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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 65
10 de julho de 2010

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

A aula de hoje será um pouco trabalhosa, pois temos dois textos para ler e comentar: (a) La
Filosofia Actual. Pensar Sin Certezas, de Dardo Scavino (professor da Universidade de
Versailles, França), editado em Buenos Aires pela editora Paidós em 1999, reimpresso em
2000; e (b) A Filosofia Contemporânea. Introdução Crítica, de Wolfgang Stegmüller, publicado
pela EPU (Editora Pedagógica Universitária da Universidade de São Paulo) em 1977.

Para introduzir a leitura desses textos, precisamos nos lembrar que com Hegel foi inaugurada
certa tradição de pensamento que iria se consagrar no uso universitário geral, e se tornou quase
que um pressuposto inconsciente de muito do pensamento contemporâneo. Esse pressuposto
diz que a evolução histórica do pensamento é o desenvolvimento interno da própria filosofia,
como se fosse uma longa meditação filosófica que começa com os pré-socráticos e chega até o
presente, de modo que não haveria muita diferença entre a estrutura de uma meditação
filosófica e a estrutura da história do pensamento. Seriam mais ou menos a mesma coisa: como
se fosse a humanidade pensando. Ressalta-se aí o elo de unidade e continuidade entre as várias
escolas filosóficas tomadas, não como fenômenos independentes ou como “produtos da cultura
do seu tempo”, mas como se fossem momentos de um longo pensamento filosófico. Tão logo
Hegel ensinou às pessoas a pensar assim, muita gente achou que era uma boa idéia, e
continuaram praticando isso ao longo do tempo.

Eu lembro, por exemplo, que quando estava estudando com o Padre Ladusans, um trabalho,
dos dois que desenvolvi para apresentar lá, foi depois usado como introdução do livro do
Mário Ferreira dos Santos, “A Sabedoria das Leis Eternas”, e o outro se chamava “Análise
Estrutural da Crise da Filosofia Ocidental de Vladimir Solovyov”. Vladimir Solovyov era um
pensador russo e poucos pensadores seriam mais diferentes de Hegel do que de Solovyov, mas
ele ali usava exatamente o mesmo método, ou seja, examinava a evolução da filosófica durante
certo período, partindo de Descartes até o momento em que ele entrava na história, e tomava
este desenvolvimento como se fosse o desenrolar interno de um exame filosófico. Quando você
faz isso, sabe que está entrando na história, no diálogo filosófico num determinado momento.
O que na verdade não é bem um diálogo, é mais como um monólogo com uma única mente
pensando. No momento em que se entra nesse monólogo, existe um certo status quaestionis,
pois a coisa foi examinada até certo ponto e a ordem seguida por este raciocínio te obriga a
entrar nela num certo momento, numa certa etapa. Então você se situa historicamente, do
mesmo modo que se situa logicamente na questão, ou seja, têm-se ali os resultados dessa longa
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elaboração e eles de certo modo tornam obrigatórios determinados temas e abordagens que
são aqueles compatíveis com o status quaestionis.

O desenrolar histórico da filosofia, ou de uma certa linha de investigações filosóficas, adquire


um valor paradigmático, ele é o modelo de raciocínio sobre um determinado tópico, sobre um
determinado assunto ou até sobre todos eles. Uma das diferenças fundamentais entre o que é o
conhecimento no seu sentido mais rigoroso e o que é a acidentalidade da vida desaparece por
completo, passa a não existir mais acidentalidade, ou seja, a sucessão dos acontecimentos
torna-se, ela mesma, uma norma. Isto não deixa de ser uma técnica de raciocinar, mas
apresenta muitos problemas. De uns 30 ou 40 anos para cá, se consolidou um desses modelos
históricos de desenvolvimento da filosofia, como se fosse o padrão para todas as faculdades de
filosofia do mundo. Escolhi este texto do Dardo Scavino precisamente porque ele resume isso
de uma maneira extremamente competente. Ele mostra qual é a linha de desenvolvimento
histórico que é tomada pela maior parte das universidades, pelo menos na Europa e na
América Latina (não nos Estados Unidos, onde é um pouco diferente, embora algumas
faculdades sigam o mesmo esquema), o modelo de desenvolvimento histórico que é tomado
como universalmente válido e obrigatório. Isso significa que dentro dessas escolas, desses
ambientes acadêmicos a que estou me referindo, que é basicamente franco-germânico, que
equivale, sobretudo, para a França e para a Alemanha, esta linha de desenvolvimento é
considerada obrigatória. No momento em que entra na faculdade e começa a estudar filosofia,
você está entrando nesta linha de desenvolvimento, nesta discussão, e vai tomar os problemas
num certo estágio de desenvolvimento que eles alcançaram. Eu nunca vi nenhum outro livro
que resumisse de uma maneira tão cândida esta linha de desenvolvimento. A partir do
momento em que ela é tomada como universalmente válida, isto é, como se fosse a única linha
de desenvolvimento possível da filosofia nesse tempo, então ela marca aquele coeficiente de
conhecimento que se precisa ter para ser um bom estudante de filosofia no meio acadêmico
atual. O estudante precisa conhecer vários pontos porque os filósofos os discutiram, passando
por este e aquele ponto até chegarem aonde estamos. Tão logo o estudante se situa dentro
dessa linha de desenvolvimento, ele alcança seu máximo desenvolvimento intelectual possível
como estudante de filosofia, ou seja, ele se torna um opinador qualificado em filosofia porque
ele conhece [0:10] o status quaestionis, ele sabe onde as coisas estão e está, por assim dizer,
usando a expressão do Ortega y Gasset, “a la altura de los tiempos”, quer dizer, seu
desenvolvimento intelectual está nivelado com aquilo que se alcançou até o presente. Isso é o
que se entende nessas faculdades e ninguém precisa declarar que a coisa é assim, isso é tomado
como uma verdade tão óbvia que ela é implícita e ninguém precisa dizê-la.

Tão logo dominamos esta seqüência, que é uma seqüência de autores, livros, temas e
propostas, e nos qualificamos como estudantes ou professores de filosofia, então podemos
examinar a coisa de fora e levantar alguns problemas. Primeiro: quem disse que essa linha de
desenvolvimento é a central? Quem escolheu esses autores e esses tópicos? Quem determinou
que esta linha de desenvolvimento fosse a principal? Para vocês verem como esse negócio é
problemático, entraremos na leitura do segundo texto do Wolfgang Stegmüller, que mostra
como a evolução da filosofia no século XX levou a um estado de fragmentação no qual se tem
escolas, correntes e grupos filosóficos que não conseguem dialogar entre si porque um não
sabe do que o outro está falando. Vemos então que essa linha que vem sendo oferecida (no
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Brasil acredito que em todas as faculdades de filosofia onde haja gente competente pelo menos
para fazer isso) e que é adotada como universalmente paradigmática é só uma dentre muitas
possíveis, e que existe um abismo entre ela e outras abordagens possíveis. Essa linha de
desenvolvimento que é mostrada aos estudantes como se fosse a filosofia do século XX, ou o
conjunto de conhecimentos ou de experiências intelectuais que têm de ser absorvidas para você
ser um estudante qualificado, é apenas um grão de areia no oceano e que, visto de outros
ângulos, de outras abordagens possíveis que ficam à margem desse estudo atualmente oficial,
ela nada tem de necessário, nem uma lógica interna; é apenas uma sucessão de opiniões como
qualquer outra. Inclusive a articulação de algumas dessas opiniões com as outras é bastante
duvidosa porque quando um filósofo acredita estar respondendo a outro, como por exemplo,
quando Heidegger acreditou estar respondendo a Edmund Husserl, que veremos daqui a
pouco, não estava respondendo coisa nenhuma, mas falando de outra coisa, desde outro ponto
de vista, e acredita que está num diálogo quando não está em diálogo nenhum. É como se um
ator tivesse treinado para representar Hamlet e entrasse como Rei Lear e encaixasse suas frases
ali de alguma maneira. Na verdade, a aparente lógica desse desenvolvimento não existe,
embora, quando ela é narrada, como pelo professor Scavino, ela pareça ter uma unidade de
tipo Hegeliana, ou seja, o desenvolvimento dialético de uma questão através de posições, de
oposições e sínteses que se desenrolam no tempo. Parece ter uma unidade muito profunda e
parece que aquilo resume a questão central da filosofia no nosso tempo, mas quando você vai
ver não é nada disso.

u vou ler, não o texto inteiro, mas uma parte do livro do professor Scavino e começarei na
página 21 e pular a introdução. Podemos até voltar a ela depois, talvez na aula seguinte, mas
para os fins do que quero expor aqui, temos de ler da página 21 a 29, ou não vai dar para
acompanhar o que estou falando. Depois de ler tudo, voltaremos analisando ponto por ponto
e talvez não consigamos encerrar este assunto nesta aula, se isto acontecer prosseguiremos na
próxima.

“Capitulo 1 - O giro lingüístico”

Aqui ele vai introduzir a noção de giro lingüístico de Wittgenstein, mas não nesta parte que
vamos ler. Nós vamos ler somente o processo anterior que leva até, segundo ele, à filosofia de
Wittgenstein. Não chegaremos a Wittgenstein, vamos parar um pouco antes.

