Aula Cof 68

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(02) Mas é depois dos cinco anos que começa o verdadeiro trabalho.

Eu calculo algo
entre dez e quinze anos para a entrada em cena de meus alunos como personagens
ativos na vida intelectual brasileira.

Por isso mesmo, eu pedi que no começo fizessem o voto de abstinência em matéria de
opiniões porque nós teremos tempo para formar opiniões bem fundamentadas, e quando
vocês entrarem em cena na vida intelectual, vocês irão com muita segurança. O
problema das opiniões prematuras é que elas criam um compromisso, elas lhe amarram:
você fala duas ou três besteiras no começo da vida e depois é obrigado a passar o resto
da sua existência justificando aquela porcaria. Se não fosse isso, não haveria mais um
único comunista no mundo. Os que foram comunistas com 17 anos, quando vêem o
desastre que provocaram, têm que arrumar alguma justificativa, tem que tentar se
inocentar. Para certas pessoas que entraram na vida com aquele sentimento de certeza de
que tinham no bolso do colete a solução para todos os problemas da humanidade,
reconhecer que não apenas não resolveram os problemas, mas criaram problemas cem
vezes maiores e criaram sofrimento e terror para milhões de pessoas, é uma culpa
superior a capacidade que eles têm de arcar com responsabilidades.

Eles têm terror de culpa. Eu me lembro perfeitamente quando a Dona Marilena Chauí,
expressando uma opinião que não era dela, mas que era de praticamente todo o corpo
docente da USP, dizia: “Nós apreciamos muito as religiões afro-brasileiras, porque elas
nos permitem ter uma vivência religiosa sem culpa. Nós queremos viver sem culpas.”
Ora, dizer que você quer viver sem culpas é o mesmo que dizer que você gostaria de ser
um cachorro, um tatu-bola, uma minhoca. A culpa é inerente à condição humana. O fato
de que você é autor de seus atos, que esses atos têm conseqüências e que, querendo ou
não querendo, pode ser o portador de sofrimento e de dor para outras pessoas, é uma
coisa básica na existência humana. O sujeito que quer se livrar disso quer viver como
um bebê no colo da sua mãe. A declaração dela foi feita no contexto de uma reportagem
que saiu na revista Veja, mostrando que praticamente todos os professores de filosofia
da USP estavam freqüentando terreiros de macumba, e aquilo era a mais alta expressão
religiosa que eles tinham alcançado. Então este desejo de viver sem culpas mostra
claramente que existe uma consciência de culpa, só que é uma consciência sufocada, tal
como aquele problema do Igor Caruso: a repressão da consciência moral. A consciência
moral começa a doer e você a estrangula. Na hora em que você acha uma “religião” que
lhe permite viver sem culpa, você arranja um pretexto mais ou menos elegante, um
subterfúgio, para poder destruir sua consciência moral e ainda achar que está fazendo
um grande negócio. As pessoas persistem nestas coisas ao longo da vida, justamente
porque não têm a capacidade de agüentar as suas próprias culpas. Então, é claro que se
forma um quadro neurótico, muito bem descrito por Igor Caruso como uma neurose que
se forma, não a partir da repressão dos desejos – pois a repressão dos desejos é um
processo normal da vida humana, como reconhecia, aliás, o próprio Freud –, mas a
partir da repressão do apelo à consciência moral.

(04) Mas acontece que este fenômeno da mídia cultural fez com que a topografia da alta
cultura passasse a ser delineada por pessoas que estão abaixo dela, por pessoas que não
são produtoras, não são criadores, são observadores muito marginais e muito remotos da
situação, freqüentemente bastante despreparados. A classe dos jornalistas culturais virou
a peste da humanidade, porque o jornalista cultural é um ser híbrido: por um lado,
alguma coisa de filosofia, de alta cultura ele assimilou; por outro lado, ele tem aquela
preocupação jornalística da atualidade, da repercussão [00:20] imediata e do prestígio e da
fama mais ou menos associada ao mundo show business.

(05) Figuras como o Sartre, o Wittgenstein, às vezes até o próprio Heidegger, – não por
ser fácil de ler, mas, justamente, por sua total obscuridade, que permite criar em torno
dele uma aura mística, tornada ainda mais interessante por sua participação no nazismo
– são fáceis de torná-las parte do imaginário popular contemporâneo, e é isso que o
“jornalista” cultural está procurando.

