Isabella Leite Trindade

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A modernidade das salas de cinema do Recife

Isabella Leite Trindade


Professora Assistente I do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de
Pernambuco
faks@hotlink.com.br

Andréa Dornelas Câmara


Coordenador e Professor Assistente I do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica
de Pernambuco.
andrea@unicap.br

Paulo Raposo Andrade


Professor Assistente IV do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Pernambuco UFPE
pauloraposoarq@uol.com.br

Andréa Lins Storch


Professor Assistente I do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de
Pernambuco
astorch@br.inter.net

No início do século XX, quando começam a surgir as primeiras salas de cinema a palavra de
ordem era modernizar. Era necessário um ‘cenário’ atraente para se adequar a essa
metrópole moderna com os novos espaços públicos dentro dos padrões civilizados. Um dos
símbolos dessas transformações da cidade moderna, sem dúvida, foram as salas de
cinema, com sua arquitetura expressiva, volumes puros, sem ornamentação historicista, os
letreiros luminosos, sinônimo de modernidade e progresso. O presente trabalho trata de
como a arquitetura das salas de cinema revelavam uma modernidade sobretudo a
arquitetura dos cinemas de bairro e como a decadência dos cinemas levou a destruição de
parte deste acervo desta arquitetura.

Palavras-chave: arquitetura moderna, cinema, preservação

When the first movies’s theatres appears, in the beginning of the 20th century, it should
reveal the latest architecture. The theatres should be an actrative place to a modern
metropolis that was coming into sigth, and suitable to new standards of the urban spaces.
Hence, it’s architecture should be a reflection of this modernity and progress, with
characteristics such as an expressionism forms, rectangular volumes, ornamental-free formal
language. This paper lies on how the architecture of the movies theatre reveal a modernity,
specially in the neighbourhood’s theatre and how these theatres had been destroied through
the last years.

1
Keywords: Modern architecture, movies theatre, preservation

2
A modernidade das salas de cinema do Recife

Podemos afirmar que a metrópole moderna e o cinema surgem praticamente na


mesma época. Sua justaposição fornece várias chaves sobre a estética pela qual
vivenciamos a cidade, não apenas como cultura visual, mas, acima de tudo, como um
espaço psíquico.
Além da velocidade das transformações do cenário urbano e dos hábitos cotidianos
serem semelhantes à cinematografia, como relatou um cronista da época, que incorporou na
sua descrição a velocidade e a sensação de empilhamento de imagens, em que as cidades
se transformavam em verdadeiros álbuns de projeções,1 o cinema influencia e altera
drasticamente a sensibilidade e os estados de disposição dos seus habitantes, modificando
hábitos, ditando moda e divertindo com a magia de suas imagens.
As transformações das cidades e dos comportamentos da população, a partir do final
do século XIX, desencadeadas após a segunda Revolução Industrial, chamada Revolução
Científico-Tecnológica, marcaram profundamente as gerações contemporâneas.
Surge uma variedade enorme de novos recursos técnicos e equipamentos que
invadem, perturbam e inquietam o cotidiano das pessoas, sobretudo pelo ritmo com que
essas inovações despontam na metrópole moderna. Entre essa tantas novidades, o cinema.

Recife, Hollywood do Brasil

No Recife, as primeiras exibições acontecem no início do século XX e nos mais


diferentes lugares: teatros, festas de largo, circos, velódromo, cafés e casas de diversão.
A primeira sala de exibição no Recife, Cosmorama, instalada na Rua da Imperatriz, é
fundada no início do século. Depois veio o Teatroscópio na rua Dr. Rosa e Silva, nº 61
(antiga Imperatriz), a Companhia de Arte e Bioscope Inglês.

