Tchekhov (Pausa), A Crise Do Drama Moderno
Tchekhov (Pausa), A Crise Do Drama Moderno
Tchekhov (Pausa), A Crise Do Drama Moderno
Tchekhov (pausa),
A Crise do Drama Moderno
São Paulo
2021
Introdução
Tchekhov, em seus últimos anos de vida, escreveu quatro das mais emblemáticas
peças do teatro russo. Entre os autores do chamado “drama moderno”, como Ibsen
e Strindberg, sua obra dramatúrgica se destaca, sendo em geral mais presente nos
palcos e discutida nos livros até hoje. A razão disso vai além de sua maestria
literária; Tchekhov, assim como esses outros autores citados, revoluciona o teatro
de sua época. Mas há algo de único em sua dramaturgia que torna sua obra tão
atual e capaz de apresentar novos “desafios” para diretores, encenadores e críticos
contemporâneos. Tchekhov foi capaz, como poucos autores, de escrever e
descrever a vida social de uma forma ao mesmo tempo distanciada e engajada,
quase como se esboçando uma sociologia crítica da vida russa do final do séc. XIX.
Mestre da Observação
Tchekhov se encontra nesta crise pois em suas peças ele “implode” a forma
dramática, quebra as regras e fórmulas estabelecidas, mas sem destruir a estrutura
mais geral da forma. Na verdade, seu grande feito é comprovar a impossibilidade
dos preceitos formais do drama dentro da realidade. Por isso pode ser considerado
um autor realista, certamente não é por uma imitação primária da realidade, mas
sim pela tentativa de estabelecer um diálogo com a realidade e a representar em
suas contradições. A realidade absoluta do drama burguês é puro idealismo, e
Tchekhov rompe com ela: suas peças por vezes mal tem enredo, seus finais são
abertos, a ação gestual implícita é banal, as figuras, socialmente localizadas, vivem
o impasse da impossibilidade de ação e de comunicação, mesmo quando
conscientes de sua situação. A dissolução do enredo, a consciência desligada da
ação e, principalmente, o “não-diálogo” - em diálogos onde a comunicação falha; é
unilateral, incompreendida, incompleta, enfim, não realiza a comunicação
intersubjetiva que o diálogo dramático pressupõe - são elementos de suas peças
que colocam a forma dramática em crise. Szondi escreve:
A Gaivota
SORIN. (Ri) Para si é fácil dizer o que diz. Gozou devidamente a sua
vida, mas eu?... Eu estive vinte e oito anos ao serviço da Justiça, e não
vivi verdadeiramente a vida. Experiências, não tive nenhuma, para dizer
tudo. Percebe-se então porque é que eu quero continuar a viver, não
acha? Você bebeu o trago da vida; o seu trago, pode ser indiferente.
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De certa forma, quase um ensaio de As Três Irmãs, onde as irmãs expressam o desejo que nunca
se concretiza de voltar a Moscou.
Por isso mesmo é que você tem queda para a filosofia. Mas eu, eu
quero viver mais, e é por isso mesmo que não desisto de beber um
xerez ao jantar e de fumar os meus charutos. E pronto, está tudo dito.
Sorin não responde a essa réplica de Dorn, e aqui se revela que seus lamentos
talvez não tenham como objetivo constituir um diálogo. Sorin lamenta para
expressar essa pena de si mesmo, como uma forma amarga de dar sentido à vida,
de certa forma fala para que seja ouvido mas não para que seja respondido, ignora
qualquer confronto ou solução - é um diálogo impossível. Sorin vive sua velhice na
contradição do desejo inalcançável convertido em lamento, de forma que acaba por
transformar até o alcançável (voltar à cidade) meramente em lamento. É um ótimo
exemplo de como Tchekhov nos mostra que agir é de fato muito mais difícil do que
se supõe o drama burguês, - a vontade não basta.
SORIN. Pensas que a tua peça não vai agradar à tua mãe, estás
perturbadíssimo, e está tudo dito. Mas acalma-te. A tua mãe adora-te.
