção com o objeto enquanto o


sujeito atualizado, ao contrário, mantém-se em disjunção. Em outro estágio, o
sujeito virtualizado é aquele que deixa de ter algo que já teve e, conseqüen-
temente, virtualiza as condições do sentimento de falta. Seguindo as operações
do quadrado acima e projetando-as no percurso gerativo, os sernioticistas situam
o sujeito potencializado no topus da não-disjunção, na medida em que a
passagem do sujeito atualizado ao sujeito realizado só pode ser praticada a partir
da negação da disjunção e da asserção da conjunção. Essa seria, portanto, a
tarefa do sujeito potencializado, responsável, como já vimos, pela práxis
enunciativa:

sujeito realizado sujeito atualizado

sujeito potencializado sujeito virtualizado

No segundo caso, o próprio conceito de enunciação beneficia-se com aquilo


que os autores chamam de "potencialização do uso" .7 A compreensão desse
processo depende de algumas explicações.
Além da competência modal, fartamente divulgada nos procedimentos
descritivos da semiótica, há que se considerar, no plano narrativo, uma outra
competência adquirida pelo sujeito a título de preparação para performances
muitas vezes apenas imaginárias. Esses simulacros preparatórios correspondem
à potencialização do uso e servem, assim, como instrução ao desenvolvimento de
novas atividades. No plano teórico, esses mesmos simulacros provêm da práxis
do sujeito epistemológico em contato com a macrosserniótica que o envolve e
delineiam um quadro imaginário independente das operações cognitivas do
sistema serniótico. Nesse sentido, pode-se propor que tal in1aginário corresponda
ao plano do "sentir", onde se localiza o quase-sujeito em meio às modulações
tensivas.
Assim, a potencialização é, de certa forma, uma prática de estocagem dos
conteúdos sensíveis ao lado das virtualidades sistémicas na base do percurso

7. lbid., p. 139.
40 _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ __________ Musicando a semiótica

gerativo (a potencialização do uso propriamente dita), mas é também, ao mesmo


tempo, o único exercício que permite, durante a passagem da narrativa ao
discurso, uma "reembreagem sobre o sujeito que sente"8 e a conseqüente
convocação dos valores tensivos e fóricos, responsáveis pelos efeitos de sentido
passionais, para uma atuação conjugada com os valores cognitivos gerados no
percurso.
' A potencialização constituí, em outras palavras, uma verdadeira memória
do corpo, suscetível de ser recuperada pelo ato enunciativo. Embora seja o
menos convincente dos modos de existência do ser semiótica, o sujeito
potencializado é o único que merece o reconhecirnentto dos autores de Semiótica
das paixões quando se trata de introduzir a noção de corpo na teoria:

Desde então, o sujeito potencializado representaria, no percurso da


construção teórica, a única instância em que o corpo teria direito de
cidadania, como constitutivo dos efeitos de sentido. 9

Essa delirnitaçã.o explícita do conceito de corpo no modelo semiótica não


impede que ele reapareça, camuflado, em outras formulações de seus principais
teóricos. O campo privilegiado dessas defmições oblíquas é o da estética. Aqui,
segundo os semioticistas, a emoção revelaria algo próximo de uma nostalgia (ou
espera) da tensividade fórica, instância que marca presença constante nos efeitos
passionais dos discursos cotidianos, mas que só se expressa, de fato, em sua
plenitude indiferenciada, nesses momentos de forte comoção estética. Tal
plenitude - ou inteireza - que corresponderia a uma recuperação, por mais
eremera que fosse, das marcas de percepção e sensibilização do corpo, recebe da
semiótica um tratamento pouco mais técnico. Tudo ocorre como se houvesse a
supressão do núcleo sintáxico que distingue os actantes sujeito e objeto por meio
de uma superposição (que, por vezes, dá origem a uma certa confusão) dessas
funções, de tal maneira que poderíamos falar de "sincretismo actancial". A
manifestação figurativa mais freqüente desse estado indiferenciado- ou mesmo
invertido -das funções é a do sujeito tornando-se objeto das emoções
produzidas pelo objeto estético.
De l 'imperfection é um estudo pormenorizado desses acontecimentos
estéticos expressos no discurso literário. Desobrigado, nesse volume, da tarefa
de praticar semiótica stricto sensu - mas praticando-a à margem do rigor
metalingüístico- Greirnas considera, diversas vezes, a esperança "inocente" de
uma "fusão total do sujeito e do objeto"lO como base teórica para a descrição da
< emoção estética. O nível tensivo aparece então como um lugar de sensibilização

8. Ibid.
9. lbid.
10. Cf. Greimas, A. J. De l'impe1jection, op. cit., p. 99.
Corpo na semiótica e nas artes 41

pré-cognitiva ao qual o sujeito recorre quando estimulado por urna ocorrência


extraordinária que rompe o seu cotidiano. A principal característica desse nível
é a continuidade plena e, portanto, a ausência de direcionalidade, intencio-
nalidade, causalidade, finalidade etc. Não há solução de continuidade entre o
homem e o mundo e, diante de tal harmonia, nem o Sentido faz sentido. Trata-
se, evidentemente, de um limite ontológico distante das aspirações operacionais
da semiótica mas necessário às indagações sobre seus pressupostos epistemo-
lógicos. Até porque as condições descontinuas de surgimento da significação já
não satisfazem nem mesmo as atividades aplicativas, fato que acabou gerando a
introdução do plano tensivo no modelo, como espaço reservado à formulação
das precondições contínuas do sentido.

Corpo e continuidade

O sincretismo actancial que suspende a oposição sujeito/objeto e convoca


os mecanismos de sensibilização não difere muito da noção de corpo elaborada
por Merleau-Ponty no campo da filosofia_ll Para o autor, o corpo é, ao mesmo
tempo, consciência e matéria, sujeito observador e objeto observado; é o terceiro
termo que assegura a relação participativa entre sujeito e objeto, neutralizando
suas funções sintáxicas. O corpo é, ainda, para o pensador francês, uma
ancoragem espaço-temporal que serve de ponto de referência central ao processo
perceptivo. Faz do mundo sua extensão periférica na mesma medida em que o
mundo o possui como centro.12
Se procedermos à semiotização dessas características descritas por
Merleau-Ponty veremos que a noção de corpo merece de fato um lugar na ins-
tância profunda do percurso gerativo. Primeiramente, como destaca o sernio-
ticista Claude Zilberberg, trata-se de um conceito "extenso" no sentido
hjelmsleviano do termo:

O corpo é sempre o centro. está sempre no centro e é nesse sentido


que nós o caracterizamos como extenso: ele dirige o processo
perceptivo; onde quer que se encontre, o corpo ocupa o mundo que
o engloba. 13

1L Tema já desenvolvido no Capítulo !L


12. Cf. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 103-270 ("Primeira Parte:
Corpo").
13. Cf Zi1berberg, C. "J\rchictecture, musique el langage dans 'Eupalinos' de P. Va1éry",
Documents de Travai!, Università di Urbino, Centro lnternazionale de Semiótica e di
Linguística, 1988, no 176-177, p. 11.
42 _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

Em segundo lugar, ao ostentar uma relação de reciprocidade com o mundo


e ao pertencer, como vimos, à ordem do sempre, o termo corpo preenche as
condições básicas para ser abordado como "estrutura" na acepção mais nobre do
conceito: patticipa de uma relação de dependência e mantém uma dinâmica
temporal (o sempre).l4
Por fim, corpo é também a categoria que subsume uma relação de
identidade entre ·sujeito e objeto, estabelecendo o sincretismo actancial já
comentado. Esse estágio de junção plena (em que não se sabe onde tennina o
sujeito e começa o objeto) é precioso para se compreender o surgimento da
dualidade como resolução do sincretismo e geração dos desequilíbrios que
clamam pela reconquista do elemento uno por meio dos processos narrativos e
aspectuais.
Corpo e junção constituem, portanto, respectivamente, a face material e a
face abstrata da continuidade entre sujeito e objeto preconizado tanto por
Merleau-Ponty como por Greimas no De l'imperfection. Por isso, quando se
trata de salientar a atuação das faculdades perceptivas e da força de sensi-
bilização, antes do aparecimento do sentido cognitivo, a noção de corpo é mais
frutífera. Ela traduz prodigiosan1ente as idéias de unidade e sensibilidade do ser.
Traduz ainda tudo aquilo que permanece como memória do contato primordial
deste ser com o mundo semiótíco, quando as variações de significado ainda não
se cristalizaram em diferenças mas apenas em modulações de sentimento e de
intensidade.
Assim, se corpo corresponde à unidade do ser, não é difícil calcularmos o
peso valorativo atribuído à continuidade nas mais diversas axiologias. A busca
da continuidade não constitui apenas um caso a mais de narrativa, a ser
examinado ao lado de tantos outros semelhantes, mas, sim, no nosso entender,
um caso de "prato-narrativa", aquela que subjaz à nossa eterna busca dos valores
durante toda a existência. O que está em jogo é a reconstituição do ser ou, se
preferirmos, o reencontro do ser com a própria identidade.
Esse princípio está na base da compreensão dos conceitos de tensividade e
x atratividade. A partição do uno, condição para ingressar no plano cognitivo,
causa desarmonia no universo do ser, fragmenta o corpo, mas, em compensação,
instaura o sentido em nossa vida. E o sentido, aqui, é orientado para a
>" reintegração das partes (sujeito e objeto) que desfazem a noção de ser. É uma
direção a seguir em nome do valor dos valores: a integridade. A atração por esse
valor desperta no sujeito a tensão que o caracteriza como tal e que nunca mais o
abandona, enquanto houver vida. O valor dos valores é tudo que o sujeito
precisaria para voltar a ser - plenamente - ele próprio. Quanto aos valores em
geral, não são mais que objetos parciais - desencadeadores de programas
narrativos auxiliares - que simulam etapas intermediárias de busca e, desse

14. lbid.
Corpo na semiótica e nas artes 43

modo, mantêm acesa a chama tensiva do sujeito. Mas o que este de fato deseja é
restabelecer o elo contínuo com o objcto, única fmma hipotética de recuperação
do ser. Daí decorrem as noções, elaboradas em Semiótica das paixões, de
"sujeito protensivo" e de "valência", esta última definida como pressentimento
dos valores. IS
Instauradas as etapas seguintes do percurso gerativo -as estruturas
elementares, as operações actanciais etc. -a noção de corpo permanece como
metacategoria complexa pressuposta, !6 uma força síncrétíca que recebe
diferentes denominações de acordo com os termos articulados no modelo.
Assim, quando pensamos na força que impele a disjunção para a conjunção, a
metacategoria é a junção; quando das relações polêmicas para as relações
contratuais, corpo equivale à fidúcia; da disforia para a euforia, aparece como
faria e assim por diante.
Nossos discursos cotidianos promovem, de certa fom1a, em nome de uma
eficácia de comunicação, a conversão do corpo como totalidade e continuidade
fórica em desigualdades e dependências (elementos de reintegração) a que
chamamos "sentido". A semiótica da ação traduziu as relações de dependência
em determinações modais descontinuas, ou seja, em modalizações. A semiótica
das paixões revelou, em contrapartida, que as tensões fóricas continuam
participando do discurso, mesmo após a discretização cognitiva, em forma de
modulações contínuas que transparecem na superficie do texto, testemunhando
a onipresença do corpo que sente.
Dentro dessa concepção, corpo é um tempo presente extenso que acompa- ·
nha o enunciado como que lembrando que este jamais se liberta da enunciação.
Por trás da produção está sempre o agente sensível que a produziu.

Corpo e duração

Essas reflexões vão ao encontro das admiráveis intuições de P. Valéry que


já definia o corpo como "relógio do presente",l7 como a "forma que se con-
serva"18 e como a suspensão das diferenças para a liberação do presente. O poeta
já compreendia o corpo como um princípio de identidade que subjaz às

15. Greimas, A.l e Fontanille, J., op. cit., p. 26-7.


16. Ao contrário dos autores de Semiótica das paixões, não vemos impedimento em considerar
elementos com vocação categorial no nível tensivo uma vez que, para importantes tendências
da semiótica, as categorias pressupõem valores contínuos sobre os quais elas vão proceder à
discretização. Além do mais , " corpo", no caso, representa justamente a continuidade
inarredável que prefigura a posição do termo complexo em diversas estrutlu·as praticadas no
plano cognitivo.
17. Valéry, P. Cahiers, I, op. cit., p. 1120.
18. Ibid., p. 1135.
44 _ _ _ _ _ Jvfusicando a semiótica

oposições criadas pelos textos e exibe a condição de "insuperável sistema de


referências" .19
Entretanto, a grande intuição de Valéry está, a nosso ver, inscrita num
aforismo tão instigante quando enigmático:
O corpo é um espaço e um tempo - dentro dos quais encena um
drama de energias.
O exterior é o conjunto dos começos e dosfins.20
Em primeiro lugar, a dinamização do conceito. Como espaço, o corpo pode
abrir, fechar, concentrar, circunscrever, ocupar, difundir, criar distâncias etc.
Como tempo, pode parar, continuar, esperar, recordar, prever, antecipar,
precipitar, criar durações etc. Nesse sentido, o corpo encena um "drama de
energias". Em seguida, ao reservar o exterior do corpo para o conjunto dos
começos e dos fins, o autor dota seu conceito de maior precisão: ·corpo é,
sobretudo, aquilo que "dura". Aquilo que vem depois do início e antes do fim. É
também, por extensão, o parâmetro de medida que assinala se há excesso ou falta
no plano do sujeito. É, por fim, a própria distância entre os dois principais
actantes (sujeito e objeto), cuja variação depende do andamento aspectualizado
pelo texto: maior velocidade, menor duração c vice-versa.21
Em princípio, o aumento exorbitante da celeridade pode provocar a
síncope, o salto repentino, o inesperado, o scntirnet;~to de surpresa e todas as
emoções que decorrem diretamente da descontinuidade entre sujeito e objeto. O
corpo, nesse caso, sofre uma fratura e perde, portanto, o seu mais elevado
atributo: a integridade. A duração constitui, assim, un1a necessidade vital do
corpo o qual só se totaliza quando há continuidade entre sujeito e objeto. A
desaceleração restabelece os liames, os vínculos e o conforto da conjunção.
Entra em pauta o valor da duração ou, se preferível, a duração da duração: o
sujeito sempre precisa de tempo para desfmtar o objeto. E o que é a vida (do
indivíduo ou da espécie) senão uma interminável conquista da duração?
Evidente que a desaceleração também pode ser excessiva a ponto de
desconectar a atenção do sujeito e produzir, por afastamento, um outro tipo de
descontinuidade. Tais distúrbios extremos podem nos auxiliar na compreensão
/ do fenômeno geral da aspectualização. Nosso objetivo aqui, entretanto, é o de
identificar o corpo no intervalo dos extremos, na luta inglória pela conservação
da boa medida, da boa distância e da duração da duração. Este nos parece ser o
corpo que subjaz ao texto durante toda a sua extensão.

19. Ibid. , p. 1127.


20. fbid., p. \134.
21. C. Zilberberg comenta na nota 32 de se L! artigo j á citado que "para Valéry, Merleau-Ponty c
Greimas o corpo 'mede' a distância do sujeito ao objeto, o grau de conjunção ou de
identificação entre o sujeito e o objeto" (p. II).
Corpo na semiótica e nas artes 45

Avançando um pouco mais no pensamento do poeta francês, podemos


observar que apesar da vasta abrangência de seu conceito -corpo, para ele, "é o
que, interposto no fluxo de energia, dá alma, vida c o resto"22 -, com influência
nas variações aspectuais, espaciais e temporais, às vezes deparamos com uma
proposta operacional de desdobramento da noção em "corpo" e "alma", como
que a sublinhar a preocupação do autor com o valor do plano da expressão. Essas
ocasiões permitem compreender o termo "corpo" stricto sensu como dimensão
espacial em oposição ao termo "alma" reservado à dimensão temporal. O
primeiro localizado no plano da expressão e o segundo no plano do conteúdo.
Zilberberg confirma literalmente essa constatação:

O corpo em Valéry é o actante organizador da manifestação,


ordenador do espaço, assim como a alma é o actante organizador da
imanência, que governa a duração. 23

Mas para fazer justiça ao pensamento global de Valéry a respeito de corpo,


somos obrigados a criar uma estrutura participativa24 que possibilite estabelecer
o desdobramento da noção sem comprometer sua unidade essencial:

CORPO

/~alma
corpo

Essa estrutura25 reproduz a presença simultânea de atributos somáticos e


psíquicos, corpo e alma, no interior do CORPO sensível. Se no nível das
articulações cognitivas podemos separá-los operacionalmente, no nível superior,
que representa aqui as precondições do sentido, serão sempre idênticos.26

22. Valéry, P., op. cit., p. 1132.


23. Zilberberg, C., op. cit., p. 9-10.
24. Na acepção fundada por Hjelmslev, La Catégorie des cas, op. cit., p. 102.
25. Nosso recurso gráfico (letra maiúscula) para expressar o termo complexo talvez pudesse ser
dispensável em outro idioma. O significado da palavra "Leíb", em alemão, diz respeito, ao
mesmo tempo, ao aspecto fisiológico. para o qual há o termo específico "Kõrper", e ao
aspecto sensível para o qual há o termo "Seele".
26. C. Zilberberg propõe uma estrutura participativa encabeçada pelo tenno-função ''alma" (op.
cit., p. 18), talvez por se basear especificamente no texto "Eupalinos ou L'Architecte" de P.
Valéry. Preferimos a solução proposta.
46 _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

Forma artística

A noção abrangente de CORPO (alma c corpo) participa tanto da geração


do plano do conteúdo como da geração do plano da expressão. Ordena, no
primeiro caso, o tempo subjetivo do ser- a duração - e, no segundo, o espaço
que materializa essas relações temporais. Daí a importância que Valéry atribui à
"forma artística" como recurso privilegiado de manifestação do corpo que
percebe e sente. Dessa "forma" deúvam todos os meios de estabilização do plano
da expressão e de seu processo de construção.
A forma artística constitui, no fundo, um rito de desaceleração da lin-
guagem. Ela refreia a transposição do plano da. expressão ao plano do conteúdo,
valmizando a organização rítmica do primeiro. Para comprovar essa caracte-
rística, Valéty escreveu um célebre trabalho comparando as linguagens que po-
dem ser ativadas tanto em dimensão artística como em dimensão utilitária.
Considerou então os pares canto/fala, dança/andar e, sobretudo, poesia./ prosa.27
O parâmetro de eficácia e de produtividade das linguagens utilitárias está,
segundo o poeta, na "rapidez" com que se pode transitar pelas palavras ou pelos
gestos, transformando-os em valores abstratos independentes da matéria que os
veiculou. Ou seja, uma comunicação bem-sucedida em nosso cotidiano cognitivo
supõe que houve rápida conversão do plano da expressão em plano do conteúdo e
. . - que o primeiro pôde ser, também imediatamente, descartado. Tudo como se as
práticas utilitárias precisassem renegar constantemente a fixação das modulações
corporais em nome do êxito das articulações intelectivas.
No caso das linguagens artísticas, o parâmetro de encanto está justamente na
prática inversa de preservação do plano da expressão- do significante - por meio
de recursos rítmicos altamente comprometidos com a matéria sonora ou somática.
Para responder à efemeridade das linguagens utilitárias, que perecem como
matéria para dar lugar à compreensão do espírito, Valéry realça. que a ati vida de
artística é elaborada "expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser inde-
finidamente o que acabou de ser". A poesia, por exemplo, "tende a se fazer repro-
duzir em sua forma, ela nos excita a reconstituí-la identicamente".28
A fonna artística decone, pmtanto, da necessidade básica de reconstituição
e perpetuação do CORPO sensível no "corpo" da obra. Primeira providência é a
desaceleração das manobras associativas do pensamento abstrato (que opera in
absentia) em proveito de uma continuidade in praesentia. Temos, então, como
resultado, o presente extenso ou, ainda, o instante enunciativo que se transfmma
em duração e assegura, assim, os elos contínuos no interior da obra. Nesse
sentido, duração equivale à noção de corpo.

27. Cf. "Poesia e pensamento abstralo" . ln: Va1éry, P. Variedades. São Paulo, Iluminuras, 1991,
p. 201-18.
28. lbid., p. 213.
Co1po na semiótica e nas artes 47

Tudo se resume nos proceclimentos de conservação da sonoridade por meio


de leis que lhe são próprias. Só assim podemos ludibriar o processo automático
de transposição imediata do plano da expressão ao plano do conteúdo. Uma
sonoridade com autonomia de expressão não pode simplesmente ser descartada
pois, na maioria das vezes, parece mais consistente e convincente do que o
próprio conteúdo. A forma artística desencoraja o movimento de transposição já
que prefere o encanto da matéria tratada (ou do corpo materializado) à eficácia
da comunicação. Compreende-se, assim, mais essas passagens de Valéty:

... toda arte, poética ou não, consiste em defender-se contra essa


irregularidade do momento.
A observância dos ritmos, das rimas, da melodia verbal impede os
movimentos diretos do meu pensamento ... 29

Conclusão
A fom1a artística exacerba, na verdade, urna característica encontradiça em
todo e qualquer discurso, mesmo naqueles que pretendem manter distância do
domínio estético. Não se pode conceber enunciação sem a participação de um
CORPO onipresente. Entretanto, também compete à atividade enunciativa dosar,
consciente ou inconscientemente, o grau dessa participação. Um discurso
científico ou de instruções técnicas (basta pensarmos, por exemplo, numa bula
de medican1ento) não traria provavelmente muitos elementos para a manifes-
tação do nível tensivo e das modulações sensíveis. A intenção enunciativa mais
gritante, nesse caso, é a de substituição imediata da expressão (gráfica ou
fonológica) pelo conteúdo, de maneira que os componentes materiais empre-
gados na comunicação se dissolvam diante da aquisição cognitiva puramente
abstrata. Mesmo nesse gênero extremo de atuação cognitiva, e podemos retomar
aqui o exemplo da bula, não é diflcil detectar a existência de modulações dis-
cursivas (que visan1 adequar dosagens medican1entosas às variações metabólicas
dos pacientes) que revelam, de certo modo, apreensões e cuidados do sujeito em
sua atividade enunciativa. Forçoso reconhecer, porém, que esses discursos
utilitários, ao mesmo tempo que tomam viável nossa vida social e objetivam
nossas ações cotidianas, restringem significativamente a expressão de nosso
corpo, constituindo-se em verdadeiros filtros de conteúdos emocionais.
O estudo da criação artística como prática de elaboração do plano da ex-
pressão possui àssim um sentido de rejeição a uma determinação sintáxica típica
das construções abstratas do conteúdo. De fato, mergulhado na macrossemiótica

29. Ibid., p . 198.


48 Musicando a semiótica

composta de mundo natural e língua natural, cujo funcionamento transcende os


indivíduos usuários (daí a designação "natural"), o ser semiótica sofre, de início,
uma inevitável dominação - modalizada, mu~tas vezes, pelo /dever/ que o
submete ao trabalho cognitivo como se fosse a única forma eficaz de convívio
comunítário. Ao empreender sua incansável busca de integlidade, por meio das
ações de reconquista da junção, da confiança, da duração c de todos os processos
contínuos, o sujeito deixa transparecer partes de seu corpo que se manifestam
nos efeitos de sentido passionais. Ao produzir uma forma artística, ou seja, ao se
engajar na criação de um significante que mereça ser conservado, o sujeito está
subve1tendo a dinâmica natural de circulação de valores abstratos e propondo,
em seu lugar, a materialização do instante enunciativo e, conseqüentemente, a
perpetuação do corpo sensível (CORPO) na obra.
Nesse sentido, o gesto artístico, na medida em que nega a determinação
utilitária (sob a égide do /dever/) de conversão imediata da expressão em
conteúdo e instaura o espaço da matéria como representante perene de uma
duração subjetiva (sob a égide do /querer/), constitui um gesto, por excelência,
de liberdade. Afmal, esta tem sido definida semioticamente como a inten·upção
de um processo, ou estado de coisas, para o início de outro que contenha nova
duração. E, mais uma vez, Valéry:

Mas essa liberdade exige certamente uma duração - um tempo de


parada -, ou seja um tempo maior que um tempo de reação de tipo
reflexo. Há, portanto, um lugm~ uma época e uma duração que são
condições da "liberdade". 30

Por tudo isso, cremos que o estudo do corpo na semiótica está bem
equacionado cm Semiótica das paixões e melhor ainda em De l'impe!fection
que adota, como horizonte privilegiado, a estética literária. Claude Zilberberg,
por sua vez, vem realizando um trabalho ininterrupto de ajuste e aprimoramento
do modelo, estribado em grande parte nas reflexões rutísticas de P. Valéry. Falta,
talvez, reconhecer que um estudo dessa natureza não beneficiaria apenas o
âmbito das artes mas todo o campo semiótica e seu objetivo de descrição do
sentido construído nas diferentes linguagens verbais e não-verbais. A pesquisa
que acompanhar de perto a luta humana de reconstituição do corpo nos discursos
estará provavelmente depreendendo os históricos mecanismos de construção da
liberdade.

30. Valéry, P. Cahiers, I, op. cit., p. 764. Trecho também citado por Zilbcrberg, C., op. cit., p. 24.
CAPíTULO IV

Silêncio e luzes
na apreensão estética

Entre o encanto da matéria tratada pelas linguagens artísticas e a eficácia


da comunicação praticada nas linguagens utilitárias modulam-se os afetos
subjetivos e os efeitos objetivos que imprimem maior ou menor profundidade
em nossa existência. Mencionamos, no Capítulo III, o célebre ensaio em que
Paul Valéry compara poesia e prosa e sublinha a força de recomposição da
primeira cm contraste com a tendência dissolutiva da última. "O poema é feito
expressamente para renascer de suas cinzas - diz o poeta - e tomar-se indefi-
nidamente o que acabou de ser". Já a forma da prosa "não se conserva, não so-
brevive à compreensão, dissolve-se na clareza". 1
Neste simples confronto entre conservação e dissolução estão implicados
- e daí o interesse maior de texto citado - os princípios temporais que sempre '.
nortearam o pensamento de Valéry. O tratamento da matéria (plástica, somática,
sonora etc.) nas linguagens artísticas tem como objetivo primordial sua própria
perenização, enquanto o desprezo por esse tratamento nas linguagens utilitárias
responde ao imperativo de transitoriedade das práticas cotidianas. De fato;
neste último caso, a eficácia da transmissão comunicativa pode ser aferida pela
rapidez com que o suporte - sonoro ou caligráfico, se pensarmos na linguagem
verbal - converte-se em elementos cognitivos abstratos e se desfaz como
estímulo sensoriaL
A conservação da matéria nas artes e a dissolução da mesma nas lin- "-
guagens funcionais atualizam, portanto, os valores continuidade e descon-
tinuidade, respectivamente. E surgem, mais uma vez, as conseqüências tem-
porais, agora sob a forma musical do andamento. Para deflagrar a conservação,
no sentido de continuar a ser (ou a ter), temos os procedimentos de desace-

L Valéry, PauL "Poésic et Pensée Abstraite". Oeuvres, I, Paris, Gallimard/La Plêiade, 1957, p.
1326. Embora a tradução deste ensaio já esteja disponível no volume Variedades, op. cit., a
solução em português do trecho citado não contribui para nossos fins.
50 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

leração que, na arte poética, por exemplo, correspondem ao emprego de


aliterações, ressonâncias e toda sorte de ritmos cujas recorrências e interdepen-
dências fônicas auxiliam na fixação da matéria sonora. Para favorecer a
dissolução da sonoridade nas comunicações orais do dia-a-dia - afinal não
haveria nem tempo nem espaço mental para gravar os sons da fala ao lado das
mensagens transmitidas -contamos com as funções instantâneas da enunciação
que, em condição normal, limitam-se ao aqui-agora, indispensável à sintonia
eu-tu, e instituem a rapidez de transformação do significante em significado
como parâmetro de eficácia comunicativa.
Nesses tennos, enquanto as linguagens utilitárias precisam ser ágeis e
dissolutivas em sua materialidade gráfica, sonora ou somática (além da
"prosa", Valéry destaca nossa atividade de "fala" e de gestos cotidianos, como
o próprio "andar"), concentrando sua força informativa no instante da enun-
ciação, as linguagens artísticas (pensemos com o poeta francês na "poesia", na
"canção" e na "dança") dependem de um tratamento da matéria que justifique
sua conservação. Tudo ocorre como se o artista precisasse eternizar sua cnun-
1: ciação, transfonnando o aqui em toda parte e o agora em sempre. Parece
muito, mas uma obra concluída, consolidada em matéria, significa, antes de
tudo, a superação do caráter pontual e efêmero da enunciação. Ela ocupa uma
extensão espacial e engendra necessariamente uma duração. Numa canção, por
exemplo, o aqui-agora enunciativo se refaz a cada execução e dura enquanto
soar a voz do intérprete em nossos ouvidos. É essa materialidade que nos
entretém numa espécie de cwnplicidade estética corpo a corpo 2 para que os
demais estímulos possam fluir da forma mais contínua possível.

Apreensão estética

/, A apreensão estética depende dessa espessura enunciativa ocasionada pela


extensão do sujeito artístico, e de seu presente, no significante da obra, pois que
isso representa uma interrupção das trocas instantâneas que caracterizam nosso
cotidiano intelectivo e pragmático e, simultaneamente, a criação de um tempo
de convivência tanto com o objeto criado como com o ato criador (a enuncia-
ção que dura o tempo da obra). De fato, o que mantém a funcionalidade de
nossas comunicações do dia-a-dia é, sem dúvida, o controle que o sujeito da
enunciação (enunciador e enunciatário) exerce sobre o objeto enunciado. Sem
maior preocupação com a sonoridade em si, mas zelando pela boa formulação
gramatical e lexical de seu discurso, para que a informação seja rapidamente
transmitida, esse sujeito investe num estado de atenção cognitiva que o mantém

2. Referimo-nos à relação entre a materialidade da obra e as faculdades sensoriais envolvidas na


apreensão estética, nos termos já tratados no Capítulo III.
Silêncio e luzes na apreensão estética - - - - - - - -- - - - - - - 51

unificado (senhor de si) diante de um objeto passivo e transitório. No caso da "f


produção artística, como vimos, as operações de conservação da matéria
suspendem a passagem instantânea do significante ao significado e, conseqüen-
temente, prolongam e estabilizam o gesto enunciativo. Temos, então, o que
Greimas chamaria de fratura do cotidiano e de sua programação monótona,3 e
o sujeito, nesta oportunidade, é levado a trocar o instante pela duração enun-
ciativa o que, em si, já constitui um fator de surpresa à sua atividade rotineira.
A surpresa confunde o sujeito, causa-lhe divisões internas (afinal ele se sente :X
num tempo em que ainda não deveria estar) e toma-o suscetível aos efeitos do
objeto artístico. Em outras palavras, a surpresa prepara o terreno para a inver- '
são dos papéis: o objeto emociona o sujeito, passivando-o numa repentina troca
de funções.
Um trecho de letra da famosa canção de Paulinho da Viola, Foi um rio que
passou em minha vida, retrata, de maneira exemplar, a inversão de papéis
decorrente do estímulo estético:

...Há um caso diférente


Que marcou num breve tempo
Meu coração para sempre
Era dia de carnaval
Carregava uma tristeza
Não pensava em novo amor
Quando alguém que não me lembro anunciou
Portela, Portela!
O samba trazendo a Alvorada
Meu c oração conquistou
Ah! Minha Portela!
Quando vi você passar
Senti meu coração apressado
Todo o meu corpo tomado
Minha alegria voltar
Não posso definir aquele azul
Não era do céu, não era do mar
Foi um rio que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar.

Os traços ativos do objeto (a "Portela") são incontestáveis, mas isso não


significa que a apreensão estética dependa sempre dessa inversão. O mais :X:
freqüente- e fundamental - é a flexibilização das funções subjetais e objetais,
de tal modo que, por um "breve tempo", se estabeleça uma influência bilateral

3. Cf. Greimas, A. J. De l 'impe7fection, op. cit.


52 _________ _ __ __________ Musicando u semiótica

entre os afetos e os efeitos. Parafraseando uma formulação de Claude


Zilberberg, diríamos que "o [efeito] tende a objetivar o afeto na exata medida
em que o afeto subjetiva o [efeito]. 4
Escolhemos Foi um rio que passou em minha vida não apenas por ser uma
canção consagrada e, como tal, constituir um caso de comprovada conservação
e ampliação do instante enunciativo em sua materialidade sonora (tanto na
melodia como na ordenação fónica dos versos), mas, sobretudo, por reproduzir
internamente os efeitos e os afetos implicados numa apreensão estética, ou seja,
por relatar uma cena inesperada de materialização, neste caso visual e auditiva,
de um desfile de escola de samba cuja propagação do agora enunciativo arre-
'/ bata o "coração" desprevenido do sujeito (o narrador), passivando-o. De qual-
quer forma, as duas dimensões (ouvinte/canção e narrador/Portela) são
indispensáveis para que a fruição ganhe maior completude: a canção deve ser
um objeto atraente, e até certo ponto ativo, para que os conteúdos da letra pos-
sam de fato convencer.
Não pretendemos abordar, neste trabalho, os recursos melódicos que
asseguram a conservação cancional e prolongam sua duração enunciativa- já
vimos que o agora permanece inscrito no significante -, num tempo suficiente
para conquistar a adesão do ouvinte.s Não podemos deixar de sublinhar, porém,
que desde essa fase de primeiro contato já estão em jogo os valores juntivos
(maior ou menor apego do ouvinte à canção) que vão determinar, nas etapas
seguintes, o grau de envolvimento do sujeito com o conteúdo da letra.