Por outro lado, a tendência de todas as instituições de alta cultural, de uns 30 ou 40 anos
pra cá, é se deixarem se conduzir pela mídia. Por quê? Porque houve uma expansão
brutal dos órgãos de mídia que a expansão do ensino não acompanhou. A mídia tende a
desempenhar um papel cada vez mais decisivo na condução dos negócios públicos e na
formação da mentalidade popular, e outras entidades, outros fatores, vão sendo passados
pra trás. Então, de certo modo, a alta cultura deixa de desempenhar o papel de
liderança e passa a acompanhar a mídia, ela vai a reboque da mídia. Claro que isso
produz um desastre formidável. Eu não conheço país onde a palavra da mídia
tenha uma força tão decisiva quanto no Brasil. Não porque esta mídia,
principalmente a mídia escrita, seja de amplo alcance. Não é. O jornal que mais
vende no Brasil vende 300.000 exemplares, que nos EUA é coisa de jornal de
interior. Mas afinal de contas você tem a televisão para sustentar os jornais e tem ,
sobretudo no Brasil, um fator que é característico e exclusivo do Brasil, que é o
fenômeno chamado Rede Globo, que domina 70 % da audiência. Não há fenômeno
similar em parte alguma do mundo. É um canal privado que tem 70 a 80% da
audiência. Isto quer dizer que os cânones e os critérios de valor impostos pela Rede
Globo acabam se espalhando por toda sociedade e moldando inclusive as
instituições da alta cultura. Então, isto significa que acabou a alta cultura, porque
a topografia dos prestígios e a medida de importância das coisas passam a ser
determinada por aqueles redatores da Rede Globo, que não entendem
absolutamente nada do negócio, mas que tem os meios de se fazer ouvir. Se a
instituição universitária e os intelectuais de primeiro plano já não têm força
suficiente, não têm o valor, não têm a ousadia de continuar afirmando valores fora
disso, eles acabam virando servidores dos órgãos de mídia.

(09) No momento em que os jogos de linguagem são considerados autônomos e


todos igualmente válidos, isto tem várias conseqüências, e o Dardo Scavino, nesta
exposição, percebe algumas conseqüências e só não fica horrorizado com isto
porque ele também está um pouco anestesiado. Mas, quando você percebe as
conseqüências a que isto leva, você começa a se perguntar qual é diferença entre o
que é Filosofia e o que é um mero conseqüencialismo lógico. Porque toda esta linha
de desenvolvimento filosófico que Dardo Scavino está descrevendo, desde
Ferdinand de Saussure até hoje, não passa de um conseqüencialismo lógico. Se
você admitiu a afirmação anterior, você terá que admitir a seguinte!

(10) O indivíduo está dizendo que você vive dentro duma cultura, dentro de um certo
horizonte histórico, e que você não tem acesso ao mundo, mas você tem acesso a esta
cultura. Mas como você poderia ter acesso à cultura se não estivesse fisicamente
presente no mundo? Isto quer dizer que os sinais físicos que eu recebo do mundo não
significam nada?! É tudo filtrado pela cultura? Por exemplo: o bebê cai do colo de sua
mãe. Em quê a dor que ele sente depende de uma interpretação cultural? Absolutamente.
Se, por acaso, o bebê é privado de comida, os efeitos que isto vai ter nele dependem de
uma interpretação cultural? É claro que não! Então é evidente que aparecemos dentro de
um mundo que tem uma presença física e nós estamos imediatamente neste mundo dos
sinais físicos, e somente pouco a pouco o aporte cultural pode chegar até nós como um
mediador, mas um mediador tardio. Mais ainda: um mediador que pode modular
algumas de nossas respostas ao mundo físico, mas não todas. Por exemplo, a reação à
dor é diferente em várias culturas. Se você perguntar a um dentista, que tem uma
clientela internacional, ele vai dizer que se chegar um russo, ele começará a chorar
quando sentar na cadeira. Por outro lado, o japonês começa a reclamar um pouquinho
depois de ele ter arrancado o décimo quinto dente. Mas isto não quer dizer que eles não
sintam exatamente a mesma coisa. Se você medir as reações fisiológicas deles verá que
são as mesmas, apenas a reação verbal e social é diferente, mas as duas partem de uma
base física que não depende absolutamente em nada de seu aporte cultural. Este é o
primeiro ponto.

