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Tchekhov (Pausa), A Crise Do Drama Moderno

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Gabriel Fortunato Coutinho Guimarães 9825733


Bianca Fernandes Arruda 10426376

Tchekhov (pausa),
A Crise do Drama Moderno

São Paulo
2021
Introdução

Tchekhov, em seus últimos anos de vida, escreveu quatro das mais emblemáticas
peças do teatro russo. Entre os autores do chamado “drama moderno”, como Ibsen
e Strindberg, sua obra dramatúrgica se destaca, sendo em geral mais presente nos
palcos e discutida nos livros até hoje. A razão disso vai além de sua maestria
literária; Tchekhov, assim como esses outros autores citados, revoluciona o teatro
de sua época. Mas há algo de único em sua dramaturgia que torna sua obra tão
atual e capaz de apresentar novos “desafios” para diretores, encenadores e críticos
contemporâneos. Tchekhov foi capaz, como poucos autores, de escrever e
descrever a vida social de uma forma ao mesmo tempo distanciada e engajada,
quase como se esboçando uma sociologia crítica da vida russa do final do séc. XIX.

Neste presente ensaio pretendemos oferecer um breve panorama sobre a obra


teatral de Tchekhov, tentando contextualizar de maneira satisfatória não apenas seu
ambiente social, mas também os impasses presentes no teatro da época. A partir
disso, podemos trazer para o diálogo importantes autores do séc. XX que
escreveram sobre Tchekhov, e mesmo ensaiar algumas considerações “inéditas”
sobre sua obra.

Mestre da Observação

Filho de um comerciante falido, formou-se em medicina mas praticou a literatura


desde jovem. Tchekhov nasceu, viveu e morreu numa Rússia “mal saída do
arcaísmo feudal e já acossada pelos cambiantes desejos da sociedade moderna”
(CARVALHO, 1998), e é esta sociedade em contradição que permeia de forma
inseparável sua obra. Seu teatro, chamado muitas vezes de realista, é marcado por
figuras negativas, socialmente localizadas e esbanjando contradições internas e
externas, mas no estado inerte onde consomem “toda sua energia no processo de
tomar consciência de sua própria incapacidade e impotência” (WILLIAMS, 1975).
Outra característica de sua produção teatral é a representação da ação cotidiana e
suas banalidades, em uma forma teatral única onde, por vezes, parece sequer
haver enredo - mais de uma vez, Tchekhov foi acusado de escrever peças onde
“nada acontece” - porém as trivialidades de seu texto trazem consigo um forte
subtexto carregado de tragédia, numa realidade de conflitos insolúveis e do fracasso
da comunicação.

“O melhor de sua literatura está nos detalhes aparentemente


insignificantes, como um relógio que, de repente, cai do bolso e se quebra.
Afirmava que suas personagens não lhe surgiam da cabeça ‘vindas da
espuma do mar, nem do intelectualismo, nem do acaso; elas são o
resultado da observação e do estudo da vida’”. (CARVALHO, 1998)
O Drama Moderno

Para entender o que há de único no teatro de Tchekhov, é necessário antes


entender um pouco melhor o contexto de sua produção dramatúrgica. Tchekhov
escreveu dramas, mas a forma e o conteúdo de suas peças é apenas
superficialmente similar ao “drama burguês", e portanto, Peter Szondi localiza
Tchekhov entre os autores do que ele chama de "crise do drama moderno”. O drama
constitui a forma de representação dominante a partir do renascentismo, e cujas
premissas formais - e portanto de conteúdo, assumindo a possibilidade de enxergar
a forma “como conteúdo ‘precipitado’, ou seja, como uma dialética entre dois
enunciados: o ‘enunciado da forma’ e o ‘enunciado do conteúdo’” (SZONDI, 2001) -
estão ideologicamente alinhadas à burguesia em ascensão e aos preceitos do
capitalismo liberal.