Apego e desapego

Y As variações afetivas são, de fato , tributárias dos valores juntivos. Nossos


desejos são mobilizados por um sentimento de falta (a disjunção) na mesma
proporção em que nossas tensões emotivas são atenuadas pelo sentimento de
plenitude (a conjunção). Entre esses estados, que não passam de referências
metodológicas para a reflexão, transcorrem as irtfinitas modulações de nossa
vida passional que apresentam como dimensão reguladora mais visível a tem-
poralidade, a começar do chamado tempo cinemático (o andamento mais
rápido ou mais lento). Se tomannos algumas noções que manifestam os valores
juntivos em nossa cultura, como apego e desapego, por exemplo, veremos que
ambas contêm representações concentradas (intensas) e representações

4_ Cf Zilberberg, c_ "Análise discoursive et énonciation", Sémiotique & Bible, Lyon. Centre pour
l'Analyse du Discours Réligieux, 69, mars 1993, p. 28. Em vez da palavra "efeito" o texto
original emprega "valor".
5. Assunto amplamente tratado em nosso trabalho Semiótica da canção. op_ cit_ c retomado,
adiante, no Capítulo VII.
Silêncio e luzes na apreensão estética - - - - - - - - - - - - - - - - 53

expandidas (extensas), traduzindo os instantes e as durações que regem nossa


lllstória pessoal. A união e a ruptura são formas rápidas, instantâneas, que
definem, respectivamente, apego e desapego. A aproximação e o dis-
tanciamento são formas lentas, gradativas, que concorrem à mesma definição.6

rápido lento
apego união aproximação
desapego ruptura distanciamento

Mesmo no interior dos estados acelerados, não podemos deixar de


considerar algumas modulações de velocidade que atribuem um estatuto pouco
mais duradouro às situações limite. Tudo ocmTe como se a desaceleração fosse
necessária para dar tempo ao sujeito, um tempo de desfrute do objeto ou de
elaboração de sua perda. Assim, quando a união atinge o auge da velocidade,
dizemos que o sujeito está em êxtase. Com o passar do tempo, se a união "·
permanece, certamente perderá sua intensidade inicial e diremos então que o
sujeito é feliz. As diferenças lingüísticas aqui representam nossas necessidades
culturais de configuração das nuanças afetivas. A felicidade é mais lenta que o
êxtase. Do mesmo modo, a ruptura, em sua aceleração máxima, pode repre-
sentar um sujeito liquidado. Entretanto, sabemos que é bem mais freqüente a
forma desacelerada do sujeito deprimido, prostrado, abatido etc.
Embora essas formas limite sejam importantes como balizas teóricas no 'i ·r
campo da reflexão, não há dúvida de que as etapas privilegiadas da pesquisa
estão dispostas, ou superpostas, nas extensões gradativas onde atua um sujeito
passional - ao mesmo tempo esperançoso e inquieto - que busca a distância (ou
duração) " ideal" para se situar em r e lação a seu objeto. 7 A união plena e
extática é por demais efêmera para constituir um projeto de vida.s A idéia de '
urna ruptura absoluta, por sua vez, contradiz a própria noção de afetividade que
depende dos valores juntivos para se manifestar. A procura de uma duração
satisfatória, ou de urna distância ideal do objeto, constitui, no nosso entender,
a pedra de toque da configuração do ser passional, ou seja, do ser completo que

6. Esses a.ITanjos nos foram sugeridos por Zilberberg, C. no artigo "Piaidoyer pour Ie tempo". ln:
Fontanille, J. (ed.). Le devenir, Lirnoges, Pulirn, 1995.
7. Distância e dmação são dimensões, espacial e temporal respectivamente, que se alteram com
w1iformidade sob a i'níluência do andamento. Se este acelera, diminuem a distância e a duração
até os limites do ponto e do instante. Se desacelera, a distância aumenta progressivamente até
o que entendemos por "infinito", enquanto a duração se desfaz na "eternidade".
8. A conjnnção pe1feita de sujeito e objeto é nn1a utopia harmoniosa mas sem sentido, não apenas
pela impossibilidade de realização, mas, sobretudo, pela falta de direção implicada em
qualquer processo histórico (incluindo a história de vida do indivíduo). O afastamento do )<,
objeto é um imperativo para a caracterização do sujeito como alguém que segue uma direção
(a direção do objeto) e, portanto, compromete-se com um sentido.
54 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

se sente mobilizado emocionalmente diante dos objetos de desejo- incluindo,


y evidentemente, os objetos artísticos. Daí a importância dos processos de
sucessão, sincronização, antecipação e retardamento; todos contribuem para
definir a posição espaço-temporal-afetiva do sujeito.

Surpresa e espera

A essa altura, podemos nos valer novamente das intuições de P. Valéry


para estabelecer algumas demarcações na continuidade temporal que podem
servir de base ao estudo do afeto. Diz o poeta, de forma um tanto enigmática:

Noção dos atrasos.


O que Oá) é não é (ainda) - eis a Surpresa
O que não é (ainda) Oá) é- eis a espera. 9

Trata-se de uma verdadeira esquematização das relações entre tempo


veloz e tempo lento na interface das funções de sujeito e objeto:

função objetal função subjetal


surpresa o que já é não é ainda
espera o que não é ainda já é

Tudo ocorre como se nossa vida afetiva fosse dojá ao não ainda - ou
vice-versa - modulando os adiantamentos e os atrasos de acordo com a
capacidade do sujeito de tolerar o inesperado e programar a espera. Note-se
que ambas as noções (a surpresa e a espera), mesmo em suas disposições
extremas, pressupõem um certo equilíbrio das funções de sujeito e de objeto.
Se este for rápido demais, a ponto de ultrapassar a esfera daquilo que
conhecemos como surpresa, acaba perdendo seus contornos ele identificação e,
conseqüentemente, o objeto escapa do sujeito. Podemos nos limitar ao exemplo
de algumas formas de manifestação da vanguarda attística, em que o produto
estético, de tão novo e imprevisível, nem chega a ingressar no campo de
percepção do espectador: é a instalação que sequer foi notada no salão de a1tes
plásticas ou a música que não se ouviu. Em outras palavras, para além da
surpresa, o excesso de instantaneidade confunde os limites de identificação do
objeto de tal maneira que adentramos repentinamente na escuridão e no
silêncio.

9. Cf. Valéry, P. Cahiers, T, op.. cit., p. 1290. Propusemos uma tradução livre da passagem:
"Notion des retards. Ce qui est (déjà) n'est pas (encore) - voici la surpri se. Ce qui n' cst pas
(encore) est (déjà)- voilà l'attente." Hesitamos entre "atrasos" e "demoras" para "retards" .
Silêncio e luzes na apreensão estética - - - - - - - - - - - - - - - - 55

Se o objeto, ao contrário, for lento demais, a ponto de dispersar a atenção .,.


do sujeito num vazio (ou contínuo) equivalente à eternidade, as saliências (os
limites, os contornos) apagam-se e, desta vez, é o sujeito que escapa do objeto.
Todos os fenômenos de extrema redundância, tanto no mlllldo attístico como na
vida cotidiana, ilustram bem essa tendência, mas talvez possamos recordar uma
peça teatral, encenada há pelo menos duas décadas em São Paulo, em que seu
criador, Bob Wilson, levou ao extremo a experiência com a desaceleração. O
movimento dos atores, de tão lento, era quase imperceptível e a peça, que se
iniciava à noite, só findava ao amanhecer do dia seguinte. Os espectadores que
não desertavam da sessão tinham, então, como um dos grandes desafios, não
adormecer durante o espetáculo. Enfim, com o objeto lento demais, toda a
nossa programação de espera vai sendo desativada até atingir novamente, desta
vez de forma progressiva, a escuridão e o silêncio. E, nesse caso, como já
dissemos, é o sujeito quem se desliga do objeto.
O silêncio é o nada, fotjado pelo excesso de velocidade e pela confusão
total dos limites, mas é também o tudo, proveniente de uma duração inter-
minável que consome o sentido de progresso e cria a sensação de que o tempo
parou.

Velocidade dos afetos

Mas voltando ao plano dos sons e das luzes, entre a surpresa e a espera,
consideramos como extremamente oportunos os estudos que incidem sobre os
afetos (ou emoções) pontuais - aqueles que já possuem um estatuto lingüístico-
cultural definido - e que vão iluminando, pouco a pouco, as etapas do
continuum passionaL lO
Ao examinar de peito as variações subjetivas mobilizadas no campo da
surpresa, o semioticista Claude Zilberberg distinguiu, com nitidez, pelo menos
duas reações decorrentes da alta velocidade envolvida nesta disposição
afetiva.ll Se a velocidade realmente verificada define-se como maior que a
velocidade suposta, teremos o estado típico do sujeito confuso. Se, ainda dentro
do quadro da surpresa, a velocidade verificada iguala-se à velocidade suposta,

1O. Referimo-nos aos afetos já dicionari zados cujas definições, por pouco rigorosas que sejam,
oferecem quase sempre alguma orientação sobre a temporalidade implicada no conceito. A
definição de angústia, por exemplo, pode aparecer com a seguinte fonnulação: "mal psíquico
ou fisico , nascido do sentimento da iminência de um perigo". Além do sentido prospectivo,
esta abordagem registra também a presença do regime acelerado ("iminência") no interior da
noção. Podemos encontrar ainda as vizinhanças afetivas que também auxiliam na
continuidade da pesquisa: " ... é um mal caracterizado por um temor difuso podendo ir da
inquietude ao pânico ..." - grifo nosso.
11. Cf. Zilberberg, C. "Remarques sur la profondeur du temps", xerocópia de trabalho ainda não
publicado.
56 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ __ _ _ _ Musicando a semiótica

podemos ter a figura do sujeito sangue-frio, aquele que não perde o controle da
situação.
A canção popular nos fornece, a esse respeito, um outro exemplo interes-
sante. A letra da famigerada Nervos de aço, de Lupicínio Rodrigues, descreve
uma situação característica do sentimento de surpresa:

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor


Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um outro qualque1: ..

A superioridade da velocidade verificada sobre a velocidade suposta- que


elimina qualquer regime de espera- determina com muita clareza a consti-
tuição do sujeito confuso, aquele que mal consegue delinear os contornos de
seus estados emocionais:

Eu não sei se o que trago no peito


É ciúme, despeito, amizade ou horror...

E para valorizar ainda mais sua condição de vítima aturdida, convoca a


única personagem que poderia, presumivelmente, equilibrar a velocidade
verificada com a velocidade suposta:

Há pessoas com nervos de aço


Sem sangue nas veias e sem coração .. .

Entretanto, mesmo este sujeito sangue-frio, ao deparar com semelhante


situação, perderia, ao ver do narrador, o controle e as funções ativas em decor-
rência do impacto da cena:

Mas não sei se passando o que eu passo


Talvez não lhes venha qualquer reação ...

Para a análise da espera, Zilberberg aplica os mesmos critérios e extrai as


noções de sujeito paciente, aquele que é capaz de criar uma equivalência entre
velocidade verificada e velocidade suposta, e de sujeito impaciente, aquele
para o qual a velocidade suposta é bem superior à velocidade de fato verificada.
A noite do meu bem , de Dolores Duran, retrata, delicadamente, os dois estados
subjetivos:
Silêncio e luzes na apreensão estética ~----~---------- 57

Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver


E a primeira estrela que vier
Para enfeitar a noite do meu bem
Hoje, eu quero paz de criança dormindo
E abandono de flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem ...

De início, o sujeito constrói pacientemente a espera, como se, para tanto,


precisasse justamente entrar em fase com o tempo lento. O processo de
decoração ("enfeitar"), que figurativiza a espera, corresponde ao esta-
belecimento de um percurso contínuo para favorecer o fluxo transitivo entre
sujeito e objeto.
Ao final, porém, de modo quase imperceptível, pois que a melodia não se
altera, o sujeito demonstra uma indisfarçável inquietude com a desaceleração
que, a esta altura, já dá sinal de afastar-se demais da velocidade suposta. É a
paciência se convertendo, suavemente, em impaciência:

Ah! Como esse bem demorou a chegar!


Eu já nem sei se terei no olhar
Toda a pureza que quero lhe dar

Podemos ter, em sentido totalmente inverso, o esforço do sujeito em


prolongar seu tempo de convívio com o objeto. Nesse caso, a grande aliada é a
duração, o tempo do não ainda. Essa expressão indica que, apesar da
permanência de um determinado estado, este caminha inexoravelmente para
sua própria extinção. No entanto, enquanto durar, canega o sabor de eternidade
típico dos momentos de plenitude, em que sujeito e objeto tornam-se,
concomitantemente, ativos e passivos, numa relação transitiva despida de
embaraços. A imagem da apreensão estética como um instante sublime, que se
destaca das imperfeições do cotidiano, ilustra bem o encanto dessas pequenas
durações e não deixa de revelar também o esforço do sujeito em prolongá-las.
A letra da canção Olê, olá, de Chico Buarque, aborda com nitidez surpreen-
dente a temporalidade que subjaz ao universo afetivo do sujeito, do estágio não
ainda à demarcação do já.

Não chore ainda não


Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
58 ______________ __ __ ___ Musicando a semiótica

E você minha amiga


Já pode chorar.!2

Toda a argumentação desenvolvida no texto vem no sentido de poder ela-


borar a espera do objeto (o "samba") diante da constante ameaça do tempo cro-
nológico, cuja sucessão, muito veloz, pode se antecipar e impedir a conjunção
do sujeito com o objeto. A alternância do dia e da noite é um pressuposto
cíclico, fartamente adotado pela canção brasileira em geral como um ritmo
entre valores do bem (do dever coletivo, da labuta diurna) e valores do bom (do
querer individual, da boêmia noturna), que assegura um fundo de determinismo
temporal, contra o qual o sujeito se insurge na tentativa de retirar o máximo
proveito do período reservado ao prazer. Daí então o seu forte comprome-
timento com a desaceleração, como se esta pudesse interromper o ciclo ou, ao
menos, prolongar, significativamente, a fase noturna . Algumas imagens
enfatizam o caráter incipiente do período ("A noite é criança I O samba é
menino") em contraste com a idade avançada e já condenada do desprazer ("E
a dor é tão velha I Que pode morrer")_ Outras clamam pela prudência no sen-
tido de evitar a repentina mudança de ciclo ("Mas muito cuidado I Não vale
chorar"). Trata-se sempre de cultivar a duração e a espera, impedindo, assim,
os movimentos bruscos que caracterizam a velocidade da surpresa ("Luar
espere um pouco I Que é pra meu samba poder chegar"). Essa empresa poética
atinge o apogeu quando a cumplicidade com o tempo é revelada num nível
quase conceituai:

É um samba tão imenso


Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir. ..

12. A letra na íntegra: Não chore ainda não I Que cu tenho um violão I E nós vamos cantar I
Felicidade aqui pode passar e ouvir I E se ela for de samba I Há de querer ficar I Seu padre,
toca o sino I Que é pra todo mundo saber I Que a noite é criança I Que o samba é menino I
Que a dor é tão velha I Que pode morrer I O lê olé olé olá I Tem samba de sobra I Quem sabe
sambar I Que entre na roda I Que mostre o gingado I Mas muito cuidado I Não vale chorar I
Não chore ainda não I Que eu tenho uma razão I Pra você não chorar I Amiga me perdoa I Se
eu insisto à toa I Mas a vida é boa I Para quem cantar I Meu pinho toca forte I Que é pra todo
mundo acordar I Não fale da vida I Nem fale da morte I Tem dó da menina I Não deixa chorar
I Olé olê olê olá I Tem samba de sobra I Quem sabe sambar I Que entre na roda I Que mostre
o gingado I Mas muito cuidado I Não vale chorar I Não chore ainda não I Que eu tenho a
impressão I Que o samba vem aí I É um samba tão imenso I Que eu às vezes penso I Que o
próprio tempo I Vai parar pra ouvir I Luar espere wn pouco I Que é pro meu samba poder
chegar I Eu sei que o violão I Está fraco , está rouco I Mas a minha voz I Não cansou de
chamar I Olé olê olê olá I Tem samba de sobra I Ninguém quer sambar I Não há mais quem
cante I Nem há mais lugar I O sol chegou antes I Do samba chegar ( Quem passa nem liga I
Já vai trabalhar I E você, minha anriga I Já pode chorar.
Silêncio e luzes na apreensão estética - -- - - - - - - - - - - - - - 59

Ou, considerando que a noite constitui - e isso já pertence à tradição


temática da canção - uma parada da rotina imposta pelo cotidiano, o alvorecer
representaria necessariamente a parada da parada, 13 ou seja, a retomada da
continuidade diária e, ao mesmo tempo, a negação do período cuidadosamente
preservado pelo sujeito. Por isso, sem qualquer intenção de fazer trocadilhos,
podemos afirmar que, no trecho citado, o sujeito investe na continuação da
parada, no não ainda, tentando adiar, o máximo possível, a solução de
continuidade inscrita no já.
Entretanto, por mais que o sujeito invoque todas as suas resistências em
prolongar o tempo de espera do samba ("Eu sei que o violão I Está fraco está
rouco I Mas a minha voz I Não cansou de chamar"), a sucessão cíclica é
implacável e, no interior de seu universo afetivo, a chegada do dia é
suficientemente veloz para se antecipar ao samba e frustrar a espera tão
cultivada:

O sol chegou antes


Do samba chegar. ..

Não se trata apenas de constatar a inevitabilidade da ruptura - represen-


tada, aqui, pelo já ("Você minha amiga I Já pode chorar") - como destino
natural de qualquer duração, mas, sobretudo, de identificar as qualidades
afetivas normalmente impregnadas no andamento temporal. Em Olé, olá, a
precipitação da chegada do dia (antes do samba) traduz uma velocidade
indesejável para o sujeito que depositou todos os valores positivos na
desaceleração. Se retomarmos a letra de Foi um rio que passou em minha vida,
veremos que, ao contrário, o fato inesperado ("Quando alguém que não me
lembro anunciou: Portela, Portela!") vem libertar o sujeito de sua continuidade
massacrante ("Carregava uma tristeza/Não pensava em novo amor..."), e isso
equivale a dizer que os valores eufóricos foram, nesse caso, investidos na
aceleração.

Considerações finais

Nossa vida afetiva tem necessidade de formas descontínuas para produzir


as transformações súbitas de estado, sobretudo se este já decorre de longa e
excessiva duração. Do mesmo modo, quando em meio a mudanças desenfrea-

13. A parada da parada, como já tivemos ocasião de verificar, esclarece que a continuidade só
pode ser concebida como decorrência da própria descontinuidade, dado que nossas narrativas
ou histórias de vida dependem visceralmente dos episódios tensivos. A continuidade como
termo positivo, ou relaxamento absoluto, equivale à noção de morte.
60 _ _ _ _ _ _ _ ______ __ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

das, nosso desejo se volta para as formas contínuas e desaceleradas que nos
proporcionam um tempo de convívio com o objeto. Os discursos verbais e não-
/ verbais manifestam com clareza esse verdadeiro ritmo de nosso imaginário. A
espera e a surpresa valerianas, com suas numerosas modulações de velocidade
- que podem certamente ir bem além das tratadas aqui -, oferecem uma pos-
sibilidade concreta de elaboração sintáxica (leia-se um mínimo de relações de
determinação e de previsibilidade) dos campos afetivos, na medida em que
reintroduzem o tempo no coração da teoria, não somente como indagação filo-
sófica, mas, acima de tudo, como tensão que se acirra e se descontrai de acordo
com as variações de andamento. E o tempo é a medida do afeto.
Acelerando e desacelerando seu tempo interno, o homem "equilibra" seus
afetos e os projeta em discurso. Com os mesmos procedimentos, mas alimen-
tando mais um lado do que outro, o homem "desequilibra" seus afetos e
também os projeta em discurso. As artes são beneficiárias históricas dessas
duas tendências. Entretanto, como já vimos, tanto a aceleração como a desa-
celeração podem assumir um paroxismo tal que os objetos não mais "afetam"
o sujeito. É quando não há mais discurso. Apagam-se as luzes e reina o silêncio.
CAPÍTULO v

Questões do gosto no Banquete


de Mário de Andrade

O encontro casual das personagens Janjão e Pastor Fido, no segundo


capítulo do inacabado O Banquete de Mário de Andrade, dá origem a um
diálogo altamente revelador das contradições que formam o espírito crítico e
determinam, no final das contas, as opiniões e os julgamentos de obras de arte.
Janjão é um músico erudito que se perfila ao lado da arte revolucionária,
definindo-a a partir de critérios técnicos e individualistas, e que não faz
concessão ao "sentimentalismo" dos pseudo-artistas que produzem obras
"folclorizadas" ou nacionalistas para obter a adesão mais fácil do público.
Esses trabalhos, segundo o músico, acabam sendo encampados pela classe
dominante uma vez que não refletem a verdade sincera do artista. A formação
burguesa deste último, unida ao refinamento moral e intelectual próprio de uma
convivência íntima com a verdadeira arte, não pennitern seu engajamento com
o mundo proletário cujos principais valores são inatingíveis pelo
"aristocracismo espiritual". A revolução do artista deve ser portanto praticada
no domínio da técnica expressiva, uma vez que esta transcende qualquer
comprometimento com classes sociais e reúne os recursos que, de fato,
traduzem a contribuição individual dei autor, enfim, aquilo que só ele poderia
fazer.
Pastor Fido representa um jovem estudante, pleno de generosidade,
intelectualmente desprevenido, que se mostra sensível aos ideais nacionalistas
e às causas do povo. Reconhece Janjão como um grande compositor "nacio-
nalista" (termo imediatamente refutado pelo músico) de sua época e passa a
segui-lo, ouvindo atentamente suas opiniões sobre a arte e a função do artista
erudito. Não tendo onde e nem como almoçar naquele dia, Pastor Fido aceita o
convite de Janjão para participar do banquete oferecido por uma milionária cujo
principal intuito era justamente o de promover o encontro do músico (pelo qual
nutria indisfarçável interesse amoroso) com um político conhecido po r pa-
trocinar projetas artísticos.
62 Musicando a semiótica

A chegada das personagens à mansão da milionária constitui o ponto


central do qual faremos decorrer as principais reflexões deste trabalho.
Depois de traçar detalhadamente o perfil do "verdadeiro" músico erudito
como alguém comprometido com a constante renovação de sua técnica
expressiva, distante das concessões ao gosto médio do público (este sempre
afeito às padronizações acadêmicas e às mensagens populistas), Janjão sustenta
um diálogo totalmente inesperado com seu jovem interlocutor: "Que casa
linda!", exclama Pastor Fido ao dar de cara com o solar de inverno da protetora
do músico. "Esse monstro que você chamou de lindo é a residência da milionária
Sarah Light, minha amiga", completa Janjão. E quando o jovem manifesta sua
perplexidade ("E você chama de monstro essa casa!") diante de um julgamento
tão ácido e insólito, o compositor revolucionário ainda acrescenta: " Detesto a
arquitetura moderna. Isso nem tem jeito de casa!"1
Desconcertado com a flagrante incoerência do artista que não consegue
enxergar além de seu campo específico de atividade, Pastor Fido, que até então
parecia convencido dos argumentos ideológicos de Janjão, desenvolve um
discurso cético de alguém que acaba de desvendar as fraquezas do homem por
trás do rigor técnico e da conduta ética, afinal, não tão consistente:

Pois é: no entanto a sua música é a mais moderna possível porque


você busca o "fazer melhor", esquecendo que os passadistas
musicais também dizem que "isso nem tem jeito de música". Esses
desequilíbrios é que são desonestos em vocês, artistas. Ainda hei-de
escrever um panfleto botando isso no ridículo. Seres imperfeitos,
incompletos. Uns só entendem de pintura, nunca vão a um concerto;
outro é músico moderno mas detesta a arquitetura moderna. Se
esquecem, ignoram que só existe uma arte, é a Arte, de que as artes
não passam de processos de representação. Outros esquecem que a
época é uma só, revelada, explicada tanto pela música moderna
como pela arquitetura moderna. Vocês são uns desequilibrados!
Mais que isso, uns descalibrados, que por causa de não se tornarem
o Artista, mas pintores, literatos ou músicos são incapazes duma
atitude crítica única. Você em música me falará de dissonâncias, de
processos de instrumentação, de politonalismos, num exibicionismo
técnico legítimo, mas pra falar duma arquitetura, falará de
sensibilidade, romantismo, realismo, exibirá conhecimentos de
história, criticando os modernos por antitradicionais. Vocês não têm
calibre! 2

1. Cf. Andrade, Mário de. O banquete. São Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 69.
2. Jbid.
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade 63

O pronunciamento de Pastor Fido vale por si, pois contém os conceitos e as


definições necessários à sua boa compreensão. Para efeito deste trabalho,
entretanto, precisamos demonstrar o alcance semiótica de algumas de suas
proposições.

Critérios formais e critérios figurativos

Ao qualificar de "descalibrados" os artistas, na medida em que não


conseguem atingir um plano superior e homogéneo de reflexão sobre as
diversas áreas estéticas, o jovem estudante está chamando a atenção para o fato
de haver dois critérios distintos de avaliação cuja escolha atende apenas ao
interesse subjetivo daquele que profere o julgamento. No caso em pauta, Janjão
recorre a critérios formais ("exibicionismo técnico") para definir seu
engajamento musical e a critérios figurativos (ligados à tradição histórica) para
repudiar a arquitetura moderna. Tudo ocorre como se Janjão, diante da
arquitetura, se comportasse como um leigo diante da música: não possuindo
elementos para apreciar o avanço formal no plano da construção da obra,
limita-se a reivindicar as representações já cristalizadas no interior de sua
cultura ("Isso nem tem jeito de casa!").
Os critérios figurativos, de um ponto de vista semiótica, apóiam-se na
intersecção entre mundo natural e língua natural, mais precisamente na
correspondência entre o plano de expressão do primeiro e o plano de conteúdo
da segunda. A noção de "natural" justifica-se em razão da anterioridade deste
lugar teórico em relação a cada indivíduo. 3 Podemos dizer, em outras palavras,
que todos nascemos mergulhados num conjunto de qualidades (expressão do
mundo natural) suscetíveis de serem apreendidas pelos órgãos sensoriais e, ao
mesmo tempo, tais sentidos já se apresentam dotados de considerável grau de
ordenação cultural (representada no plano de conteúdo das línguas naturais).
Constituindo um universo de sentido comum a todos os membros de uma
comunidade que exercitam a mesma língua, essa área de conteúdo sustenta
todas as reconstruções figurativas produzidas nos discursos da mencionada
comunidade.
Assim, os critérios figurativos podem ser acionados por qualquer
participante da comunidade já que seu aprendizado é inerente e simultâneo à
própria introjeção dos valores culturais. De posse desses critérios, um critico de
arte, por exemplo, pode estabelecer ligações entre os efeitos de sentido gerados
por um detenninado trabalho artístico e seu ambiente de criação, considerando
desde suas bases populares ou elitistas até suas alusões ao contexto exterior
(outros textos, escolas estéticas, acontecimentos históricos etc.) ou mesmo às

3. Cf. Grcimas, A. J. c Courtés, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 291.


64 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

condições mercadológicas de produção. Os critérios formais, por sua vez,


dependem de instrução específica no âmbito de uma técnica de construção
semiótica, seja no terreno estético, seja nas operações gramaticais que
estruturam a língua natural.
Janjão, conhecedor da técnica expressiva musical, adota, como já
dissemos, critérios formais para instaurar seu "princípio de revolução"
constante nas artes. Despreza as atitudes "populistas" de artistas eruditos que
substituem as decisões formais por concessões figurativas - caracterizadas,
nessa época (décadas de 1930 e 40), pelo emprego, na música, de elementos
folclóricos. Entretanto, diante da arquiterura modema, cujas soluções técnicas
não fazem parte do seu repertório, o músico exige as aplicações tradicionais já
registradas em seu universo natural-cultural como traços de valor semântico
reconhecível.
Antes de surpreender a incoerência do amigo, Pastor Fido esteve prestes
a aceitar de bom grado toda a sua concepção teórica, ainda que se sentisse
incomodado com a idéia de um projeto de arte que excluía o povo de seus
objetivos. A defesa apaixonada que Janjão fazia de seus princípios foi
suficiente para sensibilizar o espírito idealista do jovem e envolvê-lo nas
malhas dos argumentos de maneira quase absoluta. Mais que o poder lógico-
persuasivo das palavras do músico, estava em jogo a força de atração estética
de um discurso que representava, com a máxima fidelidade, o perfil de seu
sujeito. Pastor Fido sentiu-se plenamente cativado por essa impressão de auten-
ticidade revolucionária e de integridade artística. É no interior desse quadro apa-
rentemente perfeito, constituído por elos contínuos entre sujeito e objeto -por
objeto entendemos o discurso de Janjão e, por sujeito, tanto a figura-ator do mú-
sico como do próprio jovem interlocutor- que desponta "a ruptura da isotopia
estética e o retomo à realidade" que, nas palavras de A. 1. Greimas, "se fazem
inevitavelmente como a passagem do reino da beleza à república do gosto".4
Pastor Fido desperta de seu sonho e acusa os "desequilíbrios" próprios dos artis-
tas tachando-os, significativamente, de "seres imperfeitos, incompletos".
Esta é a senha para convocarmos De l'imperfection, um dos trabalhos
decisivos de Greimas, como referência teórica às nossas considerações sobre o
gosto. Grosso modo, o autor define o momento de comoção estética como
fratura (ou escapatória) do cotidiano e superação efémera das distâncias e das
esperas que caracterizam nossa existência. Tudo ocorre como se nossas paixões
-"do corpo e da alma"5 -pudessem ser saciadas, por alguns instantes, em vir-
tude de uma comunhão plena com o objeto. Não havendo solução de conti-
nuidade entre sujeito e objeto, vive-se interinamente a estesia, cuja representação
sensorial mais expressiva é o toque, o apalpamento.

