Os Mandamentos de Homens Na Igreja de Cristo

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Paulo Cesar Pereira

OS MANDAMENTOS DE
HOMENS
NA IGREJA DE CRISTO
UMA VISÃO BÍBLICA E PSICOLÓGICA

Versão Digital
1
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 QUEM SÃO E NO QUE CREEM OS CRISTÃOS
EVANGÉLICOS..................................................................................11

1.1 O Cristianismo
1.2 O Cristianismo Oficializado e a Igreja Católica Apostólica
Romana
1.3 A Igreja Cristã Evangélica
2 OS MANDAMENTOS DE HOMENS NA IGREJA......................23

2.1 Os Mandamentos de Homens Quanto à Pessoa de Deus

2.1.1 Deus Tirano


2.1.2 Deus Onipotente Submisso
2.2 Os Mandamentos de Homens Quanto ao Líder Religioso

2.2.1 O Líder Semideus

2.2.2 O Líder Escravo

2.3 Os Mandamentos de Homens Quanto à Cega Obediência e à


Alienação

2.4 Os Mandamentos de Homens Quanto aos Sentimentos e


Pensamentos Involuntários

2
2.4.1 Sobre a Dúvida

2.4.1.1 A Dúvida no Adolescente e no Jovem

2.4.1.2 A Dúvida no Adulto

2.4.2 Sobre a Raiva


2.4.3 Sobre a Tristeza
2.4.4 Sobre a Alegria
2.4.5 Sobre o Prazer
3 AS CONSEQUÊNCIAS DOS MANDAMENTOS DE HOMENS
NA IGREJA DE CRISTO..............................................................121

3.1 O Adoecimento

3.2 O Esfriamento Religioso

3.2.1 A Apatia

3.2.2 A Rebeldia

4 UMA INTERSEÇÃO ENTRE A BÍBLIA E A PSICOLOGIA..154

4.1 Quando a Bíblia Confirma a Psicologia

4.2 Quando a Psicologia Confirma a Bíblia

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

3
INTRODUÇÃO

Uma exposição não pode deixar de ser


uma apologia, uma crítica e também uma
confissão. (Anônimo).

O pastor e teólogo alemão, Dietrich Bonhoeffer, por expor suas


idéias em oposição ao nazismo, foi preso e morto num campo de
concentração nazista. Quando preso, em virtude de ter formação
superior e ser reconhecidamente inteligente, foi colocado junto com
outros intelectuais (BONHOEFFER, 1988).
Nesse período, Bonhoeffer procurou saber por seus companheiros
de prisão o porquê de o Evangelho não ser bem aceito por pessoas de
nível intelectual mais elevado. Considerando os mais variados motivos
que possam demarcar a autonomia e liberdade de cada pessoa tomar
suas decisões, encontrou também como motivo a questão da forma e do
conteúdo. Ou seja, era notória a significativa diferença entre o conteúdo
do que se anunciava e a forma como se fazia tal proclamação e como se
vivia a mesma.
Por conteúdo pode-se entender como sendo a essência, aquilo que
existe de mais puro e que está em concordância com os fundamentos da
religião cristã, ou, sua “maravilhosa graça”, segundo definiu Yancey
(2007): “[...] O melhor presente do cristianismo ao mundo” (p.25). Mais
especificamente falando, são os princípios bíblicos, principalmente os
do Novo Testamento, e que demonstram uma observância aos
ensinamentos de Jesus Cristo e também a toda a Bíblia, o livro sagrado
dos cristãos.
4
Já por forma, entende-se como sendo a roupagem, a qual pode ser
traduzida como tradições, costumes, culturas, regras, rituais, entre
outros. Ou, até mesmo como diria Jung (BENNET, 1985), a persona.
Quanto mais forte, rígida e inflexível a forma, maior pode ser a
distância para com o conteúdo.
De acordo com Bonhoeffer, esta desmedida atenção à forma, em
detrimento do conteúdo, tem feito com que pessoas não consigam
enxergar o Evangelho em sua proposta principal, a qual será abordada
no próximo capítulo.
Jesus Cristo, em Sua peregrinação terrena, devido à Sua postura e
missão, defendia valores e conceitos que iam de encontro aos dos
escribas e fariseus, defensores de uma forma extremamente rígida e
inflexível, os quais Ele também chamou de hipócritas. Em determinado
momento chegou a chamá-los de “sepulcros caiados”, expressão que
evidenciava o quanto estavam distantes da essência da sua própria
religiosidade, no caso o judaísmo. Em Marcos 7.6-9, Jesus disse o
seguinte aos fariseus:
[...] Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como
está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu
coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando
doutrinas que são preceitos de homens. Negligenciando o
mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens. E disse-
lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para
guardardes a vossa própria tradição.

5
Se Bonhoeffer estivesse em nosso tempo ficaria estarrecido ao ver
como essa diferença se amplia a cada momento. Um exemplo é esta
mensagem que recebi de uma pessoa na rede social:
"Pastor estou extremamente enojada com essas pessoas que usam o
nome de Deus para seu próprio beneficio ou ensinam doutrinas
contrárias a Palavra de Deus! Na Bíblia Sagrada está bem claro que isso
iria acontecer, mas mesmo sendo avisada para tomar cuidado com os
falsos profetas, eu continuo a ficar chocada com o que vejo e escuto. Só
Deus sabe o quanto eu luto para servir a Deus dignamente e o quanto
fico inquieta quando peco contra Ele. Há muito tempo tomei uma
decisão: não confio em ninguém e procuro sempre somente ouvir a voz
do meu Senhor”.
Esta é apenas uma demonstração do que ainda vai ser aqui relatado
como resultado destes mandamentos de homens contaminando a igreja
de Cristo.
Trabalhei para mostrar que quanto maior a distância entre forma e
conteúdo, maior a abertura para propagação de falsos conceitos e
mandamentos humanos sobre a Igreja de Cristo.
Convém ressaltar que os falsos conceitos nada têm a ver com
doutrinas, pois, por mais que se diferenciem de uma denominação
evangélica para outra, possuem, nem todas é claro, argumentações
bíblicas e teológicas, que até certo ponto as fundamentam.
Quero, no entanto, fazer menção às interpretações desprovidas de
uma boa exegese bíblica e adequada interpretação teológica. Essas, sem
base nas Escrituras Sagradas, põem a organização igreja acima do valor
humano, desqualificando sua natureza e seu universo particular; mas
não de forma genérica.
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Em um momento assim não podemos nos esquecer de uma frase
famosa de Gandhi: “No vosso Cristo eu creio; eu não creio é no vosso
cristianismo” (ARAÚJO FILHO, 1987, p.23).
Em uma aplicação à psicologia da gestalt, podemos comparar
forma e conteúdo com figura e fundo. Ou seja, a figura é aquilo que
está na estampa, e o fundo o que está na essência e que, infelizmente,
em várias situações encontra-se escondido.
O objetivo principal deste livro é elucidar que o distanciamento
citado acima tem trazido prejuízo aos cristãos evangélicos e,
naturalmente, ao cristianismo, no que se refere a uma divulgação
empobrecida pela exagerada defesa e observância da forma (figura) em
desarmonia com seu conteúdo (fundo).
Segundo os orientais, desarmonia é sinal de doença, justamente por
estabelecer um desequilíbrio entre o que está por fora e o que está por
dentro. Entre o que uma pessoa fala e o que verdadeiramente pensa e
sente. É unânime a resposta quando pergunto em algumas igrejas, onde
faço minhas ministrações, se os presentes acham que a Igreja de hoje
encontra-se saudável. A resposta geralmente é “não”.
Alguns desses religiosos se mostram resistentes em fazer rupturas
ou promover mudanças de paradigmas em suas formas, pensando que
estas ameaçariam o conteúdo de sua fé. Com isso, tornam-se inflexíveis,
rígidos, fazendo defesas desprovidas de argumentos bíblicos, teológicos
e racionais, o que pode desencadear forte tendência à hipocrisia e à
demagogia.
Esta postura não só favorece o surgimento de falsos conceitos
fortalecendo os mandamentos de homens, como também promove um
impacto negativo na Igreja de Jesus Cristo.
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Ao longo desta exposição, procurarei mostrar o quanto tem sido
difícil para pessoas sinceras, na busca por experiência religiosa,
conviver e aceitar o dualismo existente em cada ser humano; e que por
mais forte e transformadora que seja tal experiência, o homem continua
sendo um ser limitado e imperfeito, ou seja, um pecador. A conversão
religiosa não anula a nossa humanidade.
Quando abordo acerca do dualismo existente em nós, refiro-me ao
bem e ao mal, ou a luta entre uma nova consciência (tendenciosa ao
bem), com novos valores e a natureza pecaminosa, imperfeita e
tendenciosa ao mal, que parece que nunca se converterá (e com certeza
aqui nesta vida não irá).
Seria o nosso lado corruptível. A difícil harmonia entre
humanidade e vida cristã tem favorecido os mandamentos de homens
devido a uma negação da primeira, e, consequentemente, tem provocado
o adoecimento e o esfriamento religioso.
Para realizar este trabalho fiz uso de toda experiência adquirida
como atuante no contexto cristão evangélico na função de pastor e
também das experiências obtidas no campo da Psicologia. Foram úteis
as experiências adquiridas em mais de vinte anos como pastor, atuando
no ensino e como capelão do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro,
onde permaneci de março de 1989 a setembro de 1999.
Além das adquiridas no curso de especialização em Análise
Transacional (202), nos anos de estudos na faculdade de Psicologia e
nas experiências obtidas na direção do INSTITUTO DE
TREINAMENTO DE LÍDERES (ITL), no qual ministro os seguintes
cursos: CURSO SAÚDE EMOCIONAL E VIDA CRISTÃ, A
PERSONALIDADE HUMANA: COMO SE FORMA, COMO SE
8
DEFORMA E COMO SE TRANSFORMA (Uma Visão Bíblica e
Psicológica) e TREINAMENTO EM CAPELANIA HOSPITALAR E
ESCOLAR.
Em todos estes cursos, além dos seus respectivos temas, também
procuro abordar a identificação e a conscientização de como os
mandamentos de homens estão, em algumas circunstâncias, se
sobrepondo aos mandamentos de Cristo em Sua Igreja.
De igual modo, como os mesmos se constroem e como as
expressões da forma podem sofrer uma contextualização sem qualquer
prejuízo ao seu conteúdo. Não poderia deixar de lado, é claro, as
experiências obtidas nos anos de atendimento psicológico em clínica.
No capítulo 2 você verá uma chamada em letra maiúscula
intitulada UMA PAUSA PARA A PSICOLOGIA: UM RECURSO
NECESSÁRIO. É um espaço que usarei para fazer uso de uma linha da
psicologia chamada de Análise Transacional. Creio ser interessante
você compreender como funciona esta abordagem. Ela é simples,
interessante e de fácil assimilação.
Penso que este trabalho poderá dar uma contribuição para os
cristãos evangélicos, visto que o mesmo se refere a uma pesquisa dentro
deste contexto, e que procura clarificar o quanto o cristianismo e os
cristãos estão perdendo com uma prática religiosa que tem contemplado
bastante a forma em detrimento de seu conteúdo.
Uma exposição que por mais que contenha uma apologia, devido,
naturalmente, a difícil virtude da imparcialidade, e que se caracteriza
principalmente por uma crítica e uma confissão, poderá ser também útil
ao meio científico. Haja vista que minha identificação com a ciência da
psicologia, não me deixa livre de uma aplicação de seus conceitos.
9
Nem poderia, pois a mesma também faz parte de minha vida, numa
busca pela harmonia entre a fé religiosa e sua prática, e a credibilidade
na ciência da psicologia, resguardando o devido direito e autonomia da
respeitosa crítica sincera e honesta a uma e à outra.
Gostaria de abordar com maior profundidade o tema proposto,
entretanto, preciso deixar bem claro que o objetivo deste livro é
identificar alguns dos mandamentos de homens mais voltados para as
questões psicológicas, dando origem a comportamentos não saudáveis, e
alguns de seus prejuízos, tanto para os cristãos quanto para a Igreja de
Cristo.
Não pretendo encerrar tal assunto (nem poderia ter tal pretensão),
mas apenas iniciá-lo, permitindo-me o direito de enfatizar, de maneira
mais específica em algumas outras obras já em andamento, alguns dos
temas aqui mencionados.

10
CAPÍTULO l

QUEM SÃO E NO QUE CREEM OS CRISTÃOS EVANGÉLICOS

A religião pode arrasar as almas


em lugar de libertá-las.
(Paul Tornier)

1.1. O Cristianismo
O cristianismo é uma religião que tem como fundamento a pessoa
de Jesus Cristo, concebido como encarnação de Deus, e a Bíblia
como o livro que contém os Seus princípios e idéias a serem
seguidas.

11
Jesus apregoava o advento do reino de Deus, e afirmava ser o
Messias (O Cristo), Aquele tanto esperado pelos judeus, anunciado
desde o princípio nas Escrituras Sagradas, isto é, os principais livros do
hoje conhecido como o Antigo Testamento. Os judeus, que estavam sob
o domínio romano, esperavam um Messias que os libertasse.
Todavia, lhes apareceu Um pregando a libertação não pela força
física, ou pela brutalidade das guerras, nem tampouco pela política, mas
pelo conhecimento da Verdade. Esta Verdade lhes proporcionaria a
liberdade de fato; em sua essência muito mais subjetiva do que social ou
política. Em uma de Suas afirmações no Evangelho de João capítulo 8
versículos 32 e 36, Ele disse: “E conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará”, e “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis
livres”.
No capítulo 14 versículo 6, Sua afirmação foi um pouco mais
contundente e específica, vejamos: “[...] Eu sou o caminho, e a verdade
e a vida; ninguém vem ao Pai a não ser por mim”.
Podemos imaginar o impacto de Um sujeito garantindo ser a própria
Verdade em um contexto onde a hipocrisia predominava no ambiente
religioso.
Esse tipo de auto-afirmação, em que Jesus dizia ser um com o próprio
Deus Criador, e ser superior aos reverenciados Abraão e Moisés, causou
forte incômodo aos judeus.
Achavam-no um grande herege e passaram a contestá-lO publicamente,
posto que não concordavam com os ensinamentos de um Homem que
concebia o ser humano como primeiro, numa comparação com as leis de
uma religiosidade na qual a forma prevalecia sobre o conteúdo.

12
Jesus foi acusado de subversão e apresentado a Pôncio Pilatos, e
por fim condenado à morte de cruz. A partir daí, os discípulos
continuaram Sua pregação, e um dos que se destacaram nessa
proclamação foi Pedro, o mesmo que antes O havia negado três vezes.
Em uma festa intitulada de Pentecostes, em Jerusalém, onde se
encontravam pessoas de todas as localidades, com seus credos e línguas
diferentes, Pedro e os demais discípulos, segundo as Escrituras em Atos
capítulo 2 versículo 4, foram: “[...] cheios do Espírito Santo e passaram
a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que
falassem”.
Desta forma, o Evangelho se espalhou por várias regiões e países
levado por aqueles que tiveram tal experiência e que os deixaram
atônitos.
Um pouco mais à frente se convertera aos ensinamentos de Cristo
um dos grandes perseguidores dos cristãos, Saulo, o qual após a
conversão passou a ser chamado de Paulo.
Este se constituiu um dos grandes evangelistas da doutrina cristã, e
percorria várias cidades e regiões anunciando com grande ousadia a
mensagem de seu Senhor e Mestre.
Foi ele um dos grandes responsáveis por alicerçar a fé cristã com
seus pressupostos teológicos, dando estrutura e sistematização aos que
criam. Era um homem de grande inteligência, fazendo uso, inclusive, de
argumentos filosóficos que tinham por finalidade tornar conhecida a sua
fé. Também se tornou um guardião da doutrina de Cristo.

13
Nas cartas que escrevera, principalmente a Timóteo, Paulo já
identificava a presença dos mandamentos de homens sendo inseridos na
Igreja por hereges vindos do judaísmo e do gnosticismo.
Na carta que escreveu aos Gálatas, no capítulo 1 e versículos de 6 a
9, vejamos o que disse:
Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que os chamou
na graça de Cristo para outro evangelho, o qual não é outro, senão que
há alguns que vos perturbam e querem perverter o evangelho de Cristo.
Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue
evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. Assim,
como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho que vá
além daquele que recebestes, seja anátema.
Em Tito, capítulo primeiro versículo 10, Paulo alertou acerca dos
“falsos doutores”, ao dizer: “Porque há muitos desordenados, faladores,
vãos e enganadores [,...]”. Também no versículo 14, ele orientou: “E
não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de
homens desviados da verdade”.
De igual modo, em sua carta aos Colossenses, capítulo 2 versículo
8, afirmou o seguinte: “Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa
sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos
homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo [...]”.

14
E, segundo a história, é ele o autor de pelo menos treze epístolas do
Novo Testamento. Uma delas é a de Romanos, considerada de grande
valor teológico. Quando a escreveu aos cristãos da igreja em Roma,
estes estavam sendo apedrejados, queimados vivos e devorados pelas
feras.
Em Romanos capítulo 8 e versículos de 31 a 39, o apóstolo Paulo
ressaltou aos crentes que sua fé não se limitava ao tempo e ao espaço;
mas ela transcendia:
Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os
anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir,
nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra
criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo, Jesus,
nosso Senhor.
Apesar de tudo isso, os cristãos cresciam a cada instante. Foi
cunhada uma célebre frase entre os patriarcas do cristianismo e seguida
pelos historiados: “O sangue dos cristãos é semente” (WALKER, 1981).
De acordo com Walker essa semente “sobreviveu vigorosa”. E ao que
parece, Roma, era “[...] por volta do ano 100, a maior congregação do
cristianismo” (WALKER, Ibid.). Entretanto, ser cristão era considerado
crime.

15
1.2 O Cristianismo Oficializado e a Igreja Católica Apostólica
Romana
Com a adesão cada vez maior de fiéis ao cristianismo, e
percebendo as autoridades que não poderiam conter o seu crescimento,
permitiram que se tornasse religião oficial do império romano. Para isso
também contribuíram vários intelectuais e filósofos da época, que
aceitaram a nova religião tornando-se defensores dela. “Seja quem for,
ou o que for, quem não está na Igreja de Cristo não é cristão. Não pode
ter a Deus como Pai quem não tem a Igreja como mãe. Fora da Igreja
não há salvação” (WALKER, 1981, p.101.). Esta passou a ser então,
uma postura dos defensores do cristianismo, ou da igreja
institucionalizada.

16
Um deles foi Tertuliano (WALKER, Ibid.), que dizia: “O
cristianismo era uma grande loucura divina, mais sábia do que a mais
excelente sabedoria filosófica humana, e impossível de ser equacionado
com qualquer sistema filosófico existente” (p.99).
Um dos sucessores de Tertuliano foi Cipriano, que nasceu por volta
do ano 200. Com este, a Igreja começou a se institucionalizar e a se
tornar parte da própria fé que pregava. E assim, a forma ameaçava cada
vez mais o conteúdo.
Ainda na concepção de Walker (Ibid.), a palavra “católica” foi
usada pela primeira vez por Inácio, “que a empregou no sentido
platônico de universal” (p.88). Segundo os historiadores, foi
provavelmente no início de 313 que Constantino e Licínio concordaram
em conceder ao cristianismo a plena liberdade para a expressão de sua
religiosidade, colocando-o em pé de igualdade com as demais religiões.
Posteriormente, essa união entre Estado e Igreja, em princípio
benéfica, que começara a se firmar, se tornou nociva, pois era muito
tênue a linha que demarcava os seus limites. Assim, podemos constatar
que ora a Igreja decidia questões de particularidade do Estado, e ora o
Estado interferia e decidia as questões eclesiásticas, naturalmente com a
permissão e condescendência de ambos.
Na verdade, era extremamente conveniente ao império que o clero,
a quem uma grande massa religiosa deveria obedecer, estivesse ao seu
lado.

17
Em 431, no Concílio de Éfeso, Maria foi proclamada Mãe de Deus,
e assumiu para os católicos, como até hoje, um lugar de mediadora entre
Deus e os homens. (WILGES, 1986). Ao longo do tempo, a Igreja foi se
afastando cada vez mais de sua proposta inicial, e do seu precursor –
Jesus Cristo. Logo, forma e conteúdo se distanciaram e a primeira
praticamente passou a sufocar a segunda.
Estava aberto o caminho para a predominância dos mandamentos
humanos e dos falsos conceitos, uma vez que a manutenção da
organização Igreja e suas regulamentações se tornavam mais
veementemente defendidas, e a fé inicial aos poucos menosprezada.
Outrossim, a Igreja, ávida por aumentar seu poderio, criou as
famosas indulgências, visto que por meio delas conseguiria recursos
financeiros para os seus projetos. Um desses grandes projetos foi a
construção da Catedral de São Pedro, em Roma. Vale ressaltar que a
promulgação da indulgência ocorreu em 1507, pelo Papa Júlio II.
Vejamos o que afirmou Wilges (Ibid.):

Às condições ordinárias de receber os sacramentos (arrependimento


dos pecados e propósitos de emenda com a comunhão) acrescentava-
se uma oferta pecuniária como contribuição para a grande obra. Esta
indulgência era aplicável também aos defuntos (p.80).

Para isso ela constituiu vários pregadores das indulgências. Sendo


pregada em várias regiões, chegou onde se encontrava o padre e teólogo
Martinho Lutero, em 1517. Lutero, entretanto, foi contra as indulgências
e se inflamou numa forte oposição à autoridade da igreja em Roma.

18
Afirmou que só era considerada verdade religiosa o que poderia ser
demonstrado pela Bíblia e proferiu a seguinte frase: “Só a Escritura, só
a fé” (sola Scriptura, sola fides) (Ibid., p. 82). Lutero, então, rompeu
com a autoridade papal, sendo excomungado em 1521; a partir daí,
passou a traduzir a Bíblia para o alemão.
Nesse mesmo ano, deixou o burel religioso e se casou com a ex-
freira Catarina de Bora, tendo falecido em 1546. Assim, se iniciava a
separação na religião cristã entre católicos e protestantes.

19
1.3 A Igreja Cristã Evangélica
Martinho Lutero não se preocupara em fundar uma nova religião;
não era essa sua intenção. Todavia, seus seguidores, bem como outros
reformadores em diferentes regiões, como Zuínglio, na Suíça, foram
mais adiante, numa expressiva autonomia reformadora. Gabriel
Zwilling, um monge amigo de Lutero, em 1521 se posicionou contra a
missa e os votos clericais, e atacou a fé às imagens e suas presenças nos
cultos. Outro reformador, amigo de Lutero, chamado Karlstadt,
ensinava que os ministros deveriam se casar, e assim também procedeu.
(WALKER, 1981).

20
Daí por diante, várias denominações evangélicas foram surgindo e
se espalhando por todo o mundo. Dentre as mais tradicionais e antigas
igrejas que fazem parte dessa lista, podemos destacar a luterana,
presbiteriana, metodista, congregacional e a batista (esta última não se
sabe ao certo sua origem, podendo ser anterior ou posterior à Reforma).
E várias outras que se fazem presente na história e que hoje crescem a
cada momento, principalmente as chamadas pentecostais e
neopentecostais.
A diferença para com os católicos tradicionais é facilmente
percebida; a começar pela quantidade de livros contidos na Bíblia
católica e na dos evangélicos. A Bíblia dos católicos apostólicos
romanos contém sete livros a mais que a Bíblia seguida pelos
evangélicos. São os seguintes: Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Baruque,
Sabedoria e Eclesiástico. Todos no Antigo Testamento; o Novo
Testamento é o mesmo.
Esses sete livros e mais alguns trechos dos livros de Ester e Daniel
foram extraídos da tradução chamada dos Setenta (LXX), a qual foi
destinada aos judeus da Dispersão. Eles são também chamados de
deuterocanônicos.
Tais diferenças para com os católicos não só são evidentes, mas
fortemente combatidas. Dentre elas, uma que causa maior diferença é a
adoração a Maria, mãe de Jesus. Os católicos a veneram como uma
divindade, chamando-a de Santa Mãe de Deus.
Os evangélicos a consideram como a pessoa que Deus escolhera
para trazer Jesus, Seu Filho, ao mundo, porém não a têm como
divindade.

21
Nem a ela fazem qualquer adoração, ou a colocam na posição de
mediadora entre Deus e os homens, concedendo tal posição de mediador
apenas a Jesus Cristo.
Para isso, utilizam como principal argumento bíblico o texto escrito
pelo teólogo e apóstolo Paulo, em 1 Timóteo capítulo 2 versículo 5, que
enfatiza: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os
homens, Cristo Jesus, homem”.
Outra diferença que podemos destacar diz respeito à ausência de
imagens nos templos evangélicos. Esta ausência torna evidente a
oposição dos cristãos evangélicos, posto que acreditam que somente
Deus deve ser adorado.
Com relação a esta diferença, podemos salientar que dos Dez
Mandamentos descritos em Êxodo capítulo 20, há grande ênfase
envolvendo os versículos 4, 5 e 6. Outra diferença significativa é que os
evangélicos não possuem um líder máximo considerado infalível, como
o papa para os católicos.
Defendem também o cristianismo, e não uma Igreja como sendo a
única; embora esta posição evangélica seja esquecida por alguns que
desconsideram outras denominações, também evangélicas,
considerando que apenas em sua igreja é que se vivenciam milagres ou
outras experiências sobrenaturais.
E a afirmação de que os evangélicos não possuem um líder
máximo, considerado infalível, já não é uma verdade em todas as
denominações evangélicas. Esta postura, entretanto, não é oficial.

22
CAPÍTULO 2
OS MANDAMENTOS DE HOMENS NO CONTEXTO
CRISTÃO EVANGÉLICO

Proponho que a tensão entre a ciência e


a fé seja resolvida não em termos de
eliminação dualidade, mas em termos de
uma síntese.(HARRIS)

Martinho Lutero ao traduzir a Bíblia para o alemão, e proclamar


que toda pessoa deveria ter liberdade de lê-la, estava também com isso
demonstrando que a cada um seria facultado o direito de interpretá-la; o

23
que naturalmente ocorre a partir da influência da personalidade do
sujeito e de sua formação. Na realidade, cada um a interpreta a partir de
uma série de fatores que lhe sejam significativos, ou de seu interesse,
quer conscientes ou inconscientes. Essa liberdade de interpretação,
entretanto, pode ser comprometida e afetada pelos erros de percepção.
Não estou condenando a inovadora atitude de Lutero, apenas
reconhecendo que a liberdade deve ser usada com muita
responsabilidade e, no caso em questão, com elevada busca pela mais
apurada exegese, feita principalmente por pesquisadores e cientistas
sinceros, honestos e comprometidos com a mais adequada tradução dos
escritos antigos.
Podemos considerar que a rejeição aos estudos teológicos tem sido
para muitos líderes um fator preponderante na formação de falsas
crenças e de mandamentos humanos. Alguns chegam a afirmar que a
ciência é inimiga de Deus e que “a letra mata”.
Quando sujeitos com tal mentalidade, dependendo de sua
competência em liderar, assumem determinado grupo, o estrago na
mente desses liderados pode ser devastador.
Segundo Wiersbe (1989), “Quando a pessoa fabrica o seu próprio
evangelho, logo passa a praticá-lo, e então começa a perder a
integridade” (p.41).
A ciência tão rejeitada por alguns, é considerada nas Escrituras,
como pode ser observado em Jeremias 3.15: “E vos darei pastores
segundo o meu coração que vos apascentem com ciência e com
inteligência”. Esta é uma afirmação do próprio Deus.

24
Pedro, em sua segunda epístola, recomendou que acrescentássemos
à nossa fé a virtude, e à virtude a ciência (2 Pedro 1.5).
Tenho percebido que esses mandamentos humanos têm sido
favorecidos devido a uma confusão quanto ao conceito do que é relativo
e do que é absoluto. Alguns conceitos tratados como absolutos precisam
ser contextualizados, pois sendo requerida sua aplicabilidade, em toda e
qualquer circunstância, pode ser alvo de confusão.
Aquilo que deveria ser entendido apenas como forma, aplicada
apenas àquele momento e àquelas pessoas, toma outra roupagem de
significado, não sendo, portanto, compreendido como sujeito a
mudanças. Tillich (1985), teólogo de expressão, afirmou o seguinte:
Quanto mais a fé se transforma em idolatria, menos ela
consegue superar a separação de sujeito e objeto. Pois esta é a
diferença entre a fé verdadeira e a falsa: na fé verdadeira a
preocupação incondicional é o estar tomado pelo que é
verdadeiramente incondicional; a fé idólatra, em contraste, eleva
coisas passageiras e finitas à categoria de incondicionais (p.12).