O drama representa “a audácia espiritual do homem que voltava a si depois da


ruína da visão de mundo medieval, a audácia de construir, partindo unicamente da
reprodução das relações intersubjetivas, a realidade da obra na qual quis se
determinar e espelhar.” (SZONDI, 2001). De forma bem resumida, as características
do drama são: o domínio da esfera intersubjetiva; a soberania do indivíduo -
protagonista - consciente e dotado de vontade, capaz de agir e provocar mudanças;
a exclusividade do diálogo como meio linguístico intersubjetivo; o caráter absoluto
da representação, que ergue uma “quarta parede” e exclui tudo que lhe é externo -
público, dramaturgo, ator e mesmo a realidade. Enfim, há outras características,
mas estas servem para um panorama geral.

A crise do drama seria, então, o momento em que a forma dramática se torna


insustentável para os conteúdos que certos autores tentam mobilizar, colocando
assim “a possibilidade de que ambos esses enunciados, o da forma e o do
conteúdo, entrem em contradição quando uma forma estabelecida e não
questionada é posta em questão pelos conteúdos que trata de assimilar, mas que já
são incompatíveis com seus pressupostos” (JÚNIOR, 2001).

Tchekhov se encontra nesta crise pois em suas peças ele “implode” a forma
dramática, quebra as regras e fórmulas estabelecidas, mas sem destruir a estrutura
mais geral da forma. Na verdade, seu grande feito é comprovar a impossibilidade
dos preceitos formais do drama dentro da realidade. Por isso pode ser considerado
um autor realista, certamente não é por uma imitação primária da realidade, mas
sim pela tentativa de estabelecer um diálogo com a realidade e a representar em
suas contradições. A realidade absoluta do drama burguês é puro idealismo, e
Tchekhov rompe com ela: suas peças por vezes mal tem enredo, seus finais são
abertos, a ação gestual implícita é banal, as figuras, socialmente localizadas, vivem
o impasse da impossibilidade de ação e de comunicação, mesmo quando
conscientes de sua situação. A dissolução do enredo, a consciência desligada da
ação e, principalmente, o “não-diálogo” - em diálogos onde a comunicação falha; é
unilateral, incompreendida, incompleta, enfim, não realiza a comunicação
intersubjetiva que o diálogo dramático pressupõe - são elementos de suas peças
que colocam a forma dramática em crise. Szondi escreve:

Nos dramas de Tchékhov os homens vivem sob o signo da renúncia, A


renúncia ao presente e à comunicação: a renúncia à felicidade em um
encontro real. Essa resignação, em que a nostalgia e a ironia se vinculam
para evitar atitudes extremadas, determina também a forma e o lugar de
Tchékhov na história do desenvolvimento da dramaturgia moderna.
(SZONDI, 2001)

A Gaivota

A Gaivota é a primeira grande peça de Tchekhov e nela podemos observar as


contradições formais citadas. A peça foi um fracasso em sua primeira apresentação,
e Tchekhov chegou a declarar que nunca mais escreveria para o teatro, porém o
encenador Constantin Stanislavski foi capaz de encarar os desafios propostos pelo
texto e dois anos depois a peça reestreia para um relativo sucesso - é sabido que
haviam muitos assentos vazios na sua estreia, mas a peça foi aclamada por um
público específico oriundo de círculos mais progressistas das classes médias e altas
(WILLIAMS, 2010) - no Teatro de Arte de Moscou com um considerável sucesso.

A peça conta com diversos “enredos” paralelos entre figuras entediadas e


frustradas de uma pequena aristocracia decadente. Para pensar as possibilidades
de desdramatização da peça, vamos mobilizar três de suas figuras: Sorin, Treplev e
Yakov.