(11) A expressão: "sua cultura", ou "o horizonte temporal da sua cultura", não querem
dizer nada, são flatus vocis. Você não reflete a cultura do seu tempo, você reflete toda e
qualquer informação que você tenha recebido provenha ela de que cultura seja! E
provenha ela de que época seja!
Wittgenstein suprime a presença do mundo e a troca pela linguagem. Ele diz: "os limites
do mundo são os limites da linguagem", o que é uma impossibilidade flagrante, porque
você já está no mundo antes de aprender a falar! Seria muito engraçado primeiro você
aprender a falar e depois nascer. Então, no aprendizado da linguagem, você fez o
primeiro ano primário, o segundo ano primário, e daí começa a sua gestação e você
nasce. É isto que está pressupondo. Do mesmo modo que Wittgenstein substitui a
linguagem ao mundo, este pessoal da hermenêutica substitui a cultura ao mundo.

(15) Então, este jogo da relação entre o objeto, a perspectiva e a sua representação
pictórica é usado para fazer uma confusão, de modo a dizer que só existem as
interpretações.

Ora, se só existe as interpretações, seriam interpretações do quê? Se não há um objeto


em comum para divergirem a respeito, como elas vão divergir? Por exemplo, eu leio a
peça Hamlet e você lê a peça Otelo, e daí nos dizemos que nós estamos divergindo na
interpretação. Nós não estamos divergindo na interpretação! Nós lemos dois objetos
diferentes! Então, são coisas, distinções elementares, que o fato de o sujeito ser filósofo
não o dispensa de aceitar estas realidades elementares que são a própria pré-condição
dele colocar em discussão os pontos que ele está discutindo! Notem bem, não é
obrigação do filósofo raciocinar a partir do que outras pessoas disseram, tomando aquilo
como se fosse o nec plus ultra, como se fosse a última palavra. Você pode levar em
conta o que o último da fila falou, mas você também tem a sua experiência da realidade,
e você tem todo o direito, e até a obrigação, de confrontar uma coisa com a outra!

(15) Veja que tudo é montado, dentro desta tradição da hermenêutica, de tal maneira que
você só tem duas possibilidades: ou você encara tudo pelo viés da sua cultura, portanto
tudo é subjetivo, e tudo é interpretação; ou então você encara com um olhar de Deus,
que vê as coisas exatamente como elas são eternamente. Mas como? O que é isto? Não
tem um terceiro ponto? Por que você não vê as coisas tal como elas se apresentam
fisicamente para você? Isto aí não é interpretação cultural alguma! Por exemplo: a
experiência que você tem do peso do seu corpo, a experiência que você tem de andar, de
caminhar sobre uma superfície, nada disso depende de determinações culturais e ao
mesmo tempo não é um olhar divino que vê tudo sub specie aeternitatis. É o olhar da
experiência humana dentro de um ambiente físico no qual você está existindo! E é desta
experiência, deste tipo de experiência física imediata que não depende de
predeterminação cultural alguma, que você pode, através de sucessivos exames, chegar
a supor alguma coisa sobre o que seria o conhecimento destes mesmos objetos sub
specie aeternitatis. Mas isto já uma especulação filosófica que você está fazendo. Uma
vez colocadas as coisas assim: ou tudo que você vê é subjetivo porque reflete a sua
cultura, ou então você é Deus que vê as coisas dentro da categoria da eternidade, claro
que isto é um jogo de cartas marcadas! Quer dizer: está colocando você dentro de uma
alternativa que de fato não expressa as duas únicas possibilidades, existem outras
possibilidades!

