Necrópole 03 - Histórias de Bruxaria
Necrópole 03 - Histórias de Bruxaria
Necrópole 03 - Histórias de Bruxaria
Histórias de Bruxaria
Alexandre Heredia
Camila Fernandes
Eric Novello
Gianpaolo Celli
Nazarethe Fonseca
Richard Diegues
Introdução
O sagrado profano — Richard Diegues
Cândido — Alexandre Fernandes Heredia
Empório da boa fortuna — Camila Fernandes
De fumaça e sombras — Eric Novello
Entre mundos — Gianpaolo Celli
A ciranda dos desejos — Nazarethe Fonseca
Introdução
QUANDO PIOS DE CORUJAS ATENTAS PONTUAM A NOITE, e a Lua não consegue iluminar os
cantos mais escuros; quando o leite azeda e os animais morrem; quando a chuva ou a
falta dela mata as plantações, e o gado pára de dar leite, só pode significar uma coisa:
há uma bruxa presente. Ao menos era o que se pensava antigamente.
Os eventos do cotidiano ganhavam um ar sobrenatural quando se desejava
encontrar um bode expiatório. Homens e mulheres eram condenados, perdiam seus
bens, sua dignidade e suas vidas. Ainda hoje, pessoas acusadas de bruxaria são
espancadas ou mortas em lugares esquecidos por Deus, como a Guiné e vários
recantos da África. Mas o homem moderno e esclarecido sabe que tudo isso não
passa de uma grande bobagem! Afinal, bruxas não existem.
Essa é uma mentirinha branca que as pessoas contam para não ter medo do
escuro. Não existem bruxas, ou fantasmas, ou assombrações, ou vida após a morte, ou
qualquer coisa sobrenatural. Tudo é um truque, um engodo, uma piada de mau gosto
para pregar peças nos outros. Aqueles que pensam assim querem desesperadamente
acreditar nisso porque não podem suportar a idéia contrária. Eles estremecem e
eriçam os pêlos da nuca quando a idéia de que tais coisas realmente existem flutua
sobre suas mentes. Simplesmente não sabem o que fazer quando são vítimas de um
feitiço, quando se deparam com um fantasma ou com algo inexplicável para a sua
mente científica. Não podem nem pensar na possibilidade de se encontrar com a
verdade, pois não a suportariam. Não saberiam o que fazer com uma vida inteira
equivocada.
Então, nós, bruxas, fantasmas, assombrações, vampiros, lobisomens, deixamos
essas pessoas viverem suas vidinhas em paz. Deixamos que acreditem que vivemos
apenas nas páginas de livros e nas salas de cinema. Permitimos que nos vejam apenas
por breves momentos, capturados por câmeras e confundidos com efeitos de luz.
Mas o mundo é pequeno. Pequeno e mal freqüentado. Nem todos nós somos
maus. E nem todos nós somos bons... De vez em quando, encontramos essas pessoas
que não acreditam e vivem em paz em sua caverna de sombras. E elas se
surpreendem tanto que, na maioria das vezes, não conseguem compreender o que está
acontecendo. Desses encontros nascem grandes histórias: histórias de amor e
amizade, de crescimento e superação, de morte e sofrimento, de ódio e vingança.
Quando se cruza o caminho de um praticante de magia, é impossível não sentir
conseqüências. Para o bem e para o mal, bruxos e bruxas trazem sempre uma
lamparina que aumenta e distorce as sombras na parede. Mas se você olhar pra eles,
perceberá que são tão reais quanto você, e que podem lhe mostrar muito mais do que
truques.
Acreditando ou não, se você pegou este livro é porque está cansado do teatro
das sombras. Então, permita-me apresentá-lo a um mundo novo e colorido, repleto de
cantos escuros em que podemos sempre jogar um facho de luz. Você está entrando
agora no mundo da bruxaria, em suas nuances e cores. Respire fundo e me dê sua
mão...
Você já voou de vassoura?
Eddie Van Feu
Bruxa
Richard Diegues
SIGA EM FRENTE. Sei que não consegue ver nada nesta escuridão, mas eu vou te
guiando. Isso eu faço bem. Tem outras coisas que faço melhor, mas elas não importam
agora. Apóie as mãos nas paredes, é mais fácil desse modo. Não se preocupe com o
que vai encontrar. Não lenha medo. Eu te protejo. Também faço isso bem. Você já
conhece este prédio velho. Sei que já levou muitas partes dele para o seu barraco.
Então não preciso ajudar em cada passo. Vá pelo corredor até o final. Não pare, siga
em frente. Eu realmente não quero machucar você. Mas eu posso machucar você se
eu quiser. Vá em frente. Isso, muito bem. Quero apenas que veja algo. Não, não é
nada bom. Mas também não é de todo ruim. Entre na sala à sua frente. Não se
preocupe, a porta foi roubada faz tempo. No fundo existe um quarto, à direita. Vá até
ele. Agora pare. Ajoelhe-se e estire os braços. Não é preciso ter medo de nada, já
disse. Sim, é um corpo. Sim, isso é sangue. Pare de tremer. Agora você precisa
manter a mão firme ou não vai conseguir acender seus fósforos. Pegue mais um.
Vamos, tente com outro. Muito bom. Aproxime a luz do rosto à sua frente. Olhe bem.
Já basta, pode ir. Eu só precisava que você soubesse onde o corpo estava. E da
certeza de que o reconheceria. Adeus.
O restante do dia passou sem problemas. Nhá Neca saiu e não retornou mais
naquele dia, e Sueli passou-o atarefada com as compras e pormenores da festa.
No dia seguinte, Ivone chegou cedo, praticamente acordando Sueli para que
abrisse a porta. Disse que queria aprontar logo os detalhes que faltavam para a festa
de Ogum, para não deixar tudo para a última hora. Sueli suspeitava que, assim como
ela, Ivone não estava conseguindo dormir sossegada.
As duas estavam ajoelhadas no chão, terminando de costurar uma bainha
bordada em uma toalha de mesa, quando descobriram que, além delas, mais alguém
estava madrugando naquele dia.
— Só restamos nós três agora — anunciou Nhá Neca, com sua voz esganiçada e
agourenta. — Mas, pelo visto, não ficaremos assim por muito tempo. Um de meus
demônios me contou que pressentiu algo de ruim para você, Ivone — disse, sorrindo
prazerosamente. — Na verdade, ele citou “algo terrível”.
Ivone saltou de onde estava, largando tudo e avançando sobre a velha. Mas mal
tocou no braço dela e um tapa extremamente forte a jogou de volta ao chão, surpresa
com a agilidade e força da velha.
— Você enlouqueceu? Nunca. Nunca ouse tocar em mim novamente — sibilou a
feiticeira.
— Foi você, velha maldita. Todas as mortes. Sei que foi você — Ivone gritou,
com a mão cobrindo a face dolorida, onde finos vergões dos dedos ossudos da velha
estavam estampados em vermelho.
Sueli apenas observava tudo, próxima da mesa onde estava abaixada há pouco.
Se Nhá Neca havia derrubado Ivone, com todo aquele tamanho, não seria ela quem se
aproximaria da feiticeira.
— Eu nada fiz. Apenas fico sabendo das coisas. Algumas pessoas realmente
merecem morrer. Mas não tão depressa. As pessoas que cruzam meu caminho
morrem aos poucos, definham, secando até os ossos, de forma lenta e dolorosa.
Morte rápida não é vingança. É alívio. As mortes das outras foram obra de forças do
Candomblé, com toda certeza.
— Não seja ridícula, velha. Agora está claro que nunca houve nenhum egum
agindo. Tudo não passou de obra dos seus demônios — Ivone berrou, colocando-se de
pé.
A velha deu um passo na direção da loira, mas Sueli se adiantou, colocando-se
ao lado de Ivone.
— Nhá Neca, saia já deste barracão e nunca mais pise aqui. Sc algum demônio
se aproximar de nós, toda a comunidade vai saber que você foi a culpada. E nem todos
os demônios do inferno poderão protegê-la. Você sabe disso. Acabou. Agora parta.
A boca da velha abriu e fechou por duas vezes, indignada, mas nada foi dito. O
ódio faiscava em seus olhos e os punhos estavam tão crispados que mais pareciam
garras, com as unhas rasgando as próprias palmas. Então a velha encarou as duas
demoradamente e sorriu, mostrando as gengivas carcomidas. Depois gargalhou como
uma hiena rouca. Por fim, virou-se e saiu, sem dizer uma palavra sequer, apenas rindo.
As duas mulheres demoraram um bom tempo para retornar ao trabalho. Não
queriam admitir, mas ambas tinham medo da feiticeira e de seus demônios. E a risada
que ela havia deixado no ar ainda ecoava em suas mentes como uma ameaça direta.
— Bem, Sueli, é óbvio que uma de nós será a próxima a morrer, não é? — falou
Ivone, mal a porta foi fechada. — Só restamos eu e você agora. Todos sabem que
uma de nós controla o egum. Mas as coisas não precisam ser assim. Uma de nós
desiste de controlar o barracão e podemos conviver em paz novamente. — A mulher
deu um passo até encarar a outra a menos de meio metro. — Só que, neste caso,
seria muito melhor que você sumisse daqui — completou, dando um empurrão em
Sueli, jogando-a no chão.
A pequena não se intimidou. Levantou-se e, agarrando uma vasilha de oferenda
que estava diante da estátua de Yori, arremessou-a contra a outra. Ivone era muito
mais alta e forte, porém tinha mais de cinqüenta anos. A chinesa contava com quase
quinze anos a menos, o que lhe dava mais agilidade. Tudo que ia ao alcance das mãos
da pequena era arremessado contra a grandalhona, que apenas desviava e esperava o
momento certo para se aproximar.
— Eu praticamente nasci aqui, Ivone. Não abriria mão do meu lugar por nada
neste mundo — gritou Sueli, tentando pegar um vaso sem conseguir erguê-lo. — Eu
amo este lugar e faria tudo por ele.
Aproveitando-se do erro da chinesa com o vaso, a loira deu um salto e agarrou-a
pelo braço.
— Então que tal morrer por ele? — respondeu Ivone, desferindo um soco no
rosto da chinesa, sem largar seu braço. E continuou desferindo um murro após o outro
até que Sueli, tonta e com o rosto ensangüentado, conseguiu morder a mão que a
segurava.