Sorin é o dono da propriedade onde a peça se passa, é um funcionário público


aposentado que passa a velhice no campo mas que lamenta constantemente pela
vida que não viveu, e expressa o desejo de sair do campo e voltar a cidade1. Sorin
apresenta interessantes momentos de "não-diálogo", com seu constante lamento
que passa ignorado pela maioria. Sorin também é um ótimo exemplo para
representar a dissonância entre vontade e ação; quer ir a cidade mas nunca vai, diz
querer viver mais pois não viveu uma vida realizada, mas ignora os conselhos do
médico Dorn, com quem inclusive estabelece interessantes "diálogos":

SORIN. (Ri) Para si é fácil dizer o que diz. Gozou devidamente a sua
vida, mas eu?... Eu estive vinte e oito anos ao serviço da Justiça, e não
vivi verdadeiramente a vida. Experiências, não tive nenhuma, para dizer
tudo. Percebe-se então porque é que eu quero continuar a viver, não
acha? Você bebeu o trago da vida; o seu trago, pode ser indiferente.

1
De certa forma, quase um ensaio de As Três Irmãs, onde as irmãs expressam o desejo que nunca
se concretiza de voltar a Moscou.
Por isso mesmo é que você tem queda para a filosofia. Mas eu, eu
quero viver mais, e é por isso mesmo que não desisto de beber um
xerez ao jantar e de fumar os meus charutos. E pronto, está tudo dito.

DORN. É preciso encarar a vida a sério. Querer tratar-se aos sessenta


anos e ter pena de si próprio por não se ter gozado a juventude, é pura
e simples leviandade, desculpe que lho diga.

Sorin não responde a essa réplica de Dorn, e aqui se revela que seus lamentos
talvez não tenham como objetivo constituir um diálogo. Sorin lamenta para
expressar essa pena de si mesmo, como uma forma amarga de dar sentido à vida,
de certa forma fala para que seja ouvido mas não para que seja respondido, ignora
qualquer confronto ou solução - é um diálogo impossível. Sorin vive sua velhice na
contradição do desejo inalcançável convertido em lamento, de forma que acaba por
transformar até o alcançável (voltar à cidade) meramente em lamento. É um ótimo
exemplo de como Tchekhov nos mostra que agir é de fato muito mais difícil do que
se supõe o drama burguês, - a vontade não basta.

Treplev é um jovem revoltado e impulsivo dividido entre uma série de conflitos de


diferentes naturezas que o rasga e atormenta durante o decorrer da peça, e que são
agravados pelas suas próprias ações - ou pela falta de uma ação direta e decisiva,
em um proposital diálogo com Hamlet de Shakespeare - e que culmina no seu
suicidio que encerra a peça. Treplev é provavelmente a figura mais discutida de A
Gaivota, e com razão, mas vamos focar no elemento específico da impossibilidade
do diálogo e do entendimento. Logo em sua primeira aparição temos um momento
em que, durante seu "diálogo" com seu tio Sorin, Treplev praticamente fala sozinho
enquanto Sorin responde coisas breves e não avança de fato sobre o tema que
Treplev trata. É um monólogo transfigurado em um diálogo quase sem
comunicação, em total desacordo com a suposta intersubjetividade do drama. Um
trecho:

SORIN. Pensas que a tua peça não vai agradar à tua mãe, estás
perturbadíssimo, e está tudo dito. Mas acalma-te. A tua mãe adora-te.