“1 - Não existem fatos, só interpretações

O problema da verdade

Até finais do século XIX, Gottlob Frege havia afirmado que o sentido de uma
proposição depende das suas condições de verdade. Mas o que ele queria dizer com isso?
Quando alguém diz “chove”, por exemplo, compreendemos esta asserção porque
sabemos o que se passa quando a proposição é verdadeira, isto é, quando efetivamente
chove. Se alguém nos perguntasse o que quer dizer o enunciado “chove”, deveríamos
respondê-lo com outro enunciado que descrevesse esse acontecimento, ou seja, que
definisse a proposição “chove”. “Chove” = cai água do céu, por exemplo. O que para
Frege significava, justamente, dizer quais eram as condições da verdade desse
enunciado: se cai água do céu, então o enunciado “chove” é verdadeiro. Pois bem, se as
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expressões “chove” e “cai água do céu” têm o mesmo significado, é porque ambas se
referem à mesma coisa, ainda que o façam de maneira diferente. Assim “o vencedor de
Iena” e “o vencido de Waterloo” são proposições que têm o mesmo referente:
Napoleão. O que muda é o sentido, a maneira de apresentá-lo ou a perspectiva. O
mesmo sucede com os enunciados: “estrela matutina” e “estrela vespertina”, dois
sentidos diferentes que se referem à mesma coisa, e coincidem com o nome de “planeta
Vênus”. No entanto, e isto é primordial, a expressão “planeta Vênus” não é o referente
daquelas proposições. Não, o referente é sempre uma realidade exterior ao discurso,
algo que só pode assinalar-se com o dedo ou com aquelas palavras que os lingüistas
chamam deícticos, do tipo isto, isso ou aquilo. Há algo, um x, ao qual se refere às
expressões: “x é o planeta Vênus”, “x é a estrela matutina” e “x é a estrela vespertina”.”

Ou seja, há um objeto externo ao discurso e este é o referente do discurso, e portanto é o


referente das várias expressões com que nos referimos a este mesmo referente.

“Há um indivíduo cuja existência a história verificou e ao qual se referem as


proposições: “x é Napoleão”, “x é o vencedor de Iena” e “x é o vencido de Waterloo”.

O próprio Frege se verá obrigado a introduzir algumas modificações a esta proposta


inicial, sobretudo a partir das objeções que lhe fará seu discípulo inglês Bertrand Russell
em uma carta de 1902. Mas o certo é que sua tese se converterá no ponto de partida,
tanto das Investigações Lógicas de Edmund Husserl como dos “Tractatus Lógico-filósofico”
de Ludwig Wittgenstein, textos que dão origem a duas das correntes filosóficas mais
influentes deste século: a fenomenologia e a filosofia analítica. Pois bem, alguém pode
perguntar-se por que a lógica de Frege se tornou tão importante. A resposta é simples:
sucede que esta semântica da verdade parecia haver resolvido um problema que
remontava à Crítica da razão pura de Kant e que dizia a respeito à fundamentação do
discurso científico.

Este filósofo, recordemos, reconhecia dois tipos de juízos lógicos: os analíticos (A=A) e
os sintéticos (A=B). A lógica tradicional, de ascendência aristotélica, só aceitava como
universais e necessários, ou válidos a priori, os juízos analíticos. Por exemplo: “O
homem é mortal”. Porque bastava analisar o conceito de homem para saber que se
tratava de um ser mortal, já que era um animal ou um ser vivo. Mas este saber não
implicava nenhum progresso no conhecimento, simplesmente tornava explícito certos
[0:20] saberes implícitos no conceito. Os juízos sintéticos, ao contrário, os que
aumentavam o conhecimento de uma coisa (“A Terra gira ao redor do Sol”, por
exemplo), se baseavam na experiência e não eram desde a perspectiva aristotélica,
universais e necessários, simplesmente porque o predicado “girar ao redor do Sol” não
podia deduzir-se a partir de uma análise do conceito de “Terra”.”

Ou seja, além do conceito de Terra, precisava-se de mais alguma coisa, sendo que esta você a
tinha da observação: “A Terra gira ao redor do Sol”.

“No entanto, a ciência moderna se caracteriza, antes de tudo, por esses tipos de
enunciados. Toda a Crítica da razão pura de Kant se dedicava então a resolver
este problema: como são possíveis os juízos sintéticos a priori?”
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A priori quer dizer aqui anterior e independente da experiência.

Kant acreditava que só são universais e necessários os juízos a priori, ou seja, aqueles obtidos
por pura análise lógica ou por meios puramente especulativos, sem depender da experiência
para a confirmação, porque experiência só nos fornece conhecimentos contingentes, quando se
observa que as coisas são assim, mas não que as coisas tenham de ser necessariamente assim.
Nada que acontece no mundo, que possa ser observado e conhecido por experiência, traz
dentro de si a marca da necessidade, ao contrário, todas trazem a marca da coincidência ou da
contingência, ou seja, uma coisa aconteceu mas não quer dizer que tenha de acontecer.
Portanto, nenhum conhecimento por experiência, segundo a tradição antiga ou aristotélica, é
válido universalmente, mas somente dentro das condições da experiência. Por exemplo, os
juízos da matemática ou da aritmética elementar não dependem da experiência: para saber que
1+1=2 ou que 2+2=4, não é preciso somar milhões de vezes para saber que o resultado será
sempre o mesmo, porque essa conclusão está decidida por um elo de necessidade interna que
se obtém pela simples análise do conceito.

Kant dizia: se todos os conhecimentos obtidos por experiência são contingentes e só são
universalmente válidos os conhecimentos obtidos a priori, então como é possível uma ciência
do universo físico que obtenha leis universais e necessárias? Ele acreditava que, embora
existisse esse problema, essa contradição, que a ciência física obtinha leis universais e
necessárias porque ele acreditava que a mecânica de Newton era universal e necessária. Ele
tinha esse problema: por um lado, a ciência que se obtém por experiência não pode fornecer
conhecimentos universais e necessários, por outro lado é um fato que Newton obteve
conhecimentos universais e necessários. Então temos aqui um problema a resolver. Assim
entendia Kant. Hoje sabemos que a mecânica de Newton nada tem de universal e necessário,
ela vale apenas para certo campo de observação e é um conhecimento empírico como qualquer
outro, mas na cabeça de Kant o problema existia.

A única saída que ele via para isso era encontrar a possibilidade de juízos sintéticos a priori, que
são juízos que acrescentam algo aos conceitos, que não são obtidos por mera dedução interna
do conceito, mas que por sua vez não dependem da experiência para validá-los. Ele acreditava,
por exemplo, que o juízo “o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta” é um juízo
sintético a priori. Ele diz: não se pode deduzir isso do conceito de reta e, no entanto, este é um
conhecimento universalmente válido, hoje entendemos que isso é apenas uma falácia lógica.
Ser um caminho mais curto entre dois pontos faz parte da definição de reta e pode ser
deduzido da definição de reta, mas Kant achava que não.

Ora, Kant criou um monte de problemas inexistentes e depois se dedicou a resolvê-los; e mal.
Mas deixou, de alguma maneira, uma série de enigmas que atraíram a atenção dos filósofos
subseqüentes e que de algum modo determinaram a curso da evolução filosófica, precisamente
este curso evolutivo que o Dardo Scavino está descrevendo aqui.

Kant deixou as coisas neste ponto: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Ele tentou
explicar como eles são possíveis e a sua explicação falha, e o exemplo dos exemplos que ele
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fornece que é o do caminho mais curto entre dois pontos não é de maneira alguma um juízo
sintético a priori, mas é um simples juízo analítico.

“Um século mais tarde, Frege parecia haver concebido uma lógica que se ajustava
perfeitamente às exigências kantianas. A expressão “estrela matutina” não pode inferir-se
de uma simples análise do conceito de “estrela vespertina” e, no entanto, dado que
ambas se referem ao mesmo objeto, a um mesmo x, podemos torná-las equivalentes ou
substituí-las: “estrela matutina = estrela vespertina”, isto é, A = B. Pois bem, esta
igualdade ou esta substituição resultava possível se, e somente se o referente x existisse e
fosse idêntico a si mesmo.”

Só se pode dizer que “estrela matutina” é a mesma coisa que “estrela vespertina” se existe um
objeto qualquer que é o referente e se ele permanece idêntico a si mesmo. A expressão A é
igual à expressão B porque elas têm o mesmo referente; se este referente não existisse ou se
não fosse idêntico a si mesmo, então não se poderia dizer que as duas expressões são idênticas
a si mesmo.

“Estas condições, no entanto, eram bastante problemáticas. Em primeiro lugar, o que


significava “existir”? Para Russell e os positivistas lógicos, dizer que algo “existe”
significava que podia ser verificado pela experiência sensível, que se podia ver, tocar,
ouvir. Por isso, os enunciados “O rei da França é careca” e “O rei da França não é
careca” resultavam igualmente falsos, simplesmente porque não existe, ao menos neste
momento, um rei da França. Em síntese, a ciência era, para estes filósofos,
fundamentalmente empírica. No entanto, o aspecto sensível das coisas é algo que,
justamente, muda e não se mantém idêntico a si mesmo.”

Frege disse que duas expressões só podem ser ditas idênticas a si mesmas se elas têm um
referente comum, se esse referente existe e se ele permanece idêntico a si mesmo. Como se
verifica isso? Por experiência. Porém, no mundo da experiência, tudo muda e nada fica
idêntico a si mesmo.

“Segundo esses pensadores, no entanto, dizer que existe uma substância que permanece
invariável para além das modificações acidentais da coisa, seria voltar ao discurso
metafísico que se tentava conjurar, já que não podemos verificar a existência dessa
substância por meio dos sentidos.”

Ou seja, se afirmamos que todo conhecimento é obtido pelos sentidos, então todos os objetos
dos sentidos são mutáveis e então a nenhum desses objetos se aplica à regra de Frege. Ou seja,
duas expressões jamais se poderiam dizer idênticas porque nenhuma das duas expressões
teriam um referente existente e idêntico a si mesmo, pois no mundo físico nada permanece
idêntico a si mesmo. Dessa forma, a única hipótese de haver um referente existente e
permanentemente idêntico a si mesmo, seria admitir uma essência permanente que está para
além da experiência física. Mas isto é uma proposta metafísica que não agradava aos filósofos
analíticos que estavam firmemente decididos a provar que todo conhecimento possível só se
limita ao mundo dos sentidos.
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“Daí o fracasso do projeto kantiano: os enunciados da ciência, os juízos sintéticos, não


podem ser a priori ou universalmente necessários. A ciência não descobriria as leis
(universais e necessárias) da natureza, mas se contentaria em verificar certas
regularidades.”