“Anúncio do Theatroscopio –. Funcionará depois do carnaval. Vistas animadas


e fixas. Espetáculo variado. Recomenda às Exmas. Famílias. Com Santos
Dumont e seu dirigível, a saída para o Prêmio Deutsch, Quo Vadis (cenas
tiranas do romance do célebre escritor Henrique Sienkiwicz), A paixão de
Cristo (11 cenas tiradas dos quadros dos mais célebres pintores) e muitas

1
SEVCENKO, Nicolau: República: da belle Époque à era do Rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. (História da vida privada no Brasil; 3).
3
outras vistas, recebendo novidades por todos os vapores”2

Em 1909, foram inaugurados os cinema Pathé, na Rua Barão de Vitória n° 45, com
320 lugares, seguido do Cinema Carlos Gomes, do Cine Palace no subúrbio da Várzea, e
do Cinema Royal, na Rua Nova e, em 1910, o Cine-Teatro Helvética, na Rua da Imperatriz.
Depois, foram inaugurados os cinemas Politeama, Moderno, este, com uma excelente
orquestra, e o Santa Isabel conhecido como o mais luxuoso cinema do Norte3

Figura 01: Cine Moderno inaugurado em 1913 Figura 02: Cine Glória
como teatro e em 1915 passou a ser teatro e Fachada eclética com elementos decorativos
cinema. Fachada eclética com elementos Foto: Isabella Trindade
decorativos
Fonte: Jornal do Commercio em 26/09/1996

“A técnica e as máquinas deixaram todos curiosos, interessados em saber como


aqueles aparelhos funcionavam. O cinema exercia um fascínio especial, atraíra
grandes públicos para a época. Cerca de 4.632 expectadores assistiram a Tosca
no cine Pathé”4.

A partir dos anos 20, o mercado de distribuição cresceu rapidamente e as salas de


cinema se multiplicaram por toda parte. A imprensa local encoraja os pioneiros dessa arte
em Pernambuco. Nos jornais, aparecem colunas encarregadas de comentar os filmes e a
vida dos artistas. A revista Klaxon, por exemplo, a primeira porta-voz do modernismo,

2
Diário de Pernambuco, em 08 de fevereiro de 1903
3
O Helvética, o Parque e o Moderno funcionavam também como teatro. REZENDE comenta em seu
trabalho o impacto causado pela aparição das primeiras salas de exibição no Recife. REZENDE,
Antônio Paulo de Morais. (des)encantos modernos: histórias da cidade do Recife na década de vinte,
Tese (Doutorado). São Paulo: USP, 1992.
4
REZENDE. Op. cit. p.51
4
sempre fazia referência ao cinema, fosse para comentar as fitas em cartaz ou para
expressar o universo das sensações e ilusões que se distribuía nas salas de exibição. Em
Pernambuco, tínhamos vários periódicos de grande tiragem dedicados ao cinema; entre
esses, a publicação semanal Écran, Revista Cinematográfica e Social e a revista Cinema,
de grande circulação e distribuída gratuitamente nas salas.5
Josué de Castro escreve uma matéria na coluna semanal Cinema, do Diário da
Manhã, se rendendo ao cinema brasileiro:

Até pouco tempo, cinema brasileiro era dessas coisas bôas de acabar. Destas
coisas que continuam existindo porque são teimosas e não querem compreender
que a gente não acredita nelas. Que a gente dava um dôce para elas não
aparecerem nunca,e soltava um foguete no dia da morte delas. Eu era o primeiro
a dizer: cinema brasileiro é mentira. E pens que tinha rasão. Mas agora tudo
mudou. Sofreu uma dessas mudanças radicaes que obriga a gente a ser sincera
na nossa admiração.
Obriga a gente ir de encontro a si mesmo, e a se desdizer: a mentira é minha,
cinema brasileiro é verdade!
Uma verdade, do tamanho do Brasil.6 [sic]

A capital pernambucana tem uma participação importante na historiografia do cinema


brasileiro. Segundo Souza Barros, “dos ciclos regionais que marcaram a evolução do
cinema brasileiro antigo, silencioso, o ciclo do Recife foi talvez o mais importante e se
estendeu durante toda a década de vinte”.7 Cerca de treze filmes longa metragem além de
cinco inacabados, todos de ficção, foram produzidos entre 1923 e 1931. No Recife, o marco
decisivo foi à fundação, em 1923, da Aurora-Filme, por Edson Chagas e Gentil Roiz.
A Aurora-Filme lança vários filmes a partir de 1924, sendo o primeiro lançado
Retribuição (1924), depois Um Ato de Humanidade (1925), Jurando Vingar (1925), Aitaré da
Praia (1925), Herói do Século XX (1926), A filha do Advogado (1926). Além da Aurora-Filme
responsável pela maioria das produções a Planeta Filme realiza Filho sem Mãe, a Vera Cruz
Filme lança, em 1925, História de Uma Alma e a Olinda filma Reveses. A Goiana-Filme,