TREPLEV. (Desfolha um a flor) Bem me quer, mal me quer, bem me


quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer. (Ri) Evidentemente!
Estás a ver, a minha mãe não gosta de mim! É natural. Ela o que
deseja é que a deixem viver a vida, amar, usar blusas de cores vivas, e
eu sempre aqui, com os meus vinte e cinco anos a lembrarem-lhe
constantemente que já não é nenhuma jovem. Quando eu não ando por
perto, ela só tem trinta e dois anos. Mas se estou ao pé dela, tem mais
dez, e é por isso que me odeia. Mais, ela sabe que eu me recuso a
aceitar o teatro. Ela ama o teatro. Ela vê-se a si própria ao serviço da
humanidade e da causa sagrada da Arte. Ora, na minha opinião, o
teatro é uma perfeita rotina imbuída de puro convencionalismo. Quando
a cortina sobe, deixa à nossa vista um espaço delimitado por três
paredes, iluminado por uma luz artificial, e vemos todos esses artistas
sublimes, sacerdotes e sacerdotisas de uma arte sagrada, a imitarem
como é que se come, como é que se bebe, se namora, passeia e veste
o casaco. Com cenas vulgaríssimas e com frases ocas, põem-se a
cozinhar uma moral de uso doméstico, bem ajeitadinha, pequenina,
fácil de entender. Afinal servem-nos sempre o mesmo prato de mil e
uma maneiras, e eu, por mim, fujo a sete pés, como o Maupassant,
espavorido com a vulgaridade da Torre Eiffel, que lhe atrofiava os
miolos.

SORIN. Não podemos passar sem o teatro.

TREPLEV. Mas são precisas novas formas. Temos de as conseguir. Se


não arranjarmos formas novas, então o melhor é não termos nada. (Vê
as horas) Gosto muito da minha mãe, muitíssimo, mas fuma, vive às
claras com aquele escritor e anda sempre com o nome estampado nos
jornais - satura-me, tudo isso. Às vezes, quando muito naturalmente me
sinto tão egoísta como qualquer outro ser humano, lamento que a
minha mãe seja uma actriz famosa, e antes queria que ela fosse
apenas uma mulher vulgar, o que me faria muito mais feliz. Imagina a
situação mais absurda e aflitiva do que esta: ela recebia em casa todas
as celebridades, actores, escritores - e eu ali, no meio dessa gente,
uma nulidade - eles, a tolerarem-me apenas por eu ser filho dela. Afinal
quem sou eu? Sou o quê? Larguei a Universidade, no terceiro ano,
«devido a circunstâncias», para falar em linguagem de artigo de fundo,
«que não dependem da nossa vontade»; talento, não tenho, e dinheiro,
tão-pouco; pelo que está no meu passaporte, sou um pequeno burguês
de Kiev. Como sabes, o meu pai, um actor conhecido, provinha da
pequena burguesia de Kiev. E aí tens. Quando todos aqueles actores e
escritores, que lhe enchiam a sala, me concediam algum vislumbre de
benévola atenção, o que eu sentia era que estavam simplesmente a
avaliar qual o grau da minha insignificância - imaginava o que estariam
a pensar - , e invadia-me uma humilhação profunda.

SORIN. A propósito, não farás o favor de me dizer que espécie de


pessoa é o escritor? Não consigo perceber como é. Está sempre
calado.

A trajetória de Treplev durante a peça é marcada por esses momentos


monológicos, e por outros conflitos de comunicação, com sua mãe Arkadina, com
Nina a quem ama, com a escrita e suas pretensões artísticas, etc. A falta de uma
solução para seus problemas não vem de uma ignorância, mas sim da clara
consciência da complexidade dos conflitos que o envolvem, e que resulta numa
paralisia ou, por fim, no suicidio.
Raymond Williams resume bem essas características da obra de Tchekhov que
tratamos até aqui:

“No Tchekhov mais recente, na crise do alto naturalismo, o grupo social


que podia compreender o próprio mundo já estava se dissolvendo. Na
verdade, a originalidade de Tchekhov foi ter encontrado novos tipos de
ação e de linguagem para expressar exatamente essa dissolução: uma
prostração e uma perda de sentido compartilhadas. Sua forma
determinante é, então, a do grupo negativo. As pessoas ainda estão ali e
tentam comunicar-se, mas na verdade perderam o contato umas com as
outras e com o seu mundo: perda essa concretizada em sua linguagem
dramática, que é a de pessoas falando diante de outras ou por intermédio
de outras, e não para outras ou com outras.” (WILLIAMS, 1992)