A chinesa correu para a porta, tentando fugir do salão. Sentia o sangue da mulher
em sua boca e sabia que ela a mataria se conseguisse alcançá-la novamente. Quando
tocou no trinco, sentiu os cabelos sendo puxados. Seu corpo foi lançado no lado oposto
do salão. A estátua de Ogum caiu sobre ela. O peso esmigalhando os ossos de sua
perna direita. Com esforço, conseguiu empurrar a estátua, recolocando-a de pé.
Quando tentou se erguer, sentiu mãos em sua garganta. I v e o sn leestrangulando-
a v a
a.
E foi então que viu a bruma surgindo, enquanto Ivone a matava. A princípio, não
discerniu uma imagem nela, apesar de ter certeza de que se tratava de uma entidade.
E sabia ser a mesma que matara todas as outras mulheres. Então, finalmente seus
olhos reconheceram quem ela era. Observou a estátua, onde se segurava para manter
o equilíbrio, e fitou novamente a figura que surgia da bruma.
— Ogum — balbuciou, arregalando os olhos.
O instante que Ivone levou para olhar por sobre o ombro foi o necessário para
que Sueli arrancasse a espada da mão da estátua de Ogum e a cravasse na barriga da
oponente. A pressão das mãos diminuiu imediatamente e a loira cambaleou para trás.
Olhava abismada, ora para Sueli, ora para a imagem de Ogum, completamente
materializada ao seu lado. Um negro alto e muito musculoso, vestido com um forte azul
que fazia pouco contraste contra sua pele, a encarava a menos de um metro.
— Ogum, meu pai, então não foi um simples egum. Foi você quem matou todas
— disse, sentindo o sangue escorrer do corte, onde a espada ainda estava cravada. —
Por que, meu pai? Por que deixou essa chinesa impura comandá-lo? Isso não pode ser
possível!
O orixá não respondeu. Apenas caminhou na direção de Ivone, que cambaleou,
sentindo as pernas fraquejarem, e tombou no chão. Logo depois o sangue escuro
escorria pela boca e Ivone não se movia mais.
Atabaques, agogôs e palmas, este é um som quente. Sei que vai entender
quando digo que é tão quente quanto sangue. Sinto seus velhos ossos se enchendo de
juventude também. Sinto isso através de seu corpo. Vá, entre na ginga. Bata os pés no
chão e esqueça do cansaço. Libere sua energia para mim, em minha homenagem.
Essa força antiga, sem a influência dessa nova bruxaria, desses demônios estúpidos e
da cobiça dessa gente com a cabeça afastada do coração. Seu suor na dança é tudo
de que o barracão precisa. A dúpé. Gosto de outras coisas também, mas elas não vêm
ao caso. Não agora, pelo menos. Hoje quero festa. A mesma festa de tantos anos.
Hoje sou rei. E nenhuma pessoa pode dominar um rei. Sei que você não achou que as
mulheres estavam me conduzindo. O rei conduz. Minha força veio de seu desejo. Do
desejo de todos aqui. Ninguém quer mudanças. Nem ninguém para substituir Mãe Gina.
O barracão é independente. A velha guarda está aqui para tudo. E eu também. Para
tudo. Eu guio vocês. Isso eu faço bem. Dance, meu filho. E cuide para que tudo
permaneça como era antes. Ou eu faço tudo voltar a ser como era antes. Do meu jeito.
Ajogún!
Alexandre Heredia
PARA A LEXANDRE HEREDIA nenhum tema é tabu. Suas tramas fogem das convenções
adotadas, oferecendo surpresas e pontos de vista completamente diferentes daqueles
aos quais estamos habituados. Suas histórias mesclam fobias, apreensões e reações
tão tipicamente mundanas que imediatamente nos identificamos com seus
protagonistas e passamos a nos preocupar com seus destinos — sempre incertos e
surpreendentes.
Em Cândido somos atirados em uma realidade desesperançosa e solitária, onde
percebemos que a magia do mundo não é algo que possa ser criado apenas
conscientemente. Aqui, a magia pode nascer de sentimentos intensos como o amor e a
paixão, o ciúme e a posse. Percebemos que cada ação, por mais altruísta que pareça,
pode trazer em seu rastro conseqüências nefastas e imprevisíveis, arriscando nossa
própria sanidade.
Cândido
A PRIMEIRA COISA QUE vi, por mais clichê que possa parecer, foram seus olhos. Mentira.
Mal os vi, pois estavam baixos, apagados, como se a vida lentamente fugisse por
aquelas pupilas dilatadas. Olhos amarelados, emoldurados pelo rosto coberto de pêlos
negros e brilhantes, apesar de sujos pela vida na rua. Chamei-o. Ele levantou um pouco
a cabeça, o focinho comprido e elegante demonstrando que podia até ser um vira-lata,
mas com resquícios de algum pedigree mesclado à sua linhagem. As orelhas fizeram
menção de se erguer, mas a chuva não permitiu. Vem cá, chamei-o novamente,
ignorando qualquer prudência. Era madrugada, eu estava sozinha. O cenário perfeito
para uma tragédia. Vem! Não vou machucar você. A chuva caía impiedosa em sua
cabeça. Entre nós, apenas a estreita faixa de asfalto da rua. Chamei-o mais uma vez,
quase suplicando. Por que razão sentia uma compulsão em ajudar aquele enorme
cachorro negro? Mas ele não se movia. Permanecia lá, miserável, mal se equilibrando
sobre uma pata ferida.
Entrei em casa e corri até a cozinha. Da geladeira retirei um pacote de salsichas.
Só haviam sobrado duas do jantar. Quando voltei à soleira da porta ele continuava lá,
esperando pela morte que se recusava a chegar. Sacudi as salsichas no ar. Ele as viu
e lambeu os beiços. A fome normalmente é mais forte que a autocomiseração. Eu bem
que sei. Atravessou a rua sem se preocupar com algum possível carro que
aparecesse. A fome superou quaisquer apreensões que pudesse ter. Veio mancando, a
pata dianteira esquerda mal tocando o chão. Parou novamente assim que chegou à
minha calçada. Agachei e estendi as salsichas à minha frente. Ele continuou à distância,
a cabeça baixa. Arranquei um pedaço da salsicha e o atirei em sua direção. O pedaço
caiu a seus pés, numa poça d’água. Ele cheirou o pedaço e o abocanhou, mastigando
com vontade. Gostoso, né? Quer mais? Vacilante, ele deu mais alguns passos em
minha direção. Havia um pouco mais de vida em seus olhos agora, assim como
provavelmente nos meus. Estendi as salsichas em minha mão aberta. Ele as cheirou
por um instante e em seguida as abocanhou, recuando alguns passos. Deitou-se então
sob a chuva e comeu. Quando terminou, fez menção de sair correndo, mas a pata
ferida não permitiu.
— Venha — chamei, ainda não desistindo dele. Na entrada de minha casa tem
um pequeno nicho entre a rua e a porta. Pequeno, mas o suficiente para protegê-lo da
chuva que caía incessantemente. Ele me olhou sem compreender. E as salsichas
tinham terminado.
Entrei novamente e procurei por uma caixa que tinha certeza que havia guardado
desde minha última visita ao mercado. Enquanto vasculhava cada canto de minha casa
pensei pela primeira vez a respeito do que estava fazendo. Era plena madrugada, eu
tinha que trabalhar no dia seguinte. Devia estar dormindo e não tentando atrair um vira-
lata para dentro de casa. Mas as dúvidas desapareceram assim que encontrei a caixa.
Desfiz os encaixes, transformando-a em um tapete improvisado, que deixei no nicho à
frente da porta, perto do relógio de gás. Mostrei a ele. Ele me olhou, mas não se
moveu. Em vez disso, começou a lamber a pata ferida, ganindo baixinho. Não consegui
evitar a frustração.
— Pára com isso! — gritei, às lágrimas. — Por que você não fica comigo? Por
que não me deixa cuidar de você? Será que eu sou assim tão repugnante? — Sentei-
me ao pé da porta. — Merda, merda, merda! Merda de vida!
Abracei os joelhos e chorei. Sentia-me a última de todas as criaturas, uma idiota
rejeitada pelo mundo. Primeiro Luiz, que me trocou por minha ex-suposta melhor-amiga.
Agora aquele maldito cachorro preto, que mesmo ferido e faminto se recusava a se
aproximar, como se minha mera companhia fosse algo indesejável.
O tamborilar de unhas compridas sobre papelão me trouxe de volta à realidade.
O cachorro se aproximou, subiu na caixa desmontada, girou duas vezes em volta do
próprio corpo e se deitou. Olhou diretamente nos meus olhos pela primeira vez. Sorri e
afaguei o topo molhado de sua cabeça.
O ritual se repetiu nas noites seguintes. Ele aparecia, comia, brincava um pouco e
dormia. A pata rapidamente sarou e ele logo se acostumou com o nome. Minhas noites
só ficavam completas depois de passar um tempo com ele. Sua presença me
revigorava, me estimulava. Eu já não chorava tanto, já não me achava a última criatura
da Terra, a formiga debaixo do cocô do cavalo do bandido. Eu finalmente tinha um
companheiro fiel. E daí se não era humano?
Mas não tem jeito. É só eu me sentir bem e parece que o mundo conspira contra
mim, como se minha felicidade fosse algo antinatural, uma aberração cósmica e
cármica, como minha avó costumava me chamar. Na primeira noite em que eu não
pensei em Luiz, ele reapareceu. Eu estava preparando a refeição de Anúbis quando a
campainha tocou. Assim que vi sua cara-de-pau pelo olho mágico, mandei-o embora
sem nem ao menos abrir a porta. Mas ele não desistiu: Ô, Lu, não faz isso comigo,
não. Pelo menos me deixa entrar. Mordi o lábio e segurei minha mão, que
involuntariamente já se encaminhava para a chave pendurada na fechadura. Vai
embora! Não faz isso, Lu. A gente precisa conversar. Vai conversar com a Ellen! Vai
que vocês se merecem! Lu, me deixa entrar. Deixa eu me explicar.
— Não tem nada pra explicar! Você acha que eu sou tonta?
Olhei novamente pelo olho mágico. Ele tinha um buquê de rosas na mão.