Cá entre nós eu pergunto: se tudo quanto é objeto de [0:30] experiência está continuamente
mudando e não se pode admitir que elas tenham uma essência para além das suas
transformações temporais, então não apenas a ciência não pode obter nenhuma lei universal e
necessária mas também não pode obter nenhuma regularidade, pois a regularidade é uma
constância. Se uma lei científica é constante, isso significa precisamente que ela não se aplica a
nenhum objeto de experiência já que todos eles são mutáveis. Conclui-se que isto foi uma falsa
solução ou um mero jogo de palavras que inventaram para justificar a existência da ciência
depois de ter negado a existência de essências permanentes. Se tudo é mutável, então nenhuma
regularidade é regular; ela só é regular sob certo aspecto, mas não se pode dizer que essa
regularidade corresponde a fatos de maneira alguma. Esses camaradas estavam tentando
fundamentar a ciência por um meio que a destruía completamente, mas essa parte destrutiva,
implícita nos seus argumentos, eles varreram para debaixo do tapete e fizeram de conta que
não tinham visto. Agora me digam: num mundo onde tudo muda, onde todos os objetos
acessíveis ao conhecimento, não tendo essência nenhuma, não sendo nada em si mesmos, mas
apenas estados que estão mudando continuamente, como se pode falar de regularidades?
Qualquer regularidade observada seria apenas uma curiosa coincidência e seria apenas um
aspecto aparente, ou seja, coisas que lhe pareceriam regulares quando vistas de certa maneira se
mostrariam irregulares se vistas de outra maneira. Neste caso não haveria ciência de espécie
alguma, nem mesmo reduzida à sua função modestíssima de observar e assinalar regularidades
estatísticas. Isto eu estou dizendo, não o Scavino.

“Por isso uma teoria científica pode ser modificada, e inclusive refutada, quando novos
fatos se verificam.”

O que quer dizer “verificam” e o que quer dizer “fatos”? Se todos os objetos a nós acessíveis
estão em constante mudança e não têm nenhuma essência, você diria que algo se verifica? Não
faz o menor sentido! Pode-se dizer no máximo que algo aparece ou parece. E dizer que as leis
científicas podem ser modificadas quando novos fatos se verificam; não! Elas podem ser
modificadas quando surge uma nova aparência. Então o que passa a ser uma lei científica? Um
enunciado de aparências que pode ser trocado por outras aparências. Isso é precisamente o que
nem Kant e nem outro filósofo anterior a ele chamaria de ciência, jamais. Isso quer dizer que
esse pessoal, pretendendo fundamentar a ciência e falar em nome dela, colocou, na verdade,
sem perceber ou sem querer admitir, um ceticismo integral. Eles destruíram toda a
possibilidade de ciência, mas ao mesmo tempo continuam falando com a autoridade da ciência.

“O cientista resulta, desde a perspectiva positivista, um observador ou um


experimentador.”

Mais ainda, digo eu: nessas condições, não se tem nenhum meio logicamente admissível de
verificar se uma observação ou uma experimentação é melhor do que outra. A não ser por
critérios profissionais e convencionais que não têm nada a ver com a estrutura da realidade, de
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maneira que há aí uma crise tremenda do pensamento científico, camuflada como se fosse um
grande progresso da consciência crítica humana.

“Também para o alemão Edmund Husserl, o conhecimento começava pela experiência.


Só que para este filósofo o termo “experiência” tinha um sentido muito diferente.
Husserl continuava uma tradição que remontava a Descartes e Kant: a de uma filosofia
da consciência. E a consciência não era uma “coisa” que se pudesse estudar como uma
estrela ou Napoleão. Daí que Husserl criticasse a psicologia ou “a ciência da alma”,
dedicada a abordar a consciência como se fosse um objeto. A consciência, afirmava ele, é
sempre a consciência de algo (esta era, por outro lado, sua definição de
“intencionalidade”).”

O entender significa tender internamente. A consciência não é uma coisa, mas um tender
interior em direção a um certo objeto, ou seja, não existe consciência em si; só existe a
consciência como tendência a um certo objeto.

“De modo que a consciência não é “algo”, uma coisa à qual possamos nos referir. Ao
contrário, é sempre a consciência que se refere a algo, a uma coisa, a um x, ainda que
não se saiba do que se trata, num primeiro momento, desta “coisa”. Assim, num ensaio
inspirado na fenomenologia de Husserl, Jean-Paul Sartre falará mais tarde de algo que
aparece, ou que se apresenta na penumbra noturna. Em princípio, argumenta este
filósofo, não sabemos se se trata de um homem ou de uma árvore; é simplesmente “uma
coisa mais escura que surge na noite”. Mas é, sem dúvida, algo. Logo, podemos verificar
que é de acordo com as diversas qualidades sensíveis que vamos percebendo. Uma cor,
uma textura e um odor nunca serão afecções sensíveis dispersas, mas desde o princípio
são cores, texturas e odores de algo, de uma coisa, de um x. De modo que podemos
decidir: “x é verde”, “x é áspero”, “x tem cheiro de clorofila” e assim sucessivamente. A
multiplicidade do sensível só se percebe sobre um fundo de unidade da coisa percebida.
A presença da coisa, poderia dizer-se, preexiste a todos os juízos que a determinam. Daí
que a aparência, o aparecer da coisa, não se confunda para Sartre com o falso, pelo
contrário, a aparência ou a presença é sempre verdadeira. “A aparência é o ser”, conclui
este filósofo, porque para ser, uma coisa deve aparecer-nos como tal, isto é, como algo.

A fenomenologia ia continuar assim uma antiga tradição da metafísica ocidental


segundo a qual o ser de uma coisa era uno, verdadeiro e bom.”

Os famosos transcendentais de Duns Scott: unum, verum, bonum.

“Uno, porque cada vez que há uma coisa, esta aparece precisamente como uma coisa.
“Tudo o que não é um ser não é um ser”, dizia Leibniz no século XVII, mas já
Parmênides considerava que o ser era uno. Verdadeiro, em segundo lugar, porque a
verdade é a aparição da coisa, o seu des-ocultamento o seu des-cobrimento, e por isso a
verdade é algo que se des-cobre. E bem, finalmente, porque este ser carece de
predicados e de determinações que implicam sempre uma certa negatividade (ser árvore,
por exemplo, implica não ser animal, não ser racional etc).

Recordemos que já para Platão, o bem era um nome do ser, e por isso não existia idéia
do bem: predicar algo a respeito do bem implicaria convertê-lo num ser particular,
encaixilhado, limitado, negar-lhe outras propriedades. Quando a teologia medieval falar
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de Deus, o fará em termos muito semelhantes. As coisas sempre têm algo de divino, na
medida que são unitárias, verdadeiras e boas, mas carece de sua perfeição desde o
momento em que tem qualidades particulares que as distinguem entre si (de maneira
que uma coisa é isto porque não é aquilo). Mas se pensamos que agora uma coisa só se
apresenta ante uma consciência, porque é una e aparece graças a essa consciência que a
percebe ou se refere a ela, nos damos conta de até que ponto o Homem podia ocupar o
lugar de Deus (e até que ponto o ateísmo de Sartre, por exemplo, era diretamente
proporcional ao seu humanismo).”

Então a existência e permanência das coisas passavam a ser função da consciência humana,
porque é para a consciência humana que elas têm unidade, uma forma interna e perseveram no
ser. [0:40]

“Ao exemplo sartreano dessa coisa surgida na noite, podemos agregar outro exemplo
proposto pelo próprio Edmund Husserl. Suponhamos que vemos um edifício. Nunca
podemos perceber todas as suas paredes exteriores; chegamos a observar duas ou no
máximo três (se contarmos o teto), porque sempre o fazemos desde um ponto de vista
no espaço e desde um momento no tempo. Não podemos evitar ter percepções parciais
e incompletas, já que estamos impedidos de ver todas as coisas desde todos os lados ao
mesmo tempo. Para ver todos os lados do edifício, devemos nos deslocar, mudar de
ponto de vista, e isso, como se sabe, toma tempo. No entanto, cada uma daquelas
paredes é a parede de algo, de modo que as perspectivas parciais se nos apresentam
como partes de uma unidade, de uma coisa, de um x que nunca vemos mas
pressupomos.”

Ou seja, você está vendo esta e aquela parede do edifício, nunca o vê inteiro, por todos os
lados, mas pressupõe (preste atenção na palavra pressupor), sem experiência, que o edifício do
qual se vê duas paredes tem pelo menos outras duas paredes e várias outras internas, além de
toda uma consistência interna. Não se vê nada dessa consistência interna, porém o modo de
você conhecê-la é pressupô-la, e isto é dito por Husserl e ainda por Scavino. Mas mostrarei
para vocês que isto está totalmente errado.

“À medida que nos deslocamos, recolhemos em cada presente da experiência não só o


passado imediato, mas também o futuro iminente: existe um “horizonte bilateral” de
retenção e protensão.”

Quer dizer, você retém algo dos dados que você pegou até aqui e projeta os dados que pegará
em seguida.

“Se não fosse assim, não veríamos nunca coisas, mas uma série descontinua de imagens
instantâneas sem correlação entre si: seria o esmigalhamento do mundo em fragmentos
carentes de unidade.

“Algo semelhante poderia dizer-se com respeito aos enunciados: “x é o planeta Vênus”,
“x é a estrela matutina” ou “x é a estrela vespertina”. Ainda que seus sentidos sejam
diversos e múltiplos, cada uma dessas proposições se referem a uma mesma coisa, como
se se tratasse das diversas perspectivas sobre algo que se apresenta ou aparece. De modo
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que a fenomenologia, graças ao conceito de intencionalidade, parecia restituir com êxito


aquele referente idêntico a si mesmo que fazia falta à lógica de Frege.”

Então, graças à consciência, através do mecanismo de apreensão, retenção e protensão, ela


apreende de algum modo a unidade do objeto. E portanto temos aqui o famoso referente
existente e estável que era necessário para que a lógica de Frege fosse válida, ou ao menos
parecia assim.

“Em todo caso, a fenomenologia vai desfrutar de um amplo prestígio em toda Europa
pelo menos até meados dos anos 60.