Porém, temos ainda de falar de um personagem, que pode aparentar ser


completamente desimportante, mas que aponta para um elemento inovador no
teatro de Tchekhov: Yakov, um trabalhador que tem pouquíssimas falas. Yakov
simboliza algo que será ainda mais forte nas próximas peças do autor, que é a
presença dos "invisíveis" - servos, criados, amás, trabalhadores, etc. Em Gaivota, a
presença de Yakov e outros empregados é ligeira mas certeira; enquanto as
personagens filosofam, sofrem, lamentam, ou tomam chá, no fundo os criados
trabalham. Isto é especialmente presente no primeiro ato, onde Yakov e outros
trabalhadores estão montando o palco para a peça de Treplev. Tchekhov ensaia um
desconforto ao insistir na presença dessas figuras, sutilmente sustentando a vida
tediosa, melancólica e confortável das classes médias e altas.

Três Irmãs (um breve comentário sobre o "não-diálogo")

Não temos tempo de nos ocupar detidamente da peça As Três Irmãs, mas, para
avançar a discussão sobre o "não-diálogo", é necessário comentar uma passagem
da peça. Há um interessante momento de “diálogo” entre Andrei e Ferapont, um
funcionário quase surdo que praticamente não o ouve nem o entende. Reproduzo
um trecho:

FERAPONT. Não compreendo ...É que sou ruim de ouvido.

ANDREI. Se não fosses surdo, eu provavelmente não estaria lhe


falando assim. Eu preciso falar com alguém. Minha mulher não me
entende, e temo que minhas irmãs venham a se divertir às minhas
custas... Eu não gosto de beber, mas estaria logo cedo, se estivesse
agora em Moscou, no Testov ou em algum outro restaurante
simpático... Sim, meu caro!

FERAPONT. Em Moscou ... Outro dia um senhor contou de Moscou lá


na secretaria uma história toda maluca! Dois comerciantes comeram
panquecas, e um deles, que havia engolido quarenta, acabou
morrendo. Quarenta ou cinqüenta, não me lembro bem, mas foi por aí.

ANDREI. Em Moscou tu ficas sentado em um restaurante, em um salão


gigantesco, não conheces ninguém e ninguém te conhece, mas tu te
sentes em casa ...E aqui tu conheces todo mundo, todos te conhecem e
tu és um estrangeiro ... estrangeiro e solitário.

FERAPONT. Como? (Pausa)

Peter Szondi nos oferece uma análise extremamente pertinente sobre esta
passagem:

“O que aparece aqui como diálogo (...) é no fundo um monólogo


desesperado de Andrei, que tem como contraponto o discurso
igualmente monológico de Ferapont. Enquanto na fala sobre o mesmo
objeto se mostra comumente a possibilidade de um entendimento
genuíno, aqui se expressa sua impossibilidade. A impressão de
divergência é tanto mais forte quando ela simula uma convergência
como pano de fundo. O monólogo de Andrei não resulta do diálogo,
antes se desenvolve por meio de sua negação. A expressividade desse
"diálogo de surdos" se baseia no contraste doloroso e paródico com o
verdadeiro diálogo, que ele relega assim para a utopia. Mas isso coloca
em questão a própria forma dramática. A retirada formal do diálogo
conduz necessariamente ao épico. É por isso que o surdo de Tchékhov
aponta para o futuro2.” (SZONDI, 2001)

O Jardim das Cerejeiras

Em A Gaivota, Tchekhov enfrenta a forma dramática com seu realismo


característico; através de não-diálogos, e de suas figuras negativas e contraditórias.
Em O Jardim das Cerejeiras, Tchekhov se utiliza novamente de sua forma
(a)dramatica, mas dá um passo adiante em direção ao futuro3 - O Jardim dos
Cerejais é uma peça que se historiciza.