Vermelhas. Era tão idiota que nem se lembrava de que eu odiava receber flores! Ainda
se fossem chocolates! E recomeçou a ladainha: Lu, me dá uma chance. Chance? Você
teve sua chance e cagou tudo, seu merdinha. Agora já era! Ele não desistiu. Tá, eu
errei! Pisei na bola. Mas, pombas, isso acontece! Podia ter acontecido até mesmo com
você! Podia, mas não aconteceu. Mas se tivesse acontecido com você eu não ia te
abandonar sem te dar a chance de se explicar! Pô, Lu, me dá uma chance? Me
perdoa! Depois de todo esse tempo você vem e quer que eu te perdoe? O que
aconteceu? A Ellen já te deu o pé na bunda? E agora você acha que eu vou aceitar
você assim, na boa? Já era! Perdeu a chance, pisou na bola. Agora cai fora que eu
tenho mais o que fazer! Porra, me dá uma chance, Lu!
Por alguma razão irracional decidi atacar onde doía.
— A fila já andou, Luiz...
Foi impressionante como a frase surtiu efeito imediato. A cara de triste
desapareceu, substituída por uma expressão de raiva misturada com surpresa.
— Como é que é?
Eu não podia recuar agora: Você achava o quê, que era o último biscoito do
pacote? Agora vai embora que daqui a pouco ele chega e não quero que te encontre
aí. Na mosca. Ele espatifou o buquê no chão. Pois daqui eu não saio! Quero ver quem
é esse cara! Eu mato, viu? Juro que mato!
Pronto, agora minha mentira seria escancarada. Pensei em chamar a polícia,
mas não queria ter que lidar com um escândalo daqueles. Não que eu me preocupasse
com a opinião de meus poucos vizinhos, mas nem por isso queria me tornar o assunto
da semana. Precisava pensar, achar uma solução...
— Ahn, Luana? O que foi agora?
— É, bem... Tem um baita cachorrão aqui na tua porta. Ele tá rosnando pra
mim...
Anúbis!
— Luiz, sai bem devagarinho. Não faz nenhum movimento brusco. Vai embora
que ele não ataca. Vai embora e... — respirei fundo — não volta mais!
— Ah, puta merda!
Destranquei e abri a porta num impulso assim que ouvi os rosnados de Anúbis, já
prevendo o pior. Assim que saí, vi o cachorro parado, de costas para mim, o tórax
tremendo a cada rosnada. Sua postura era ameaçadora, tanto que temi sequer
encostar a mão nele. Não vi sinal de Luiz. Chamei Anúbis ainda tremendo. Ele se virou
e sua raiva desapareceu assim que me viu. Sacudiu alegremente o imenso rabo peludo
e se aninhou entre minhas pernas. Abaixei-me e esfreguei seu pescoço. Ele lambeu
meu rosto afetuosamente. Procurei por algum sinal de Luiz na rua, mas não encontrei
nenhum. Aparentemente, tinha desaparecido no ar. Sentei-me na soleira e Anúbis
pousou sua cabeça em meu colo, me olhando cheio de carinho com aqueles olhos
amarelos tão expressivos. Penteei seus pêlos com os dedos. Ah, Anúbis, o que você
fez com ele? Ele levantou a cabeça, virando-a para o lado, como se tentasse
compreender o que eu estava dizendo. Entrei em casa para pegar a ração. Não sei por
que, mas tudo aquilo havia me deixado deprimida. Deixei a comida de Anúbis na
entrada e me sentei na soleira da porta. Ele queria comer, mas quando me viu aos
prantos sentou-se ao meu lado e colocou a pata em meu colo. A pata que eu havia
ajudado a curar. Mesmo chorando, forcei um sorriso e o abracei.
— Ah, Anúbis. Se ao menos eu tivesse um namorado tão carinhoso e fiel como
você...
♦
Na manhã seguinte ele havia desaparecido. As únicas provas de que ele es tivera
por lá eram o roupão jogado na porta da frente, que ele deixou escancarada em sua
fuga, e o fato de todas as roupas que Luiz deixara em meu armário estarem
destruídas. Não sobrou nem uma meia para contar a história. Desastre total. Tive que
recolhê-las com uma vassoura, para se ter noção. Não prestavam nem mesmo para
doação. Aquilo me irritou. Como é que minha avó dizia mesmo? “Nenhuma boa ação
fica sem uma punição.” É, acho que era isso.
A única boa notícia foi ver o pote de comida de Anúbis vazio. Podia ser que outro
cachorro tivesse aparecido e se fartado, mas eu preferia acreditar que não. Não havia
ainda perdido as esperanças em encontrá-lo, e só aquela perspectiva já foi o suficiente
para que eu fosse trabalhar tranqüila. Mas não consegui parar de pensar no que havia
acontecido na noite anterior. A imagem daquele corpo magnífico, nu em minha cama,
não me saía da mente. O rosto inocente, os cabelos louros rebeldes, os olhos claros,
tudo me dava calafrios, somados com eventuais ondas de calor que me subiam pelas
entranhas, o que acabava de vez com qualquer chance de concentração. Nem mesmo
quando tomei uma bronca de minha supervisora eu melhorei. Trabalhar como depois de
tudo o que aconteceu?
De noite, quando cheguei em casa, já não sabia mais quem eu realmente
esperava encontrar. Era pouco provável que qualquer um dos dois retornasse, mas
apenas a perspectiva já me acalentava. Preparei minha janta e a de Anúbis
automaticamente, deixando o pote de ração na porta de entrada. Acendi um cigarro
depois que acabei de comer e fiquei lá, observando a lua cheia por entre as nuvens.
Desejei conhecer algum dos rituais que minha avó sempre fazia, que pudesse ser
realizado naquela noite tão magnífica. Algo ligado à fertilidade, ao amor, essas coisas.
Algo que apagasse aquela chama em minhas entranhas. Ou que a incendiasse de uma
vez, tanto fazia.
Minhas fantasias foram então interrompidas por um ruído na rua, um roçar na
parede externa de minha casa. Levantei-me e olhei para a fonte do ruído e lá estava
ele, nu como na noite anterior. Usava a parede como apoio às pernas bambas. O rosto
demonstrava cansaço, mas em seus olhos era possível distinguir um pouco de
sanidade. Aproximei-me.
— Onde você foi? O que aconteceu?
Ele abriu a boca, mas o ruído que saiu de sua garganta foi quase um gargarejo.
Tentou novamente, sem efeito. Queria se comunicar, um claro avanço da noite anterior.
Tirei a franja embaraçada da frente de seu rosto, prendendo os cabelos revoltos atrás
de sua orelha, descortinando seu rosto delicado, quase angelical. A boca continuava
abrindo e fechando, mas nenhum som inteligível saía dela. Acariciei seu queixo.
Acalme-se. Pronto, não precisa falar nada. Venha, vamos entrar, está muito frio para
você ficar assim. Venha.
Mas ele se recusou a se mover. Continuava com seu angustiante movimento
labial, a garganta pulsando como a de um sapo, como se o ar simplesmente se
recusasse a sair por aquela rota. Fechou os olhos. Uma gota de suor escorreu por sua
testa franzida pelo esforço. Temi que estivesse passando mal, que tivesse comido algo
estragado. Pensei em enfiar meu dedo em sua garganta e induzir o vômito, mas temia
que ele me mordesse. Oh, meu Deus, pensei, e se fosse um ataque epilético? O que
eu faria?
De repente ele respirou fundo. Abriu os olhos e se endireitou. Segurou-me pelos
ombros olhando-me diretamente em meus olhos. Abriu a boca mais uma vez e disse:
— Luh-Ahn-Nah.
Quase fui às lágrimas quando percebi que todo aquele esforço tinha sido para
que ele conseguisse dizer meu nome. Abri um sorriso e o abracei. Tomando-o pela
mão, guiei-o para dentro de casa. Ele continuou falando meu nome, como que
treinando, se aperfeiçoando. Após algumas repetições, já conseguia falar quase
normalmente. Eu não me cansava de ouvir aquelas sílabas saindo de seus lábios.
Levei-o até o banheiro e o coloquei embaixo do chuveiro. Estava sujo e suado,
precisava urgentemente de um banho. Se debateu um pouco quando o primeiro jato
d’água atingiu suas costas, mas eu o acalmei com carinhos. Ele logo curtiu a idéia do
banho e se deixou lavar. Esfreguei cada pedaço de seu corpo, removendo toda a
sujeira e mácula daquela pele macia. Lavei e penteei seus cabelos. Ele adorou a
experiência. Eu também. Enrolei uma toalha em volta de sua cintura e o levei para a
cama. Deitei-me. Ele novamente se aninhou em minhas pernas, aprontando-se para
dormir.
Mas eu tinha outros planos para aquela noite. Ele não ia me deixar na mão de
novo. Puxei-o delicadamente para cima, de modo que apoiasse a cabeça ao meu lado
no travesseiro. Ele pareceu desconfortável, como se não gostasse da posição em que
o coloquei, de costas para o colchão. Deixei-o se ajeitar e ele se virou de lado, os olhos
fixos nos meus.
— Lua-na.
Abandonei qualquer resquício de prudência e liberei meus instintos. Beijei-o. Ele
inicialmente se assustou, mas depois se deixou levar. Quando percebi, sua toalha já
estava no chão. Desci minha mão, navegando lentamente por todo o seu corpo. Ele
gemeu dentro de minha boca quando o toquei. Mordi de leve seu lábio. Não lembro
exatamente como me despi.
De repente, algo aconteceu com ele. Deu um salto na cama c me virou
grosseiramente de bruços. Enfiou uma das mãos por baixo de minha anca e a ergueu.
Eu estava excitada demais para impedi-lo. Colocou-me de quatro e me penetrou de
uma só vez. Gritei, mas não de dor. Ele não se fez de rogado e continuou, entrando e
saindo de dentro de mim numa velocidade assustadora. Arfava, gemia, uivava. Minhas
unhas rasgavam os lençóis. As dele, a pele de minhas costas.
Tudo durou apenas alguns minutos. Mas quando o gozo chegou, veio forte,
fulminante, avassalador. Devo ter acordado toda a rua com meus berros. Demorou
algum tempo até que eu conseguisse me recobrar da experiência. Ele também parecia
exaurido, apesar de continuar tão ereto como antes de começarmos. E eu sabia que
aquela noite eu não conseguiria dormir.
E, sinceramente, nem queria.
♦
Foi assim nas cinco noites seguintes. E a cada vez ele vinha com uma novidade.