“Inspirado por Martin Heidegger, o filósofo francês Jacques Derrida publica em 1967
um ensaio, A voz e o fenômeno, em que se propõe “desconstruir” o conceito husserliano
de presença. Como acabamos de ver, este conceito funcionava como uma garantia de
unidade do referente para além de suas modificações sensíveis, das mudanças de um
ponto de vista ou dos diversos juízos que se pudesse emitir sobre ele. No entanto, tal e
como o colocava o próprio Husserl, para que esta unidade fosse possível, o presente
devia reter o passado e anunciar o futuro. Ou, dito em outros termos: o que se
apresentava devia ser ainda passado e já futuro, como se o presente fosse um nó onde se
enlaçasse a recordação do que já vemos e a antecipação do que veremos (“o presente
está carregado de passado e grávido de futuro”, havia dito Leibniz). De modo que,
conclui Derrida, “o presente não coincide consigo mesmo”. O que caracteriza o presente
não é justamente a identidade, mas a diferença: o presente difere de si. Longe de servir
como fundamento para a ciência, a consciência nos engana, já que percebe uma
identidade ali, onde há, pelo contrario, uma diferença. Conclusão desastrosa, se temos
em conta que Husserl havia se proposto fundamentar a identidade do referente da
lógica de Frege. Se a consciência é sempre consciência de algo, de uma coisa presente,
então a consciência é ilusão.”

Porque não há coisa presente nenhuma, só há ali uma coisa que já não é mais e outra que não é
ainda.

“Longe da lucidez crítica que se lhe atribuía, a consciência nos impele a aderir ao
fetichismo das coisas: a consciência é acima de tudo falsa consciência, e neste sentido,
Marx, Nietzsche e Freud tinham razão contra Husserl e os fenomenólogos. Ao destruir
o conceito de presença desse ser uno, verdadeiro e bom, Derrida inicia então a crítica do
que chama a “ontoteologia”: o discurso (logos) a respeito da coisa (ontos) considerada
como Deus (theos).”

É neste ponto, mais ou menos, que nós entramos na discussão. Quando você entra na
faculdade de filosofia, tem de estar à altura do status quaestionis, que é determinado pela sua
conclusão extraída por Derrida. A consciência é sobretudo falsa consciência, então só podemos
conhecer a consciência através dos estudos obtidos sobre a falsa consciência, e os grandes
estudiosos sobre a falsa consciência são Marx, Nietzsche e Freud. Marx dizia que “toda forma
de consciência historicamente registrada é apenas uma projeção de interesses ou necessidades
sócio-econômicas numa determinada classe”, ou seja, o sujeito imagina o mundo de
determinado modo porque sua classe precisa disso para sobreviver. Freud dizia que “a
consciência é apenas uma aparência que surge no topo de um conjunto de instintos
11

inconscientes em conflito”, então a consciência é eminentemente o disfarce dos instintos. E


Nietzsche dizia que “a consciência não é senão o disfarce da vontade de poder”, ou seja, você
existir significa poder, e poder significa querer mais poder, então aquilo que você pensa e
acredita conhecer, não é uma expressão do que as coisas são, mas do seu desejo de poder. Só
resta estudar a consciência sob estes três aspectos.

Acontece que quando chegamos à escola analítica, temos o problema que já vimos: se todos os
objetos que podem chegar ao nosso conhecimento estão em constante mutação e por trás deles
não existe nenhuma essência permanente, então não adianta nem mesmo a ciência desistir de
conhecer leis eternas e permanentes e tratar de conhecer apenas as regularidades estatísticas,
porque até as regularidades estatísticas não são regularidades estatísticas de maneira alguma.
São apenas aparências temporárias, momentâneas que podem ser desfeitas não pelo
conhecimento dos novos fatos, porque aí não há sentido falar em fatos. Nem pelo
conhecimento de novas experiências, porque não há nada que possa validar uma experiência
mais que outra, todas as experiências se equivalem, inclusive não se pode dizer que uma
experiência é mais científica que a outra. Sem confessar, esses camaradas haviam destruído a
possibilidade da ciência, e, no entanto, a filosofia analítica é tida como se fosse a filosofia
científica por natureza. E o Husserl toma a questão neste ponto, e como ele havia estudado a
lógica de Frege, tinha o maior respeito por ele e entendia que sem a lógica de Frege não podia
haver ciência nenhuma, então precisava inventar um jeito [0:50] de restaurar a noção de
substância, de coisa, de essências permanentes, por assim dizer. Para fazer isto, ele vai usar os
instrumentos criados por uma velha tradição de filosofia da consciência que começa com
Descartes. Sabemos que o ponto de chegada das meditações metafísicas de Descartes e,
portanto, o ponto de partida de toda a ciência cartesiana é a descoberta da consciência por si
mesma, o famoso “penso, logo existo”, ou seja, você não pode duvidar da existência da sua
consciência porque para duvidar precisa duvidar com sua consciência mesma, então ela não
pode ser colocada em dúvida.

Husserl acredita que, aprofundando esse exame que Descartes fez da consciência, ele pode
chegar a restaurar a noção da validade do objeto do conhecimento. Ora, este movimento de
Descartes, que eu analiso na segunda parte da apostila “Descartes e a psicologia da dúvida”
(não está publicada no site) sempre me pareceu um dos movimentos mais estranhos, na
verdade até extravagantes, a que um filósofo já se entregou. Pois, quando ele inventa o negócio
da dúvida metódica, eu tenho certeza de que dúvida nunca pode ser metódica, nunca pode ser
sistemática, porque uma dúvida não é um estado, é uma hesitação entre dois estados, um que
afirma e outro que nega (se você afirma, afirma, e quando você nega, nega), mas, quando você
não consegue se estabilizar nem numa coisa nem noutra, então você diz que está em dúvida. Se
você parasse de afirmar ou parasse de negar, a dúvida desapareceria, portanto não existe dúvida
se não existe afirmação ou negação. Digo mais: se o ato da afirmação ou o ato da negação não
durasse nem mesmo um instante no tempo, não haveria nem afirmação nem negação, isto é,
para duvidar, é preciso alternar entre um estado de afirmação que dura um certo tempo, mas
que não se sustenta e é substituído por um estado de negação, que também dura certo tempo,
mas que também se desfaz e você volta à afirmação e depois novamente à negação.
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A palavra dúvida, como a própria raiz já diz, duo, é a coexistência entre dois estados em
conflito e ela não é por si mesma um estado, a dúvida não tem uma substância em si; a única
substância da dúvida é a alternância, a incapacidade de deter-se num dos estados ou de
suprimir qualquer um deles, porque se um deles fosse suprimido, a dúvida desapareceria, e se
nenhum deles durasse nada, não haveria dúvida, mas apenas indiferença. O estado de dúvida é
uma alternância ativa entre esses dois estados e, por definição, não é possível você ter dúvida a
respeito de tudo. Para se colocar qualquer dúvida, é necessário que se tenha uma certeza
anterior. Se você tivesse dúvida a respeito de tudo, sua mente simplesmente estaria paralisada:
imagine milhões de “sims” e de “nãos” a respeito de tudo e qualquer coisa, coexistindo na sua
mente! É claro que isso não existe. A dúvida nunca é sistemática ou total, ela é parcial por sua
natureza. Ela só é cabível onde existe a alternância de uma possibilidade de “sim” e uma
possibilidade de “não”, e é claro que nenhuma mente humana concebível pode aplicar essa
operação a tudo. Nós temos dúvidas em série e não todas ao mesmo tempo. Faça a experiência
e veja quando você estiver na maior incerteza achando que é uma incerteza a respeito de tudo,
que você ainda está baseado numa infinidade de dados nos quais você acredita, porque se não
acreditasse em nada, não teria dúvida a respeito de coisa nenhuma, não teria material do qual
ter dúvida.

Quando Descartes decidiu colocar em dúvida tudo aquilo do qual ele não pudesse obter uma
certeza ou uma prova, ele está apenas dizendo isso, ele não pode fazê-lo, na verdade. Foi
justamente aí, que quando li pela primeira vez (vai fazer 40 anos), esse problema entrou na
minha cabeça: ele não vai fazer o que está dizendo que está fazendo. Vai apenas fingir. Ele
pode apenas dizer isto, mas não pode fazê-lo. Então a dúvida universal é um teatro, não é uma
experiência real. No entanto, Descartes insiste que a seqüência que ele está expondo nas
meditações metafísicas não é uma seqüência de raciocínios apenas, não é um raciocínio que ele
está montando, mas é uma narrativa de uma experiência interior. Eu vi que esse camarada se
observou muito mal, porque ele diz que está fazendo uma coisa que não fez, e no entanto ele
não está mentindo, mas está realmente equivocado a respeito de si mesmo. Existe em
Descartes uma distância entre o eu pensante e o eu existencial, e ele não sabe o que está
fazendo, só sabe o que está narrando. E foi aí que surgiu o negócio da paralaxe.

Por uma coincidência, Descartes conta que sentia uma especial atração erótica por mulheres
vesgas! Ele mesmo parece ter uma espécie de estrabismo mental, quer dizer, o olho cognitivo
olha para um lado e o olho existencial olha para o outro. Pior: ele diz que enquanto está
procedendo a dúvida universal, vai adotar uma moral provisória para orientá-lo em todos os
atos da vida, porque ele diz: se eu ficar em dúvida sobre todas as coisas, no sentido intelectual
e no sentido prático, ficarei paralisado, então vou adotar uma moral provisória. Eu digo: mas
como ele sabe que é provisória? Para adotar uma moral provisória, ele tinha que ter uma clara
vivência de tempo existencial, mas ele não estava colocando este tempo existencial em dúvida
ao mesmo tempo, caso contrário ele não poderia de maneira alguma seguir a moral provisória.
Ele não poderia adotá-la nem mesmo como provisória.