Um pastor, embora bem intencionado, mas semi-analfabeto, ao ler


Hebreus 12. 23, onde está escrito “à universal assembléia e igreja dos
primogênitos inscritos nos céus [...]”, interpretou que as duas igrejas
verdadeiras eram a Assembléia de Deus e a Universal do Reino de
Deus.
Justamente por entender que estas eram as únicas citadas na Bíblia;
não tendo, porém, conhecimento de que o termo “católico” significa
“universal”, no seu contraste com particular.

25
Posso citar também um jovem em um doloroso processo para se
livrar das drogas, provavelmente sem ajuda profissional, tentou arrancar
um de seus olhos, em uma particular, solitária e doentia interpretação da
passagem descrita em Mateus 18.9, que diz: “E, se o teu olho te fizer
tropeçar, arranca-o, e lança-o de ti [...]”.
De igual modo, um senhor muito religioso, mas sem estudos e
adequado senso crítico, deixou seu filho morrer, negando-se a levá-lo ao
médico, entendendo que por já ter orado, Deus o curaria.
Acerca desse assunto, Wiersbe (1989) corroborou: “Minha
conclusão é que o tipo errado de pregadores, compelido por motivos
errados, criou o tipo errado de cristãos mediante a pregação da
mensagem errada” (p.47).
Como grande defensor da fé, o apóstolo Paulo procurando prevenir
os cristãos contra tais homens, escreveu em 1 Timóteo 6 de 3 a 5 o
seguinte:
Se alguém ensina alguma outra doutrina, e se não conforma com
as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com a doutrina
que é segundo a piedade, é soberbo, e nada sabe, mas delira
acerca de questões e contendas de palavras, das quais nascem
invejas, porfias, blasfêmias, ruins suspeitas, contendas de
homens corruptos de entendimento, e privados da verdade,
cuidando que a piedade seja causa de ganho: aparta-te dos tais.

Assim como Paulo, Pedro se tornou defensor da fé cristã. Em sua


segunda epístola no capítulo 2, procurou também alertar acerca dos
falsos mestres.

26
Vejamos os versículos 1, 3 e 17: “E também houve entre o povo
falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que
introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor
que os resgatou, trazendo sobre si mesmo repentina perdição” (v.1). “E
por avareza farão de vós negócios com palavras fingidas [...]” (v.3). No
versículo 17 ele os intitulou de: “[...] fontes sem água, nuvens levadas
pela força do vento [...]”.
Essas são consideradas aberrações, outras são mais sutis, porém de
não menos efeito devastador. Trabalharemos algumas delas de maneira
mais detalhada nos tópicos a seguir. Antes, porém, preste bastante
atenção nesta chamada abaixo.

UMA PAUSA PARA A PSICOLOGIA: UM RECURSO


NECESSÁRIO

Como base, utilizarei o instrumento da Análise Transacional, que


tem sido valiosa nos cursos por mim ministrados. Sugiro que não pare a
leitura por ter alguma dificuldade em entender de imediato o que estarei
mostrando nesse momento. Mais à frente, você terá uma melhor
compreensão, mas preciso lançar mão deste referencial.
A Análise Transacional se constitui uma abordagem teórica dentro
da psicologia, criada pelo psiquiatra canadense Eric Berne. Em 1958,
Berne publicou suas idéias com o título de Análise Transacional: Um
Novo Método de Diagnóstico e Tratamento Psicoterápico (CREMA,
1985).

27
Ele dividiu a psique em três instâncias, ou seja, em áreas: Pai,
Adulto e Criança. Esta difere significativamente da Psicanálise de
Freud. O Estado de Eu Pai, é também chamado de Extero-psique, pois
contém as gravações do passado, transmitidas por figuras de autoridade
como pais, avós, ou até mesmo tios, irmão mais velho, professores ou
qualquer outra pessoa que seja representativa na formação da
personalidade e que tenha sido uma figura de autoridade.
Já o Adulto, é chamado também de Neo-psique, pois se refere ao
estado que processa as informações e dados da realidade objetiva
presente. E a Criança, também chamada de Arqueo-psique, pois é
arcaico, primitivo, e contém as gravações das experiências infantis
(CREMA, Ibid.). Baseado em James e Savary (1982):
As pessoas quando estão no estado de ego Pai frequentemente
usam palavras como “deveria”, “deve”, “precisa”, “sempre”,
“nunca”. O estado de ego Pai se expressa de modo controlador,
punitivo, nutritivo ou cuidadoso. As frases da pessoa podem ter
a forma de regras absolutas, comandos e ordens quando se
expressa como Pai controlador. Cuidado e interesse são as
expressões do Pai protetor. As pessoas podem motivar outras
oferecendo recompensas ou ameaças quando estão no estado de
ego Pai. De modo singular isso é copiado de seus pais (p.46).

28
Quanto ao Estado de Eu Criança, James e Savary (Ibid.)
escreveram o seguinte:

O estado de ego Criança é a parte da personalidade que é como


uma criança real. Cada pessoa tem uma infância singular;
portanto o estado de ego Criança de cada pessoa é diferente. A
criança funciona em dois modos básicos.
A Criança adaptada inicia e responde a situações, baseada em
treinamento e traumas anteriores. A Criança natural, livre, é
criativa, impulsiva e intuitiva em iniciar situações, e reage com
base na busca do prazer e de evitar a dor (p. 44).

Com relação ao Estado de Eu Adulto James e Savary (1982)


afirmaram:
O Adulto é a parte da personalidade racional, lógica, razoável,
reflexiva. Opera pensando e coletando dados da experiência
interior e exterior. Processa fatos e informações e avalia o que
aprende (p. 45).
Sendo assim, agimos pelo Estado de Eu Adulto quando estamos
raciocinando friamente, analisando, planejando, estabelecendo metas e
estratégias sem a expressão de emoções, ordens ou preconceitos.

29
A estrutura na psique pode ser compreendida da seguinte maneira,
conforme as figuras abaixo:

Figura 1 A estrutura básica

Figura 2 A ênfase sobre o Eu Criança

30
Figura 3 enfatizando o Eu Pai OK

Figura 4 enfatizando o Eu Pai NOK

31
Diferentemente da Psicanálise, não apenas o EGO é ativo, mas as
três instâncias são atuantes, sendo que cada uma com suas
particularidades. Vale ressaltar que a palavra EGO quer dizer Estado de
Eu. Segundo Harris (1977), o Estado de Eu Pai:
É uma imensa coleção de registros feitos no cérebro de eventos
externos não questionados ou impostos, percebidos por uma
pessoa em seus primeiros anos, num período designado a grosso
modo como os primeiros cinco anos de vida. É o período
anterior ao nascimento social do indivíduo, antes que ele saia de
casa em resposta às exigências da sociedade e entre na escola
(p.42).

O Pai Crítico Negativo, ou Não OK (fig. 4), representa os registros


mentais das experiências e observações sempre voltadas para um
julgamento de características pejorativas. Então, estamos no Estado de
Eu Pai Crítico NOK (não OK), quando estamos julgando, criticando,
condenando e agindo com preconceito.

32
2.1 Os Mandamentos de Homens Quanto à Pessoa de Deus

Deus não cabe dentro da Bíblia.


(Pr. Neil Barreto)

Assim como os homens fazem as mais particulares e descabidas


interpretações da Bíblia, do mesmo modo o fazem com relação ao
Criador. As falsas crenças, em relação a Deus, têm também como base
interpretações inadequadas de textos e situações narradas na própria
Escritura.
Para os defensores da lei no Velho Testamento, fazer uma transição
de uma religiosidade, onde a lei, por mais dura e rígida que fosse,

33
deveria ser aplicada,para uma religiosidade onde perdoar e amar, tanto
ao próximo quanto ao inimigo, deveriam ser praticadas, era muito
difícil.
Podemos perceber isso pelos relatos no livro de Jó, onde se
entendia que uma pessoa abençoada por Deus era a que tinha riquezas,
saúde e muitos filhos. E Jó se encaixava perfeitamente nesse perfil, até o
momento em que perdeu tudo. Seus amigos o acusaram de ter cometido
pecado para ser surpreendido por tão grandes punições divinas, e que
deveria se arrepender.
Porém Jó não conseguia entender o porquê de tamanha desgraça. E
quem conhece essa narrativa bíblica sabe muito bem que não se tratava
de nenhuma punição vinda dos céus. A forma como o homem vê Deus
determina a forma como com Ele se relaciona.

2.1.1 O Deus Tirano


No texto de João capítulo 8, os homens que levaram a mulher
adúltera até Jesus agiram com seu Estado de Eu Pai Crítico NOK
(Perseguidor), posto que julgaram e exigiram de imediato a sua
condenação. Do mesmo modo, agiram os judeus quando gritaram:
“Crucifica-O!”.

34
A forma como alguns pais ensinam seus filhos a respeito de Deus
pode causar uma imagem negativa a respeito dEle, inculcando na mente
da criança a figura de um Ser Supremo que age como um juiz crítico,
vingativo, moralista, rígido, tirano e, portanto, sem nenhum amor
incondicional.
A pessoa pode, então, crescer tendo em sua personalidade um
conceito de Deus como um Pai Crítico NOK. Sendo assim, qualquer
atitude de um sujeito criado com esta imagem falsa, pode acionar a ação
deste Pai Crítico Negativo em sua mente, também chamado em Análise
Transacional de Pai Bruxo. Uma mulher hospitalizada, e em momento
de intensa dor, perguntava se Deus não a estava castigando por causa de
seus pecados.
Ela parecia acreditar que seu sofrimento era resultado de pecados
cometidos. A cada instante relatava uma situação ou ato que poderia
confirmar suas idéias; como discordei de todas, disse ao final: “Será que
Deus não está me castigando por causa dos pecados do meu marido?”.
Ela formara em sua mente uma idéia a respeito de um Deus que a punia
de maneira tão terrível a ponto de lhe castigar com uma doença crônica,
que a levou a fazer hemodiálise.
Os amigos de Jó pareciam ter a mesma opinião a respeito de Deus
e do sofrimento humano. Ou seja, sempre esperavam uma punição
divina para um pecado humano. Sabemos nós perfeitamente que no caso
de Jó, isso não correspondia à realidade. Podemos constatar tal
afirmação em Jó 42.7, quando o Senhor disse o seguinte a Elifaz e aos
seus amigos: “A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois
amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo
Jó.”

35
Acerca desse assunto, vejamos o que diz o apóstolo Tiago no
capítulo 1 versículo 26:“Se alguém entre vós cuida ser religioso, e não
refreia a sua língua, antes engana o seu coração, a religião desse é vã”.
O Salmo de número 103 versículo 10, numa referência a Deus, denota:
“Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui segundo as
nossas iniquidades”.
Algumas frases pronunciadas pelos pais aos seus filhos desde a
infância cooperam para a formação de uma imagem negativa da pessoa
de Deus em sua mente. Segue abaixo algumas delas:
“Papai do Céu vai castigar!”; “Papai do Céu não gosta de criança
que fala palavrão!”; “Papai do Céu não gosta de criança que fica
correndo na igreja na hora do culto!”; “Papai do Céu está vendo!”;
“Papai do Céu levou a mamãe porque precisava dela lá no céu”; ou, em
momentos de trovões: “Papai do Céu está brigando!”
Sabemos que Deus repudia tais atitudes, mas geralmente se diz que
Deus não gosta de quem as pratica. E que tal este cântico:
“Cuidado boquinha no que fala, pezinho no que pisa, mãozinha no
que toca, olhinho no que vê, o Salvador do Céu está olhando pra você,
cuidado olho, boca, mão e pé!”
Imaginemos estas frases e cânticos pronunciados quase todos os
cultos durante os primeiros anos de vida de uma criança. Tiago, em sua
carta, no capítulo 3 versículo 6, assim escreve: “Ora a língua é fogo [...]
e põe em chamas toda a carreira da existência humana”.

36
Também o livro de Provérbios 26.22 ressalta que: “As palavras do
maldizente são comida fina, que desce para o mais interior do ventre”.
Palavras como essas podem definir o roteiro de vida de uma pessoa.
Mesmo pais que amam seus filhos podem pronunciar palavras
maldizentes que descem ao mais profundo do ser e que algumas delas
jamais serão esquecidas, visto que segundo Harris (1977) as três
funções do cérebro são gravar, recordar e reviver.
Sendo assim, encontraremos registros nada adequados e expressões
de falsas crenças nas mentes de pessoas criadas em igrejas evangélicas,
a respeito do Deus a que são ensinadas a obedecer e a amar. Logo,
podemos questionar: como amar um Pai como esse, que nos ameaça o
tempo inteiro?
Parece que tem uma espada apontada sobre a nossa cabeça. Veja a
confusão que pode ser gerada na mente das crianças! Pois é o mesmo
Deus a quem se pede adoração, louvor e sobre o qual se fala do perdão e
do amor incondicional. Na realidade, há uma dualidade em relação a
Deus, porque por um lado os pais passam aos filhos informações a
respeito de Seu amor incondicional; ao passo que por outro, passam
informações negativas a Seu respeito e, na maioria das vezes, com
intensa agressividade.
Porém, essas informações têm forte influência na formação da
personalidade, já que são transmitidas na infância. As atitudes e
comportamentos dos pais carregados de energia agressiva ou de frases
que enfatizam as ações punitivas de Deus, observados ou sofridos pela
criança, com certeza causarão nesta uma imagem falsa sobre o Criador.

37
É comum vermos pais se dirigindo aos filhos com palavras que
mostram proibições e punições por parte de Deus, quando estes mesmos
é que assim pensam e pretendem punir. Se não querem que uma criança
corra na igreja, dizem que Deus não gosta de crianças que assim agem, e
da mesma forma com os palavrões, com as notas baixas na escola e
outras atitudes naturais do comportamento infantil.
Não é em vão que parece haver uma espera de punição para os
comportamentos que, em princípio, não se encaixam com uma postura
de um seguidor do evangelho. Qual de nós, principalmente se criado em
um rígido ambiente religioso, não tem a sensação de que pode sofrer
uma punição divina após uma atitude errada?
Todo o contexto em que a criança é criada contribui para a sua
formação; e os conceitos religiosos não ficam de fora. De acordo com
Rosa (1979): “A criança vem ao mundo e torna-se parte do ambiente
social e cultural de determinado grupo. A religião é ordinariamente
parte dessa cultura a que a criança pertence” (p.74).
Rosa (Ibid.) ainda enfatizou que: “A religião da criança é baseada
no princípio da autoridade, isto é, suas idéias não se fundamentam na
própria experiência, mas na experiência daqueles que são importantes
para a criança” (p. 78).
Durante mais ou menos um ano e meio dei atendimento a uma
jovem em aconselhamento pastoral, no período em que atuava como
capelão do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro. Toda semana
frequentava a capela e lá conversávamos durante uma hora.

38
Seu problema é que via monstros, com as formas mais horríveis
que a ameaçavam o tempo todo. Ela os via no seu quarto, no escritório
em que trabalhava, e até mesmo no ônibus; mas geralmente quando
estava só. À medida que conversávamos foi ficando claro o seu pavor
por pensamentos obsessivos a respeito de um possível afastamento da
igreja.
Não podia conceber, em hipótese alguma, a idéia de se afastar da
igreja, pois enxergava isso como forte desgraça em sua vida por
vingança do Senhor.
Ela assumira para si a idéia de um Deus perseguidor implacável;
um Pai Crítico Bruxo, representado pelos monstros. Na verdade, não
relatou nenhum desejo desse afastamento, mas em determinado
momento deixou que esses pensamentos lhe saltassem à mente e, então,
os acolheu; e depois passou a gastar muita energia para evitá-los.
Qualquer pessoa sabe que quanto mais se foge de um pensamento,
mais ele está presente. Demorou até descobrirmos que era esse o
problema principal. Quando isso se tornou claro para ela, pude relatar
que a possibilidade de um dia se afastar da igreja e de Deus é algo que
qualquer cristão pode estar sujeito; inclusive eu, mesmo sendo pastor.
Disse-lhe que não podia garantir que amanhã ainda estaria no
evangelho, embora tivesse todas as minhas convicções. Ela passou a
melhorar quando entendeu que aquilo era algo que precisava aprender a
aceitar, pois não sabia o dia de amanhã. Um ditado chinês diz que “o
segredo da paz está em aceitar que o pior pode acontecer”.

39
E quanto ao amanhã Jesus afirmou, em Mateus 6.34: “Portanto,
não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus
cuidados; basta ao dia o seu próprio mal”.
Ao compreender que estava sofrendo por antecipação e sobre algo
a respeito do qual nem tinha vontade, as “aparições” dos monstros
começaram a diminuir.
Em uma das aulas, ao comentar esse assunto, iniciei a frase “Deus
é amor...”, quando uma aluna, uma senhora há anos afastada do
Evangelho, completou “... mas também é fogo consumidor!”, com um
tom bastante agressivo, demonstrando estar falando para si mesma,
numa repetição de uma frase que parecia bastante impregnada em sua
mente.
Tal frase evocara nela este conceito a respeito de Deus. Evocou o
seu Pai Crítico Bruxo (BARRETO, 1983). Perguntada sobre como
aprendera aquela frase, respondeu que sua mãe sempre a pronunciava.
Não era de se admirar o conflito religioso e emocional em que
vivia, ora frequentando a igreja, ora se ausentando dela. Seu desejo era
de estar entre os filhos de Deus, por entender que Deus é amor; contudo,
procurava se afastar, por saber que Ele é também “fogo consumidor”.
O desejo natural é do Estado de Eu Criança, que se manifesta,
geralmente, quando estamos sentindo algo agradável, prazeroso ou
espontâneo. Mas o conceito de um Deus que pode consumir, estava
gravado em seu Estado de Eu Pai Crítico Negativo. Isso pode causar
confusão mental; e confusão mental pode levar, dentre muitas outras
coisas, à depressão.

40
Em determinada aula, uma senhora relatou que sua vizinha
evangélica punia seu filho colocando-o de castigo, ajoelhado em
caroços de milho, recitando o Salmo 91. Uma das versões deste Salmo
tem como título “A Segurança daquele que se refugia em Deus”. Talvez
o desejo daquele menino no instante do castigo era de ser protegido de
sua própria mãe.
Percebemos, então, uma mensagem da Bíblia dizendo algo bom e
agradável a respeito do Deus que protege, e a atitude da mãe do menino
passando uma idéia negativa a respeito do Criador. Em geral, as atitudes
marcam mais do que as palavras. Não podemos nos esquecer que a
religiosidade da criança, nos primeiros anos de vida, será uma
observância ou repetição da religiosidade de seus pais.
Certa vez, estava ouvindo um programa em uma rádio evangélica,
ministrado por uma pastora, em que ela relatara ter punido seu filho
obrigando-o a escrever determinado Salmo por várias vezes.
E que a próxima punição seria escrever o Salmo 119, o qual
contém cento e setenta e seis versículos. Essa criança pode crescer
sempre associando a leitura da Bíblia a uma punição, e onde há punição
não há prazer; a não ser para o masoquista.
Inclusive no próprio Salmo 119 versículos 9 e 10 lemos o seguinte:
“Como purificará o jovem o seu caminho? Observando-o de acordo com
a tua palavra” (v.9); “Escondi a tua palavra no meu coração, para não
pecar contra ti” (v.10). Portanto, não vejo com bons olhos a punição
associada à Palavra do Deus que é amor.

41
Na própria Bíblia, para aqueles que interpretam o Senhor como um
Pai Crítico Negativo, Ele evidencia Sua postura como um Pai Nutritivo
Positivo, ao afirmar em Jeremias capítulo 31 versículos de 31 a 34, que
fará um novo pacto com o povo, dizendo que não mais existirá uma
ordem para segui-lO, mas que fará um pacto onde escreverá sua lei no
coração e na mente das pessoas, principalmente porque lhes perdoará os
seus pecados.
Sempre observei nas sessões realizadas nas Igrejas a exclusão de
pessoas que não andavam de acordo com as suas doutrinas e normas.
Algumas atitudes do dia-a-dia, realizadas por qualquer criança ou
adolescente, por vezes vinham acompanhadas das afirmações: “Vou
falar para o pastor; você vai ser excluída!”.
Isso causava um pavor absurdo. Assim, o pastor, líder da Igreja
Evangélica, e o padre, da Igreja Católica, passam a ser temidos, já que
são considerados representantes de Deus.
O pastor, por ser uma figura parental de forte autoridade, pode
funcionar como um que confirma e fortalece na mente da criança o
Estado de Eu Pai, desde que seja emocionalmente representativo para
ela. Caso seja o pastor significativo para seus pais terá a tendência a
também ser emocionalmente significativo para a criança.
Quando criança, embora cumprisse com minhas obrigações,
geralmente me envolvia em alguma briga, com meus irmãos em casa,
com os primos que moravam no mesmo quintal, e com os colegas na
rua. Lembro-me até hoje de uma fala de minha mãe: “Você já foi
batizado, não pode ficar brigando assim!”.

42
Eu me batizei com onze anos de idade. Minhas brigas eram brigas
de crianças, que depois de alguns instantes já havíamos feito as pazes.
Hoje, posso dizer (próximo ao que o apóstolo Paulo disse):
“Quando eu era criança, vivia como criança, brigava como criança e
fazia as pazes como criança”. Ou seja, eu fui criança que viveu como
criança. E isso foi muito bom. Atualmente, tenho praticado um ditado
que se tornou pessoal: Eu dou um boi para não entrar em uma briga
e uma boiada para não entrar de jeito nenhum.
Convém destacar que a concepção a respeito de Deus na mente
humana, depende da estreita relação com a idéia de pai. O fato de Deus
ser chamado de Pai, para algumas pessoas, dependendo de como era o
seu pai terreno, pode gerar nelas uma rejeição à própria imagem de
Deus como Pai.
Uma de minhas alunas relatou em aula que sempre tivera
dificuldades em chamar Deus de Pai, posto que seu pai não lhe
transmitira nada de bom; por isso, não tinha nenhuma boa recordação.
Em virtude da experiência tida com o pai, uma pessoa pode formar
em sua mente uma idéia boa, ou desagradável a respeito de Deus.
Segundo Rosa (1979) “[...] uma criança que, por qualquer motivo,
nunca adora sua mãe, dificilmente adorará a qualquer outra divindade”
(p.75).
Rosa (Ibid.) ainda relatou o caso de um menino que se recusava a
iniciar a oração modelo do “Pai Nosso”, visto que não conseguia
chamar Deus de pai, uma vez que seu pai não era um bom referencial; e
pai, para ele, significava um sujeito ébrio.

43
Portanto, fazia a relação com seu pai. Logo, optou por se dirigir a
Deus não utilizando a expressão “Pai”.Tal concepção a respeito de Deus
faz com que a vida cristã seja contaminada por pensamentos proibitivos.
Consequentemente, alguns evangélicos têm experimentado sentimento
de angústia ao vivenciar um conflito entre desejos e proibições.
O sujeito em seu Estado de Eu Criança Livre ou Natural, parte da
psique com a qual nascemos e que com o tempo apenas uma parte dela
permanece em nós, deseja, mas em sua mente o Estado de Eu Pai
proíbe. É uma angústia vivida na mente por um diálogo interno, em
outras palavras, a pessoa conversa consigo mesma; o que causa cansaço
mental, ou estresse.
No capítulo quatro abordaremos as consequências deste tipo de
concepção. Caio Fábio (1997), escritor reconhecido no meio evangélico,
afirmou:
Por isso, irmãos, os que exercem o ministério, os que têm
influência sobre a mente, o coração, os valores e sobre a
produção de maneiras e estilos de existir na Igreja, precisam se
dar conta de que é hora de tornar a vida dos irmãos leve do peso
esmagador, acachapante, que vai entortando a vida das pessoas,
que vai curvando, que vai vergando, que vai tirando o sabor, que
vai descolorindo, que vai tornando insípida, que vai tornando
insossa mesmo, a vida de alguns irmãos que não podem
entender o que Jesus quis dizer quando diz que o jugo dele é
suave e o fardo é leve. O Cristo que eles conhecem parece ser o
fabricante da Caterpillar, produtor de máquinas pesadas que
estraçalham as costas daqueles sobre os quais elas trilham
(p.59).

44
Aqueles que empregam expressões de Deus como tirano baseiam-
se, geralmente, no Velho Testamento, por uma indevida e não
contextualizada interpretação. Entretanto, segundo os estudos
teológicos, Deus estava se revelando, por isso, as pessoas pouco O
conheciam (como se em algum momento da história alguém pudesse
conhecê-lO bem).
Também não podemos desconsiderar que na cultura judaica antiga,
os homens tinham papel dominante. Especialmente num período de
guerras constantes, onde a bravura e a força eram requisitos essenciais,
quase não havia espaço para gentileza nem tampouco para afetividade.
E, até hoje, o homem entende que a sensibilidade e a afetividade
representam sinais de fraqueza.
Portanto, qualquer gesto interpretado como fraqueza é rejeitado em
nossa cultura ainda machista. Basta ver a frase “homem não chora”.
Porém, ao longo das Escrituras Sagradas, encontramos diversas
manifestações do amor incondicional de Deus. No Salmo 103 versículos
13 e 14, lemos a seguinte declaração: “Pois como um pai se compadece
de seus filhos, assim o Senhor se compadece daqueles que o temem.
Pois ele conhece a nossa estrutura; lembra-se de que somos pó”.
Ainda nos escritos do profeta Oséias, o próprio Deus faz referência
ao Seu povo, dizendo: “Atraí-os com cordas humanas, com laços de
amor; e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas
queixadas, e me inclinei para lhes dar de comer”.
Eis uma manifestação que pode ser considerada como Deus agindo
como um Pai Nutritivo Positivo.

45
Ao ler essas informações, a pessoa pode processá-las em seu
Estado de Eu Adulto; entretanto, se em sua primeira infância as
mensagens passadas foram de um Deus tirano, é provável que terá uma
confusão mental. Haja vista que racionalmente tem uma informação,
mas estruturalmente e emocionalmente tem outra.
Tal experiência pode gerar uma desarmonia entre o que pensa e o
que sente, tornando a mente favorável às angústias e às crises. A esta
concepção de Deus se estabelece um tipo de dependência não saudável,
pois como ter um relacionamento sincero com um Ser que oprime e
impede uma expressão sincera e honesta? Jó, no capítulo 13 versículo 3,
diz aos seus amigos o seguinte: “Mas falarei ao Todo-Poderoso e quero
defender-me perante Deus”.
Ele estava reivindicando o direito de expressar de maneira
autêntica o que sentia e pensava perante o Deus que adorava. Ele estava,
portanto, fazendo uso de seu Estado de Eu Criança Natural, ao se
expressar autenticamente diante do Deus que era seu Senhor e Pai.
Mais adiante veremos os resultados dos mandamentos humanos no
contexto cristão evangélico.