Uma palavra, uma frase... Tudo menos um nome. Não sei por que, mas achei que ele
tinha cara de Cândido. Ele não reclamou quando o chamei assim, então assumi aquele
nome como seu. E inevitavelmente terminávamos a noite na cama, até ambos
desmaiarem de cansaço. Estava difícil ir trabalhar. Pensei sinceramente em adiantar
minhas férias, mas sabia que seria impossível. No sexto dia cheguei em casa exausta,
disposta a dormir. Quase peguei no sono no sofá mesmo. Mas acordei com o ruído de
unhas arranhando minha porta. Corri para ver quem era, e qual não foi minha surpresa
quando encontrei Anúbis por lá. Abri a porta e o abracei. Fui buscar um pote de
comida, para o qual ele avançou com vontade. Parecia que não se alimentava direito há
dias. Terminou a refeição, comeu dois biscoitos e se deitou em seu papelão.
Cândido não apareceu naquela noite. E, por mais que eu agradecesse pela noite
de sono, não consegui evitar imaginar o que tinha acontecido com ele. Para variar, tinha
me envolvido demais, me apaixonado. E não sabia se conseguiria suportar uma nova
rejeição.
Até que chegou o dia em que ele voltou. Já não cambaleava mais como antes.
Andava com o corpo reto e imponente. Mas ainda estava nu. Caminhei até ele e o
abracei. Por que chora, Lua-na? Por quê? Ora, ainda pergunta? Onde você esteve? O
que aconteceu com você? Ele sorriu.
— Eu não foi, Lua-na. Eu ficou.
Percebendo que aquela seria a única explicação que eu teria, beijei-o e levei-o
para o quarto.
Acordei em minha cama. Levei alguns segundos para entender onde estava. Por
um instante achei que tudo aquilo tinha feito parte de um pesadelo, mas essa
impressão desapareceu assim que eu vi Cândido parado de pé no vão porta. Ainda
estava nu. Nem notou que eu tinha acordado. Parecia que estava guardando o quarto
de imaginários invasores externos. Olhei para aqueles ombros largos e tremi de terror.
O que eu havia presenciado, meu Deus? Luiz estava morto. E aquele homem havia
matado-o com uma selvageria assustadora. Nada do que ele tivesse feito
anteriormente mudava aquele fato. Cândido era um assassino. Chamei-o. Ele
imediatamente se virou e caminhou para o pé de minha cama. Sua expressão era dura,
fria. Cândido, o que você fez? Ele não respondeu, mas seus olhos pareciam em
chamas. Suas mãos crispavam o pé de minha cama. Cândido, você tem noção do que
você acabou de fazer? Tem idéia das conseqüências?
— Eu tenho — respondeu ele, suspirando. — E você?
Já não havia mais aquele ar meio estúpido em sua expressão. Ao contrário, seu
semblante era seguro, firme, convicto. Estremeci. Sabia que nada do que dissesse
faria sentido para ele. A ausência de uma justificativa de minha parte foi como uma
facada em seu coração. Suas mãos apertaram ainda mais na peça de madeira de
minha cama. Parecia que se pressionasse mais um pouco ela se faria em pedaços. Eu
sentia um caroço em minha garganta, mas temia irritá-lo ainda mais chorando.
— Entenda uma coisa, Luana — começou ele, de olhos baixos. — Você é minha.
Só minha. Ninguém vai tirar você de mim. Ninguém.
O que aquilo significava? Que ele mataria qualquer um que se aproximasse de
mim? Era isso o que ele estava me dizendo? Ele ergueu o rosto o suficiente para que
eu visse a resposta claramente em seus olhos parcialmente escondidos por seus
cabelos revoltos.
— Vai embora, Cândido. Sai daqui, por favor.
Ele relaxou os ombros e largou a cama. Mas não se moveu.
— Por favor, Cândido. Estou te pedindo. Sai daqui agora. Sai! Ele então
caminhou de costas até a porta, sustentando o olhar duro. Quando chegou ao vão uma
lágrima escorreu por seu rosto. Espantou-se com aquilo, esfregando-a com os dedos,
que lambeu em seguida. Então abriu a boca, como que para perguntar alguma coisa,
mas aparentemente se arrependeu e saiu.
Quando ouvi finalmente a porta da frente batendo, foi minha vez de desabar no
choro.
Pela manhã eu desci. Tomei muita coragem para fazê-lo, temendo encontrar o
cadáver de Luiz ainda estendido no meio da sala. Mas ele não estava lá. No lugar onde
ele havia caído apenas algumas manchas de sangue no carpete atestavam sua morte.
Certamente Cândido havia levado embora o corpo quando saíra.
Esperava sinceramente que ele tivesse sido ao menos discreto naquele quesito.
Movi o sofá e enrolei o tapete. Levei-o até um terreno aqui perto e arremessei-o numa
pilha de entulho. Pensei em queimá-lo, mas sabia que aquilo chamaria muita atenção.
Retornei para casa e telefonei para o escritório, dizendo que não iria trabalhar. Voltei
para a cama e passei o resto do dia deitada e olhando o teto, os pensamentos
entrecortados por lágrimas incontroláveis. Quando caiu a noite, ouvi passos descalços
na frente de casa. Não desci para abrir a porta nem dei qualquer sinal de vida. Algum
tempo depois ele desistiu e foi embora. Anúbis também não apareceu. A mesma coisa
nos dias seguintes. Não abri a porta uma vez sequer. Mas ele aparecia toda noite. Aí,
de repente, não apareceu mais.
Foi uma gestação solitária. Trabalhei enquanto pude, enquanto ainda conseguia.
Só tirei minha licença-maternidade quando já não dava mais para agüentar. A grana
estava muito curta, eu não tinha amigas para me fazerem um chá de bebê. Afundei-me
em dívidas para comprar o enxoval. Comia mal. Estava fraca e debilitada e não tinha
ninguém a quem recorrer. Sem parentes vivos, sem vizinhos conhecidos, ninguém.
Minha única companhia era Anúbis, que aparecia todas as noites, mesmo não sendo a
mais alegre das companhias. Quero dizer, todas as noites em que Cândido não
aparecia e ficava na porta balbuciando coisas sem sentido sobre não querer morrer por
causa do bebê. Chamei a polícia uma vez, mas ele conseguiu fugir pouco antes de eles
chegarem. E na noite seguinte lá estava ele novamente. Era para enlouquecer qualquer
um. No final da gestação ele trocou o tom calmo por um mais ameaçador. Batia na
porta violentamente a noite toda, gritava e me ameaçava. E eu me encolhia, apavorada.
Em breve meu filho nasceria. E assim que ele nascesse eu teria que defendê-lo
daquele maluco.
Mas, naquela noite, Cândido estava mais calmo. Eu devia ter imaginado que
aquilo era o prenúncio de um desastre. Eu estava deitada em minha cama, lendo um
livro, quando aconteceu. Senti o líquido amniótico jorrar por entre minhas pernas,
encharcando o lençol e o colchão. Em seguida vieram as primeiras contrações. Urrei de
dor. Saí da cama e desci as escadas lentamente. Precisava encontrar minha bolsa,
pegar meu celular, chamar uma ambulância. Amaldiçoei a mim mesma por ter deixado
a bolsa tão longe. Caminhei pela sala, parando de vez em quando por causa de uma
contração mais forte. A dor era insuportável! Era difícil até mesmo me manter de pé.
Encontrei a bolsa sobre a mesa da cozinha, abri-a e despejei seu conteúdo no chão. O
celular quicou e caiu longe de meu alcance.
Xinguei e me abaixei para pegá-lo. Apertei os botões, mas a tela não acendeu.
Tentei apertar o botão de ligar, mas não obtive resposta. Sem bateria! E o carregador
estava no andar de cima, espetado na tomada ao lado do criado-mudo. Burra, burra,
burra! Sentei no chão gelado da cozinha e comecei a chorar. Cândido gritava,
esmurrando a porta. Luana! Abre aqui! Vai buscar ajuda! Eu ajudo! Na falta de opção
melhor comecei a me arrastar em direção à porta. Mas de repente a lembrança da
ameaça velada de Cândido reverberou em minha memória. Não podia deixá-lo entrar.
Ele mataria meu filho! Mais uma contração. Respira, Luana, respira! Oh, meu Deus,
mais uma! Ele estava nascendo! Luana! Vai buscar ajuda, porra! Abre aqui! Não! Só se
você prometer que não vai machucar meu filho! Silêncio.
Ah, meu Deus, que dor! Faltava quanto tempo para amanhecer? Com sorte podia
contar que alguém passasse na frente de minha casa e ouvisse os gritos. Claro que a
presença de um homem pelado esmurrando a porta da frente espantaria a maioria,
mas alguém podia chamar a polícia e resolver o assunto. Faltava ainda uma hora para
o amanhecer. Não sabia se teria tanto tempo. Cândido! Caralho! Vai pedir ajuda! Eu
vou entrar! Blam! A porta tremeu inteira. Ele estava tentando arrombá-la! Será que
conseguiria? Meu Deus, tomara que não! Não podia deixar aquele maluco matar meu
filho, não podia! Blam! Mais uma pancada. Vai embora, filho duma puta! Me deixa em
paz! Ai! Mais uma pancada. E outra. A tinta na porta já começava a rachar. Não sabia
por mais quanto tempo as dobradiças agüentariam. Mas não tinha mais como pensar
naquilo. Meu filho estava nascendo. Mesmo que Cândido parasse de arremeter contra
a porta e eu conseguisse ajuda, era pouco provável que chegaria a um hospital antes
de dar à luz. Eu precisava fazer eu mesma meu próprio parto, da mesma maneira que
minha avó pariu minha mãe e esta me pariu, como se aquilo fosse uma maldição de
família. Arrastei-me até o canto da parede e apoiei minhas costas. Com muito esforço
coloquei-me de cócoras. Respirar, respirar. Mais uma contração. A porta continuava
tremendo, mas não podia pensar naquilo. Respirar, respirar, contração. O h meu
, Deus!
Oh, meu Deus, que dor insuportável! Respirar, não podia me esquecer de respirar.