4. Cf. Greimas, A J. De l'impetfectíon, op. cit., p. 33.


5. Ibid., p. 92.
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade - - - - - - - - - - 65

Coalescência sensorial

Greímas propõe alguns critérios para a organização das ordens sensoriais


a partir, justamente, da distância que separa os actantes sujeito e objeto. Nesse
enfoque, a noção de profundidade corresponde a um grau elevado de
proximidade ou intimidade dessas funções. Quanto maior a distância actancial >
mais se manifestam as camadas superficiais dos sentidos. Nessas faixas operam
a audição e, sobretudo, a visualidade. Nos esÚatos profundos, o semioticista
situa, como já dissemos, o tato (aproximação máxima entre sujeito e objeto),
mas também o olfato que é o sentido da aspiração do perfume afetivo envolvido
no contato passional. Greimas mostra-se particularmente impré·s~ionado com a
significação do verbo "sentir" em francês que se estende da sensação olfativa até
a percepção geral das qualidades sensíveis do mundo. 6 E, o que ainda é.mais
importante, tanto o olfato como o tato são faculdades que provocam a inversão
merleau-pontiana das funções actanciais: absorvemos um perfume mas somos,
no mesmo ato, absorvidos por ele; não sabemos ao certo a quem atribuir as
propriedades ativas ou passivas, uma vez que o sujeito da absorção é, ao mesmo
tempo, o objeto da paixão. No que se refere ao tato, a fenomenologia já enfatizou
bastante a reflexibilidade do processo: entrar em contato físico com as coisas (ou
pessoas) do mundo significa "tocar" e, simultaneamente, "ser tocado" por elas.7
Ao relacionar "concretização da estesia" com a possibilidade de "sincre-
tismo" dos actantes sujeito e objeto ("uma fusão momentânea do homem e do
mundo"), Greímas está chamando a atenção para as situações que indicam
desestabilização das propriedades funcionais das entidades narrativas. Uma
inversão de traços actanciais que, como já descrevemos, atribui características
ativas ao objeto e características passivas ao sujeito, sem que, no entanto, os
atores percam totalmente suas funções originiüs, pode significar prenúncio de
suspensão das oposições categoriais e, conseqüentemente, de trânsito contínuo
das modulações sensíveis que singularizam a apreensão estética. Na medida em
que favorecem essa diluição actancial no plano narrativo e expressam, figu-
rativamente, a junção plena, o o lfato e o tato pertencem, repetimos, às ordens
sensoriais mais profundas.
O gosto, por sua vez, exige alguns recursos especiais de abordagem.
Embora, como diz Greímas, "a conjunção gustativa se situe no interior mesmo
do corpo", "na intimidade da boca", não podemos falar, como nos sentidos vistos

6. Cf. "Sobre as paixões: notas manuscritas de A. J. Greimas". ln: Oliveira, A. C. e Landowski,


E. (eds.). Do inteligível ao sensível, São Paulo, Educ, 1995, p. 134. Em De l'imperfection,
Grcimas declara categoricamente que " O perf ume é um sentido <<profundo>>, e a
comunicação com o sagrado- <<o aroma da santidade>>, mas também o fedor que revela a
presença do diabo- passa antes pelo canal olfativo", p. 74.
7. Tema já tratado no Capítulo II.
66 Musicando a semiótica

acima, de alteração actancial: o sujeito mantém pleno controle do objeto,


determinando o tempo de degustação e, normalmente, satisfazendo-se com um
contato efêmero e superficial. Sente-se o sabor e o alimento "desliza pela
garganta". 8
O semioticista deixa entender que há uma certa adequação entre essa
ligeireza - preservando aqui tanto o sentido de rapidez como o de leviandade
-do contato saboroso e sua "tendência a se generalizar e a se intelectualizar".
Afinal, trata-se do canal sensorial histórica e culturalmente identificado com o
"conjunto do inventário das abordagens do mundo": "ter sabor" (sapere)
tomou-se "saber". É a ligeireza do contato que permite a alta rotatividade dos
sabores e sua generalização no plano cognitivo.9
O gosto metaforiza, em outras palavras, a passagem - um tanto quanto
brusca- do sensível ao inteligível. A experiência com o plano sensível poderia
ser prolongada e vivida em sua plenitude, caso a sensação gustativa entrasse,
segundo Greimas, em "coalescência" com outras esferas do sentido.
Interagindo com o tato, como nos casos da amamentação ou do beijo, por
exemplo, o gosto amplia e enriquece significativamente seu estágio no campo
sensível, uma vez que participa das oscilações actanciais do sujeito e do objeto
e, portanto, do estabelecimento de um "novo estado de coisas". lO Poderíamos
acrescentar ainda que sem a presença simultânea do aroma, que envolve e
estende a sensação do gosto tanto de um ponto de vista temporal -já que
antecede, sucede e intensifica a experiência com o sabor em si - como de um
ponto de vista espacial- pois engloba e propaga os efeitos gustativos -, o
paladar estaria reduzido a um lapso de tempo desprezível. E nesse caso, quase
sem duração, não poderíamos esperar grandes mudanças nas relações entre
sujeito e objeto.
A coalescência das sensações, ao alargar o domínio do gosto no tempo e
no espaço, concorre vivamente para a construção daquilo que a semiótica
/ chama de figuratividade 11 e, como tal, deve ser abordada no regime do parecer.
É por meio dessa tela figurativa que o sujeito entrevê os aspectos da imanência
do ser suficientes para lhe despertar a esperança (ou nostalgia) de uma "vi da
verdadeira" de integração plena com o valor do objeto, mas também pressente,
por força do parecer, uma condição de incompletude. Daí decorre, no nosso

8. Greimas, A. J., op. cit., p. 74.


9. lbid.
10. lbid., p. 76.
11. As abordagens contemporâneas da noção deflguratividade concebem-na não apenas como a
responsável pela atividadc de referenciahzação do discurso rnas, sobretudo, como uma
dimensão que participa de todas as etapas do percurso gerativo, desde os esquemas
conceptuais mais abstratos (cf. a geometria do quadrado semiótica) até os investimentos
semânticos de superficie.
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade _ _ _ _ _ _ _ __ 67

entender, a formulação feliz de Greimas que considera, ao lado do "sabor de


eternidade", o "ressaibo da imperfeição".12

Imperfeição e estética

O trecho selecionado de Mário de Andrade retrata, de maneira expositiva,


a tomada de consciência da imperfeição e seu sentido de barragem ao fluxo
verbal que se vinha constituindo até então - na explanação do músico erudito -
como um processo extremamente refinado de ressemantização dos valores do
mundo. De fato, o discurso de Janjão, valorizado pela chancela enunciativa da
personagem, provocava a adesão quase incondicional de Pastor Fido quando,
por um desvio involuntário de rota, revela sua fragilidade argumentativa e
desfaz, assim, a credibilidade conquistada.
Tomar consciência da imperfeição significa o reconhecimento de uma
incompletude mas, ao mesmo tempo, a revelação de que existe uma expectativa
de perfeição no que diz respeito ao estado juntivo do ser. Em outras palavras,
o pronunciamento de Pastor Fido deixa entender que, em alguma instância,
haveria o "Artista" pleno, capaz de conjugar critérios formais e figurativos num
discurso verdadeiramente calibrado e que esses artistas perfeitos não seriam
representantes desta ou daquela modalidade artística, mas estariam, isto sim,
em conjunção total com a Arte, no sentido mais elevado do termo. Por causa
desta hipótese, o jovem estudante experimenta, num primeiro momento,
enorme fascínio diante de um objeto que comporta, indistintamente, o
enunciador ("Janjão") e o enunciado ("discurso de Janjão"); ele próprio, o ator
Pastor Fido, acumula funções ativas e passivas ao demonstrar forte adesão aos
princípios formulados pelo músico. Num segundo momento, porém, tudo
ocorre como se a personagem dissesse: "ainda não foi dessa vez". Embora
mantenha em seu horizonte o "sabor de eternidade", o que experimenta, neste
momento de volta ao cotidiano mais banal, é o "ressaibo da imperfeição".
De acordo com o modelo espaço-temporal proposto no texto de Greimas,
os graus de imperfeição podem ser aferidos pelo aumento de distância entre
sujeito e objeto e, conseqüentemente, pela intensificação do estado de espera.
Essa espécie de "visualidade imperfeita" provocada pelo afastamento dos
actantes constitui, para o semioticista, "a forma distanciada do toque" que,
como sempre, representa a experiência sensorial mais plena.13
Tais aquisições teóricas não são desprezíveis se considerarmos que trazem
um princípio comum para o exame, de um lado, das paixões do corpo e da alma
e, de outro, da comoção estética. O sujeito sofre porque tem esperança. Ele

12. Op. cit., p. 73.


13. Jbid., p. 92.
- - - - - -- - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiólica

convive com a imperfeição porque esta lhe sugere índices do que seria sua
própria superação. Se a tensão passional aumenta com a distância e com a
espera, ela se desfaz com a proximidade e com o encontro por mais efêmeros que
sejam. Afinal, tudo que sabemos sobre a eternidade concentra-se, parado-
xalmente, nesses breves e raros momentos, proporcionados pela estesia, de
neutralização das funções de sujeito e objeto. E a vida vale, em grande parte,
pela espera desses instantes que, quase sempre, sobrevêm de modo inesperado.
Pode-se compreender, assim, a formulação greimasiana "espera do inesperado"
como a inserção do homem no universo da figuratividade, onde a imperfeição
esconde e, ao mesmo tempo, deixa entrever - o suficiente para despertar o
desejo - a instância do ser.
A opinião de Janjão sobre arquitetura suspendeu abruptamente o processo
de adesão de Pastor Fido e provocou, por conseguinte, uma descontinuidade
actancial entre as personagens. De simples destinatário cativo, o estudante
passa a destinador julgador, dispondo de distância crítica suficiente para poder
emitir um juízo lúcido e severo sobre o pensamento artístico de Janjão. Nessa
condição, o jovem demonstra que o compositor tem dificuldade em enxergar
com clareza não apenas outros domínios artísticos, como a arquitetura, por
exemplo, mas também- e aí está o problema maior - o seu próprio campo de
atividade. Se, de um lado, não pode se aproximar da linguagem arquitetônica
por falta de recursos técnicos, de outro, mantém-se afastado afetivamente da
linguagem musical por excesso desses mesmos recursos. Para além das
palavras de Pastor Fido, podemos ainda dizer que Janjão não reúne as
condições minímas para remover as barreiras que o afastam da Arte (no sentido
empregado pelo estudante): deixa de saborear a arquitetura moderna porque a
vê como anti-objeto- ou abjeto -,desligado de sua cultura, e isso não o motiva
a ultrapassar a superficialidade do contato visual; 14 deixa de saborear igual-
mente a música modema porque só admite um contato intelectivo com as obras,
calcado na consciência da técnica expressiva revolucionária.
Preocupado em caracterizar a função da arte em sua época (como a de
"remediar uma das faltas de perfeição da vida humana"), Janjão acredita que o
"fazer melhor" dentro da técnica expressiva musical corresponde à "certeza" e
à "verdade" em arte, de tal maneira que somente a produção incessante de
novas obras, que aprimorem as anteriores, poderia atenuar a imperfeição
inerente à estética: "fazer outra arte é a única receita para a doença estética da
imperfeição". 15

14. A impressão positiva que a mansão de Sarah Light causa em Pastor Fído, que exibe o mesmo
despreparo técnico de Janjão em matéria de arquitetura, demonstra que é possível uma
aproximação exclusivamente sensível do objeto.
15. Cf. Andrade, M. de, op. cit., p. 60.
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade 69

A formulação de Janjão incorpora a noção de incompletude, quase sempre


adotada com simpatia pelas tendências estéticas modernas. Tanto assim que
envolveu facilmente o espírito disponível e despre:venido do jovem estudante.
Entretanto, no que diz respeito ao sentido de "imperfeição" - que abrange e
ultrapassa o de incompletude - certamente os dois amigos jamais se enten-
deriam. Para Janjão, a imperfeição deve ser negada a cada nova obra (em virtude
do "fazer melhor" do artista) já que a perfeição, apesar de inatingível em sua
plenitude, constitui uma meta de criação. Do ponto de vista de Pastor Fido, a
imperfeição deve ser preservada uma vez que a personagem depende de suas
distorções para focalizar de quando em quando as formas da perfeição. Por viver
assim, no nível do parecer, o estudante encanta-se com a arquitetura modema do
mesmo modo que se encanta com o músico erudito e suas idéias. Desempenha o
papel de quem saboreia as mensagens - pondo em prática a coalescência das
sensações - antes de intelectualizá-las. Ao lado deste sabor de eternidade,
porém, permanece o ressaibo da imperfeição que lhe pennite identificar a uni-
dade do ser como um fragmento que interrompe interinamente a ordem do pare-
cer. Enfim, tudo ocorre como se Pastor Fido experimentasse uma integração
plena com o objeto, despindo-se das funções ativas, mas retomasse, em seguida,
sua condição de sujeito em busca dos valores na vida cotidiana.
Janjão, ao negar sistematicamente a imperfeição, nega a própria figura-
ti vidade e a própria existência do nível do parecer. Tudo isso em nome de uma
conduta coerente em relação à verdadeira arte que se define pela constante
revolução da técnica expressiva. Nesse sentido, o músico crê estar operando
(como se fosse possível) direta e exclusivamente no nível do ser. Daí sua
incapacidade de enxergar a própria limitação (ou imperfeição) quando depara
com outra linguagem artística.

Ordem do parecer e ordem do ser

Na verdade, por uma inversão perversa dos valores, provocada talvez por
sua rigidez ética, Janjão vem, ao que tudo indica, se distanciando cada vez mais
de seu objeto geral (a arte) e de seu objeto específico (a música), justamente
por não mais contatá-los no nível do ser. De fato , em ambos os casos, o conhe-
cimento técnico se interpõe- por insuficiência ou por excesso- entre sujeito e
objeto dificultando, ou impossibilitando, toda relação que não se processe no
nível do saber. Assim, Janjão rejeita a arquitetura modema porque não se per-
mite apreciá-la diretamente - já que desconhece sua fonna expressiva - por meio
dos órgãos sensoriais; do mesmo modo, o músico só identifica como obra de arte
as criações musicais que promovem transformações na técnica de composição e,
com isso, despreza a fruição popular cujo alcance, segundo o artista, não
70 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

ultrapassa os limites do folclore. Pensando poder equacionar a estes ia num plano


cognitivo e exercer seu controle sobre o progresso artístico, Janjão elimina a
possibilidade de a obra engrandecer em força expressiva a ponto de surpreendê-
lo em suas convicções. O objeto artístico é abordado, assim, como um alimento
que contém todas as propriedades para uma boa dieta de nutrição mas que
dispensa a participação de nossas faculdades táteis e olfativas. Não é preciso
saboreá-lo, basta ingeri-lo.
Tal distanciamento do objeto constitui o que há de ordinário em nosso
cotidiano e nos faz reconhecê-lo como imperfeito. No caso de Janjão, porém,
essa condição se transfigura: vivendo de fato na ordem do parecer mas acre-
ditando que exerce uma atividade essencial na ordem do ser, o sujeito troca
definitivamente o plano do sabor pelo plano do saber, e acaba se submetendo a
um verdadeiro processo de insensibilização no que se refere ao contato
emocional com a obra de arte. A preservação obsessiva das funções ativas de
sujeito (o constante "fazer melhor"), no limite, impede a personagem de
"sentir" ou de "ser tocada" pelo objeto. No caso em pauta, Janjão recalca a
comoção estética no sentido que ela tem de proporcionar, por um certo tempo,
a conjunção total do sujeito com o objeto. Conseqüentemente, programa sua
vida de artista como uma espera do esperado (revolução da técnica expressiva),
na qual não há lugar para fraturas imprevisíveis. Sem consciência de sua
condição real de imperfeição, o compositor mantém-se afastado do valor estético
do objeto -na medida em que não se permite uma aproximação sensorial - a
ponto de eliminar de seu horizonte a esperança de um encontro extraordinário
com algo mais intenso que sua capacidade de controle e previsão técnica. Janjão
elimina a espera do inesperado e com ela a própria oportunidade de se valer da
imperfeição cotidiana para vislumbrar alguns sinais de plenitude.
Janjão é uma personagem angustiada, insatisfeita, mas convicta de sua
trajetória artística. Pela insatisfação, manifesta sua convivência inevitável com
a impetfeição. Pela convicção, manifesta a cristalização de seu gosto artístico
no nível do saber, o que vai restringi-lo a dois tipos de relação com o objeto
estético: 1) relação de controle geral do objeto, de modo que a continuidade
estabelecida apresenta uma só orientação, ou seja, o sujeito ativo dominando o
objeto passivo; este é o vínculo do compositor com sua própria produção; e 2)
relação de defesa contra o objeto que não se atém aos limites cognitivos propos-
tos. Neste último caso, ternos uma relação abjetal, representada pela descon-
tinuidade entre os actantes, que define, como já vimos, a experiência de Janjão
com a arquitetura modema ou mesmo com a música folclorizada e populista.
Falta a Janjão uma relação de continuidade com o objeto que permita a
atuação deste último para além de suas potencialidades previsíveis ou, em
outras palavras, para além do controle do sujeito. Não conseguindo experimentar
de fato o sabor da obra por intermédio de seus componentes ativos que produzem
o estímulo estético - o estado mais próximo da perfeição - o músico perde o
Questões do gosto no Banquete de Mário de Andrade - - - - - - - - - - 71

discernimento e não reconhece que convive com a imperfeição e que depende


dela, como fator constante, para poder entrever, de quando em quando, e por
breves períodos, os contornos da perfeição.
Por isso, Pastor Fido é quem detecta a imperfeição. Ele opera tanto no
nível intelectivo como no nível sensível. Sente-se imediatamente envolvido
pelo poder estetizante da arquitetura moderna embora não detenha qualquer
conhecimento técnico sobre sua linguagem. Ao mesmo tempo, diante da reação
do músico contra o projeto arquitetônico do solar da milionária, o estudante
depreende, no ato, as dificuldades de contato direto do compositor com seus
objetos. Aquilo que Janjão concebe como saber está distante do que ele sente
- já que não se pode compreender o homem sem um plano sensível - como
sabor, e daí decorre a falta de calibre dos critérios formais em relação aos crité-
rios figurativos: a exibição de uma pletora de idéias sobre arte pelo músico é a
tentativa de compensar um distanciamento afetivo cada vez mais acentuado entre
sujeito criador e obra produzida.
Tudo ocorre como se Janjão não se proporcionasse um tempo suficiente
de convívio com a obra para provocar a coalescêucia das sensações e, conse-
qüentemente, a ancoragem do gosto no plano sensível. Ao promover imedia-
tamente a intelectualização da estes ia, o compositor subtrai etapas que poderiam
modular sua apreciação critica e afastá-la dos extremos maniqueístas. Com a
ausência de duração no domínio do ser, só lhe resta, então, a superabundância
das demarcações próprias do plano cognitivo.

Conclusão

Recobramos, assim, a isotopia do gosto. Entre o sabor de eternidade e o


ressaibo da imperfeição oscilam nossa sensibilidade estética e nossa capacidade
crítica. Na passagem do sabor ao saber residem todos os equívocos referentes a
critérios de apreciação da obra de arte ou da mais simples sensação estética.
Talvez isso se deva, como já frisamos, à tendência do gosto " a se generalizar e
se intelectualizar" ou, avançando um pouco nessas indagações, à rapidez com
que se presta a converter os dados sensíveis em dados inteligíveis. Por breve que
seja a duração da "eternidade", seu poder transformador - já que conduz o
sujeito a um outro estado de coisas e de espírito- é tão intenso que se propaga
por outras instâncias da vida do homem afetando diretamente sua atividade
cognitiva. Nesse sentido, o sabor é, a um só tempo, intenso e extenso: impre-
visível ao atingir o sujeito no plano do ser e inesquecível ao se transformar em
juízo crítico. De outra parte, por fastidioso que pareça nosso convívio prolon-
gado com a imperfeição, é dele que brota o des,~jo (ou mesmo o dever) de
72
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ Musicando a semiótica

transcendência e de superação da falta de sentido que caracteriza nosso


cotidiano. E é a viabilidade de um poder ser que toma o parecer suportáve1.16
Sem percorrer os caminhos que levam do parecer ao ser- e vice-versa - e
sem poder desfrutar a coalescência sensorial que aparelha o gosto com pro-
ximidade e duração, as apreciações estéticas reduzem-se, geralmente, a progra-
mas de conduta que expressam um gosto a distância, ou seja, opiniões pessoais
mediadas por um saber que se alimenta de incontáveis explicações e justi-
ficativas e faz perpetuar - por sublimação do ser - o ressaibo da imperfeição.

16. Cf. Greimas, A. J., op. cil., p. 9.


CAPÍTULO VI

Semiótica, enunciação e polifonia

Quando F. Saussure atribuiu à linguagem (língua e fala) um caráter, a um


só tempo, "multiforme" e "heteróclito", certamente não poderia imaginar que,
quase um século depois, sua formulação encontraria uma ressonância sem
precedentes -mas, provavelmente, menor do que ainda terá no futuro- expressa
na pluralidade de linhas de pesquisa dedicadas não apenas aos tradicionais
estudos fonológicos, morfológicos e frasais mas, sobretudo, ao domínio do
discurso e dos processos enunciativos. Mesmo que algumas linhas devam pouco
à herança saussuriana, não há como negar que a pertinência de tantos enfoques
sobre o mesmo objeto lato sensu, a linguagem, só vem confirmar os traços de
complexidade que o lingüista suíço atribuiu a seu tema.
Na realidade, apenas uma das diversas teorias que hoje se dedicam à
abordagem do discurso e do texto pode ser considerada inteiramente
comprometida com os princípios do pensamento saussuriano. Trata-se da
semiótica, já definida como Escola de Paris, I que, embora tenha bebido em
fontes antropológicas (Cl. Lévi-Strauss, V. Propp) e fenomenológicas (M.
Merleau-Ponty), jamais deixou de reconhecer sua dívida principal com o projeto
científico globalizado de L. Hjelmslev, erigido, por sua vez, sob a metodologia
da lingüística de Saussure. As incursões pioneiras de teóricos também
vinculados à lingüística estrutural, como R. Jakobson e E. Benveniste, nos
estudos enunciativos e as análises narrativas e discursivas reconhecidamente
originais de nomes como R. Barthes, T. Todorov, G. Genette ou J. Kristeva,
todos tributários de algum modo a Saussure, abriram, sem dúvida, muitas frentes
de pesquisa no domínio do discurso, mas não se pode dizer que tenham criado
as condições epistemológicas e metodológicas para a construção de uma
verdadeira teoria do discurso, em que a recuperaçiio coerente e progressiva da

1. Cf. Coquet, J. C. Sémiotique- École de Paris. Paris, Hachette, 1982.


74 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

competência do sujeito de enunciação correspondesse ao próprio desvendamento


do sentido.
Evidente que pensamos tal teoria no quadro de uma formalização que
ofereça subsídios pouco mais científicos à abordagem interpretativa. A
possibilidade de categorização, ainda que parcial, das línguas naturais, dentro da
concepção de que "língua é forma e não substância", restringiu, durante muito
tempo, o campo da pesquisa européia às unidades fonológicas e morfológicas,
traçando como limite máximo de pertinência lingüística o nível da frase. Esse
estágio foi registrado por Benveniste em célebre artigo de 1962 que considerava
a passagem do nível frasal ao nível discursivo como correlata à passagem da
língua como sistema de significação ao uso lingüístico como processo de
comunicação.2
Orientando-se por uma tradição totalmente diversa - embora sempre no
interior da episteme estruturalista-, onde contrastavam abordagens "puramente"
lingüísticas (L. Bloomfield) com tendências antropológicas e interdisciplinares
(E. Sapir), a lingüística norte-americana deste século também cultivou uma forte
expectativa de formalização, realizada, em grande medida, nos modelos
gramaticais construídos por N. Chomsky e seus continuadores. Nesse caso, mais
que limite para a investigação lingüística, o nível da frase passou a ser a
dimensão privilegiada para a implantação de uma sintaxe gerativa e
transformacional que pudesse responder pelas condições formais de produção do
som e do sentido.

Teorias do texto e do discurso

Quase todas as teorias de análise dos textos e dos discursos surgiram,


evidentemente, de uma descrença dos métodos de formalização quando se trata
de investigar o sentido engendrado no interior das atividades discursivas. De
fato, as leis sintáticas que regem a dimensão frástica reduzem-se a funções
meramente localizadas toda vez que o enfoque se desloca para o âmbito da
mensagem global do texto. A relevância dos aspectos semânticos, a
intencionalidade do sujeito, os conteúdos implícitos, os acordos e desacordos
entre enunciadores, essas e outras questões colaboram no sentido de restringir
ainda mais a importância dos elementos puramente sintáticos, mesmo no nível
dos pequenos enunciados.
Estabelecendo a oposição entre frase e enunciado e acrescentando às
formalizações propostas para a primeira uma dimensão teórica comprometida
especialmente com o sentido produzido pelo segundo, os pesquisadores dos

2. Cf. Benveniste, E. "Os níveis da análise lingülstica", Problemas de lingüística geral. Cia.
Editora Nacional e Edusp, 1976, p. 127-40.
Semiótica, enunciação e polifonia 75

discursos e dos textos fundaram princípios e métodos que, no nosso entender,


oscilam entre dois enfoques interdependentes. De um lado, os lingüistas buscam
elementos para a abordagem dos fenômenos de interdiscursividade,
intertextualidade, heterogeneidade discursiva ou, ainda, de poli fonia. De outro,
não podem deixar de preocupar-se também com os fatores de coesão e de
coerência discursiva e textual. No primeiro caso, a adoção progressiva de uma ,
interdisciplinaridade - que vai da sociologia à psicanálise, passando por
domínios da ftlosofia e da inteligência artificial - acaba, por vezes, conduzindo
a pesquisa para fora da órbita propriamente lingüística, de modo que o texto
toma-se apenas pretexto para uma verdadeira compulsão interpretativa. No
segundo caso, a concentração excessiva sobre os fenômenos que garantem a
coerência do discurso - as anáforas, os conectores de frases , os dêiticos, as
pressuposições, as tematizações , as modalizações , os marcadores
conversacionais etc. -muitas vezes caminha para uma gramaticalização do texto,
com regras de reconhecimento e aceitabilidade completamente inadequadas a
essa dimensão de análise.
Atentos, geralmente, a essas polarizações, os teóricos do discurso que
endereçam seu gesto inicial para a poli fonia e a interdisciplinaridade, como O.
Ducrot e D. Maingueneau, por exemplo, acabam dedicando as fases
intermediárias da pesquisa à busca de coerência lingüística. Em contrapartida, os
teóricos de tradição chomskiana, como Ch. J. Fillmore e T. A. Van Dijk, por
exemplo, que partem da necessidade de constituir uma gramática de geração
textual, se vêem às voltas com a amplitude das situações comunicativas e
terminam por criar uma instância de interpretação pragmática, levando em conta
interação, crenças, desejos, preferências e valores em geral dos enunciadores.

A abordagem semiótica

A semiótica, por sua vez, vem progredindo no sentido de criar condições


teóricas para abordar os fenômenos polifônicos e interdiscursivos - con-
siderados todos como fenômenos de enunciação - sob a égide da coerência
sintáxica fornecida pelas estruturas sêmio-narrativas, as mesmas que dão conta
da organização do enunciado.
Em artigo publicado apenas no Brasil, no primeiro número da revista
Significação, Greimas traça as principais diretrizes epistemológicas para uma
abordagem formal da enunciação) Preocupado com a possibilidade de -
reinstauração de um sujeito ontológico na instância enunciativa, o semioticista

3. Cf. Greimas, A. J. "L'Énonciation" , Significação. Ribeirão Preto, Centro de Estudos


Semióticos, 1974, n• 1, p. 9-25.
76 · -- - - - - - M usicando a semiótica

insiste no princípio de reconstrução desta instância única e exclusivamente pelo


que é dito ou extraído por pressuposição lógica do texto. Trata-se, nesse sentido,
de descrever além do próprio enunciado, a enunciação enunciada. Para o autor,
tudo deve se fundamentar no texto e, fora dele, "não há salvação". Isso diz
respeito a qualquer enfoque que pretenda abordar cientificamente a questão
enunciativa.
A semiótica desenvolveu esses postulados de Greimas esclarecendo, cada
vez mais, a diferença entre enunciação pressuposta, aquela que subjaz
necessariamente ao texto independentemente de marcas indicativas, e
enunciação enunciada, que corresponde a uma espécie de simulacro da
enunciação no interior do texto.4 Entre os dois tipos de enunciação temos uma
relação metafórica, na medida em que há uma pretensa similaridade entre eles.
• Tal similaridade, entretanto, jamais poderá ser comprovada pois só sabemos do
/ primeiro tipo pelo segundo. Mas quando consideramos a enunciação enunciada
como uma "subclasse de enunciados" ao lado dos demais, recuperamos a mesma
relação metonímica que faz de todo enunciado um componente da enunciação.
Assim, as marcas enunciativas, que funcionam como manifestação da
metalinguagem descritiva no texto, somadas a todos os outros enunciados desse
mesmo texto representam a vasta competência enunciativa do sujeito discursivo.
Tal competência enunciativa lato sensu pode ser desmembrada em
competências pa1iiculares. Regendo seus enunciados gerais, a enunciação
atualiza todas as etapas do percurso gerativo, desde as estruturas sêmio-
narrativas ·e as estruturas discursivas (onde as operações narrativas são
processual izadas no tempo e no espaço) até as estruturas textuais (onde, em
contato com o plano da expressão, os discursos tomam uma configuração
substancial: linearidade, planaridade, bidimensionalidade etc.).S Portanto, a
enunciação atualiza, pelo menos, essas três competências - narrativa, discursiva
e textual - na produção de seus enunciados. Ampliando este modelo, M .
Hammad analisou a presença da enunciação enunciada, na forma da
permanência de um contrato eu-tu, ao lado dos enunciados, nas três etapas do
percurso gerativo canônico.6
Todos esses progressos (e outros não mencionados) podem ser vistos como
decorrência da partição proposta por Benveniste para a categoria "pessoa" em
termo marcado pela subjetividade (eu-tu) e termo não marcado (ele). Ao
primeiro, a semiótica fez corresponder a noção de enunciação enunciada. Ao
segundo, simplesmente, enunciado. Quando o enunciador projeta no texto um
narrador que fala em primeira pessoa (virtualizando, portanto, um narratário em

4. Cf. Greirnas,. A. J. e Courtés, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 147-8.


S. Ibid., p. 147.
6. Hammad, M. "L' énonciation: procés et systeme", Langages, 70, p. 35-46.
Semiótica, enunciação e polifonia - - - - - -- - -- - - - - - - - 77

segunda pessoa), instruindo de maneira privilegiada a enunciação enunciada,


temos um caso de debreagem enunciativa. Esse processo é enriquecido,
geralmente, com as projeções simultâneas das categorias do tempo e do espaço
em suas formas também presentificadas: agora e aqui, respectivamente. Quando
o enunciador relata o texto em terceira pessoa, tentando substituir a subjetividade
da enunciação pela objetividade do enunciado, a interlocução é anulada e temos
o procedimento da debreagem enunciva.
Seguindo a mesma orientação, as projeções de tempo e espaço também
produzem um desengate da instância enunciativa, configurando-se num então e
nun1 alhures próprios do enunciado. Alternando debreagens enunciativas e
debreagens enuncivas, o enunciador promove em seu texto efeitos de "verdade",
responsáveis, em grande medida, por sua eficácia. As debreagens de primeiro
grau (nanador/narratário), de segundo (interlocutor!interlocutário) e -assim
sucessivamente produzem a impressão de situação locuti va real (caso dos
diálogos internos ao discurso). As debreagens enuncívas, restaurando um relato -
no interior do diálogo, referencializam tal diálogo.7
Depois desses estudos concernentes ao plano discursivo de superfície, a
semiótica deu um novo estatuto à relação enunciador/enunciatário, integrando-a
como parte do modelo narratológico geral. Se a enunciação pode ser considerada
um ato como outro qualquer, em que há produção e comunicação do objeto
" discurso",8 enunciador e enunciatário reproduzem a relação destinador/
destinatário que, no esquema narrativo canónico, define a fase p·ersuasivo-
manipulatória anterior à ação propriamente dita. Com este gesto, além da
semiotização de um conceito tradicionalmente refratário à formalização, os
pesquisadores puderam definir os papéis actanciais dos dois sujeitos enuncia-
tivos (sujeito da persuasão e sujeito da interpretação) e, principalmente, a
natureza discursiva do /fazer/ do enunciador-destinador (tàzer persuasivo).
Conseqüentemente, o enunciatário-destinatário, exercendo seu /fazer/ inter-
pretativo, poderá aceitar ou rejeitar a relação persuasivo-manipulatória, desen-
cadeando ou não outros fazeres e outros discursos.9

Persuasão, argumentação e polifonia

Para que a persuasão e a manipulação se efetivem, um primeiro contrato, de


natureza fiduciária, deve ser firrrÍado entre destinador e destinatário no sentido

7. Greimas, A. J. e Courtés, J., op. cit., p. 96.


8. Cf. Landowski, E. "Simulacres en consmJction", Langages, op. cil., p. 78.
9. Cf. Barros, D. L. P. Teoria do discurso - fimdamentos semióticos. São Paulo, Atual, 1988, p.
92-3.
78 _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

de entrarem em acordo quanto aos valores que serão trocados ou comunicados.