(16) Notem bem: eu disse que tudo isto que nós estamos falando, reflete uma linha
de desenvolvimento que começa com Ferdinand de Saussure, passa pelo Heidegger,
por Wittgenstein, etc., e chega até o estado atual do ensino universitário. Mas esta
linha de desenvolvimento, por sua vez, se coloca dentro de uma outra mais ampla
que começa no Iluminismo, e que só encara toda a filosofia anterior com os olhos
do Iluminismo. Então isto aqui é uma discussão interna entre iluministas e
herdeiros do Iluminismo. Alguns herdeiros são herdeiros ingratos, que se voltam
contra o Iluminismo evidentemente. Porém, pergunto eu: quem lhe disse que do
Iluminismo para frente nós só podemos encarar as coisas como os iluministas
encararam e temos que, ou aceitar o que eles estão dizendo, ou negar tudo e nos
tornar filósofos pós-modernos? Não há outras possibilidades? Há inúmeras
possibilidades anteriores e concomitantes a estas, e algumas dessas possibilidades
existem ainda hoje. Então, todo este modo de ensinar filosofia situa você dentro de
um certo desenvolvimento histórico da filosofia, como se fosse não apenas o único
existente, mas o único possível!

Quer dizer, você pega acontecimentos históricos e os transforma em modelos de todo o


pensamento universal possível! Ao mesmo tempo, você proclama que está ensinando as
pessoas a raciocinar dento de uma relatividade histórica, quando está fazendo
exatamente ao contrário! Você está encarando relatividade histórica dentro do conteúdo
do que você está falando [01:30], mas a forma mentis que você está aplicando aos seus
estudantes os está impedindo de ver a historicidade deste mesmo processo! Eu não vejo
outra maneira de qualificar isto senão como empulhação! Porque este mínimo de
consciência do que eu estou fazendo e de quais são os pressupostos do que eu estou
fazendo, isto não apenas é obrigatório, mas isto é a própria Filosofia! Não há
filosofia fora disso! Se o meu horizonte está limitado pela duração de um certo
desenvolvimento linear da filosofia – eu não admito nada para fora daquilo – eu não
tenho mais o direito de falar de relatividade histórica porque absolutizei este
desenvolvimento. Ora, basta você olhar um pouquinho para o lado e você verá outros
desenvolvimentos. Se não existirem dentro de sua cultura, existirão em outras culturas.

Por que você vai falar de relatividade cultural, que cada pessoa está presa dentro do
horizonte de sua cultura, se você nem mesmo olha para outras culturas, se você toma a
sua como se fosse a única possível? Tudo isto é totalmente contraditório! Totalmente
estúpido! Sinceramente, não mereceria a atenção se isto não fosse um fenômeno cultural
disseminado, se não houvesse tantas pessoas envolvidas nesta bobagem, não se deveria
prestar atenção nisto um único minuto, porque isto não é filosofia. Isto aqui é realmente
uma masturbação mental perigosa, porque é contagiosa. Quer dizer, você criou um certo
modelo de masturbação mental e ensina os outros, como no filme do Woody Allen,
Zelig, onde ele saia do hospício para dar sua aula de masturbação na universidade.

(16) Esses filósofos todos estão tentando destruir o que eles chamam de ilusão lógico-
positivista, a qual, por sua vez, deriva da filosofia iluminista na sua tentativa de
conhecer e chegar às leis universais. Como eles remetem tudo ao elemento cultural e
histórico, só sobra um tipo de conhecimento, que é o conhecimento histórico – coisas
que você veio pensando ao longo do tempo –, quer dizer: o conjunto dos pressupostos
culturais que foram adotados em tal época, tal época, etc.

Notem bem: a filosofia já não tem mais objetos. Tudo que você tem a fazer é seguir um
certo desenvolvimento histórico e pensar de acordo com ele, como se não houvesse
experiência cognitiva fora desta linha e como se a história da filosofia fosse um
processo unívoco, quando há muitos desenvolvimentos históricos completamente
separados. Por exemplo, como você encaixaria, dentro desta linha de desenvolvimento,
a obra do Louis Lavelle? Ou as obras dos filósofos neo-escolásticos, principalmente o
maior deles, que no meu entender é o André Marc (homônimo de um aluno nosso)? Não
há como fazer. Como você vai encaixar o Eric Voegelin ou Xavier Zubiri dentro desse
desenvolvimento? Não é possível! O resultado é que você reduziu a filosofia à história
da filosofia e não somente à história da filosofia, mas a uma história de uma linha de
desenvolvimento filosófico. Então isso aí não é filosofia, isso aí é uma camisa-de-força,
evidentemente.