Mais uma... Ah, meu Deus, eu vou morrer! Será que a dilatação é suficiente? Ah, meu
Deus! Está saindo! Um pedaço da porta voou e caiu no meio da sala. Cândido enfiou o
braço pela fresta recém-aberta, mas não conseguiu encontrar a maçaneta. Ah, meu
Deus! Ah, meu Deus, é agora! Senti um líquido quente escorrer pelo piso. A cabeça
saiu! Ai, meu Deus, me mate agora! Luana, Cândido gritava. Luana! De repente, de
uma só vez, meu filho escorregou para fora de meu útero, caindo no piso. Levo alguns
segundos para retomar o fôlego e o recolho. Corto seu cordão umbilical com uma
tesoura de unha e prendo-o com uma presilha de cabelo que encontro entre os
escombros de minha bolsa ao meu lado. Respirar, respirar. Você também, meu filho,
por favor, respire! Meu Deus, a placenta não se rompeu completamente. Ele está
sufocando! Meus joelhos não agüentam mais a pressão. Sento no chão. Ele não está
respirando! Tento tirar a placenta de sua cabeça, mas minhas mãos estão muito
trêmulas. É tão escorregadio! Sangue, quanto sangue. Respira, meu filho! Do lado de
fora da porta a gritaria é subitamente misturada com um rosnar selvagem de cachorro,
até que os gritos de Cândido finalmente desaparecem. Já é quase dia. Oh, Anúbis,
você caiu do céu! Preciso pedir ajuda. Coloco meu filho no chão e me levanto,
arrastando minhas costas na parede. Não tenho forças para carregá-lo. Cambaleio até
a porta e a abro. Lá está Anúbis. Sinto uma súbita tontura e caio sentada no chão.
Tento gritar por socorro, mas nenhuma palavra sai por minha garganta. Não tem
ninguém na rua. Anúbis entra e vai até onde meu filho agoniza. Tremo só de pensar no
que ele poderia fazer. Não tenho forças para impedir que ele o coma se quiser. Em
desespero, vejo Anúbis lambendo meu filho. Lambidas vigorosas. Não, Anúbis, por
favor! Ele me ignora e continua lambendo. De repente a placenta se solta e ele a
engole de uma vez. Mais algumas lambidas e meu filho começa a chorar. Eu o
acompanho. Anúbis o salvou! Meu Deus, obrigada, meu Deus, por este cachorro tão
maravilhoso!
Arrasto-me até meu filho e o pego no colo. Limpo o sangue de sua cabeça com
minha camisola, ainda aos prantos. Olho para Anúbis, que está cabisbaixo ao meu lado.
Oh, obrigada, Anúbis, obrigada! Percebo que ele me olha por alguns instantes. Penso
ver algumas lágrimas escorrerem por seus olhos amarelos. Ele então olha para meu
filho e vejo naquele olhar algo em que nunca tinha reparado antes. Uma humanidade
imensa, um amor além do racional, maculado por uma tristeza imensurável. Ele dá uma
última lambida no topo da cabeça de meu filho e então me olha. Sua boca se abre,
como se quisesse dizer alguma coisa, mas não consegue. Dá para sentir sua
frustração. Então, sem nenhum aviso, ele se vira e sai correndo pela porta. Antes que
eu consiga dizer qualquer coisa, escuto o ruído estridente de pneus freando e um
baque surdo seguido por um ganido de agonia pavoroso. Fico alguns segundos sem
respirar, as lágrimas de alegria substituídas por outras de perplexidade. Recuso-me a
acreditar em meus sentidos e com muito esforço me ergo, carregando meu filho no
colo. Cambaleio até a porta apenas para ver a imagem horrenda do corpo de Anúbis
atropelado, o sangue espalhado pelo asfalto em toda a trajetória desde o impacto até a
parada do veículo. Sua cabeça jaz inerte, os olhos vazios, a língua pendendo pela boca
escancarada. O motorista xinga. Eu grito até não conseguir mais.
Em meu colo, meu filho esfrega o rosto em meu peito por cima da camisola,
procurando pelo alimento. Observo atentamente seu rosto. Volto-me então para o
cadáver de Anúbis. A voz de minha avó ressoa em minha cabeça ininterruptamente:
“Toda ação na vida tem uma conseqüência.”
Então finalmente compreendo.
E torço para ter tomado a decisão correta.
Camila Fernandes
PARA TUDO O QUE SE GANHA algo deve se perder. A Magia não cobra caro, é apenas
justa. Essa é a idéia que conduz Empório da Boa Fortuna, uma narrativa que versa,
mais do que apenas sobre bruxaria, sobre a ambição sem limites.
Camila Fernandes revela aqui uma face mais seca e brutal de seu estilo
normalmente introspectivo e velado. Seguindo a tradição da narrativa desencadeada
por um objeto maldito que seduz e arruina, consagrada por histórias como A mão do
macaco, de W. W. Jacobs, e a lenda da garrafa do diabo, a autora pinta uma história
em que a incredulidade é superada pela cobiça e o bom senso, pela conveniência. O
enredo tem tons de cinza que se espelham na cidade opressora e na ambigüidade das
escolhas de um jovem, para quem não há preto e branco, bem e mal, apenas o desejo
e a sua satisfação imediata.
As ambições de Ricardo guiarão o leitor por uma trama de reviravoltas, na qual
cada ação tem uma conseqüência inesperada — e devastadora.
Empório da Boa Fortuna
É CINZA-CHUMBO A COR DO DIA, tom que muita gente aguarda para afinar com seu humor
cinza.
O rapaz é um. Sentado sozinho no banco de dois lugares, uma sacola pequena
ao lado, parece acabrunhado. Tem o corpo magro, sacudido sem resistência pelo
embalo rude do trem, e um rosto naturalmente cor de cera, de barba por fazer,
displicente. Tem um quê de perdido aos olhos dela. Ela que o olha de viés, com pouco
disfarce. Sempre teve uma queda pelos desamparados. Os que precisariam dela.
O trem pára de um tranco, e seus pensamentos são detidos pelo levantar brusco
do rapaz, que desce na estação. No banco, a sacola sozinha.
Sem muito ponderar, ela se ergue, apanha o objeto esquecido e salta do vagão,
seguindo quase a correr o rapaz que, a passo largo, distancia-se.
— Oi! — ela chama. — Moço? Moço!
Quando ela o alcança ele não parece surpreso. Parece, antes, ciente do óbvio.
Mas ela arma seu melhor sorriso e lhe estende o pacote.
— Olha, você esqueceu isto...
Ele apanha a sacola e murmura um obrigado quase mudo. No fundo das
cavidades roxas, seus olhos escuros estão raiados por um forte vermelho de veias;
olhos de alguém que nunca descansa. O estômago da moça se retrai em aflição, mas
ela nada ousa perguntar. E ele continua sua caminhada, desta vez sem pressa, sem
fuga. Sombra de algo que já não há.
Não impressionou na entrevista, e sabe disso. Vai ser difícil conseguir o estágio.
Seu currículo não exibe muitas habilidades. E talvez as roupas o tenham atrapalhado.
Podiam — e deviam — estar mais alinhadas. Mas os sapatos já velhos, a gola um tanto
puída da camisa — tudo errado. Nem uma palavra à mãe; ela se compadeceria,
quereria comprar-lhe do melhor, e ele não quer isso. O bolso é raso. E é bom para o
caráter do jovem esforçar-se e conseguir por mérito o que quer, ele sabe, concordando
com o tio, que lhe diz sempre. O padrinho.
Mas não é hora de pensar no desânimo. Está bem no horário de pico do
congestionamento no trânsito, quando os carros pouco andam e os ônibus transportam
verdadeiras multidões. Então, não tem pressa de voltar para casa; melhor explorar as
extravangâncias visuais do centro da cidade. É por isso que ele está no interior da loja,
distraído com itens exóticos da cultura alheia. O que o atraiu primeiro foi o nome do
lugar: Empório da Boa Fortuna. Depois, a vitrine apinhada de objetos estranhos ao seu
cotidiano, outros familiares. Amuletos, talismãs, estatuetas, penduricalhos vários de
semente, de bambu, de cristal. Uma loja da sorte, da influência mágica, para os que
nela crêem. Ele não crê. Nunca pensou em crer. Mas o lugar é curioso, intrigante, e ele
não será levado a comprar nenhuma boneca de palha ou gato de sândalo, por isso está
seguro.
Entre prateleiras de excentricidades ele caminha, curioso e cético, até avistar, no
canto oposto do recinto, algo que captura sua atenção. Sob a poeira dos dias algo
reluz uma e outra vez
— decerto pela forma como ele se moveu, causando a si mesmo a impressão de
ver uma estrela piscar. Ele caminha naquela direção. Está a poucos passos do objeto,
cuja forma as poucas teias de aranha revelam ser a de uma esfera. Seus dedos estão
estendidos para ela, entre tocar e não tocar.
— Viu algo de que gostou, jovem? — a voz áspera força um tom gentil. E o
homem atrás do balcão quem o divisou entre as estantes.
O rapaz sorri evasivo como quem não pretende gastar. Mas aceita a conversa.
Apanha afinal o objeto em suas mãos, soprando o pó da sua superfície.
— Esta bola de cristal aqui. É daquelas para se prever o futuro?
O homem ri longamente, um riso escamoteado e secreto, e se debruça no
balcão. O visitante analisa desconfiado sua boca torcida em meio à barba de negro
arame, o nariz adunco e imenso que quase se desarmoniza do rosto cor de bronze e
sobretudo os olhos pequeninos e juntos demais. O vendedor, que o examina
igualmente, continua:
— Essa não é uma bola de cristal de titia vidente, rapaz. E um objeto único. Eu o
chamo de orbe. Você sabe o que é um orbe? — O outro meneia a cabeça em negativa.
— Um orbe é uma esfera que representa o mundo. Reis de outros tempos eram
retratados com um cetro numa mão e um orbe na outra, símbolo de seu poder sobre o
mundo. Da mesma forma, quem possuir essa esfera que está em sua mão possuirá o
mundo.
— Ah, é? — pergunta o incrédulo. — Como assim?
— O orbe é capaz de realizar todos os desejos do seu possuidor. Apenas deseje
e você terá. Mas deve-se tomar cuidado...
— Sei, cuidado com o que você deseja, pois pode acabar conseguindo, não é?
— Não seja tolo. Se você deseja uma coisa, óbvio que consegui-la seria ótimo.
Deve-se tomar cuidado, na verdade, com o preço. Tudo o que se obtém possui um
preço. Para tudo o que se ganha algo deve se perder. Essa é a essência do orbe. Mas
a Magia não cobra caro, é apenas justa. Saiba disso e não terá o que temer.
O jovem não pretende comprar o artefato — ao menos é o que diz a si mesmo.
Mas não negaria que está atraído pelo brilho baço da esfera. Ela é pequena, encaixa-
se comodamente em sua mão como um firme seio de menina, como um seio de
Mariana, ah se ela quisesse. Parece feita de vidro, frágil e fria ao toque. A esfera, não
Mariana. E transparente na superfície e se torna leitosa mais no fundo, irradiando
grossos veios brancos. A um só tempo, é desconhecida e familiar. Por isso, sem
querer, sem tirar do rosto a máscara descrente, ele indaga:
— Certo, certo. Mas se esta coisa é tão útil, por que o senhor quer vendê-la?