2.1.2 O Deus Onipotente Submisso

Certa ocasião, quando atendia uma senhora que fazia hemodiálise,


depois de algum tempo de conversa, perguntei se poderia fazer uma
oração em seu favor. Qual a minha surpresa quando ela, evangélica de
uma denominação neopentecostal, bastante conhecida, afirmou que na
sua igreja as pessoas não oram, elas determinam. Fiquei desconcertado.
46
Não dava para argumentar contra este conceito devido sua situação
no momento.
Se por um lado, como no ponto anterior, enfatizei a falsa crença em
um Deus que é autoritário e tirano, agora temos que reconhecer que
existe em nosso meio a falsa crença em um Deus que, embora
reconhecidamente Onipotente, é também submisso, pois está à
disposição para fazer tudo o que O determinam.
É como se Deus fosse entendido mais como um gênio da lâmpada,
devendo inclusive, chamar o seu “senhor” de “amo”. A sua Onipotência
é usada para atender a todos os desejos humanos, por mais infantis e
imaturos que sejam.
Esta comparação de Deus se encaixa muito bem com a idéia da
“mãezona”, explicitado por Crema (1985): “A excelsa mamãe que tem
de ouvir sempre, acolher sempre, entender sempre, anular-se sempre,
servir sempre, preocupar-se sempre, estar sempre aí e nunca existir”
(p.63).
Essa idéia nos parece tão absurda que não merece nem
consideração, mas já que estamos trabalhando acerca dos mandamentos
de homens, ou falsas crenças, não convém desqualificá-la.
Estava assistindo pela televisão o funeral de um político de
projeção nacional no Brasil. Fiquei surpreso e contente por ser um
pastor o homem a dar a palavra naquele momento de tanta dor para a
família e entes queridos.
Fiquei mais surpreso ainda, e envergonhado, quando ao final de
sua palavra o pastor tentou ressuscitar o defunto, sendo retirado pelos
seguranças. Isso mostrado em rede nacional e, provavelmente, para o

47
exterior também. O pastor perdeu uma boa oportunidade de falar apenas
o que lhe cabia como tendo recebido da Palavra do Senhor. Em
Ezequiel 13.8, lemos o seguinte: “Como falais falsidade e tendes visões
mentirosas; por isso, eu sou contra vós outros, diz o Senhor”.
Uma senhora cristã e de grande comprometimento com o
Evangelho passou a fazer hemodiálise. Durante todo o tempo, não
aceitou seu sofrimento se mostrando decepcionada porque Deus não a
curara. Ela não obtivera a cura tão desejada e morreu; tudo indica que
em sua não aceitação e desespero.
Chegou ao Hospital Evangélico um rapaz de determinada igreja
dizendo que oraria por todos os doentes internados e todos iriam ser
curados. Não lhe demos a autorização para fazer isso. Com certeza ele
seria envergonhado. Principalmente, porque a enfermidade do corpo
pode ser uma estratégia de Deus para tratar a alma mais doente. A qual
precisa de um tempo para ser tratada.
Na mensagem cristã aprendemos que o homem é a “coroa da
criação” divina, mas parece que alguns têm usado tal concepção como
favorável a uma atitude narcisista em relação ao Deus Criador.
Visto então, por essa postura, como sem autonomia e sem
soberania, portanto, um ser supremo carente de ser reconhecido que
precisa dizer “sim” a todo pedido, por mais infantil que seja, caso
contrário, não será querido, aceito e muito menos amado por aqueles
que deveriam a Ele prestar reverência, adoração e serviço.
No entanto, tal tipo de concepção a respeito de Deus poderá
produzir no sujeito religioso um tipo de “independência mórbida”. Ou
seja, se alguém pode em Deus mandar, como pode tê-lO como Deus e
Senhor de sua vida? Se as posições se invertem o homem perde todos os
48
benefícios de uma saudável dependência divina. Deus não é um
segurança contratado para proteger alguém que é mais forte e poderoso
do que Ele.
Os cristãos evangélicos sempre tiveram a Bíblia como livro de
“regra de fé e ordem”. Todavia, parece que a regra de fé e ordem tem,
para alguns é claro, deixado de ser as Sagradas Escrituras, para serem as
fantasias e desejos infantis incentivados por alguns líderes que
expressam um desejo narcisista de dominação e passam tal idéia para
seus fiéis.
É uma visão antropocêntrica (o homem no centro), em
contrapartida com os ensinos bíblicos e teológicos que ensinam a “amar
a Deus sobre todas as coisas”. Como as pessoas estão sedentas de
realização, ainda mais em um mundo capitalista onde o sucesso é ter,
não é de se admirar que encontrem vários seguidores aqueles líderes que
pregam uma religiosidade onde o novo adepto se tornará o centro das
atenções deste “deus carente” por ser reconhecido e amado.
Uma prova disso é a proliferação de reuniões em templos
evangélicos de correntes de orações, sendo que, talvez, a maioria tenha
como alvo as bênçãos não transcendentais, aquelas que não precisam
levar o crente “aos céus”, bastando apenas uma altura proporcional a
uma cobertura em uma valorizada avenida, de preferência que possa
“contemplar” a glória deste Criador vivendo de frente para o mar.
A maioria das orações que ouvimos se referem a pedidos, poucos
agradecimentos e a quase nada de adoração, de intimidade e de desejo
de vencer as barreiras que impedem a comunhão do ser finito com o Ser
Infinito.

49
Também podemos acrescentar algumas músicas cantadas nas
igrejas evangélicas de hoje. Quantas delas estão repletas de mensagens
de que Deus vai dar a vitória, mas parece que tal vitória não ultrapassa
este tempo e este espaço.
Durante determinado tempo, um jovem sempre me cumprimentava
da seguinte maneira: “E aí varão, só vitória?”. Minha resposta, muitas
vezes era “não”. Ele sempre repetia a pergunta e eu geralmente repetia a
resposta. Naturalmente, explicava a minha resposta com educação e
respeito por sua postura.
O “só vitória?” é uma boa intenção, mas caso obrigue o crente a se
sentir sempre vitorioso, poderá, o mesmo, sentir-se também culpado,
caso não atinja este ideal. O perigo desse tipo de mensagem é que se
Deus está sempre à disposição para fazer o que queremos, abandonando
sua autonomia e vontade soberana, teremos com certeza uma quantidade
significativa de pessoas que estará decepcionada com Deus por não ter
sido atendida quanto ao que esperava. E a maneira de mostrar tal
decepção é se afastando da igreja e desacreditando da mensagem
pregada.
Certa vez, conversando com uma senhora sobre o Evangelho,
disse-me que já fora da igreja, mas como não conseguira o que desejava
voltou para a “macumba”. Quando passamos a mensagem de que Deus
responde todos os nossos desejos, podemos deixar muita gente
decepcionada com Ele e com o Evangelho, negando-se a tê-lo como
verdadeiro Senhor. Algumas vezes no hospital tive que dar como
resposta a frase: “Eu não sei”, para perguntas que realmente não sabia
responder.

50
Quando abordo esse tema nas aulas, geralmente ouço relatos de
pessoas que se decepcionaram com a igreja e também com Deus, pois
lhes era prometido a cura para uma pessoa especial da família, ou para
eles mesmos, e não vindo tal milagre, a frustração e a revolta se
instalavam.
O colunista Santayana (2007) disse o seguinte: “Nunca a alma
humana precisou tanto de transcendência como em nossos dias e nunca,
em nossos dias, ela lhe pareceu tão esquiva”. Esta assertiva me faz
lembrar a citação de um líder evangélico brasileiro a respeito da
afirmação de um líder evangélico estrangeiro, de projeção internacional,
dizendo que “no Brasil o evangelho cresce como a extensão de um
oceano, mas com a profundidade de uma piscina”.
Parece que nunca na história da humanidade o mundo esteve tão
carente da mensagem transcendental do Evangelho, e a igreja,
infelizmente, nunca esteve tão distante de sua mensagem principal. Vale
como boa reflexão a seguinte afirmação: “Com menos ênfase no
sobrenatural e mais investimento em técnicas de autoajuda, a nova
geração de pregadores evangélicos multiplica o rebanho protestante e
aumenta a sua penetração na classe média” (Veja, 2006, p.14).
Segundo Wiersbe (1989), “O evangelho do êxito é uma mensagem
barata destinada às pessoas que procuram uma solução rápida para as
suas vidas, mas não mudança permanente no seu caráter” (p.38).
O teólogo, pastor e apóstolo Paulo disse: “Se é só para esta vida
que esperamos em Cristo, somos de todos os homens os mais dignos de
lástima” (1 Coríntios 15.19).

51
Rosa (1979) expressou isso muito bem, como nas palavras a seguir:
O crente espiritualmente maduro ora não para receber uma
dádiva, mas para comungar com Deus. Na proporção em que
amadurecemos espiritualmente, nossa oração vai perdendo seu
caráter utilitarista e se torna cada vez mais um processo de
íntima comunhão com o Criador (p.25).

Sob o ângulo da Análise Transacional, a figura do Salvador, não no


contexto bíblico como Jesus é apresentado, mas um Salvador (também
com letra maiúscula), que precisa ser bom para ser reconhecido e aceito,
equivale ao Estado de Eu Pai Nutritivo Negativo.
Ou seja, na aplicação ao sujeito seria aquele que não sabe dizer
“não”, e que embora tenha o poder o usa para fazer tudo para o outro,
com a intenção, geralmente inconsciente, de que este outro sempre lhe
seja agradecido e dependente.
Esse Salvador, entretanto, passará nas entrelinhas as seguintes
mensagens: “não cresça”, “não se desenvolva”, “não seja você mesmo”,
“não se realize”, “não seja independente, porque eu preciso que você
continue precisando de mim”. De acordo com Nietzsche (2008), “O
cristianismo tem necessidade da doença [...] - tornar doente é a
verdadeira intenção oculta de todo o sistema terapêutico de salvação da
igreja” (p.107).
Em 1990, participando do Congresso do Corpo de Psicólogos e
Psiquiatras Cristãos (CPPC), na cidade de Mendes no Rio de Janeiro,
ouvi uma das frases mais interessantes que meus ouvidos já captaram:
“Deus não é questão de necessidade, mas questão do mais profundo
desejo da alma humana”.
52
Esta frase dita por um intelectual expressa muito bem o que deveria
ser a mensagem central do cristianismo, pois necessidade está mais para
algo circunstancial, e o conceito de desejo aqui expresso se refere a algo
inerente ao ser humano, e que jamais conseguirá impedi-lo de aparecer,
por mais que se esforce. Recentemente, ouvi um carro com uma caixa
de som anunciando “Jesus está voltando!” e o anunciado se repetia.
Infelizmente foi estranho para mim aquelas palavras, pois há muito
tempo eu não as ouço. Tais palavras trouxeram-me profundas reflexões
sobre a maneira como eu mesmo tenho vivido o Evangelho. Creio que
esta seja mais uma luta que nós cristãos, interessados em viver a Palavra
o mais próximo de seu sentido possível, temos de travar.
Às vezes até o cântico “Maranata! Ora vem Senhor Jesus!” não nos
parece muito interessante, posto que nos pegamos dizendo em nosso
íntimo “agora não Senhor, dá mais um tempo”. A verdade é que se
Cristo vier logo vai estragar os planos de muita gente. Mas,
infelizmente, essa é uma nova roupagem da Igreja de Cristo. Que o
Senhor nos proteja dessa postura mundana.
Quando passamos a idéia de um deus Salvador no sentido não
saudável, segundo o conceito da Análise Transacional, as possíveis
decepções sempre estarão sendo percebidas. É claro que nesta teoria
isso significa um jogo psicológico, que ocorre geralmente de maneira
inconsciente e que faz parte do chamado “Triângulo Dramático”,
evidenciado por Karpman (Apud CREMA, 1985).
O problema maior é que neste jogo psicológico o Salvador se torna
também o Perseguidor. A pessoa quando age como perseguidora exige
do outro um reconhecimento pelo que fez.

53
E geralmente se comporta como Vítima se fazendo de pobre
coitada dizendo que ninguém reconhece seus atos de bondade. Salvador,
Perseguidor e Vítima, formam os três papéis vivenciados do Triângulo
Dramático. São “os papéis de ação – dinâmicos: um conduz ao outro
que conduz ao outro [...]” (Ibid., p.178).
Um ótimo exemplo de se entender Deus como o Senhor das
decisões finais, Autônomo e Soberano, foi dado pelos amigos do profeta
Daniel quando intimados a adorar a estátua levantada por
Nabucodonosor, que depois os desafiou dizendo: “E quem é o deus que
vos poderá livrar das minhas mãos?” Eles responderam o seguinte:
[...] Ó Nabucodonosor, não necessitamos de te responder sobre
este negócio. Eis que o nosso Deus, a quem nós servimos, pode
nos livrar da fornalha de fogo ardente; e ele nos livrará da tua
mão, ó rei. Mas se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a
teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste”
(Daniel 3.16,17).

54
2.2 Os Mandamentos de Homens Quanto ao Líder Religioso
Neste ponto trabalharei este personagem tão significativo no meio
religioso - o líder. No contexto cristão evangélico é representado, não só
pelo pastor, mas também por diáconos, presbíteros, bispos, apóstolos e,
mais recentemente, dois novos títulos: bispo primaz e patriarca. Já ouvi
falar também em madre superior; o que na igreja evangélica é algo
incomum. Caso isso signifique uma ascensão em autoridade ou poder,
talvez apareça alguém requerendo sua beatificação.
Uma igreja, comprometida com a verdade, quando reconhece em
alguém uma vocação, agregada à conduta e ao tempo de atuação na
obra, geralmente, recomenda cursar teologia em um seminário.

55
A fim de confirmar tal recomendação, o seminário solicita que seja
relatada sua experiência de conversão bem como sua decisão de cursar
teologia. Assim, a igreja espera que cada pessoa que ela recomenda para
o curso de bacharel em teologia preencha alguns requisitos
fundamentais; entretanto, o que ela mais entende como sendo
fundamental é a “experiência de conversão e de chamada”, pelo menos
é o que acontece nas igrejas evangélicas mais tradicionais.
Nestas o candidato ao curso de teologia deve narrar sua
experiência espiritual. Se disser que deseja ser pastor por entender que é
uma boa “profissão”, e que está interessado nos rendimentos e status
dela inerentes, é quase certo que não será aceito por nenhum seminário
ou faculdade teológica; também nenhuma igreja o recomendará.
Caso ingresse, enfrentará profundas crises envolvendo questões
emocionais, espirituais, financeiras e físicas, durante um período de
quatro anos. Digo por experiência própria. É uma verdadeira seleção
natural. Esperamos que quem por lá passou esteja apto a se tornar um
pastor para liderar um “rebanho”.
Em geral, a pessoa sai do seminário com bom preparo teológico,
contudo, mais tarde torna-se evidente que seus conhecimentos
teológicos não são suficientes para lhe conferir também maturidade
emocional e psíquica. Muitos se sentem solitários e abandonados com
uma missão difícil de cumprir pelas exigências que o cargo, a igreja e
ele mesmo requerem.
Na verdade, espera-se que o pastor ao assumir uma igreja consiga
atender todas as atribuições associadas ao cargo.

56
Tais como, ser competente na preparação de sermões inteligentes e
devocionais; bom conselheiro; disposto a fazer visitas, saber administrar
a igreja, que por vezes pode se assemelhar a uma empresa; que
compareça a todas as reuniões e cultos semanais, bem como a todos os
aniversários dos membros. Em princípio isso pode ser agradável, mas
com o passar do tempo pode se tornar fatigante atender a todos os
compromissos.
O pastor precisa também ser um exemplo de esposo e pai, bem
como um cidadão cumpridor de seus deveres. Passa então a ser um
sujeito extremamente voltado para como as coisas devem ser, fechando
os olhos, não vendo as coisas como de fato são.
A partir de então, pode tomar algumas decisões para corresponder
a todas essas expectativas sem se permitir falhar, contudo se assim agir,
os prejuízos certamente serão muitos. É interessante como o líder
religioso é olhado, ora como semideus, ora como escravo. Ou, como em
relação a Deus, um gênio poderoso da lâmpada que tem todo o poder
para servir aos outros tão-somente, não tendo vida própria.
Não podemos esquecer que muitas igrejas, que têm surgido
recentemente, não exigem que seus líderes sejam formados em teologia.
Por vezes, o tempo, os serviços prestados, bem como a competência
para com as responsabilidades que lhes são conferidas, principalmente
se tiverem bom domínio de público, são suficientes para que sejam
promovidos a pastores. Neste caso não há nenhuma possibilidade de
exigir tal formação, pois as igrejas são fundadas pelos mesmos; o que
faz deles seus “donos”. Atualmente nada impede de alguém abrir a sua
própria igreja e dizer que recebeu o chamado de Deus para tal função.

57
2.2.1 O Líder Semideus

Moisés, o líder do povo hebreu, estava em uma complicada


situação, uma vez que todas as questões eram por ele decididas. “No dia
seguinte, assentou-se Moisés para julgar o povo; e o povo estava em pé
diante de Moisés desde a manhã até o pôr-do-sol”. (Êxodo 18.13). Jetro,
seu sogro, o orientou a não mais decidir sozinho todas as questões
daquela imensa população.
Vejamos suas palavras: “[...] Não é bom o que fazes. Sem dúvida,
desfalecerás, tanto tu como este povo que está contigo; pois isto é
pesado demais para ti; tu não o podes fazer” (Êxodo l8.17,18). Seu
sogro recomendou-lhe, então, que delegasse responsabilidades aos
demais líderes. E para o seu bem e o do próprio povo, assim agiu. Se
Moisés demonstrasse resistência e não seguisse tais conselhos, estaria
mostrando o quanto à função era gratificante, e que na posição que
estava tinha todos os privilégios que lhe conferia tal cargo; apesar das
responsabilidades.
Em outras palavras, a questão seria de se manter irredutível para
que sua posição não fosse ameaçada. Mas, pelo contrário, foi flexível e
deu grande demonstração de humildade, ao atender a orientação de
alguém que demonstrara preocupação com ele. A respeito dessa
temática, Fromm (1986) fez as seguintes indagações: “O que é que cria
no homem uma sede de poder insaciável? Será o vigor de sua energia
vital, ou será uma debilidade e incapacidade fundamental para
experimentar a vida espontânea e amorosamente? (p.16).

58
Lançando mão do termo da Análise Transacional, o líder semideus
se caracteriza por alguém que se mostra um grande pai, que pode ser
tanto autoritário como Salvador. Ele age mais pelo Estado de Eu Pai,
com atitudes dominantes e muito autoritárias.
A função do líder religioso representa uma persona, segundo Jung.
A persona é a máscara que usamos. Convém esclarecer que tal máscara
não necessariamente significa hipocrisia. Na verdade, uma função pode
carregar em si as máscaras necessárias para tal cumprimento. Por
exemplo, quando estou atendendo alguém é necessário que minhas
angústias não estejam predominando e afetando negativamente minha
ação de conselheiro, ou de psicólogo.
Esta atitude não representa falsidade. O problema, como diria Jung,
é quando essa máscara é rígida demais, e os seus liderados, inclusive,
sua família, e até ele próprio, acabam vendo-o como líder em situações
que não deveria ser. Pode este também fazer o papel de Salvador,
superprotegendo; e naturalmente o de Perseguidor; visitando às vezes o
papel de Vítima.
Esta posição confere reconhecimentos que lhe massageiam o ego.
É o que na Análise Transacional é denominado de carícia. Carícia
significa todo o gesto que demonstra o reconhecimento da existência do
outro (TAVARES & FRUTUOSO, 1985). Ela pode vir através de um
elogio, um toque físico, uma promoção, ou qualquer reconhecimento
que a pessoa possa ter. Igualmente, pode ser entendida como o
“alimento da alma”, no seu aspecto psique.

59
Existem carícias condicionais, que são aquelas recebidas pelo que
fazemos ou possuímos; e carícias incondicionais, que são aquelas
recebidas pelo que somos como, por exemplo, um abraço de um amigo,
uma declaração de “eu te amo”, a declaração de alguém que sentiu
saudades de nós, e etc. (TAVARES & FRUTUOSO, Ibid.). Para melhor
entendimento deste assunto, leia meu livro O Afeto que Alimenta.
É óbvio que o líder religioso semideus é um caçador de carícias,
pois ele precisa se mostrar necessário. Toda e qualquer pessoa sabe o
que precisa e sabe também o que fazer para conseguir. Quando alguém
não se sente satisfeito com a pouca, ou quase nenhuma carícia
incondicional recebida, acaba fazendo algo para conquistá-la.
Provérbios 27.7 diz o seguinte: “[...] à alma faminta até o amargo
lhe parece doce”. E geralmente recebe as condicionais, ou seja, os
reconhecimentos não pelo que é como pessoa, mas pelo que faz e
possui. Vale ressaltar que recebe principalmente pelo que faz ou possui.
É essencial que esse líder tenha capacidade de discernimento, a fim de
não confundir as coisas.
Um amigo pastor, há pouco tempo em atividade pastoral, disse que
se sentia tão abastecido do afeto das pessoas da igreja que praticamente
dispensava o afeto que recebia da esposa; deixando-a carente e fazendo-
lhe várias cobranças. Se com o passar do tempo a pessoa for deixando
de fazer o que fazia antes, poderá, então, receber menos
reconhecimentos, ou ser, inclusive, ignorado e substituído por outro que
tem mais a oferecer. Estou afirmando isso em relação à igreja.

60
Mas pode se aplicar também ao casamento. Leia meu livro O Afeto
que Alimenta, onde este assunto é mais detalhadamente tratado.
Nessa condição, então, o pastor, “reivindica” tal posição, de
semideus, pela função que exerce. Esta se constitui uma falsa crença,
pois sutilmente se mostra como infalível com base na crença de que é
um “ungido do Senhor”.
Em meu primeiro dia no seminário para cursar teologia, o deão
acadêmico, pastor reconhecidamente inteligente, tanto no meio religioso
quanto secular, nos disse: “aqui vocês vão aprender a levantar a mão
contra o ungido do Senhor”. É evidente que não é no sentido literal.
Parece que alguns faltaram a esta aula ou não aceitaram tal colocação.
Caso o líder religioso se considere com tamanha unção que o torne
superior, usará a falsa crença para manipular e reforçar sua liderança
abusando de muitos que nele confiam e não esboçam qualquer reação
para questioná-lo.
Faz uso da autoridade para inibir todos os que se opõem a ele.
Geralmente expressões do tipo “eu sou o pastor, portanto sou o líder
desta igreja e sei o que faço”, dependendo da personalidade daquele que
a ouve, o líder religioso pode aumentar ainda mais seu poder de
dominação.
Mas pode também perder sua função, como foi o caso recente de
um pastor que em pouco tempo atuando como líder em uma igreja, após
um início fantástico, teve de abrir mão de seu cargo, por não suportar
ver seus liderados descumprindo suas ordens, não se submetendo à sua
autoridade, ou melhor, ao seu autoritarismo, como alguns dos seus
membros me relataram.

61
Uma mulher, que ocupava cargo de liderança na igreja desse
pastor, pessoa bastante inteligente e de boa formação intelectual, relatou
que quando o ouvia dizer “Deus me mostrou”, ou então, “o Senhor me
revelou e, portanto, esta é a vontade de Deus”, cessava de qualquer
argumentação contrária.
Acerca desse assunto, Blue (2000) afirma que: “Toda vez que um
líder religioso declara que detém um conhecimento especial de Deus ou
da Bíblia que permanece oculto ao restante de nós, é possível que
estejamos na presença de ensinamento falso e abusivo, ou coisa pior”
(p.85).
Um dos alunos do Curso Saúde Emocional e Vida Cristã, membro
de uma igreja cujo pastor tinha tais características de autoritarismo, foi
por este questionado com a seguinte interrogação: “Irmão Antônio
(nome fictício), o senhor sabe como se reconhece um crente?” Não,
respondeu ele. “Pelas vestes”, definiu o pastor. Antônio então
questionou: “E como ficam os crentes que trabalham de uniforme?”.
Antônio foi punido e não se encontra mais naquela igreja. Outro
pastor excluiu alguns jovens porque foram visitar outra igreja da mesma
denominação, porém sem o seu consentimento. Um pastor, colega de
seminário, chegou ao exagero de exigir que um diácono lhe abrisse a
porta do carro sempre que chegasse com sua esposa à igreja, pois estaria
se rebaixando caso assim agisse. Com o tempo suas aberrações o
levaram a perder sua função de pastor daquele grupo.
O autoritarismo de um líder pode encontrar terreno fértil para com
os liderados tendenciosos a uma submissão e passividade.

62
Entretanto, caso encontre líderes, ou mesmo membros que não
exerçam liderança oficial em sua comunidade religiosa, mas que são
pessoas reflexivas e questionadoras, usando o Estado de Eu Adulto, com
argumentos sólidos, dificilmente conseguirá se impor, e acabará
gerando um grande desgaste, culminando com sua saída, ou com o
esvaziamento de sua congregação.
Em uma reunião de pastores, presenciei algo que até hoje fico me
perguntando: “como pode um pastor chegar a tal postura?” Um dos
presentes pediu a palavra e, como quem procura dar um aviso, alertou a
todos nós para uma “onda” que estava percebendo.
Como era pastor em uma área de risco, devido ao envolvimento de
muitas pessoas com a criminalidade, passou a receber muitos pedidos de
famílias enlutadas para falar em sepultamentos. Comentou, então, que
uma senhora de sua igreja lhe pedira para dar uma palavra no
sepultamento de seu neto que fora morto por envolvimento com o
crime. Disse ter rejeitado o pedido considerando ser um absurdo ele, um
pastor da igreja (exclamou com bastante orgulho o nome de sua
denominação), falar num sepultamento de um “marginal”. E mandou
um dos diáconos para tal tarefa.
Pouco tempo depois foi exonerado e excluído de sua igreja por
suspeita de adultério. Eis um bom exemplo de alguém interessado
demasiadamente na observância da forma e nem um pouco preocupado
com o conteúdo do Evangelho e com sua vida pessoal. Em Provérbios
16.18, encontramos a seguinte declaração: “A soberba precede a ruína, e
a altivez de espírito, a queda”. Em o filme O Advogado do Diabo, a
última frase pronunciada pelo personagem diabo é a seguinte: “Vaidade,
meu pecado predileto”.

63
Para Júlio de Melo Filho (1979) “a presença destes traços de
onipotência costuma levar o adulto a atitudes de desafio à realidade,
gerando múltiplas situações de exposição a ações morbígenas e
concomitante desprezo pelas atitudes de autopreservação” (p.43).
Esta afirmação enfatiza muito bem o que ocorre com alguns líderes
em nosso meio. Costumam se dedicar tanto aos afazeres, que é natural
se desligarem dos assuntos significativos, como a própria saúde
emocional e física; sem contar com o pouco ou quase nenhum tempo
para o cuidado de sua espiritualidade.
Vale ressaltar que quando não se cuida do emocional, o lado
espiritual também fica prejudicado. Quando alguém sofre de algum
distúrbio emocional ou psíquico, sua espiritualidade de igual modo é
afetada. Não dá para separar um do outro; nem o físico. Alguns afogam
seus problemas em excesso de atividades, o que pode ser uma fuga para
neles não pensar. Podem ser pessoas dedicadas às atividades, mas não à
intimidade com o seu Senhor.
É conhecida no meio evangélico a seguinte frase: “Cuidar da obra
do Senhor e esquecer-se do Senhor da obra”. Afirmo ainda que quando
se esquece do obreiro o próprio Senhor da obra também está sendo
esquecido e a obra prejudicada. Quantos pastores e líderes religiosos
experimentam doenças dos mais variados tipos decorrentes de um forte
estresse. Dentre essas está a depressão.
Ouvi certa vez de um pastor, aluno do nosso curso, afirmar que
“depressão se cura com joelho no chão”. Sua posição era de que para
tratar a depressão basta orar, não havendo nenhuma necessidade de
buscar ajuda profissional. É preciso deixar bem claro que o clamar é do

64
homem, mas a resposta é de Deus. Ou seja, Deus pode responder da
maneira mais diversa possível.
Ele não é prisioneiro de nossas interpretações. Costumo dizer que
para muitas orações Deus está respondendo o seguinte: “Por que clamas
a mim? Marche até um psicólogo, ou até um médico”.
Em determinada ocasião, um amigo criado na mesma igreja que eu
me perguntou em tom de afirmação: “A depressão é coisa do diabo,
concorda?”. Então lhe respondi: “E o que você me diz da diabete?”.
Alguns dizem de maneira sarcástica que a diabete é a amante do diabo,
por causa da pronúncia. O amigo não soube o que me responder.
Embora eu creia que a depressão também pode ser causada pelo
diabo. A questão também aqui é compreender como ele chegou a essa
conclusão. Provavelmente porque algum líder religioso assim afirmou.
Segundo Jackson quatro egos lutam dentro da personalidade do
pastor: o ego-físico, o ego-mental, o ego-espiritual e o ego-social.
Observemos estas palavras:
Cada um destes representa uma importante esfera de interesse
da vida do pastor, especialmente quando se relaciona com a
eficácia do aconselhamento. O pastor que é fisicamente
alquebrado ou desmazelado na sua higiene corporal.
Mentalmente atrofiado ou fixado em nível medíocre;
espiritualmente desnutrido e carente de novos mananciais da
graça; ou socialmente rígido e crítico, é um pastor que necessita,
ele mesmo, de um levantamento de seu estado depauperado. A
ele se poderia muito apropriadamente aplicar o adágio: “médico,
cura-te a ti mesmo”.

65
Antes que um homem possa encarar as profundas significações
do seu procedimento, não está levando a uma vida amadurecida
e provada. O cuidado do mais íntimo da sua própria alma, do
mais recôndito do seu ser, da cidadela do seu espírito exige a
coragem e a candura de olhar honestamente para si mesmo
(MANNOIA, 1981, p.33).
Caso algum líder pense desta forma para com suas dores e
sofrimentos, não terá tolerância e compreensão para com aqueles que se
mostram frágeis. Suas posturas podem, a princípio, ser de apoio e
acolhimento, mas em pouco tempo acabará mostrando sua verdadeira
opinião a respeito das fraquezas dos outros, e também das suas. Ou seja,
irá deixá-las de lado, desqualificando-as ou enterrando-as lá no fundo de
sua alma, enganando-se a si mesmo.
Um líder com tais características terá, provavelmente, grandes
dificuldades em se ouvir. Será que terá coragem suficiente para fazer a
oração de Davi no um amigo criado na mesma igreja que eu me
perguntou em tom de afirmação: “A depressão é coisa do diabo,
concorda?”. Então lhe respondi: “E o que você me diz da diabete?”. A
questão é que se este líder assim orar, correrá o risco de entrar em
contato com seus sentimentos, suas emoções e suas fraquezas, pois um
“semideus” não pode demonstrar fragilidade.
Logo, terá tendência a manter distância das pessoas que possam
precisar dele enquanto bom ouvinte e bom conselheiro. Posto que quem
ouve o outro, querendo ou não, também se ouve. Para tais líderes a
distância entre o púlpito e a congregação quanto maior melhor.