Descartes coloca em dúvida algumas coisas, mas ele acredita que está procedendo a uma
dúvida radical. Ora, a dúvida radical não apenas é impossível, mas contraria praticamente
todos os instintos humanos. Imagine como você se relacionaria com os elementos da ordem
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física duvidando da sua existência ao mesmo tempo, por exemplo, quando tivesse fome, você
iria duvidar da existência de alimentos e duvidar de que está tendo fome? Quando você fosse
respirar, teria que duvidar da existência do ar e duvidar da existência de sua respiração? Veja
como isso é absurdamente inviável. Então, pergunto eu: porque este homem teve a idéia de
levar a dúvida até as suas últimas e impossíveis conseqüências se isto não só é inviável na
prática, como também contraria toda a dinâmica vital do ser humano? Dito de outro modo:
porque que ele se voltou contra si mesmo, de uma maneira tão radical? Porque o seu eu
cognoscente se voltou contra o seu eu existencial de uma maneira [1:00] tão radical? Descobri a
solução disso quando estudei os três famosos sonhos que Descartes teve e que disse ter
despertado a sua vocação filosófica.

Não interessa analisar aqui esses sonhos, mas nós vemos que todos eles se condensam numa
hipótese que Descartes lança depois que é a hipótese do gênio mau, que seria um deus maligno
que criou o universo, e criou todo o sistema das aparências sensíveis com a finalidade de nos
enganar, de nos induzir ao erro. É mais ou menos como no filme Matrix, em que alguém
criou um mundo onde, por exemplo, você pensa que está comendo uma banana, é uma coisa
que tem gosto de banana, tem consistência de banana, nasce nas bananeiras, exatamente pelo
mesmo processo por que nascem as bananas, mas é inventada. Então o mundo real seria
fingido, a totalidade do mundo real seria fingida. Esta hipótese o lança num tal estado de
terror, que ele imediatamente se apega à idéia de que Deus é bom e jamais faria isto. Mas o
gênio mau não deixa de assombrá-lo de algum modo. A hipótese do gênio mau só surge no
raciocínio das Meditações Metafísicas mais para adiante (não surge desde o começo), mas foi ela
que fez Descartes raciocinar em termos da pior hipótese possível, que é a dúvida integral. Se
existe o engano universal, então estou automaticamente colocado numa situação de dúvida
universal. Portanto, não é o método da dúvida que o leva ao gênio mau, mas é a hipótese do
gênio mau que produz o “método” da dúvida. Dito de outro modo, o que Descartes está
querendo é conseguir um argumento infalível contra o demônio. Dante já dizia que isto é
impossível, porque o demônio é um lógico bem melhor do que nós. Descartes está querendo
vencer o demônio na base da discussão, quer discutir com ele aceitando a premissa demoníaca
para demonstrar em seguida que ela é falsa. Veja que isto não é uma questão filosófica que
possa surgir de um estado normal da nossa experiência, mas de um estado realmente
patológico de terror. É só assim que consigo explicar porque Descartes procedeu dessa
maneira.

No entanto, apesar de toda a sua estranheza e de toda sua óbvia inviabilidade, o método
cartesiano foi aceito por muitos filósofos como se fosse o ponto de partida universal e
necessário da filosofia moderna. Num livro com uma série de conferências que Edmund
Husserl fez, que se chama Meditações Cartesianas, ele diz claramente isso: “Descartes inventou
o começo absolutamente obrigatório da filosofia moderna. Todos nós temos que partir da
dúvida integral.” Se tudo é colocado em dúvida, só sobra no meio uma luzinha chamada
consciência, ou eu, que tem certeza da sua própria existência (sendo esta, segundo Descartes, a
primeira e a mais fundamental das certezas: eu sei que eu existo porque eu estou pensando que
eu existo ou eu estou negando que eu existo; para ambas as coisas eu preciso existir). Todo o
universo de Husserl é constituído do exame desta consciência. Ele vai descrevendo os seus
caracteres e diz que ela não é uma coisa, ou seja, você não pode se referir a ela como a um
14

objeto. A consciência é sempre referir-se a algo, ela tem sempre um objeto, é sempre
consciência de algo, e ele chama a este fato de “intencionalidade”.

Evidentemente, a estrutura do conhecer, quando referida aos entes do mundo, só pode ser
explicada nos termos que Husserl chama de “retenção” e “protensão”, ou seja, o conhecimento
se desenrola no tempo, e suponho que estou vendo, por baixo das aparências, certas essências
permanentes. Se estas não existissem, as aparências estariam boiando no vazio e seriam
absolutamente inviáveis. Só que esta maneira de ver as coisas se oferece em seguida à
contestação feita pelo Derrida, de que, se a consciência é apenas essa ligação entre passado e
futuro, ela não tem nenhuma consistência em si mesma e constitui-se apenas de uma diferença
entre passado e futuro. Ela não tem conteúdo nenhum e consiste fundamentalmente em
autoengano. Acho que esta crítica é legítima quando feita à fenomenologia de Husserl, porém,
se apresentamos a seqüência histórica dos pensamentos assim: Frege, escola analítica, Husserl,
(Heidegger – entre parênteses, pois a idéia foi dele) e Derrida, então chegamos no ponto em
que só nos resta estudar a falsa consciência usando para isto os instrumentos criados por Marx,
Freud e Nietzsche, que é exatamente o que se faz na quase totalidade das faculdades na Europa
e na América Latina (nos Estados Unidos ainda se leva muito a sério a filosofia analítica, e
também há alguns outros desenvolvimentos que não interessa discutir aqui). Mas se você
entrar em uma faculdade no Brasil, ou na USP, por exemplo, é isto que você vai ter: esta
seqüência e a conclusão final. Só nos resta estudar Marx, Freud e Nietzsche (e seus auxiliares:
Foucault, talvez um pouco de Wilhelm Reich, um pouco de Herbert Marcuse, para fazer um
certo floreio em torno disso, mas a substância é essa). Porém, em primeiro lugar, quem disse
que essa seqüência de pensamentos é algo mais que uma seqüência de acontecimentos, que ela
é universal e necessária? Quem disse que a evolução interna da filosofia tinha de ser esta? Em
segundo lugar, será que não houve outros desenvolvimentos paralelos completamente
diferentes que escapam disso? É claro que houve. Por exemplo, aqui nós não teríamos como
encaixar o Xavier Zubiri, nem o Bernard Lonergan. Então o que nós fazemos? Temos de
sumir com alguns gigantes da filosofia e nos ater a esta seqüência para poder chegar a essa
conclusão.

A crítica que a escola analítica fez à lógica de Frege está certa em si, e Husserl a toma como
ponto de partida. Mas está certa somente no que ela nega da lógica de Frege; o que ela afirma
do mundo real não faz o menor sentido. Ou seja, a discussão dos filósofos entre si torna-se,
para fins de pedagogia universitária, como se fosse a exposição dos vários aspectos que
esgotam a realidade, porque o fato é que a realidade não entrou nessa discussão, só entrou o
que os filósofos dizem. Sobretudo quando Husserl entra em cena, disposto a “restaurar” a
possibilidade do conhecimento válido e portanto defender o princípio da lógica de Frege, ele
entra com um viés determinado que vem das suas leituras filosóficas, e não do exame da
experiência, embora ele diga que toda a sua filosofia é experimental. Ora, qualquer exame que
você faça de qualquer experiência é experimental, mas quem disse que qualquer exame da
experiência reflete a estrutura da experiência na sua amplitude, e não somente um aspecto dela,
selecionado [1:10] não por exigência da própria experiência, mas por exigência da tradição
filosófica com a qual você vem armado e pré-moldado? Então, vejam que praticamente em
toda essa tradição que inclui Descartes, Hume, Kant e Husserl o eu humano só aparece como
15

sujeito do conhecimento, a consciência só aparece como sujeito do conhecimento ou como


objeto de si mesma.

Eu acho isso uma das coisas mais extraordinárias da história da filosofia: cada um desses
filósofos se vê como se ele fosse o sujeito do conhecimento e diante dele existisse só um
negócio chamado “mundo” ou “objeto”; ele próprio, o filósofo, jamais é objeto. O sujeito se
pergunta “como eu conheço?”, mas nunca pergunta “como os outros me conhecem? Como
sabem que eu existo?” Esta pergunta nunca foi feita, em toda a tradição moderna. Nem
mesmo por Husserl, que era um homem cuja integridade intelectual não podemos negar. Nem
Husserl, nem Frege, nenhum deles pensou nisto. Então eu pergunto: se eu não fosse
conhecido absolutamente, se ninguém me conhecesse, como poderia eu fazer qualquer exame
filosófico que fosse? Por exemplo, ao raciocinar, eu uso elementos de uma língua que alguém
me ensinou. Essas pessoas que me ensinaram a língua acreditavam que eu existia, me viam, me
tocavam, trocavam minhas fraldas, me davam comida, me davam mamadeira, e daí eu cheguei
até aqui. Ou seja, em nenhum momento eles se perguntam: quais são as condições existenciais
que preciso ter necessariamente para colocar essas perguntas filosóficas? As perguntas
filosóficas surgem no ar, absolutamente imotivadas, exceto pela curiosidade do indivíduo, que
a partir desse momento se considera “o” sujeito do conhecimento, considerando que para ele
tudo o mais é objeto. Ora, se eu jamais fosse objeto, como eu poderia ser sujeito? Vamos
definir sujeito como aquele que recebe informações, e objeto como aquele que emite – no
momento em que estou vendo esta mesa, ela está me transmitindo algumas informações
luminosas e táteis e eu as estou recebendo, e sei que estou recebendo, tenho consciência disto.
Se eu não emitisse informação alguma, como poderia receber alguma informação de fora? No
instante em que minha mão toca esta mesa, ela está fazendo algo com a mesa, não é só a mesa
que está fazendo algo para mim. Eu exerço um peso sobre ela, uma temperatura, e assim por
diante. E é através desta troca de informações que eu recebo a informação que vêm da mesa. O
eu que conhece nunca é totalmente passivo. Jamais. Se ele fosse um puro observador, cuja
única função consistisse em conhecer, o que poderia ele conhecer? Poderia existir
conhecimento sensível sem que eu fosse objeto também? Vamos tomar como exemplo a mais
sutil e mais evanescente das ações: o olhar. Eu dirijo meu olhar para cá, para lá, e no instante
em que o dirijo, faço com que algumas coisas venham ao primeiro plano e outras vão para o
segundo plano. Posso olhar coisas tão de perto que tudo o mais desaparece no fundo. Ou seja,
no mínimo, eu tenho esse poder seletivo que exerço sobre os objetos, não presto uma atenção
chapada em tudo. Quando ouço, é a mesma coisa. Se há um ruído a meu lado e uma pessoa
está falando baixinho, posso escolher me tornar surdo para o ruído e prestar atenção no que
aquela pessoa está dizendo. Quanto à função do tato, mais ainda: você só toca uma superfície
de cada vez. No momento em que estou fazendo isso, estou emitindo informações, e portanto
sou um objeto; se não o fosse, não poderia ser um sujeito nem por um único minuto, nem por
uma fração infinitesimal de segundo. Dito de outro modo, para o puro sujeito não existe
mundo. O mundo só existe na ação que você exerce sobre as coisas em torno, as quais lhe
respondem de algum modo.