— Todos merecem uma oportunidade. Eu tive as minhas. Agora passo a boa
fortuna adiante.
— E quanto custa? — pergunta o rapaz, mãos já dentro dos bolsos.
— São apenas setenta pratas.
— Dou cinqüenta.
— Sessenta, então.
— Olha, eu só tenho cinqüenta mesmo.
— Feito.
O vendedor estende a mão, que atravessa a nuvem de ansiedade ao seu redor.
— Cinqüenta pratas pelo poder de ter tudo no mundo? Beleza — zomba o
comprador, impressionado com a facilidade em pechinchar.
— O orbe não pode ser vendido por um preço maior do que aquele pelo qual foi
comprado. O preço seguinte deve ser sempre menor. Um dia alguém o comprará por
um centavo.
— E aí, o que acontece?
— Essa pessoa terá fortuna eterna — afirma o homem com uma casquinada —
ou eterno azar!
São nove e meia da noite quando ele finalmente chega em casa. Comeu qualquer
bobagem na rua. Precisou economizar. Gastara demais naquele item completamente
supérfluo. Logo ele, que, no mesmo dia, sem trabalho, teria aceitado um estágio
pobremente remunerado. Agora, está aqui, desabado no sofá, olhando, diante de si,
para a esfera vítrea sobre o caixote de madeira que, emborcado, cumpre o papel de
mesa de centro.
Ele não devia ter comprado aquilo. Não na atual situação. Sua mãe paga a
mensalidade do curso, mas se ele não conseguir logo um emprego razoável não poderá
pagar as contas do apartamento e terá de voltar para a casa no interior. De lá não é
possível ir todo dia à faculdade, afinal, são quatro horas de viagem. Há ainda Tio
Mauro. O padrinho, que na sua infância o ensinou a dar a partida no carro, aquele carro
vermelho de colecionador pelo qual o homem zelava como por uma amante e mesmo
assim permitia que ele, Ricardo, ainda moleque de voz fina, o encerasse até brilhar,
recebendo a recompensa de uma volta sobre rodas até a sorveteria. Lindeza de carro.
Boas tardes de menino. Agora Tio Mauro está no hospital. Na quimioterapia. Não é
jovem, não tem grande chance de recuperação, mas é preciso tentar. Sempre. E perto
e ele prometeu visitá-lo toda semana. Falta coragem.
Não, ele não devia ter gastado dinheiro com aquela futilidade quando há tanto em
jogo. Sente-se impotente. Gostaria de verdade que o tio se curasse de uma vez.
Por um instante, ele pensa que seria muito bom se o orbe dos desejos
funcionasse.
É verdade. Não parece e é. Tio Mauro está sorridente, insiste em ficar de pé,
embora lhe digam que a cama é mais apropriada para um convalescente.
— Escuta, eu não tô convalescendo de nada, tô é curado
— ele berra, brincalhão, com a enfermeira. Com as bochechas coradas sob os
olhos castanhos, não se parece com um homem de quarenta e poucos anos que um dia
antes estava em intensa terapia para erradicar o câncer que lhe corroía os pulmões.
— Fizeram mais uma radiografia e a coisa tá menor ainda. Nesse ritmo, vai sumir
sozinha. Vai ser preciso mais do que um tumorzinho pra me derrubar.
— É um milagre — repete sua irmã, uma mão apertada na sua, a outra, na de
Ricardo.
— Podem chamar como quiserem. O importante é que vou estar fora daqui assim
que fizer esses exames que eles exigem. Estão querendo que eu fique aqui ainda uns
dias, “por precaução”, eles dizem, mas não podem me forçar.
— Padrinho — chama Ricardo entre sorrisos —, eu preciso voltar pro apê. Ainda
tenho que estudar para uma prova hoje à noite. A gente se vê amanhã, que eu não
tenho nenhuma aula importante. Saio bem cedo e passo o final de semana com vocês
na casa da mãe.
— Com certeza, meu filho. Sua mãe vai me levar pra casa assim que me
liberarem. Né, Marli? Não vejo a hora de sair desta cidade, isto aqui é uma barulheira
dos infernos, mesmo perto do hospital. Quero voltar logo pro meu canto. Tô louco por
uma picanha e uma caipirinha.
Encontrar dinheiro perdido é até comum — uma vez, Ricardo encontrou uma nota
de cinco bem nova e limpa na rua. Mas deparar-se com uma carteira nova, recheada
de notas de cinqüenta, é sorte demais. Revirou as reentrâncias todas da carteira sem
achar um único cartão que indicasse o nome de seu proprietário, como contatá-lo,
como devolver-lhe o dinheiro. Não havia meio. Deixar a carteira onde estava, entregá-la
à polícia, inútil; o próximo a pôr-lhe as mãos trataria de gastar a quantia ainda que
conhecesse o dono. Melhor que ele mesmo o fizesse, então.
Ricardo ainda se ri disso enquanto experimenta mais uma calça sem pregas,
flexível e elegante, que ficará bem com aquela camisa estriada de azul na vitrine. Jeans
de marca completam o dia.
Sai da loja carregado de sacolas. Nunca em sua vida teve tal prazer em gastar.
Faria uma boa figura nas próximas entrevistas. Logo conseguiria o esperado estágio
numa boa agência e lá se destacaria. Agora, falta-lhe apenas um belo veículo. Isso ele
não pode comprar agora. Mas depois. Depois ele há de ter os meios. Que seja um
carro feito o do padrinho, item de colecionador.
Quero ter um carro exatamente como aquele, pensa. Tio Mauro, quando o vir, vai
rir até rachar.
E com esse humor que, descendo do ônibus, ele chega ao seu prédio. E um
edifício antigo, de modesto jardim frontal, sem porteiro, no qual cada proprietário
possui uma cópia da chave principal. Ao virar a sua na fechadura, nota que o corredor a
seguir está todo escuro a não ser pelas parcas luzes de emergência nos cantos, que
impedem apenas que ele tropece num vizinho que sai. Acabou a força.
Diante da escada tortuosa ele suspira. São dez andares até seu apartamento. E
muito azar.
Lá em cima, ele atira as sacolas para o lado, resfolegando. Já passam das cinco
da tarde. Terá tempo apenas para tomar um banho — gelado —, improvisar um jantar
e partir para a faculdade, a pé, sem ter estudado para a prova.
♦
É sexta-feira. Desta vez, programou o telefone celular para despertá-lo às 7h.
Não vai se atrasar de novo. Terá tempo para socar algumas roupas na mochila, chegar
ao hospital e, na companhia da mãe e do tio, pegar um ônibus para sua cidade natal,
com folga. Da extravagância de ontem ainda sobrou o dinheiro para a passagem.
Está a ponto de sair de casa quando o aparelho novamente o chama no bolso
traseiro dos jeans novos. Reconhece o número e atende enquanto tranca a porta.
— Tô saindo agora mesmo, mãe — é o que tem tempo de dizer. O resto é
mudez, enquanto ele escuta as novas. Detém seu andar; empalidece. Então,
retomando o passo, segue escada abaixo, desabalado, sem lembrar-se de verificar o
elevador.
É domingo. Ele está longe da multidão urbana, do tráfego paralisado, das buzinas
e xingamentos. Vez por outra um carro ruge com pressa desnecessária pela ruazinha
do contrário quieta diante da casa. Mas é a casa da família, é o sossego do interior.
Uma boa casa, antiga e modesta, mas digna, onde passou a infância e onde gosta de
passar, às vezes, os finais de semana, revendo amigos de sua meninice, sendo
mimado pela mãe. Mas não hoje. Sente-se anestesiado. Não quer relembrar. Não quer
olhar velhas fotografias. Não quer ouvir as condolências dos conhecidos. A tristeza
parece rondá-lo sem chegar a assentar-se nele, deixando-o suspenso entre o luto e a
indiferença. É estranho. Mas seu coração pesa com algo mais que ele não sabe definir.
A necropsia foi no sábado. Os médicos não conseguiram descobrir a razão de o
coração ter parado, já que esse órgão estava saudável no corpo do falecido. Ricardo
também não esperava, por alguma razão, que descobrissem.
O funeral é hoje. Logo. Ele sabe que não vai chorar.
Tio Mauro está sob o solo do campo santo. Ricardo está na estrada. No carro
longamente cobiçado. E dele agora, não é? Pode fazer o que quiser, acelerar e baixar
a capota, aproveitando a brisa que rasga a tarde enquanto ele arremete em direção à
cidade.
Ele se sente frio e poderoso. Esta é mais uma das coisas que conseguiu nos
últimos e estranhos tempos. Tudo o que ele quiser será dele. O básico: dinheiro, um
belo carro e mulheres. Faltam as mulheres. Uma mulher: Mariana. Mariana, que
sempre o achou pobre, ou feio, ou tolo, ou outra coisa qualquer que ele nunca
compreendeu. Será que o rejeitaria agora? No belo carro vermelho, nas boas roupas
de marca?
Ele deseja que não. E, mesmo estando em alta velocidade na estrada, tecla um
número no celular.
Já são 20h30 quando ele pára diante da casa e buzina. Observa as construções
ao redor, bairro de classe média, pequena e feliz burguesia. Está prestes a sacar o
celular e ligar de novo quando uma chave é virada na fechadura do portão e Mariana
surge dele, faceira como nunca. Os cabelos castanhos, sempre presos na faculdade,
estão soltos, recém-lavados. Usa um vestido vermelho. Curto. Ela quer mostrar as
pernas. Quer se exibir, apesar do ar quase entediado que lança para ele enquanto
tranca a porta e se dirige ao carro. Não adianta fazer essa cara. Ricardo já sabe que
ela quer ser notada, e isso só pode significar uma coisa.
— Era essa a surpresa que você queria me mostrar? — diz ela com um sorriso
debochado, sua vista percorrendo atentamente o veículo. — É... nada mal!
Ricardo, de pé, os quadris apoiados no carro, contorna-o para abrir a porta para
Mariana, como um cavalheiro — como alguém que sabe certa a recompensa.
— E então, o que vai ser? — ela pergunta, já acomodada. — Quer pegar um
cinema?
— Não. Nós vamos a uma festa.
— Festa? Em pleno domingo? Onde?
Ele não responde. Apenas sorri, acelera o carro, fazendo cantarem os pneus, e
arranca.