Não temos tempo de nos ocupar detidamente da peça As Três Irmãs, mas, para
avançar a discussão sobre o "não-diálogo", é necessário comentar uma passagem
da peça. Há um interessante momento de “diálogo” entre Andrei e Ferapont, um
funcionário quase surdo que praticamente não o ouve nem o entende. Reproduzo
um trecho:
Peter Szondi nos oferece uma análise extremamente pertinente sobre esta
passagem:
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Quando Peter Szondi escreve “futuro” nesta passagem, ele está se referindo à tese, que defende
em seu livro Teoria do Drama Moderno, de que o teatro dos autores da “crise do drama” aponta para
a desdramatização e em direção ao teatro épico. Utilizaremos a palavra “futuro” com esta mesma
conotação em outros momentos deste ensaio.
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Teatro épico.
Rússia - vivido pelas figuras dos servos, discutido pelo estudante Trofímov4 e
novamente presente na figura de Lopakhin. Isto tudo, no entanto, em nenhum
momento faz da peça uma palestra histórica, Tchekhov é autor extremamente difícil
de se representar exatamente porque a grande força de sua obra dramática está no
subtexto, ao ponto que, superficialmente, seus diálogos podem parecer banais e
sem importância.
Lopakhin. Sou rico agora, tenho muito dinheiro, mas se você pensar sobre
mim e me examinar, verá que eu ainda sou um camponês por baixo dessa
pele. [Vira páginas de seu livro] Aqui, eu estava lendo esse livro, mas não
entendi nada. Li e dormi.
No começo da peça Lopakhin, que tem grande afeto por Liubov, propõe que, para
que ela consiga pagar suas dívidas e manter a propriedade, que a transforme numa
vila. A ideia repugna Liubov, que não aceita de maneira alguma derrubar a casa ou
cortar o cerejal, e portanto enrola sem achar outra solução até o dia do leilão da
casa quando, numa reviravolta, Lopakhin compra a propriedade, até para seu
próprio espanto.
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Diversas vezes durante a peça, o cerejal é referido pelas personagens como simbólico de coisas
diferentes - alegres lembranças de infância para Liubov, algo banal e sem perspectiva de gerar lucro
para Lopakhin. Mas entre as metáforas criadas, a mais forte é dita por Trofímov, tentando convencer
Ânia de que o cerejal deve ser cortado, numa expressão ao mesmo tempo poética e de reflexão
histórica. Considero uma das coisas mais viscerais e tocantes que Tchekhov escreveu, e por isso
destaco um trecho aqui:
Trofímov. Pense Ânia, seu avô, seu bisavô, e todos seus ancestrais foram donos de escravos, eles
possuíam e dominavam almas vivas; e agora, não parece que tem olhos das almas em cada
cereja, cada folha e cada tronco desse cerejal? Oh, é horrível, seu cerejal é terrível: e quando de
tarde ou à noite andamos pelo cerejal, as cascas das árvores reluzem um brilho fraco e as velhas
cerejeiras parecem estar sonhando com tudo que acontecia cem, duzentos anos atrás, horrorizadas
com sua visão retorcida.
A trajetória de Lopakhin para dono do cerejal, ganhando uma posição de poder
para com Liubov, e resultando de fato na transformação da propriedade em uma
vila, demonstra de forma muito interessante o movimento histórico de declínio da
aristocracia e ascensão da burguesia.
Outra coisa de grande importância nesta peça é a presença constante das figuras
dos servos. Se em A Gaivota há algo de ousado em insistir na desconfortável
presença de fundo dos empregados trabalhando enquanto os conflitos, muitas
vezes mesquinhos, daquelas figuras de classe superior se desenrolam, em O
Jardim das Cerejeiras a presença da figura dos servos é muito mais forte, com
cenas próprias e um desenvolvimento muito mais completo. Não é de menor
importância ressaltar que a personagem que encerra a peça é Fiers, um velho servo
que, durante a peça, se porta como um “conservador”, nostálgico dos tempos antes
da libertação. É de uma beleza e tristeza profunda que esta figura, contraditória e
complexa, encerra a peça “esquecida”. Após o cerejal finalmente ser cortado, Liubov
e sua família deixam a propriedade “bem” - Liubov está melancólica e nostálgica,
seu irmão Gáev preocupado com ela e por isso até um pouco desesperado, mas
sua filha Ania e o intelectual Trofimov estão felizes com a mudança. No fim, todos
tem “para onde ir”, cortar o cerejal é cortar o passado, o que é agradável para
alguns e sofrido para outros, mas uma vez cortado, a dor já começa a cicatrizar5.