Não existe esse conhecimento puramente passivo, do puro sujeito que só recebe as
informações. E no entanto, toda a filosofia moderna se construiu na base de examinar o sujeito
como se ele fosse puro sujeito. Inclusive o próprio Husserl cai nesse erro monstruoso.
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Posso imaginar então a minha consciência, por um único minuto, como se fosse pura
consciência cognitiva, sem nenhuma existência no espaço/tempo? De jeito nenhum, porque se
a minha consciência não estivesse no espaço/tempo não haveria espaço/tempo para mim, e
portanto não haveria nada. Lembrem-se que quando eu estava explicando a questão da alma
imortal, algumas aulas atrás, eu disse que a expressão “consciência fora do corpo” é errada,
porque ou a sua consciência encara as coisas desde dentro do corpo, como você está fazendo (o
que não quer dizer que ela esteja no corpo, mas que o corpo é o ponto de observação desde o
qual ela se coloca), ou ela se coloca acima do corpo e o tem, portanto, como um de seus
objetos (objeto real, atual, ou potencial). Se, ao me colocar acima do corpo, eu me colocasse
realmente fora dele, eu teria que ignorá-lo por completo, e eu não saberia onde estou. E se eu
não soubesse onde estou, como eu saberia que estou acima do corpo? Por exemplo, se eu
tenho uma experiência de visão remota, como é que eu sei que é remota? Então o sujeito que
está em estado de morte clínica, e que vê o próprio corpo na mesa de operações, ou na cama,
não pode dizer que está fora do corpo, porque agora o corpo é um conteúdo da sua
consciência, e portanto está dentro dela.

Nós jamais nos separamos do corpo, nunca! Você pode ter várias posições em relação ao
corpo, várias relações diferentes com o corpo, mas, mesmo dentro da perspectiva da Teologia
Cristã, a sua alma que vai para o Juízo Final é alheia ao seu corpo? Como pode ser, se você lá
vai responder pelas ações que praticou corporalmente aqui? E note bem que na Bíblia, em
nenhum momento se promete uma subsistência de puras almas, mas se promete um corpo de
glória. Seu corpo vai ser trocado, mas você não vai existir fora do corpo. Ou seja, nem na
religião existe isto.

E no entanto, toda essa filosofia examina um eu puramente cognoscente que, primeiro, nunca
é objeto de conhecimento para ninguém, nunca é conhecido, e está tão desligado do seu corpo
que pode supô-lo inexistente, de modo que só o eu cognoscente existe, enquanto o corpo está
colocado entre parênteses. É claro que, por este método, [1:20] você só vai dar a cara a tapa, e
vai vir um Derrida e dizer: “olha, tudo isto aí que você está falando é um tremendo
autoengano!” Só que o autoengano em que caiu a filosofia moderna não se observa na filosofia
antiga, nem em Platão, nem em Aristóteles, nem nos escolásticos, e não se observa numa série
de outros filósofos contemporâneos como Xavier Zubiri, que diz que não apenas nós
conhecemos a realidade, mas que essa dimensão que nós chamamos de realidade é própria do
ser humano – não existe realidade para os demais entes. Só existem impressões, estados deles.
Ele dá o famoso exemplo: quando faz frio, o cachorro sente frio, mas nós sabemos que o
inverno é frio. O cachorro não sabe disto, ele só sabe quando está sentindo. Também, essa
série de pensamentos não se aplica ao Eric Voegelin, que diz que a essência do nosso
conhecimento é participação na estrutura da realidade. Portanto não existe um sujeito aqui e lá
um objeto, ambos estão sempre dentro de um círculo de participação. E essa participação é,
por sua vez, a estrutura da realidade.

Se voltarmos um pouco a Edmund Husserl, você verá que a retenção e a protensão não
acontecem só no sujeito, mas também no objeto. Por exemplo, enquanto eu estou circulando
pelos vários lados de um edifício, conservo a visão que tive dos lados já vistos e tenho uma
expectativa dos lados ainda não vistos. Porém, essa mesma estrutura está no próprio objeto,
17

porque ele persevera no tempo. Se não perseverasse no tempo, ele teria uma existência
instantânea e eu não poderia percorrê-lo. Ou seja, só posso ter retenção e protensão porque
essa retenção e protensão estão na própria estrutura do objeto, e não podem ser analisadas
como se sucedessem somente no sujeito.

O exemplo mais simples, então, nos mostra o seguinte: não é que nós só podemos enxergar o
objeto por determinados lados e não por todos aos mesmo tempo; ele também não pode se
exibir por todos os lados. O que seria o edifício que tivesse todos os seus lados de um lado só?
Seria um painel, e não um edifício; e ninguém moraria lá dentro. Do mesmo modo, quando
eu vejo um ser vivo, um animal, uma pessoa, só o vejo pela sua superfície externa, porque para
vê-lo por dentro eu precisaria abri-lo e para isto eu precisaria matar a pessoa. Então esta
limitação do nosso conhecimento não é uma limitação nossa, ela é a forma de existência do
próprio objeto! Neste sentido, a consciência, se é feita de retenção e protensão, não é de
maneira alguma uma mentira, mas a perfeita adequação entre um ente, que é objeto e sujeito, e
outro entre, que também é objeto e sujeito. Qualquer ente que receba informações é sujeito
sob aquele aspecto, e é objeto enquanto transmite informações. É possível conceber algum
ente na realidade que jamais emitiu informação alguma para nenhum outro ente, sob aspecto
nenhum? Não, não é possível. Uma mera possibilidade matemática tem um conjunto de
relações lógicas necessárias com outras relações matemáticas e, neste sentido, ela as está
informando, ela está emitindo informação. Isto é assim mesmo com entes puramente
imaginários. E todos os objetos reais emitem e recebem informação. Não há um só ente que
esteja imune a este processo da troca. Aqueles entes que existem no tempo e no espaço só
podem ser conhecidos por retenção e protensão porque eles só podem existir como retenção e
protensão.

A objeção feita por Derrida mostra que ele só consegue conceber o presente em um sentido
atomístico; o presente para ele é apenas um limite infinitesimal entre a protensão e a retenção,
isto é, entre o passado e o futuro, e neste sentido evidentemente ele é um engano. Ele se
constitui apenas de uma diferença e não de alguma informação substantiva. Retenção e
protensão, porém, se são a forma característica do conhecimento no tempo, mas ao mesmo
tempo são também a forma de existência das coisas no tempo, pressupõem a existência de algo
que se chama continuidade do tempo. Ora, esta continuidade acontece apenas no tempo? Ou,
dito de outro modo, aquilo que sucedeu durante um tempo, quando pára de acontecer, volta
ao nada? Não, porque do nada, nada sai; o nada, nada produz; do nada, nada emerge. O que
quer que tenha participado do ser por um único instante infinitesimal nunca mais será um
nada. Entendemos assim que não pode haver tempo nenhum se não existe também a
continuidade perfeita e a eternidade. É como dizia Santo Agostinho: “o tempo é a forma
móvel da eternidade”, é a aparência móvel da eternidade. Tudo que existe no tempo existe na
eternidade e existe eternamente, sob a forma limitativa que tem a sua existência no tempo – ela
é aquilo e nada mais do que aquilo, mas um nada jamais será. Não podemos voltar ao nada,
ninguém pode voltar ao nada, nada nunca pode voltar ao nada! Só o nada mesmo que sempre
esteve lá e que nunca foi nada pode continuar sendo o nada eternamente, porque não é nada.
Isto quer dizer que a existência temporal tem fundamento no eterno, senão ela teria que existir
por si mesma, boiando no nada, o que é impossível. Vemos então que esta crítica que o
Derrida faz ao Husserl é válida contra a formulação que este deu ao problema, mas não é
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válida contra a intenção inicial de Husserl de fundamentar a lógica de Frege. A lógica de Frege
é imbatível nesse aspecto. Podemos designar uma coisa por nomes diferentes, de tal modo que
esses dois termos tenham a mesma significação se, e somente se, o referente existe e tem
unidade. Ora, tudo o que existe tem necessariamente unidade, porque tem continuidade. Se
fosse instantâneo, um instante infinitesimal, não poderia ser conhecido. Se pode ser conhecido,
é porque é algo que persevera, ou no tempo, portanto indiretamente dentro da eternidade, ou
persevera diretamente dentro da eternidade porque é eterno.

Vemos então que toda essa discussão foi apenas uma discussão técnica feita entre pessoas não
muito hábeis, [1:30] porque os erros de método que cometem são enormes, imensos. Por que
pessoas tão inteligentes cometem esses erros? Porque estão comprometidas com uma tradição
filosófica determinada, e se fecham a outras tradições que poderiam corrigir os seus erros.