66
Bonhoeffer (1988) denotou que: “Enquanto nós nos esforçamos
para superar nossa condição humana, no sentido de deixar o humano
atrás de nós, Deus se torna ser humano, e temos que reconhecer que ele
deseja que também nós sejamos seres humanos, seres humanos reais.”
(p.45).

2.2.2 O Líder Escravo


Em uma de nossas turmas, um aluno, de apenas vinte e nove anos
de idade, já pastor, foi apanhado de surpresa pela morte de seu pai, o
qual pastoreava a igreja matriz, tendo, então, de assumi-la. Antes estava
na direção de uma pequena congregação, e a igreja matriz, tinha grande
número de membros e, consequentemente, muitos problemas também.
Ele confessou diante da turma que não estava suportando tamanha
responsabilidade. Eram por demais os obstáculos e se via definhando
diante das circunstâncias. Semelhantemente, sofriam com ele sua jovem
esposa e sua filha, ainda uma criança.
É muito comum vermos pastores se queixando da pressão que
sofrem no exercício pastoral. Por conta disso, muitos acabam abrindo
mão de sua vida pessoal para corresponder às atribuições do cargo.
Precisam ser forte o bastante para cumprirem as exigências que lhes são
impostas pelas igrejas e por eles próprios.
Para isso pagam um preço muito alto, e alguns estão com suas
famílias deterioradas vivendo em total infelicidade; que parece não ter
fim.

67
Acerca do dilema do pastor nessa circunstância, Fábio (1997),
salientou: “É um paradoxo que muita gente que fala em paz e felicidade,
viva o pior das infelicidades que é ser obrigado a anunciar a felicidade
num estado de total infelicidade”.(p.69).
Os dez anos e meio em que atuei como capelão do Hospital
Evangélico do Rio de Janeiro, foram uns dos mais enriquecedores de
minha vida e, paradoxalmente, um dos mais angustiantes também.
Havia uma dedicação intensa acompanhada de uma grande
imaturidade, visto que não conseguia separar os problemas dos outros,
dos meus próprios. Por vezes saía do hospital como um “bagaço de
cana”. Parecia que as forças tinham se esvaído.
Tinha um grande amor pelo que fazia; entretanto, estava
completamente esquecido de minha natureza humana, sujeitando-me às
consequências da falta de cuidados pessoais. Em Mateus 16.26, Jesus
afirmou: “Pois que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro e
perder a sua alma?”.
Se entendermos alma como sendo também a psique, podemos
deduzir que esse líder escravo pode estar perdendo a sua alma, isto é, o
seu ser, aqui no caso a psique. Era assim que eu me encontrava. Conheci
o estresse, e, em consequência, a depressão. Creio, sinceramente, que
essa angústia da alma me alcançou pela má compreensão do que
significa dedicação a Deus.

68
Tem uma palavra bastante interessante de Blue (2000):
Se sua religião é fatigante e geradora de fardos, a resposta de
Deus não é um aumento do período devocional, um
compromisso mais firme, o comparecimento a mais uma
conferência ou mais um ato de consagração. A solução de Deus
para o cansaço espiritual é descanso – descanso na aceitação
amorosa de Jesus e em seu trabalho perfeito como carregador
dos nossos fardos (p. 60).
Mais profundas e penetrantes são as palavras do nosso Senhor Jesus
quando afirma: “[...] o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mateus
11.30). Justamente pelo excesso de atividades e de comprometimento
com situações que, muitas vezes, fogem da real missão do pastor, que
vejo pastores e demais líderes causando grandes males, não só a si como
também à suas famílias.
Pelo excesso de atividades, em algumas igrejas, posso imaginar
como pode estar exausta tal liderança. Parece que algumas querem,
literalmente, desgraçar as famílias, não permitindo que as mesmas
tenham um tempo para si.
Ouvi de uma determinada líder que não agüentava mais tamanha
atividade eclesiástica. Era uma jovem casada, com um filho pequenino,
que estava vivenciando problemas sérios em seu casamento devido a
tantos afazeres e responsabilidades que assumira; quem sabe, para
agradar ao seu líder maior. Não estou me referindo a Deus. Para esses,
vale a palavra de Jesus em Mateus 11.28, que diz: “Vinde a mim, todos
os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei”.

69
Estava lendo o texto dos Dez Mandamentos, em Êxodo 20, quando
me deparei com algo que nunca antes percebera. Trata-se do
mandamento que Deus dá maior ênfase, usando uma maior quantidade
de palavras para explicá-lo e exigir seu cumprimento, respectivamente
nos versículos 8, 9, 10 e 11.
É onde Deus ordena que se guarde o dia de sábado; e Sua ordem é
DESCANSAR. Hoje minha postura é totalmente diferente. Consigo
produzir bastante, mas também organizar meu tempo.
Sei concluir um dia sem sequer colocar os pés no portão. Para mim
isso é muito importante. Gosto muito de ficar em casa com a minha
família. Sobre o procedimento que tomei para me consertar está escrito
em outro trabalho que está em andamento. É o próximo livro a ser
lançado.

70
2.3 Os Mandamentos de Homens Quanto à Obediência Cega e à
Alienação
Meu primeiro ato de vontade livre
é acreditar em vontade livre.
(William James)

Esses mandamentos provêm da fragilidade emocional e psíquica de


pessoas que conferem a um líder religioso a direção da própria vida,
negando sua autonomia e liberdade. Entendem que se o pastor disse
algo, é como se o próprio Deus tivesse falado, fazendo dele um portador
de palavras divinas; portanto, inquestionáveis. May (1971) afirmou que
“O problema da sujeição ao poder de outrem é reforçado, naturalmente,
por desejos infantis de que alguém cuide dele.

71
Assim, existem tendências para entregar-se a quem o domina”
(p.163). Entendemos, então, que se trata de uma alienação, e Barreto
(1983), de forma bastante apropriada, corroborou dizendo:
Define-se por alienação o fenômeno pelo qual o indivíduo serve
a forças que estão fora dele, mas que nada mais são que
extensões de seu próprio poder. A um grupo social, os judeus,
foi dada a graça de ter um Deus Único, tão acima de qualquer
conceituação que nem sequer Seu Nome poderia ser
pronunciado. Esse Deus deveria “viver em seus corações”. Mas
os judeus não O seguiam – seguiam, sim, a Moisés (Pai).
Quando Moisés se afasta, subindo o Monte Sinai, o povo passa a
clamar por um deus. Que fazem? Com sua própria imaginação,
suas próprias posses, suas próprias habilidades, imaginam e
fundem uma estátua de bezerro – e em seguida a adoram. É a
parábola perfeita do fenômeno da alienação (p.129).

Em Isaías 44.20, numa referência aos fabricantes e adoradores de


ídolos, Deus diz o seguinte: “[...] o seu coração enganado o iludiu, de
maneira que não pode dizer: Não é mentira aquilo em que confio?”.
Segundo esse texto, a pessoa se encontra tão alienada à sua individuação
que nem consegue fazer uma avaliação quanto aquilo em que crê. De
igual modo, convém citar a afirmação do Salmo 32.9 que diz: “Não
sejais como o cavalo ou como a mula, sem entendimento, os quais com
freios e cabrestos são dominados; de outra sorte não te obedecem”.
Cabe aqui, também, uma boa referência ao texto em que o apóstolo
Paulo chama de nobres os cristãos de Bereia, que foram verificar nas
Escrituras se aquilo que estava sendo a eles anunciado era verdadeiro
(Atos 17.11).

72
O pastor atuando, como já dissemos anteriormente, como um
grande Pai Salvador tomará para si as questões e problemas dos seus
seguidores. Muitos conferem ao seu líder espiritual até mesmo o direito
de decidir sobre sua vida afetiva.
Um Salvador age dessa forma para tornar-se necessário, ou para
manter seus liderados sob seu controle. Tal procedimento, geralmente, é
inconsciente. Aquele, porém, que confere ao outro a direção de sua vida
faz o papel de Vítima. É confortável para alguns o não pensar e o não
agir, evitando que decisões sejam tomadas e assumidas. O sujeito que
faz o papel de Vítima se comporta, geralmente, como um dependente
que precisa de que outros decidam por ele.
Deseja que sintam pena dele, vendo-o como um incapaz. É claro
que essa não é uma atitude racional, mas inconsciente. Quem assim age
se torna uma presa fácil para o líder Salvador, ou para aquele que
conscientemente explora seus liderados. Tem tendência a viver
momentos de fragilidade buscando carícias de lástima (TAVARES &
FRUTUOSO, 1985). Um exemplo de carícia de lástima pode ser a
seguinte afirmação: “Coitadinho!”. Ele, assim, está sendo notado;
portanto, acariciado.
Blue (2000), sobre tais seguidores, comentou:
A maioria de nós precisa de heróis. Nós queremos alguém que
entenda e saiba lidar com um mundo que está obviamente fora
de controle. Queremos um pai ou um irmão mais velho em
quem descansar; alguém para endossar nossas vidas. E, quando
achamos que o encontramos, nós lhe conferimos um grande
poder e liberdade de ação. Provavelmente vamos fazer vista
grossa para seus erros, racionalizar suas inconsistências e
desculpar os pecados que cometer contra nós.

73
Podemos agir como se fosse um privilégio ser usado e abusado
em prol de sua nobre causa. Preferimos ser vítimas conformadas
a ficar na nossa e não fazer parte de algo importante. O
sacrifício de nossa individualidade é um pequeno preço a pagar
para ser parte de um grupo especial (p.120).

Penso que essa obediência cega é resultante de alguns fatores,


principalmente, a uma interpretação errônea da Bíblia, haja vista que um
olhar para alguns textos pode realmente confundir. O fato é que em se
tratando de interpretar a Palavra de Deus, há aqueles que não querem ter
o menor trabalho em procurar respostas; em outras palavras, são
passivos, e por isso tendem a sofrer os maiores prejuízos. Existe uma
passagem bíblica que, até certo tempo, tive dificuldade de concordar.
Trata-se de Romanos 13.1-5, vejamos o texto na íntegra:
Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não
há autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram
ordenadas por Deus. Por isso, quem resiste à autoridade resiste à
ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a
condenação. Porque os magistrados não são motivo de temor
para os que fazem o bem, mas para os que fazem o mal. Queres
tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor
dela; Porquanto ela é ministro de Deus para o bem. Mas, se
fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é
ministro de Deus, e vingador em ira contra aquele que pratica o
mal. Pelo que é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente
por causa da ira, mas também por causa da consciência.

74
Qualquer que ler esta passagem e interpretá-la isoladamente,
poderá se submeter a todo tipo de autoridade que esteja acima dela. O
que não pode ser entendido ao pé da letra em todas as situações.
Como sempre, tenho usado o texto de Eclesiastes 7.16 para reforçar
minha afirmação: “Não sejas demasiadamente justo, nem
demasiadamente sábio. Por que te destruirias a ti mesmo?”. Logo, posso
dizer contextualizando: “Não sejas demasiadamente submisso às
autoridades. Por que te destruirias a ti mesmo?”.
Caso pareça que estou incitando a uma desobediência desprovida
de bom senso, afirmo que não é essa minha intenção; e vou mostrar
adiante. Em 2 Timóteo 1.7 nos diz a Palavra: “Porque Deus não nos deu
o espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação”. Sendo
assim, mais uma vez, usemos de moderação, que segundo a linguagem
da Análise Transacional significa usar o Estado de Eu Adulto.
Portanto, pela moderação, ou bom senso, analisemos outros textos
da Palavra de Deus para refutar, ou ir contra alguma postura que não
proceda da contextualização de toda a Bíblia. Usarei novamente o texto
de Daniel 3, onde está registrada a história de que o Rei Nabucodonosor
levantou uma grande estátua e decretou que todos ao ouvirem o som de
vários instrumentos, os quais seriam tocados em todo o seu reino,
deveriam ajoelhar-se e adorá-la.
E assim todo o povo do seu reino o fez. Ou seja, quase todas as
pessoas foram obedientes às autoridades e suas ordens. Com exceção de
alguns homens, os quais eram Sadraque, Mesaque e Abednego. Estes,
por terem negado adorar a estátua do rei, teriam uma pena muito severa;
seriam lançados na fornalha de fogo ardente.

75
O versículo 8 narra que alguns homens delataram estes três que não
obedeceram à autoridade de Nabucodonosor.
Ao ser informado, o rei ficou sobremodo furioso e procurou tirar
satisfação do por que não terem se ajoelhado e adorado como todos os
outros. Então lhes deu uma segunda chance, e afirmou que caso não
obedecessem, ele desejaria ver quem seria o deus que iria livrá-los de
suas mãos. A resposta deles foi uma tremenda desobediência a maior
autoridade de toda aquela região, conforme citada nos versículos 17 e
18:
[...]:Ó Nabucodonosor, não necessitamos de te responder sobre
este negócio. Eis que o nosso Deus, a quem nós servimos, pode
nos livrar da fornalha de fogo ardente; e ele nos livrará da tua
mão ó rei. Mas se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a
teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste”.

Todos nós sabemos o final dessa história. Eles realmente foram


jogados dentro da fornalha, mas não se queimaram. Ao final daquela
situação, o rei percebeu que com eles estava Deus e disse nos versículos
28 e 29:
[...] Bendito seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego, o
qual enviou o seu anjo e livrou os seus servos, que confiaram
nele e frustraram a ordem do rei, escolhendo antes entregar os
seus corpos, do que servir ou adorar a deus algum, senão o seu
Deus.

76
Por mim, pois, é feito um decreto, que todo o povo, nação e
língua que proferir blasfêmia contra o Deus de Sadraque,
Mesaque e Abednego, seja despedaçado, e as suas casas sejam
feitas um monturo; porquanto não há outro deus que possa livrar
desta maneira. Então o rei fez prosperar a Sadraque, Mesaque e
Abednego na província de Babilônia.

Tudo somente porque resolveram resistir, não obedecendo à


autoridade do rei. Vejamos outros casos de resistência às autoridades.
Levemos em conta a situação em que Moisés estava envolvido. Quando
chegaram diante de Faraó para anunciar o que o Senhor lhes ordenara,
aquele respondeu: “Quem é o Senhor, para que eu ouça a sua voz para
deixar ir Israel?
Não conheço o Senhor, nem tampouco deixarei ir Israel” (Êxodo
5.2). Moisés e seu irmão Arão não obedeceram a Faraó e continuaram a
insistir para que soltasse o povo de Israel.
Observemos também a situação em que Pedro fora ameaçado pelas
autoridades para que não mais falasse acerca de Jesus. No capítulo 4
versículo 8, a Bíblia diz que “[...] Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes
disse: Autoridades do povo e vós, anciãos [...]”. Por conseguinte, Pedro,
cheio do Espírito Santo, reconhecia que tais homens eram autoridades.
Mas perceba o que essas mesmas autoridades fizeram no versículo 18:
“E, chamando-os, ordenaram-lhes que absolutamente não falassem nem
ensinassem em nome de Jesus.”
Então, no versículo 20, Pedro replicou dizendo: “pois nós não
podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido”. Pedro,
dessa forma, estava assumindo sua resistência, desobedecendo às
autoridades humanas.
77
Durante as viagens missionárias do grande evangelista e pastor
Paulo são narradas as suas desobediências, quando era mandado que
não pregasse acerca de Jesus Cristo. Ao longo da história, temos visto
que diversos homens de Deus não foram demasiadamente submissos às
autoridades.
Entretanto, precisamos reconhecer algo implícito em todas essas
situações de desobediência – eles estavam a serviço de Deus. Há uma
orientação da parte de Deus aos seus filhos diante de situações em que
deverão resistir às autoridades. Em Jeremias capítulo primeiro
versículos 18 e 19, no chamado de Deus a este jovem profeta, o Senhor
declara:
Eis que hoje te ponho como cidade fortificada, e como coluna
de ferro e muros de bronze contra toda a terra, contra os reis de
Judá, contra os seus príncipes, contra os seus sacerdotes, e
contra o povo da terra. E eles pelejarão contra ti, mas não
prevalecerão; porque eu sou contigo, diz o Senhor, para te livrar.

Interessante é que o profeta de Deus estava para ser colocado


contra todas estas figuras de autoridades, inclusive religiosas, como é o
caso dos sacerdotes. Diante dessa situação, podemos dizer como Pedro,
em Atos 4.19: “[...] Julgai vós se é justo diante de Deus ouvir-vos antes
a vós do que a Deus”.
Desde minha adolescência, nunca fui inclinado a obedecer
cegamente. Quando percebia alguma injustiça, ou qualquer atitude
imposta de maneira não respeitosa, não ética, tinha forte tendência a
questionar. Muito embora respeitando, caso fosse inquirir uma
autoridade ou outra pessoa qualquer.

78
É bom lembrar que fui criado com valores sólidos. Sempre
respeitei meus pais, chamando-os de “senhor” e de “senhora”. Nunca
tive nenhuma dificuldade de respeitar autoridades, a não ser quando, ao
tomar maior conhecimento e maior maturidade, passei a considerar a
questão ética e a própria Palavra de Deus.
Houve uma situação quando ainda era um seminarista, que o pastor
da igreja da qual era membro, resolvera criar uma comissão para estudar
a situação das pessoas que estivessem afastadas da congregação. Eu
fazia parte dessa comissão.
Sempre fui um pouco questionador quanto às exclusões do rol de
membros da igreja. Atendendo a uma decisão do pastor, estava para ser
enviada uma carta a todos os membros para que comparecessem em um
determinado dia, chamado de “dia D”. Na carta estava explícito que
qualquer pessoa, até mesmo o pastor, caso não comparecesse, por
alguma eventualidade, estaria confirmando seu desinteresse pela igreja;
portanto, deveria ser automaticamente desligado. Questionei a carta,
pois qualquer um que naquele dia, inclusive por alguma enfermidade ou
morte de uma pessoa querida, não comparecesse, seria desligado.
O pastor ficou muito contrariado e acabou imediatamente a reunião
dizendo que uma comissão deveria ter pensamento unânime. Chamou-
me ao seu gabinete e fez, de forma sutil, uma ameaça dizendo-se amigo
do reitor do seminário que eu estudava, e que bastava uma palavra dele
para que eu fosse desligado.
Naquele instante, chegou um líder da igreja e o pastor disse ser sua
chegada muito oportuna, e relatou o que estava acontecendo. Qual fora a
surpresa! Quando aquele jovem senhor disse que caso tivesse que
pensar de maneira unânime com o pastor, ou com todas as decisões da

79
igreja, ele estaria naquele momento pedindo seu desligamento do
rol de membros, pois discordava de muitas coisas. O pastor retrocedeu
em sua palavra e não me excluiu.
A carta foi novamente redigida, deixando de maneira clara que
apenas as pessoas que já estavam sendo analisadas acerca de seu
afastamento, caso não comparecessem ao chamado “dia D”, seriam
excluídas, Quero deixar bem claro que durante todos esses anos, tenho
tido um ótimo relacionamento com esse pastor, chamando-o sempre de
“meu pastor”. Tenho por ele grande respeito e sei do forte carinho que
tem por mim e por minha família.
Lembro-me de uma situação também na escola, quando tinha 17
anos, e meu professor de português havia me tirado um ponto por ter
colocado o acento agudo um pouco deitado em duas palavras. Mas
estava claro para qualquer pessoa que foi pelo fato de ter escrito rápido
que o acento ficou daquele jeito.
Reivindiquei aquele ponto respeitosamente e em momento algum
ofendi o professor. Argumentei com insistência desejando meu ponto de
volta. Alguns amigos diziam para que eu não falasse nada, pois ele
poderia me prejudicar. Entretanto, minha briga não era contra uma
pessoa, mas a favor de meus direitos. Na aula seguinte ele devolveu o
meu ponto.
Voltando à questão religiosa, suponhamos que em seu trabalho, ao
tocar o telefone, seu chefe imediatamente diga que caso a ligação seja
para ele é para dizer que não está. Veja em que situação vai se
encontrar?

80
A autoridade à sua frente, seu chefe ou patrão, diz que é para você
mentir. Mas você aprendeu através de sua fé na Palavra de Deus que a
mentira é um pecado. O que faz então?
Deixo novamente como resposta a palavra de Pedro: “Julgai vós se
é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós do que ouvir a Deus” (Atos
4.19). Tive uma experiência quando bancário, a qual me lembro com
gratidão por acreditar ter tido a participação de Deus.
Um gerente novo ao assumir a direção da agência, colocou todos os
funcionários para produzir, estabelecendo um sistema de pontuação para
cada um. Eu era apenas um caixa, portanto não me via obrigado a
vender nenhum dos produtos bancários. Mas gozava de certa confiança
por parte de alguns clientes.
Nesse período, surgira uma vaga para a chefia. Todos pensávamos
que quem a ocuparia seria um de nossos colegas que entendia mais dos
serviços do que os demais da mesma função. Uma assistente da gerência
perguntou como estava a minha venda dos produtos. Respondi-lhe que
estava abrindo algumas contas, ajudando alguns clientes a analisar a
melhor aplicação.
Inclusive citei um que havia me perguntado qual seria a melhor
aplicação para aquele momento, e que teria respondido que aquela era
realmente a melhor. Aquela assistente retrucou dizendo que eu tinha de
ter falado o que era melhor para o banco; que era outra aplicação. Disse-
lhe que falara a verdade. Sua afirmação foi de que assim eu nunca
conseguiria crescer na empresa.

81
Então, falei que se tivesse que crescer mentindo nunca conseguiria
nada em minha vida. Ela enfatizou que até mesmo Cristo mentira. Então
lhe respondi que quem estava cursando teologia ali era eu e que ela
estava falando uma verdadeira heresia.
Nesse mesmo instante chegou o gerente, um homem bastante alto,
com uma fisionomia de autoridade, bateu em minhas costas e disse:
“Você a partir de hoje é o meu mais novo chefe!”. Fiquei estupefato.
Não acreditei. Mas foi assim realmente que aconteceu. Fiquei apenas
mais um ano e meio no banco, pois eu estava decidido a fazer um
melhor curso de teologia e a carga horária estava me atrapalhando.
Pedi para ser demitido. Foi uma de minhas grandes decisões.
Analisemos um exemplo que poderá ajudar naquilo em que estou
procurando defender. Imagine a situação de que em seu trabalho, sendo
você um militar, é dada uma ordem pelo general. Você é um tenente.
Mas, um coronel, portanto, superior a você tenente, e, inferior ao
general, dá uma ordem contrária. Você segue a ordem do seu superior
coronel, ou do general que é superior a todos? Caso você seja um militar
considere, por favor, que eu não sou.
Da mesma forma vejo os personagens da Bíblia citados
anteriormente. Os amigos de Daniel foram obrigados a obedecer a
Nabucodonosor; Pedro e Paulo, às autoridades judaicas e romanas.
Entretanto, eles resistiram a essas autoridades porque estavam
obedecendo a uma autoridade que para eles era acima de toda e
qualquer autoridade terrena – a autoridade de Deus.

82
Desta forma, quando obedecemos à Autoridade máxima, não pode
ser considerado como um desrespeito à autoridade bíblica, a
desobediência à autoridade secular.
Podemos concluir este ponto com três declarações. Uma de Paulo
em Gálatas 1.10, que diz:“Pois busco eu agora o favor dos homens, ou o
favor de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se estivesse ainda
agradando aos homens não seria servo de Cristo”; a de Pedro em Atos
4.19 e 20: “[...] Julgai vós se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a
vós do que a Deus; pois não podemos deixar de falar das coisas que
temos visto e ouvido”.
E a de João em 1 João 4.l: “Amados, não creiais a todo o espírito,
mas provai se os espíritos são de Deus; porque já muitos falsos profetas
se têm levantado no mundo”.

2.4 Os Mandamentos de Homens Quanto aos Sentimentos e


Pensamentos Involuntários

É comum ouvirmos frases das mais variadas possíveis, desde as


mais simples às mais complexas, tais como: “O crente não pode pensar
assim”, “crente não sente essas coisas”, “a dúvida é coisa do diabo”.
Sentimentos, ou pensamentos como depressão, raiva, medo,
dúvida e alguns complexos, são divulgados como não passíveis de
atingir o crente. Se alguém se apresenta vivenciando alguns destes
sentimentos, ou pensamentos, é considerado como fraco na fé, ou de
estar dando brecha para o inimigo.

83
Caso uma pessoa tenha dificuldade de se mostrar como
verdadeiramente é, a opção, para ser aceita, é se comportar conforme as
expectativas dos outros. Ela passa a se anular e viver uma vida
superficial e fútil, segundo a ótica e a opinião dos outros.
Vale lembrar as palavras de Paulo aos Romanos no capítulo 14
versículo 5: “Cada um de nós tenha opinião bem definida em sua
própria mente”. Também é bom aqui mencionar Romanos 15.2, onde
diz: “Cada um de nós agrade o seu próximo, no que é bom para
edificação”.
Esse conceito se constrói a partir da falsa crença de que quando
uma pessoa se converte à fé cristã ela se torna inatingível. É claro que
não é racional, mas parece estar incutido, até mesmo a partir da idéia de
um Deus Salvador que a qualquer momento socorre o homem de suas
adversidades, não permitindo que passe pelos desertos da vida.
A pessoa tende a se desumanizar. Tenho afirmado que a conversão
não tira a nossa humanidade.
Mas como é difícil para alguns, com tantos impedimentos,
estabelecerem para si um olhar sincero e conseguirem se enxergar como
realmente são, isto é, humanos.
Ocorre uma negação de seus sentimentos, de suas emoções e de
seus pensamentos, naturalmente os considerados negativos e proibidos.
Segundo Campos (1978), “Nós não temos emoções, nós somos
nossas emoções” (p.29), parece-nos que a negação do que sentimos se
constitui como a negação de nós mesmos. Vamos, porém, trabalhar
algumas delas.

84
2.4.1 Sobre a Dúvida
2.4.1.1 A Dúvida no Adolescente e no Jovem
Parece que o mundo de alguns cristãos evangélicos é o mundo das
certezas absolutas. Diante de algumas circunstâncias determinadas
pessoas interpretam a expressão de dúvida como uma ameaça a uma
suposta e falsa estabilidade espiritual.
Quando se trata de crianças e adolescentes criados no ambiente
religioso, é necessário estarmos atentos quanto a esta transição, da
religiosidade como repetição de comportamentos, para uma que se
confirma como experiência pessoal.

85
De acordo com Rosa (1985), a religiosidade da criança será uma
observância da religião de seus pais.
Passar por esse processo sem ser acompanhado pela dúvida, parece
algo quase que impossível, independente de ser jovem ou adulto. Sobre
esse assunto, Tillich (1985) enfatizou que: “A fé engloba a ambos:
conhecimento direto, do qual provém a certeza, e incerteza. Aceitar os
dois é ter coragem. É suportando corajosamente a incerteza que a fé
demonstra mais fortemente o seu caráter dinâmico” (p.15).
Estar nesse contexto sem corresponder às expectativas dos outros
tem sido de grande sofrimento para adolescentes e jovens que vivem
suas crises existenciais e religiosas geralmente em extrema solidão. Isso
porque uma boa parte dos pais ou líderes religiosos mais experientes
não se encontra preparada para lidar com tais crises alheias.
Principalmente porque agora as crises da juventude vêm acompanhadas
da capacidade de questionamento e do pensar. Schowalter e Anyan
(1980) escreveram o seguinte:
A capacidade de pensar abstratamente, que só começa a ser
possível no início da adolescência, leva ao questionamento das
regras e crenças da família, que até então haviam sido aceitas
sem o menor questionamento. Esse estágio é, de certa maneira,
comparável ao da criancinha que começa a perguntar os
“porquês” de tudo que ela está descobrindo (p.126).

Alguns chegam à experiência religiosa quando adultos e, criando


seus filhos nos ensinamentos da igreja cristã evangélica, esperam que os
mesmos sejam suficientes para satisfazer todas as buscas desses jovens
ávidos por conhecimento. Talvez desconheçam a crise da passagem da

86
fé como resposta passiva e obediente ao que os pais ensinam, para
uma fé que significa uma descoberta pessoal e um encontro com Deus.
É quando regras e obrigações se transformam em valores e
experiências pessoais. Há até uma expressão que traduz uma verdade,
mas na prática parece que pouco funciona. É a seguinte: “filho de peixe
é peixinho; mas filho de crente não é crentinho”.
Esta frase tão simples, mas que contém uma grande verdade, de
que a experiência dos pais não necessariamente será a mesma dos filhos,
deveria deixar tais pais e líderes religiosos mais atentos quanto ao
processo que antecede à experiência pessoal dos jovens e adolescentes.
Para Rosa (1979) “a religião de uma mente sadia se dá mais como um
processo de uma busca do que propriamente como uma experiência
brusca ou espetacular” (p.231).
Acerca de religiosidade, Rosa (Ibid.) pontuou que entre
adolescentes e jovens a dúvida é responsável por promover uma das
mais acentuadas crises. E esta, geralmente, pode vir acompanhada de
um forte sentimento de culpa, por não estar correspondendo às
expectativas de seus pais ou líderes.
Segundo Chapman (2001), “Nunca esqueça que a grande questão
da adolescência é: ‘Quem sou eu?’” (p.38). Se ele não sabe quem é,
saberá responder quem é Deus de forma que satisfaça às suas
interrogações e às expectativas dos outros?
A dúvida é tão frustrante para o adolescente que geralmente se
sente um estranho, como se passasse por isso sozinho, enquanto todos
os outros têm uma fé invejável, em sua utópica concepção.