O conflito dramático principal - se Liubov vai ou não perder a casa e, portanto, se


a seu tão querido cerejal será ou não será cortado - simplista e que se movimenta
lentamente, mascara o profundo subtexto histórico da peça: o texto mobiliza na
verdade a discussão sobre uma aristocracia em decadência - representada pela
romântica e sonhadora Liubov e sua família - a ascensão da burguesia - através do
comerciante rico, mas filho de servo, Lopakhin - e sobre o passado de servidão da

2
Quando Peter Szondi escreve “futuro” nesta passagem, ele está se referindo à tese, que defende
em seu livro Teoria do Drama Moderno, de que o teatro dos autores da “crise do drama” aponta para
a desdramatização e em direção ao teatro épico. Utilizaremos a palavra “futuro” com esta mesma
conotação em outros momentos deste ensaio.
3
Teatro épico.
Rússia - vivido pelas figuras dos servos, discutido pelo estudante Trofímov4 e
novamente presente na figura de Lopakhin. Isto tudo, no entanto, em nenhum
momento faz da peça uma palestra histórica, Tchekhov é autor extremamente difícil
de se representar exatamente porque a grande força de sua obra dramática está no
subtexto, ao ponto que, superficialmente, seus diálogos podem parecer banais e
sem importância.

Um dos enredos da peça que vale destacar é o de Lopakhin, comerciante rico


que é descendente de uma família de servos da casa do cerejal. A origem
desfavorável de Lopakhin é sempre um incômodo para ele, logo no começo
confessa:

Lopakhin. Sou rico agora, tenho muito dinheiro, mas se você pensar sobre
mim e me examinar, verá que eu ainda sou um camponês por baixo dessa
pele. [Vira páginas de seu livro] Aqui, eu estava lendo esse livro, mas não
entendi nada. Li e dormi.

No começo da peça Lopakhin, que tem grande afeto por Liubov, propõe que, para
que ela consiga pagar suas dívidas e manter a propriedade, que a transforme numa
vila. A ideia repugna Liubov, que não aceita de maneira alguma derrubar a casa ou
cortar o cerejal, e portanto enrola sem achar outra solução até o dia do leilão da
casa quando, numa reviravolta, Lopakhin compra a propriedade, até para seu
próprio espanto.

Lopakhin. Eu comprei! Um momento, senhoras e senhores, por favor,


minha cabeça está girando, mal posso falar... (...) O jardim das cerejeiras
agora é meu! Meu! [Gargalha] Meu Deus, meu Deus, o jardim das
cerejeiras é meu! Digam-me se estou bêbado, maluco, ou sonhando...
[Bate os pés] Não riam de mim! Se meu pai ou meu avô levantassem de
seus túmulos e olhasse tudo isso, vissem como o pequeno Lermolai
comprou uma propriedade, que é a mais linda propriedade do mundo! Eu
comprei a propriedade que meu avô e meu pai eram escravos, onde não
eram permitidos nem entrar na cozinha. Eu estou dormindo, isso é apenas
um sonho, uma ilusão... Fruto da minha imaginação, embrulhado na
neblina do desconhecido...

4
Diversas vezes durante a peça, o cerejal é referido pelas personagens como simbólico de coisas
diferentes - alegres lembranças de infância para Liubov, algo banal e sem perspectiva de gerar lucro
para Lopakhin. Mas entre as metáforas criadas, a mais forte é dita por Trofímov, tentando convencer
Ânia de que o cerejal deve ser cortado, numa expressão ao mesmo tempo poética e de reflexão
histórica. Considero uma das coisas mais viscerais e tocantes que Tchekhov escreveu, e por isso
destaco um trecho aqui:
Trofímov. Pense Ânia, seu avô, seu bisavô, e todos seus ancestrais foram donos de escravos, eles
possuíam e dominavam almas vivas; e agora, não parece que tem olhos das almas em cada
cereja, cada folha e cada tronco desse cerejal? Oh, é horrível, seu cerejal é terrível: e quando de
tarde ou à noite andamos pelo cerejal, as cascas das árvores reluzem um brilho fraco e as velhas
cerejeiras parecem estar sonhando com tudo que acontecia cem, duzentos anos atrás, horrorizadas
com sua visão retorcida.
A trajetória de Lopakhin para dono do cerejal, ganhando uma posição de poder
para com Liubov, e resultando de fato na transformação da propriedade em uma
vila, demonstra de forma muito interessante o movimento histórico de declínio da
aristocracia e ascensão da burguesia.