(18) Você está apenas rastreando a origem histórica dos conceitos, porém, se você não
tem nenhuma experiência do objeto daquele conceito, como você poder entender os
conceitos desenvolvidos antes? Eles são apenas estruturas verbais que, não se
reportando a nada do mundo real, não tem como ser testadas, e não tem sequer como ter
uma história, porque daí você está supondo que os conceitos foram saindo uns de dentro
dos outros, sem que não houvesse nenhuma experiência nova das realidades respectivas!
É este o problema que o Eric Voegelin enfrentou com o negócio das histórias das idéias
políticas. Ele percebeu que ele estava estudando as histórias das idéias políticas
exatamente assim, como se as idéias fossem parindo umas às outras, como se não
houvesse acontecimentos políticos que os filósofos estavam tentando interpretar. Então,
ele falou: "Eu não posso escrever a história da idéias políticas, se não escrever a história
das experiências políticas", isto é, a história daquilo que aconteceu. Sobretudo porque
em filosofia política você está lidando com um objeto que não foi criado pelos filósofos,
que é criado pela existência do Estado, das guerras, das disputas de poder, etc., etc., que
não é propriamente o campo preferencial de atuação dos filósofos [01:40]. Então você está
raciocinando a partir de pessoas que são diferentes de você. Por exemplo, Hegel tirou
uma série de conclusões do fenômeno napoleônico, mas ele não seria capaz de fazer o
que Napoleão fez. Ele toma Napoleão, não como um conceito filosófico, mas como um
fato. Este fato cria certos problemas. Então, se não existisse Napoleão, como Hegel
poderia raciocinar a respeito de Napoleão? Você só pode remontar até o momento em
que o conceito foi criado através dos acontecimentos e dos fatos e das coisas que
sugeriram este conceito. Se você não tem nenhuma experiência própria dessas coisas,
acontecimentos, etc., você não vai entender o conceito. A simples proposta de rastrear
um conceito já prova que rastrear a origem do conceito não pode ser a única maneira de
filosofar. Porque se fosse, não seria possível rastrear o conceito. Então, isto é caso de
paralaxe cognitiva elevado ao extremo. O fato de que você está fazendo uma
determinada coisa, está praticando a filosofia de uma certa maneira, já prova que esta
não pode ser a única maneira de filosofar, porque senão você não teria sobre o que
filosofar. A prática dos indivíduos, o simples fato deles produzirem estas filosofias, já
mostra que elas estão erradas de algum modo, ou pelo menos, estão incompletas.
(19) Eu tenho a impressão assim, que a universidade medieval está cheia de textos,
pilhas e pilhas e pilhas, e as pessoas não tinham mais nada o que fazer senão interpretar
aqueles textos. Agora, você quer dizer que aqueles camaradas passavam o dia rezando e
não tinham nenhuma experiência religiosa própria? Por exemplo: a experiência de viver
segundo os mandamentos de Cristo. O primeiro mandamento que você tenta cumprir,
você já encontra dificuldades tremendas, você vê que sua alma se rebela contra aquilo,
que tem antagonismos interiores, tudo isto aí não está no texto! E é disso que eles estão
falando praticamente o tempo todo. Se você disser que praticamente toda a filosofia
medieval é uma reflexão sobre a experiência espiritual que hoje os filósofos não
têm mais, aí sim! Como eles não têm a experiência, eles acham que os camaradas estão
falando somente do texto. Porque é só o quê eles vêem ali.