5
Distribuída gratuitamente no Theatro Moderno, Ideal Cinema, Cinema Espinheirense, Cine-Odeon,
Cine-Theatro Tijipió, Real Cinema, Cinema Central, Cinema Cassino e Cine-Theatro de variedades.
In Revista Cinema.
6
Cinema brasileiro. Diário da Manhã, Recife, 30 jul 1929. p.3.
7
Alguns autores abordaram o assunto, entre outros: MOTA, Mário. BÊ-A-BÁ de Pernambuco. Recife:
FUNDAJ/Massangana, 1991, 412 (Série Obras de Consulta, n.120), p.222, REZENDE. Op. cit. e
SOUZA BARROS. A Década de 20 em Pernambuco. Rio de janeiro: Gráfica Editora Acadêmica,
1972. p.206.
5
produz Sangue de Irmão; Ari Severo e Fred Júnior fundam a Spia Filme, e produzem
Destino das Rosas. Edson Chagas cria a Liberdade Filme, realizando Dança, Amor e
Ventura, em 1927, e No Cenário da Vida, em 1931. Este seria o último filme produzido do
ciclo do cinema no Recife.
Outras figuras se destacaram como Jota Soares, Ary Severo, Almery Steves, Barreto
Junior, Pedrosa da Fonseca, Pedro Salgado e Joaquim Matos proprietário do cine Royal e
grande incentivador do cinema pernambucano, entre tantos outros.8
Em 1931, instala-se no Recife a empresa Iate Filme, de Alfredo Carneiro. Porém, os
dois filmes programados, Odisséia da Vida e Audácia do Ciúme, não foram concluídos.9

O intervalo grande, entre 1931 e 1942, quando é produzido pela Meridional


Filmes o primeiro filme sonoro pernambucano: “O Coelho Sai”, justifica-se pelas
enormes dificuldades geradas com a inserção do cinema sonoro. O som
revolucionou e desempregou muita gente principalmente os músicos das
orquestras, depois os cinemas foram se adaptando a essas novidades10.

Até a década de 50, houve uma produção esparsa de curtas, filmes amadores e
documentários.11 Naquela década, as discussões e exibições de filmes pernambucanos
ressurgem com o a aparecimento dos cine-clubes: o Cine-Clube do Recife (André Gustavo
Carneiro Leão) do Cine-Clube Vigilante (Valdir Coelho e Jomard Muniz de Brito) e do Cine-
Fórum (Jomard Muniz de Brito).
O Recife, na década de 20, ficou conhecido como a “Hollywood do Brasil”. O cinema
torna-se a coqueluche. Chegam as produções da Europa e de Hollywood, e os filmes locais
conseguem fazer sucesso nas salas de exibição pernambucana, mesmo com a
concorrência e a enorme publicidade dos filmes americanos em cartaz.
A partir de 1930, a produção cinematográfica brasileira concentra-se no Rio de
Janeiro, principalmente pela fundação de dois estúdios de cinema: a Cinédia, de Ademar
Gonzaga, e a Brasil-Vita Filmes, da portuguesa Carmem Santos. A partir de 1935, sucedem-
se os filmes musicais e durante o Esvado Novo, o cinema nacional voltou-se para a
literatura brasileira.
Desde a abertura das primeiras salas de exibição do Recife, ir ao cinema tornou-se um
hábito muito apreciado. Vestia-se a melhor roupa, o ambiente exigia, pois algumas salas

8
REZENDE. Op. cit. p.7.
9
MOTA. Op. cit. p.223.
10
Depoimento de Fernando Spencer, em entrevista realizada nos dias 26 fev. 1999 e 01 mar. 1999.
11
Depoimento de Fernando Spencer, em entrevista realizada nos dias 26 fev. 1999 e 01 mar. 1999.
6
contavam com orquestras até na sala de espera. Era importante exibir a elegância, ser
moderno, manter o reconhecimento social e estar em dia com as novidades que circulavam.
Paulo Cavalcanti nos conta, entre outros episódios da época, que nos feriados nacionais a
pequena orquestra — um piano, uma flauta, um violino e um contrabaixo — entoavam o
Hino Nacional antes das sessões e todos na platéia se levantavam para cantar.12 Eram
exibidas além da programação hollywoodiana, imagens encomendadas pelo governo do
Estado e pela prefeitura, a edição cinematográfica do jornal Folha da Manhã e imagens da
vida recifense.13
Alguns escritores afirmam que os anos 30 foram a era de ouro do rádio e da música
brasileira, mas esse período poderia ser igualmente associado como a era do cinema, e
cinema, nesse período, significava Hollywood, com seus astros e estrelas.

