Paola Errancias Urbanas
Paola Errancias Urbanas
Paola Errancias Urbanas
Fichamento: Errâncias Urbanas – JACQUES, Paola Berenstein. Errâncias Urbanas: A arte de andar
pela cidade, 2005.
O texto de Paola permeia-se de uma crítica à espetacularização das cidades e uma apologia
das errâncias urbanas, da experiência participativa das cidades, considerada como antídoto à espeta-
cularização, através da participação popular, da experiência física urbana enquanto prática cotidiana,
estética ou artística.
A crítica, também, direciona-se ao uso espetacular e não participativo dos meios eletrônicos e
digitais, pelos arquitetos urbanistas, nos projetos, em detrimento do uso do corpo físico, tanto do
projetista quanto da cidade. Em relação a isso, segundo a autora, as tecnologias, deveriam ser usadas
em sentido contrário à higienizacão das cidades, mas sim como a possibilidade de contaminação
urbana: “a partir da própria experiência física da cidade, potencializando esta experiência sensorial,
provocando novos tipos de errâncias urbanas.” ( JACQUES, P.16).
A crise da noção de cidade e a espetacularização, seriam, então, fruto de duas correntes de
pensamento: uma mais conservadora, pós-modernista tardia que defende a petrifcação do espaço
urbano e centros históricos, através da museifcação e patrimonialização, ou a disneylandização da
cidade; e outra progressista ou neo-modernista, que faz apologia à aos espaços urbanos caóticos,
cidades periféricas “...junkspaces, cidades genéricas, cidades shoppings, ou espaços terminais do capitalismo
selvagem...”
Os atores e patrocinadores dessas propostas são os mesmos, e a não participação popular nas
formulações também, tendo como resultado a gentrifcação das áreas ou a “mercantilização espetacular
das cidades.”
A intenção, portanto, de agir de forma a produzir uma imagem singular da cidade, paradoxal-
mente, as transforma em cidade-imagens homogêneas. Essa visão privilegia principalmente o turista
internacional, e não mais o habitante local, desviando-se para espaços padronizados: “...do fast food,
dos shopping centers, dos parques temáticos ou condomínios fechados...”. ( JACQUES, P.17).
“Assim a memória cultural local- que princípio deveria ser preservada – se perde, e em seu lugar são
criados grandes cenários para turistas." Sendo a população local expulsa do local de intervenção pelo
processo de gentrifcação. ( JACQUES, P.18).
“A competição é acirrada e as municipalidades se empenham para melhor vender a imagem de
marca, ou logotipo, da sua cidade, privilegiando basicamente o marketing e o turismo através de seu maior
chamariz: o espetáculo.
Em Sociedade do Espetáculo, já dizia Guy Debord “o espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem.”
A autora classifca três momentos da espetacularização: o inicial de embelezamento e moder-
nização das cidades, em que se começa a moldá-las ou vendê-las como simulacros, como o caso clás-
sico de Las Vegas; e hoje, no qual se vende a marca da cidade, utilizando a cultura como fachada,
através do marketing urbano, “tanto para a especulação imobiliária quanto para a própria propaganda
política em tempos de eleições”.
Sendo assim, surge a crítica do pensamento situacionista que traz um convite à refexão “a
existência de uma relação inversamente proporcional entre espetáculo e participação popular”. ( JACQUES,
P.18).
Há também uma variação da proporção na espetacularização: "quanto mais passivo (menos
participativo) for o espetáculo, mais a cidade se torna um cenário, e o cidadão um mero fgurante; e no
sentido inverso, quanto mais ativo for o espetáculo […] mais a cidade se torna um palco, e o cidadão, um
ator protagonista ao invés de mero espectador.”
As favelas, consideradas pela autora como “máquinas de guerra” , seriam um exemplo máximo
dessa participação popular, uma vez que os moradores são os verdadeiros responsáveis pela sua cons-
trução, ao contrário do morador da cidade formal, que raramente se sente envolvido na construção
do espaço urbano.
“As cidades brasileiras, de uma forma geral, talvez até por sua informalidade, ainda conseguem
manter algum tipo de diversidade, de multiplicidade no espaço urbano.”
“Somente através de uma participação efetiva o espaço público pode deixar de ser cenário e se trans-
formar num verdadeiro palco urbano: espaço de trocas, conflitos e encontros.” ( JACQUES, P.19)
A autora aponta como alternativas a participação, a experiência efetiva e a vivência que
“passariam pela experiência corporal, sensorial, podendo ser até mesmo erótica, da cidade.” A cidade
deixando de ser cenário e passando a ser palco, ou mais ainda, um corpo. Daí que surge uma nova
relação entre “corpo físico do cidadão” e um outro “corpo urbano”, uma nova apreensão da cidade.
Nas palavras de Mário de Andrade sobre Salvador: “Passear à pé em S. Salvador é fazer parte
dum quitute magnifcente e ser devorado por um gigantesco deus Ogum, volúpia quase sádica até”.
“Os errantes modernos não perambulam mais pelos campos, como os nômades, mas pela própria
cidade grande, a metrópole moderna, e recusam o controle total dos planos modernos. Eles denunciam direta
ou indiretamente os métodos de intervenção dos urbanistas, e defendem que as ações na cidade não podem se
tornar um monopólio de especialistas”.