Em segundo lugar, durante todo o período medieval o assunto sobre o qual mais se
escrevia era a alquimia, que não é uma meditação sobre texto, é uma meditação sobre
terra, minério, planeta, etc., etc. Como é possível isto aí? Historicamente falando, esta
idolatria dos textos, este amor pelos textos, aparece justamente na Renascença, com os
humanistas. Não antes! Como você vai rastrear a história de um conceito, se você já
começa por inverter a história? Mais ainda, é arqui-evidente que dentro do contexto
medieval se dava mais importância à tradição transmitida oralmente de geração em
geração – a tradição acumulada pela Igreja, às vezes registrada, às vezes não –, do que
aos textos! Quando é que se começa a dar uma importância obsessiva ao texto sagrado?
Só depois da reforma protestante! Antes da Idade Média, nos primeiros séculos da
Igreja, como você podia se dedicar exclusivamente à interpretação dos textos, se você
não tinha os textos? Pululavam ali centenas de supostos evangelhos e você tinha que
examinar um por um, para ver se combinavam ou não. Qual é [01:50] o critério? Você não
vai julgar um texto a luz de outro texto. Você depende da tradição e da experiência
religiosa acumulada.
Por exemplo, a experiência da confissão. Aqueles camaradas confessavam e
comungavam todo dia! Eles iam confessar o que eles leram no texto? Não é possível!
Você tem que examinar o que você fez, o que você sentiu, o que você pensou, você tem
que discernir a sua intenção, fazer o chamado discernimento dos espíritos, tudo isto é
experiência! E a totalidade da filosofia medieval, você não entende “a” sem se reportar
a esta experiência. Como eles não são capazes de ter a experiência – este pessoal todo, a
turma que quer viver sem culpas, que nunca imagina o que está fazendo –, como não
têm o objeto material presente, eles só percebem que um texto está falando de outro
texto. É claro que esta é uma deformação historiográfica monstruosa e, na mesma hora
em que eles estão se gabando de que eles estão rastreando a origem dos conceitos, eles
não estão rastreando coisíssima nenhuma! Eles estão inventando!
Eu repito para vocês: a filosofia moderna e pós-moderna é uma catástrofe intelectual
fora do comum, e o nível das filosofias produzidas vai caindo, caindo, caindo, caindo a
um ponto em que a coisa toda se torna uma paródia.

(21) Estamos aqui entre as alternativas: ou você tem o ideal iluminista da ciência
perfeita que descobre a realidade como ela realmente é, e a expressa em leis universais
obrigatórias; ou então você tem a total invenção. Tudo é invenção, tudo é arbitrariedade,
tudo é criação de metáforas poéticas. As duas coisas são absolutamente impossíveis. O
que existe é uma tensão permanente entre esses dois elementos. Isto é a realidade das
coisas. Não é possível captar a totalidade da realidade tal como ela é em si mesma, e
nem inventar tudo. As duas coisas são absolutamente utópicas. Na verdade, você vive
entre estes dois extremos: tende numa direção e tende na outra. Isto é uma coisa que os
filósofos escolásticos já sabiam perfeitamente.
(23) Outra coisa, eu acabo de pedir um voto de pobreza em matéria de opinião. Vou
proibir as expressões ‘concordo’ ou ‘discordo’. Concordar ou discordar significa apenas
que você gosta de uma coisa ou não gosta, que aquilo lhe agradou ou não. Con-cordia,
os dois corações estão batendo juntos; Des-cordia, não estão batendo juntos. Para que
serve isso? Ou o que eu disse do Wittgenstein está manifestamente errado – por favor,
demonstre –, ou então não tenha opinião nenhuma, conserve isto como uma dúvida, pois
é melhor ficar com a dúvida pelo resto da vida, do que você simplesmente expressar
uma concordância ou discordância.

(24) Quando, aulas atrás, eu lhes dei aquele exercício da tomada de consciência do eu
permanente, eu disse: tão logo você consiga tomar consciência disso, no mesmo ato
você percebe a independência entre o seu eu, o centro de sua consciência, e todos os
elementos que provêm do ambiente físico entorno. Quer dizer, você percebe que existe
em você algo mais além daquilo que você recebe desta base física. Este momento é a
tomada de consciência de imortalidade, ou seja, a consciência, a alma humana é
essencialmente imortal. Tão logo você aceita isso, é impossível que no passo seguinte
não perceba que este ser imortal que você é não tem fundamento, porque você não é
capaz de gerar-se a si mesmo. Você é uma espécie de mistério vivo. É impossível que
neste momento você não tenha uma única reação que é uma reação de gratidão quase
extática, de gratidão quase infinita. E isto aí é tudo. Isto vai fazer com que você perca a
ilusão de dirigir a sua conduta de acordo com código moral, ou não sei o quê, e a partir
daí você vai deixar que o próprio Deus te conduza. Você vai pedir tudo para Ele, porque
Ele é a sua consistência, você não em outra consistência além daquela que Ele próprio
colocou lá. Não há nada mais em você. O que existe envolta é somente ilusão, é
somente o nada. Desde que você teve acesso a alguma experiência que é realmente
substancial, realmente definitiva, você não tem mais que olhar mais para nenhum outra
direção para fazer perguntas. É ali mesmo que estão as respostas, e se as respostas não
vêm na hora, é porque Deus não está querendo agir em você através de um processo que
você conheça, mas é um processo que só Ele conhece. Na verdade, todo o conhecimento
que você tem, o autoconhecimento que você tem, vem do próprio Deus. Não é você
quem tem autoconhecimento.