Embora tal contrato seja, em geral, estabelecido em simultaneidade com a
comunicação entre os actantes, seu estatuto de pressuposto lógico é inegável.
O estudo dessa fase de persuasão e de cultivo da relação de confiança tem
chamado a atenção da semiótica para os mecanismos de argumentação
formulados por filósofos ou lingüistas em suas pesquisas paralelas. É o caso, por
exemplo, de O. Ducrot, M. Pêcheux, D. Maingueneau e J. Searle, entre outros,
que, embora abordem questões de natureza bem diversa da semiótica, incidem,
de algum modo, sobre o tema do acordo entre enunciador e enunciatário em
relação aos seus valores, sobre as transformações de opinião e sobre a
assimilação do novo no quadro do já conhecido e acreditado (o
reconhecimento). lO
De acordo com a metodologia de Ducrot, a frase é apenas uma entidade
teórica responsável pela significação mas pouco relacionada com o sentido do
discurso. Este pertence à esfera do enunciado, que traz consigo todas as
qualificações necessárias para se estabelecerem os elos de continuidade entre os
demais enunciados de um discurso. Cabe à "pragmática semàntica", portanto,
dar conta desses enunciados produzidos pela fala, identificando aí as vozes de
enunciadores que correspondem aos diversos pontos de vista veiculados por uma
locução.
Para explicar sua concepção de polifonia do discurso, Ducrot utiliza-se de
um modelo teatral. Associa, primeiramente, o autor (ou narrador) da peça à
noção de "locutor" do enunciado. Em seguida, identifica as personagens e as
vozes que integram o espetáculo com os enunciadores cujos diferentes enfoques
respondem pela heterogeneidade da enunciação. 11
Mesmo mantendo suas pesquisas num terreno eminentemente lingüístico,
Ducrot não deixa de convocar a força precursora de M. Bakhtin que sempre
chamou a atenção dos estruturalistas e formalistas para a "presença do outro" nos
discursos aparentemente atribuídos a um só sujeito. A enunciação em Bakhtin
sempre teve um caráter dialógico em que as vozes- a polifonia- aparecem como
verdadeiras máscaras carnavalescas a serem desvendadas pelo processo
descritivo.
M. Pêcheux, por sua vez, considera uma inevitável "tensão entre descrição
e interpretação no interior da análise do discurso,l2 uma vez que o sentido
pressupõe uma estrutura lingüística de apoio mas só se define, de fato, no âmbito
do confronto entre as formações ideológicas de seus locutores. A influência de
L. Althusser eM. Foucault na teoria de Pêcheux. revela-se determinante quando

10. Jbid., j). 112.


11. Ducrot, O. O dizer e o dito. Campinas, Pontes, 1987, p. 161-218.
12. Cf. Pêchcux, M. O discurso - estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1990, p. 19.
Semiótica, enunciação e polifonia - - - - - - - - - - - - - - - - - 79

este autor reconhece o sujeito como um produto da formação discursiva e


ideológica da qual se julga produtor. A própria tentativa de fazer do discurso um •
espaço monofônico já constitui, em sua visão de origem marxista, um sintoma
ideológico de camuflagem inconsciente da própria formação discursiva. Todo
sujeito, em princípio, pretende exercitar sua liberdade enunciativa, fonnulando
idéias originais e coerentes que, no entanto, esbarram no caráter eminentemente
polifônico e remissivo de qualquer discurso, provocando, ao mesmo tempo,
efeitos de atividade (sujeito propriamente dito) e de passividade (assu-
jeitamento ). Refletindo sobre os trabalhos que, na linha de Pêcheux, trazem
elementos para se pensar a subjetividade, Helena Brandão, a partir também de E.
Orlandi e E. Guimarães, define o sujeito, na Análise do Discurso, como uma •
entidade "nem totalmente livre, nem totalmente assujeitado, movendo-se entre o
espaço discursivo do Um e do Outro; entre a incompletude e o desejo de ser ·'
completo; entre a dispersão do sujeito e a vocação totalizante do locutor em
busca da unidade e coerência textuais; entre o caráter polifônico da linguagem e •
a estratégia monofonizante de um locutor marcado pela ilusão do sujeito como
fonte, origem do sentido"13
Essa estratégia monofonizante pode, por outro lado, incorporar a polifonia,
fazendo com que as sucessivas alusões a outros campos discursivos concorram
para melhorar a eficácia da comunicação. E tudo reverte-se, então, para o sujeito
enunciativo e sua capacidade de suscitar a adesão de seus interlocutores, já que
o efeito de verdade provém justamente da possibilidade de instruir, de vários
ângulos, o valor da mensagem principal. Essa questão da eficácia dos discursos
é abordada por D. Maingueneau que só concebe (um plano para) o
estabelecimento de regras discursivas na relação do sujeito com o outro num
espaço interativo. Para este autor, o discurso se constrói como um "exercício de
polêmica" praticado no intervalo entre as posições enunciativas. 14
Interessante observar que todos esses teóricos da Análise do Discurso -não
apenas Ducrot, Pêcheux e Maingueneau mas outros como C. Perelman ou
mesmo filósofos da linguagem como J. L. Austin e J. Searle- consideram a
dimensão estratégica do discurso evidenciada nas práticas corriqueiras de
conquista da adesão do interlocutor. Consciente ou inconscientemente, os casos
de polifonia e interdiscursividade contribuem, em geral, para a eficácia da
comunicação e tomamos comunicação, aqui, em sua acepção mais ampla
possível: como atividade produtora de relações polêmicas ou relações
contratuais.

13. Cf. Brandão, H. Introdução à Análise do Discurso. Campinas, Unicamp. 1991, p. 68.
14. Cf. Maingueneau, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, Ed. da Unicamp
e Pontes, 1989, p. 117, 120 e 125.
80 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

No primeiro caso, e de acordo com Maingueneau, "o exercício da polêmica


presume a partilha do mesmo campo discursivo e das leis que lhe estão
associadas. É preciso desqualificar o adversário, custe o que custar, porque ele é
constituído exatamente do Mesmo que nós, mas deformado, invertido,
conseqüentemente insuportável". IS Basta, por exemplo, que se recuse algum
aspecto considerado pressuposto pelo interlocutor e teremos alta probabilidade
de desencadear um discurso hostil que, certamente, não levará em conta a ampla
y faixa de consenso subjacente à conversação. Nesse caso, evidentemente, há
interesse em se prolongar o estado de desacordo como parte de mna estratégia
geral de valorização das descontinuidades.
Ora, no âmbito da teoria semiótica, uma tal descontinuidade entre sujeitos
define movimentos narrativos antagónicos onde sujeito e anti-sujeito põem em
destaque os pontos de desigualdade de suas respectivas competências e, sempre
num plano cognitivo, rejeitam os papéis de destinador e destinatário da
comunicação. Esta só se inicia efetivamente com os primeiros indícios de
estabelecimento de contrato. Daí a importância das estratégias persuasivas e das
conquistas fiduciárias que destacamos anterimmente. É a partir deste contrato,
em vias de se frnnar, que podemos determinar o lugar modal da manipulação.
Só depois de bem caracterizadas as noções comp !ementares de fazer
persuasivo e fazer interpretativo, como articulação coringa presente em todas as
etapas do modelo narrativo, o lugar de investigação da comunicação enunciativa
pode ser devidamente delimitado. Afinal, o enunciador é, para a semiótica, um
destinador de objetos ·cognitivos ou, mais rigorosamente, um destinador - ou
ainda um actante de comunicação - que visa persuadir o destinatário
(enunciatário), por meio da conquista de sua confiança.
Greimas já apontou, com argúcia, a presença e até a necessidade da fidúcia
no plano do fazer interpretativo. O ato de crer (ato epistêmico) é definido como
solicitação de consenso, pressuposto necessário à persuasão propriamente dita e
à manipulação no nível sêmio-narrativo. Como o ato epistêmico é um ato
· interpretativo, sua verificação no domínio da sanção, pólo de interpretação limite
do esquema narrativo, tem um rendimento especial que pode ser ampliado para
as demais etapas narrativas. Quando o destinador julgador sanciona o percurso
do sujeito, reconhecendo suas qualidades de "herói" e desmascarando o anti-
sujeito "vilão", está, em nível mais profundo, pondo fim na crise de confiança
instalada na sociedade, a respeito de quem é quem, quem é sincero, quem mente,
enfim, sobre qual é o discurso da verdade para a axiologia vigente.16 E quando
dizemos que o destinador julgador reconhece o sujeito e sua performance, a

15. Ibid., p. 125.


16. Cf. Greimas, A. J. "De la colere" , Actes Sémiotiques - Documents, 27, p. 24.
Semiótica, enunciação e pnlifonia _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 81

noção de "re-conhecer" é pertinente por ser mais uma dimensão do ato


epistêmico. Trata-se de uma "operação de comparação" entre o que é proposto •
pelo sujeito e aquilo que o destinador julgador já conhece (e crê) dentro de sua
episteme. O reconhecimento para Greimas é um controle de adequação do •
desconhecido no já conhecido e assimilado. Diante do reconhecimento, as
noções de verdade (ser/parecer) ou falsidade (não ser/não parecer) da proposição
ou do percurso do sujeito nem vêm ao caso. A adequação do novo ao já
conhecido determinará o possível êxito ou fracasso do processo persuasivo. 17

... se a comunicação não é uma simples transferência do saber. mas


uma empresa de persuasão e de interpretação situada no interior de
uma estrutura polémico-contratual, ela se funda sobre a relação
fiduciária dominada pelas instâncias mais e"\plícitas do fazer-crer e
do crer, onde a confiança nos homens e em seu dizer conta mais, •
certamente, que as frases "bem feitas "ou sua verdade concebida
como uma referência exterior. 18

Portanto, todos esses novos dispositivos -- ato epistêmico, contrato


fiduciário, processos persuasivo e interpretativo -- inauguram um viés para a
análise da comunicação intersubjetiva e para a consideração das informações
transmitidas como objetos cognitivos em circulação. São os requisitos iniciais
para uma semiotização da enunciação, para a ordenação sintáxica dos
interlocutores em estruturas narrativas, onde podem ser relacionados em função
das respectivas competências modais - a desigualdade de competência }
justificando, em parte, os desvios de entendimento e os ímpetos de dominação. 19
Para a descrição semiótica, não há nada mais promissor do que a •
possibilidade de ordenar o contexto enunciativo numa narratividade paralela à do
enunciado. Funciona à maneira do effet de miroir definido por M. Hammad. 20
Como se a enunciação reproduzisse, em macroestrutura, as articulações do
enunciado. Daí o uso pleonástico que este autor faz das noções de enunciação e
enunciado. Faz questão de frisar que se trata de uma enunciação enunciada ao
lado do enunciado enunciado, onde o último representa um objeto de valor
posto em circulação pelo enunciador. A enunciação enunciada passa a ser o
programa narrativo de base, numa dimensão integralmente cognitivo-fiduciária,

17. Cf. Grcimas, A. J. Du sens II. Paris, Seuil, 1983, p. 119.


18. Ibid., p. 17.
19. lbid., p. 11.
20. Hammad, M., op. cit., p. 41.
82 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ __ _ Musicando a semiótica

enquanto os programas narrativos do enunciado enunciado operam como


programas de uso. Os chamados interlocutores não o são mais em termos de
"realidade" , mas sim como actantes competentes, modal e tematicamente, que
podem interagir em bases persuasivas e manipulatórias.21

Semiotização das vozes discursivas

A sintaxe narrativa tem por fundamento a categoria juntiva, uma espécie de


fusão primordial entre actantes, que se manifesta ora pela negação desse
princípio, ou seja, pela disjunção subjetal ou objetal, ora pela reabilitação dos
vínculos nas formas conjuntivas que reintegram o sujeito no mundo natural e na
sociedade. A descontinuidade na relação subjetal gera os actantes sujeito/anti-
sujeito; na relação objetal, os actantes sujeito/abjeto. A continuidade na relação
subjetal gera os actantes destinador/destinatário enquanto, na relação objetal,
gera os tradicionais conceitos de sujeito e objeto.22
Com esses actantes - que são puras funções relacionais (daí a noção de
estruturas narrativas)- a semiótica propõe etapas lógicas conhecidas como:
persuasão-manipulação, paixão-ação e sanção.
A primeira é a etapa de comunicação por excelência, na qual os sujeitos
oscilam entre relações polêmicas e relações contratuais fommlando estratégias
discursivas de persuasão (fazer-crer) e de manipulação (fazer-fazer). Se a seleçào
das operações descontínuas prevalece e, com ela, as relações polêmicas, a pró-
pria condição para a narrativa- um mínimo de consenso entre dois sujeitos- se
encontra ameaçada, uma vez que não havendo destinatário, não há também a
função de sujeito do /fazer/. Por isso, nesta etapa, devem ser estudados todos os
recursos argumentativos que visam obter a adesão do interlocutor. Trata-se, no
fundo, de um processo delicado de avaliação dos valores e dos pressupostos co-
munitários que subjazem à comunicação. Se há predominância das operações
contínuas e das relações contratuais, o êxito das estratégias persuasivas pode ser
aferido pela circulação desimpedida dos valores e dos conteúdos entre destinador
e destinatário e pela instituição deste último em sujeito do /querer/ ou do /dever!
fazer.
A segunda etapa compreende uma fase de transição entre as relações
subjetais e as relações objetais, em que o sujeito como /ser/ avalia sua com-
petência e suas carências, ainda sofrendo efeitos da relação com o destinador
mas, de qualquer forma, procurando se posicionar em função do objeto. Tal

21. Cf. E. Landowski. "De quelques conditions sémiotiques de l'interaction", Actes Sémiotiques
- Documcnts, 50, p. 15.
22. Cf. Zilberberg, C. Raison et poétique du sens, op. cit., p . 107.
Semiótica, enunciação e polifonia 83

estado, típico da fase passional, define o sujeito por sua disjunção espacial com ·
o objeto de valor mas, por outro lado, por sua conjunção temporal com esse
mesmo objeto manifestada na noção de espera. A fase correspondente à ação
propriamente dita (ao fazer) pressupõe a superação da fase passional e uma
constante interação com o /saber/ e o /poder/ do destinador, pois dessas
modalidades depende a formação plena da competência do sujeito. O sujeito
competente equivale ao sujeito que realiza sua performance e conquista seu
objeto. Fora disso e sem o auxílio constante do destinador, o sujeito, muitas
vezes, não consegue identificar seu objeto, até porque não tem condições epis-
têmicas de reconhecer os seus valores.
A última etapa do esquema geral da narrativa prevê o restabelecimento dos
valores comunitários, agora por meio da função de destinador julgador. Este
actante opera com as modalidades veridictórias e extrai de suas articulações no
quadrado semiótica as noções de verdadeiro (ser+ parecer), de falso (não ser+
não parecer), de ilusório (parecer + não ser) e de secreto (ser+ não parecer). Em
vez de persuadir, este destinador interpreta, na fase final da nàrrativa, o sentido
adotado pelo sujeito em sua missão de conquista do objeto. Da possibilidade
desse reconhecimento por parte do destinador julgador decorrem as medidas de
recompensa ou punição social.
Essas etapas narrativas, sucintamente descritas, constituem uma verdadeira
gramática textual, com princípios relacionais bem engendrados e investimentos
semânticos (valores e modalidades) de caráter universal e abstrato. O desenvol-
vimento desses instrumentos formais pela semiótica tem apresentado resultados
bastante consistentes, sobretudo para a descrição dos textos figurativos e
polifônicos.

Um exemplo

Podemos pensar na letra da canção Sampa, de Caetano Veloso, na qual, em


meio a inúmeras citações e remissões a outras esferas discursivas, surgem duas
vozes principais que congregam esses elementos aparentemente dispersos sob a
ordenação de funções narrativas definidas e logicamente dispostas.

Alguma coisa acontece no meu coração


Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee a tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João
84 ______ Musicando a semiótica

Quando te encarei frente a frente nãovio_meu rosto


Chamei de mau gosto o que vi de mau gosto mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas


Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Tuas oficinas de florestas teus deuses da chuva
Panaméricas de Ajricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo Quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa.

A primeira voz pertence a um actante em fase passional, com seu vínculo


objetal descontinuizado em razão de uma carência modal: o /saber/ e, por
extensão, o /crer/. Falta ao sujeito, que figurativamente chega a São Paulo,
elementos para que possa decifrar os valores positivos da cidade. Entretanto, o
enunciador dessa canção se desdobra em outra voz que tem condições de avaliar
com onisciência toda a trilha percorrida pelo primeiro sujeito. Situada numa
etapa final do processo narrativo, esta voz desempenha a função sintáxica de
destinador julgador que desvenda todos os elos contínuos da.relação objetal,
disfarçados em formas descontínuas. Assim, por exemplo, "no verso 'É que
quando eu cheguei por aqui I eu nada entendi', ouvimos a voz do sujeito
passional, desfalcado da modalidade do /saber/, mas ouvimos também a voz do
destinador julgador que diz, em segundo plano, que há algo a ser entendido. Na
frase 'da dura poesia concreta de tuas esquinas' sentimos, com o sujeito, a aridez
e a invulnerabilidade da estética paulistana mas, ao mesmo tempo, pelo
destinador julgador, temos as decorrências sensíveis dessa aparente aspereza na
expressão da poesia concreta. Esta não pode fazer parte do universo restrito do
ator recém-chegado mas pode ser aludida por quem detém a perspectiva geral do
processo. Na frase 'da deselegância discreta de tuas meninas', deselegância
parece retratar a impressão direta do primeiro sujeito enquanto discreta já reflete
uma certa ponderação feita de outra instância. Em 'ainda não havia para mim
Rita Lee I a tua mais completa tradução', além da referência à cantora cuja
existência representa, em si, uma análise de São Paulo (do ponto de vista do
Semiótica, enunciação e polifonia - - - - - - - - ' - - - - - - - - - - 85

destinador, portanto), temos também o simples desamparo do sujeito que não


dispõe de qualquer ferramenta para destrinçar os enigmas da cidade".23
Pelo enfoque do destinador julgador podemos avaliar o estado do sujeito
passional que não encontra na nova cidade os valores cultivados em sua terra
natal. O reconhecimento de novos valores depende de um contrato com novos
destinadores encarregados de novas estratégias persuasivas. Não tendo como se
instruir para completar sua missão, o sujeito passa a rejeitar o objeto, gerando o
que se pode chamar de relação abjetal: "Quando te encarei frente a frente não vi
o meu rosto I chamei de mau gosto o que vi de mau gosto mau gosto".
A descontinuidade com relação ao objeto reflete uma descontinuidade \
transcendente entre destinador persuasivo e destinatário-sujeito. Enquanto a
primeira fase de relação contratual não se firmar, a segunda também estaciona e
a narrativa não progride. À medida que a canção evolui a voz do sujeito
passional vai cedendo espaço à voz do destinador julgador e, nessa transição, os
valores expostos no modo do /parecer/ passam a coexistir com outros, até então
camuflados, resultantes do modo do /ser/: "Do povo oprimido nas filas, nas
vilas, favelas ... eu vejo surgir teus poetas ...".
O tempo da própria canção é suficiente para que o sujeito passional e o
destinador julgador entrem em sincretismo tendo como base categorial o atar-
enunciador que, ao final, exibe todo o seu saber a respeito dos percursos
pregressos. Agora, aquelas primeiras pinceladas da presença do discurso de
outrem (poesia concreta, Rita Lee) ganham sua verdadeira dimensão ao lado de
uma intensa polifonia que revela "as diversas áreas da cultura freqüentadas pela
biografia do enunciador: campos e espaços (referência aos irmãos Augusto e
Haroldo de Campos e à ordem espacial explorada pela poesia concreta); oficinas
(teatro Oficina que em 1967lançou a peça tropicalista O rei da vela); túmulo do
samba (famosa expressão de Vinícius de Morais a respeito de São Paulo); Zumbi
(peça encenada pelo Teatro de Arena) etc.".24
Tudo isso, porém, surtiria bem menos efeito se não apresentasse um papel ·
decisivo na resolução narrativa do texto integral. Ora, logo após a revelação das
personagens e dos eventos ocultos da cidade, os valores contínuos são
reencontrados e o sujeito, na figura dos "novos baianos", integra-se plenamente
no objeto. Cabe à função de destinador julgador restabelecer a ordem lógica da
narrativa e interpretar, de maneira coerente, o percurso do sujeito que abandona
os valores descontínuos e disfóricos em nome das relações conjuntivas e
eufóricas. Esta última estrofe celebra, na realidade, a revelação dos destinadores

23. Tomamos a liberdade de reproduzir aqui (substituindo o termo avaliador por destinador
julgador) um trecho d e outro tra balho, no qual j á havíamos relacionado as vozes aos
respectivos actantes. Cf. Tatit, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. São
Paulo, Edusp, 1996, p. 286.
24. Ibid. , p. 296-7.
86 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

persuasivos, de todas as entidades que instruíram o sujeito para que pudesse


reconhecer e decifrar o seu objeto. É da continuidade entre destinador e
destinatário, de sua relação contratual, que decorre a transferência do /saber/
entre esses actantes e a possibilidade de uma compreensão plena do objeto. E de
tudo isso resulta a sanção positiva que reconhece a integração completa da
cultura baiana no universo paulistano: "E os Novos Baianos passeiam na sua
garoa I E novos baianos te podem curtir numa boa".
CAPÍTULO VII

A construção do sentido
na canção popular

Se a música erudita é uma linguagem artificial e construída, o que dizer


do canto popular que, possuindo os mesmos princípios fimdamentais de
organização semiótica, parece no entanto natural?
A. J. Greimas e J. Courtés

A canção popular é produzida na intersecção da música com a língua


natural. Valendo-se de leis musicais para sua estabilização sonora, a canção não
pode, de outra parte, prescindir do modo de produção da linguagem oraL Daí a
sensação de que um pouco de cada nova obra já existia no imaginário do povo,
senão como mensagem final ao menos como maneira de dizer. Estudar a canção
é no fundo aceitar o desafio de explorar essa área nebulosa em que as lingua-
gens não são nem totalmente "naturais" (no sentido semiótica do termo), 1 nem
totalmente "artificiais" e precisam das duas esferas de atuação para construir o
seu sentido.
A questão que propomos nesta oportunidade pode ser assim resumida:
como criar parâmetros semióticos para abordar esse lugar híbrido de mani-
festação das canções? Tais parâmetros deverão ainda fornecer critérios ho-
mogêneos para uma análise integrada da letra e da melodia. Em termos pouco
mais abstratos, esse trabalho corresponde a uma busca de equivalência entre
sintaxe e ritmo, condição necessária para se depreender as compatibilidades
entre as duas faces da canção.

1. A semiótica "natural" compreende as duas macrossemióticas (mundo natural e língua natural)


imanentes às atividades produtivas dos falantes. Embora sejam constantemente manipulados
e reconstruídos pelas práticas sociais cotidianas, esses vastos conjuntos significantes
transcendem o indivíduo, não podendo, portanto, sofrer modificações neste plano. Cf.
Greimas, A. J. e Courtés, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 258, 302.
88 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

Interinidade oral

O modo de produção da linguagem oral pode ser compreendido à luz da


famosa oposição saussure-hjelmsleviana entre forma e substância. Nossas falas
produzem substância (ou matéria) sonora para carrear um conteúdo que, na
verdade, só se define num plano categorial e abstrato, onde se verifLcam opo-
sições e interações sintáxicas entre unidades de diversas dimensões (fono-
lógica, morfológica, frasal e discursiva), sem qualquer vínculo mais duradouro
com seu supo1te material. Esta substância de expressão é tão necessária à
comunicação quanto descartável no âmbito da significação. Uma comunicação
bem-sucedida pode inclusive ser calculada pela rapidez com que se despreza o
invólucro sonoro.z
A ênfase depositada nos aspectos intelectivos e funcionais da linguagem
oral acaba por deftnir sua fisionomia de manifestação: estabilidade lingüístico-
gramatical e instabilidade sonora expressa na ausência de tratamento fonético
(dispensa-se qualquer aliteração) e na imprecisão musical das curvas entoa-
tivas. De fato, a linguagem oral realiza as funções imanentes de uma língua
natural que se caracterizam justamente por assegurar a intercompreensão dos
falantes. Essa dimensão social e "natural" da língua atrela suas manifestações
a um projeto geral de construção de consenso comunitário que prescinde da
conservação sonora dos atos individuais. Daí o caráter apenas ancilar da en-
torração lingüística que sublinha aqui e ali alguns pontos estratégicos do texto
sem se confLgurar como processo autônomo (ao menos no âmbito da comu-
nicação normal do dia-a-dia). Tal imprecisão melódica é compatível com sua
função interina na linguagem oral: quanto menos atrair para si a atenção do
falante mais contribui para a clareza final do discurso lingüístico.
Importante considerar, de acordo com os propósitos deste capítulo, não
tanto o sucesso comunicativo da linguagem oral mas sim, como já dissemos, o
/ seu modo de produção. O encontro da estabilidade (gramatical) lingüística com
a instabilidade (musical) entoativa, independentemente do conteúdo veiculado,
incita de imediato nossa vasta experiência com a linguagem oral provocando
um efeito inevitável de "realidade" enunciativa: alguém diz alguma coisa aqui
e agora. A presença deste efeito, com maior ou menor intensidade, em toda e
qualquer canção popular, garante a essa linguagem um grau extraordinário de
aproximação às práticas "naturais" . A própria credibilidade enuncia ti va
implicada nas execuções vocais depende do êxito da apreensão simultânea do
modo de produção da linguagem oral em seu interior.
Sabemos que não há nada mais gratiftcante ao ouvinte que sentir que o
intérprete de uma canção disse tudo. Mais do que isso, que ele "disse real-

2. Cf. Valéry, P. Variedades, op. cit., p. 208-9.


A construção do sentido na canção popular - - - - - - - - - - - - 8Q.

mente" durante o tempo de interpretação. Que ele não era um ator mas o sujeito
real de todos os sentimentos, eufóricos ou disfóricos, transmitidos por sua
emissão vocal. Quem ouve sabe que as emoções ou os conteúdos registrados
naquela emissão foram criados num tempo passado, no entanto, a presença
fisica da voz sustenta a crença de que tudo está sendo fielmente reproduzido ou,
melhor, passado a limpo durante a interpretação. Quem canta sabe que se não
recuperar os conteúdos virtualizados na composição, durante o período da
execução, deixando transparecer uma inegável cumplicidade com o que está
dizendo (o texto) e com a maneira de dizer (a melodia), simplesmente inutiliza
o seu trabalho e se desconecta do ouvinte.
Não há canção sem impressão enunciativa, sem a sensação de que o que
está sendo dito está sendo dito de maneira envolvida. Por isso, o reco-
nhecimento dos cantores e de seus estilos é, por si só, um fato r de credibilidade
e confiança.

Perenidade estética

Mas nem só de impressão enunciativa alimenta-se a canção. A presença


interina da sonoridade na linguagem oral é até certo ponto incompatível com a
intenção de perenidade que caracteriza uma obra estética. A forma fonológica
da expressão lingüística e mesmo as leis elementares de ordenação entoativa
(baseadas nas variações da ascendência e da descendência) nunca foram
suficientes nem adequadas à estabilização do componente melódico da canção.
Se a função estética depende sempre dos processos de conservação da matéria,
não podemos deixar de considerar uma outra forma que incida diretamente
sobre a substância de expressão sonora, regulando sua manifestação concreta.
Trata-se aqui, evidentemente, da forma musical. Por meio de leis de recorrên- >
cia, de alternância e de gradação, entre outras, a música fornece os recursos
conhecidos para a estabilização das alturas, das unidades rítmicas, dos
contornos monofônicos e polifônicos, da base harmônica, enfim, de todos os
elementos desprezados nas manifestações da linguagem oral.
Mantendo aspectos do modo de produção oral, com seus efeitos de natu-
ralidade e presentificação enunciativa, e assimilando, simultaneamente, as
formas de conservação sonora da linguagem musical, a canção desempenha um
papel cultural privilegiado na medida em que promove continuamente a
perenização do instante enunciativo. Ela necessita das duas instâncias de \
apreensão para construir o seu sentido.
Ora, a musicalização da fala cOlTesponde a um processo de ritualização de
uma sonoridade que, a princípio, teria função totalmente passageira. Ao
adquirir leis próprias de funcionamento, que se manifestam sobretudo na
ordenação melódica, a canção impõe uma desaceleração às manifestações
90 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ __ _ Musicando a semiótica

lingüístico-entoativas retirando um pouco de sua intervenção ligeira e


descontínua. No mesmo ato, deposita, ao lado das oposições intelectivas, as
emoções contínuas que só a melodia pode trazer.

Andamento: som e ruído

Surge, assim, a primeira possibilidade de semiotização das atividades, oral


e musical, que fundam genericamente a canção. Se a presença da fala é marca
de rapidez, imediatismo e eficácia do instante enunciativo e, por outro lado, a
presença da música significa estabilização da matéria sonora, ritualização e
conservação estética, podemos instituir a categoria andamento corno parâmetro
temporal de análise e dela depreender uma tensão entre aceleração e desa-
celeração respondendo, respectivamente, pelos valores descontínuos e pelos
valores contínuos.
O centro das questões aqui debatidas está no pensamento de P. Valéry que
contrapõe as funções utilitárias da "fala", do "andar", e da "prosa" às funções
estéticas do "canto", da "dança" e da "poesia"} Se identificarmos as primeiras
com a categoria da interinidade e as últimas com a da perenidade, já podemos
considerar a presença dos primeiros sinais de celeridade no caráter efêmero das
expressões que conduzem as funções utilitárias em oposição aos sinais de
duração dos processos estéticos que pretendem conservar a matéria (sonora,
gestual ou gráfica).
A opção estética de conservação da matéria sonora reflete um primeiro
compromisso com a duração, ou seja, com a estabilização dos processos
fônicos mas, ao mesmo tempo, não pode prescindir inteiramente dos fenôme-
nos de instabilidade sonora que funcionam, na obra, como desvios repentinos
e inesperados, como pontos de celeridade responsáveis pela dinâmica da
música. O esforço dos compositores em controlar tais instabilidades e assegurar
a coerência interna da peça repercute, por exemplo, nas operações tonais de
preparação e resolução das dissonâncias que constituem, em última instância,
recursos de desaceleração.
Trabalhos recentes na área musical vêm operando com noções que podem
ser, em última instância, identificadas com o parâmetro andamento na acepção
ora adotada. Destacamos a oposição som/ruído tratada sucessivamente por J.
'<' Attali e J. M. Wisnik.4 O som musical, para esses autores, é um produto sele-
cionado e depurado para atender às necessidades auditivas das mais diferentes

3. Cf. Valéry, P. Oeuvres. I, op. cit., p. 1449, ou Variedades, op. cit., p. 201-18. Já desenvolvemos
essa matéria no Capítulo IV.
4. Cf. Attali, J. Bruit. Paris, PUF, 1977 e Wisnik, J. M. O som e o sentido. São Paulo, Companhia
das Letras, 1989.
A construção do sentido na canção popular 91

culturas do planeta. Todas elas precisam denegar um universo ruidoso bem


mais amplo para poder extrair a sonoridade que de fato representa sua ordem
social e cultural. Attali chega a afirmar que a música executa, em cada
comunidade, um ritual de sacrifício canalizando o ruído por meio de leis de
ordenação. De acordo com sua visão narrativa e polemológica o ruído é um
representante das forças antagonistas contra as quais a música se investe
exibindo suas formas de ordenação e integração. De qualquer modo, por mais ·
que os músicos rejeitem a ameaça contida no conceito de ruído, esta acaba
retornando no decorrer de sua produção em forma de descontinuidades a serem
ultrapassadas. Munida de suas forças coesivas, a música tende sempre a
reconstituir os elos de continuidade renovando a cada obra os laços que ligam
o sujeito aos seus valores culturais.
Wisnik aprofunda o enfoque narrativo de Attali revelando alguns
princípios temporais que estão na base da oposição continuidade (assumida
pelo programa do sujeito) versus descontinuidade (assumida pelo anti-sujeito).
Embora não mencione explicitamente a categoria do andamento como
princípio geral de sua abordagem, Wisnik emprega diversas vezes o termo
aceleração para definir a "turbulência" do mundo ruidoso em oposição aos
estados duráveis e "constantes" criados pelo som musical. Tudo ocorre como ·
se a música respondesse às intervenções antagonistas com o rito, a solenidade,
a periodicidade, a ordenação, enfim, com todos os recursos que reafirmam as
expectativas sociais e, conseqüentemente, a integração do sujeito com seus
valores. Depreende-se do texto de O som e o sentido que a aceleração imposta ·
pelo ruído constitui um verdadeiro atentado contra a espera pacientemente
construída pelo som.
Ora, a espera consiste numa desaceleração das etapas temporais em nome .
de uma previsibilidade de percurso narrativo. O ruído provoca rupturas no
programa do sujeito exigindo condutas de salto repentino que aceleram
bruscamente o percurso. Nesse sentido, ruído equivale a descontinuidade e
produz, no plano do sujeito, uma sensação disfórica, ou seja, de inteiTUpção do
fluxo fórico. O som, por sua vez, corresponde à retomada da continuidade e à
produção subjetiva da sensação eufórica (reintegração ao fluxo). s Wisnik
examina a assimilação desses conflitos na história "das músicas", articulando
a categoria do tom em consonância/dissonância e a categoria do pulso em fase/
defasagem. Desde o período conhecido como modalismo até a fase contem-

5. A foria representa a dimensão contínua (e hipotética) do sentido anterior à intervenção


enunciativa do sujeito (cf. o estudo deste conceito no primeiro Capítulo, p. 14. Em outras
palavras, ela constitui o próprio sujeito enquanto elemento "uno" integrado plenamente ao
objeto. A fratura desta unidade corresponde ao primeiro ato disfórico que instaura o processo
narrativo (a necessidade de recuperação do elo eufórico). Por conter cm si a noção de
"transporte" (phoros) esse conceito atribui ao sujeito um estatuto temporal.
92 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ __ _ Musicando a semiótica

porânea das simultaneidades sonoras, o que impera é a necessidade de


contenção da velocidade imposta pela penetração dos ruídos (o que é consi-
derado som numa cultura pode ser ruído em outra) que se tomam, ao longo da
história, cada vez mais presentes. Daí a adoção de hábitos musicais ou verda-
deiras gramáticas (modalismo, tonalismo, dodecafonismo etc.) para ritualizar
de algum modo as produções sonoras da cultura.
Evidente que não se trata apenas de produzir recursos para afastar o ruído
indesejável mas, ao contrário, também faz parte da atividade criadora de todas
as épocas a incorporação dos elementos originalmente refratários ao sistema.
,· Em vez de praticar a simples rejeição do ruído, grande parte dos músicos
sempre se aplicou em sua administração (por meio de preparações e resoluções
gradativas) no interior das peças, a fim de evitar também uma desaceleração
excessiva. Nessa linha de verificação, Wisnik analisa a assimilação do trítono
na música européia, a troca de influências sobretudo entre Europa (universo do
tom) e África (universo do pulso), o sincretismo das duas tendências na música
popu1ar norte-americana, a condensação refinada da sonoridade que deu
origem à gramática da canção e, por fim, as novas técnicas de ordenação e
reprodução de previsibilidade generalizadas pelo avanço eletrônico e pelas
necessidades de padronização do mercado cultural. Tudo isso retrata os
esforços de absorção do ruído como condição para o encontro do andamento
ideal das criações musicais nas diversas culturas em cada época. Se a
aceleração é mais acentuada nos períodos de inovação estética, a desaceleração
é típica das fases de consolidação de um sistema musical. Mas a questão do
confronto e da convivência do som com o ruído constitui um desafio inerente
às obras musicais de todas as épocas e de todos os povos.6