87
Podemos entender que caso o adolescente ou o jovem venha repetir o
procedimento dos pais ou líderes religiosos, isto é, um “faz de conta”
que ela não existe, pode então ocorrer uma desqualificação da dúvida ou
uma negação de sua existência.
Por parte dos pais ou líderes parece ocorrer uma crise da síndrome
de ambivalência dual, conforme salientou Rappaport (1981-1982):
Todas as crises pelas quais o adolescente passará provocarão
uma ressonância, uma atualização das mesmas crises nos pais,
isto é, cada conflito com o qual o adolescente se defronta fará
com que os pais retomem o mesmo conflito vivido quando
adolescentes (p.14).

Essa situação não será nada agradável para os pais. Portanto, em


determinados momentos é mais fácil negá-las do que enfrentá-las. Calil
(1987), acerca da temática em questão, afirmou que “a busca por uma
homeostasia por parte dos pais e líderes, se compreende por uma
tentativa de se manter um suposto e falso equilíbrio” (p.19). Algo do
tipo “é melhor não mexer com isso”, pois pode incomodar e muito.
Segundo a terminologia da Análise Transacional, é uma
desqualificação dos estados de personalidade Criança Livre e Adulto do
adolescente. A Criança Livre que tem curiosidade e desejo de saber, e o
Adulto que processa todas as informações.

88
Quando o Adulto se encontra mais estruturado e, independente de
uma permissão ou não, começa a fazer o processamento das
informações que recebeu, e age diante de um conflito interno onde o Pai
Crítico NOK não lhe permite tal procedimento. Entretanto, com ou sem
permissão, processa essas informações.

2.4.1.2 A Dúvida no Adulto


Stott (1988) usou as seguintes palavras para se referir a essa
curiosidade angustiante do homem:
O homem é uma criatura insaciavelmente curiosa. Sua mente foi
feita de tal maneira que não pode descansar. Está sempre
perscrutando o desconhecido. Persegue o conhecimento com
infatigável persistência. Sua vida é uma expedição de
descobrimentos. Está sempre perguntando, explorando,
investigando, pesquisando. Nunca ultrapassa o interminável e
infantil “por quê”. Quando a mente humana começa a se
preocupar com Deus, torna-se perplexa. Tateia na escuridão.
Tropeça. Está perdida. Não é de estranhar que assim ocorra,
porque Deus, seja quem for ou o que for, é um Ser infinito e
imortal, enquanto nós somos mortais e finitos. Ele está
totalmente fora de nosso alcance (p.10).

Fui procurado certa vez por uma mulher de quarenta e cinco anos,
que há quatro frequentava assiduamente uma igreja cristã evangélica,
como resultado de uma autêntica conversão. Ela se encontrava em
grande sofrimento. Sua angústia era tamanha que afirmou nunca haver
sofrido tanto em sua vida. Sua crise se passava por uma dúvida quanto à

89
questão religiosa. Afirmava não se sentir mais como no princípio,
quando tinha grande prazer em estar na igreja.
Transparecia em seu semblante e em sua postura a angústia e a
depressão em que se encontrava. Entendia que havia feito a grande
descoberta de sua vida ao se converter. E, portanto, não aceitava passar
por uma situação em que parecia ter perdido tudo relacionado à nova
experiência, que tanto a transformara.
A questão é que aceitando ou não ela experimentava a dúvida. E o
problema era que a rejeitava, até o ponto em que não mais conseguiu
desqualificá-la e o seu sofrimento foi grande. Meu trabalho com ela foi
de clarificar o quanto nós seres humanos estamos passíveis de tal
situação, pois a conversão que ela obtivera não lhe tirou a humanidade.
Sendo assim, estava sujeita a passar por aqueles conflitos.
Quando aceitou isso como algo normal, principalmente quando
entendeu o motivo, sua angústia acabou e a felicidade retornou. Fazendo
menção novamente de Tillich (1985):
Fé é certeza na medida em que ela se baseia na experiência do
sagrado. Mas ao mesmo tempo a fé é cheia de incerteza, uma
vez que o infinito, para o qual ela está orientada, é
experimentado por um ser finito. Esse elemento de insegurança
na fé não pode ser anulado; nós precisamos aceitá-lo. E esta
aceitação é um ato de coragem. A fé engloba a ambos:
conhecimento direto, do qual provém a certeza, e incerteza.
Aceitar os dois é ter coragem. É suportando a incerteza que a fé
demonstra o mais fortemente o seu caráter dinâmico (p.15).

90
Um pouco mais adiante Tillich (Ibid.) afirmou o seguinte:
Se a fé é entendida como acreditar em alguma coisa, então
dúvida e fé são irreconciliáveis. Compreendendo-se a fé como
estar tomado por aquilo que nos toca incondicionalmente, a
dúvida se torna um elemento necessário da fé. A dúvida se
encontra encerrada no risco da fé (p.17).

Sendo assim, o dualismo fé e dúvida são vividos, às vezes,


simultaneamente. E como podemos perceber, é uma companheira da
natureza humana, quando se dedica a um relacionamento com o Ser não
humano.
Esse dualismo humano se faz presente ao longo das Escrituras
Sagradas. O salmista Davi, chamado de “o homem segundo o coração
de Deus”, viveu momentos de certezas e também de incertezas.
No Salmo 22.1, ele descreveu a angústia por sentir que Deus o
desamparara: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. E nos
versículos seguintes, expressou sua angústia com um desabafo.
Entretanto, mesmo não podendo afirmar que a ordem cronológica era
essa, no Salmo 23, escreveu uma das mais conhecidas declarações de fé
contidas na Bíblia, onde começou dizendo: “O Senhor é o meu pastor e
nada me faltará”.
Um pouco mais adiante, no versículo 4, declarou sua fé: “Ainda
que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal nenhum,
porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam”. Jesus
também demonstrou forte sensação de desamparo na cruz, ao expressar
as mesmas palavras, conforme escrito em Mateus 27.46: “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?”.

91
Desta forma, podemos entender que se os personagens da Bíblia
passaram por momentos de oscilação em sua fé, por que estariam os
cristãos do tempo de hoje impedidos de manifestar os seus sentimentos,
sendo estes naturais e verdadeiros? A sua desqualificação é uma falsa
crença que só traz mais sofrimento para quem por ela passa e maior
probabilidade de demagogia e hipocrisia para quem a desqualifica.
A afirmação bíblica que corrobora este assunto é a de
Deuteronômio 29.29, que diz: “As coisas reveladas pertencem aos
homens, mas as não reveladas pertencem a Deus”. Mas e se surgirem
perguntas e curiosidades naturais quanto às coisas não reveladas?
Devemos negá-las, ou buscar respostas até chegar a um momento em
que a única opção é aceitar ou conviver pacificamente com a dúvida?
Um dos alunos do curso, ao ouvir a citação sobre a afirmação de
Davi no Salmo 22.1, disse que estava passando por isso. Durante uma
semana fiquei pensando o que dizer para ele. E a palavra que me veio à
mente como resposta para ele foi a seguinte interrogação: “Quem mais
vai sentir e sofrer o distanciamento em relação a Deus? Não será aquele
que mais deseja estar perto dele?”.

92
2.4.2 Sobre a Raiva
Ao terminar uma aula onde o assunto era exatamente a raiva, uma
senhora expressou o seguinte: “Pastor eu acho que crente não deveria
sentir raiva”. O cristianismo é uma religião que ensina e recomenda a
“amar ao próximo como a ti mesmo”. Minha resposta para ela é que
crente não deveria sentir nada de ruim. Inclusive dor de dente. É sempre
bom lembrar que conversão não tira a humanidade.

Como se sentir à vontade, para reconhecer e manifestar o


sentimento da raiva que parece sempre ser visto como um pecado e uma
agressividade? Este pode ser então um dos motivos de o cristianismo ser
uma das religiões mais culpabilizantes do mundo, conforme
evidenciado em Culpa, Neurose e Pecado (1982).

93
Uma jovem senhora, aluna de nosso curso, nos relatou a situação
em que estava vivendo. Disse ter sido humilhada por sua chefe ao ser
acusada de maus tratos às crianças com a qual trabalhava. Quando
ocorreu o fato ela respondeu que não agia assim, pois era uma boa
funcionária dedicada às crianças, pelas quais tinha bastante carinho.
Não convenceu a sua chefe. Devido a esta situação passou a tomar
remédios controlados devido a uma forte depressão. Dizia ainda que já
havia perdoado sua chefe que lhe ofendera.
Mas não era isso que demonstrava pelas próprias palavras. Eram
palavras de insatisfação contidas por uma não permissão interna de
sentir e expressar a raiva autêntica que sentia. Ela não admitia seus
sentimentos, repetindo insistentemente que já havia perdoado.
O seu tom de voz não era calmo, mas contido, ou seja, reprimido.
Ela não conseguiu dar continuidade ao curso devido à forte depressão, a
qual a mantinha de licença do serviço, não se encontrando em condições
nem mesmo para sair de casa.
Com base na Teoria da Análise Transacional, podemos entender
que ela tinha um Estado de Eu Pai Crítico Negativo muito forte. Aquela
instância psíquica que proíbe as expressões naturais, levando a pessoa a
agir com a Criança Submissa Negativa, reprimindo o que sente com
medo de ser punida (BARRETO, 1983).
Podemos deduzir que uma pessoa que tem em seu Estado de Eu Pai
um mandamento do tipo “amar até os inimigos” (Mateus 5.44), pode
levar esse ensinamento como uma exigência absoluta, se cobrando e se
forçando a cumprir tal regra, sem qualquer reflexão ou questionamento.

94
Estabelecendo consigo mesma uma guerra mental, em que um lado
se sente obrigado a cumprir o mandamento, e o outro, sente uma
emoção natural da Criança Livre, no caso a raiva.
É o que Barreto (Ibid.) denominou de “diálogo interno”. Uma das
orações ou pedidos que mais faço a Deus é que me ensine a amar mais
as pessoas. Pode ter a certeza de que se faço este pedido é porque eu
reconheço que não tenho tanto amor quanto creio que deveria ter.
Uma cliente de consultório falou de um problema que tivera com
uma determinada senhora de sua igreja, mas que já a teria perdoado.
Porém, ficou a sessão inteira comentando acerca do tal problema com
aquela senhora. Em alguns momentos ela dizia “mas eu já liberei
perdão”.
Então perguntei, apenas para confirmar sua afirmação, se sempre
em suas orações liberava perdão para a ofensora, ao que ela respondeu:
“Nas minhas orações eu sempre libero perdão para ela”. “Em todas as
suas orações?” Indaguei. “Sim”, respondeu novamente. Então eu disse:
“Ora, se em todas as orações você precisa liberar perdão para ela...”.
Com isso ela exclamou: “Então será que eu não liberei perdão!?”.
Em outra ocasião em que ministrava aula sobre a raiva, coloquei
em uma das extremidades do quadro a palavra “AGRESSIVIDADE” e
na outra “PASSIVIDADE”. Ao terminar de escrevê-las, uma senhora de
aproximadamente cinquenta anos, que sempre ia ao curso amparada por
alguém, em virtude de forte depressão e de outras enfermidades,
afirmou com bastante convicção: “Pastor, antes de eu me converter eu
era assim!”, apontando para a palavra ‘AGRESSIVIDADE”, “depois
que eu me converti eu fiquei assim”, apontando desta vez para a palavra
“PASSIVIDADE”.

95
Então fiz a pergunta: “Como era sua saúde antes de se converter?
“Perfeita”, disse ela. É bom lembrar o que sempre tenho dito, que todo e
qualquer sentimento, ou pensamento significativo represado, fará todo o
esforço para se manifestar.
E que potencialidades reprimidas atuam contra; tornando-se uma
auto-agressividade. Na dinâmica da psique o que ocorre é que a Criança
Natural sente a raiva e o Pai Crítico Negativo diz que não se pode sentir.
E vai acumulando, acumulando, e... “A esperança que se adia faz
adoecer o coração...” (Prov. 13:12).
Em uma das aulas, abordando esse tema, uma aluna relatou que seu
desejo era ter um dia de fúria, como o do filme com este título.
Entretanto, esta fúria estava acumulada dentro dela há anos. De modo
geral, quando abordo tal assunto no curso, ou em uma de minhas
palestras, cito de forma proposital a primeira parte do versículo bíblico
de Efésios 4.26, sem completá-lo, já esperando que os ouvintes o façam.
A primeira parte do versículo diz: “Irai-vos [...]”, e continua com o
“[...] mas não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira”.
Geralmente as pessoas o completam automaticamente. Pergunto, sobre
as duas afirmações, qual é a que pronunciam mais fortemente e
respondem que é a segunda, ou seja, o “[...] não pequeis”.
Parecem estabelecer uma forte relação entre a ira e o pecado,
optando, então, por não senti-la, ou melhor, escondê-la, o que na
verdade é difícil, já que se sente. Freud disse que caso a pessoa reprima
suas emoções e procure agir como se o sexo e a ira não existissem
acabará se tornando neurótica (MAY, 1987).

96
Na interpretação desse versículo, percebemos o uso inadequado
para uma proibição do sentimento natural da raiva. Contudo, ele
continua a dizer: “Irai-vos [...]”; por isso, podemos concluir que a
própria Bíblia dá permissão para sentirmos raiva, que é natural; parece
que o problema é o que se faz com ela. Sobre a raiva, Wright (2000),
argumentou: “O problema não está na emoção em si da raiva.
O problema verdadeiro está na má administração e na má
interpretação da emoção” (p.22). Em Tiago 1.19, a Palavra diz o
seguinte: “Todo homem seja tardio para falar, tardio para se irar e
pronto para ouvir”. “Tardio para se irar” não significa nunca se irar.
Usando, novamente a Análise Transacional, podemos entender que
a raiva, um sentimento da Criança Livre ou Natural, quando bloqueada,
pode passar para a Criança Adaptada, aquela parte da psique que
expressa emoções de maneira não autêntica, mas conforme os preceitos
dos outros, com emoções chamadas de falsas ou não naturais
(BARRETO, 1983).

97
Sendo assim, a falsa crença de que não se pode sentir ou expressar
a raiva que se sente, a qual não é apagada, mas continua viva dentro da
pessoa, acaba por se transformar em emoções não saudáveis, como o
ódio, ressentimentos e mágoas.
WRIGHT (2000) afirma que “a raiva mal resolvida não permanece
igual. Geralmente transforma-se em ressentimento, aquela sensação de
má vontade em relação à outra pessoa. Quase sempre é acompanhada do
desejo de fazer o outro pagar” (p.58). Dedicarei a esse assunto produção
específica posteriormente.
No capítulo 3, veremos os resultados da somatização como
consequência da má interpretação e mau uso deste sentimento natural
que é a raiva.
Mas lembre-se, caso tenha uma mágoa não resolvida contra
alguém, você acabará de uma forma ou de outra se vingando dela,
mesmo que seja de uma forma sutil e inconsciente.

98
2.4.3 Sobre a Tristeza
A letra de um cântico que tenho citado nos cursos e palestras, que
não condiz com as verdades bíblicas e teológicas, portanto, se constitui
mandamentos puramente humanos, uma parte diz o seguinte em relação
ao crente: “Está sempre sorrindo mesmo quando não dá [...]”.
Alguns pregadores usam o púlpito para transmitir uma mensagem
que comumente se vê repetida entre os crentes. Ela traz a falsa idéia de
que depois que a pessoa se converte ao Evangelho ela vai ser uma
pessoa feliz. Ser feliz é algo que todo ser humano deseja. Entretanto,
essa não é a mensagem principal do Evangelho (WIERSBE, 1989).

99
Observemos as palavras proferidas por Jesus: “[...] No mundo
tereis aflições [...]” (João 16.33). Não estou com isso fazendo apologia à
outra falsa crença que diz respeito à postura masoquista do
sofrimento religioso.
Mas também é preciso entender que a tristeza faz parte das
emoções autênticas, segundo o nosso referencial teórico adotado, a
Análise Transacional. Ela é uma das emoções da Criança Livre ou
Natural (TAVARES & FRUTUOSO, 1985).
É importante ressaltar, porém, que se a pessoa não pode expressar
tristeza autêntica, acumulará dentro de si uma energia bastante forte
capaz de se manifestar, ou de uma forma ou de outra. De modo geral há
um emudecimento, ou uma falsa alegria (emoção substituta), como uma
tentativa de que ninguém a perceba com tal emoção proibida.
Uma jovem senhora, casada com pastor, disse-me em particular
que depois do culto precisa “rir prá cara dos crentes”. Ela estava com
alguns sintomas de depressão, e sentia que por sua posição de mulher
casada com pastor não poderia viver este momento de tristeza.
Em virtude de ministrar em várias igrejas, comumente ouço crentes
falando de sua angústia por se sentirem prisioneiros de suas emoções
autênticas.
Têm medo de que descubram que não são tão felizes como
demonstram ser. Tenho presenciado algo que chamo de “a ditadura da
felicidade”.

100
Parece haver uma obrigatoriedade para estar feliz o tempo todo. É
comum vermos dirigentes de cultos perguntarem ao público na igreja
quantos ali estão felizes. Geralmente a resposta é um “sim”
coletivo. Infelizmente, posso afirmar que muitos não estão expressando
a verdade.
É estranho, pois é a expressão de um povo que prega o
conhecimento da verdade como forma de libertação (João 14:6).
Os mandamentos de homens, em algumas circunstâncias,
favorecem a mentira, enquanto que o evangelho promove a verdade.
Faça sua escolha.
Participei do velório da mãe de uma amiga, que há menos de dois
anos perdera sua filha de dezenove anos de idade. Ela estava chorando a
morte de sua mãe, quando chegou um pastor, muito próximo da família,
e disse que não chorasse, porque já havia passado por coisa pior.
Essas proibições estão a todo instante sendo enunciadas em
qualquer situação onde se espera que a pessoa seja forte para suportar
uma tristeza, em função de uma perda. Uma jovem de dezesseis anos
participava conosco de um grupo de saúde emocional, quando outra
componente contou sua história, e todos fomos compreensivos e
solidários a ela dando-lhe um abraço, mesmo sem palavras.
A única a não abraçá-la foi essa menina de dezesseis anos. Ela
ficou com os braços cruzados, trancada em suas emoções. Depois disse
para a colega que a levou ao grupo que o mesmo estava lhe fazendo
mal. Fui conversar e percebi ser ela uma pessoa que dificilmente
expressava emoções autênticas ou espontâneas.

101
Depois de algum tempo ouvindo-a, perguntei se por acaso se
lembrava de ter tido alguma emoção reprimida quando criança, como o
choro, por exemplo. Sua resposta foi imediata: “Quando eu mais quis

chorar, eu não pude. Eu tinha apenas sete anos de idade e estava no


velório do meu pai e minha mãe disse que eu não podia chorar, porque
crente tem que ser forte”.
Podemos afirmar, com base na Análise Transacional, que sua mãe
usando um Pai Crítico NOK proibiu sua filha de expressar sua Criança
Natural.
Entretanto, o choro reprimido permanece oculto clamando por se
manifestar. A proibição do choro constitui claramente uma falsa crença;
e a Bíblia cita que o próprio Jesus chorou ao estar diante da sepultura do
seu amigo Lázaro (João 11.35).
Logo, se Jesus chorava, qualquer crente também tem o mesmo
direito. E pode chorar mais ainda porque você não é Jesus. És um ser
humano.
Durante o velório de um tio de minha mãe, seu filho mais velho,
um diácono da igreja, discursou parecendo uma fortaleza que não se
abalava por tal perda.
Todavia, no momento do sepultamento soltou o choro reprimido,
tal como uma explosão, manifesta com um forte desejo de se jogar ao
caixão, precisando ser contido. O fato é que não teve forças nem para se
manter em pé sozinho.

102
É comum ouvirmos a expressão “homem não chora”. Dependendo
de quão intenso fora esse enunciado, e, em se tratando de uma pessoa
que se sente sem permissão, ainda por ser um crente, temos então
uma confirmação de algo que já faz parte de sua personalidade.
É o que também se chama em Análise Transacional de Os
Impulsores. Impulsores são estímulos de aparência positiva enviados ao
Estado de Eu Pai do filho pelo Estado de Eu Pai NOK do pai ou da mãe
que o mantém em um Estado de Eu ok condicional, que caso obedeça às
ordens se sentirá bem, pelo menos assim se pretende sentir.
Os Impulsores são cinco; e são os seguintes: Seja Perfeito, Seja
Forte, Seja Apressado, Seja Esforçado e Agrade Sempre (TAVARES &
FRUTUOSO, 1985). No caso em questão, é perceptível o Seja forte.
Compareci a um velório de um jovem, filho de pastor, que morrera
em uma situação não muito bem vista pela sociedade, especialmente no
meio cristão evangélico. Pensava encontrar pais e irmãos tristes, porém,
fiquei surpreso pelas atitudes da família, a qual demonstrava confortar
os outros, dizendo que estava tudo bem.
Não via choro. Por mais consolados que pudessem estar, saí de lá
com a sensação de que não possuíam permissão interna para chorar,
uma vez que precisavam se apresentar fortes perante os outros.
Eclesiastes 3.4, nos diz que há tempo de chorar e até mesmo de
prantear. Entendo como pranto um choro intenso, sendo o mesmo uma
expressão muito forte de dor profunda da alma. Quando essa dor intensa
não encontra permissão e acolhimento, pode permanecer alojada dentro
do ser, atingindo, possivelmente, algum órgão do corpo, pois “A
esperança que se adia faz adoecer o coração [...]” (Provérbios 13.12).

103
Fui chamado por minha mãe para atender uma família, bastante
querida, que acabara de receber a notícia da morte de um dos jovens,
que tinha apenas dezenove anos.
Eram vários os irmãos, primos, tios e a matriarca, uma senhora
bastante carinhosa e amiga. Ao chegar ao recinto, deparei-me com
pessoas em desespero, se jogando no chão e gritando. Era a maneira
deles se expressarem. Procurei por um dos irmãos do jovem falecido.
Ele estava junto de sua noiva sentado em uma cama, parecendo estar
anestesiado.
Criei uma situação de permissão e acolhimento, para que aquele
rapaz pudesse chorar suas lágrimas reprimidas, pois sabia que seria
necessário.
Percebendo sua dificuldade, falei de maneira bastante expressiva
que ele jamais veria seu irmão novamente e, portanto, teria o direito de
soltar o choro reprimido. Logo em seguida, ele começou a chorar; e
pude aplicar a permissão e o acolhimento. Depois o juntei aos seus para
que juntos pudessem expressar toda a dor, ou seja, prantear.
Em todos esses anos, foi a única vez que agi daquela maneira,
expressando-me de forma bastante enfática, pois entendi ser necessário
naquele momento. Em uma linguagem da Análise Transacional, eu usei
o meu Pai Nutritivo Positivo, ao lhe dar a permissão e o Pai Crítico
Positivo ao usar de potência na voz e proteção incentivando-o a soltar a
sua Criança Natural.
PERMISSÃO, POTÊNCIA E PROTEÇÃO são os três “Ps” deste
referencial teórico. Uma professora, a quem tenho muito apreço,
relatou-me a seguinte história:

104
Um pastor foi participar de uma jornada de crescimento e cura
interior, conduzida por outro que também trabalhava com a psicologia.
O pastor participante era homem de aparência rígida, não
parecendo aberto às emoções autênticas, em especial as consideradas
negativas, como o choro e a raiva. Em determinada ocasião, ele
reviveu o momento que perdera sua mãe.
Tinha apenas oito anos de idade. O condutor do grupo lhe
perguntou o que ele estava sentindo e a resposta foi uma grande vontade
de chorar. “Então chore”, disse o pastor que liderava o grupo. “Não, eu
não posso chorar!”. “Por que você quer chorar?” “Porque minha mãe
morreu!”. “E o que impede você de chorar?” “Meu pai. Ele disse que
homem não pode chorar. Que homem tem que ser forte!”. Essa
resistência durou alguns minutos.
O líder então teve uma brilhante idéia. Perguntou se ele se
lembrava de algum hino cantado no sepultamento de sua mãe. O mesmo
disse qual era o hino. Como todos ali eram evangélicos, e já que o clima
estava propício, os demais, orientados, começaram a cantar aquele hino.
O que se seguiu foi uma explosão de choro, como se aquele
homem rígido se transformasse em uma criança de oito anos de idade
diante do sepultamento de sua mãe; e com todos os “juros” após tantos
anos. O líder usou PERMISSÃO, POTÊNCIA e PROTEÇÃO; os três
“Ps”.

105
2.4.4 Sobre a Alegria
Se por um lado parece que a tristeza autêntica não tem muita
permissão no contexto cristão evangélico, é fácil observar,
paradoxalmente, que a alegria autêntica também parece encontrar certa
oposição. Segundo a Análise Transacional, tanto a alegria como a
tristeza são emoções autênticas da Criança Natural (MEININGER,
1974).
Em virtude de estar trabalhando com o conceito dos mandamentos
humanos presentes no contexto cristão evangélico, é conveniente
esclarecer que tal religiosidade está baseada em posturas do Estado de
Eu Pai e da Criança Adaptada, principalmente a Submissa, já que se
costuma anular não só a ação da Criança Natural como também o
Estado de Eu Adulto.

106
Ou seja, costuma-se impedir as emoções naturais e autênticas e do
raciocínio lógico, puro e coerente. Simplificando, a religiosidade de
muitos se pauta em ordens e obediência cega, sem qualquer
questionamento ou oposição.
Na opinião de Meininger (Ibid.) “a Criança Adaptada raramente
desfruta a vida tanto quanto a Criança Natural” (p.26).
Na maioria dos cultos, podemos perceber que há sugestão para que
os membros expressem sua alegria. Mas preste atenção para ver se as
pessoas estão expressando uma verdadeira alegria. Entretanto, como
manifestar a alegria da Criança Natural, se a permissão para expressá-la
não é valorizada?
De acordo com Barreto (1983) “[...] praticamente todos os
indivíduos em diferentes países, vivendo em comunidades que
abraçaram a Reforma protestante, apresentam Mandatos como ‘Não
desfrutes’ [...]” (p.126).
O Mandato, também um conceito da Análise Transacional, se
refere às proibições entranhadas no indivíduo, como resultantes mais do
que a criança observa de comportamentos dos pais e menos do que os
pais dizem. (DEL CASALE, 1986).
Em uma de minhas aulas falava sobre a alegria espontânea de uma
pessoa se expressando através de sua Criança Livre, quando o Brasil,
por exemplo, faz um gol na Copa, afirmando que qualquer um vibra.
Então, uma jovem de apenas vinte e um anos de idade, muito quieta e
pouco expressiva, balançou a cabeça dizendo que não agia dessa forma.

107
Em seguida, passou a falar sobre o período da infância em que seu
pai a levava para visitar as primas e sempre a avisava para tomar
cuidado e procurar dar testemunho, pois, ao contrário delas, era uma
menina evangélica. Em sua mente, e possivelmente também na do pai,
não deveria brincar com as primas, mantendo-se séria, quieta no canto,
enquanto elas se divertiam.
Na verdade, ela estava dando um tristemunho. Aquela fora uma
clara proibição de expressão de sua Criança Natural, ao optar por ficar
quieta e agir passivamente pela Criança Adaptada Submissa, enquanto
as primas soltaram a Criança Natural.
Da mesma forma, o comportamento sério e rígido por parte dos
adultos em relação às crianças nos cultos evangélicos, retrata uma falsa
crença de uma proibição para a alegria. É uma confirmação das três
funções do cérebro, que segundo Penfield são: gravar, recordar e
reviver. (HARRIS, 1977).
Em boa parte das igrejas evangélicas mais tradicionais, a expressão
da alegria não é incentivada. E até o ato de bater palmas durante os
cânticos sofre retaliação. Argumentam que esta prática é própria dos
pentecostais, ou neopentecostais; por esse motivo não deveria ser
incentivada nas igrejas tradicionais.
Ao conversar com um rapaz criado numa igreja evangélica nos
moldes tradicionais, argumentei sobre a naturalidade das palmas,
inclusive na adoração, respaldando com versículos bíblicos. Contudo,
retrucou dizendo que não interessava o que a Bíblia dizia; a questão era
que sua denominação nunca havia batido palmas, e não seria agora que
isso deveria acontecer.