Outra coisa de grande importância nesta peça é a presença constante das figuras
dos servos. Se em A Gaivota há algo de ousado em insistir na desconfortável
presença de fundo dos empregados trabalhando enquanto os conflitos, muitas
vezes mesquinhos, daquelas figuras de classe superior se desenrolam, em O
Jardim das Cerejeiras a presença da figura dos servos é muito mais forte, com
cenas próprias e um desenvolvimento muito mais completo. Não é de menor
importância ressaltar que a personagem que encerra a peça é Fiers, um velho servo
que, durante a peça, se porta como um “conservador”, nostálgico dos tempos antes
da libertação. É de uma beleza e tristeza profunda que esta figura, contraditória e
complexa, encerra a peça “esquecida”. Após o cerejal finalmente ser cortado, Liubov
e sua família deixam a propriedade “bem” - Liubov está melancólica e nostálgica,
seu irmão Gáev preocupado com ela e por isso até um pouco desesperado, mas
sua filha Ania e o intelectual Trofimov estão felizes com a mudança. No fim, todos
tem “para onde ir”, cortar o cerejal é cortar o passado, o que é agradável para
alguns e sofrido para outros, mas uma vez cortado, a dor já começa a cicatrizar5.
Mas para o velho e (literalmente) pobre Fiers, a vida não tem essas mesmas
possibilidades - quem sabe é por isso também que se agarra à nostalgia. Se O
Jardim das Cerejeiras encena um processo histórico, encerrar a peça com o
sofrimento da figura popular por sua vida “negada” é uma escolha ousada e forte.
Se as figuras negativas aristocráticas de Tchekhov vivem no sofrimento pela “vida
que não se realizou” (WILLIAMS, 2010), Fiers - e, em certa medida, algumas outras
raras figuras similares - se destaca por viver uma vida que nunca sequer teve a
possibilidade de se realizar. Reproduzo o final da peça:

O palco está vazio. O som das chaves sendo viradas na tranca é


escutado, sons da carruagem partindo. Está tudo quieto. Então, o triste
som dos machados nas árvores é escutado cruzando o silêncio. Sons
de passo. FIERS entra pela porta da direita. Ele veste o mesmo de
sempre, casaco branco; sandálias nos pés. Ele está doente. Vai até a
porta e tenta abri-la, mas está trancada.

5
LIUBOV. (...) Você está feliz? Muito?
ÂNIA. Muito! Uma nova vida está começando, mãe!
GAÉV. [Alegremente] Sim, realmente, tudo será novo agora. Antes do cerejal ser vendido,
estávamos todos preocupados e sofrendo, e agora, quando o problema foi resolvido de uma vez por
todas, todos nos acalmamos, ficamos até contentes. (...) e você, Luluba, por alguma razão, aparenta
estar melhor, não tenha dúvidas sobre isso.
LIUBOV. Sim. Meus nervos estão melhores, é verdade. [Põe o casaco e o chapéu] Eu dormirei bem.
Pegue minha bagagem, Iacha. Está na hora.
FIERS. Está trancada. Foram embora. [Senta no sofá]
Esqueceram-me aqui... Deixa pra lá, vou ficar sentado aqui... E
Leônid Andreiêvitch deve ter saído com aquele casaquinho leve em
vez de usar o casaco de peles... [Suspira ansioso] Mas nem os vi...
Oh, esses jovens! [Resmunga algumas coisas incompreensíveis] A
vida se passou como se eu nem tivesse vivido. [Deita-se] Vou
deitar aqui... Nem força lhe sobrou, nada lhe sobrou seu... Seu...
Vale-nada!