Outro dia eu estava assistindo a um documentário sobre essa figura extraordinária e


assustadora que foi George Ivanovich Gurdjieff. Você só começa a entender Gurdjieff quando
entende que todas as suas doutrinas são falsas. Ele mesmo diz: “Se as pessoas me
compreendessem, saberiam que sou um farsante”. Tudo o ele diz sobre a estrutura da
realidade, o ser humano etc., nada tem intenção de ser verdadeiro, mas pode exercer sobre
algumas pessoas uma função benéfica e sobre outras uma função maléfica. Eu até acredito que
Gurdjieff tivesse boa intenção, subjetivamente, para com seus alunos. Ele queria despertar
neles a consciência de uma forma de existência que está no fundo de todos os seres humanos,
mas que não pode ser captada nem física, nem emocional e nem intelectualmente. É por isso
que ele chamava a sua escola de “o quarto caminho”. Nos esoterismos tradicionais, por
exemplo, na Índia, você tem aquelas três modalidades de “yoga”, que significa a reunificação, a
união: Karma Yoga, que é baseada na ação, no ascetismo e no esforço; Bhakti Yoga, que é
baseada na devoção, na adoração de Deus; e Jnani Yoga, que é baseada no conhecimento.
Gurdjieff diz que nenhuma dessas três modalidades irá levar você a coisa nenhuma, porque o
simples fato de nós termos essas três possibilidades ou forças cognitivas dentro de nós mostra
que somos algo para além delas. Isso me parece bastante óbvio. Eu estou longe de ser um
admirador ou seguidor de Gurdjieff, pois já escrevi umas coisas terríveis a respeito dele, mas o
que é certo é certo e nós temos de reconhecer. Ele chamava sua técnica de “o quarto caminho”,
porque não era nem o caminho do ascetismo, nem o da devoção e nem o do conhecimento,
mas é algo que transcende esses três porque não tem a ver com as nossas funções, mas com o
nosso ser. Ele reunia as pessoas e dizia uma coisa extraordinária: “Vocês pensam que têm uma
alma imortal? Que vocês vão sobreviver? Vocês não têm alma nenhuma! Vocês vão morrer
como cães! Mesmo as formações espirituais ou sutis que você cria durante a sua vida vão durar
um pouquinho mais, mas depois vão se desfazer em pó, a não ser que você consiga alcançar a
verdadeira dimensão da eternidade. Você precisa adquirir uma alma, só que isso irá lhe custar
uma certa quantia em dinheiro”. Isso é uma piada satânica, evidentemente. Ele sabia que
estava mentindo. Ele mesmo diz: “Uma parte da máquina não pode melhorar a outra parte”.
Com isso, ele quer dizer que a parte ascética não pode melhorar a parte emocional; a parte
emocional não pode melhorar a intelectual, e vice-versa. É preciso um quarto elemento que
unifique tudo. No momento em que ele diz que uma parte de uma máquina não pode mover a
outra, nem melhorá-la, ele está em flagrante contradição com a idéia de que você não tem uma
alma, mas que pode adquirir alguma. Se você não tivesse, você não poderia ter, ou, como dizia
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Leibniz, “aquilo que não é um ser, não é um ser”. Mas Gurdjieff jamais teve a pretensão de
expor doutrinariamente o seu ensinamento. Quando seu discípulo Piotr Uspensky começou a
sistematizar aquilo, criando um sistema filosófico com base naquilo, Gurdjieff leu aquele
negócio e começou a dar risada. “Vocês pensam que Uspensky é um rapaz muito inteligente,
mas ele não entendeu nada”, disse Gurdjieff. Uspensky não entendeu a coisa mais simples: o
ensinamento Gurdjieff, mais válido ou menos válido, conforme você pense, tem na maior parte
dos casos um efeito letal, mas às vezes tem um efeito bom; ele é tudo, menos uma doutrina ou
um sistema filosófico. É um conjunto de koans, que são coisas enigmáticas que um mestre diz,
não porque elas sejam verdades em si, mas pelo efeito que elas vão ter na cabeça do discípulo e,
nesse sentido, dizendo coisas paradoxais, às vezes de uma comicidade absolutamente alucinante
(toda vez que eu leio Gurdjieff eu morro de dar risada), ele esperava obter algum efeito.
Infelizmente isso não aconteceu por quê? Porque as pessoas o levavam demasiadamente a
sério. Acho que você só pode tirar algum proveito do Gurdjieff se você se abrigar debaixo de
Jesus Cristo e olhar aquilo lá como uma coisa curiosa que aconteceu em certo momento da
história ocidental.

Nós podemos dizer que o que falta a todas essas análises que vêm desde Descartes, Hume,
Kant, Husserl, Heidegger etc., é uma profundidade existencial, no sentido que Gurdjieff falava
do “quarto caminho” ou “quarta dimensão”, que não é conhecida nem no mundo da ação,
nem no mundo da devoção ou do culto e nem intelectualmente, mas é conhecida através do
ser; é conhecida, digo eu, somente por confissão. Você tem de confessar que há uma quarta
dimensão que é o fundamento de todas as outras e que sempre esteve aí. É o tal do
conhecimento por presença. Não vejo outra saída. Mesmo que por instantes, quando você se
coloca nessa outra dimensão e admite que você é alguma coisa e que se é no tempo, você é
dentro da eternidade, aí acho que, pela primeira vez, você tem o direito de usar a palavra “eu”,
porque o Gurdjieff também destruía ilusões nos seus alunos impiedosamente: “Você acha que
tem um ‘eu’? Não, você tem um monte de ‘eus’, todos falsos! Você não tem ‘eu’ nenhum!”. O
que ele estava querendo despertar nos alunos de algum modo? Esse senso de uma espécie de
quarta dimensão. Não acredito de maneira alguma que o método Gurdjieff seja recomendável,
mas acredito que para certas pessoas, especificamente intelectuais ocidentais, muito
desenvolvidos intelectualmente, mas com o intelecto que está separado de sua condição
existencial ao ponto da alienação completa e da paralaxe cognitiva, se não era um remédio
eficaz, era no mínimo um remédio merecido. Eles mereciam ser humilhados, tanto quanto
Gurdjieff os humilhou. Se aprenderam alguma coisa com essa humilhação ou não, eu não sei.
Há outras pessoas que, por outro lado, não precisam dessa humilhação.

[Intervalo de aula]

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer André Marc, que enviou uma tradução da
conferência que Eric Voegelin deu na Alemanha, em 1981, sob o título A origem meditativa do
conhecimento filosófico da ordem. É uma conferência da maior importância, que iremos
disponibilizar na página do Seminário. A tradução está excelente, mas estou fazendo algumas
pequenas correções. [1:40]. Acho que alguns pontos deveriam ser mudados. Em primeiro lugar,
a insistência em sempre repetir os pronomes “nós”, “eles” etc. A língua portuguesa tem a
seguinte sutileza: quando se usa o pronome de maneira impessoal, por exemplo, quando você
não está se referindo a um número determinado de pessoas, não coloque o pronome. Isso é
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regra áurea de estilo. Nunca se diz: “nós fazemos assim...”, a não ser que se tenha um motivo
específico para usá-lo, mas pode-se usar o “nós” na forma de plural majestático: “nós,
Napoleão Bonaparte”, “nós, Catarina da Rússia”. Curiosamente, essa forma é chamada tanto
de plural majestático quanto plural de modéstia, que o sujeito usa para se engrandecer ou para
desaparecer por trás de uma coletividade. Você pode usar o “nós” quando se refere a um
sujeito determinado, por exemplo: “nós, brasileiros”; ou quando é um plural de modéstia ou
plural majestático. Quando é um “nós” indefinido, corte o pronome de qualquer jeito. Esta é
uma sutileza que só existe em português. Corrigirei esses e outros pequenos pontos e colocarei
na página do Seminário; isso será extremamente útil. Comentarei ainda numa aula posterior.
O ponto central que André pergunta é se eu concordo com o seguinte parágrafo:

“Uma das maiores construções históricas que viveu além da sua época e que deve ser tirada de
vista é de natureza teológica. Trata-se da distinção teológica entre a razão natural e revelação,
que vem da Idade Média.

“Na minha visão não existe nem razão natural, nem revelação, nem uma, nem a outra. Temos
na verdade uma construção teológica falsa de certos problemas reais que foi levada adiante por
ser do interesse da sistematização teológica.”

Isso é historicamente verdadeiro. O que ele diz é o seguinte: durante todo o estágio da busca
filosófica helênica, há uma iniciativa que vem de Deus e uma resposta humana. Isso, se for
para usar o termo “revelação” em sentido estrito, também seria parte da elaboração humana da
revelação. Eu não sei se teologicamente isso seria defensável, mas historicamente é verdadeiro.

Aluno: o gênio do mal de Descartes é bastante semelhante ao demiurgo dos gnósticos, aquele que teria
criado todo o universo. Sendo assim, houve influência gnóstica sobre Descartes?

Olavo: sem a menor sombra de dúvida! Todo o problema que Descartes está discutindo é um
problema interno do gnosticismo. É uma discussão de um gnóstico com outro gnóstico.

Aluno: neste caso, o gnosticismo também seria responsável pelo nascimento da filosofia moderna a
partir de Descartes?

Olavo: sim, e toda a obra de Eric Voegelin demonstra isso da maneira inequívoca. É evidente
que, quando Eric Voegelin assinalou o gnosticismo como a origem das ideologias
revolucionárias de massa, depois teve que se corrigir, porque viu que não havia só o elemento
gnóstico, mas havia um elemento de messianismo, que nasce de dentro do próprio
Cristianismo. De uma espécie de fusão entre Cristianismo e gnosticismo teria surgido toda
essa confusão ideológica.

Aluno: penso que Shopenhauer representa uma exceção na filosofia moderna pelo fato de pensar o
homem como sujeito do conhecimento; enfim, como consciência. Mas também como um animal
racional necessariamente encerrado em sua forma corpórea sob o princípio da individuação e na
perspectiva corpórea entre o sujeito e o objeto.
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Olavo: não há nem dúvida de que Shopenhauer tentou sair disso, mas ele o fez com
conseqüências absolutamente catastróficas. Ele parte muito da idéia do indivíduo inconsciente
– não o inconsciente freudiano, mas como o inconsciente já vinha sendo trabalhado dentro da
tradição filosófica alemã desde o século XVIII, esse inconsciente, essa força desconhecida
constituem para ele a essência última da realidade. Não me parece que a solução seja
totalmente aceitável. Vamos comentar Shopenhauer mais tarde, mas que ele tentou escapar
disso, ele tentou; teve uma discussão com Hegel, que ele odiava, e tentou encontrar uma saída
para isso, mas ele também foi um prisioneiro do kantismo.