A arquitetura das salas de cinema

As primeiras salas de cinema chamavam-se no início do século XX de ‘Teatros


cinematográficos’, ou porque eram teatros adaptados para exibição de filmes, ou porque se
construíam como teatros. Aos poucos vão surgindo salas próprias, apropriadas para
exibição dos filmes. Essa evolução deu-se devido a preocupações de ordem técnica, pois
era necessário aumentar as telas para o ‘cinemascope’, conceber isolamento acústico para
o som, e tornar as salas mais arejadas e confortáveis.
No início do século XX, quando começam a surgir as primeiras salas com fim
específico, a palavra de ordem era modernizar. Era necessário um ‘cenário’ atraente para se
adequar a essa metrópole moderna com os novos espaços públicos dentro dos padrões
civilizados, e um dos símbolos dessas transformações da cidade moderna, sem dúvida,
foram os cinematógrafos, com suas fachadas de mármore e a iluminação elétrica,
espetáculo glamouroso, sinônimo de modernidade e progresso.
Para o high life da cidade e os visitantes, contávamos com vários cinematógrafos na
cidade, cerca de quinze na década de 30, espalhados por vários bairros.14 “Muitos edifícios
foram construídos especialmente para exibição de filmes, entre eles, o Cine Ideal, projeto de
Jorge Martins; e em 1932, o Cine Eldorado.”

12
CAVALCANTI. O Caso eu Conto como o Caso foi: A luta Clandetisna.(memórias políticas) Recife:
Guararapes, 1985. p.29.
13
GOMINHO, Zélia de Oliveira. Veneza americana x mucambópolis. O Estado Novo na cidade do
Recife(décadas de 30 e 40). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1998. p.127.
14
Caxangá, Glória, Guanabara, Helvética, High-life, Ideal, Moderno, Olinda, Polytheama, Real, Royal,
São João e São José além do Th. de Variedades e do Teatro Santa Izabel, que também exibiam
filmes. Fonte: Diario da Manhã.
7
Gilberto Freyre nos conta, em seu Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do
Recife, que nessa época existiam, no Recife, cinemas distribuídos por vários bairros da
cidade, e de grande capacidade. Na década de 40, tínhamos 28 cinemas.
Do início do século XX, até a década de 60, as salas de cinema do Recife, são
exemplos ricos da evolução dessa arquitetura. Como expressão formal, a linguagem
adotada para as salas com fim específico de cinema, foi a princípio tanto o art déco, como a
linguagem moderna da arquitetura.
O art déco, reconhecido como um movimento com uma linguagem própria dos anos
20, por alguns autores é considerado como ecletismo tardio, e por outros como os primeiros
passos para uma linguagem moderna, como linguagem pré-moderna (nem eclética, nem
moderna), ao incorporar influências estéticas do futurismo italiano, do expressionismo
alemão, do De Stijil holandês, e do construtivismo russo.15
No Recife, as salas de cinema com a linguagem déco denotam a influencia do
cinema hollywoodiano e do déco norte-americano, sobretudo nas fachadas e no foyer. Um
dos exemplos onde é possível constatar as características dessa linguagem arquitetônica16
aparece na fachada do Cine Eldorado, inaugurado em 1937, projeto do engenheiro Jorge
Martins com capacidade para 790 pessoas, e na fachada do Cine Arraial: [1] composição
clássica, ou seja, respeito a simetria e valorização do eixo do edifício valorizando os
acessos; [2] tratamento volumétrico: predominância do cheio sobre o vazio, marcação e
articulação de volumes que se sobrepõem ou que se projetam em linhas aerodinâmicas, uso
de elementos decorativos que reproduzem figuras geométricas (triângulos, quadrados e
círculos), uso de elementos multifacetados, à maneira cubista com ênfase na verticalidade e
no escalonamento da cobertura em forma piramidal; [3] articulação e integração entre
arquitetura, interiores e design; [4] uso de técnicas construtivas industriais modernas com
técnicas decorativas artesanais; [5] iluminação cenográfica, influenciada pelo cinema