Tempo: descontinuidade e continuidade

No universo da canção popular, as instabilidades entoativas, as impre-


cisões rítmicas, enfim, a presença da fala no canto é a maior fonte de ruído que,
se por um lado repugna aos cancionistas, por outro, os atrai. Afinal, como já
vimos, o modo de produção oral, por ser signo de presentificação enunciativa,
apresenta alto rendimento semântico no momento da execução do cantor.
Como a sonoridade tem vida breve na linguagem oral, a composição acaba
exibindo um dom especial de perenizar (atribuir uma duração) o que parecia
quase incorpóreo. E quanto mais deixa transparecer os mídos da fala na super-
ficie da manifestação mais assume o risco de ver a sonoridade se dissipando na

6. Essas idéias aparecem pormenorizadas em outro trabalho. Cf. Tatit, L. Semiótica da canção.
op. cit., p. 237.
A construção do sentido na canção popular - - - - - - - - - - - - - 93

clareza do texto lingüístico. Entretanto, ao controlar a velocidade da voz que


fala, atribuindo-lhe uma duração no interior da voz que canta, o cancionista
revela o que R. Barthes denominou "grão da voz", 7 ou seja, a exata intersecção
entre língua e música: a condição ideal para o efeito de verdade da obra.
A necessidade estética de estabilização do plano da expressão reforça algo <
que já se configura como tendência teórica na descrição do plano do conteúdo:
a expansão do texto na dimensão sintagmática. A coerência do texto melódico , ·
só pode ser devidamente conferida na: descrição dos acidentes locais tendo em
vista os propósitos da extensão geral da obra. Nesses termos, retomamos aqui,
com as devidas readaptações, a oposição intenso/extenso prevista pela
glossemática,8 definindo a ordem extensa como um nível profundo que
fundamenta a análise das variações intensas. Tais variações respondem pelos
fenômenos de descontinuidade sonora que tendem a ser incorporados por
planos de continuidade mais profundos, pressupondo, com isso, que todo texto
visa, em última instância, restabelecer um elo entre sujeito da enunciação e
objeto de valor e que este elo é contínuo. Os estudos semióticos do plano do
conteúdo fazem ressoar essas hipóteses em todos os estratos gerativos quando
integra a heterogeneidade dos semas nas iterações isotópicas, quando investiga
as relações polêmicas entre sujeito e anti-sujeito sob o enfoque das relações
contratuais entre destinador e destinatário ou ainda quando compara as
modalidades do /saber/ e do /crer/ e acusa a tendência da primeira em consumir
o objeto ao lado da tendência da segunda em preservá-h9
Tudo isso indica que descontinuidade e continuidade são noções mais ·
profundas, mais abstratas, que não podem permanecer restritas às manifes-
tações temporais e aspectuais da superfície do discurso. Já frisamos que autores o<
como H. Parret e, sobretudo, Cl. Zilberberg vêm propondo uma verdadeira
inversão do percurso gerativo- inversão esta só parcialmente reconhecida pela
semiótica padrão -, de onde se depreende uma noção de continuidade funda-
mental, uma espécie de junção plena, cujo sentido só se configura a partir da
primeira descontinuidade. Esse fluxo - a foria - é um limite ontológico e, ao
mesmo tempo, uma categoria para se compreender as tensões que impelem o
sujeito em direção ao objeto. A protensividade do sujeito e a atratividade exer-
cida pelo objeto decorreriam, como já deixamos entender, de uma cisão pri-
mordial que instaura o objetivo último de recuperação do fluxo. E o sentido
stricto sensu não seria outra coisa senão a direção assumida pelo sujeito no
intuito de reencontrar o objeto.IO

7. "Le grain de la voix". ln: Musique en j eu, n° 9, Paris, Seuil, nov. de 1972.
8. Cf. Greimas, A. J. e Courtés, J. Sémiotique. Dictionnaire, II, op. cit., p. 82.
9. Cf. Zilberberg, C. Raison et poétique du sens. op. cit., p. llO.
10. Esse tema é largamente tratado por Greimas, A. J. e Fontanille, J. Semiótica das paixões, op
cit. (I" parte).
94 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

Um enfoque assim concebido traz implicações imediatas aos estudos


semióticos. De um lado, do ponto de vista semântico, instaura o universo
passional do sujeito como um lugar teórico privilegiado para a investigação. De
outro, do ponto de vista sintáxico, concebe um tempo profundo - equivalente
à foria ou à continuidade plena - como responsável primeiro pelas relações
entre actantes no plano do conteúdo e pelas relações entre elementos sonoros
no plano da expressão.
Se nossos discursos do dia-a-dia exercitam, com suas operações abstratas
de conteúdo, a recomposição da continuidade temporal ou, ainda, do sentido
que conduz ao objeto, a emoção estética, por sua natureza sensori~l, exige que
este sentido seja concretizado nos contornos do plano de expressão, como se a
pererüzação da matéria realizasse, num lapso, a continuidade primordial e, com
ela, a junção plena.
Trata-se aqui de examinar a possibilidade de constituição de um nível
profundo, comum à expressão e ao conteúdo, considerando que as noções de
descontinuidade e continuidade refletem, respectivamente, um modo intenso e
um modo extenso de articulação do tempo original. Em outras palavras, antes
de assumir os valores socioculturais, o sujeito semiótico seleciona os valores
temporais, fazendo predominar ora as continuidades (euforias), ora as
descontinuidades ( disforias ).11
Retomamos assim, mais uma vez, a reflexão sobre os valores descontínuos
e contínuos. Os primeiros revelam uma tendência do texto para os seus
componentes locais, intensos, onde a passagem de um estado a outro se
processa de forma brusca e inesperada. Essa excessiva concentração do tempo
no discurso pode ser avaliada também com o aumento de velocidade. É quando
aparece a surpresa como efeito de sentido predominante. A escolha dos valores
contínuos ·justifica a tendência do texto para a dimensão extensa, para a
recuperação das etapas intermediárias (as passagens gradativas), numa palavra,
para a desaceleração do tempo e reconstituição da duração. É quando surge a
espera como efeito de sentido predominante.
Nesses termos, estamos propensos a homologar essa noção de tempo pro-
fundo com a de andamento, este um conceito de origem musical mas com arti-
culação (aceleração/desaceleração) compatível tanto com o plano da expressão,
como com o plano do conteúdo.

11. Para a semiótica não há percepção de conteúdos semânticos (biológicos, sociais, psicológicos
etc.) sem envolvimento afetivo do sujeito. Não há análise de conteúdo que não implique um
sentimento anterior como primeiro critério de categorização: fatos que nos atraem, uos
repelem ou nos causam indiferença. Alguns modelos recentes, já incorporados no segundo
volume do Dicionário de Semiótica (op. cit.), chegam a propor que, antes de nos engajarmos
com os conteúdos culturais, escolhemos os valores fóricos, contínuos (eufóricos) ou
descontínuos (disfóricos), que nos servirão de parâmetro para a seleção posterior dos objetos.
A constrnção do sentido na canção popular - - - - - - - - - - - - 95

Canção: aceleração e desaceleração

De acordo com o conteúdo estudado até aqui, podemos propor um exame


geral dos diversos processos de composição e interpretação na canção
brasileira. Há cancionistas que produzem no limite da instabilidade sonora da
fala (ex. Jorge Ben Jor), enquanto outros se caracterizam por atribuir esta-
bilidade e coerência musical a todas as sugestões melódicas de base entoativa
(ex. Tom Jobim). Entre esses extremos, inúmeras canções apresentam, inter-
namente, a alternância desses comportamentos de estabilidade e instabilidade •
sonoras (Caetano Veloso vem experimentando esses limiares em seus últimos
trabalhos- cf. as canções Estrangeiro, Fora de Ordem, Circuladô etc.).
No plano da interpretação, há que se mencionar especialmente a aventura
recente de João Gilberto, cuja característica mais notável está em retirar os pon-
tos de referência, as balizas rítmicas que estruturam as canções consagradas do
repertório popular e chegar ao limite da instabilidade, onde a obra ainda pode
ser identificada mas nem sempre reconhecida. Basta compararmos, corno
exemplo, a versão de Caetano para Sampa com a versão de João Gilberto.
O mesmo parâmetro temporal, o andamento, deve ser adotado nas etapas
seguintes de análise da composição, quando o autor promove as formas de
compatibilidade entre melodia e letra. Considerando que tanto o programa nar- ·
rativo como o programa melódico12 de uma canção visam, em última instância,
ao restabelecimento de continuidade entre sujeito e objeto, a seleção extensa do
movimento acelerado ou desacelerado já constitui em si um fator significativo
que servirá de referência às operações posteriores.
A opção pela melodia veloz ocasiona maior proximidade dos elementos
musicais, colocando em evidência os contrastes e as similaridades. Quase não
há trajetória a percorrer pois se passa repentinamente de uma etapa a outra. Tais
descontinuidades (os contrastes) são ainda reforçadas, na ordem intensa, pelos
desdobramentos (mudanças de material musical) e, na ordem extensa, pelas
chamadas segundas partes, ambos respondendo pelo progresso sintagmático da
obra. Se, a partir da escolha da celeridade, ainda tivéssemos um investimento
maciço nos desdobramentos e na criação das outras partes (segunda, terceira,
quarta... ), certamente presenciaríamos um caso extremo de pacto com o ruído
no interior de uma canção. O que se verifica porém, em geral, é a utilização
comedida desses recursos para evitar uma excessiva dispersão de sonoridade.
A adoção do movimento acelerado provoca imediatamente a atuação dos
processos de desaceleração e de recuperação da continuidade. Surgem assim as ~
formas de concentração ou involução que se manifestam, na dimensão intensa,
como tematização (similaridades contíguas) e, na dimensão extensa, como

12. As noções de programa narrativo e programa melódico serão desenvolvidas adiante, no


Capítulo IX.
96 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ Musicando a semiótica

refrão. Ambos os recursos visam "refrear" a velocidade do terripo, ressaltando


os elos de conjunção melódica. Desse esforço de negação parcial da velocidade
nascem as letras desse gênero de canção, quase sempre exaltando a continui-
dade, ou seja, a perfeita consonância do sujeito com o objeto (o ente amado, a
natureza, o país, a música etc.).
A opção pela melodia lenta revela, de saída, um compromisso com o per-
curso. Aumentando a distância entre os elementos musicais cresce o interesse
pelas etapas intermediárias e pelos detalhes de condução melódica. A oscilação
dos tons no campo de tessitura ganha relevo especial uma vez que quanto maior
a duração das notas individuais maior o compromisso com a ocupação dos
"espaços" agudos e graves e, conseqüentemente, com o perfil traçado pela
melodia. Por isso, as descontinuidades que pretendem negar a escolha inicial da
desaceleração recaem justamente sobre a evolução vertical dos contornos.
Ternos assim, no plano intenso, os saltos intervalares e, no plano extenso, as
transposições abruptas de registro melódico. Ambos visam romper a expecta-
tiva melódica e acelerar o andamento produzindo descontinuidades que se
figurativizam como "etapas queimadas". O aumento de tensão subjetiva pro-
vém, nesses casos, da perda de controle sobre as fases do percurso. Em vez de
soar como avanço em direção ao objeto, tais descontinuidades soam como
desvio de rota e afastamento da meta. Assim como no caso da surpresa, o
sujeito precisa refazer as etapas saltadas para recobrar o controle sobre o
caminho (e o tempo) ainda por ser percorrido. Daí os recursos de reafirmação
do projeto melódico de desaceleração que se manifestam nas formas de
gradação, seja no interior de uma escala (os graus imediatos que se processam
na ordem intensa), seja na condução de segmentos maiores no sentido ascen-
dente ou descendente. A gradação no eixo vettical corresponde à repetição no
eixo horizontal. Ambas atuam em prol das conjunções para assegurar uma
continuidade entre sujeito e objeto. Se a busca de continuidade da canção
acelerada pode ser reconhecida por um processo geral de concentração, a
mesma busca na canção desacelerada pode ser chamada de extensão. Desse
esforço de restauração do percurso, muitas vezes fraturado por saltos na
progressão melódica, surgem as letras das canções que pertencem à série
extensão, geralmente às voltas com os conteúdos passionais devido à perda ou
ao distanciamento do objeto (as chamadas canções românticas).13

13. Estudamos minuciosamente esses aspectos de fonnação da canção nos Capítulos III e IV de
Semiótica da canção, op. cit., p. 59-191. Outra formulação sobre o mesmo assunto pode ser
encontrada acíma, no Capítulo inicial.
A r:onstrução do senÍido na canção popular _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ " 97

Ritmo e sintaxe

A concentração constitui, assim, a forma extensa de expansão da melodia


acelerada. Do mesmo modo, a extensão constitui a forma extensa da melodia
desacelerada. Ambos os processos podem ser reconhecidos também por suas
microestruturas rítmicas que organizam a dimensão intensa da melodia.
Enquanto a aceleração apóia-se num sistema de ataque-acentuação de suas
células mínimas (as chamadas figuras rítmicas), a desaceleração decorre do
alongamento da duração de seus tons.l4 Da variação entre essas duas formas
intensas (ataque-acentuação de um lado e tonalização de outro) a teoria musical
tradicional retira o conceito de ritmo para suas avaliações e seus ensinamentos
técnicos.
Essa perspectiva rítmica pode ser bem aproveitada em nosso modelo,
sobretudo numa fase de identificação geral das formas de andamento
inicialmente selecionadas e que servirão de fundo para as descrições
posteriores. Entretanto, a noção de ritmo só atinge seu verdadeiro estatuto
cancional numa dimensão mais ampla de articulação interna da concentração
ou da extensão ou, ainda, na própria alternância desses dois processos extensos
numa mesma canção (como no caso de Garota de Ipanema, Eu quero um
samba, Quereres etc.). O ritmo nasce assim do encontro das forças coesivas da
melodia, aquelas que buscam a continuidade, com as forças dispersivas que
provocam rupturas e desvios em sua rota. Para compreendermos tal encami-
nhamento, nada mais sugestivo do que o modelo silábico de Saussure. Uma
explosão sonora anuncia imediatamente o mecanismo inverso da implosão. E
quanto mais a sonoridade se abre, mais iminente é o seu fechamento e vice-
versa.l5 Assim também transcorre o desenvolvimento melódico: quanto maior
o investimento na continuidade, mais a descontinuidade se impõe como etapa
a ser suplantada. Não há tematização sem desdobramento, não há refrão sem
segunda parte e não há gradação de alturas sem a intervenção dos saltos inter-
valares. A alternância dessas categorias é o grande imperativo rítmico para "i.
termos melodia de canção. Constitui uma verdadeira regra de previsibilidade e
determinação para o progresso sintagmático da matéria sonora.
As letras de canções exibem um quadro descritivo bem mais conhecido.
As persuasões enunciativas do sujeito são sempre secundadas, explícita ou
implicitamente, por conteúdos polêmicos cujas descontinuidades valorizam a
argumentação do intérprete (algumas canções de Noel Rosa são exemplares
nesse sentido: Filosofia, Palpite infeliz, Último desejo etc.). Um estado de
conjunção entre sujeito e objeto quase sempre pressupõe disjunção anterior ou
posterior para legitimar a euforia da situação descrita. A iminência de mudança

14. Cf. Tatit, L., op. cit., p. 98.


15. Cf. Saussurc, F. Curso de lingüística geral, op. cit., p. 62.
98 - - - - - - - - -- -----------Musicando a semiótica

de um estado para outro, típica de qualquer processo narrativo, institui um


ritmo de conteúdo altamente homologável com o ritmo da expressão. Do mes-
mo modo, as isotopias discursivas- sensoriais, passionais, sociais, conceituais
etc. - são construídas num processo de iteração sêmica que depende das
rupturas, das descontinuidades, para se constituir.
Mais que uma sintaxe actancial, podemos detectar, no plano do conteúdo,
um ritmo narrativo que também opera com a alternância continuidade/descon-
tinuidade. Mais que um ritmo melódico, podemos identificar, no plano da
expressão, uma sintaxe regulando as determinações entre as subcategorias da
concentração e da extensão.

Composição e liberdade

Por mais conflituosos que se apresentem os elementos que compõem uma


canção, em virtude de um certo excesso de fatores descontínuos, o simples fato
de haver leis musicais estabilizando a substância fônica é suficiente para
assegurar um gesto inicial em favor da continuidade. Ao conseguir se
estabilizar numa canção, a voz que canta interrompe sua atividade enquanto
voz que fala e, ao mesmo tempo, instaura-se como extensão material perene de
um corpo. Tudo ocorre como se a voz que canta provocasse a descontinuidade
dos discursos orais cotidianos e a negasse imediatamente em nome de uma
continuidade mais duradoura consubstanciada na composição. Esse processo
nos reporta novamente, em escala microscópica, à silabação. A negação da
descontinuidade consonantal em função da duração da soante constitui
exatamente a defmição saussuriana de ponto vocálico.
C. Zilberberg propõe uma surpreendente e interessante relação entre ponto
vocálico e ponto de liberdade (ponto libertário).l6 O exercício da liberdade
decorre, segundo o autor, da negação dos limites deônticos em prol das exten-
sões do desejo. Ao deixar-se aproximar da voz que fala, do modo de produção
da linguagem oral, o artista retoma em parte o caráter provisório da fala com o
único intuito de negá-lo e, no mesmo ato, reafirmar sua capacidade de recons-
truir durações. Criar na tangente da fala é um risco constante que valoriza a
perenidade de cada composição.

16. Cf. Zilberberg, C. "Présence de Wõlfflin", op. cit., p. 68.


SEGUNDA PARTE

Analisando
a
Canção ·
CAPÍTULO VIII

Elementos para a análise


da canção popular

A apreensão empírica do ouvinte

É comum alguém dizer que ouviu um samba de Tom Jobim, um rock dos
. Titãs ou mais uma canção romântica de Roberto Carlos. Todas essas designações
de gênero denotam a compreensão global de uma gramática. Significa que o
ouvinte consegúiu integrar inúmeras unidades sonoras numa seqüência com
outras do mesmo paradigma. Sambas, boleros, rocks, marchas ... são ordenações
rítmicas gerais que servem de ponto de partida para uma investigação mais
detalhada da composição popular.
Uma outra forma de apreciação empírica da canção é a identificação dos
estribilhos e dos mecanismos de reiteração. Trata-se também de um dispositivo
de gramática melódica, fundamental para a retenção da memória e para as
faculdades de previsão que esse tipo de linguagem temporal exige. A reiteração
toma significativo o fluxo inexorável do tempo. Basta um ligeiro apuro musical
do ouvido para se depreender reiterações.
Pouco mais refinada é a captação da tonalidade musical. No entanto, a
sensação de que a melodia está mais tensa ou menos tensa é um efeito físico que
o ouvinte, antes de compreender, já sente. Não é difícil demonstrar que as
tensões harmônicas obedecem a uma hierarquia de graus que regulamentam a
trajetória da melodia e que toda vez que a tensão regride, o movimento
corresponde à finalização. --
E não é só a tonalidade que assegura a tensão. Toda inflexão da voz para a
região aguda, acrescida de um prolongamento das durações, desperta tensão pelo
próprio esforço fisiológico da emissão. Esta tensão física corresponde, quase
sempre, a uma tensão emotiva e o ouvinte já está habituado a ouvir a voz do
cantor em alta freqüência relatando casos amorosos, onde há alguma perda ou
separação que gera um grau de tensão compatível.
102 _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ __ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

A atuação da fala na canção

A partir dessas percepções naturais da gramática rítmico-melódica,


podemos constatar também a presença menos explícita, mas não menos
importante; da linguagem oral em toda canção popular.
As mesmas consoantes que se transformam em ataques rítmicos e,
juntamente com os acentos vocálicos, contribuem para engendrar o gênero
musical da canção, essas mesmas consoantes recortam a sonoridade da voz
tornando-a inteligível e traduzindo-a nas oposições fonológicas e morfológÍcas
' que possibilitam, em outro nível, a depreensão de frases e de funções narrativas
(sujeito/objeto, destinador/destinatário, persuasão/interpretação etc.). Daqui
surge o conteúdo lingüístico conhecido como o tema da canção.
As mesmas vogais que estabilizam a curva melódica numa sonoridade
contínua, representando fisicamente as tensões emotivas, constituem a base para
as inflexões entoativas da fala. O mesmo percurso melódico que registra a tensão
passional acusa, simultaneamente, uma tensão própria do discurso oral:
ascendência, suspensão e descendência (distensão) dos tonemas.l
A fala está presente, portanto, no mesmo campo sonoro em que atuam a
gramática do ritmo fundando os gêneros e a gramática da freqüência fundando a
tonalidade. A presença da fala é a introdução do timbre vocal como revelador de
um estilo ou de um gesto personalista no interior da canção. Se o ouvinte chegar
a depreender o gesto entoativo da fala no "fundo" da melodia produzida pela
voz, terá uma compreensão muito maior daquilo que sente quando ouve um
canto.

Melodia e letra

Tudo fica mais claro e mais completo ao se verificar a interdependência


entre a melodia e a letra da canção. Se a reiteração e as tensões de altura servem
para estruturar a progressão melódica, esses mesmos recursos podem ser
transferidos ao conteúdo, de modo a construir uma significação compatível.
A qualificação de uma personagem (a baiana, a mulata, o folião, o jovem
ou o próprio narrador) ou de um objeto (o samba, a dança, o país etc.) é uma das
principais formas de manifestação da reiteração na letra. A exaltação, a
enumeração das ações de alguém (O escurinho ou Pedro Pedreiro, por ex.) ou
a própria construção de um tema homogêneo (a rotina em Cotidiano ou Você
não entende nada ou ainda a natureza em Aguas de março ou .Refàzenda, por

1. Os tonemas correspondem às terminações melódicas das frases enunciativas. Neles se


concentra a maior parte do teor significativo das unidades entoativas. Cf. Tomas, Navarro.
Manual de entonación espaiiola, Mexico, Malaga, 1966.
Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - - 103

ex.), funcionam muito bem como espelhamento das reincidências melódicas.


Este tipo de compatibilidade simples já permite a identificação de inúmeras
canções quase didaticamente construídas: Falsa baiana, O que é que a baiana
tem, Palco, -Garota de Ipanema, Beleza pura etc. Reiteração da melodia e
reiteração da letra correspondem à tematização.
A configuração de um estado passional de solidão, esperança, frustração,
ciúme, decepção, indiferença etc., ou seja, de um estado interior, afetivo,
compatibiliza-se com as tensões decorrentes da ampliação de freqüência e
duração. Como se à tensão psíquica correspondesse uma tensão acústica e
fisiológica de sustentação de uma vogal pelo intérprete. O prolongamento das
durações toma a canção necessariamente mais lenta e adequada à introspecção.
Afinal, a valorização das vogais neutraliza parcialmente os estímulos somáticos
produzidos pelos ataques das consoantes. O corpo pode permanecer em repouso,
apenas com um leve compasso garantindo a continuidade musical. Todas as
canções românticas possuem essas características próprias do processo de
passionalização.
E, por fim, a presença da fala também repercute na letra da canção. Todos
os recursos utilizados para presentificar a relação eu/tu (enunciador/
enunciatário) num aqui/agora contribuem para a construção do gesto oral do
cancionista. Ao ouvirmos vocativos, imperativos, demonstrativos etc., temos a
impressão mais acentuada de que a melodia é também uma entoação lingüística
e que a canção relata algo cujas circunstâncias são revividas a cada execução.
O cancioneiropopular traz diversos exemplos, como Conversa de botequim,
A corda, amor, Da maior importância, Você não soube me amar, Sinal
fochado etc., todos inscritos no processo de figurativização enunciativa. -.;,
A presença simultânea da tematização, da passionalização e da figu-
rati vização no mesmo campo sonoro e o revezamento das dominâncias de um
processo sobre o outro constituem o projeto geral de dicção do cancionista.2 A
composição, em si, já propõe uma dicção que pode ser transformada ou
aprimorada pela interpretação do cantor, pelo arranjo e pela gravação. Para
captarmos as dominâncias, precisamos estar bem familiarizados com as
características específicas de cada um dos processos.

Amostra de análise

A análise do trecho de uma conhecida canção de Gilberto Gil, utilizado


como abertura da novela O salvador da pátria, em 1989, talvez possa dar um

2. Cf. Tatit, L. O cancionista, op. cit., p. 9-27.


104 - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - -- ---Musicando a semiótica

exemplo de conduta descritiva visando especialmente a relação da letra com a


melodia.3

Primeira parte:

va ros
· ····- -------··· -------·tr----a·õs---····----·------·-saõ·-·---·--ae-····-----------------·----·-··
·---- -------·--·-· ·- --·- · -·--· · -···--····--··----------·--------------------rnãrs----------- --·-------------

·--··-·····--·········· --·--· ··--····da···

-----------·--- ----------Tã ___________________._............................. ·-·----------·--··a;i·--------------- --- ··-- ----"----


- - . ----------sso-'Ctos _ _____. _________ llãü~-iern·â------------·------ ----·· ··---

-~~---···---~-~---- ~----~~----~-~ -- ~-------~-~ -------~~--._._~~-~---····-~- --- ------~ ...- - -·A-·....--

os

3. Vimos propondo um mapeamento dos contornos melódicos a partir da própria letra da canção,
como um campo de referência aos nossos comentários, esperando que o leitor-ouvinte elabore
mentalmente o exemplo. A acentuação naturdl das palavras sugere, por si só, um tratamento
rítmico que se defme num contexto de familiaridade com a música. Os espaços entre as linhas
determinam as gradações em semitons, enquanto as linhas mais espessas deli:mjtan1 a região de
tcssitura ocupada pela canção.
Elementos para a análise da canção popular 105

rrao ·· ··· · · · · ··········-··-----··Ta:···

Segunda parte
4

--- ~--- -----------·-- ·····aós· ·····tros________________ · -·· ··· ·---·· ··---~~---------- ---·-- --

nos
106 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ Musicando a semiótica

Concebida por compositor de larga experiência no mercado fonográfico,


Amarra o teu arado a uma estrefa4 apresenta um perfil melódico extremamente
econômico, na medida justa para a retenção da memória, contendo apenas os
elementos essenciais que caracterizam, com inteireza, um sentido melódico.
Grosso modo, somente dois desenhos entoativos compõem a seqüência completa
desta canção, separando os três primeiros segmentos (primeira parte) dos dois
últimos (segunda parte).

Primeira parte

Apesar de os três segmentos iniciais manterem o perfil, somente os dois


primeiros são idênticos. O terceiro já acusa uma transformação no campo de
tessitura e no tratamento instrumental de fundo.
A identidade de perfil pode ter um valor temático quando essa reiteração
melódica ecoa a recorrência de gestos somáticos ou de elementos sensitivos
relatados na letra ou, ainda, quando a regularidade firmada em suas acentuações
entra em sintonia fisiológica com o ouvinte. Mas pode também ter um valor
figurativo quando a reincidência dos moti vos serve para forjar uma enumeração
entoativa à maneira da linguagem coloquial. Uma apreciação preliminar da
melodia já revela tendências virtuais da curva antes mesmo da influência
decisiva da letra.

1) A desigualdade dos fragmentos que integram cada segmento melódico tolhe


a fluência rítmica da seqüência, diminuindo a importância de uma eventual
adesão corporal do ouvinte nesta fase.

4. Grav. n° 63558912 ln: O salvador da pátria, Som Livre, 1989. Escolhemos, desta canção, o
trecho consagrado pela citada novela da Rede Globo de TV. A música completa compreende
duas versões de texto referentes à mesma melodia. Nossa escolha se deve: 1) à provável
familiaridade do leitor com este trecho; 2) à similaridade dos procedimentos de composição
nas duas versões; e, por fim, 3) à intenção de não estender demasiadamente os limites da
análise. Transcrevo, aqui, a versão não considerada: Se os frutos produzidos pela terra I Ainda
não são tão I Doces e polpudos quanto às pêras I Da tua ilusão I Amarra o teu arado a wna
estrela I E os tempos darão I Safras e safras de sonhos I Quilos e quilos de amor I Noutros
planetas risonhos I Outras espécies de dor.
Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - - 107

os ··ao··

2) Embora os acentos obedeçam à marcação periódica, não há ainda


aceleração suficiente para que os ataques consonantais se sobreponham às
durações vocálicas. Ao contrário, são essas que, nos tempos fortes, vão sendo
captadas auditivamente como pontos de referência para a posterior elevação da
freqüência, durante o terceiro segmento.

1 2

se os se os

os ······· tos··
108 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

3 3) O realce das vogais, mesmo fora de um prolon-


gamento expressivo de sua duração, atenua a
função dos ataques (dos recortes) das consoantes,
··· ···· ··· ·r:taY evitando uma excessiva dinamização do conti-
···..................................
·· a ··aa nuum temporal. Emprestando, aqui, uma noção
de Eero Tarasti,5 podemos dizer que a desa-
tivação do tempo musical- basicamente, pela
moderação dos recortes e pela desaceleração do
rrao andamento -reflete a atuação da modalidade do
/ser/ sobre o devir melódico, enquanto o processo
inverso de ativação do tempo musical- dentro de
uma tematização stricto sensu -reflete a atuação
da modalidade do /fazer/.6 A modalização do I
ser/, que subjaz à melodia e à letra ao mesmo
tempo, camufla os estímulos corporais próprios da ação, em proveito de um
estado psíquico propenso à paixão.
Ao longo desses três segmentos iniciais, se observássemos exclusivamente
o perfil melódico, verificaríamos a influência das duas modalidades, com
progressiva dominância do /ser/ sobre o /fazer/. De fato, o andamento pausado
da melodia, valorizando as durações e os acentos das freqüências mais elevadas
sintomatiza a modalização do /ser/ e cria uma atmosfera propícia à
passionalização. Quando, neste contexto, o perfil do terceiro segmento desloca-
se para o agudo, o quadro passional parece ainda mais definido no plano
emotivo, pois cria-se um foco de tensão (alta freqüência) fartamente sugestivo
para uma elaboração da letra da mesma orientação. O pico do primeiro
fragmento eleva-se três sernitons, enquanto o do segundo eleva-se mais quatro,
demarcando a fronteira superior do campo de tessitura.

5. "Le rôle du temps dans le discours musical". ln: Arrivé, M. e Coquet, J.-C. (cds.), Sémiotique
en jeu, op. c it., p. 127.
6. Tarasti transfere as modalidades do /ser/ e do /fazer/ de seu habitual contexto narrativo para o
domínio da música erudita. Cogitamos que essa derivação ganharia um peso ainda maior no
terreno da canção popular, onde melodia e letra sâo regidas pelos mesmos princípios.
Elementos para a análise da canção popular _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 109

ra
a a
ma u
maes

rrao
a

Entretanto, a base instrumental que acompanha a seqüência desde o início


desfaz essa tendência ao atingir o limiar do terceiro segmento. A dinâmica
incorporada a partir deste momento imprime na linha melódica uma nova
fisionomia musical. Os acentos, a pulsação e a periodicidade passam para o
primeiro plano evidenciando um /fazer/ relativamente ofuscado nos segmentos
anteriores. Em vez de referendar o projeto de passionalização inscrito na
elevação melódica, esse novo tratamento se impõe como prenúncio de uma
tematização ainda mal configurada. Esta condição, aliás, é própria da ~
continuidade melódica cujos fragmentos estão sempre duplamente
comprometidos, com o que passou e com o que está por vir. Só o recorte
promovido pela letra, como veremos à frente, pode defmir de vez a ação do devir
melódico.
O discreto compromisso com a tematização nos dois primeiros segmentos
e o estreitamento deste laço a partir do terceiro pemlitem extrair duas conclusões
a respeito da melodia:

1) A identidade de perfil, nos dois segmentos iniciais, evidencia um valor


figurativo (em nossa fala cotidiana, repetimos o motivo entoativo ao
enumerarmos fatos de mesma natureza). Nessa perspectiva, cabe observar
ainda o caráter descendente dos tonemas de todos os fragmentos, incluindo
os do terceiro segmento, instaurando um contexto geral de asseveração que
vai influir diretamente na formação de mensagem da letra.
110 ______ __________________ Musicando a semiótica

··~-~-~~---~··- ·--n•••·~~•··--•
os

...... J?.~:<: ...