108
Ao dizer que não importava o que dizia a Palavra de Deus a
respeito do assunto, e sim o que a sua denominação e a sua igreja local
afirmavam, estava enfatizando a sua falsa crença, não respeitando a
superioridade da Bíblia, como o Livro dos livros. Percebemos nesse
caso, um forte Pai Crítico NOK em combinação com uma Criança
Adaptada Submissa NOK. Como enfatizou Barreto (1983): “Onde está
o Pai está a Criança”.
O salmista Davi, um dos grandes reis de Israel, bastante enfatizado
no meio evangélico, parece ter sido uma pessoa expressiva quanto aos
seus sentimentos e emoções. O segundo livro de Samuel, capítulo 6,
narra a história da devolução da arca do concerto de Deus para com seu
povo à cidade de Jerusalém; o que representava uma grande vitória para
todos.
Por esse motivo, Davi dançou alegremente em adoração a Deus,
porém Mical, sua esposa, fazendo uso de seu Pai Crítico, o repreendeu.
Davi, por sua vez, lhe respondeu: “[...] foi perante o Senhor que dancei;
e perante ele ainda hei de dançar” (v.21).
Esse comportamento de Mical, embora antigo, é adotado por
alguns crentes que, não se sentindo com permissão para tal
procedimento, criticam aqueles que agem com liberdade de expressão
na liturgia. Muitos tendem a bloquear o Estado de Criança Livre em
cultos evangélicos, a fim de promover a substituição pela Criança
Adaptada Submissa; aquela responsável pelas emoções substitutas, em
geral, passivas e pouco saudáveis.

109
Uma de nossas alunas, criada no meio evangélico mais tradicional,
relatou que ao participar da ceia, um momento de introspecção, e por
isso vivenciado por alguns com certo ar de tristeza, e era assim que ela
entendia, e sem se sentir triste, expressava tristeza.
Contudo, não entendia o porquê dessa postura por parte dos
demais. Contou que ficou confusa, pois ao participar da ceia em outra
igreja, se surpreendeu, pois lá, sem perder seu conteúdo, era um
momento de agradável confraternização. Em Mello Filho (1983)
encontramos a seguinte colocação: “A Páscoa judaica, baseada em
Êxodo 12 [...] provê a chave indispensável para que se compreenda a
refeição e também o significado da Ceia do Senhor na Igreja Primitiva”
(p.278).
Conforme o texto acima citado, a Páscoa no início era uma
comemoração pela libertação do povo hebreu do cativeiro egípcio; logo,
uma festa. Você consegue imaginar uma festa sem movimento? No
conhecido romance O Nome da Rosa, Eco (1983) narra fatos ocorridos
em um mosteiro cristão na Itália do século XIV, período medieval. Em
algumas páginas relata o debate sobre o riso. Vejamos algumas palavras
do opositor ao riso:
As comédias eram escritas pelos pagãos para levar os
espectadores ao riso, e nisso faziam mal. Jesus Nosso Senhor
nunca contou comédias nem fábulas, mas apenas límpidas
parábolas que alegoricamente nos instruem sobre como alcançar
o paraíso, e assim seja. O riso sacode o corpo, deforma as linhas
do rosto, torna o homem semelhante ao macaco (pp.157,158).

110
Nas palavras de Nietzsche (2008), os sacerdotes deveriam tornar o
homem infeliz e “essa foi, desde sempre, a lógica do sacerdote [...]”
(p.103). Acerca do riso, Dostoievski afirmou que: “Podemos reconhecer
o caráter de uma pessoa muito melhor por seu riso do que por um
monótono exame psicológico” (MAY, 1987, p.92).
E o próprio May (Ibid.) corroborou ao dizer que: “o riso verdadeiro
é a expressão da saúde mental, um convite para a amabilidade, uma
prova verdadeira da atitude de quem está de braços abertos para a vida”
(p.92).
A concepção de Jesus Cristo não rir, e estar sempre com uma
fisionomia nostálgica, é evidenciada pela tradicional pintura que nos é
transmitida de Seu rosto. Na realidade, a maioria das pessoas concebe o
rosto de Cristo como um rosto triste.
Mas isso parece transmitir a idéia de que a nossa postura também
deva ser de tristeza, contrição e sofrimento. E a alegria, portanto, seria
uma atitude não coerente com a fé cristã. Um cântico bastante
conhecido no meio evangélico tem esta letra: “Não creio, não creio num
Cristo vencido, cheio de amargura, semblante de dor. Eu creio num
Cristo de rosto alegre, eu creio num Cristo que é vencedor”.
A imagem do sofrimento parece cooperar para uma não permissão
da alegria. Alguns têm a idéia de que precisam sofrer por amor a Cristo,
mesmo se naturalmente esse sofrimento não vier. E caso venha, fazem o
possível, inconscientemente, é claro, para não se livrarem dele.

111
Em algumas circunstâncias a opção pelo sofrimento é
aparentemente bem-vinda, como foi o caso de um dos mártires do
cristianismo, conforme relatado por Hamman (1980).
Este relata a carta de Inácio, que preso e condenado por ser cristão,
percebendo que alguns cristãos romanos influentes estavam tentando
libertá-lo, escreveu:
Rogo-vos: não tenhais para comigo uma benevolência
inoportuna! Deixai-me ser pasto das feras, pelas quais chegarei
a Deus. Sou o trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para
tornar-me o pão puro de Cristo. Acariciarei, antes, as feras, para
que venham a ser meu túmulo e nada rejeitem do meu corpo.
Oxalá chegue eu às feras que me estão preparadas, oro para
encontrá-las ávidas. Se for necessário, agradá-las-ei para que me
devorem depressa e não façam como diante de certos cristãos:
atemorizadas, não, ousaram tocá-las. Se portanto não me
quiserem espontaneamente, forçá-las-ei pela violência. Tende
piedade de mim: conheço bem o que me é preferível É agora
que começo a ser verdadeiro discípulo. Que nenhuma coisa,
visível ou invisível, me impeça de obter a posse de Jesus Cristo!
Fogo, cruz, encontro com as feras, dilaceramentos,
esquartejamentos, deslocamentos de ossos, mutilações dos
membros, trituração de todo o corpo, os mais perversos
suplícios do diabo caiam sobre mim, contanto que alcance a
posse de Jesus Cristo. Nada me valerão as delícias do mundo e
os reinos deste século. Melhor é para mim morrer por Jesus
Cristo do que reinar até as extremidades da terra. O que procuro
é aquele que morreu e ressuscitou por nós. Este é o momento do
meu nascimento! Por favor, irmãos, não me impeçais de viver,
não queirais que eu morra!

112
Não ofereçais ao mundo quem deseja ser de Deus, não o
enganeis com a fascinação da matéria! Deixai-me receber a luz
imaculada, porque só então serei realmente homem! Permiti-me
que imite a paixão do meu Deus! Se alguém o possui em si
mesmo compreenda o que desejo e compadeça-se de mim,
considerando o que me impulsiona. O príncipe deste mundo
quer arrebatar-me e corromper os meus sentimentos em relação
a Deus. Ninguém dos presentes queira ajudá-lo! Passai para o
meu lado, isto é, para o lado de Deus! Não sejais dos que
invocam Jesus Cristo mas desejam o mundo! Não habite entre
vós a inveja! Se uma vez entre vós eu vier a suplicar (a vossa
intervenção para livrar-me da morte), não escuteis; ouvi, antes o
que agora vos escrevo, pois é na plenitude da vida que exprimo
meu desejo ardente de morrer [...] (pp.22,23).

Uma jovem mulher casada há onze anos estava decidida a se


separar de seu marido, por se sentir abandonada. Como havia se curado
de um câncer, não estava mais se importando caso seu casamento se
desfizesse, pois concebia ser sua cura mais importante do que sua
situação conjugal.
Segundo ela, seu marido esteve fora de casa alguns dias
acompanhando os filhos do primeiro casamento; o que a fez se sentir
rejeitada. Percebeu que esse afastamento aconteceu pelo fato de ele
querer que ela agisse como antes de sua conversão, o que afirmou não
ser mais possível, uma vez que a mulher de antes bebia, dançava e era
extrovertida.

113
Depois que se tornou evangélica mudou seu procedimento,
inclusive deixando de sair com ele em passeios e divertimentos que
antes fazia, como, por exemplo, ir à praia.
Uma pessoa extrovertida, que se diverte e sente prazer em sair,
seguindo o referencial da Análise Transacional, é uma pessoa que faz
uso de sua Criança Livre ou Natural, o que pode contribuir para ser mais
atraente. Uma falsa crença estava tirando sua alegria, seu prazer de viver
e curtir a vida com o seu esposo, chegando a ponto de quase se separar.
Em oposição aos mandamentos de homens, ainda em referência a
Davi, temos em sua reconhecida oração do Salmo 51 versículo 12, o
seguinte: “Restitui-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um
espírito voluntário”.
Semelhantemente no Novo Testamento, o apóstolo Paulo escreve
aos Filipenses no capítulo 4 versículo 4, alertando-os a expressar sua
alegria: “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos”.

114
2.4.5 Sobre o Prazer
Curta a vida, pois a vida é curta!

Tenho feito uma experiência no curso pedindo aos alunos para que
fechem os olhos enquanto escrevo no quadro uma palavra, e, ao abri-los
devem falar o que primeiro vem à mente. A palavra é PRAZER. A
maioria responde que pensou em sexo e em pecado.
Para aqueles que foram criados no Evangelho, em ambiente rígido,
lembram-se das inúmeras vezes em que a palavra “prazer” era
pronunciada quase sempre em tom proibitivo, como algo terrivelmente
errado e pecaminoso. Tenho em minha memória a expressão “OS

115
PRAZERES DA CARNE!”, sendo sempre recomendada a ser
evitada, por ser contrária à vida cristã conforme os princípios bíblicos.
Essas falsas afirmações sendo permanentemente ouvidas desde a
infância, momento da formação da personalidade, podem provocar nas
crianças um conceito falso, inadequado, e uma tendência a fugir do
prazer. De igual modo, pode causar uma angústia profunda entre o seu
desejo e o medo de sofrer a punição divina.
Não esqueçamos que isso tem uma intenção de controlar os
impulsos sexuais dos jovens e de pessoas não casadas. Quero deixar
claro que não sou a favor de sexo fora do casamento.
Imaginemos a seguinte situação: uma mãe cheia de proibições e
neuroses sexuais vê sua pequenina filha com cinco anos ou menos se
tocando na genitália, se a mãe com um tom de agressividade disser:
“tira a mão daí, que isso é feio! Papai do Céu vai castigar!”.
Dependendo da intensidade da fala e da fragilidade emocional da
criança no momento, não duvide que essa criança carregue tais palavras
gravadas em sua mente para o resto de sua vida, ou, em seu Estado de
Eu Pai Crítico Negativo.
Talvez, até mesmo depois de casada, no momento de intimidade
sexual, continue a ouvir as gravações como se fossem proibições em sua
estrutura de personalidade. Pela teoria da Análise Transacional, a fala da
mãe ocorre pela expressão de seu Estado de Eu Pai Crítico Negativo. E
a menina, que ao estar se tocando provavelmente estivesse sentindo
certo prazer (vale a pena lembrar que não sexual como na mente do
adulto), estava em seu Estado de Eu Criança Livre.

116
Nessa idade, a criança é mais dotada de sensações e movimentos,
ou seja, ela é bastante expressiva na linguagem corporal. Tais sensações
nunca abandonarão o ser humano.
Entretanto, passamos a administrá-las, para melhor convivência
social. Porém, tal administração pode levar à repressão da mesma,
trazendo prejuízo ao convívio social.
O livro de Cântico dos Cânticos de Salomão, ou Cantares de
Salomão, é uma objeção aqueles que enxergam o sexo apenas para
procriação e excluem o prazer. Não vai aqui nenhum incentivo ao sexo
livre, descomprometido e fora do casamento.
Cantares é um grande incentivo ao prazer entre cônjuges que se
amam, haja vista que fala do amor e do prazer do sexo entre um casal
que se trata de esposo e esposa. No capítulo primeiro versículo 2, a
esposa pede os beijos de seu amado.
Um pouco mais adiante no capítulo 4 versículo 5, o esposo exalta
os belos seios de sua amada. Em Eclesiastes 9.9 está escrito o seguinte:
“Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz,
os quais Deus te deu debaixo do sol; porque esta é a tua porção nesta
vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol”.
Vejamos o depoimento de uma aluna, em um culto de domingo
pela manhã em sua igreja, sobre o resultado do “Curso Saúde
Emocional e Vida Cristã” em sua vida. O mesmo depoimento foi por ela
postado em um dos meus perfis na rede social:
Pedi a Deus que restaurasse meu casamento e o meu prazer com
meu marido, e Deus ouviu a minha oração.

117
Ele mandou ajuda para mim [...]. O bom também foi o que Deus
fez com a minha vida sexual: eu voltei a ter prazer com meu
marido e no dia que eu consegui chegar ao orgasmo eu chorei
muito e agradeci a Deus porque ele cuida de mim.

O meu marido sempre me realizou e eu sou muito feliz com ele;


e não sei ficar sem ele. [...] a Deus toda honra e toda glória [...].

Não mais quanto à questão sexual, mas ainda sobre o prazer, é a


situação de um jovem, de apenas vinte e um anos de idade, criado em
uma igreja evangélica, que mostrava dificuldade em sentir alegria e
bem-estar. Dizia estar numa constante procura pela felicidade, mas que
esta parecia sempre se distanciar dele.
Em terapia, relatou que quando criança tinha alguns prazeres, como
ler sobre esporte. Sempre que seu pai o via, chamava-lhe à atenção
dizendo que deveria se interessar por coisas mais importantes. Do
mesmo modo, podemos fazer a análise de que seu pai usou seu Estado
de Eu Pai Crítico Negativo proibindo a expressão de sua Criança Livre.
Apesar de estar apenas com vinte e um anos de idade, demonstrava
dificuldades em curtir a vida como os outros de sua faixa etária. Aqui
cabe lembrar a história da jovem de também vinte e um anos,
mencionada anteriormente, que ainda menina, tinha de dar bom
testemunho como cristã, não brincando com as outras primas; logo, não
se permitindo ter prazer com o divertimento em sua infância.
Ainda em Eclesiastes capítulo 11 versículos 9 e 10, encontramos as
seguintes palavras do pregador:

118
Alegra-te, jovem, na tua juventude, e recreie-se o teu coração
nos dias da tua mocidade; anda pelos caminhos que satisfazem
ao teu coração e agradam aos teus olhos; sabe, porém, que de
todas estas coisas Deus te pedirá contas. Afasta, pois do teu
coração o desgosto e remove da tua carne a dor, porque a
juventude e a primavera da vida são vaidade.

Neste versículo se observa um incentivo a gozar a vida e seus


prazeres, mas uma prudência quanto aos seus exageros. Mas em
hipótese alguma uma proibição.
Uma mulher de trinta e cinco anos de idade, solteira, há vinte anos
na igreja evangélica, após fazer o “Curso Saúde Emocional e Vida
Cristã”, resolveu ingressar na terapia. Já no final do tratamento disse
que antes não se permitia algum prazer como, por exemplo, descansar
num período de feriado longo ou durante suas férias. Sentia-se culpada,
pois tinha de estar evangelizando.
Algo que lhe ajudou foi saber que em um período de carnaval seus
pastores haviam ido para o sítio da igreja. Então entendeu que se os
pastores podiam se divertir e descansar, ela também tinha direito de
usufruir os prazeres da vida. Esse foi o último dia de sua terapia.
Amém!
Em uma das aulas ouvi a seguinte experiência: Um jovem pastor
perguntou para um menino: “Então como foram suas férias?” Ele
respondeu o seguinte: “Poxa, pastor, férias de crente é muito chata!”.
“Por quê?” indagou o pastor. “Porque quando a gente volta das férias os
colegas sempre falam que foram à praia com seus pais e a gente crente
tem que vir prá igreja”.

119
O pastor decidiu então, que no mês de janeiro a igreja não mais abriria
aos domingos pela manhã. Era uma decisão favorável ao divertimento e
aos “prazeres da carne”. Eu pergunto: Em que esta atitude compromete
a fé de alguém? Saibam que essa igreja é uma das que mais atua com
jovens no Estado do Rio de Janeiro.
Para lá viajam caravanas de jovens de várias cidades deste Estado.
O pastor rompeu com esse paradigma. Por favor, não entenda que estou
sugerindo que sua igreja feche aos domingos pela manhã, ou dizendo
que você não deva ir mais. Isso foi uma decisão daquela igreja, em
comum acordo com sua membresia.

120
CAPÍTULO 3
AS CONSEQUÊNCIAS DOS MANDAMENTOS DE
HOMENS NA IGREJA DE CRISTO

Nos capítulos anteriores narramos parte dos conceitos sobre o que


seriam estes mandamentos de homens. Agora apresentaremos um
capítulo especial com o resultado desses procedimentos. Algumas
conseqüências já descritas anteriormente precisarão ser repetidas.

A igreja cristã evangélica tem perdido alguns de seus líderes e,


naturalmente, alguns de seus seguidores, por viver uma religiosidade

121
aprisionada em sua rigidez, proibindo a expressão de sua
autenticidade. Isso comprova como dominação e alienação encontram
ambiente para um “perfeito” casamento. A respeito desse assunto,
Clinebell (1987) salientou:
Alguns aconselhandos estão mutilados psicológica e
espiritualmente – por consciências neuróticas, excessivamente
escrupulosas. Eles sentem uma culpa crônica e inapropriada,
resultante de sistemas de valores imaturos ou rígidos. Sua
autoavaliação contém pouca ou nenhuma graça viva. Eles
tendem a desperdiçar suas energias éticas numa autopunição
compulsiva por causa de questões éticas triviais ou de seus
‘maus’ sentimentos. Em consequência, sobra pouca energia para
as importantes ‘moralidades essenciais’ (p.145).
Pela narrativa acima parece que o autor sintetizou uma realidade de
como vivem alguns cristãos evangélicos. Pelo referencial adotado, é
possível afirmar que existe uma estrutura Pai Crítico NOK muito forte,
impedindo que sua Criança Natural e/ou Adulto estejam se expressando,
cedendo espaço para a Criança Adaptada, no caso a Submissa.
O resultado dessas concepções pode ser visto pelos adoecimentos,
pela apatia e pela rebeldia de pessoas que, não se submetendo às
atitudes de dominação, se opõem, desperdiçando todo um potencial que
poderia ser usado a favor do evangelho.

122
E vamos começar com um depoimento de uma pessoa que
participou conosco do “Curso Saúde Emocional e Vida Cristã”. Em uma
carta que escreveu, disse o seguinte:
Converti-me após três anos de separação conjugal, onde já havia
tentado de tudo um pouco para conquistar meu marido de volta.
Não tendo resposta fui convidada e convencida a me entregar a
Cristo. No início da caminhada fui levada a acreditar que (com
todo o sofrimento que eu já vivia), não havia lugar para risos em
minha vida. Primeiro porque tinha que dar bom testemunho de
pessoa séria e compromissada com Deus. Segundo, eu tinha que
estar em constante vigilância contra as ciladas do maligno.
Terceiro, fui levada a crer, pela crendice popular, e pelos dois
últimos itens acima citados que se eu risse muito hoje o diabo
prepararia algo tão terrível que amanhã eu choraria o dobro.
Acreditando nisso preferi deixar de rir, para fugir do choro que
fatalmente me prepararia o adversário. Foi numa vigília, que um
pregador animado e sorridente, me fez rir. Quando saí de lá,
falei chocada com Deus: Meu Deus, eu não sei mais rir! Ensina-
me a rir de novo.

3.1 O Adoecimento

Quando abordo o tema raiva cito a experiência de uma jovem


senhora que se ofendera porque sua diretora afirmou que ela não
cuidava bem das crianças com as quais trabalhava. Esta, ofendida, se
portou como vítima, numa atitude passiva, uma pobre coitada com um
comportamento de autocomiseração.

123
Como resultado, ficou de licença médica por forte depressão,
fazendo uso, inclusive, de medicamentos controlados. É preciso
considerar que tal procedimento proveio da postura e da falsa concepção
cristã de que não podia odiar.
Portanto, teve de perdoar a toda e qualquer ofensa e demonstrar
amor pela agressora. Ela negava a raiva que sentia dizendo a si mesma
que já a perdoara. É confortador saber que há na Bíblia a seguinte
colocação em Provérbios 10.18: “O que encobre o ódio tem lábios
falsos [...]”.
Como já foi dito, a raiva é uma emoção autêntica da Criança Livre.
Caso não possa expressá-la permanecerá dentro da pessoa,
possivelmente se manifestando em algum de seus órgãos ou sistemas.
Fui procurado por uma mulher de quase quarenta anos, solteira e
criada no ambiente cristão evangélico, que reclamava de um problema
de esquecimento e de tireóide. Parecia bastante angustiada, e ao ouvi-la
notei que falava com muita passividade; não por demonstrar calma e
tranquilidade, mas repressão. Sua fala não tinha altos e baixos
expressando emoções, mas parecia demasiadamente contida.
Depois de alguns minutos de escuta, perguntei há quanto tempo
sofria desses sintomas. Respondeu que há seis anos. Indaguei então se
há seis anos atrás havia acontecido algo em sua vida que a marcara. Ao
que respondeu: “sim”. Ela era noiva e faltando poucos dias para o
casamento, o noivo desapareceu, não lhe dando nenhuma explicação.
Ela, por sua vez, não o procurou. Depois que apareceu no mesmo bairro,
disse que quando o via passando de carro podia estar um tempo de sol
brilhante que via tudo escurecer.

124
A falsa crença por mandamentos de homens de não poder sentir e
expressar a raiva contida em sua mente, a fazia perder toda a vitalidade
e alegria da vida, provocando inclusive esses sintomas. De acordo com
Howard e Lewis (1988) as atividades exageradas da tireoide geralmente
ocorrem em pessoas expostas à situação de forte perturbação emocional,
do tipo preocupação, desapontamento, ou tristeza.
Essa moça se livrou de seus sintomas quando conseguiu expressar
tudo o que sentia. No caso dela foi com bastante agressividade. Mas
confessou ter saído de sobre si uma tonelada.
Uma senhora de quase sessenta anos nos relatou seu problema de
raiva reprimida para com o marido há aproximadamente quatro décadas;
portanto, desde que eram namorados. Mesmo tendo se casado, quatro
anos depois da situação geradora da sua raiva, ela a reprimiu.
Durante trinta e oito anos de casamento, e somados os quatro do
período de namoro, o odiava; ao mesmo tempo em que o amava. Não
conseguia entender como podia amar e odiar a mesma pessoa. Isso lhe
causava uma confusão mental muito grande, como também sentimento
de culpa.
Às vezes pensava que o único jeito de se livrar dessa raiva era se o
seu marido morresse. Em decorrência disso, sentia raiva de si mesma e
culpada, por abrigar em seu coração algo tão ruim e pecaminoso por
alguém que deveria sentir amor; ainda mais sendo uma pessoa
evangélica.
Tal ressentimento a deixava sem brilho, com pouca energia para a
vida. No curso aprendeu a expressar-se de maneira assertiva e confessou
diante da turma que estava, agora, vivendo uma verdadeira lua-de-mel.

125
No Curso Saúde Emocional e Vida Cristã é usada uma determinada
dinâmica onde cada participante deve falar algo que não gosta em si e
que deseja mudar; é claro que a recomendação é para que a pessoa
esteja à vontade para falar aquilo que sente perante o grupo, sem se
sentir constrangido.
Uma boa parte fala sobre o desejo de deixar de ser uma pessoa
reprimida e sempre abaixar a cabeça não sabendo expressar o
verdadeiro sentimento. Como consequência, relatam problema de
pressão alta, glicose elevada e outros, que com certeza podem ser
desencadeadores de vários tipos mais graves de doenças.
Duas senhoras, aparentemente muito mansas e bondosas, relataram
que sofriam de angina. As duas demonstravam ser crentes sinceras, mas
que não conseguiam expressar sentimentos de ira. Vale lembrar que se
não conseguiam expressá-los, tais sentimentos permaneciam dentro
delas, alojados dentro da mente e do corpo, procurando uma saída.
Em tom de brincadeira sempre digo que angina é doença de anjo,
ou seja, daqueles que agem, sobretudo, de forma demasiadamente
angelical. Onde estava então a sinceridade, quando na verdade sentiam
uma coisa e expressavam outra? Veja claramente onde a diferença entre
forma e conteúdo causa uma desarmonia, portanto, uma doença.
Caso você se sinta, ou se comporte também como uma pessoa
muito “doce”, cuidado, o excesso de açúcar no sangue pode fazer de
você uma pessoa diabética. Portanto, não seja uma pessoa
demasiadamente “docinha”.

126
Permita-me repetir a experiência da senhora que chegou ao curso
em profunda depressão. Em uma das aulas quando o assunto sobre a
raiva foi abordado, falou sobre sua dificuldade de expressá-la. Perguntei
se antes de se converter ao evangelho era assim. Respondeu que não,
pois falava tudo o que pensava. Perguntei-lhe então se sentia algum
desses problemas de saúde. Afirmou que antes não tinha quaisquer
sintomas os quais agora sofria, tendo, portanto, uma saúde ótima.
Assim que se converteu, mudou sua postura, e acrescentou à sua
conversão as falsas crenças quanto aos sentimentos de ira, entendendo
que não deveria expressá-los, mas reprimi-los. O resultado foi uma
profunda depressão, dependendo inclusive de outros para sair com ela.
Depressão pode ser proveniente de auto-agressividade, em outras
palavras, a agressividade que é para ser lançada para fora, é reprimida,
mantendo dentro de si sentimentos que agridem por dentro,
principalmente pela falsa culpa de senti-los e não expressá-los.
Vale sempre lembrar que não defendo a liberação descontrolada da
agressividade, mas defendo a liberação da expressão de agressividade
de uma maneira saudável e terapêutica, sem ofender ou agredir a outra
pessoa.
Depois de uma palestra para um grupo de pastores sobre o tema
Raiva, um jovem pastor me procurou dizendo que há dois meses estava
de licença médica, por um sério problema intestinal. Tão logo a palestra
terminou, ele reconheceu que sempre fora uma pessoa passiva.

127
Tinha os aborrecimentos no trabalho (não vivia do ministério
pastoral), e guardava as emoções. Na igreja, a mesma coisa, e assim
também era com a esposa. Sua postura de passividade favorecia os
sintomas físicos.
Outro pastor, depois de uma das aulas sobre esse mesmo tema,
disse que ao chegar à sua casa fez exatamente o que eu havia sugerido.
Disse que se sentiu outra pessoa. Este tinha grande mágoa de um de
seus diáconos, o qual, segundo suas palavras, lhe proporcionava grandes
aborrecimentos. Antes os mesmos eram guardados, mas depois disso,
afirmou ter tirado “uma tonelada de cima de sua cabeça”.
Uma jovem me procurou no consultório e me relatou um problema
não muito comum, pelo menos não muito falado, entretanto, causador
de bastante sofrimento para aqueles que o possuem. Trata-se da
tricotilomania.
Este é considerado um TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo).
Ana Beatriz Barbosa Silva, em sua obra Mentes & Manias diz que a
tricotilomania se caracteriza por arrancar os próprios pelos do corpo,
principalmente do couro cabeludo, sobrancelhas ou cílios. Geralmente a
pessoa não percebe o que está fazendo. (2004, p.99).
Esta jovem sofria deste transtorno desde aproximadamente seus 15
anos. Esta mesma autora disse que as pessoas que sofrem desse
problema costumam esconder de todos com um forte receio de serem
descobertas, até porque têm uma opinião bastante crítica e pejorativa
sobre tais sintomas.

128
Costumam achar seus pensamentos e ações “bobos”, “ridículos” e
“absurdos”. Não tendo, entretanto, nenhum controle sobre os mesmos.
(Ibid., p.16). Ela relata que nessa faixa da adolescência era “muito
menina” não se preocupando em namorar inclusive.
Vivia uma adolescência dedicada aos estudos e à igreja, e era,
apesar de ser bastante pobre, uma menina feliz. Relatou que sua vida
começou a mudar quando um homem pregou um sermão em sua igreja.
O mesmo era caracterizado por muitos como “bastante espiritual”.
Este homem de aproximadamente 30 anos não lhe causava nenhuma
atração física. Era, todavia, considerado por ela como um homem que se
pronunciava com bastante autoridade espiritual.
Ela o considerava como quem transmitia então, as palavras de
Deus. Este homem, porém, chegou a ela e lhe disse que havia recebido
de Deus uma revelação de que ela haveria de ser sua esposa no futuro,
pois esta seria a vontade de Deus para eles.
Visto que ela nenhuma atração sentia por ele quanto ao interesse de
uma mulher para com um homem, ficou em bastante angústia,
entendendo que seu futuro estava traçado e que seria viver com aquele
homem de quem ela não sentia nenhuma atração física ou de qualquer
outra espécie.
Podemos constatar que seu sofrimento foi resultado de um abuso
espiritual promovido por uma pessoa “revestida de autoridade
religiosa”, usando-a para coagir e controlar uma pessoa mais frágil,
causando-lhe ferimentos espirituais. (BLUE, 2000, p.10).