Aluno: dos quatro “eus” mencionados, isto é, o eu histórico, o eu executivo, o eu social e a alma imortal,
qual deles empreende a busca de si mesmo?

Olavo: tudo o que fazemos vem da alma imortal; absolutamente tudo, mesmo quando não
sabemos. É preciso notar que os outros “eus” são apenas funções da alma imortal. Nesse
sentido, alguém aqui pergunta (...)

Aluno: não é incorreto utilizar a expressão “minha alma imortal age assim ou assado”? O melhor não
seria dizer “Eu ajo assim ou assado”?

Olavo – Certamente. Você tem toda a razão. Somente a alma imortal age porque somente ela
existe. Somente ela tem existência substantiva. O resto é aparência ou funções. Somos almas
imortais mesmo quando isso está completamente fora do nosso círculo de atenção ou visão.
Nossa dificuldade de nos captar a nós mesmos como imortais vem de que isso requer uma
modalidade específica de conhecimento que cai fora do campo que a Filosofia tem tratado,
mas que na Filosofia Islâmica foi muito bem abordada como “conhecimento por presença” –
um termo que até eu pensei que tinha inventado, mas descobri depois que um filósofo do
século XII já tinha falado disso.

Aluno: fiquei confuso após o final da última aula na qual o senhor falava sobre a alma imortal e a
vida após a morte e misturei conceitos puramente filosóficos com a doutrina católica. Até então tinha
ficado claro para mim que a alma imortal e a relação dela com Deus [1:50] existe independentemente
das religiões e da interpretação que o Homem faz do Logos Divino. Ora, todos os seres humanos são
imortais por definição, não importando o que eles façam na vida terrestre. O que me deixou perplexo
pelo entendimento que tive da explicação do senhor, que fatalmente deve estar errado, é que eu e Joseph
Stalin poderíamos estar lado a lado aos pés de Deus, desde que, utilizando termos cristãos, nos
arrependamos de nossos pecados e aceitemos a Deus como nosso Salvador. Faço essa pergunta porque
lembrei do embate que tive com um amigo ateu a respeito do suposto pedido de perdão de Antonio
Gramsci a Deus em seu leito de morte. Resumidamente, meu amigo, com a lógica típica do ateísmo,
disse que nós católicos somos um bando de cínicos, pois podemos fazer toda a sorte de maldades durante
a vida, que na hora da morte é só pedir perdão a Deus que estará tudo certo em relação ao Paraíso.
Respondi que, sendo onisciente, Deus saberia se o pedido de Gramsci foi sincero ou não e trataria de
logo despachá-lo para o Inferno, caso houvesse malícia na confissão do comunista. Na época não fiquei
satisfeito com minha resposta e na última aula, a crítica de meu amigo ateu me voltou à cabeça. Se
todos nossos pecados são passíveis de perdão divino e todos nós somos por definição imortais, qual a
vantagem que se leva na prática em viver a vida de modo correto cultivando a sabedoria e abstendo-se
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de pecar, mesmo que isso não implique em nenhum sofrimento? Eu sei que diante de Deus um santo e
um bandido revolucionário são iguais e Ele não está fazendo nenhum concurso de bom-mocismo, mas é
difícil, ainda mais vivendo no Brasil, não pensar num político corrupto petista, dedicado ao roubo, à
subversão e a orgias regadas com o dinheiro público, que está no mínimo levando uma vida um pouco
mais divertida do que a minha. Ironia à parte, como fica esse dilema moral que imagino não deva ser
só meu à luz da alma imortal?

Olavo: em primeiro lugar, esse negócio de pedir perdão não é tão fácil quanto você ou seu
amigo está imaginando. O simples desejo do perdão pressupõe uma mudança muito profunda
na alma humana, porque todo o bem que nós possamos fazer vem de Deus; é presença de
Deus através de nós. As únicas coisas que nós fazemos realmente, por nossa iniciativa, é o mal.
O pecado é a ação humana por excelência; o resto é ação humana e divina, ao mesmo tempo.
O próprio desejo do perdão é infundido em você por Deus; ele mesmo é uma Graça. E você e
seu amigo não pensem que essa Graça não custa nada. “Eu passo a vida fazendo o mal, eu
mato milhões de pessoas”e chega na hora do Juízo Final e eu falo “perdão” e está tudo limpo.
O indivíduo está vendo a coisa de uma maneira extremamente mecânica e, na verdade, pueril.
Quanto à sua pergunta de que se um político petista não está levando uma vida mais divertida
do que a sua, eu digo que se é diversão que você quer, é claro que você pode imitar o José
Dirceu, o próprio Lula, mas o problema não é se você gostaria de ter o que uma outra pessoa
tem, o problema é que para ter o que a outra pessoa tem você precisa ser ela. Esse é o
problema. Você quer ter todos os prazeres e diversões que ele tem, mas continuando assim
como você mesmo. Essa é uma imagem que é uma hipótese impossível. Você precisaria se
transformar nessa pessoa: fazer o que ela faz, ser o que ela é, pensar o que ela pensa, desejar o
que ela deseja, e quando vê esse conjunto, pergunta “eu quero isso?”, e a resposta é
evidentemente “não”. E não pense que se você passou a vida tentando seguir a Deus (e isso
teve um peso específico para você), o pedido de perdão que o pecador empedernido fará na
hora da morte terá menos peso para ele. É exatamente isso que se chama Purgatório. Esse seu
amigo esqueceu esse pequeno detalhe. O sujeito que se arrependeu não vai direto para o
Paraíso. Ele pode ter ainda sofrimentos indescritíveis. O problema absolutamente não se
coloca. Perante seu amigo você se esqueceu desse detalhe. Se você não purgou seus pecados
em vida, terá de purgá-los após a morte. A coisa não é tão fácil quanto você está pensando.
Moleza é para o ateu, que faz o que quer e depois que morre vai para o nada sem nenhuma
conseqüência. Ele quer viver num mundo sem conseqüências. Agora faça o favor de me
explicar como é que se faz para ir ao nada? Isso é absolutamente impossível. Essa posição que
seu amigo está tomando é baseada num puro wishful thinking. “Faça eu o que fizer, não haverá
conseqüência alguma”, em seguida, ele projeta isso sobre o cristão, especialmente o católico,
fazendo abstração do elemento chamado Purgatório, e achando que Joseph Stalin chegará lá e
dirá “perdão” e, pronto, estará limpo. Isso é absolutamente pueril.

Aluno: a percepção que os egípcios tinham da imortalidade da alma é a mesma que você está tentando
demonstrar?

Olavo: não, porque eles acreditavam que somente algumas pessoas eram imortais. É uma
crença que Gurdjieff subscreveu, mas não creio que ele a tenha subscrito seriamente,
doutrinariamente. Acho que ele usou isto mais para assustar as pessoas. Quando ele dizia “você
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não tem alma nenhuma; você vai morrer como um cão, a não ser que você adquira uma alma”,
e acrescentava, “mas isso vai lhe custar uma quantia em dinheiro”, eu acho que ele estava
humilhando as pessoas até o fim, para lhes mostrar a gravidade da sua situação. Mas os
egípcios acreditavam que somente os reis tinham almas imortais.

Com relação ao segundo texto que nós temos aí, Wolfgang Stegmüller mostra, de maneira
muito breve, como a discussão filosófica foi se fragmentando, sobretudo a partir do século
XIX, de tal modo que criou não só antagonismos insuperáveis, mas uma impossibilidade de
comunicação ao ponto de que aquilo que um chama de Filosofia não é o que o outro está
chamando de Filosofia, e os objetos que estão examinando não são os mesmos. Criou-se um
estado de incomunicabilidade filosófica; basta a existência desse fato, que me parece uma
realidade inegável, para mostrar que não existe essa evolução paradigmática como aparece,
sobretudo, nas universidades brasileiras (essa linha que começa com Descartes, Hume, Kant,
Edmund Husserl, a escola analítica, Heidegger, Derrida, Wittgeinstein). Isso aí é apenas uma
construção imaginária, na verdade. É apenas um diálogo entre alguns filósofos. E o que os
outros têm a dizer? Não significa absolutamente nada? Basta ler o começo da conferência
mencionada nessa aula de Eric Voegelin, que se vê um ponto de partida já completamente
diferente. Mas hoje não dá mais tempo de lermos o texto de Stegmüller, então ficará para a
próxima. Mas, de qualquer modo, eu sugiro que vocês o leiam, só para ver o contraste com o
que apresenta Dardo Scavino – que aliás apresenta de uma maneira muito bem feita (é um
homem de extrema competência) esta sequência de pensamentos como se ela demarcasse o
ponto de entrada necessário no qual você encontra o diálogo filosófico, esquecendo
completamente a existência de outras linhas, de outros pontos de partida, e esquecendo,
sobretudo, os equívocos nos quais esse desenvolvimento se baseou.

Aluno: em primeiro lugar, quero agradecer pelas aulas que são formidáveis. No que se refere
ao mito científico, coisa que foge, digamos assim, ao que eu consideraria uma aula de filosofia,
e é da questão religiosa, [2:00] sempre mais presente nas aulas. Resumidamente, posso pensar
que a Filosofia era a religião dos gregos?

Olavo: não, não era. Havia já um contexto religioso, realmente organizado, e é exatamente o
que Voegelin diz: é desta religião que surge a provocação das questões filosóficas. Não é
possível compreender, historicamente, a filosofia grega como um puro produto da razão
natural, sem nenhum fundamento numa iniciativa divina. Ele diz que o problema do
conhecimento é colocado a nós pelo próprio Deus; sempre vem dEle, não é iniciativa nossa,
como se a pura razão natural especulasse por si mesma.

Transcrição: Ana Angélica de Godoy Valente, Roberto Mallet e Paulo Camargo.


Revisão: Paulo Camargo.
Revisão final: Guilherme de Berredo Peixoto.

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