— Ei, eu posso dirigir um pouco?
— Na volta você dirige. Eu vou estar bêbado demais.
O par deixa a cidade. Para Mariana, tudo parece um tanto duvidoso. Ricardo,
diversamente, sabe muito bem aonde está indo. Eles partem pela estrada novamente
e, poucos quilômetros percorridos, Ricardo desacelera e se desvia para uma estrada
secundária à direita. Poucos metros adiante, cai numa senda menor, inclinada, onde as
rodas erguem poeira cor de tijolo, fazendo um esforço extra para subir. Após um leve
sacolejar, contornam a borda de uma ribanceira, reduzindo a velocidade do carro e
fazendo com cuidado a curva perigosa. Depois disso, já é possível enxergar as luzes e
ouvir os sons das pessoas que dançam à batida grave e constante da música
eletrônica, vocalizando sua euforia.
Estão diante de um sítio. Os largos portões estão escancarados, recebendo sem
critério todo aquele que decide entrar. No gramado gasto há carros estacionados sem
ordem e pessoas sentadas com cervejas e energéticos nas mãos. Ricardo pára o
automóvel sob uma árvore, bem próximo ao portão, para facilitar sua saída depois.
Conduz Mariana para fora do carro pela mão, sendo gratificado com um sorriso
coquete e com a implícita promessa do que virá depois.
Aproximam-se da casa. Contornam a piscina, onde casais com roupas
ensopadas e outros sem roupa alguma atiram água uns nos outros e nos passantes.
Uma bóia furada jaz murcha à beira da piscina. Entrando na varanda como se
conhecesse o local, Ricardo apanha de um isopor duas cervejas.
— Não vejo ninguém do curso — comenta Mariana entre um gole e outro. —
Quem você conhece aqui?
— Todo mundo — responde um vago Ricardo, apreciando discretamente as
garotas que passam desacompanhadas. — Ou ninguém. Quem liga? Você acha que a
esta altura alguém vai perguntar quem nos convidou?
Ele segue gingando em direção à sala ampla, onde está a maior parte dos
dançantes. Mariana o segue, puxada pela mão, vendo-o ser tragado pela multidão,
vendo a si mesma desaparecer nas ondas do mar humano que sobe e desce com
lisérgica alegria.
Mais cerveja. Ricardo está zonzo e feliz, ou tão perto disso quanto pode estar.
Mariana requebra à sua frente, espontânea e livre, como se nunca houvesse sido a
garota que lhe disse não mais de uma vez. Hoje ela não diz não. Hoje ela não diz nada.
Apenas sorri para ele, ora baixando os olhos, ora erguendo as mãos, a saia que já não
é longa subindo-lhe um tanto pelas pernas quando estas se agitam. E a sorte que sorri.
A Boa Fortuna.
Devagar ele pega sua mão e a resgata da pista improvisada. Tropeçam em três
pessoas que se atracam lascivas no chão, mas sem titubear. Ele leva a garota para
fora, para longe do som alto, longe das luzes. Para o carro. Ele sobe a capota, apesar
de a discrição ter-se tornado insignificante ali.
— Faz tempo que espero por isso — ele diz sem saber conter-se. E interrompido
pela boca molhada que intercepta sua língua, pelos braços que se penduram em seu
pescoço, pelas pernas que, afoitas, montam seu corpo, oferecendo-lhe as coxas
suadas.
A porta se abre violenta. Quem quer que tenha entrado não vem em paz, pensa o
vendedor, alisando o bigode. Reconhece prontamente o rapaz que ali esteve no outro
dia. Sim, é o mesmo, o de cabelos escuros arrepiados. Mas, se antes era tranqüilo e
cético, hoje vem com o ar febril e fanático daqueles que enxergam além. A situação
deverá ser interessante.
Ricardo deposita a esfera no balcão com um baque que faz o homem piscar.
— Isto aqui que você me vendeu — balbucia ele —, isto aqui é amaldiçoado.
— Sim, é — a expressão do homem não se altera —, e abençoado também.
— Vim devolver esta coisa. Não quero mais. Fique com ela, pelo amor de Deus...
— Impossível. Só se eu a comprasse de volta, e não quero fazer isso.
— Dê um jeito! — a voz do rapaz se ergue, descontrolada.
— Qual é o problema, jovem? Não prestou atenção a nenhuma palavra do que eu
disse? A Magia não cobra caro, é apenas justa. Não faça desejos maiores do que a
sua capacidade de agüentar o preço. O orbe foi bom para mim, mas me custou uma
esposa, dois irmãos e, bem, algumas outras coisas queridas. Por isso eu o vendi. E
não o quero de volta. Você terá de vendê-lo a outro curioso como você mesmo e,
lembre-se, por um preço menor.
— Há pessoas morrendo!
Mas o homem começa a circular pela loja, arrumando aqui uma estátua tombada,
ali um cordão embaraçado, fingindo não prestar atenção ao desespero de Ricardo. O
rapaz, contudo, o segue, acuando-o contra uma estante.
— Como é que eu posso vender essa coisa para outro se sei... o que ela faz? O
que ela causa às pessoas?
— Não é problema meu! — berra o homem. — E não será mais problema seu
depois que fizer a venda. Eu arranjei um idiota que o comprasse. Arranje o seu.
Ricardo afasta-se lentamente. De um ímpeto, derruba a esfera no chão, mas a
queda nem mesmo arranha sua superfície. O homem de barba começa a gargalhar
amargamente, uma gargalhada que persegue Ricardo pelas ruas labirínticas do centro,
onde deseja se perder e não mais ser encontrado.
Não percebe quanto tempo demora para chegar em casa, cruzando a pé
avenidas, sem dor, gosto ou propósito. Quando finalmente passa pela porta do
apartamento e pressiona por instinto o interruptor, a luz da sala ilumina o caixote de
madeira. Ali está, brilhante e intacta, a esfera.
Os dias que se seguem são vividos sob a anestesia da fatalidade. Ele perambula
pelas ruas, um zumbi urbano com uma única missão: perder a esfera. Fazê-la sumir de
sua vista. Um dia ele a deixa de propósito numa sala da faculdade, esperando que
alguém a roube. Um colega, diligente, a devolve. Noutro dia, do outro lado da cidade
ele decide enterrá-la em um terreno a ponto de ser coberto por um prédio de quinze
andares onde, espera, ficará bem enterrada e escondida. Ao voltar, ela está bem ali,
onde costuma reluzir irônica. Suja de terra, porém.
São várias as vezes em que a abandona em pontos de ônibus, mesas de
biblioteca, bancos de praça, esperando que, na rapidez com que se movimentam os
transeuntes, alguém a agarre ou o destino a esqueça — e esqueça também de
reencontrar Ricardo. Só o que ganha com isso são algumas horas de vã esperança,
repetindo um método que reconhecidamente não funciona. Comportamento que bem
poderia ser classificado como loucura.
Há o dia em que ele a deixa, embrulhada na humilde sacola, no banco de um
vagão de trem. Não se abala quando a garota solícita corre atrás dele para devolver-
lhe o esquecido item. Ela é bela e lhe sorri convidativa, mas ele não toma nota desse
fato, que em outros tempos lhe teria cativado o olhar.
Também não se sente surpreso quando, no dia seguinte, a seqüência se repete.
Ele abandona a esfera. Desce do trem. A garota se ergue. Corre em sua direção.
— Oi! — ela chama. — Moço! Olha... você esqueceu seu pacote de novo. Desse
jeito eu vou pensar que você quer mesmo é se livrar dele.
Ela sorri adorável, esforçada. Ele, não.
— E. Mais ou menos — responde apenas, desembrulhando o orbe diante dos
olhos da garota.
— Que coisa mais linda!
Algo brilha no fundo dos olhos de Ricardo — algo que não deveria brilhar.
— Gostou? — pergunta com renovada gentileza. — Não quer comprar?
— Uau. Assim, de repente? Por quanto você venderia?
— Quarenta e nove.
— Quarenta e nove, certinho? Olha, só tenho notas de dez, você tem troco?
— Não... não tenho troco.
— Fica por cinqüenta, então.
— Não. Não. Cinqüenta não pode ser. Tem que ser... menos.
Ela o olha confusa nesse instante. Decerto, percebeu a urgência em seu olhar, o
segredo tremulando em seus lábios. Que não tenha percebido, Deus.
— Deixa ver aqui. — Ela se inclina sobre a própria carteira, contando notas
amarrotadas. — Olha, eu tenho quarenta, mais uma nota de cinco. Pode ser?
— Sim. Quarenta e cinco. Quarenta e cinco está ótimo.
— Que lindo isso... Vou dar de presente pra minha mãe. Ela adora essas coisas
exóticas.
Ricardo se afasta, um peso removido de suas costas para outras que logo hão
de senti-lo. Sem jamais saber como aliviá-los, ele pensa depois. E se volta, aturdido,
culpado, procurando com os olhos a compradora inocente. Ele deve uma explicação,
ela deve saber a verdade, por pior que...
Mas é tarde. Ela já sumiu na necrópole.
Eric Novello
RECOSTADO NO PARAPEITO, espio o movimento da rua cessar. Minha mesa já não possui
a organização que por anos gritei para a empregada ser imprescindível dentro de casa.
Eu mesmo já não encontro anotações e livros, por isso não exijo dela nada além de um
bom café na hora certa. A biblioteca virou meu reduto, meu território demarcado no
coração da casa, repleto de prateleiras que eu mesmo construí.
Há decerto um sentido nas coisas que, para ser sincero, não enxergo muito bem.
A miopia avançou nos últimos anos, é difícil me concentrar em entrelinhas e letras
miúdas. Eu costumava dizer durante as aulas que por trás da ilusão há um mundo que
você não vê. Hoje digo que você só vê se apertar bem os olhos. Algo próximo do que
ouço do oftalmologista.
Apesar das intempéries me mantenho firme. Fiquei conhecido nos círculos de
magia como um teórico promissor, talvez por preguiça dos que não queriam enxergar
além. Culpa dos livros que escrevi. Culpa dos cursos que criei. Por razões que
desconheço, acharam que eu me limitaria às folhas de papel. Esqueceram que as
idéias nascem em uma região sem fronteiras e que jamais se prenderiam às páginas de
um livro. Tudo o que o homem pode imaginar pode ser criado. Eu adorava essas
frases. Repetia que o impossível é somente... somente o quê? O impossível só é
impossível até que alguém consiga realizá-lo. Esqueci as palavras certas, mas estão
aqui guardadas em uma das gavetas. Separo uma para os blocos de pensamentos
rápidos, que foi como batizei as idéias de relance, as coisas fugazes que precisam ser
capturadas pela ponta da caneta, antes que desapareçam.