--- ··-· ··1as

a
Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - 111

Tal asseveração é ainda reforçada pela aceleração terminativa dos


fragmentos menores, localizados à direita do diagrama, que funcionam como
arremates enunciativos das respectivas frases anteriores.

2) O terceiro segmento desempenha uma função transformadora dentro do


contexto melódico global da canção. De um lado, o acréscimo de tensão no
nível da freqüência sugere um processo de passionalização. De outro, a
dinamização do acompanhamento de base, na abertura deste segmento,
revitaliza o valor temático que permanecera diluído nas seqüências ante-
riores. Afinal, a reiteração do perfil e a regularidade rítmica já se vêm con-
formando desde o início, faltando apenas serem devidamente sublinhadas. A
compatibilização da melodia com a letra é notória:

Se os campos cultivados neste mundo


São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarre o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus

Do ponto de vista figurativo, a reiteração da curva incide sobre a enume-


ração de elementos de mesma natureza, os "campos" e os "solos", enquanto os
tonemas descendentes constatam as condições insatisfatórias em que eles se
encontram: "são duros demais" e "não produzem a paz". Tais valores figurativos,
entretanto, só serão devidamente dimensionados na abertura do terceiro
segmento, com a inclusão do imperativo: "amarra". Este modo verbal realiza,
com plenitude, a vocação entoativa da melodia de c1mção, pois que sua aplicação
instaura, simultaneamente, uma relação de comunicação direta (eu/tu) fundada
num aqui/agora incontestável. O imperativo presentifica o tempo e o espaço
enunciativo, exacerbando os efeitos entoativos (no sentido de que o cantor fala
ao mesmo tempo que canta) inerentes à melodia vocal. Desempenha, quase
sempre, a função de núcleo da figurativização.
Nessa concepção, o verso "amarra o teu arado a uma estrela" ocupa o centro
nevrálgico da mensagem figurativa, onde o enunciador emite sua sugestão
metafórica como alternativa para se escapar às coerções deste mundo.
Do ponto de vista passional, a condição deflagradora é o sentimento de falta
determinado pelos traços de esterilidade (improdutividade) que virtualizam uma
possível busca de fecundidade. A disjunção com os valores positivos, aqueles
112 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

que ainda não germinam em nosso planeta, é um dos efeitos da modalização do


/ser/ sobre a letra. Assim como a melodia progride de maneira pausada, a letra
vai revelando as carências que estão na base da expectativa subjetiva. Tudo
conflui para a paixão que deveria se consolidar na elevação de freqüência (tensão
passional) do terceiro segmento. Entretanto, como já observamos, neste
momento surge a intervenção determinante da base instrumental que se alia
diretamente à frase da letra, extraindo da melodia, não o sentido passional
prefigurado, mas os valores da tematização discretamente ensaiados nos
segmentos iniciais.
Do ponto de vista temático, portanto, a leitura deste terceiro segmento
complementa e expande o viés figurativo, deixando a passionalização em
segundo plano.
"Amarra o teu arado a uma estrela" é uma proposta de ação ainda que "arado"
só se relacione com "estrela" num plano metafórico. Trata-se de uma solução que
interrompe o quadro passional que se vinha desenhando . Em vez de ampliar a
tensão psíquica, na mesma proporção do aumento de freqüência, o enunciador
reverte a tendência propondo uma transformação típica do /fazer/. Com a ação,
cessa a hegemonia da paixão: o sentimento de falta converte-se em projeto de busca
(ou, ainda, de liquidação da falta). Daí então a compatibilidade, aliás muito
freqüente, da letra com o arranjo instrumental. A ação descritiva no primeiro é
solidariamente incentivada no segundo.
Disso decorre um grande fator de unidade desta canção. Este terceiro
segmento está vinculado à primeira parte (ou, mais precisamente, aos dois
primeiros segmentos) pela continuidade do perfil melódico, mas já antevê as
diretrizes da segunda parte pela letra e pelo arranjo instrumental. Tal intersecção
contribui para uma passagem gradual sem rupturas.

Segunda Parte

A alteração do perfil melódico, a partir do quarto segmento, traz wna nova


concepção seqüencial em relação às unidades da primeira parte:

l) Os fragmentos são dinamizados com um recorte mais minucioso do tempo


rítmico de cada compasso, acelerando o andamento.

2) As quatro subseqüências (ou fragmentos) dos segmentos 4 e 5 recebem um


tratamento bem mais homogéneo que o da primeira parte. Equivalentes do
ponto de vista rítmico (exceto na região dos tonemas), o sentido reiterativo da
melodia torna-se mais claro e determinante na audição.
Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - - l 13

-- ----~---------~-

3) Esses traços suprimem o ritmo pausado da parte inicial e ampliam con-


sideravelmente a vocação temática da linha melódica. Não se pode deixar de
reconhecer, contudo, uma dimensão figurativa que permanece nas oposições
dos tonemas,
114 Musicando a semiótica

a·ra:v:r:a:aor:·rau:··

e mesmo as duas marcas passionais expressas com lirismo nas durações


agudas dos primeiros fragmentos:

---~-- ----· --aõs ··-f.ros


- · ~- -·-
.................................. .............................................
- -------······-·----------·--aa-····rra.- ----
·········· .........•.

A permanência mais prolongada da voz nessas duas sílabas preserva uma


espécie de seqüela passional, provocada pela idéia de afastamento (metafórico)
da terra. Apesar de o contexto geral apresentar essa busca da fecundidade
interplanetária como uma solução, há um fundo, digamos, dialético, que
identifica essa nova aquisição com um outro tipo de perda ("outras espécies de
dor" na versão da letra não descrita aqui). E tal equação vem formulada nos
versos: "E quanto mais longe da terra I tanto mais longe de Deus". Uma vez
mais, a tensão de freqüência representa a tensão de afastamento de um objeto de
valor.
Elementos para a análise da canção popular - - - - - - - - - - - - 115

No plano figurativo, esta composição adota decididamente a asseveração:


nos dois primeiros segmentos, por se tratar das constatações (ou condições)
iniciais que irão deflagrar as situações posteriores; no terceiro segmento, por ser
a voz imperativa que pratica a recomendação de uma proposta de ação; nos
últimos, finalmente, por refletir o resultado e a avaliação feita pelo próprio
enunciador. Aqui, o comportamento das inflexões segue o padrão lógico de
entoação das frases enunciativas, em que a ptimeira seqüência se eleva para
valorizar o aspecto conclusivo da descendência frnal (cf. no penúltimo diagrama
anterior, a melodia do segmento 4).
Se, no quinto segmento, o tonema final aparece invertido, é mais por
acréscimo do que por mudança de sentido. A asseveração persiste na base
harmônica, reforçada, inclusive, pela sétima dominante que prepara a resolução
do último acorde. O emprego de uma forma tonêmica ascendente para atingir a
tonalidade tem, aqui, um valor temático no sentido de "chamar" musicalmente
os improvisos vocais onomatopaicos, pronunciados cm "uou, uou... ".

Por fnn, a letra desta segunda parte só poderia confrrmar os desígnios da


melodia. Assim como esta se cristaliza em quatro temas, agrupados dois a dois
no quarto e no quinto segmentos, a letra engendra a imagem do camponês-
lavrador do espaço sideral, qualificando-a, igualmente, com quatro motivos de
conteúdo: "louco dos astros", "solto nos céus", "longe da terra" e "longe de
Deus".
A esse processo de engcndramento de imagens chamamos iconização, num
sentido talvez mais próximo da semiótica européia do que da americana. 7

7. Cf. Greimas, A. J. e Courtés, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 223.


116 _ _ __ Musicando a semiótica

Temos iconização toda vez que aparecem diversos traços para configurar a
mesma imagem, o mesmo objeto, a mesma personagem ou até o mesmo
sentimento. De qualquer forma, a característica marcante desse processo é a
enumeração lingüística desses traços que faz ressoar as reiterações dos temas
melódicos. Tudo ocorre como se a canção engendrasse um novo signo, em que
o plano da expressão se define pela recorrência dos temas melódicos e o plano
do conteúdo pela enumeração dos traços que compõem um ícone integral. Se a
melodia assim concebida mexe diretamente com o nosso corpo pelos canais
auditivo e tátil, a letra atinge nossa mente por esses mesmos ou por outros canais
sensitivos. Nesta canção, por exemplo, as movimentações descritas na dimensão
espacial evidenciam um apelo visual: "O lavrador louco dos astros I O camponês
solto nos céus".
Assim, a dinamização do andamento melódico mais a equivalência de suas
unidades rítmicas para excitar o processo reiterativo passam a ser o tema musical
do camponês-lavrador impregnando-se de suas características. Este é o resultado
geral da tcmatização que ocupa, nesta composição, o primeiro posto na
hierarquia das estratégias persuasivas. De qualquer modo, é pela presença
concomitante e coerente dos outros dois processos (passionalização e figura-
tivização) preenchendo outras esferas do seu sentido, que Amarra o teu arado a
uma estrela integra-se na economia geral de sua linguagem e renova, a cada
execução, o encanto e a eficácia da canção popular.
CAPíTULO IX

Valores inscritos
na canção popular

Introdução

O poder de persuasão e de interpretação da canção popular, tão analisado


em seus entornos antropoculturais e mercado lógicos, possui também uma face
estético-gramatical inscrita no próprio ato de composição.
Produzir canções significa produzir compatibilidades entre letras e
melodias- aos quais se agregam recursos musicais de .toda ordem - de modo a
configurar um sentido coeso. Como ocorre em geral com as linguagens estéticas, t-
ou sistemas semi-simbólicos, 1 a canção também se investe contra a famigerada
arbitrariedade do signo saussuriano, buscando uma remotivação das relações
entre plano da expressão e plano do conteúdo em suas respectivas progressões
discursivas. Tentativa legítima de obter em processo o que não possui em
sistema.
Ao mesmo tempo que a compatibilidade entre letra e melodia é apreendida
sem qualquer esforço pelo ouvinte, sua explicação em termos descritivos exige
um meticuloso trabalho de abstração, que compreende a identificação das
categorias comuns responsáveis pela articulação dos conteúdos da letra e dos
segmentos melódico-musicais. Felizmente, a fruição do ouvinte não depende de
análise.

l . Sem i-simbólicos são os sistemas signiticantes que não possuem a mesma conformidade entre
~s unidades do plano da expressão e as do plano do conteúdo, como ocorre no sistema
língüístico (considerado, em semiótica, sistema simbólico por excelência) . As relações entre os
dois planos são estabelecidas por categorias. Por exemplo, a categoria que articula ascendência
e descendência melódica, no plano da expressão, pode estar relacionada à categoria que
articula, no plano do conteúdo, as noções de prossecução e conclusão. Para o aprofundamento
da noção de sistema semi-simbólico, consultar o trabalho de Jean-Marie Floch, Petites
mythologie de / 'oeil et de l 'esprit - pour une sémiorique plastique, Paris-Amsterdã, Hades-
Benjamíns, 1985, principalmente a partir da p. 79.
118 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A1usicando a semiótica

Adequação ao objeto

Grosso modo, o plano da expressão da canção popular articula-se com


elementos fonológicos e elementos melódicos. Os primeiros mantêm a pesquisa
da canção a um passo do discurso oral (da fala), enquanto os elementos
melódicos atraem o analista para o viés musical. Essa dupla inclinação faz da
canção um objeto de análise extremamente escorregadio e refratário à pesquisa.
Um analista que não seja ao mesmo tempo cancionista, ou ainda, que não
tenha a sensibilidade prática de produção e apreensão de canções, tais como elas
circulam diariamente nos meios de comunicação, muito provavelmente
tenninará sua pesquisa num outro campo de investigação (como o musical, por
ex.), e a culpada por esse desvio será certamente a canção que não se mostrou
suficientemente boa para merecer a aplicação de um modelo tão bem constmído.
Há que se verificar, a todo instante, se o modelo construído ainda se refere ao
mesmo objeto de análise e se ainda está adequado aos recursos de criação do
compositor popular. Todos esses problemas incidem diretamente sobre a
organização do plano da expressão da canção, mormente no que diz respeito à
melodia.
Note-se que não se pode pensar em melodia de canção sem aproxin1á-la da
entoação lingüística, já que ambas manifestam um fazer somático fundado numa
substância de expressão vocal. Um cantor sempre diz alguma coisa com suas
melodias como qualquer falante com suas entoações. Paralelamente aos
investimentos modais disseminados no discurso lingüístico e no discurso da
canção, ocorre um acréscimo tensivo expresso pelos contornos melódicos, onde
se concentra grande parte dos conteúdos epistêrnicos, cognitivos e volitivos da
letra.
No caso da canção, especificamente, o tratamento especial dispensado à
melodia, no sentido de estabilizá-la e precisá-la em função das acentuações
fonológicas, traz a esse componente uma densidade tensiva particularmente
poderosa, uma vez que sua linearidade é criada para dar conta dos mesmos
conteúdos investidos no componente lingüístico.

Critérios tipológicos para a melodia

Quando examinamos uma canção, encontramos basicamente três modelos


de construção melódica, que se manifestam como exploração tensiva dos
parâmetros musicais, quais sejam: a duração, a altura (ou freqüência) e o timbre
(não consideraremos aqui a intensidade).
O primeiro diz respeito a um processo geral de periodicidade rítmico-
melódica que favorece a produção de motivos reincidentes em forma de
encadeamento. Esse tipo de progressão de elementos quase idênticos tende a
Valores inscritos na canção popular - - - - - - - - - - - - - - - 119

demarcar uma regularidade de pulsação e de tempo forte. A importância


atribuída aos ataques rítmicos repercute na escolha dos componentes fonológicos
da face lingüística, dando prioridade às consoantes que funcionam como
interruptoras de sonoridade. A concentração de tensividade do parâmetro
duração corresponde, neste caso, a urna redução da permanência vocálica, efeito
produzido pela disseminação ágil dos acentos, e, conseqüentemente, a urna
valorização das células rítmicas como portadoras de pulsação e estímulos
somáticos. Quanto mais dinâmico o andamento dessas células, mais sintonia
adquire com relação aos movimentos regulares do nosso corpo (batimento
cardíaco e inspiração/expiração, por ex.). A esse processo geral de reiteração,
aceleração e regularização da pulsação rítmica, engendrando motivos bem
definidos, chamaremos tematização de expressão. Geralmente, a tematização
conduz a um tipo de instrumentação já comprometida com gêneros conhecidos
como o samba, o rock, o bolero etc., mas nada impede que sejam fundados novos
gêneros a partir de modificações na estrutura rítmica da pulsação.
O segundo modelo caracteriza-se pelo investimento tensivo do próprio
contorno em termos de ampliação do campo de tessitura melódica, das durações
vocálicas e das próprias pausas entre as frases. Surge, conseqüentemente, urna
tendência para os grandes saltos intervalares e para a exploração da região aguda,
onde as cordas vocais manifestam fisicamente a tensividade. O prolongamento
das durações, por sua vez, tem como corolário a desaceleração rítmica e o
abrandamento da pulsação substituindo os efeitos somáticos por efeitos
psíquicos geralmente ligados a conteúdos afetivos. Como ocorre no discurso
lingüístico oral, os pontos que acumulam maior densidade tcnsiva são os
denominados tonemas, 2 localizados nos fmais das frases melódicas. Quando são
ascendentes ou suspensivos (os que permanecem na mesma freqüência) indicam
continuidade, mantendo a atenção acesa. Quando descendem, expressam
temlinatividade em decorrência da distensão das cordas vocais. Mas, além dos
toncmas, deve-se considerar, neste segundo modelo, todo o percurso do contorno
como um campo de investimento tensivo-emotivo. O prolongamento das
durações, por si só, ajuda a deslocar o pólo de investimento e de concentração
tensiva, pois, na medida em que neutraliza ou, pelo menos, atenua o papel das
pulsações, valoriza as permanências nas vogais e, conscqücntcmcntc, as
oscilações de altura em todas as fases do contorno melódico. A própria dinâmica
de polarização tonal, que subjaz a toda canção popular, destaca-se como
importante fator de tensividade em função da valorização das alturas. Quando
em correlação com o componente lingüístico, essas oscilações poderão ser
descritas, com certa precisão, nos termos das modalidades: querer, dever, crer/
saber e poder. Uma tal tensividade, criada pela ampliação das alturas e das
durações, corresponde, pois, à passionalização de expressão.

2. Cf. nota 1 do Capítulo VIII.


120 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - M u s i c a n d o a semiótica

O terceiro modelo de construção equivale ao processo inverso de distensão


e, conseqüentemente, de desinvestimento do percurso melódico, como se esse
componente tendesse a atingir um grau zero de significação, por intermédio de
um tratamento que esbarra no limiar da pura entoação lingüística. Tanto a
reiteração dos motivos quanto a configuração dos contornos melódicos perdem
sua força tensiva reduzindo-se às ondulações essenciais próximas ao discurso
oral. A autonomia melódica, muito tênue, é assegurada por algumas reiterações
esparsas e pelas inflexões asseverativas dos tonemas . A tensividade das
ascendências e das suspensões indica nada mais que a continuidade do discurso,
em oposição à term.inatividade das descendências. As acentuações melódicas
permanecem atreladas às acentuações lingüísticas, assin1 como os ataques das
notas podem se desdobrar ou se reduzir de acordo com o número de fonemas
consonantais. A métrica de expressão fica a serviço da ordenação argumentativa
e narrativa do conteúdo lingüístico. Trata-se de um procedimento muito
semelhante ao do discurso coloquial, onde dispensamos as rimas, as aliterações
e a estabilidade entoativa. Por isso, não é fácil operar melodicamente nesse
limite. Uma melodia de canção jamais pode ser completamente entoativa; no
entanto, o simples fato de indicar essa tendência já revela um processo que
denominaremosfigurativização enunciativa de expressão.
Há canções que manifestam inclinações para o primeiro modelo de
construção melódica (exs.: Aguas de março- Tom Jobim, Aquarela do Brasil
- Ary Barroso e O que é que a baiana tem - Dorival Caymmi), outras para o
segundo (exs.: Nervos de aço - Lupicínio Rodrigues, Travessia- Milton
Nascimento/Fernando Brant e Pedaço de mim- Chico Buarque) e outras ainda
para o terceiro modelo (exs.: Conversa de botequim - Noel Rosa/Vadico,
:' Estatutos da gafieira- Billy Blanco e Ouro de tolo - Raul Seixas). O mais
natural, porém, é a presença dos três modelos oscilando na construçào melódica
de uma mesma canção. O exemplo clássico - que detalharemos mais adiante, p.
156- é o de Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Morais. Na
primeira parte, podemos identificar o modelo referente à tematização de
expressão (ou seja, um motivo fartamente reiterado). Na segunda parte, ocorre a
expansão das freqüências no campo de tessitura, ao lado de um prolongamento
das durações, deslocando o pólo de tensividade para o próprio desenho da curva
melódica.
Não é difícil compreender esta oscilação de tensividade. A reiteração
regular de um motivo e sua aceleração transferem o foco de investimento tensivo
de cada motivo isolado para o seu encadeamento, o que neutraliza de certa fmma
a altura em virtude do privilégio dado ao parâmetro das durações (responsável
pelo ritmo) . De maneira inversa, o prolongamento das durações, que faz
desacelerar o andamento, mais a ampliação do espaço de articulação das alturas
melódicas rumo à região aguda da tessitura, atenua a pulsação rítmica e dilui a
marcação do tempo forte, concentrando o foco de tensividade no desenho
Valores inscritos na canção popular - - - - - - - - - - - - - - - - 121

registrado em cada contorno melódico. Ganha relevo, portanto, o parâmetro


altura, maior responsável pela configuração do perfil da curva.
Uma vez que todos os parâmetros musicais (timbre, intensidade, duração e
altura) manifestam-se a partir da emissão de um único som, diremos que a
oscilação entre duração e altura se dá em termos de maior ou menor a cúmulo de
densidade tensiva. Assim sendo, a distensão simultânea dos dois parâmetros
pode evidenciar a presença do timbre vocal, elemento especificador da instância
de enunciação, que vem reforçar o terceiro modelo de construção melódica a que
chamamos figurativização enunciativa. A função normalmente desempenhada
pelo timbre, entretanto, é a de ponte de ligação entre as zonas de densidade
tensiva dos enunciados melódicos e o sujeito da enunciação que, na canção
popular, vem manifestado pelo cantor.

A relação com a letra


Esses três modelos de construção melódica da canção toruam-se ainda mais
interessantes quando verificamos sua compatibilidade com o desenvolvimento
do componente lingüístico.
À tematização melódica corresponde, em geral, a tematização narrativa.
Um outro tipo de reiteração, de natureza sêmica, qualifica o /ser/ de um actante,
dotando-o de aptidões que se desenvolvem em performances (/fazer/)
geralmente pragmáticas. Simultaneamente, este actante é atorializado3 com
numerosos traços figurativos vinculados ao que a semiótica chama de expressão
do mundo natural. Tudo ocorre como se a concretização do motivo melódico
representasse a manifestação do ator ou da figura discursiva.
À passionalização melódica corresponde a passionalização como estado
modal narrativo. Nesse sentido, a tensividade contida nos contornos melódicos
representa, no plano da expressão, a tensividade decorrente das disjunções e
conjunções dos actantes narrativos do plano do conteúdo. Não é à toa que quase
todas as canções do segundo modelo tratam do tema da separação ou da união
amorosa.
À figurativização melódica, finalmente, corresponde o aumento da
deitização 4 lingüística. A distensão dos parâmetros duração e altura visa romper,
até certo ponto, com a autonomia do enunciado musical, atraindo a atenção para
a situação enunciativa. Esta tendência ocasiona no componente lingüístico um
acréscimo considerável dos imperativos, vocativos, demonstrativos e de todos os

3. A noção de atorialização refere-se à passagem do nível narrativo ao nível discursivo, quando o


actante ganha investimentos semânticos e se transforma num atar com todo o emiquecimento
de sentido próprio desse processo.
4. A deitização é o processo pelo qual os enunciados se reportam à instância de enunciação. Por
intermédio dos dêiticos (tempo, espaço, demonstrativos, imperativos, vocativos ... ) o
enunciador se projeta no discurso e simula a presença da enunciação no enunciado.
122 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

elementos que servem para dar impressão de presentificação enunciativa. Este


processo atinge o auge, quando o cantor, durante um samba de breque, por
exemplo, interrompe a melodia programada e passa a improvisar mna fala, cujas
entoações, exclusivamente circunstanciais, jamais poderão ser novamente
repetidas.
Entretanto, o papel mais significativo da figurativização na canção popular
não se refere aos casos de distensão melódica e sim à presença da instãncia
enunciativa (relativa à enunciação) na articulação das tensividades enuncivas
(relativas aos enunciados). O timbre da entoação vem sempre realizado por mn
intérprete-cantor que dosa os investimentos tensivos de acordo com seu estilo de
tratamento no plano da manifestação, firmando a cada execução um novo
contrato enunciativo com o ouvinte. A partir desse contrato, os pólos de
tensividade propostos pela composição são relativizados e reescalonados em
novas bases fiduciárias. Tudo depende da habilidade persuasiva do intérprete no
manejo das tensividades já sugeridas na composição. Nmn sentido mais abstrato,
podemos dizer que o parâmetro timbre regula, nmna perspectiva enunciativa, as
oscilações de tensividadc entre os parâmetros duração c altura dos enunciados
melódicos.

Projeto enunciativo

Chegamos, assim, àquilo que podemos chamar de projeto enunciativo de


uma canção. Todas as possibilidades oscilatórias entre tensões temáticas e
tensões passionais, bem como o processo de desativação dessas tensões, estão
inscritas, de algum modo, no seu projeto enunciativo. Quando ouvimos
diferentes execuções de uma mesma composição, entramos em contato com
diferentes interpretações do mesmo projeto geral criado pelo cancionista. A
própria noção de intérprete, geralmente próxima à de cantor, ganha, nesse
sentido, nova dimensão: o intérprete é também aquele que realiza a primeira
leitura interpretativa do projeto enunciativo do compositor, orientando, com sua
intermediação, a segunda leitura que será praticada pelo ouvinte.
O projeto enunciativo pode ser desdobrado em projeto entoativo (recursos
investidos na melodia) e projeto narrativo (recursos investidos na letra). Uma
canção tradicionalmente interpretada numa linha temática pode conter, em seu
projeto entoativo, alguns traços de prolongamento vocálico ou de pausas que,
uma vez valorizados, transferem toda a canção para uma linha de leitura
passional. Da mesma forma, se sua letra - além da exaltação de suas
personagens, objetos e acontecimentos- configura alguma situação passiva, ou
um sentimento de perda e carência, tais características podem se aflorar em
ressonãncia à nova inflexão melódica.
Valores inscritos na canção popular - - - - - - - - - - - - - - - - - 123

Uma canção como Felicidade, de Lupicínio Rodrigues, por ex., conheceu,


até o momento, pelo menos duas versões interpretativas diametralmente opostas:
a do Quarteto Quitandinha em 1947 e a de Caetano Veloso em 1974.
A primeira versão destaca as tematizações investidas no projeto enun-
ciativo. No projeto entoativo, temos as seqüências descendentes que, em versão
acelerada, perfazem um encadeamento recorrente típico da tematização:5

5. A diferença das interpretações é tão acentuada que problematiza a identificação da curva


melódica original. Transcrevemos a versão de Caetano por sua boa defmição auditiva e por
conter, em essência, os traços que queremos sublinhar.
124 Musicando a semiótica

E, no interior dessas seqüências, outras células se sobressaem como


alinhavos titmicos que garantem a expansão dos temas-chave (em destaque pela
ampliação simultânea de duração e altura) por todo o encadeamento:
Valores inscritos na canção popular - - - -- - -- - -- - -- - 125

A segunda parte nos traz uma reiteração temática explícita que dispensa
comentários:

-~~~ª~-==;;~~~-----·· -············· - ---ctôóü··---······.........:!::l.~~=~==~=~ª§ii~ilE::=::::iE~~§:~-:===:~==


a·m:;·- -- 5â'fi___ - de-t'iãs- --

Quanto ao projeto nanativo da letra, a valorização recai, na execução do


Quarteto, sobre os conteúdos que apontam para uma direcionalidade resolvida.
Assim como a melodia constrói, por meio de suas células reiterativas, um
itinerário previsível, a letra revela as conjunções eufóricas do actante sujeito eu
("eu gosto lá de fora ... " I "a minha casa...") e a passagem livre que leva o sujeito
até seu objeto de valor ("mas eu vou em um segundo..."). O sujeito ainda conta
com dois instrumentos do /poder/, manifestados pelo "canto" (" ...eu vou em um
segundo quando começo a cantar") e pelo "pensamento" ("como é que a gente
voa quando começa a pensar"), adjuvantes infalíveis de suas ações.
A versão de Caetano Veloso apresenta, entre outras coisas, um significativo
alongamento vocálico que repercute imediatamente na individualização dos
contornos melódicos e, por conseguinte, na dispersão do encadeamento.
Acontece que o projeto entoativo desta canção permite também uma leitura
passional a partir de uma simples desaceleração. Sobre a base de um campo de
tessitura extremamente amplo (22 semitons), há uma programação para saltos
intervalares ascendentes de doze sernitons e para as retenções vocálicas nas
sílabas assinaladas a seguir:
126 - - - - - - - - -- - - - -- --- _ _ _ Musicando a semiótica

to

Para manter o efeito durante a segunda parte -na qual a programação é


eminentemente temática - o arranjo instrumental sustenta o carátcr passional
com as amplas inflexões e amplas durações do estribilho do Luar do sertão, de
Catulo da Paixão Cearense, soladas ao fundo.
Essa sutil inclinação para os recursos passionais, também inscritos no
projeto entoativo de Felicidade, é suficiente para "liberar" da letra os conteúdos
emocionais do projeto narrativo ocultados na primeira versão. A perda da
"felicidade" e a conjunção com um valor disfórico- a "saudade" (que implícita
a disjunção com o valor realmente desejado) - vêm à tona e se expandem sobre
os demais conteúdos, tomando-os recessivos.
O projeto enunciativo criado pelo compositor representa, em primeiro
lugar, urna seleção inicial dos valores temporai~, missivos,6 que estão na base de
toda produção de sentido. A opção pela retenção do tempo significa um
compromisso com os valores remissivos manifestados pela lembrança e pela
expectativa. A opção pela distensão do tempo transforma-se em satisfação
eufórica com os valores emissivos. São paradas e continuidades que fazem
oscilar a elasticidade do continuum temporal e que se convertem em
programação comum ao plano da expressão e ao plano do conteúdo ..
No exemplo de Felicidade, os valores emissivos foram ressaltados na
versão do Quarteto Quitandinha pela exploração das virtualidades temáticas

6. Cf. Capítulo I, p. 17.


Valores inscritos na canção popular - - - - - - - - - - - - - - - 127

(melódicas e lingüísticas) inscritas no projeto enunciativo. Na versão de


Caetano Veloso, os valores remissivos do mesmo projeto foram traduzidos em
termos de passionalização (melódica e lingüística). A solução no tratamento
desses valores temporais depende, evidentemente, de cada composição.
O projeto enunciativo contém as possibilidades persuasivas de uma canção
que deverão ser absorvidas e selecionadas por um intérprete-cantor e, por fim,
apresentadas ao ouvinte para a última fase interpretativa. O estudo deste projeto Y.
é, a nosso ver, o núcleo principal de investigação das estratégias persuasivas no
nível do próprio objeto de análise. Tal enfoque preencheria talvez boa parte da
lacuna deixada pelo abandono precoce (salvo honrosas exceções) das pesquisas
sobre a linguagem, em função de suas causas e conseqüências no meio
sociocultural.
CAPÍTULO X

Tempo e tensividade
na análise da canção

Uma canção

O sw-gimento de uma canção arrebatadora, em meio ao fluxo contínuo das


produções habituais, seduz, intriga e faz pensar. Brilho de beleza - interpretada
sucessivamente por Caetano Veloso e por Gal Costa em seus shows e registrada
no LP da cantora 1 -é uma composição de Nego Tenga, simples em todos os
sentidos, mas portadora de um "brilho" especial que impressionou músicos,
platéias e cancionistas em geraL
O aparato percussivo e a forte encenação incluídos em suas execuções,
especialmente na versão de Gal Costa, vieram a ressaltar alguns aspectos que por
certo já estavam virtualizados na composição quando de sua escolha pelos
artistas. Questão intrigante: onde ficam armazenados os recw-sos da canção antes
de :ma explicitação instrumental e cênica?

Uma teoria

Do mesmo modo, o surgimento de uma nova formulação teórica em meio


aos princípios já bem estabelecidos de uma ciência, ou quase ciência, pode ,.
também se tomar arrebatador, embora saibamos de antemão que tais modelos de
compreensão não sejam construídos para durar, mas, ao contrário, para se
extenuar assim que tiverem nutrido os centros vitais de urna melhor formulação.
De qualquer forma, sempre que irrompe um modelo sugerindo soluções a
questões pendentes e motivando a retomada da reflexão, uma nova elegância se
manifesta e nem sempre sabemos ao certo se estamos no terreno da teoria ou da
estética.