Ele fica deitado, sem se mexer. Um som no horizonte é escutado, como


se viesse do céu, de uma corda se rompendo, com o som diminuindo
tristemente bem longe. Silêncio em seguida, sendo que a única coisa
que é escutada, em algum lugar longe, bem longe do jardim, são os
machados nas árvores.

(In)Conclusão

Demonstramos como Tchekhov rompe com a forma hegemônica do drama e


apresenta uma série de elementos inéditos, em forma e conteúdo, para o teatro
russo. Deixamos de fora muito do que pode ser analisado na obra teatral do autor,
inclusive as limitações de seu realismo que ainda não rompe por completo com o
drama. No entanto, por hora as reflexões apresentadas aqui - reconstruindo o
argumento de autores ou rascunhando considerações “inéditas” - são suficientes.

Tchekhov foi um autor capaz de escrever com maestria a “estrutura de


sentimentos” própria de seu tempo e contexto social - as figuras e relações
decadentes de uma Rússia num impasse insolúvel entre arcaico e moderno. No
entanto, suas peças contém a sutileza necessária para não caírem num elogio à
melancolia ou derrotismo apaixonado; são antes “exemplos negativos”, e seu
realismo busca mostrar “que é possível viver de maneira diferente da que se tem
vivido até hoje, naquelas condições” (CARVALHO, 1998). Neste sentido, a “estrutura
de sentimentos” que representa anuncia mesmo a vinda - e quem sabe mesmo o
fracasso6 - de uma futura revolução social (e teatral).

6
Em “As Três Irmãs”, as reflexões de Verchinin sobre o futuro, a impossibilidade da felicidade agora,
e a “missão” dos vivos em trabalhar para a felicidade de seus descendentes é um ótimo exemplo de
como Tchekhov é capaz de fazer personagens que expressam algo ao mesmo tempo sincero e
irônico. O “utopismo” de Verchinin é de fato consciente que radicais mudanças estavam se ensaiando
para a humanidade e para aquela sociedade, mas ao sair da boca de um homem que diz “não sei
selecionar minhas leituras e talvez nem leia exatamente aquilo de que precisaria” e que se encontra,
assim como muitos dos outros personagens, numa condição de classe acomodada e isolada, e preso
no emaranhado dos banais conflitos cotidianos - diz “Nós, russos, gostamos demais dos
pensamentos elevados, mas, me diga, porque na vida real voamos tão baixo? Por quê?” - essa sua
esperança utópica no futuro soa também como a esperança raza e romântica de um homem infeliz
procurando algo para se reconfortar. Destaco uma de suas falas:
“Acho que aos poucos tudo na terra deve mudar, e já está mudando diante dos nossos olhos. Dentro
de duzentos, trezentos ou talvez mil anos – a data não importa – surgirá uma vida nova e feliz. Nós, é
claro, não participaremos dessa vida, mas é para ela que vivemos, por ela que trabalhamos, sim, por
Bibliografia:

CARVALHO, Sérgio de. Tchekhov conta Brasil. In revista Bravo, número 07,
Ano 1, abril de 1998, pp. 106-109.

JÚNIOR, José Antônio Pasta. Apresentação in SZONDI, Peter. Teoria do Drama


Moderno. (1880 - 1950). Cosac & Naify, 2001.

SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. (1880 - 1950). Cosac & Naify, 2001.

TCHEKHOV, Anton. A Gaivota. Cosac & Naify, 2004.

_________________. Jardim das Cerejeiras. Em Cartaz, 1998.

_________________. As Três Irmãs. Abril, 1976.

WILLIAMS, Raymond. Drama em Cena. Cosac & Naify, 2010.

_________________. Cultura. Paz e Terra, 1992.

_________________. El teatro de Ibsen a Brecht. Península, 1975

ela sofremos; somos nós os seus criadores – e essa é a única finalidade de nossa vida, e se assim
quiser, a nossa felicidade”.

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