129
Passou então a viver em profunda angústia. Howard e Lewis
(1988) se referiram à angústia como sendo “um anônimo, uma sensação
crescente de destruição iminente” (p.112). E mais adiante afirmaram
que:
A angústia, entretanto, pode ser extremamente danosa nos casos
em que é intensa a ponto de interferir com a eficiência do
indivíduo, afetando a sua capacidade de conquistar metas ou o
seu conforto emocional desejável. A dor de uma angústia
crônica, associada ao esforço de evitá-la, constitui, sem dúvida,
a causa mais comum das doenças mentais (p.113).
Uma jovem de apenas dezenove anos, criada no evangelho, foi
levada por sua mãe ao meu consultório devido a um transtorno do
pânico. Ela já havia deixado o trabalho e estava também abandonando
os estudos.
De maneira inesperada, sentia um medo pavoroso e insistia que a
mãe a levasse ao hospital, pois acreditava estar morrendo.
Na terapia, ficou claro que tudo começou após uma senhora de sua
igreja, vista por todos como bastante espiritual e uma “ungida do
Senhor”, relatar para sua mãe que teve uma visão de uma nuvem de
enfermidade descendo sobre a vida de sua filha. Ela acreditou e
desenvolveu os sintomas de enfermidade.
Tudo indica que tal senhora ficou aborrecida com ela por sua
atitude, entendendo que a jovem deveria considerar sua idade e não agir
aplicando a mesma norma que aos demais.

130
Quando compreendeu que seus sintomas do transtorno do pânico
surgiram em decorrência da “visão” da senhora, e recebendo de minha
parte a permissão e o acolhimento para expressar o que estava sentindo
– a raiva – após expressar esse sentimento, noventa por cento dos seus
sintomas desapareceram.
Os outros dez por cento eram referentes a uma mágoa que
carregava de seu pai, o que também quando a expressou, se viu livre de
vez. Essas manifestações da raiva foram expressas no consultório, o que
a ajudou a ficar em paz com as pessoas e consigo mesma, sem qualquer
sentimento de culpa por sentir e pensar.
Poderia explorar muito mais este tema abordando, por exemplo, as
pessoas que sofrem de profunda depressão, inclusive líderes. Entretanto,
prefiro permanecer com o que já foi tratado aqui, pois, como já afirmei
anteriormente, tanto a raiva como a depressão são temas que pretendo
abordar especificamente em futuras publicações.

3.2 O Esfriamento Religioso


As falsas crenças, ou mandamentos de homens, não só têm causado
adoecimento através de sintomas físicos ou psicológicos, mas também
grandes prejuízos aos seus praticantes, uma vez que estes são
pressionados por familiares ou líderes que se afirmam como revestidos
de autoridade emocional e religiosa.

131
Tenho feito no curso um pedido aos alunos para que pensem nas
famílias religiosas que conheceram na infância, aquelas de
denominações evangélicas mais rígidas, que impediam seus filhos de
assistirem, por exemplo, a televisão, de irem ao cinema, de jogarem
futebol, de irem à praia ou de se relacionarem com pessoas que não
fossem da mesma igreja, ou até mesmo da mesma congregação.
Geralmente respondem que a maioria se encontra fora do convívio
cristão.
Constatamos, então, que muitos agem de forma passiva ou apática,
enquanto outros se rebelam fazendo oposição. Rosa (1979) retratou bem
essa situação como vemos abaixo:
Quando não encontra ambiente apropriado ao debate inteligente
de seus problemas espirituais, ele tende a conformar-se e tornar-
se religioso apenas por questão de hábito ou conveniência
social, ou então, no processo de transformar em sua própria
espécie a religião que lhe foi imposta na infância, pode rebelar-
se. Essa rebeldia, ordinariamente, é seguida de profundo
sentimento de culpa (p.87).

Quando alguém impõe ao outro seu sistema religioso de forma


rígida e autoritária, faz uso do seu Estado de Eu Pai Crítico NOK, e
pode obter por parte da pessoa pressionada uma resposta da Criança
Adaptada Submissa, ou da Criança Adaptada Rebelde, pois conforme
garantiu Barreto (1983), “[...] o Pai NOK e a Criança Adaptada se
complementam, dentro do indivíduo, como a chave se complementa
com a fechadura” (p.125).

132
Ou seja, toda a ação do Pai Crítico NOK vai gerar no outro uma
resposta de submissão ou de rebeldia. Vejamos então as duas respostas
como manifestações deste esfriamento religioso.

3.2.1 A Apatia

Na epístola que o apóstolo Paulo escreveu aos crentes em


Colossenses capítulo 3 versículo 21, lemos a seguinte exortação: “Pais,
não irriteis os vossos filhos, para que não fiquem desanimados”. Na
verdade, este versículo bíblico retrata muito bem o que pretendo
mostrar.
No conceito de Análise Transacional, a postura de apatia reflete o
comportamento adotado pela pessoa com sua Criança Adaptada
Submissa, quando diante de uma situação que requer uma atitude, se
omite, permitindo ao outro se impor.
Agindo pela Criança Adaptada Submissa, a pessoa nega suas
emoções autênticas, substituindo-as por emoções de adaptação, ou seja,
emoções falsas (DEL CASALE, 1986). Um exemplo: a pessoa discorda,
mas acaba agindo conforme a imposição ou expectativa do outro.
As emoções não autênticas são aquelas não proporcionais ao
estímulo, e se expressam através de depressão, confusão mental,
inadequação, falsa alegria, fobias, sensações de não ser querido e por
niilismo. (TAVARES & FRUTUOSO, 1985).

133
Alguém que age assim vive sob a pressão de seu Pai Crítico NOK,
tendo que corresponder às expectativas dos outros e não às suas
próprias. Ela se torna presa fácil para líderes religiosos que fazem uso
de sua posição para manipular os de comportamentos mais frágeis. E
aqueles que não aceitam tal autoridade são vistos como rebeldes e não
são queridos pelo grupo, principalmente pelos que cooperam com o
líder manipulador. Blue (2000), com bastante propriedade, enfatizou:
O trágico é que esse tipo de obediência escrupulosa de regras
acaba, na verdade, nos afastando de Deus. Qualquer atividade
religiosa que implique que a cruz de Jesus não é suficiente para
sermos aceitos por Deus nos leva, não a ele, mas para longe dele
(p.44).
Esse distanciamento de Deus não necessariamente significa se
afastar do convívio religioso. Na realidade, muitos estão na igreja não
por convicção religiosa, mas por não terem força e autonomia
suficientes para se afastarem.
A autonomia, não é uma característica de alguém que age com sua
Criança Adaptada Submissa, e sim de alguém que age pelo Estado de
Eu Adulto, com desempenho lógico, racional e responsável pelos seus
atos (DEL CASALE, 1986). É alguém que sabe responder a razão de
sua fé.
Visto que os dois Estados de Eu preponderantes em pessoas com
tal comportamento são o Pai Crítico NOK e a Criança Adaptada
Submissa, logo, o Estado do Eu Adulto e do Eu Criança Livre ficam
praticamente excluídos.

134
Sendo assim, a espontaneidade e a vitalidade da Criança Natural,
bem como o pensar racional, com um posicionamento crítico, sincero e
honesto, de quem deseja realmente fazer descobertas e dar uma
significativa contribuição, do Adulto, são impedidos de se manifestar.
Esse procedimento manipulador por parte da liderança religiosa, e
alienada por parte do seguidor, é um desserviço ao cristianismo. Em
relação a isso, May (1971) fez a seguinte interrogação:

[...] A religião de determinado indivíduo serve para quebrar-lhe


a vontade, mantê-lo em plano infantil de desenvolvimento,
capacitando-o a evitar a ansiedade causada pela liberdade e
responsabilidade pessoal? Ou serve de base para a afirmação de
seu valor e dignidade, proporcionando-lhe o fundamento para
uma corajosa aceitação de suas limitações e da ansiedade
normal, ajudando-o a desenvolver suas aptidões,
responsabilidade, força e capacidade de amar os seus
semelhantes? (p.161).

Ainda em uma excelente contribuição de Goleman (1995),


encontramos o seguinte:
Quando as emoções esmagam a concentração, o que está sendo
esmagado é a capacidade mental cognitiva que os cientistas
chamam de ‘memória funcional’, a capacidade de ter em mente
toda informação relevante para a tarefa imediata (p.92).

135
Podemos considerar que o indivíduo religioso com tal
procedimento se envolve num emaranhado de confusão mental, com
risco de se tornar sem perspectivas, apático, e sem consciência de si
mesmo.
Eclesiastes 7.7 confirma a afirmação acima explicitada:
“Verdadeiramente a opressão faz endoidecer até o sábio [...]”. Ele
forçosamente manifestará em seu rosto e em seu comportamento a sua
crença religiosa.
O que será naturalmente passível de críticas por parte dos que o
olham, compreendendo que se a religião cristã evangélica leva uma
pessoa a viver assim, melhor é dela manter distância. May (1971)
conclui que “se a religião evoca no sujeito mais a covardia do que a
coragem ela é neurótica” (p.181).
Na verdade, essa é uma postura que contrasta com o que vemos nos
escritos bíblicos e na própria história do cristianismo. Homens dotados
de uma consciência de si mesmos e de experiência religiosa agiam com
tamanha coragem, força, fé e autonomia, associadas à dependência do
Senhor a quem serviam, que se tornaram audaciosos em seus projetos e
metas.
Novamente citamos as palavras de May (Ibid.): “[...] quanto mais
autoconsciência tenha a pessoa, tanto mais espontânea e criativa será ao
mesmo tempo” (p.86). May (Ibid.) ainda disse que o idioma alemão é
mais completo quando fala de autoconsciência, pois quer dizer também
autoconfiante, e não “introspecção mórbida, timidez e embaraço” (p.
84).

136
Eles “alvoroçaram o mundo” (Atos 17.6) de tão destemidos e
corajosos que eram, sem, porém, perderem a ternura e os valores
concernentes às questões de natureza existencial de cada indivíduo.
Ao contrário, compreendiam que para viver a fé cristã em sua
essência, deveriam usar esses recursos a favor da propagação do reino
de Deus. Portanto, vai uma sugestão, permita-se expressar sua fraqueza
diante do Senhor naquilo que depende dEle; mas use a força que você
recebeu, para cumprir o que depende de você.
É uma frase conhecida em nosso meio eclesiástico a seguinte frase:
“Ore como se tudo dependesse de Deus; aja como se tudo dependesse
de você”.
Parece que uma má interpretação do “negue-se a si mesmo”
(Marcos 8.34), desprovida de uma contextualização e aplicação
adequadas, tem produzido em muitos uma negação do que são enquanto
indivíduos. Acabam por negar, com isso, as virtudes da natureza
humana essenciais à própria prática religiosa. Podemos deduzir que a
negação inadequada de si mesmo leva o indivíduo a negar seus
sentimentos, valores naturais e potencialidades.
Outra dinâmica que realizo em cursos, após pedir aos alunos que
falem algo que não gostam e que pretendem deixar, peço que falem três
coisas que gostam em si. É surpreendente a dificuldade experimentada
por muitos em expressar algo que possam considerar como bom em si.

137
Outros ficam surpresos por nunca terem feito tal reflexão. Esse
sujeito é tendencioso ao adoecimento, pois, segundo May (Ibid.),
“Qualquer organismo que deixe de cumprir suas potencialidades
adoece” (p.78).
Olhar para si mesmo se reconhecendo como é, requer coragem. O
rei Davi, em Salmos 139.23 e 24, fez uma oração pedindo a Deus que o
examinasse para ver se havia nele algo de errado que necessitasse ser
reparado. Qualquer pessoa que faça um exame de sua consciência
poderá perceber coisas que não gostaria.
Algumas, ao se examinarem, experimentam uma consciência
culposa, simplesmente pelo fato de descoberta dos sentimentos e
pensamentos presentes. Sentimentos e pensamentos considerados
inadequados à vida do religioso quando escondidos, rejeitados e
negados, causam uma apatia pela fuga de si mesmo, bem como uma
culpa por não seguirem os padrões de sua exigente e desumana
religiosidade.
Tornier (1985), compreendendo tal situação, escreveu o seguinte:
“Mas como a Bíblia não pode ser obedecida em todos os seus detalhes,
nasce um desespero, uma angústia neurótica de cometer algum
sacrilégio, uma culpa que não encontra solução” (p.136).
Desespero, angústia e culpa são expressões de sentimentos que
presenciamos em muitos cristãos evangélicos, que se permitem se
massacrar em uma tentativa e doentia obediência neurótica das regras
religiosas. Essa vivência da Criança Adaptada Submissa tem toda a
tendência ao desamor e a uma não aceitação de si mesmo.

138
Eles demonstram, portanto, considerável dificuldade em praticar o
segundo maior mandamento recomendado por Jesus: “Amar ao próximo
COMO A TI MESMO” (Lucas 10.27 – grifo do autor). Kierkegaard
(apud May, 1971) disse o seguinte:
Se a pessoa não aprender com o cristianismo a amar a si mesma
de maneira correta também não poderá amar aos seus
semelhantes... Amar a si mesmo corretamente e aos seus
semelhantes são conceitos absolutamente análogos e, no fundo,
são idênticos... Daí o mandamento: ‘Amarás a ti mesmo como
ao teu próximo, quando o amas como a ti mesmo (p.83).

Fromm (1988) concordou com Kierkegaard ao garantir que “o


amor é uma força ativa no homem [...]” (p.32). Entretanto, a Bíblia, o
livro sagrado dos cristãos, ensina a amar até mesmo aos próprios
inimigos.
Como, porém, alguém desprovido de amor por si mesmo poderia
amar o outro?. Fromm (Ibid.) ainda pontuou: “[...] se só puder amar os
outros, não pode amar, em absoluto” (p.76).
Ou seja, o indivíduo que afirma amar ao próximo, mas só como
cumprimento de uma ordenança bíblica, não se permitindo sentir raiva,
caso seja ela autêntica, demonstra não amar a si mesmo; portanto, não
conseguirá amar ao próximo, pois não respeita seus próprios
sentimentos.

139
Se a pessoa ama só para cumprir um mandamento, e esse
sentimento não provém de uma consciência autônoma e livre, seu amor
não é autêntico. Qualquer um deve se sentir livre para amar ou não
amar. Entretanto, se entender que o amor nos escritos bíblicos não se
limita a sentimento, mas a atitude saudável para com o próximo, sua
falsa culpa diminuirá lhe permitindo considerar o porquê de um
sentimento contrário. A respeito disso Fromm (Ibid.) ressaltou:
O amor não é, primacialmente, uma relação para com uma
pessoa específica; é uma atitude, uma orientação de caráter,
que determina a relação de alguém para com o mundo como
um todo, e não para com um ‘objeto’ de amor (p.60).
Isso se tornaria mais fácil se cada um olhasse para si mesmo e
reconhecesse a sua falta de amor para com o outro.
Entretanto, quem se limita simplesmente a obedecer às regras
estabelecidas sem examiná-las e contextualizá-las, à luz de sua própria
realidade interior, pratica um desamor para consigo mesmo. “Amar ao
próximo como a ti mesmo” requer uma atitude de igualdade.
Quem permanece na maior parte do tempo no Estado da Criança
Adaptada Submissa não consegue viver numa relação de igualdade,
mas, sim, de inferioridade. Pois na maior parte se sente desvalorizado,
temeroso, indefeso, envergonhado e confuso (DEL CASALE, 1986).
Conforme podemos perceber, essas características não saudáveis se
tornam como respostas, quando o sistema religioso estabelece como as
coisas devem ser, não dando espaço para que se manifestem da forma
como realmente são.

140
O preço que se paga tem demonstrado que não vale a pena. Como
dissera anteriormente, tem sido um desserviço ao cristianismo.

3.2.2 A Rebeldia
O seminário em que cursava teologia, considerado por muitos uma
instituição de abertura ao pensamento e reflexão teológica, sofrera uma
intervenção da convenção em uma troca de reitor, o que ocasionou a
demissão de alguns professores tidos por liberais. Essa atitude vista
como autoritária provocou a reação imediata de alguns alunos, que
acostumados à livre expressão do pensamento fizeram manifestações
bastante enfáticas, demonstrando rebeldia em sinal de reprovação.
Para os mais conservadores tais manifestações serviram para
confirmar o que os levou a tal intervenção. Alguns professores foram
retirados de suas funções acadêmicas, sendo substituídos por outros que
não foram bem recebidos pelos estudantes.
Tal situação demonstra que uma instituição ao fazer uso da
autoridade esperando obediência, pode obter resultado contrário, caso a
busque de forma impositiva. Johnson (2010) afirmou que “[...] uma
mudança imposta é uma mudança oposta” (p.97).
Seguindo a Análise Transacional, é a ação do Pai Crítico NOK
obtendo a resposta da Criança Adaptada Rebelde. Segundo Del Casale
(1986) “um indivíduo está na Criança Adaptada Rebelde quando é
agressivo, rancoroso, vingativo, ou irracionalmente opositor” (p.10).

141
Sendo assim, podemos observar que o sistema religioso quando
rígido e não respeitador do sujeito obtém como resposta tanto as
expressões da Criança Adaptada Submissa, quanto às da Criança
Adaptada Rebelde, para aqueles que assim se comportam.
O esfriamento religioso se caracteriza, portanto, como apática
aceitação e também como ferrenha oposição. Alguns se tornam tão
opositores que chegam a ser considerados quase um anticristo. Essa
oposição pode ocorrer como resultado de um desrespeito por parte de
lideranças religiosas para com os liderados.
Reconhecendo que qualquer um tem direito a expressar suas
dúvidas quanto ao que lhe ensina, e entendendo que um sistema
religioso rígido não permite ser questionado, pode fazer com que nasça
no outro uma resposta de oposição. Para Rosa (1979) “O ateísmo, como
partido organizado, está sempre associado à rebelião contra a autoridade
tirânica e representa uma competição na luta pelo poder” (p.115).
Pela afirmação acima citada, podemos ver que o próprio ateísmo
pode surgir como oposição ao sistema religioso tirânico. É como se “o
tiro saísse pela culatra”. Se por um lado a opressão de alguém no uso de
seu Estado de Eu Pai Crítico NOK consegue obediência cega da Criança
Adaptada Submissa, fazendo-a sucumbir em seus pensamentos e
sentimentos, o efeito com a pessoa de maior tendência à Criança
Adaptada Rebelde é totalmente contrário.

142
Retornando à pergunta que faço aos alunos, a respeito das pessoas
criadas num sistema religioso bastante rígido, sobre a sua atual situação,
diferentemente da resposta da Criança Adaptada Submissa, encontramos
um grande distanciamento como uma oposição às tais exigências.
E com base na citação anterior, essa oposição pode ser tão intensa a
ponto de se tornar em ateísmo.
Vamos caracterizar a rebeldia em seus dois sentidos, quais sejam:
rebeldia desorganizada e rebeldia organizada.

3.2.2.1 A Rebeldia Desorganizada

Por rebeldia desorganizada consideremos aquela não planejada,


onde há expressão de revolta de forma aleatória e generalizada, dirigida
a quem quer que se apresente à sua frente como representante de regras.
Esta pode ser tanto consciente quanto inconsciente.
Uma situação que a meu ver se caracterizou como uma rebeldia
inconsciente foi o caso de uma senhora de 48 anos de idade, que aos
dezoito cantava no coro da igreja. Nesse período sua mãe adoecera e
logo em seguida veio a falecer. Desde então nunca mais conseguiu
cantar na igreja, e não entendia o porquê disso.
Em muitas situações a melhor tradução para o “eu não consigo” é
“eu não quero”. Após sua fala indaguei sobre o que a levara a cantar no
coro da igreja. Então respondeu que era por se sentir feliz, pois assim,
adorava a Deus.

143
Conforme foi refletindo sobre aquela situação, através das aulas,
reconheceu que o fato de não mais conseguir cantar tinha como
explicação uma rebeldia contra Deus, que apesar de ter todo o poder não
curara sua mãe.
Como cantar louvores a um Deus que não respondera a sua oração?
Ela estava, portanto, há trinta anos tentando, inconscientemente, se
vingar de Deus, não querendo louvá-lO nem tampouco honrá-lO pelos
cânticos de adoração. Ela por si própria reconheceu sentir raiva de Deus.
E, como resultado de sua compreensão, pode se resolver com Deus.
Poucas semanas depois estava novamente cantando no coro de sua
igreja. Trinta anos depois.
Aquelas expressões do tipo “eu odeio crente!” são caracterizadas
como rebeldias desorganizadas. Pessoas com tal procedimento
provavelmente tiveram algum tipo de decepção com a religião pela
forma como a mesma lhe foi transmitida, ou se sentiram exploradas em
um determinado momento de fraqueza, ou assistiram alguém de seu
convívio sofrer decepção ou exploração.
Um rapaz inteligente, universitário, que lecionava em curso pré-
vestibular, sediado inclusive em uma igreja evangélica, estava afastado
da congregação porque seu pastor não lhe dera permissão para
evangelizar nos bares.
Mas era esse seu desejo e também, como afirmava, seu ministério,
uma vez que havia saído de lá, se definindo como um ex-alcoólatra.

144
Certa mulher relatava suas extravagâncias sexuais diante de outras
pessoas sem nenhum pudor. Ela fora criada em ambiente religioso e
reclamava de todas as proibições impostas. Agora, porém, de maneira
rebelde, praticava tudo o que antes sentia vontade mas não podia, pois
não lhe era permitido; conforme fazia questão de deixar claro.
Suas palavras pareciam refletir uma revolta contra seus pais e
contra a religiosidade que praticavam. Estava evidente que suas atitudes
expressavam sentimento de vingança, próprio de alguém que age com
sua Criança Adaptada Rebelde.
Uma senhora, aluna de nosso curso, relatou uma situação que
acontecera com uma conhecida que, ao subir um morro no Rio de
Janeiro para evangelizar, se deparou com um rapaz do tráfico que fazia
“guarda”. Este lhe disse que fora criado na igreja evangélica, mas que
nunca conseguira perdoar o pai pela surra que tomou, simplesmente por
estar brincando de bola-de-gude, ainda que sozinho, em frente ao portão
de casa.
Alguém que se sente pressionado e privado de suas vontades e
desejos durante muito tempo, quando adquire algum tipo de liberdade,
pode romper com o opressor e com tudo o que ele representa, incluindo
valores e princípios religiosos.
Esse foi mais um caso de rejeição ao evangelho devido à forma de
propagação. É como se o conteúdo ficasse encoberto pelo exagero da
forma.

145
O que denominamos de rebeldia desorganizada pode ser entendido
como a atitude de uma pessoa tomada unicamente por sua Criança
Adaptada Rebelde, isto é, numa ação impulsiva, agressiva e opositora,
tão-somente por estar diante de uma regra ou de uma figura de
autoridade.
Tal procedimento pode ser comparado a de uma criança, que não
sabendo como agir adequadamente, se opõe. Ela age mais por
sentimentos e emoções (embora não autênticos), do que propriamente
por um pensamento decisivo de se opor conscientemente, como
vingança planejada.
Em uma das aulas, depois de ler este meu trabalho ainda em forma
de apostila, um jovem disse que percebeu o que estava acontecendo com
ele. Narrou que seu pai, homem de liderança na igreja, agia de forma
rígida e inflexível.
Isso despertou nele uma vontade de se afastar do evangelho, e
chegou a expressar-se desta maneira para seu pai: “para ser um crente
igual ao senhor eu prefiro ficar no mundo”. Esse jovem, ainda durante o
curso, pode relatar sua reconciliação com seu pai.
Um dos alunos estagiando no hospital para receber um certificado
de Curso de Capelania, se deparou com um senhor que não queria saber
de crente e nem de oração. Ele estava revoltado com os crentes. De
forma cautelosa o estagiário conseguiu descobrir o motivo de sua
revolta.

146
Revelou que logo que começou a frequentar a igreja, disse para o
pastor que gostaria de ganhar dele uma Bíblia. Este, porém, lhe
respondeu dizendo que não tinha que comprar Bíblia para ninguém; e
que se quisesse uma, então comprasse.
Na verdade, o pastor era uma figura emocionalmente significativa
para ele; por isso, não desejava mais qualquer tipo de contato com igreja
ou com evangélicos; aí estava a resposta daquela frustração e oposição;
Não estou defendendo que pastor, ou igreja, tenha de se comprometer a
dar uma Bíblia para cada pessoa que se converte.
Muito embora seja um pequeno gasto, principalmente considerando
os mais pobres que possam se encontrar em dificuldades de adquiri-la.
Chegou ao curso um rapaz dizendo que aquela era a última porta
que batia antes de deixar por completo a igreja. Se não desse certo se
afastaria definitivamente, pois estava decepcionado com o pastor.
Lá obteve permissão e acolhimento para expressar sua revolta sem
quaisquer críticas às palavras e expressões relativas a este sentimento.
Com o tempo foi se acalmando e acabou se reintegrando à igreja.
Reconheceu que havia errado com o seu pastor e lhe pediu perdão
publicamente.
Vale esclarecer que foi uma atitude voluntária de sua parte. Em um
momento bastante especial em sala de aula pediu para se ajoelhar e que
todos ali presentes, inclusive alguns pastores, estendessem as mãos
sobre ele, pois estava naquele instante declarando publicamente seu
retorno à comunhão com Deus. Foi uma experiência bastante
inesquecível.

147
Uma jovem, em um determinado momento em sala, explodiu de
emoção e contou como se sentia decepcionada com Deus por não ter
livrado seu filho de menos de um ano de idade da morte.
Disse que a partir de então não conseguia mais acreditar que Deus
pudesse realizar algum milagre. Durante bom tempo esteve com aquela
revolta contra Deus, entretanto, pode encontrar permissão e acolhimento
para se expressar, o que a ajudou mais tarde, ao final do curso, dizer que
estava se sentindo bem melhor em seu relacionamento com Deus.
Rogers (1991)disse que “se o cliente se sente aceito nas suas
expressões, comportamentos e experiências.., isso irá favorecer maior
abertura e uma renovada liberdade no fluxo organísmico (p.121). Em
Jeremias 29.13, o próprio Senhor diz: “E buscar-me-eis e me achareis
quando me buscardes de todo o vosso coração”. É uma expressão da
Criança Livre ou Natural, a qual o próprio Senhor recomenda como uma
maneira de encontrá-lO.

3.2.2.2 A Rebeldia Organizada

Por rebeldia organizada consideremos aquela planejada


racionalmente, onde há expressão de oposição pensada, mesmo que seja
um pensamento contaminado por sentimentos que influenciem tal
postura.

148
Esta rebeldia organizada geralmente é uma resposta às imposições
da religiosidade tirânica. Geralmente provém de pessoas inteligentes
que usam o Estado de Eu Adulto para defender seus posicionamentos,
ainda que influenciados pela Criança Adaptada Rebelde, isto é, por
sentimentos.
Parece o Adulto, racional e lógico, porém, contaminado, pois, por
trás tem algum sentimento não saudável impulsionando a ação.
Contudo, como ouvi de determinada pessoa “toda crítica gera
sentimento de autodefesa”, e essa oposição é carregada de sentimentos
que acabam afetando, não necessariamente, o conteúdo da mensagem
cristã evangélica, mas a forma, como no princípio afirmei.
Líderes religiosos, que defendem seu sistema de crenças sem
respeitabilidade aos pensamentos alheios, fazem uso de seu Estado de
Eu Pai Crítico NOK. Isto é, agem com preconceito, sem consideração,
rejeitando o pensamento e a opinião do outro, não por maldade, mas por
acreditarem estar defendendo a moral e os bons costumes.
Certa vez, em uma das aulas do curso de 202 de Especialização em
Análise Transacional, o professor, psiquiatra e analista transacional
Alberto Luis da Rocha Tavares, disse que a diferença entre a moral e a
ética, é que “a ética é a moral pensada”. Parece que uma coisa que esses
líderes religiosos não desejam fazer é pensar sobre suas crenças e
valores; por isso criticam os que usam o Estado do Eu Adulto para
refletir acerca de tais procedimentos.
Se nós cristãos entendemos que a Bíblia é a Palavra do próprio
Deus e a concebemos como a verdade, então por que temer o seu
questionamento?

149
A verdade não precisa temer ser questionada, pois sendo a verdade,
subsistirá a tal teste. E não é exatamente isso que vem acontecendo em
todos os séculos de existência da Bíblia? No entanto, ela continua a
existir. Observe o que disse May (1971):
Há sempre tensão e às vezes até mesmo luta entre esses líderes
da ética e as instituições religiosas e sociais existentes. Nessas
lutas o líder muitas vezes ataca a igreja e a igreja
frequentemente o chama de inimigo. Spinoza, ‘filósofo
intoxicado de Deus’, foi excomungado; um dos livros de
Kierkegaard intitula-se ‘Ataque ao Cristianismo’; Jesus e
Sócrates são executados como ‘ameaças’ à moral e à
estabilidade social. É surpreendente quantas vezes os santos de
um período foram chamados – fato histórico – ateus no período
anterior (p.159).