I. Gal Costa ( 1990) Plural, São Paulo, RCA.


130 _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ Afusicando a semiótica

Nessa faixa híbrida, entre a teoria e a estética, transcorrem, a nosso ver,


alguns dos principais trabalhos de Claude Zilberberg. Oscilando entre o rigor
epistemológico de L. Hjelmslev e a precisão as...sistemática de P. Valéry,
Zilberberg reformula o percurso gerativo da significação que foi, sem dúvida,
urna das contribuições mais férteis da semiótica de A. J. Greimas ao pensamento
contemporâneo.
O percurso gerativo, como se sabe, é uma representação sugestiva e
heurística das etapas de construção do sentido de seu nível mais simples e
abstrato até a manifestação complexa, concreta c emiquecida do texto. E texto
aqui não se refere apenas a textos lingüísticos, como se costuma pensar, mas a
tudo que for tecido por um conjunto de leis (a explicitar em cada caso) e
materializado numa ordem sensitiva qualquer (visual, auditiva, tátil...).
Toda análise toma, necessariamente, o itinerário inverso ao do percurso
gerativo. Partindo do texto e de sua riqueza insubstituível e singularizante, o
analista refaz suas etapas abstratas de construção do sentido, seguindo
processos de pressuposição conceituai, até atingir urna região de conteúdos c
sintaxes muito elementares que não são mais exclusivas deste texto mas
'/ extensivas a todas as criações do imaginário humano. Nesse patamar
profundo, ou próximo dele, podemos conceber uma "zona franca" de trânsito
livre entre os textos, um lugar em que o texto perde sua singularidade, se
empobrece, mas põe à mostra seus elos formais e culturais com outras
produções da comunidade, deixando transparecer os sintomas de
compatibilidade intertextual que normalmente apreendemos, sentimos e nem
sempre conseguimos explicar (aquele lugar recôndito do nosso espírito em
que intuímos os pontos comuns entre um filme e urna obra literária, entre urna
pintura e urna música, entre urna canção e urna história em quadrinhos mas
que, afmal, são tão diferentes ... ).
O percurso gerativo, no fimdo, apenas sistematiza, com a devida economia
conceituai, nossa prática espontânea de reflexão sobre os textos. Fornece urna
trajetória conseqüente às necessárias abstrações e evita que, a cada análise,
tenhamos de retomar o ponto de partida. Entretanto, o ganho que se obtém em
termos de progresso analitico é constantemente relativizado por se tratar de um
modelo arbitrário, como todo modelo, e que acaba se convertendo numa espécie
:.-: de guia para a reflexão. O modo de pensar, evidentemente, tem participação
decisiva nos resultados. '~
Não podendo prescindir de um modelo, fruto de um progresso nas
pesquisas, mas ao mesmo tempo não podendo lhe atribuir um crédito defmitivo,
só resta ao teórico-analista submeter tais princípios conceptuais a uma constante
revisão epistemológica.
No caso da senúótica, embora o percurso gerativo tenha representado uma
conquista teórica de peso, sua formulação canónica sempre revelou
insuficiências de base quando aplicada em domínios não-verbais. Além disso,
Tempo e tensividade na análise da r:anção 131

as instâncias de geração do sentido (firndamental, narrativa e discursiva)2 foram


incorporando novas noções cuja importância ultrapassou o nível de simples
aprimoramento heurístico para sugerir uma outra disposição dos estratos de
abstração. Podemos citar como exemplo a introdução dos processos de
modalização no nível narrativo. As modalidades - representadas
lingüisticamente pelos verbos querer, dever, crer/saber e poder - que, a
princípio, figuravam como simples dispositivos auxiliares de descrição,
revestindo semanticamente os papéis desempenhados pelos actantes (funções
narrativas abstratas), foram ganhando um estatuto de anterioridade lógica com
relação à instância narrativa. Hoje, há um certo consenso em considerar os
actantes, estes sim, como meras resoluções pontuais de um fluxo modal
subjacente.
O recente rearranjo do percurso gerativo, projetado por Zilberberg, vem
responder a esse desafio que já vinha incomodando há um certo tempo os
semioticistas. Se suas hipóteses ainda estão em fase de comprovação e
aprimoramento, não há dúvida de que uma nova orientação de pesquisa foi
implantada, preenchendo, no mínimo, dois critérios fundamentais da axiomá-
tica de Hjelmslev:3
a) a coerência conceptual, já que sua teoria dispõe de uma engenhosa rede de
noções interdetlnidas, levando em conta aspectos do imaginário - como a
gradação e o tempo -que sempre foram refratários à esquematização.
b) a adequação, uma vez que sua versão do percurso gerativo não apenas pode
ser transplantada imediatamente para a verificação dos domínios não-
verbais do sentido, como ainda requer esse tipo de aplicação para revelar
todo seu poder analítico. Surgem, nesse ponto, perspectivas auspiciosas
para a música e para a canção popular de que tratamos aqui.

Uma reformulação

Nesse artigo, atinente à prática analítica mais do que às questões de


princípio, limito-me a expor as coordenadas do modelo mais sugestivas para a
descrição que vem a seguir.

2. Essas instâncias mantêm entre si relações de conversão do nível mais abstrato (fundamental)
ao nível mais concreto (discursivo) e relações de pressuposição no sentido contrário. Já há
trabalhos de semioticistas brasileiros explicando, com clareza e simplicidade, o funcionamento
do percurso gerativo. Recomendamos, por exemplo, o livro de Diana L. P. Barros, Teoria do
discurso, op. cit., p. 15 e o de J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso, São Paulo,
Contexto, 1989, p. 15.
3. Cf. Hjelmslev, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva, 1975, p.
11.
132 - - - - - - - -- _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ]l,fusicundo a semiótica

C. Zilberberg propõe cinco níveis responsáveis pela geração do sentido


dos textos: tensivo, aspectual, modal, narrativo e discursivo. 4 Embora nenhum
deles seja exclusivo da linguagem verbal, os níveis mais abstratos, como o
tensivo e o aspectual (e mesmo o modal), permitem uma passagem mais fluente
e motivada ao dornínío musical.
O autor conserva, em todos os níveis, a oposição suprema concebida por
Hjelmslev entre termo intenso e termo extenso.s O primeiro tem valor de
concentração da tensividade, de nominalização, de localização, de interrupção
ou, se quisermos, de saliência tensiva. O termo extenso tem valor de. expansão
da tensividade, de desdobramento, de verbalização, de continuidade e permite
relações a distância. Assim, como ponto de partida, no nível mais profundo,
Zilberberg estabelece uma oposição extremamente simples, como um mínimo
necessário para indicar que alguma coisa acontece ou não: continuação (termo
extenso) versus parada (termo intenso). Uma afirmação, na linguagem
cotidiana, pode representar a continuação assim como a negação ou uma
conjunção adversativa (mas, entretanto ... ) pode representar a parada.
Esse ponto de vista sugere uma operação com as noções de tempo e
espaço já em nível profundo - e não apenas como articulação discursiva de
superfície conforme proposta semiótica - pois que os valores extensos
correspondem à temporalidade corrente, ao tempo que passa, se distende e se
difunde ou, num sentido mais figurativo, se narrativiza, enquanto os valores
intensos correspondem à temporalidade suspensa, remissiva, erigida como um
ponto tenso entre a espera e a recordação. Do mesmo modo, o espaço se fecha
quando sobrevêm os limites impostos pela parada (intensa) e se abre quando o
fluxo de continuação excede as barreiras.
A articulação desses termos tensivos sobre uma cadeia processual
qualquer (texto lingüístico, texto pictórico, texto musical. ..) produz uma
alternância dinâmica que pode ser expressa pela atuação do termo descontínuo
(parada) sobre o contínuo (continuação) e sobre o próprio descontínuo. Essa
operação estabelece a conversão do nível tensivo em nível aspectual, onde os
termos resultantes, parada da continuação versus parada da parada, já
prescrevem um regime de dominância de uma atividade sobre a outra. No
primeiro caso, prevalece a concentração do campo tensivo com suas inter-
rupções, seus limites, suas demarcações (início/fim) e, no segundo, com o
retomo da continuação, prevalece a expansão da tensividade em gradações,
durações e aberturas de modo geral.
O alcance e a generalidade dessa articulação abstrata podem ser avaliados

4. Cf. Zilberberg, C. Raison ... , op. cit., p . 121. Ver também, do mesmo autor, "Modali tés et
pensée modale. ln: Nouveaux Actes Sémiotiques, III, p. 21.
5. Cf. Hjelmslev, L. Ensaios lingüísticos. São Paulo, Perspectiva, 197 1, p. 175.
Tempo e tensividade na análise da canção - - - - - - - - - - - - - 133

quando verificamos que algwnas forças vitais que comandam, por exemplo,
wna narrativa já estão programadas nos níveis tensivo e aspectual.
Os limites, próprios da parada da continuação, instruem a noção de falta
(ou perda) que, em geral, desencadeia wn processo narrativo de liquidação da
falta. Por outro lado, o sujeito do querer, aquele que deseja recuperar algo
perdido, é sempre alguém que assume a parada da parada e projeta à sua
frente a extensão que deve conduzi-lo ao objeto.
Assim também, a parada da continuação versus parada da parada
representa o "regime imanente do polêmico"6 entre sujeito e anti-sujeito, entre
herói e vilão, entre o progresso narrativo e seus obstáculos. Ou, se quisermos
ir adiante, a expansão tensiva regula o querer que, por sua vez, regula a
atividade estética. A concentração tensiva, a parada, a descontinuidade
regulam a modalidade do dever e, conseqüentemente, a atividade ética.

Uma análise

Um "brilho de beleza" constitui, pela própria metáfora, wn breve instante


de plenitude estética, surpreendido na paisagem relativamente opaca do
cotidiano. Trata-se daquilo que Greimas chamaria de "nostalgia da perfeição",7
wna lembrança que já vem despida das imperfeições e das incompletudes, pois
que, pela nostalgia, reconstruímos os acontecimentos passados no futuro ,
aparando-lhes as arestas e definindo-lhes os limites com precisão emotiva.

O negro segura a cabeça com a mão e chora


E chora
Sentindo a falta do rei
Quando ele explodiu pelo mundo
Ele lançou seu brilho de beleza
Bob Mahley pra sempre estará
No coração de toda a raça negra
Quando Bob Mahley morreu
Foi aquele chororô
Na Vila Rosenval
Muzemza trazendo Jamaica
Arrebentando nesse carnaval
Adeus não, me diga até breve
Adeus não, eu sou muzemza do reggae

6. Cf. Zilberberg, C. Raison ... , p. 106.


7. Cf. Greimas, A. J. De l 'impeifection, op. cit., p. 17.
B4 _ ____________ Musicando a semiótica

Entretanto, pelo detalhamento que nos oferece a letra desta canção, o


conteúdo intenso do brilho colide com o anseio de extensidade manifestado
pelo enunciador. O término inevitável do brilho produz o sentimento de falta, a
parada que convoca o tempo e sua forma própria de conjunção: a espera.8 É
quando surge o querer reparar a falta e perpetuar o brilho.
Essa am1adura inicial, definida como rejeição da parada e adoção dos
valores continuativos, vai reger tanto o texto quanto a melodia imprimindo-lhes
um ritmo geral- ritmo como medida interiorizada (espera), como intervalo
entre ataques9 e não como recorrência concreta das batidas - de virtualização
da continuidade, quando sobrevém a parada e, inversamente, de conservação
dos traços intensos da parada mesmo quando esta se interrompe (parada da
parada).
Um grande problema para o analista é saber o que, na manifestação,
corresponde ao regime profundo de articulação entre continuação da parada e
parada da parada. O que, na melodia, na letra, na base instrumental e em suas
interações, faz mobilizar nossas tensões básicas que engendram o sentido.
Já apontamos acima os processos de tematização, passionalização e
figurativização que podem ser úteis no preenchimento das etapas interme-
diárias entre o nível tensivo-aspectual e a manifestação da canção propriamente
'· dita. As operações temáticas são as que apresentam vocação natural para
absorver as gradações em processos narrativos, para a distensão temporal, para
a abertura do espaço e para a dinamização melódica. As operações passionais,
pela própria passivação do sujeito, funcionam primordialmente como força de
interrupção do continuo, como fechamento e contenção melódica. No entanto,
basta considerarmos uma canção (como Joiio Valentão, por exemplo) que
instaure a operação temática como saliência, como parada, e a operação
passional como distensão, passivação do sujeito e tendência à continuidade
repousante (fruto de uma conjunção plena com o objeto), para termos uma
inversão nessa fase de aproveitamento dos valores aspectuais de base.
Quanto à figurativização, representante direta da atividade enunciativa na
canção, sua maneira de interferir na letra pode ser tanto intensa como extensa.
A forma intensa é a descendência (não confundir com a distensão fisiológica
das cordas vocais) pois seu sentido pode ser sempre definido como
asseveração, ou seja, como um saber sobre algo. Tal asseveração pode incidir
sobre a continuação ou sobre a parada, reforçando esses valores, em geral já
manobrados pela tematização e pela passionalização. A forma extensa da
figurativização pode ser representada por duas soluções entoativas:
ascendência ou suspensão (permanência no mesmo tom) , ora sobre a

8. Cf. Zilberberg, C. L'essor du poéme - information rythnzique. Saint-Maur-des-Fossés,


Phoriques, 1985, p. 19.
9. Cf. Valéry, P. Cahiers, i, op. cil., p. 1311 c 1320.
Tempn e tensividade na análise da canção _ _ _ __ 135

continuação, ora sobre a parada. São extensas porque representam não-


asseveração sem qualquer outra definição de sentido. Podemos ter negação,
indagação, hesitação, passividade, impotência, expressão emotiva ou,
simplesmente, indicação de que o discurso ainda está em plena evolução.
Sabemos apenas que a continuação ou a parada não estão sendo confirmadas.
Brilho de beleza traz um comportamento regular. A tematização da célula
mínima do reggae (com dois ataques no contratempo), sua recorrência já na
etapa introdutória da canção e sua brusca interrupção com a entrada da voz
instauram um primeiro mapeamento do campo tensivo a ser aspectualizado:
continuação e parada, termos articulados no próprio arranjo musical, lO
antevendo, com propriedade, as alternâncias constantemente praticadas na
composição.
A caracterização da melodia retensivall também não foge à regra: fixação
no nível médio de tessiiura, sustentação de freqüência sem inflexão até atingir
a elevação emotiva de dois semitons sobre a palavra "mão". O alongamento das
vogais, com três ataques no lugar de quatro, desemboca na utilização quase
onomatopaica das durações em "choora":

1
eho

"' - - - ~-----•- • -·-·---- - - • o ra


···-----·--- · --- --• "<---~----· ~-~w~~-----~-----

- - -····---··· · · · · - - ·-·----·-·-·- - ---·-


ra

Em se tratando de ocorrências complexas, como são de resto todas as


ocorrências, leis simultâneas regulam o mesmo corpo sonoro. Neste primeiro
segmento, temos a configuração de duas gramáticas manifestas contracenando
com outra gramática latente. As manifestas podem ser esquematizadas como
passionalização ascendente (cf. adiante item a e figurativização descendente,
item d). A gramática latente é a tematização (item b) implantada instrumental-

1O. Esse é um exemplo de arranjo eficiente para a canção popular: explicita os conteúdos e os
valores que já constam da composição. Esse dom é característico do ananjador-cancionista.
1! . O termo retensivo (ou remissivo) corresponde à parada no nível tensivo. Opõe-se, portanto,
a distensivo (cf. Zilberberg, C. Raison ... , p. 55 e 126). A melodia retensiva é a que suspende
a recorrência ou qualquer fluxo de continuidade. Por isso aparece quase sempre modalizada
pelo /ser/ e configurada pelos recursos passionais.
136 - - - - - -- - - - - -- - - - - - - - M usicando a semiótica

mente na introdução e interrompida em nome da clareza do estado intenso. Mas


sua presença virtual tem a força decisiva da seleção dos valores que antecede a
seleção dos objetos. A expectativa com relação ao retorno iminente da
tematização periódica acusa um primeiro nível de conjunção (em sua fmma
temporal) com a parada da parada, ou seja, com os valores extensos. Antes de
explorarmos este aspecto, porém, vejamos a passionalização melódica
ascendente.

a) Sintaxe melódico-passional

Chama a atenção, no primeiro segmento, a repetição mais aguda do


tonema ascendente-descendente, uma vez que o primeiro já cumpre a função
básica de intensificar o estado passional na elevação e de confirmar tal
disposição com a descendência conclusiva.

Mais que um reforço expressivo de comportamento, essa elevação está


definindo o limite superior e a direção da sintaxe melódico-passional de Brilho
de beleza.
Deixando de lado, por ora, tanto os tonemas quanto as inflexões
descendentes, observemos os níveis de altura selecionados pela incidência dos
acentos entoativos.

1
c o

-•
·------"·---------~~------~--~~- ·-- ---
mão e
··· ·~--

e
~ -- ----~·-·-··- ·

ra
Tempo e tensividade na análise da canção - - - - - - - - - -- - - 137

Essa mesma progressão ascendente, em versão mais expansiva, assegura


a presença - bem menos dominante mas ainda influente - da sintaxe passional
na passagem do terceiro para o quarto segmento.

·-> q uando-ê · -····-·aru ---m unctõ"e ------ çou -·-···--iho ··--------··-------··


· · ·-- -- ·· ·:.=P.~ ?.: . ·-----tü ···-····--·-··--··-ra-n·-- --··'br:r <i~· ·=:· :.- ~··· ······-··--
-feex ~ ~::::: ~r~-.=: =~ )e!. ==~=~C'!':l =--~=~- -l?.~le'! ..~ ···--
za

E em sua repetição, do quinto para o sexto segmento:


5

... .. v:ar··

6
--+ t an
138 _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A;fusicando a semiótica

Em resumo, a instituição desses pontos limítrofes, mais a progressão


diretiva ascendente que vai da região média até o ponto mais elevado do campo
de tessitura, constituem, nesta canção, a sintaxe melódico-passional que
absorve e representa os valores da parada tensiva.

b) Sintaxe melódico-temática

Deixemos para depois o comentário sobre a figurativização descendente.


Urge identificarmos o perfil temático cuja definição está em relação de
dependência recíproca com o perfil passional.
Só falamos, até agora, da tematização sugerida pela introdução
instrumental. Trata-se aí de uma caracterização do gênero musical, nesse caso
o reggae, uma espécie de gabarito preconcebido cuja função é fornecer um
parâmetro contínuo (periódico, extenso) de tensividade que facilita
sobremaneira a apreensão da parada e da parada da parada. Resta saber qual
o perfil melódico criado especialmente para traduzir a continuidade, ou, de
outro viés, como a periodicidade típica do gênero foi convertida em melodia
temática.
Para tanto, examinemos diretamente o terceiro segmento:
3

. -----------· - - -- ------- ····----


--·------ · -~- ~-----·<'-- --------·----~--~--· --·--··-·--------------- - ----- ---·- -

za

Já comparamos a altura de suas sílabas acentuadas, localizadas no sexto


semitom do campo de tessitura desta canção, com a sustentação inicial do
primeiro segmento:

3 1
Tempo e tensividade na análise da canção 139

A execução desses dois segmentos, bem distintos entre si no diagrama,


pode chegar a resultados bem semelhantes. Por vezes, as sílabas fracas do
primeiro (segura ou cabeça) descem três semitons enquanto, no caso do
terceiro segmento, uma interpretação menos meticulosa simplesmente elimina
a inflexão, mantendo a progressão na mesma freqüência, até atingir o tonema
descendente. 12 As conseqüências são decisivas. As tensões básicas do sentido
dependem muito do apuro interpretativo que pode revelar - mas pode também,
em alguns casos, esconder - a força expressiva de uma canção.
Ao infletir com clareza o perfil do terceiro segmento, a interpretação de
Gal Costa conduz com especial energia a parada da parada. As ondulações
potencializam a dinâmica melódica em sentido horizontal contrastando-a com
a melodia suspensiva utilizada para desferir o corte vertical da parada. No
fundo, essa solução temática já vem sugerida na composição, quando o terceiro
segmento apresenta um maior número de recortes silábicos que pede,
necessariamente, a aceleração do segmento e o retorno do encaixe binário. Isso
tudo traz um efeito extraordinário de engate na continuidade subjacente do
gênero. E o arranjo, sempre sensível a essas sutilezas expressivas, reforça a
dinâmica da tematização com o aparecimento oportuno de um motivo, também
periódico, desenvolvido pelo contrabaixo.
Temos, assim, dois segmentos que abrigam, com prioridade, a sintaxe
melódico-temática:

za

12. Na interpreta.ção original desta canção, realizada pelo bloco Muzernza (Muzemza do reggae,
São Paulo, Continental, 1988), sequer são articuladas as inflexões temáticas do terceiro e do
quinto segmentos. O desprezo total às nuanças do perfi l melódico se justifica pela
predominância do processo figurativo (alguém dizendo alguma coisa) sobre a tematização e
a passio nalização. Essas últimas supõem uma defin ição semântica da melodia que não
interessa ao bloco carnavalesco.
140 Musicando a semiótica

na sen

c) Interação temático-passional

Reduzindo ambas as sintaxes (passional e temática) a um regime básico de


oposição, teremos:

direcionalidade passional direcionalidade temática

Com essas duas direcionalidades imanentes, podemos dizer que o


percurso melódico dessa canção é produto de uma alternância das duas
sintaxes, em tennos de dominância e recessividade, de modo que temos sempre
um emaranhado passional e temático nos transportando, ora aos valores
retensivos, ora aos distensivos.
Nesse sentido, no terceiro segmento (e no quinto), a tematização
deslancha como termo dominante, enquanto a passionalização ainda é
recessiva. As inflexões são resoluções eminentemente temáticas mas, como já
vimos, a primeira fase da passionalização (sobre o sexto semitom) já vem
esboçada na linearidade dos acentos silábicos.
3

za
Tempo e tensividade na análise da canção 141

No segmento seguinte (e no sexto) a tematização permanece mas em


estado recessivo, pois, embora mantenha a dinâmica de acompanhamento e
haja uma inflexão descendente até certo ponto simétrica às do segmento
anterior, a ocupação do oitavo semitom e, logo em seguida, do décimo
perfazem a direcionalidade passional tornando-a dominante. Não é por outra
razão que, ao iniciar o quarto segmento (ou o sexto), a melodia retoma a
linearidade fixa do segmento inicial, expandindo de novo as vogais (com três
ataques no lugar de quatro) e atingindo o pico da tessitura.

4
........ <;:<i? ___ _

Interessante verificar que as variações interpretativas da cantora podem


alterar a regularidade das dominâncias. O trecho que vai do terceiro segmento
ao final é repetido três vezes. Durante a segunda execução, Gal Costa
transforma a linha melódica do quarto segmento, produzindo o seguinte
resultado:

.. .. ....
ne
~--·- · ····· ·

····· ·········-··· .. ·· ···- · ····· ····"·"-' ··· · ······-~- ·····"'--·--········----··

A intenupção da direcionalidade passional, antes de completar o seu ciclo,


e a duplicação do motivo temático provocam, nesta versão, um rearranjo dos
termos dominantes. A continuidade se sobrepõe assim à parada.
Na terceira execução desse mesmo trecho, a voz volta a percorrer os
contornos originais da melodia, no entanto todo o acompanhamento de base se
intenompe. O silêncio instrumental é ainda mais longo que o do início: ocupa
todo o terceiro segmento mais a metade do quarto. A expectativa é intensa,
tanto mais que sobram algumas menções percussivas acentuando a iminência
142 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ __ Músicando a semiótica

da parada da parada. Nesse caso, é a passionalização que se toma dominante


já a partir do terceiro segmento.
Tudo ocone como se os recursos da parada, os recursos passionais nesta
canção, fossem atívados apenas para criar expectativa e valorizar o retomo dos
recursos durativos da continuidade. Como se a expectativa estabelecesse uma
conjunção temporal anterior à conjunção espacial que só se realiza plenamente
quando o sujeito se (re-)engata no movimento. E por isso dissemos "valorizar"
os recursos continuativos. Trata-se de assumir a não-intern1pção, a parada da
parada, ou simplesmente o fluxo continuo, como valor.

d) Figurativização enunciativa

As entoações enunciativas não trazem maior complexidade em Brilho de


beleza, uma vez que seus tonemas só desenvolvem o termo intenso, ou seja, a
descendência asseverativa. Nesse sentido, apenas confirmam, em nível de
superficie, a assunção dos valores em nível profundo.
Nos segmentos predominantemente passionais, as descendências afinnam
a parada. Interessante notar que, nesses casos, elas também adotam o
desdobramento vocálico próprio da passionalização:

~::
2 4
c o
1
~~~~~~=~~~~~~~=-~:·~=~~ =~-
--..- -·-·--·····-··'"' -·-
··--· ···~··- ·· ················· ·······
- --·······- ~ · ·····-·

.-.:.:..:S1:l......~------·----····--- ---

ra

Nos segmentos com dominància temática, as descendências se integram à


continuidade. Nesse caso, apenas atingem um nível inferior ao dos motivos:

3 5 7

···~-~-~-:-br:r··-····-·-ae . . . . . -.. ·---··--···


s en
za
Tempo e tensividade na análise da canção - -- -- - - - -- - - - 143

A figurativização enunciativa traz uma complexidade à parte para a


análise da canção. Se considerarmos sua interação com os outros dois
processos persuasivos (passionalização/tematização ), a figurati vização é o
termo extenso que abrange todos os recursos não passionais, não temáticos e,
inclusive, a passagem entre os dois pólos. É a neutralização dos investimentos ·.'
melódicos. A melodia figurativa é dessemantizada tal como a entoação
lingüística que se dissolve no instante em que o texto é compreendido pelo
falante. 13 É quando a sonoridade não imporia mas sim a compreensão abstrata,
como na linguagem oral. Nesse sentido, a (relativa) precisão dos tonemas
(descendentes/não descendentes) contrasta com a instabilidade geral dos
contamos que podem ser alterados a cada instante e até anulados em proveito
da clareza do texto. A melodia radicalmente figurativa não pretende dizer além
do que já está no texto lingüístico. Passaria muito bem sem ser notada:
figurativiza a fala cotidiana.
A abordagem completa da figurativização enunciativa foge aos limites
deste volume, mas gostaríamos de frisar que sua atuação habitual na linguagem
da canção popular permite-nos aceitar, com tranqüilidade, execuções tão
distintas (Gal Costa e Muzcmza, por exemplo) como formas de interpretação
da mesma canção.

Um brilho de beleza

O encanto da canção está na ressonância do sentido da melodia na letra e


vice-versa. Quando levamos em conta o nível profundo proposto por
Zilberberg - no qual as categorias universais da tensividade (pa rada e
continuação) entram em processo de determinação mútua e se convertem no
nível aspectual, já com a predominância de uma tensividade concentrada
(repleta de limites e demarcações) ou expansiva (passante, durativa) -
contamos com um modelo geral de organização do sentido que oferece unidade
aos eventos melódicos e lingüísticos.
A imagem lírico-dramática que descreve a condição altamente passional
vivida pelo "negro" propõe, paralelan1ente à melodia, uma parada no nível da
letra:

O negro segura a cabeça com a mão e chora


E chora
Sentindo a falta do rei

A transcrição literal da "falta do rei" dirime qualquer dúvida quanto à

13. Cf. Valéry, P. Variedades, op. cit., p. 209.


144 _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótir:a

existência anterior da personagem numa dimensão extensa que se interrompe,


deixando o sujeito ("o negro") incrustado entre duas temporalidades:

a) passada: frente a qual o sujeito sofre a atuação do evento anterior e se


manifesta passivamente: " ... segura a cabeça com a mão e chora".
b) futura: frente a qual o sujeito se posiciona ativamente no sentido de reparar
a falta. A consciência do objeto ausente já significa um primeiro grau de
junção em forma de expectativa. O sujeito que sente a falta já possui o
querer liquidá-la.

Assim, trata-se do relato de uma cena intensa mas que a qualquer instante
- e isso é decorrente da própria retenção do tempo - pode se distender pela
interrupção polémica da parada.
Importante assinalar que a coincidência dos sentidos da lett·a com os
sentidos da melodia no mesmo segmento da canção produz um efeito rendoso
mas não necessário. A ressonância entre os componentes (lingüístico e
melódico) se dá por correspondência de articulações no curso das cadeias
fônicas e semânticas independentemente dos encontros termo a termo. Em
Brilho de beleza, por exemplo, a articulação passionalização/tematização e a
urgência de suas sucessivas alternâncias são apreendidas tanto na melodia
como na letra.
Os termos tensivos devem ser vistos como valores oriundos diretamente
de nossa condição básica de um ser no tempo e no espaço: a retençã.o é a
interrupção do tempo passante e a circunscrição do espaço; a distensão é o
tempo que volta a se movimentar e o espaço que se abre. Antes de determinar
seu objeto, o sujeito se conjunta com os valores retensivos ou com os valores
distensivos deduzidos do nível aspectual.l 4 Só numa etapa gerativa mais
superficial, identificamos o objeto que cobrirá o valor escolhido. Em nosso
exemplo, o valor almejado é a continuação distensiva e o objeto é o reggae.
Nesse sentido, podemos observar na letra a dupla atuação do sujeito,
selecionando os valores distensivos no passado e no futuro:

a)
Quando ele explodiu pelo mundo
Ele lançou seu brilho de beleza

Esses dois versos sintetizam a direcionalidade fundamental desta canção:


parada da continuação -+parada da parada.
"Quando ele explodiu pelo mundo" é a demarcação de um ponto de
partida intenso (ruptura da continuação rotineira do mundo) que se expande no

14. Cf. Greimas, A. J. e Courtés, J. Sémiotique: dictionnaire ... , Ii, op. cit., p. 100.
Tempo e tensividade na análise da canção - -- - - - - - - - - - - 145

tempo e no espaço com a imagem da difusão do "brilho": "Ele lançou seu


brilho de beleza". E a expansão é tão implacável que atravessa o presente e se
projeta ao futuro, na condição de pura continuidade:

b)
Bob Mahley pra sempre estará
No coração de toda a raça negra

Temos aqui a expressão máxima da modalidade do querer, que já habitava


o sujeito a partir de sua consciência da falta. A conjunção com o querer
pressupõe a seleção dos valores continuativos, ainda que tendo como referência
urna forma incoativa (de ponto de partida). O sujeito do querer é aquele que
rompe a parada, embarca no tempo que passa, e ocupa o espaço. É o sujeito
que crê nos valores distensivos.
Nova parada, com um novo ponto de interrupção reforçando o lado
passional da canção:

Quando Bob Mahley morreu


Foi aquele chororô na Vila Rosenval

Nesse caso não temos coincidência. A melodia persiste na tematização


enquanto a letra retoma a "razão" passional. De fato, a razão da continuidade
está sempre associada ao aumento de tensão decorrente da parada. A perda, a
nostalgia, a expectativa, o desejo são sintomas da parada que fazem sobressair
o tempo. Nessa linha de reflexão e na esteira de Valéry, 15 Zilberberg pontua o
tempo como razão do espaço.l6
Acontece que a melodia adota de vez os valores continuativos como
preponderantes, deixando para a letra e para o arranjo as intervenções
explícitas da parada.
Na letra, o rei do reggae passa o bastão para o bloco Muzernza que se
transforma em porta-voz do gênero nas festas de carnaval:
Muzemza trazendo JamaiCa
Arrebentando nesse carnaval
Reggae é o termo extenso que liga o passado ao futuro independentemente
dos destaques intensos que vão de "Bob Mahley" a "Muzernza" passando por
"Jamaica". Reggae é o objeto. Continuidade é o valor.
A resolução textual pode ser descrita como representação, quase literal, da
parada da parada:

15. Cf. Valéry, P. Cahiers, I, op. cit., p. 1365.


16. Cf. Zilberberg, C. Raison, op. cit., p. 113.
146 _ _ _ Musicando a semiótica

Adeus não, me diga até breve

E a continuidade sobrevém com Muzemza:

·· ·br·e:ve . . · · · ···· ··-· · · .

Mais do que uma adesão definitiva às inflexões temáticas, essa melodia


reproduz o perfil de diversas canções de reggae, de fonna que seus contornos
praticamente se dessemantizam enquanto direcionalidade, em nome de uma
perfeita integração no gênero. E se resta algum sentido nas direções dos
tonemas, sem dúvida é o de descendência categórica, de afirmação da
continuidade do reggae.
O esforço desta canção é o de contornar o destino de sua própria metáfora,
tentando expandir a instantaneidade do "brilho". Paradoxalmente, porém, é o
brilho das paradas, nesse caso dos recursos passionais, que faz seu esplendor,
destacando-a da rotina, muitas vezes apenas pulsativa, do reggae.
E se o sujeito desta canção consegue, fmalmente, externar o seu compro-
misso com a continuidade, intenompendo a parada, a canção em si permanece
saliente, cortante, assegurando com seu brilho instantâneo a vitalidade do
gênero que se perpetua.
CAPÍTULO XI

Manifestação das categorias temporais

O projeto semiótica de reconstrução do sentido manifesta-se não apenas


nas abordagens fundadoras, que reelaboram constantemente a hierarquia
conceptual da forma do conteúdo, mas, igualmente, nos trabalhos de análise e de
aplicação que problematizam pontos essenciais do modelo padrão, fazendo com
que, em alguns casos, a coerência seja revista em função da adequação.
Assim como não podemos construir uma semiótica ad hoc, variável de
acordo com as particularidades de cada objeto, também não podemos desprezar
os novos enfoques teóricos exigidos pelos gêneros de textos menos analisados
como é o caso, em geral, das criações não-verbais. O esforço de compreensão e
explicação desses desvios - ou "ruídos" do objeto - tem contribuído
consideravelmente para a formulação do cálculo geral das possibilidades
previstas no modelo semiótica. Um rápido exame das noções que tiveram origem
nas reflexões sobre a gestualidade, as artes plásticas, a arquitetura e, mais
recentemente, a música, é suficiente para atestar o progresso resultante da
ampliação do campo de investigação. Se hoje a semiótica caminha em direção à
massa tímica, às modulações de tensividade, ao tempo e à categorização
aspectual, isso não se deve apenas ao inegável enriquecimento antropomórfico
trazido pelas pesquisas sobre as paixões, mas também às exigências específicas
dos diferentes planos de expressão já submetidos à descrição. Tais coerções
pedem gramáticas compatíveis que acabam por interferir no arranjo geral da
teoria. Essa linha de reflexão motivou a conclusão, ao mesmo tempo sábia e
irónica, de Herman Parret a propósito da música. Segundo ele, as virtualidades
estruturais peculiares ao texto musical poderiam levar a semiótica a rever seus
princípios e a substituir, assim, a tradicional conduta de semiotização do objeto
pela musicalização da semiótica.!

1. Cf. Capítulo I, nota 14.


148 · _____________ _ _ __ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

Desse modo, por acreditar que as particularidades encontradas em


sistemas menos analisados possam contribuir também para o projeto geral de
reconstrução do sentido, vimos propondo, no decurso dessa última parte, um
olhar semiótica sobre a singularidade da canção brasileira. E para objetivar nossa
exposição, neste capítulo final, tentaremos nos ater às três ordens de oposição
que surgem de forma recorrente no estudo da canção, quando este se mantém no
plano da linearidade vocal: 1) oposição entre canção e linguagem oral; 2)
oposição entre componente melódico e componente lingüístico; e 3) oposição
entre composição e interpretação.

Canção e linguagem oral

Em geral, os compositores populares no Brasil não são músicos.


Precisaríamos expandir extraordinariamente o conceito de músico para poder
abarcá-los e talvez isso não compensasse. Se nunca passaram por escolas
musicais e nunca tiveram necessidade deste aprendizado para compor ou cantar
suas canções, e se, além disso, jamais conceberam suas obras em termos de
relações sonoras stricto sensu, onde prevaleceriam a riqueza rítmico-melódica,
a inteligência harmônica ou o material timbrístico, por que insistirmos em
classificá-los como tais? Há música na canção, assim como há música no
cinema, no teatro, e nem por isso essas práticas se confundem com "linguagem
musical". Existem dramaturgos, existem cineastas e existem cancionistas .2
Estes são especialistas em criar compatibilidades entre seqüências lingüísticas e
seqüências melódicas, apoiando-se, a princípio, nas mesmas seqüências que
conduzem sua fala cotidiana. A competência do cancionista não se confunde
com a competência do músico, embora possa haver, em alguns casos, ampla
intersecção entre elas. Tivemos praticamente um único compositor popular que
pode ser considerado, ao mesmo tempo, grande músico e grande cancionista,
com vasta produção ao longo de toda a sua carreira: Tom Jobim. No mais, os
maiores expoentes da canção (Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton
Nascimento, Noel Rosa, Gilbe1to Gil, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga ... )
construíram um imenso repertório, reconhecidamente requintado, sem o auxílio
de qualquer tipo de notação ou conceito musical. Tocar, cantar e compor "de
ouvido" foi sempre a regra.
Dentro dessa configuração geral do campo de criação da canção popular
toma-se especialmente procedente sua relação com a linguagem oral. Os
"tonemas"3 que conduzem o segmento terminativo das seqüências melódicas das
composições mantêm uma relação de estreita proximidade (a definir semio-

2. Cf. Tatit, L. O cancionista.. , op. cit.


3. Cf. Capítulo VIII, nota 1.
Manifestação das categorias temporais 149

ticamente) com as seqüências entoativas do discurso cotidiano. Acontece que


a instauração necessária de uma instância de execução vocal equivale à
convocação de um sujeito que, ao mesmo tempo, canta e conta, um sujeito que
possui um modo especial de dizer, defmido pelos contornos melódicos, mas que
também não deixa de dizer alguma coisa por intermédio de suas construções
lingüísticas.
Portanto, a oposição entre canção e linguagem oral contrapõe, em suma, a
dimensão estética da primeira à dimensão intelectiva ou utilitária da segunda.
Para todo conteúdo lingüístico transmitido, há uma inflexão melódica elaborada,
de forma que dificilmente localizamos o principal agente da informação. Aqui
reside o "mistério das letras de música I tão frágeis quando escritas I tão fortes
quando cantadas".4
A linguagem oral é eminentemente abstrata, embora dependa da matéria, da
sonoridade ou da grafia, no momento da comunicação. Nenhuma porção dessa
matéria, porém, precisa ser conservada para que haja eficácia lingüística. Uma
vez compreendida a mensagem, desprezamos imediatamente o seu veículo. O ·
grau de inteligibilidade lingüística é inversamente proporcional à necessidade de
retenção da matéria sonora.5 Dessa condição se depreendem as características
instáveis da melodia da fala: ela representa o aspecto contínuo, inarticulado, da
mensagem, que se dilui com a introjeção dos valores distintivos abstratos (os
fonemas como classes de sons) responsáveis pela significação.
A canção, como de resto a maioria dos objetos estéticos, requer a ·
conservação da matéria. O objetivo principal da comunicação desloca-se, neste
caso, dos conteúdos lingüísticos abstratos- que não deixam de ser transmitidos
- para a progressão contínua da própria sonoridade. Nessa transição, a melodia
de natureza entoativa adquire as propriedades musicais necessárias à sua
estabilidade: precisão de altura e de duração. Formam-se os motivos, os temas,
os perfis, sob a regência de categorias musicais que podem assim ser relacio-
nadas, semioticamente, com as categorias organizadoras do componente
lingüístico. 6
Tudo ocorre como se essa prática de estabilização sonora domesticasse os
impulsos desordenados das inflexões entoativas oriundas da fala, dando-lhes
uma apresentação segura e equilibrada, a partir de regras engendradas no
discurso de cada canção. Embora se aplique quase sempre em esconder os
resíduos da linguagem oral sob os traços bem definidos7 de sua obra, o

4. Cf. Campos, A . Balanço da bossa e outras bossas. 2" cd., São Paulo, Perspectiva, 1974, p.
309.
5. Vimos tratando desse tema ao longo dos capítulos anteriores, mormente no IV e VII.
6. A relação de categoria a categoria é própria dos sistemas semi-simbólicos (cf. nota 1 do
Capítulo IX).
7. "Bem definidos" no sentido de clareza e estabilidade sonora.
150 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

compositor popular reencontra-se, voluntária ou involuntariamente, com


imprecisões "musicais" da fala que se manifestam aqui e ali como um retomo
do ruído recalcado em nome de uma ordem sonora consensualmente estabe-
lecida.8 O trabalho de apropriação gradativa desse ruído pelos compositores é
um tema bastante fecundo no estudo da canção.

Melodia e letra

A segunda oposição manifesta-se no nível da própria semiose, ou seja, da


construção do sentido pela canção. Aqui, os componentes, lingüístico e
melódico, já estão estabilizados e articulados entre si por categorias que só
podem ser devidamente depreendidas pela descrição. Tais categorias equivalem
a uma espécie de recuperação das motivações entre plano da expressão e plano
do conteúdo, já que, na canção, a melodia concentra os principais recursos
sintáxicos do primeiro plano enquanto a letra se encarrega do segundo.
O estudo dos conceitos que poderiam explicar as relações de
compatibilidade entre melodia e letra ganha, nos dias atuais, nova perspectiva
com a revisão do modelo semiótica geral à luz das pesquisas que consolidaram
uma epistemologia para a semiótica das paixões. A introdução das modulações
tensivas e fóricas num plano anterior e, por vezes, paralelo à discretização modal
e actancial 9 lançou uma base mais segura para a criação de categorias comuns ao
plano de expressão e ao plano de conteúdo, sobretudo no que diz respeito aos
elementos contínuos e descontínuos que vão gerar princípios válidos tanto para
a letra como para a melodia. Outras perspectivas, em certo sentido mais radicais,
têm-se adiantado na revisão do modelo teórico, transferindo as articulações
aspectuais para o plano ab quo da significação e conferindo o poder sintáxico
fundamental ao tempo. Os trabalhos publicados nessa orientação não são ainda
numerosos e nem muito diversificados, pois que há poucos pesquisadores
engajados na construção de um novo modelo semiótica que alcance, de fato, os
sistemas não-verbais por meio de um aprofundamento das próprias bases
epistemológicas da teoria (nesse caso, o pensamento pioneiro de Saussure-
Hjelmslev) e não, simplesmente, descartando as aquisições engenhosamente
propostas, até agora, como modelo padrão.
Dentre aqueles que se destacam nessa linha de reformulação, já temos
falado muito -por se tratar de algo realmente inusitado -da atuação de Claude
Zilberberg. Com efeito, este autor pratica uma rigorosa releitura do estru-

8. Cf. Wisnik, J. M. O som e o sentido. op. cit., p. 37 e seguintes.


9. Cf. Greimas, A. J. e Fontanille, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 69.
Manifestação das categorias temporais 151

turalismo que desembocou na semiótica, levantando, em seu próprio cerne,


algumas pistas reveladoras de recursos teóricos de grande envergadura,
abandonados por critérios circunstanciais afinados com as epistemes de época.
Um desses recursos é a presença camuflada do tempo nas relações estruturais '
típicas dos sistemas. Essas, para Zilberbei:g, não são mais que registros x
paradigmáticos de operações sintáxicas efetuadas anteriormente, como se o
sistema armazenasse a memória dos processos.IO
Essa nova formulação, incidindo sobre os mesmos termos consagrados
pelos estruturalistas, produz algumas inversões, desestabilizadoras em termos de
teoria padrão, mas promissoras em termos de abrangência semiótica. II Uma><.
delas é a concepção do sistema pressupondo o processo e, conseqüentemente, a
instauração do tempo na instância ab quo (pressuposta e mais abstrata) do
percurso gerativo do sentido. Isso significa que, antes de escolher o seu objeto,
o sujeito enunciativo seleciona um valor temporal cuja tensão pode ser calculada
pelo modo de apreensão do continuum, ou seja, pela escolha de um tempo que
passa (um tempo distensivo) ou de um tempo que pára (um tempo retensivo).
A fluência do tempo que passa tem como representação básica os valores
emissivos que podem ser convertidos em objetos extensos e inabordáveis em sua
amplitude total (como os objetos estéticos, sobretudo os enigmáticos, e os
objetos de amor, igualmente indecifráveis), em relações fiduciárias , em que a
confiança de um sujeito no outro dá origem aos processos de persuasão (fazer
crer) e manipulação (jazer fazer) que conduzem as peripécias narrativas, em
modalidades como a do querer que instaura um projeto de busca e lhe dá
diretividade em função de um objeto etc.
A resistência do tempo que pára tem como representação básica os valores
remissivos, que podem ser convertidos em objetos que se extenuam pela atuação
de um saber (por exemplo, os objetos científicos passíveis de plena decifração),
em relações polémicas entre sujeito e anti-sujeito (herói/vilão) - que se
manifestam em obstáculos narrativos, cuja conseqüência notória é a suspensão
do fluxo temporal - , em modalidades, como a do dever que impõe limites éticos
ao livre desempenho do sujeito etc.
Esses mesmos valores, emissi VOS e remissivos, são investidos na melodia,
produzindo efeitos de fluência ou de retenção, conforme o grau de
compatibilidade contraída com o componente lingüístico. Voltaremos a isso mais
à frente.

I O. Embora essa concepção j á pertencesse ao ideário semiótica, como lembra o próprio


Zilberberg (" Breve réponse à Paul Ricoeur" . ln . Nuuveaux Actes sémiotiques, vol. VII),
jamais influenciou de forma determinante o modelo padrão.
11. Não apenas do ponto de vista da adequação a objetos não-verbais, como já frisan1os, mas
também - e principalmente, para o autor - do ponto de vista da coerência científica.
152 - - - -- ---------------Musicando a semiótica

Como introdução a essa complexa pesquisa sobre a conversão do tempo


em sentido, e tentando nos restringir ao terreno da canção, passamos a tecer
alguns comentários a respeito de um dos artigos de Zilberberg dedicado
exclusivamente à questão do tempo.l2
> O autor, nesse trabalho, distingue os tempos cronológico, rítmico, mnésico
e cinemático, elaborando uma interessante articulação entre eles, num
encaminhamento bem sugestivo para o enfoque da canção. Com o intuito
justamente de apresentar algumas das sugestões, comentaremos essas dimensões
temporais, apontando, ao mesmo tempo, os efeitos de sentido melódico-musicais
que podem estar diretamente associados a essas articulações profundas.
O tempo cronológico contém a sucessão histórica dos dados, que se
organizam metonimicamente, criando as noções de antes e depois, num eterno
devir inexorável no qual o presente se transforma, ininterruptamente, em
passado. É o tempo do pretérito perfeito, dos aco1;1tecimentos que se sucedem
pela superação dos limites e das demarcações. No plano musical, podemos
pensar na progressão dos tons em si como se nunca mais retomassem sob
qualquer outro aspecto.
O tempo rítmico é aquele que imprime a lei e institui a homogeneidade dos
valores, neutralizando o sucessivo e magnetizando os contrastes temporais. É o
tempo das altemàncias e da conservação do processo que substitui a fluência do
cronológico pela consistência rítmica. A perda e a recuperação do objeto, por
exemplo, podem estruturar o tempo rítmico num filme de aventura, assim como
uma determinada combinatória de tons e durações pode cumprir, na música, o
mesmo papel ao dar identidade aos motivos e temas que organizam a sonoridade.
Enquanto o cronológico e o rítmico incidem sobre o tempo na qualidade de
categorias intensas, marcando as relações de vizinhança, os tempos mnésico e
cinemático definem-se como categorias extensas regulando as relações a
distância.
Ao sermodalizado pelo tempo mnésico, o tempo cronológico, mais uma vez,
se neutraliza a partir da recuperação do que fora remetido ao passado. Este se
presentifica constantemente por intermédio da memorização. Da mesma forma, a
sobremodalização do tempo rítmico pelo tempo mnésico, converte a célula rítmica
em perpétua criação da espera: é a expansão da lei por todo o texto. O antes e o
depois cronológicos transformam-se em passado e futuro ancorados em
simultaneidade no presente. O tempo mnésico é realizado na forma imperfeita do
verbo, pautando-se, portanto, pela duração. Se as relações no tempo cronológico
são de natureza metonímica, no tempo mnésico, elas se tomam metafóricas,
sistêmicas, à maneira das relações associativas propostas por Saussure.

12. Zilberberg, C. "Relativité du rythme" , Protée, op. cit., p. 37-46.


Manifestação das categorias temporais 153

Toda música depende especialmente desse tempo para se organizar como


linguagem pois, por meio dele , reconhecemós a obra como um todo ,
identificando, em cada episódio, elementos do que já passou e elementos do
que ainda está por vir. No caso da canção, esse processo manifesta-se na
melodia e na letra contribuindo para a formação da compatibilidade.
O tempo cinemático, por sua vez, recai sobre toda a seqüência, acelerando
ou desacelerando seus valores substanciais, já que os valores relativos não se
alteram. Esse tempo vem revestido de um especial interesse na medida em que
sua oscilação põe em destaque, ora os limites (as demarcações), ora os
intervalos e a continuidade.
De fato, a aceleração ativa os. inícios. e os. encerramentos, não dando
"tempo" aos intervalos de passagem: as etapas se sucedem sem estágio. Afinal,
é pela interrupção e retomada do tempo que temos a impressão de movimento (já
que a continuidade em si pode incidir tanto sobre o acontecimento como sobre
sua paralisação: continuação da continuação/continuação da parada) . A
interrupção, esta sim, ao mesmo tempo em que suspende um processo, pode
desencadeá-lo novamente de acordo com a instigante formulação de Zilberberg:
parada da continuação lvs/ parada da parada)3 Portanto, o efeito de tempo
passando ou de distensão do tempo, correspondente ao fazer emissivo, pressupõe
a interrupção e a descontinuidade que a aceleração exacerba quando o tempo
cinemático sobrevém.
Se pensarmos no componente lingüístico da canção, a aceleração celebra
constantemente os encontros e reencontros com os valores e a fluência
decorrente da conjunção entre sujeito e objeto. As micronarrativas são
concluídas e reiniciadas sucessivamente produzindo , com es sas
descontinuidades, o efeito de velocidade. No componente melódico, a
conseqüência da aceleração é ainda mais nítida e imediata na medida em que
atinge os próprios valores substanciais da sonoridade . A prevalência das
descontinuidades se faz sentir pela concentração dos ataques dos tons
(valorizando consoantes e acentos) que reduzem ao mínimo as durações
vocálicas. Estas são apenas pontuadas de tal modo que os fragmentos maiores -
os motivos e os temas -também se alternam com bastante rapidez, produzindo
um tempo que se escoa sem qualquer dificuldade. Temos assim a caracterização
da fluência que vigora nas canções de exaltação ou na chamada "música
dançante"; não há necessidade de criar o tempo como intervalo entre sujeito e
objeto, pois que não há sentimento de falta. A conjunção temporal é também
espacial: o próprio cotpo do sujeito (cantor ou ouvinte) se entrelaça na pulsação
da música, dispensando a metáfora, uma vez que, estar em conjunção com a
música, já é possuir o objeto.
A ilustração exemplar desse processo, que já mencionamos no capítulo

13. Zilberberg, C. Raison .. ., op. cit., p. 101.


154 __________________ _ _ _ Musicando a semiótica

inicial, está na primeira parte de Garota de Ipanema (Tom Jobim e Vinicius de


Morais):

Olha que coisa mais linda


Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
Caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado
É mais que um poema
É a coisa mais linda
Que eu já vi passar

A relação emissiva com os valores- a beleza, o movimento, a feminilidade


-converte-se em conjunção visual entre sujeito e objeto e, nesta primeira parte
da letra, em realização do desejo do primeiro. De um lado, a forte identidade
entre sujeito e objeto (sub-objeto), sem qualquer obstrução que pudesse pôr em
crise a relação. De outro, o enaltecimento do objeto impregnando-o de tensão
estética (ou per-objeto) e preservando sua integridade. No limite, assistimos
ainda à ativação do objeto diretamente proporcional à passivação do sujeito. 14
Dessa mesma fonte emissi va brotam os motivos pulsantes da melodia que
traduzem o tempo que passa. Nada os detém já que obedecem à lei da
continuidade materializada no pulso. A expansão do pulso pela linha melódica
equivale à disseminação de uma célula que não deixa parar, que está sempre
recomeçando o ciclo. É o primeiro sintoma de conservação rítmica associada à
conservação dos valores do objeto vista acima. A brevidade das durações e a
ênfase nos acentos favorecem o surgimento dos pequenos temas, quase sempre
recorrentes, tomando previsível - e, ao mesmo tempo, prazerosa - a cadeia
melódica:

14. Ibid., p. 108-11.


Manifestação das categorias temporais 155

A desaceleração, ao contrário, ressalta a continuação da parada, o estado


ou o intervalo que separa o sujeito do objeto. Com a desaceleração temos a
expansão do valor do intervalo por toda a seqüência. O que importa é retardar a
passagem do tempo para viver o processo, a continuidade desprendida da
urgência de seus limites. Temos, no componente lingüístico, os estados
passionais que acusam a perda, o sentin1ento de falta e a presença, manifesta ou
embrionária, da modalidade do /querer/ liquidar a falta. Investir no intervalo é
reter o tempo mas é também criá-lo em termos de memória ou espera, ambas
previstas pelo fazer remissivo. O foco de tensão está na convivência entre
conjunção temporal c0m o objeto, ou seja, conjunção com o intervalo de tempo
que leva ao objeto (espera) e disjunção espacial com o mesmo. Em termos
melódicos, a criação e retenção do tempo se procedem por meio de valorização
das durações das notas musicais, cuja expansão por toda a seqüência retarda o
andamento geral, disseminando uma tendência a parar. Do ponto de vista do
plano da expressão, a desaceleração inscreve o tempo nas vogais, neutralizando,
na medida do possível, a importância dos recortes consonantais (dos ataques) e
dos acentos. O tempo anasta-se pois vive a fase da espera, traduzida pela
distância fisica e vínculo psíquico. Em razão justamente dessa valorização do
intervalo que leva ao objeto (ou à reconência rítnúca) em detrimento de sua
aquisição propriamente dita, a desaceleração rege sobretudo as canções de fundo
passional, entre elas as chamadas "canções românticas".
Podemos citar, então, a segunda parte da mesma canção que, mais uma vez
de forma ilustrativa, interrompe a continuidade inicial para introduzir os valores
renússivos:

Ah! Por que estou tão sozinho!


Ah! Por que tudo é tão triste
Ah! A beleza que existe
156 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ J,{usicando a semiúlica

O foco nanativ o desloca-se, subitamente, do objeto para a junção e para


o contraste entre o espaço interno disfórico e o espaço externo eufórico. Agora,
tudo é parada, confronto e sentimento de falta: é o tempo do estado passional de
disjunção.
Temos, imediatamente, a retenção do tempo nas durações dos tons, retenção
que atinge de maneira muito particular as interjeições iniciais dos versos e se
estende, com menor intensidade, por toda a segunda palie, produzindo um
efeito de grande pausa sobre o movimento dinâmico que vinha se
configurando:

Comparando a divisão de tempo musical (ainda que seja sempre


aproximativa no campo da canção) dessas duas partes, os fenômenos de
distensão (emissão) e retenção (remissão), nos termos propostos anteriormente,
ficam evidentes:

1• parte: J
3
2• parte:
J j ,J
i

Evidente que tais características, surgindo disciplinadamente na primeira e na


segunda parte de Garota de Ipanema, refletem casos quase didáticos de resolução
compatível entre plano da expressão e plano do conteúdo em canção popular.
Desnecessário frisar que todas as categorias temporais manifestam-se no decorrer
de toda a cadeia, variando apenas o grau de dominância e o nível de incidência das
extensas (mnésica e cinemática) sobre as intensas (cronológica e rítmica). Cabe à
atividade descritiva examinar justamente a dinâmica das variações.
Manifestação das categorias temporais 157

Composição e interpretação

A canção popular, assim como a música lato sensu, compreende, em geral,


duas fases enunciativas, logicamente determinadas e encadeadas nos processos
conhecidos como composição e execução. Embora possa haver um sincretismo
atorial dos sujeitos desses dois processos, as etapas enunciativas como tais não
se confundem, até porque a sucessão lógica, nesse caso, se converte quase
sempre em sucessão temporal. A execução pressupõe a composição e não o
inverso. Claro que esta pressuposição pode ser burlada no campo da '
manifestação, bastando para isso urna simples reversão técnica, tão comum, por
exemplo, no mundo do jazz. O improviso de um instrumentista ou de um
vocalista pode ser gravado como proposta de composição exaltando o feeling
exclusivo de uma determinada performance. Nesse caso, haveria um sincretismo
das próprias atividades enunciativas cujo comentário ultrapassaria em muito os
objetivos deste capítulo. Tendo como horizonte a canção brasileira, pretendemos
comentar um pouco essas duas fases enunciativas, facilmente reconhecíveis em
todas as suas manifestações.
Necessário lembrar, inicialmente, que o processo de execução tem sido
chamado de "interpretação" e, por conseqüência, seu sujeito, de "intérprete".
Tais denominações, que transitan1 livremente no dominio coloquial, contêm
propriedades suficientes para designar com precisão as atividades dessa fase
enunciativa. A interpretação, que hoje conserva um sentido acima de tudo
prospectivo, associado à performance musical, não pode deixar de cobrir, ao
mesmo tempo, a noção retrospectiva (adotada em atividade descritiva) de um
fazer que se volta para a avaliação de um fazer anterior. De fato, a
interpretação musical supõe invariavelmente a leitura apreciativa de urna
pelformance já concluída pelo compositor. Situado no vértice dessas duas
orientações, o intérprete é sempre o intermediário entre o compositor e o
ouvinte, convertendo essa fase enunciativa em um palco privilegiado para as
manobras com o sentido.
A função do intérprete é decisiva tanto na música erudita como na
canção popular mas, sem dúvida, é muito mais atuante nesta última. O
compositor erudito provê seu intérprete com instruções quase precisas. A
medida de todos os parâmetros musicais é cuidadosamente prescrita, de modo
a controlar, o máximo possível, & segunda fase enunciativa (não estamos
levando em conta os casos experimentais que se apóiam, exatamente, na
existência dessa regularidade previsível). E o bom intérprete é aquele que vê
no compositor um destinador plenipotenciário, cuja orientação deve ser
conduzida à risca. O êxito do produto final está comprometido com esta •
dependência ética entre os dois sujeitos.
O compositor popular também prepara as coordenadas básicas que
158 - ----- _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Musicando a semiótica

nortearão a segunda fase enunciativa sem, contudo, apresentar medidas exatas.


As alturas e as durações, quando vêm bem determinadas, podem ser variadas
em alguns detalhes sem que prejudiquem o resultado final. A intensidade não
está prevista na composição e o timbre principal, a voz, é um traço
metonímico do intérprete a ser projetado livremente sobre a obra sem que
haja também qualquer orientação prévia. A razão disso está justamente na
eterna oscilação, já comentada acima, entre elementos da linguagem oral e
elementos musicais, que faz da canção um objeto muito pa1ticular: entre as
informações fonológicas abstratas, que dispensam a preservação do material
acústico, e as informações musicais concretas que dependem de um bom nível
de estabilidade sonora, o resultado contém um pouco de fala e um pouco de
música mesmo não sendo uma nem outra. As determinações específicas da
canção parecem vir de outras fontes.
Ao enunciar sua canção, o compositor delineia um projeto entoativo para a
melodia e um projeto narrativo para a letra, geralmente compatibilizados
intuitivamente pelas categorias temporais vistas acima. Esses projetas são, até
certo ponto, bem defmidos pelo autor, ainda mais se este acumula a função de
intérprete e tenta executar exatamente o que fora concebido. Sabemos,
entretanto, que, no mundo da canção, a figura do intérprete é constantemente
estimulada a praticar uma segunda enunciação, no sentido de dar à obra uma
coloração pessoal, não apenas em te1mos técnicos, de mera execução, mas em
nível de co-autoria, de participação no projeto enunciativo do compositor. Talvez
por passar, quase sempre, ao largo de wna notação simbólica mais rigorosa -
como é a partitura para a música erudita- a canção tira grande proveito dessa
dupla enunciação.
Tudo indica que o compositor fixa algumas realizações das categorias
temporais - principalmente as cronológicas e rítmicas - deixando outras
flexíveis para a atuação do intérprete. Tal flexibilidade, evidentemente, está na
relação entre a melodia e a letra e jamais em apenas um dos componentes.
Uma letra que pratique sobre as modulações tensivas a seleção dos valores
ernissivos, operando assim a infmitização do objeto em nível narrativo- como
na primeira parte de Garota de Ipanema - , experimenta forte compatibilidade
quando os mesmos valores são selecionados na constituição do componente
melódico. É o caso das canções que têm como lei o pulso, controlando a
temporalidade rítmica, e, como elementos sucessivos, os ataques e os acentos
muito breves assegurando a fluência ininterrupta da melodia (temporalidade
cronológica).
Do ponto de vista da coerência, nada impede que valores emissivos da
melodia se combinem com valores remissivos da letra e vice-versa. Isso, aliás, é
freqüente e pode ser comprovado por qualquer pesquisa empírica. Chama a
atenção, entretanto, o fato de haver um grande número de canções que
apresentam a tal compatibilidade, como se melodia e letra fossem produtos de
Manifestação das categorias temporais !59

wna única seleção prévia dos valores missivas pelo sujeito.l5 Nesse caso, a
escolha do emissivo mantém o sujeito vinculado ao objeto por intermédio da
modalidade do crer. Tais letras manifestam-se como exaltação dos traços que
compõem a figura do objeto, 16 enquanto as melodias articulam um projeto
entoativo com medidas programadas em função do pulso. Este, como já foi dito,
é o elemento extenso que dissemina a continuidade (no sentido de parada da
parada) por toda a obra. Conseqüentemente, as medidas são características
locais, intensas, que, numa progressão emissiva, apresentam durações musicais
reduzidas e acentuadas por influência do próprio pulso subjacente.
Há canções cujo ajuste entre componente lingüístico e componente
melódico se processa em parâmetros estritamente estabelecidos dentro de uma
ordem emissiva. A wna letra recoberta pela celebração de wna figura ou de um
ator (pressupondo a conservação do objeto pelo sujeito), o compositor faz
corresponder um projeto entoativo praticamente fechado em seus elementos
intensos: dmações vocálicas reduzidas aos acentos, aliteração de consoantes e
articulação de pequenos intervalos de altura.l7 Uma canção assim concebida em
sua composição não permite muita mobilidade no nível da interpretação,
sobretudo no que diz respeito às oscilações do tempo cinemático. O pulso,
conduzindo ataques, acentos e intervalos reduzidos, pede aceleração.
Composições como Águas de março (Tom Jobinl), O que é que a baiana tem ?
(Dorival Caymmi), Expresso 2222 (Gilberto Gil), Camisa listada (Assis
Valente), Mulata assanhada (Ataulfo Alves) etc., podem ter suas interpretações
comprometidas se forem desaceleradas.(a menos que num contexto de paródia).
Da mesma forma, a seleção prévia de um fazer remissivo instrui o
componente lingüístico com as tensões típicas do estado passional. Nesse caso,
temos forças originantes que podem ser d.iscretizadas pelo querer mas, temos
também, necessariamente, a predominância dos limites impostos pelo dever ou
pelo saber que problematizam, no nível narrativo, o núcleo da junção (cf. a
segunda parte de Garota de Ipanema). O estado mais comum é o do sujeito em ··
disjunção com o objeto e em conjunção com o tempo (a espera, a saudade ou a
distância temporal que leva ao objeto). Paira por toda a letra, com maior ou
menor explicitação, a função de anti-sujeito.

15. Continuamos acompanhando - com certa liberdade -· o pensamento de Zilberberg para quem,
" antes de se conjuntar a wn objeto, o sujeito se conjunta ao valor deduzido da
aspectualidade". ln: Greimas, A. J. e Courtés, .L Sémiotique: Dictionnaire ..., II, op. cit., p.
I 00. O nível aspectual coincide, em vários textos do autor, com o nível missivo.
16. Exs.: Brasil pandeiro (Assis Valente), Eu quero um samba (1-Iaroldo Barbosa/Janet de
Almeida), Baião (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), A tua presença morena (Caetano
Veloso), Morena de Angola (Ch..ico Buarque), Falsa baiana (Geraldo Pereira) etc.
17. As questões relativas à altura musical - que compreendem os mecanismos de transposição
espacial no campo de tessitura - são, até certo ponto, paralelas e complementares a tudo que
vimos aqui, no nível da temporalidade. Para o desenvolvimento desse aspecto cf. Tatit, L.
Semiótica da canção. op. cit., p. 94 ss.
160 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ Musicando a semiótica

Guiada pela seleção das modulações remissivas, a composição melódica


procura, à sua maneira, realizar a continuação da parada. Temos então, no
plano intenso, o alongamento das durações (das vogais), associado à dilatação
dos intervalos de altura. No plano extenso, a configuração de um contorno geral
que opera, inutilmente, em função da neutralização do pulso, como se pudesse
desenhar o perfil do estado passional sem interferência dos impulsos dinâmicos.
A expansão das durações e intervalos mais amplos por toda a linha melódica
produz o contorno que, por sua vez, só pode ser bem identificado se disseminar
pela obra suas longas durações. Enfim, se o pulso rege os ataques e os acentos,
o contorno direciona as durações e os intervalos. Se o pulso pede aceleração,
o contorno se configura melhor com a desaceleração.
Portanto, as canções produzidas dentro desta compatibilidade estrita entre
melodia e letra, numa ordem remissiva, também não petmitem uma variação
cinemática, no sentido de aceleração substancial de seus valores musicais.
Exemplos como Nervos de aço ou Volta (Lupicínio Rodrigues), A noite do meu
bem (Dolores Duran), Agora é cinzas (Bide/Marçal), Ninguém me ama
(Antonio Maria/Fernando Lobo), Olhos nos olhos (Chico Buarque), Preciso
aprender a ser só (Marcos Valle/Paulo Sergio Valle) etc., se enquadram nessa
perspectiva.
Boa parte do repertório nacional, entretanto, apresenta um tipo de
composição que oferece grande margem de manobra ao plano da interpretação.
Tais canções caracterizam-se por instruir tanto a letra como a melodia com
seleções emissivas e remissivas, articulando suas dimensões intensas, de modo
que, no plano da interpretação, o cantor possa se definir por uma ou por outra (ou
pelas duas ao mesmo tempo), apenas projetando a temporalidade cinemática
sobre a melodia. Acelerando as medidas musicais, o intérprete faz sobressair o
pulso e, conseqüentemente, promove a extensão dos ataques, dos acentos e dos
pequenos intervalos por toda a melodia. Tal dinamização aciona a ordem
emissiva, tornando-a dominante. Imediatamente, os valores eufóricos contidos
na letra passam a primeiro plano. Desacelerando as mesmas medidas, destaca-se
o contamo que conduz as durações vocálicas por todo o percurso e difunde as
tensões da falta e da espera cuja manifestação confirma a dominância da ordem
remissiva. Os cancionistas brasileiros têm realizado notáveis manobras com o
sentido, partindo tão-somente dessas oscilações cinemáticas. Uma comparação
de interpretações, as mais díspares, da mesma composição pode ser o começo de
toda e qualquer abordagem descritiva: Luiz Gonzaga e Caetano Veloso cantando
Asa branca; Dick Farney e Gilberto Gil cantando Marina; Silvio Caldas e Gal
Costa cantando Aquarela do Brasil, Lobão e João Gilberto cantando Me
chama ... e a lista é imensa.
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