(25) Muito bem. Não vamos aqui falar propriamente de método, nem de técnica. Eu
sugeriria apenas um exercício que parece já ter em si já a resposta de tudo isto. O
exercício é simplesmente lembrar-se de que você é o mesmo, que tem a mesma
identidade desde que nasceu até agora; lembrar-se do sentimento, da experiência que
você tem ao dizer a palavra eu como sujeito de suas ações, sujeito de seus pensamentos,
etc., etc.. Embora todas as células do seu corpo tenham mudado, embora todo o seu
repertório de sentimentos e pensamentos tenha mudado mil e uma vezes, existe este
núcleo constante. [02:20] É absolutamente impossível a idéia de que este núcleo de
consciência nos tenha sido impingidos desde fora. Se fosse impingido desde fora, ele
iria embora, ele seria inconstante como o tudo mais. E, no entanto, toda vez que você
retorna, você tem essa mesma consciência de eu, você percebe que existe em você, no
centro da sua pessoa, um núcleo no qual você se reconhece e diz: eu.
É este eu que se dirige a Deus. Não é outro. Este eu, na medida em que ele é
independente dos seus estados corporais, você percebe que ele pertence a uma outra
faixa de realidade que abrange e transcende todo o fluxo de seus estados corporais e
psíquicos. Esta é a escala na qual você começa a ter idéia de imortalidade, a ter idéia de
uma individualidade, uma identidade pessoal que transcende a sua existência corporal e
terrestre.
. A experiência, este acesso à alma imortal, ainda que seja uma coisa breve, como eu
disse, você percebe naquele mesmo instante a sua absoluta falta de fundamento, você
percebe que é um ato gratuito de Deus. Você é a própria Graça manifestada. Você não
tem outra substancia além disso. Isto é o que realmente você é. Não há mais nada em
você além disso, a não ser elementos periféricos que não são propriamente você, que
simplesmente se incorporaram a você em função da sua modalidade de existência
terrestre. Como a comida que você come: uma parte é eliminada, outra parte integra o
seu corpo, mas esta parte que integra também vai passar. Tudo isso são elementos que
estão em você mas não são você. Aquilo que você realmente é é a manifestação da
Graça Divina e você não é mais nada. A hora em que você percebe isto é impossível ter
esta experiência sem um sentimento de gratidão avassaladora e quase extática.

Isto é o objetivo da nossa vida. Não há outro, não há outra coisa para fazer. Então, qual
é o nosso objetivo? É voltar, quantas vezes você puder, a este mesmo estado de gratidão
total, no qual a própria consciência que você tem dos seus pecados aumenta, de certo
modo, o próprio sentimento de gratidão. Como ali existe a presença de Deus, você já
tem a Graça jorrando sobre você naquele mesmo momento, então não dá para você
insistir em falar muito dos seus pecados, não tem pecado mais ali, acabou. Você entrou
ali na Presença, Ele já te perdoou automaticamente. A Graça continua fluindo sobre
você. Como você tem consciência dos seus pecados, das suas limitações, dos seus erros,
etc. etc., mas tudo isto é totalmente desproporcional ao que você está recebendo, só tem
uma pergunta a fazer: Deus, por que Você está me dando tudo isto? Depois dos pecados
que eu fiz, eu não compreendo a Graça, ela é incompreensível, ela transcende tudo o
que eu possa pensar!