15
O movimento teve sua denominação a partir do título da Exposition Internationalle des Arts
Decoratives et Industrielles Modernes de Paris em 1925. O art Déco é dividido em quatro períodos: o
primeiro até 1925 (embrião – fase européia); o segundo de 1925 a 1930 (divulgação e expansão –
chegada nos EUA); o terceiro de 1930 a 1940 (consolidação e apogeu); e o quarto de 1940 a 1950
com manifestações tardias (na América Latina). In: CONDE, L.P., ALMADA, M. Guia da Arquitetura
Art Déco no Rio de Janeiro. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1995.
16
Idem, Ibidem
8
Figura 03: A fachada Art Deco do Cine Figura 04: Cine Arraial
Eldorado. Um dos cinco cinemas do Largo Foto: Acervo Geraldo Gomes
da Paz em Afogados a ‘cinelândia’ do Recife.
Fonte: Acervo Fernando Spencer

Um exemplo da linguagem proto-moderna, é o projeto de Rino Levi para o Cine Art-


Palácio (e edifício Trianon)
Esses Edifícios, caracterizavam-se por uma arquitetura híbrida, que combina
influência da tradição classico-acadêmica e influência de diversas correntes do movimento
Moderno, frequentemente divergentes das vertentes hegemônicas desse movimeto no Brasil
e em particular no Recife, onde já existiam edifícios da vanguarda modernista. Assim, em
termos formais, observa-se a predominância de simetria axial e frontalidade, composição
tripartida na vertical — com base, corpo e coroamento —, emprego da modinatura como
meio de expressão arquitetônica e, ao mesmo tempo, tendência a abstração e simplificação,
ausência de ornamentação figurativa derivada de estilos históricos, tendências a uma
espacialidade mais dinâmica e complexa, preferência por volumes “puros” e preocupação
com a economia e a racionalidade construtiva relacionada ao emprego das novas
tecnologias.
O cinema São Luis, por exemplo, localiza-se no térreo do edifício Duarte Coelho, um
dos primeiros edifícios verticalizados no Recife, percebe-se a composição tri-partida, a
assimetria relativa entre a entrada monumental do cinema e o corpo de edifício. Neste caso
a ordem geral estabelecida no projeto — a simetria axial — foi distorcida para adaptar-se as
condições específicas do sítio e do programa e revela a intenção do arquiteto em
modernizar a edificação.
Muitas vezes encontramos nesta arquitetura os elementos da linguagem moderna
interpretado em sentido decorativo, como uma síntese entre as novas idéias Modernas e um
savoir-faire dos antigos. Como por exemplo o cine Eldorado, que na sua volumetria destaca-
se uma colunata em “V” meramente decorativa.
9
Figura 05: Vista do cinema construído Figura 06 e 07: Art Palácio hoje
Fonte: ANELLI, R., GUERRA, A., KON, N. Rino Foto: Paulo Raposo Andrade
Levi. Arquitetura e cidade. São Paulo: Romano
Guerra Editora, 2001

O Recife contava com cinemas de grande capacidade, o Cine Boa Vista, projeto do
Engenheiro Jorge Martins, inaugurado em 1942, na Rua Dom Bosco tinha capacidade para
1800 pessoas; o luxuoso cinema São Luiz, inaugurado em 6 de setembro de 1952, com
capacidade para 1260 cadeiras, platéia e balcão, e painel do artista plástico Lula Cardoso
Ayres na sala de espera; e o moderno Cine Albatroz, é inaugurado em 1958 na Rua Pe
Lemos, 371 no bairro de Casa Amarela, com capacidade para 940 lugares. Projeto de Lauro
Ribeiro, com a Fachada modernista com pilares em V e marquise em concreto armado.