Através das obras e escritos destes artistas, se apreende o espaço urbano partindo do
princípio de que os errantes questionam a construção do espaço de forma crítica, vista nos textos e
nas imagens produzidas por eles a partir da experiência de andar pela cidade.( JACQUES, P.20).
João Rio, infuenciado por Baudelaire, no início do século XX descreve nos jornais suas
errâncias pela antiga cidade que estava sendo destruída pelo Haussman Tropical “Eu amo a rua […]
Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo
do luar. É preciso ter espírito vagabundo cheio de curiosidades malsãs e os nervos como um perpétuo desejo
incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a
arte de flanar.”
O urbanismo surge com o intuito de transformar as antigas cidades em metrópoles
modernas, transformando antigas ruas em vias de circulação de automóveis, e prejudicando a
experiência física do andar. Existem três tipos de urbanismo, segundo a autora: aquela no fnal do
séc. XIX; e as vanguardas modernas, CIAMS (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna);
e o modernismo tardio, pós-guerra (1970).
Como também três momentos da errâncias urbanas: o período das fanâncias, até o fnal do
século XIX e início do século XX, criada após Baudelaire, e praticada por Walter Benjamin; o das
deambulações nos anos 1910-30, crítico às CIAMS, correspondendo às ações Dadaístas e
Surrealistas, e excursões urbanas (Aragon, Breton, Picabia, Tzara); e o das derivas, 1950-60, crítico a
vulgarização das CIAMS no pós-guerra, correspondendo ao pensamento situacionista (Debord,
Vaneiguem, Jorn e Constant). ( JACQUES, P.21).
Há ainda o grupo neodadaísta Fluxus (Maciunas, Patterson, Filliou, Ono, etc), propondo
experiências semelhantes, época também dos Happenings como Free Flux-Tours em Nova Iorque.
Por suas características, o que estes grupos têm em comum é que eles “vêem a cidade com um
campo de investigações artísticas aberto a outras possibilidades sensitivas, e assim, possbilitam outras
maneiras de analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras e experiências”.
No Brasil, os tropicalistas tiveram ideias semelhantes, e as experiências de Flávio de
Carvalho, aproximam-se dos surrealistas parisienses dos anos 30. Em sua Experiência nº 2, na qual
anda em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi, ele relata: “Tomei logo a resolução
de passar em revista o cortejo, conservando o meu chapéu na cabeça e andando em direção oposta
à que ele seguia para melhor observar o efeito do meu ato ímpio na fisionomia dos crentes.”
(JACQUES, p.22).
Já na Experiência nº 3, realizada em 1956, ele sai andando pelas ruas de São Paulo vestido
com traje de verão do “novo homem dos trópicos”.
Além de Flávio de Carvalho, Helio Oiticica, Lygia Clark, Ligia Pape, etc, chegam a essa
relação entre a experiência sensorial do corpo e a própria experiência física da cidade. Os
Parangolés, de Oiticica vão receber a influência da favela “da ideia do corpo e do samba, uma vez
que os Parangolés eram para ser vestidos, usados e, de preferência, o participante deveria dançar
com eles; a influência da ideia de coletividade anônima, incorporada na comunidade da
Mangueira: com os Parangolés os espectadores passavam a ser participantes da obra”.
Os Parangolés, foram mostrados a primeira vez na exposição coletiva Opinião 65 no MAM
do Rio, no qual Oiticica, impedido de entrar no museu, juntamente com os passistas da Magueira,
realizam a festa do lado de fora, no espaço público.(JACQUES, P.23).
Toda sua obra, posteriormente, confundiu-se com sua própria vida, buscando sempre
experiências físicas, sensoriais, corporais mas também urbanas: Penetráveis, Tropicália, Éden,
Barracão, entre várias outras.
Também foi infuenciado por Debord, e ao voltar para o Brasil em 78, apresentou Delirium
Ambulatorium no evento Mitos vadios, a este respeito ele descreve:“ o poetizar do urbano – AS RUAS E
AS BOBAGENS DO NOSSO DAYDREAM DIÁRIO SE ENRIQUESSEM À VÊ-SE QUE ELAS
NÃO SÃO BOBAGENS TROUVALLIES SEM CONSCIÊNCIA – SÃO O PÉ CALÇADO
PRONTO PARA O DELÍRIUM AMBULATORIUM RENOVADO A CADA DIA.”
Estas experiências levaram a uma “reinvenção poética, sensorial, e no limite até mesmo libidinosa,
ou erótica, das cidades”.
Os urbanistas teriam esquecido, em meio as preocupações funcionais e formais o potencial
poético das cidades, e a relação física entre o corpo físico e o corpo da cidade estabelecida no andar,
algo tão simples e imprescindível para os amantes da cidade. “O sujeito arquiteto-urbanista não
poderia jamais [...] se esquecer de se relacionar fsicamente, eu diria até mesmo amorosamente, com a cidade
em si, o seu objeto.”
Nosso corpo físico e o corpo da cidade, e as suas respectivas carnes, se encontram, se tateiam, e se
atritam nos espaços públicos urbanos. ( JACQUES, p. 24).