Então é este o negócio: amar a Deus sobre todas as coisas. É isto que significa amar a
Deus sobre todas as coisas! E Jesus Cristo disse: que aquilo que você pedir neste
momento será atendido. Mas é difícil você se lembrar que precisa de alguma coisa ou
que quer alguma coisa neste momento, porque de fato você não quer mais nada. Mas
você pode pedir alguma coisa para outra pessoa que talvez precise. Por exemplo: pedir
que ela tenha acesso a esta mesmo sentimento, a esta mesma experiência. Se você ficar
muito preocupado com “como eu vou controlar meus desejos, como eu vou guiar
minhas vontades”, tudo isto complica. É para ter um só desejo. É este desejo. Não existe
outro. O resto é realmente tudo perda de tempo. Os pecados são uma perda de tempo e
pensar neles também é uma perda de tempo. A vergonha também é uma perda de tempo,
porque só uma coisa interessa: a gratidão infinita perante um bem infinito. É só isso.
Pense nisso e você vai ver como tudo vai dar certinho. Lembre sempre disso. Por isso o
padre Pio dizia: "reze e não se preocupe".

(26) Como vivemos numa sociedade humana, como há uma série de exigências, a gente
sempre pode confundir os dois planos, que dizer, um é o trajeto que você está
percorrendo em direção a Deus, que é o próprio Deus que está te chamando, e outro é o
trajeto de sua vida terrestre onde você pretende fazer isto ou aquilo. Estes dois trajetos
são completamente diferentes. Quando perguntaram a Jesus Cristo, “qual é o mínimo
que preciso fazer?”, Ele disse: amar a Deus sobre todas as coisas e amar aos outros
como a si mesmo. E isto é tudo. Tem gente que vive lendo a Bíblia, sabe trechos inteiros
dela de cor. Eu sinceramente não consigo ler muito a Bíblia, porque entendo que a
palavra de Deus é a própria realidade, não um conselho que Ele está lhe dando. Não.
Aquilo são palavras eternas, aquilo é a própria estrutura da realidade. Eu agüento muito
pouco, porque cada frase tem um significado infinito, e eu fico curtindo aquele negócio,
toda hora me lembro daquela frase e aquilo cada vez diz mais coisas e mais coisas. Tudo
que estou falando vem do trecho da bíblia onde Jesus Cristo disse que só tem isto aqui,
isto aqui é toda a lei e os profetas. Muito bem, eu não consigo ler a Bíblia inteira, então
qual é o mínimo que tenho que fazer? É a mesma pergunta que eu faço, e acho que
todos nós devemos ir por este mínimo. Muitas perguntas e dúvidas morais surgem por
quê? Porque nos esquecemos desse negócio: amar a Deus sobre todas as coisas. Não é
você que está amando Deus, mas Deus que está amando você! Isto é difícil de entender.
Eu não consigo amar a Deus tanto quanto Deus ama a mim, Ele me preenche com seu
amor. É este que é o negócio. Se colocamos tudo isto no plano de existência da alma
mortal, nós criamos uma confusão dos demônios. O que eu estou sugerindo é
simplificar. Não precisa mais método, não precisa de mais nada disso, é só você orar, se
apresentar a Deus na condição que você realmente tem, quer dizer, você é uma alma
imortal que Deus criou de uma vez para sempre, Ele não vai te apagar, não vai te
revogar, e você não entende porque Ele fez isto. O principal, Deus já lhe deu: a
existência de uma alma imortal. O que mais você quer? Então tanto faz. Ontem eu
estava conversando com o meu filho Pedro e ele disse: “Não, eu sou um sujeito sortudo,
tudo para mim dá certo, eu tenho o que eu quero, etc., etc.”. Eu digo: “Meu filho, para
mim foi exatamente o contrário: eu nasci e durante a maior parte da existência tudo
dava errado, não conseguia nada do que queria, fazia vinte vezes mais força que os
outros. Mas na hora que você tem esta experiência da alma imortal, tudo se equaliza, o
sortudo e o azarado entram na mesma faixa, porque tudo isto é um nada perto dessa
infusão de ser que Deus fez em você. E fez de uma vez para sempre.

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