Figura 08 – o moderno Cinema Albatroz Figura 09 - Cinema São Luiz


Fonte: acervo Fernando Spencer Foto: Paulo Raposo Andrade

O São Luiz trata-se do último cinema do centro do Recife, que perdeu, em 20 anos, o
Boa Vista (transformado em rede de papelaria), o AIP (que virou sala de vídeo com
programação pornô), o Moderno (transformado em rede de lojas), o Veneza, o Trianon e Art-
10
Palácio.
Nas últimas décadas várias salas de cinema fecharam suas portas, devido a
popularização da TV e do home video, a decadência dos centros urbanos e o aparecimento
dos cinemas multiplex. O Recife viu o desaparecimento de vários cinemas de bairros, como
o Cine Cordeiro e o moderno cine Brasil (ambos na Av. Caxangá), o Coliseu (na Av. Rosa e
Silva) e o Cine Torre, além da descaracterização de vários outros, devido a mudanças de
uso, como o cinema Eldorado e o Albatroz (transformados em Igreja Universal do Reino de
Deus).

Figura 10: Cine Boa Vista. Figura 11: Fachada do Cine Torre
Fonte: Acervo de Fernando Spencer Fonte: Acervo Fernando Spencer

Figura 12: Cine Moderno Figura 13: Antigo Cinema do Largo da Paz em Afogados
Foto: Isabella Trindade

FELZEMBURG no artigo ‘Novas Igrejas Protestantes: um programa arquitetônico?’17,

17
FELZEMBURG,M.,FIALHO,E.,GOMES,G. Novas Igrejas Protestantes: um programa
arquitetônico?. São Paulo: Vitruvius, 2003. Disponível em:
<http;//www.vitruvius.com.Br/arquitextos/arq193> Acesso em 28 de maio de 2005, 18:45:30
11
comenta que igrejas como a Universal do Reino de Deus, tem a característica de se adaptar
funcionalmente a essa edificações cujas intersecções de programa se fazem evidentes.

“Nos templos das Igrejas Universais do reino de Deus, cuja especificidade


funcional se resume a um grande vão, adjacente a pequenas salas, que abrigam
geralmente a administração e outros espaços específicos, como a sala dos
obreiros. Assim, antigos cinemas, com seus grandes espaços reservados ao
público e sua perspectiva direcionada à tela, são ideais para uma dessas
adaptações, onde a tela é substituída pelo altar. Prática muito comum não só na
cidade de Salvador como em todo país”18

Esse exemplo é evidente, nas igrejas onde outrora funcionavam os cinemas de bairro
como o Eldorado, no bairro de Afogados e o cine Albatroz, no bairro de Casa Amarela.

Com localização privilegiada, os cinemas falidos ou em decadência deram lugar ao


templo, com a mesma estrutura, espaço cênico e mobiliário dos cinemas, adaptáveis e bem
localizados, onde geralmente apenas é feita a sobreposição do letreiro a antiga fachada.

Figura 14. Fachada atual do antigo Cine Albatroz, Figura 15. Interior do antigo Cine Albatroz, hoje
Foto: Isabella Trindade templo da Igreja Universal do Reino de Deus
Foto: Isabella Trindade

18
Idem, Ibidem
12
Figura 16. Fachada atual do antigo Cine Eldorado Figura 17. Interior do antigo Cine Eldorado, hoje
Foto: Isabella Trindade templo da Igreja Universal do Reino de Deus
Foto: Isabella Trindade

Considerações finais
A arquitetura dos cinemas representa a visão moderna de uma época, sem muita
pretensão de originalidade, ela buscava expressar uma linguagem moderna, muitas vezes
da idéia romântica que o cinema representava para a sociedade. Encontramos basicamente
três características arquitetônicas presentes nestes edifícios. Num primeiro momento, na
primeira década do século XX, uma linguagem eclética nos teatros adaptados para exibição
de filmes (Cine-teatro do Parque, Cine Glória e Cinema Moderno); depois com a construção
das primeiras salas com fim específico para exibição de filmes, surgiram traços da
arquitetura expressionista, e de uma arquitetura art decó (Cine Eldorado e Arraial); e,
finalmente os edifícios da década de 50 e 60 uma arquitetura com caráter moderno, ou pré-
moderno (Cinema Art Palácio e o Cine Albatroz).
É importante lembrar que o período estudado, foi marcado pela reforma urbana no
bairro de Santo Antônio a partir da década de 20, que resultou na abertura da Avenida
Guararapes e cujo debate envolveu a população, os dirigentes, intelectuais, arquitetos e
urbanistas. E pela influência do DAU- Departamento de Arquitetura e Urbanismo, chefiado
por Luis Nunes19, cujo trabalho resultou nas primeiras realizações da arquitetura moderna
no Recife, entre 1934 e 1937.
Na cidade conhecida como a ‘Hollywood do Brasil’ com larga tradição cultural e
intelectual, com a produção de filmes locais e cineclubes, as várias salas de cinema fazem