Ainda May (1988) fez referência a Nietzsche ao dizer o seguinte:


Nietzsche acusa os religiosos de nunca fazerem de ‘suas
experiências uma tomada de consciência para se alcançar o
conhecimento’. ‘O que experimentei realmente? O que
aconteceu depois, dentro de mim e ao meu redor? Estava minha
razão clara o suficiente? Minha vontade preparada contra todas
as decepções?’... E assim ninguém desejou argumentar... No
entanto, nós outros, aqueles sedentos pela razão, queremos
examinar visualmente nossas experiências com a mesma
severidade de uma experiência científica...! Nós mesmos
queremos ser nossas próprias experiências e cobaias! (p.83).

150
Vejamos também as palavras de Nietzsche (2008):
O cristianismo se posiciona também contra todo êxito
intelectual – somente uma razão doentia pode lhe servir de razão
cristã; toma o partido de tudo o que é idiota, lança seu anátema
contra o ‘espírito’, contra a soberba do espírito sadio... A
própria dúvida já é um pecado [...] (p.110).

Parece que Nietzsche criticava os cristãos por não usarem, como


em nossa linguagem, o Estado de Eu Adulto, aquele nosso lado que
raciocina, optando por fazer uso exclusivamente de seu Estado de Eu
Pai Crítico Negativo e o da Criança Adaptada Submissa.
Em outras palavras, não questionam, não usam a razão, optando
por agirem como pessoas alienadas. Por declarações semelhantes a esta
que é que foi sempre considerado por muitos cristãos como um forte
opositor ao cristianismo. Segundo Nietzsche (2008) “– o cristianismo
foi até agora a maior desgraça da humanidade” (p.109).
Entretanto, May (1988) pontuou que considerá-lo um inimigo do
cristianismo seria “equívoco radical”, e que ele não estava buscando um
movimento ou outro sistema. Talvez estivesse fazendo um grande
serviço ao cristianismo, que os cristãos deveriam na época fazer, mas se
omitiram.
Na época em que Nietzsche viveu, conforme acentuou May (Ibid.)
“A fé religiosa transformara-se em ressentimento, a vitalidade em
repressão sexual, e uma hipocrisia generalizada marcou a condição do
homem daquele tempo” (p.82).

151
Vendo um sistema religioso que assim agia, qual deveria ser a
postura de um pensador? O comportamento passivo não fazia parte de
Nietzsche.
Como, porém, segurar o espírito questionador de um homem como
ele? A esse espírito questionador de Nietzsche encontramos,
naturalmente, certo conteúdo emocional. Não podemos deixar de relatar
ainda as palavras de May (Ibid.) sobre a situação de Nietzsche.Vejamos:
Friedrich Nietzsche sentiu, de modo amargo e profundo, esse
problema de ressentimento nos tempos modernos. De fato,
novamente situa-se no âmago dos conflitos psicológicos do
homem moderno, pois, como tantos de seus contemporâneos
dotados de sensibilidade rebelava-se contra a negação da
liberdade; contudo, não conseguiu ultrapassar inteiramente o
estágio da rebeldia. Filho de pastor protestante, que morreu
quando ele era ainda criança, educado por parentes numa
atmosfera sufocante, Nietzsche padecia sob os aspectos
coercitivos de seu background alemão, mas, ao mesmo tempo,
estava sempre em luta contra eles. De espírito muito religioso,
embora não dogmático, percebia o grande papel representado
pelo ressentimento na moralidade convencional da sociedade em
que vivia. Sentia que a classe média estava impregnada de
ressentimento recalcado, e que este emergia indiretamente na
forma de ‘moral’. Proclamou que ‘... o ressentimento se
encontra no âmago de nossa moral’, e que o ‘amor cristão é um
simulacro do ódio impotente [...] (pp.127,128).

152
É interessante ressaltar que, conforme o texto de May, Nietzsche
era “de espírito muito religioso”, entretanto, parece não ter encontrado
uma respeitabilidade ao seu pensamento e, naturalmente, não tinha
como esconder suas insatisfações em relação à forma como o sistema
social e religioso de sua época agia.
Ou seja, líderes cristãos expulsavam algumas mentes pensantes que
poderiam dar grandes contribuições ao evangelho. A queima dos
“bruxos” em nosso meio por vezes ocorre de maneira mais sutil.
Isso me faz pensar se a igreja não tinha homens competentes para
levar uma mensagem de maneira inteligente e respeitosa a Nietzsche; ou
se na verdade esses mesmos homens inteligentes e competentes não
desejavam um ser pensante, questionador e opositor como ele.
Quem é que não suporta o questionamento e as dúvidas das pessoas
- Deus ou aqueles que acham que deverão sempre dar uma resposta para
todas as indagações? Mas como isso não é possível é melhor manter os
questionadores do outro lado.
Da mesma forma cabe nos perguntar: Se Jesus e Nietzsche fossem
do mesmo período e região estariam em lados opostos? Talvez
Nietzsche se rendesse à Sua maravilhosa graça e inteligência.

153
CAPÍTULO 4

UMA INTERSEÇÃO ENTRE A BÍBLIA E A PSICOLOGIA

Deus não é questão de necessidade, mas


questão do mais profundo desejo da alma
humana.
(Congresso do CPPC, Mendes, 1990).

Para aqueles que defendem uma cisão entre a religião cristã


evangélica e a psicologia
psicologia, convém esclarecer que ambas têm sua
particularidade e uma inter
interseção.
ão. Dizer que uma se interpõe sobre a
outra é negar a própria natureza e objetivo de cada uma.

154
Porém, o cristão evangélico consciente e realista perceberá o
quanto poderá ser ajudado pela ciência da psicologia. Outrossim, o
psicólogo poderá perceber que não tem domínio sobre todas as áreas,
devendo, portanto, respeitar o direito de cada pessoa decidir no que crer.
A tarefa da psicologia não é negar o que o livro base de uma
religião ensina. Rosa (1979) afirmou que se a psicoterapia se considerar
uma ciência não poderá se manifestar a respeito da existência de Deus,
ou da não existência de Deus. E que embora o psicoterapeuta tenha suas
próprias convicções, não deve pronunciar-se a respeito de assuntos
religiosos ou metafísicos enquanto profissional da psicologia. Vejamos
ainda o que disse:
Para que essa cooperação seja útil e eficaz, é necessário que os
campos da psicoterapia e da religião sejam claramente definidos
e cada profissional opere dentro dos limites impostos por sua
vocação. Ao invés de se hostilizarem, religião e psicoterapia
devem unir seus esforços para ajudar o homem na sua luta
contra sua própria alienação e ajudá-lo a ajustar-se
satisfatoriamente a seu mundo, tornando-o destarte, um ser
criativo e sadio (Ibid., p.241).

Durante os dois anos e meios de curso em Especialização em


Análise Transacional, precisei fazer terapia com um dos professores do
curso. Era uma exigência para a conclusão. Ele não era uma pessoa que
compartilhava minha fé; entretanto, sabia se comportar como um bom
terapeuta.

155
Até porque desde o princípio ficou bem claro para ele as minhas
convicções. É uma confirmação de Rom. 14:5 onde orienta a cada um
ser bem convicto em sua própria mente.
Entretanto, é perceptível o que os mandamentos de homens têm
causado de negativo e prejudicial quanto à alienação e dominação. É
evidente que os psicólogos, dotados de forte senso crítico e de
autonomia e independência quanto ao pensamento e expressão de seus
sentimentos, não se calam.
E nem deveriam fazê-lo, diante de certas demagogias e hipocrisias
dos que praticam mais os mandamentos humanos do que de Deus,
constituindo tal atitude como falsas crenças, ou falsas posturas.
Porém, se faz necessário compreender que quando os pensadores
da ciência assim agem, não estão necessariamente contra as Escrituras
Sagradas ou o seu conteúdo, mas sim, contra os procedimentos e
atitudes que o próprio Jesus Cristo condenou – a hipocrisia, isto é, o
prevalecer da forma sobre o conteúdo.
Ao escrever a Pfister, um pastor protestante, Freud (1998) disse o
seguinte: “A psicanálise em si não é religiosa nem anti-religiosa, mas
um instrumento apartidário do qual tanto o religioso como laico poderão
servir-se, desde que aconteça tão-somente a serviço da libertação dos
sofredores. Freud” (p.25).

156
Em resposta a Freud, o pastor Pfister escreveu:
A principal diferença entre nós reside provavelmente em que o
senhor cresceu perto de formas patológicas de religião, as quais
considera como ‘a religião’, enquanto eu tive a sorte de poder
dirigir-me a uma forma livre de religião. Ao senhor, esta
religião parece ser um esvaziamento do cristianismo, mas, para
mim, é o centro e a substância do evangelismo. Pfister (Apud,
FREUD, 1998, p.162).
Na verdade, o pastor Pfister reconheceu que o que seu amigo Freud
rejeitava era a religião doentia e causadora, naturalmente, de doenças.
Freud, por não estar inserido no contexto religioso, conhecia apenas a
forma como se apresentava, e não o seu conteúdo verdadeiro.
Com isso, os psicólogos, psicanalistas e todos os que lidam com a
mente e o comportamento humano, em uma prática coerente, estão a
favor da verdade e não contra ela. Devem, portanto, ser respeitados
pelos que se encontram em busca de uma prática religiosa saudável.
A coerência, diplomacia e amizade fundamentavam o
relacionamento entre Freud e Pfister, onde o primeiro defendia a cura da
alma através da psicanálise, e o segundo, pela religião. Mas ambos se
respeitavam e se admiravam. Pelas suas cartas parecia que um desejava
o conhecimento e a experiência do outro, sem, contudo, depreciar os
seus. Em outras palavras, a defesa que faziam eram das idéias e não de
si mesmos.

157
Pfister chamava Freud de “um amado adversário” e dizia:
Não há grande perigo de o senhor candidatar-se ao batismo nem
tampouco de eu me jogar do púlpito. Mas existem alguns bem
importantes pontos de aproximação, e quando pondero que o
senhor é bem melhor e mais profundo que o seu ateísmo, e eu
bem pior e mais superficial que minha fé, então o abismo entre
nós não poderia escancarar-se de modo tão arrepiante. Pfister
(Apud FREUD, 1998, p. 161).

Vejamos agora mais especificamente como se dá esta interseção


entre a Bíblia e a Psicologia.

4.1 Quando a Bíblia Confirma a Psicologia

Aqueles que afirmam que a Bíblia rejeita a ciência expressam


profunda ignorância, visto que os próprios textos bíblicos contradizem
tal concepção. Em Jeremias capítulo 3 versículo 15, já citado
anteriormente, há uma referência do próprio Deus dizendo as seguintes
palavras: “Eu vos darei pastores segundo o meu coração que vos
apascentem com ciência e inteligência”.

158
Também em Daniel 1.17 lemos esta afirmação: “Ora, a estes quatro
mancebos Deus deu o conhecimento e a inteligência em todas as letras,
e sabedoria; mas a Daniel deu entendimento em toda a visão e sonhos”.
A Psicologia, desde seu surgimento, reivindicou e conseguiu o
conceito de ciência. Sendo assim, precisamos colocar por terra
concepções errôneas e compreender que não há na Bíblia qualquer
rejeição à ciência. Pelo contrário, além de sua aprovação, existe uma
declaração em que a mesma deva ser utilizada inclusive por pastores e
líderes religiosos como instrumento benéfico.
Participei de um programa de televisão cujo tema era “O Uso da
Psicologia no Púlpito”. A princípio, a maioria dos que assistiam
votaram contra tal uso, mas ao final do programa, depois de outro
pastor, também psicólogo, e eu debatermos a reciprocidade do assunto,
houve melhor aceitação.
Parece que a promessa do Senhor de dotar Seus filhos de sabedoria
e ciência se confirmou no Novo testamento, na pessoa do apóstolo
Paulo. Ao que tudo indica, deve ter sido ele o homem que mais
contribuição deu ao cristianismo, abaixo de Jesus.
Era homem de profundo conhecimento para os padrões da época,
capaz de debater através de rara inteligência e argumentos lógicos com
qualquer filósofo, sabendo respeitar qualquer linguagem, ou meio onde
se encontrava.

159
Falava vários idiomas, além de mostrar grande capacidade de
adaptação e contextualização. Em suas palavras, em 1 Coríntios capítulo
9 e versículo 22, salientou: “Fiz-me como fraco para com os fracos, para
ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios
chegar a salvar alguns”.
Agindo desta maneira, o apóstolo Paulo se mostrava bastante
flexível contrariando a rígida postura dos religiosos da época. Sua
flexibilidade caracterizava uma postura consciente e saudável. Vale
ressaltar que ser rígido é ser extremista.
Como já relatado anteriormente, seguindo a Análise Transacional,
a atitude extremista e, geralmente inflexível, é própria do Estado de Eu
Pai Crítico NOK. Este tem a tendência a exercer forte pressão para que
as normas sejam seguidas; e o faz a partir de si mesmo, não se
permitindo sentimentos e sensações que fujam aos padrões
estabelecidos em sua mente.
A Bíblia se manifesta contra a opressão como claramente vimos em
Eclesiastes capítulo 7 e versículo 7, quando diz que “verdadeiramente a
opressão faz endoidecer até o sábio [...]”. O apóstolo Paulo, entretanto,
trouxe uma postura flexível e racional, fazendo um adequado uso de seu
Estado de Eu Adulto.
Veja que em 1 Coríntios 14.20, ele orientou os crentes a serem
adultos no entendimento. Se alguém é adulto no modo de pensar, sua
mente dificilmente será dominada por qualquer que lhe apareça
reivindicando um papel de dominador sobre sua vida.

160
Em geral, era o próprio apóstolo Paulo quem agia como
intermediador e conciliador entre os mais extremistas, procurando a
harmonia e a ética das questões, por mais polêmicas que fossem, apesar
das reconhecidas diferenças. No texto de 1 Coríntios capítulo 6 e
versículo 12, deixou registrado o seguinte: “Todas as coisas me são
lícitas, mas nem todas me convêm. Todas as coisas me são lícitas; mas
eu não me deixarei dominar por nenhuma delas”.
Com base nesta afirmação, deduzimos que houve uma clara
aplicação do Estado de Eu Adulto em sua religiosidade. Posto que
deixara de lado seu Estado de Eu Pai Crítico NOK, se permitindo
refletir sobre ela, analisando, pensando racionalmente, questionando e
contextualizando sua crença.
Ao declarar que tudo podia, entretanto, nem todas as coisas lhe
convinham, ou seja, nem todas lhe eram adequadas, deslocou a
concepção de uma religiosidade permeada por obrigatoriedades,
aplicando a ela autonomia, consciência e ética. Estas três são virtudes de
alguém que age pelo Estado de Eu Adulto (TAVARES & FRUTUOSO,
1985). Para aqueles que tiveram uma atitude de examinar as Escrituras,
não aceitando de maneira submissa o que lhes era ensinado, chamou-os
de nobres, pois foram confirmar o que realmente estava escrito (Atos
17.11).
Outro texto conhecido no meio evangélico é o de Romanos 12.2,
também de autoria do apóstolo Paulo, que corrobora perfeitamente os
argumentos da psicologia: “E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis
qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus”.

161
Sabemos por meio da psicologia que não é adequado nem
tampouco produtivo a pessoa tentar mudar a outra; devendo, portanto,
ela mudar a si mesma. No texto acima citado, o apóstolo, com
propriedade, afirmou que não devemos ser conformados (moldados pelo
que vem do mundo, ou de fora), dando valor a toda dinâmica de uma
sociedade que nos quer levar ao conformismo das coisas, aceitando seus
conceitos de forma passiva.
Mas deixou evidente que a mudança deve ocorrer primeiramente
no sujeito inconformado, e para que esta mudança ocorra, é necessário
que haja renovação no modo de pensar, reavaliando conceitos e
paradigmas. Que psicólogo seria contra tal colocação? Na opinião de
Campos (1978): “Mudar é desadaptar-se, porque a mudança é um
movimento antitético à estabilização, à inércia.
Mudança é transformação de quantidade em qualidade, é perceber
o mundo, os outros e a si mesmo de maneira nova” (p.15). May (1971)
frisou que “Somente o comportamento neurótico é rigidamente
repetitivo” (p.93). Também enfatizou que “A graça de Deus é a
capacidade para evoluir” (Ibid., p.177).
Fazendo menção ainda ao apóstolo Paulo, em uma de suas cartas,
no caso a de Efésios, em seu capítulo 4 versículo 14, salientou o
seguinte: “Para que não mais sejamos meninos inconstantes, levados ao
redor por todo vento de doutrina, pela fraudulência dos homens, pela
astúcia com que induzem ao erro”. Com isso, torna-se evidente que
mudança e autonomia, sem perder a saudável dependência, são virtudes
defendidas pelas Escrituras Sagradas, em comum acordo com a
psicologia.

162
A favor desta afirmação, vejamos o que nos disse em Romanos
14.5: “[...] Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente”.
Ou ainda em Romanos 15.2: “Portanto, cada um de nós agrade ao
próximo no que é bom para edificação”.

4.2 Quando a Psicologia Confirma a Bíblia


A Psicologia trata de idéias e de outros
conteúdos espirituais (Jung)
O mesmo erro cometido por alguns cristãos em rejeitar a ciência
tem sido cometido por alguns cientistas, numa completa negação da
importância da religião na vida do ser humano, considerando-a
dispensável e alienante.
Certos cristãos chegam a afirmar que a ciência é contra a Bíblia,
por isso a rejeitam. A afirmação de Campos (1978) dá margem para tal
oposição: “A religião, crença em alguma coisa extraterrena, passa a ser
tábua de salvação, recurso de última hora, ritual neutralizador de medo,
de culpa, expectativa de uma vida melhor, ‘seguro de morte’, garantia
de um lugar no céu ou equivalente, etc.” (p.57).
Talvez fosse ela uma seguidora do ceticismo de Freud, conforme
afirmou Rosa (1979):
Nunca duvidei de que os fenômenos religiosos devam ser
encarados apenas como exemplo de sintomas neuróticos do
indivíduo, sintomas esses familiares a todos nós e que
representam um retorno a acontecimentos importantes há muito
esquecidos na história primeva da família e que devem seu
caráter obsessivo a essa mesma origem.

163
A psicanálise provou que a idéia de Deus na vida do indivíduo e
na vida dos povos tem sua origem na veneração e exaltação do
pai. (Freud, p.228).

Já Stott (1988) ressaltou que:


O método científico é grandemente inadequado na esfera da
religião. O conhecimento científico progride através da
experiência e da observação. Trabalha com os dados e
informações que lhe fornecem os cinco sentidos físicos, mas,
quando chega ao terreno metafísico, não tem elementos (p.12).

Freud e outros céticos possuem um opositor à altura quanto ao


mesmo assunto; é Jung. Vejamos o que Jung pontua:
Gostaria de chamar a atenção para os seguintes fatos. Durante os
últimos trinta anos, gente de todas as nações civilizadas da terra
me tem consultado. Tenho tratado muitas centenas de pacientes,
a maioria deles sendo protestantes, pequeno número de judeus e
não mais de cinco ou seis católicos praticantes. Entre todos os
meus pacientes, na segunda metade da vida – isto é, além, de
trinta e cinco anos de idade – nunca houve um sequer cujo
problema não fosse, em última análise, o de encontrar uma
interpretação religiosa para a vida (Apud ROSA, 1979, p.233).

Convém ressaltar que pertencer a uma determinada religião não


significa ter as convicções por ela ensinadas. Interessante que as
palavras de Jung se referem a todos os pacientes e não apenas aos
religiosos protestantes.

164
Sua conclusão parece confirmar as palavras de Jesus Cristo quando
diz: “Pois que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro e perder
a sua alma?” (Mateus 16.26). Ou seja, o homem tem uma preocupação
maior, que geralmente aparece em momento de introspecção e
desenvolvimento da autoconsciência, ou de seu iminente fim, ao avaliar
o que construiu e viveu, sem alcançar realização plena.
Parece faltar ao homem algo que não lhe é palpável nem temporal;
e isso transcende aos conceitos da psicologia e ao que propõe a própria
ciência. Certa vez em uma entrevista dada à televisão inglesa
perguntaram a Jung se ele acreditava em Deus e sua resposta foi: Eu não
acredito, eu sei, (Jung, 1988).
De acordo com Sheehy (1985): “Se para algumas pessoas um
exame das atitudes em relação ao dinheiro é o ponto focal da renovação,
para outras o ponto de virada tem como foco questões espirituais”
(p.474).
Rosa (1979), com relação a Allport, salientou:
Para Allport, a experiência religiosa é algo essencialmente
pessoal, sujeito às leis de evolução psicológica, e seu aspecto
intelectual é mais importante do que o emocional. A religião é
fator importantíssimo na integração da personalidade. Ele diz
que a religião é o esforço do homem para unir-se à criação e
ao Criador com o fim de ampliar e completar sua própria
personalidade (p.71).

165
Considerando as afirmações de Jung e Allport, concluímos que as
oposições à religiosidade por parte de alguns representam pensamentos
isolados e não o pensamento científico. Pois ninguém pode falar por
uma classe a não ser que por ela seja autorizado.
Alguns pensadores têm sido vistos, tanto por céticos quanto por
religiosos, como inimigos declarados da religiosidade. Um deles é o
próprio Nietzsche, que cunhou a famosa frase “Deus morreu”.
Entretanto, ele fazia forte oposição ao sistema religioso de sua
época, cuja forma era bastante alienante. Para May (1988), aqueles que
pensam que ele era um inimigo da religião se encontram “em um
equívoco radical”. May (1987, 1988) ainda se refere a ele como “de
espírito muito religioso” e “o pai dos terapeutas de nosso tempo”.
Havia algo em comum entre Nietzsche, Kierkegaard e Freud. May
(Ibid.) chamou este fato em comum de “contribuição de grande
importância”. Disse que “todos os três fundamentaram seus
conhecimentos basicamente sobre a análise de um caso – ou seja, eles
próprios” (p. 74). Sabemos que a grande obra de Freud “A Interpretação
dos Sonhos”, a qual é entendida como início da Psicanálise, foi
resultado quase que exclusivo da interpretação de seus próprios sonhos.
Partindo deste princípio, como negar o que os religiosos dizem
como sendo fruto de sua experiência pessoal? Isso não quer dizer que
tenha de se juntar a ela. Todavia, é algo que merece sincera e honesta
investigação, e investigação requer entrega.

166
May (Ibid.) salienta que uma grande contribuição de Kierkegaard
para a psicologia dinâmica diz respeito à necessidade de se entregar e
que a verdade que não pode sequer ser vislumbrada em particular, a
menos que se tenha um envolvimento com ela. E um tipo de defesa para
não se entregar, é a evitação.
Alguns pesquisadores críticos e céticos perdem grande
oportunidade de adquirir conhecimento nesse ato defensivo,
desconsiderando, portanto, a experiência religiosa. O mesmo vale para
os religiosos que evitam obter conhecimento por meio de investigação
com os recursos da ciência.
Necessidade de se entregar, não tem sido o que defendem os
cristãos evangélicos como porta para uma experiência com o Criador?
Não tem sido este um lema evangélico: “É preciso se entregar a
Cristo?”. A palavra “entrega” é citada em vários momentos na Bíblia.
No Salmo 37 versículo 5 está escrito o seguinte: “Entrega o teu caminho
ao Senhor; confia nele, e ele agirá”.
Para um pesquisador que precisa estar o tempo todo com algo
palpável e seguro, isso pode parecer absurdo. Mas reforça a indagação
de Kierkegaard: Como compreender o todo do ser humano se uma parte
lhe é negada? Campos (1978) sustenta que:
A personalidade é um todo, que não é a soma das partes, é uma
interação dinâmica; daí não existir problema exclusivamente
sexual, exclusivamente social ou exclusivamente existencial –
considere-se sempre isto a fim de que o didatismo da exposição
não prejudique a apreensão do todo humano (p.45).

167
Baseado nesta orientação da autora o que fazer com as
interrogações a respeito da alma ou espírito, ou do que vem depois?
Como desconsiderar tais questões? A psicologia dá conta destas
perguntas? Ou sempre responderá à sede de água com mais comida?
Minha professora de antropologia na faculdade de Psicologia disse
em sala que “A maior pergunta do ser humano, independente de tempo
e espaço, é o que vem depois”. Podemos plagiar a famosa frase da
seguinte maneira: “existem muito mais mistérios entre o céu e a terra do
que supõe a nossa vã Psicologia”.
Com essas interrogações não estou encerrando o assunto, mas
apenas encerrando este trabalho, ao qual me proponho no momento.

CONCLUSÃO

Procurei mostrar em vários capítulos deste livro o que seriam os


mandamentos de homens na igreja de Jesus Cristo e suas conseqüências.
Capítulos que mostram um pouco da história do cristianismo e como
que ao longo da mesma seus seguidores foram se afastando do
verdadeiro conteúdo, adquirindo uma forma que faz defesa de tradições
e costumes em detrimento de tudo que o dono da igreja, Jesus Cristo,
procurou ensinar.
Pretendi demonstrar que a má interpretação de versículos bíblicos e
sua inadequada aplicação têm contribuído para que uma forma de
religiosidade não saudável se sobreponha ao conteúdo, trazendo não só
grande desarmonia, mas também favorecendo mandamentos de homens.

168
Minha intenção foi levar o leitor a compreender que, aquilo que
chamo de mandamentos de homens, não se refere ao que os cristãos
creem enquanto seguidores de Jesus Cristo, e sim, enquanto defensores
de costumes e tradições, e de interpretações desprovidas de uma
adequada contextualização e aplicabilidade.
Procurei evidenciar que os mandamentos humanos têm causado
grandes prejuízos ao cristianismo. Aqueles que estão sob tais
mandamentos estão sujeitos a enfermidades de conotação
psicossomática, isto é, aquelas que começam na mente e passam para o
corpo. Uma série de exigências é imposta por alguns líderes religiosos
que não combinam em nada com esta afirmação de Jesus: “meu jugo é
suave, e o meu fardo é leve” (Mateus 11.30). Ao que parece, certos
evangélicos nunca leram essa afirmação do Senhor e Mestre.
Além dessa tendência ao adoecimento, procurei salientar que os
mandamentos de homens causam, em alguns, submissão passiva e
alienante, outorgando aos seus líderes um direito de praticamente
decidirem suas vidas. E em consequência enfraquecem a alma,
provocando repúdio por parte dos que entendem a importância da
autonomia e da independência perante a vida. Autonomia e
independência que, naturalmente, não significam isolamento e nem
desamparo, mas capacidade de decidir a própria vida e de assumir um
relacionamento com o Criador sem intermediários que se considerem
semideuses.

169
Também procurei mostrar que os mandamentos de homens
também podem provocar o contrário. Haja vista que aqueles que não
aceitam as imposições e opressões podem também tender para a
oposição, e com uma força tamanha, a ponto de serem considerados
como anticristos, como Nietzsche foi considerado por muitos.
Ao final deste trabalho, propus uma interseção entre a Bíblia e a
Psicologia, por acreditar em uma possível harmonia entre ambas, com
seus devidos seguidores, em respeito recíproco numa compreensão às
suas particularidades.
A Igreja, por mais que nós, homens imperfeitos, a maltratemos
com nossos mandamentos e tradições, sempre permanecerá viva e
atuante, transformando a vida das pessoas através da sua poderosa
mensagem. Davi era, na forma, menor do que Golias. O resultado você
conhece. Nós passamos.
Certa vez vi escrito em um muro: “Deus morreu”. Assinado
Nietzschie. E ao lado escrito: “Nietzschie morreu”. Assinado Deus.
Assim sempre foi, é e sempre será. A Ele seja a glória, a honra e o
poder. Amém!

170
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175
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente ao meu Senhor Deus. Foi Ele, com
certeza, que me deu a visão para escrever sobre tal assunto.
Agradeço aos meus queridos pais José Pereira Ferreira e Maria
Hilda Ferreira. Seus exemplos, ensinamentos e demonstrações de
amor foram essenciais para minha formação. Homenageio também
a minha esposa Adriana e a minha filha Ana Paula, que são uma
base para a minha vida e ministério.
Sou grato as igrejas Batista do Parque Alian, Batista Central
em São João de Meriti, Primeira Igreja Batista de Barra de São
João e à Igreja Batista em Parque Araruama. Sou grato a Deus
pelos anos como capelão do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro,
onde o aprendizado lidando com a vida e com a morte contribuíram
para meu crescimento. Lá aprendi que lidar com o sofrimento
humano muda a nossa teologia. A minha foi mudada.
Agradeço aos meus alunos dos cursos que ministro. Com suas
experiências aprendo a cada instante.
Obrigado a todos os que leram este trabalho enquanto apostila,
dando toques essenciais para que o mesmo viesse a se transformar
neste livro. Deus a todos abençoe.

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