Mas para o velho e (literalmente) pobre Fiers, a vida não tem essas mesmas
possibilidades - quem sabe é por isso também que se agarra à nostalgia. Se O
Jardim das Cerejeiras encena um processo histórico, encerrar a peça com o
sofrimento da figura popular por sua vida “negada” é uma escolha ousada e forte.
Se as figuras negativas aristocráticas de Tchekhov vivem no sofrimento pela “vida
que não se realizou” (WILLIAMS, 2010), Fiers - e, em certa medida, algumas outras
raras figuras similares - se destaca por viver uma vida que nunca sequer teve a
possibilidade de se realizar. Reproduzo o final da peça:
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LIUBOV. (...) Você está feliz? Muito?
ÂNIA. Muito! Uma nova vida está começando, mãe!
GAÉV. [Alegremente] Sim, realmente, tudo será novo agora. Antes do cerejal ser vendido,
estávamos todos preocupados e sofrendo, e agora, quando o problema foi resolvido de uma vez por
todas, todos nos acalmamos, ficamos até contentes. (...) e você, Luluba, por alguma razão, aparenta
estar melhor, não tenha dúvidas sobre isso.
LIUBOV. Sim. Meus nervos estão melhores, é verdade. [Põe o casaco e o chapéu] Eu dormirei bem.
Pegue minha bagagem, Iacha. Está na hora.
FIERS. Está trancada. Foram embora. [Senta no sofá]
Esqueceram-me aqui... Deixa pra lá, vou ficar sentado aqui... E
Leônid Andreiêvitch deve ter saído com aquele casaquinho leve em
vez de usar o casaco de peles... [Suspira ansioso] Mas nem os vi...
Oh, esses jovens! [Resmunga algumas coisas incompreensíveis] A
vida se passou como se eu nem tivesse vivido. [Deita-se] Vou
deitar aqui... Nem força lhe sobrou, nada lhe sobrou seu... Seu...
Vale-nada!
(In)Conclusão
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Em “As Três Irmãs”, as reflexões de Verchinin sobre o futuro, a impossibilidade da felicidade agora,
e a “missão” dos vivos em trabalhar para a felicidade de seus descendentes é um ótimo exemplo de
como Tchekhov é capaz de fazer personagens que expressam algo ao mesmo tempo sincero e
irônico. O “utopismo” de Verchinin é de fato consciente que radicais mudanças estavam se ensaiando
para a humanidade e para aquela sociedade, mas ao sair da boca de um homem que diz “não sei
selecionar minhas leituras e talvez nem leia exatamente aquilo de que precisaria” e que se encontra,
assim como muitos dos outros personagens, numa condição de classe acomodada e isolada, e preso
no emaranhado dos banais conflitos cotidianos - diz “Nós, russos, gostamos demais dos
pensamentos elevados, mas, me diga, porque na vida real voamos tão baixo? Por quê?” - essa sua
esperança utópica no futuro soa também como a esperança raza e romântica de um homem infeliz
procurando algo para se reconfortar. Destaco uma de suas falas:
“Acho que aos poucos tudo na terra deve mudar, e já está mudando diante dos nossos olhos. Dentro
de duzentos, trezentos ou talvez mil anos – a data não importa – surgirá uma vida nova e feliz. Nós, é
claro, não participaremos dessa vida, mas é para ela que vivemos, por ela que trabalhamos, sim, por
Bibliografia:
CARVALHO, Sérgio de. Tchekhov conta Brasil. In revista Bravo, número 07,
Ano 1, abril de 1998, pp. 106-109.
SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. (1880 - 1950). Cosac & Naify, 2001.
ela sofremos; somos nós os seus criadores – e essa é a única finalidade de nossa vida, e se assim
quiser, a nossa felicidade”.