19
Luiz Nunes, criou e dirigiu a DAC – Diretoria de Arquitetura e Construção, posteriormente
reformulada e denominada DAU - Diretoria de Arquitetura e Urbanismo. Fazia parte da equipe
chefiada por Luiz Nunes o arquiteto e paisagista Burle Marx, o arquiteto Aníbal de Melo Pinto, o
calculista Joaquim Cardoso, os arquitetos Saturnino de Brito e João Correia Lima contratados em
1936, além de Ayrton Carvalho e Antônio Bezerra Baltar, estagiários de engenharia.
13
parte da memória coletiva da sociedade. Hoje constatamos que esse parte deste patrimônio
desapareceu devido a especulação imobiliária e os poucos edifícios que resistiram estão
bastante descaracterizados (sobretudo os cinemas de bairro) ou em desuso, como o caso
do Cine Art Palácio.
É importante a preservação deste patrimônio, registro da arquitetura de uma época
marcada pela busca pela modernidade, cujos edifícios representam a síntese entre as novas
idéias Modernas e um savoir-faire dos antigos.

Referências bibliográficas
ANDRADE, Paulo R., Câmara, Andrea. Protomodernismo ou uma outra cultura da modernidade.
in AU- Arquitetura e Urbanismo nº 51, pag 73-77, dez93/jan94
ANELLI, R., GUERRA, A., KON, N. Rino Levi. Arquitetura e cidade. São Paulo: Romano Guerra
Editora, 2001
CAVALCANTI, Paulo. O Caso eu Conto como o Caso foi: A luta Clandestina.(memórias
políticas) Recife: Guararapes, 1985.
__. O Caso eu Conto como o Caso foi: da coluna Prestes a queda de Arraes. (memórias). SP:
Alfa-Omega, 1978.
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CONDE, L.P., ALMADA, M. Guia da Arquitetura Art Déco no Rio de Janeiro. Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro, 1995.
COSTA, Renato da Gama-Rosa. Salas de cinema Art Déco no Rio de Janeiro. A conquista de
uma identidade arquitetônica. Dissertação (Mestrado) em arquitetura UFRJ: 1998.
DE FUSCO, Renato. A idéia de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
FELZEMBURG,M.,FIALHO,E.,GOMES,G. Novas Igrejas Protestantes: um programa
arquitetônico?. São Paulo: Vitruvius, 2003. Disponível em:
<http;//www.vitruvius.com.Br/arquitextos/arq193> Acesso em 28 de maio de 2005, 18:45:30
FREYRE, Gilberto. Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife. 2ª edição. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1942.(Col. Documentos Brasileiros).
GOMINHO, Zélia de Oliveira. Veneza americana x mucambópolis. O Estado Novo na cidade do
Recife(décadas de 30 e 40). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1998.
MOTA, Mário. BÊ-A-BÁ de Pernambuco. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1991, 412 (Série Obras de
Consulta, n.120)
Revista Cinema (1927-1933)
REZENDE, Antônio Paulo de Morais. (des)encantos modernos: histórias da cidade do Recife na
década de vinte, Tese (Doutorado). São Paulo: USP, 1992.
SARAIVA, Kate. Cinemas do Recife. Morfololgia de edifícios e salas para exibição
cinematográfica. Recife: Trabalho Final de Graduação. UFPE, 2002.

14
SEVCENKO, Nicolau: República: da Belle Époque à era do Rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. (História da vida privada no Brasil; 3).
SOUZA BARROS. A Década de 20 em Pernambuco. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Acadêmica,
1972.

15

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