Não pense com isso que sou um velho, de maneira nenhuma. Estou nos trinta e
cinco, ligeiramente debilitado pelos excessos, porém disposto a prestar atenção. Existe
uma ordem natural no mundo, regras que não contestamos e, mesmo que
contestássemos, não mudariam. Elas existem por motivos que nunca me despertaram
interesse. O que quero dizer é que são importantes como um sinalizador, e é por isso
que ainda me esforço em olhar, mesmo quando a visão cansa e a cabeça dói. Quando
as fronteiras entre o natural e o impossível se rompem, o universo avisa invertendo
suas regras por um breve instante. Não quero afirmar que vá chover sapos e pétalas
de magnólia de madrugada, apenas não me espantaria se acontecesse.
Infelizmente, nem todos são meus fãs. É difícil agradar nesse meio. Levam muito
a sério a idéia de se manter nas sombras. O segredo, os iniciados, os verdadeiros
valores por trás dos ensinamentos. Baboseiras. Filosofam mais que eu. Há um grupo
que sequer acredita que eu fiz o que escrevi. E sendo eu um mentiroso, segundo
critérios deles, deveria me afastar dos novatos. Um embuste personificado. Sim, fui
chamado de embuste no meu último lançamento. Nem sabia direito o que significava.
Gritaram que não agüentavam mais textos e slides e que me sustentar vendendo
mentiras era criminoso. Gritaram que eu sairia de lá somente depois de uma
demonstração. “Onde está sua força, Ikaros? Ou seu único talento é enganar os
alunos?”
Meu nome real é Arthur. A maioria dos amigos me chama por esse nome e os
que querem me provocar usam Ikaros, você já entenderá a razão. Eu, que normalmente
me calo diante das provocações, nesse dia reagi. Eu não tinha que provar nada a
ninguém, nem a mim mesmo. Nada mudaria se eu simplesmente continuasse a falar.
Era o caminho mais simples, o caminho que não segui. Me distraí com a apreensão dos
presentes e a voz sarcástica de quem me provocava na livraria. Curiosamente, não
identifiquei seu rosto entre os presentes. Prestava atenção apenas à raiva que nascia
em mim. Achei que fosse legítima, realmente minha, com documento assinado e
carimbo de cartório. Não entendi que a indignação vinha do passado, de um outro ser
que se aproveitava das memórias evocadas na palestra de lançamento do livro.
Distraído com sentimentos, deixei de ficar atento aos sinais.
O mundo físico e o imaterial se tocaram. Senti um leve choque, uma faísca
interna.
As lâmpadas atrás de mim se apagaram e a luz voltou esverdeada. Acredito que
as pessoas da primeira fileira também notaram, pois prenderam juntas a respiração.
Meus pés lentamente se afastaram do chão, me pondo metros acima da platéia. Senti
corpo e mente se dividindo entre duas fontes de energia. A invasora tentava me
dominar. A cabeça doía cada vez mais. Vi do alto o homem que havia me acusado de
pilantra (as roupas mais marcantes que as feições) se calar e sentar na escada, sem
saber que o responsável pela mudança não era eu.
Concentrei as últimas forças para reagir. Formei uma redoma de sombras que
lançou o teatro na escuridão. “Toda vez que falta luz, o invisível nos salta aos olhos”,
diz a canção que cito para abrir as palestras. Com o escudo, ficou mais fácil descobrir
a direção do ataque e me defender. O foco da energia invasora vinha do livro, do meu
livro em cima do pedestal de leitura.
Com os pensamentos em ordem, desci até o chão e desfiz a magia protetora.
Agora, estava exposto, mas seria capaz de contra-atacar. Para evitar problemas, reuni
as sombras na palma da mão, devolvendo a luz à livraria. Em vez de dissipar a massa
negra, projetei-a na direção do livro, que se despedaçou, espalhando as folhas sobre a
platéia. Tentei decifrar a expressão dos que me encaravam, mas nunca fui bom em
interpretar fisionomias. Sentiam medo ou admiração? E eu, o que deveria sentir?
Quando tentei retomar o fôlego para continuar, percebi que estava exausto.
Encerrei a palestra imerso, sem dizer nada, e saí do palco em busca de um sofá e um
copo de água. Os joelhos queriam falhar, não deixei. Não diante dos outros. Minutos
depois ouvi uma onda de aplausos que dividi em pensamentos com meu agressor
desconhecido. Foi a primeira e última vez que me atacaram dessa forma.
Liana estava acordada, vendo televisão, e não escondeu a felicidade com a visita.
Depois de Paulinha contar em detalhes a cerimônia e falar de todos que mandaram
lembranças e desejaram melhoras, saiu estrategicamente para nos deixar a sós. Liana
fez um breve resumo da opinião dos médicos e explicou que não tinha quebrado nada.
“Foram só cinco pontos na direita, que o médico jurou que não vão deixar marca”,
disse, buscando um jeito de entrar no assunto principal.
— Que tal me contar o que houve, de verdade?
— Parece loucura, mas era ele. Simplesmente apareceu na frente do carro
quando eu fiz a curva, me senti hipnotizada, não consegui reagir. Segui direto sem frear
e ele se transformou em fumaça. Evaporou, como daquela vez. Gostaria de dizer que
foi por causa da fumaça que eu bati, mas foi o pânico que confundiu os sentidos.
— Acho que Vitor teve surpresas com ele também.
— Por que diz isso?
— Me ligaram para avisar do enterro no mesmo dia do seu acidente.
O choro de Liana foi contido. Secou as lágrimas com a beirada do lençol e
respirou tão fundo que pude ouvir o ar percorrendo os pulmões. Ela sempre julgou uma
injustiça ter como efeito colateral pela prática da magia somente um gasto excessivo
com protetor solar, enquanto eu caminhava para a cegueira e Vitor lidava com um
coração cada vez mais fraco. Na época, achávamos que Augusto também tinha se
livrado dos seus débitos com os planos cósmicos, e essa suposta superioridade
aproximou os dois bem mais do que eu gostaria.
— Eu preciso te contar uma coisa — disse ela, mirando meus olhos, que num
reflexo procuraram o chão. Não foi preciso sentir pontadas no coração ou frio no
estômago para saber que as notícias não eram boas, mas confesso que superaram
minhas expectativas.
Como dito, depois que o grupo se desfez (e Augusto se desfez em fumaça),
tentamos resgatá-lo de algum lugar, apesar de não saber qual lugar seria esse. Com o
fracasso absoluto, começamos a aceitar o óbvio. Augusto estava morto. A magia tinha
cobrado seu preço em uma única parcela. Entretanto, o óbvio varia de pessoa para
pessoa. Meus ex-companheiros decidiram continuar os rituais sem me avisar, supondo
que eu tivesse motivos para largar Augusto por aí.
Vitor, que vinha se superando na manipulação de eletricidade, começou a testar a
abertura de portais, uma comunicação precária com outros planos, coisa que nem eu
entendo. Durante todo o tempo, convenceu Liana a manter segredo. O precário foi se
estabilizando e, numa dessas buscas, Augusto respondeu.
— Que bela cúmplice você me saiu.
— O Vitor disse que...
— Pare com esse papo. Você sabe muito bem que eu tinha motivos de sobra
para querer que o Augusto não existisse. Ou acha que é fácil olhar para a Paula e não
saber se ela é... O que me espanta é você ter contado isso para o Vitor.
— Fale baixo. Não é disso que estou falando. O Vitor contou que você foi pago
para matar o Augusto. Disse que a sua visão vem piorando e que você mente ao dizer
que não pratica mais seus truques.
— Assassino de aluguel, era só o que me faltava. Escute, Liana, metade do
círculo de magia tinha motivos para querer que o Augusto morresse e a outra metade
não se importaria se isso acontecesse. Ele escolheu a linha mais suspeita para
trabalhar, estava ficando com uma força descomunal sem aparentar nenhuma
desvantagem. Daí a dizer que eu ou algum dos superiores planejava um assassinato já
é demais. O que aconteceu foi suicídio, e a maior parte da minha visão foi consumida
elevando os níveis de força para trazê-lo de volta.
— Vitor conseguiu.
— E morreu. Grande troca ele fez.
Decidimos ficar quietos. Cada um com suas mentiras. A verdade nunca é
suficiente para explicar os relacionamentos humanos. Quem realmente falava e quem
ouvia? Liana? Arthur? Atenas? Ikaros? Bastava pôr e tirar as máscaras. Os méritos
colhidos por um, a culpa cabendo ao outro, e tanto um quanto o outro variando em um
contínuo, de acordo com a conveniência.
— Eu não sei o que dizer.
— Escute. Eu vou para casa tentar descobrir o que houve. Nós não sabemos ao
certo se ele voltou ou se foi uma manifestação ocasional, efeito colateral do curto-
circuito do Vitor. Preciso pensar melhor, consultar uns amigos. Quando receber alta,
me ligue — disse, saindo sem tentar um beijo.
A mulher que tinha sido minha por anos também era de Augusto e ambos
sabíamos disso, travando uma guerra não declarada. Era difícil saber quem traía a
quem ou se tudo fazia parte de um jogo. Vitor nunca soube de nada, um modo de
Augusto me dizer que queria levar aquilo adiante, de não romper o encanto do segredo.
Pode parecer estranho, mas a situação era confortável para os três. Liana tinha a nós
dois, eu não precisava temer as escolhas (nunca pensei em encostá-la na parede) e
Augusto podia me desafiar fora do campo da magia e alimentar a relação de amor e
ódio que sentia por mim. Capaz de matar para me defender, capaz de me matar por
puro prazer.
Eu estava na praça entre os pombos quando me fizeram a proposta. Esperei pela
hora marcada e com um pouco de atraso ele apareceu. O que me atraiu não foi a
quantia gorda do cheque. Eu faria de graça, só precisava de um motivo que não
residisse em mim, que viesse de fora para amenizar a culpa. Disse que precisava de
um tempo para pensar, embora a decisão estivesse tomada. Matar um mago poderoso
como Augusto requer planejamento, avisei, descobrindo que teria a ajuda que fosse
necessária. Em casa, pensei em subir o nível de dificuldade do jogo. Beijar Liana na
frente dele, desafiá-lo com os olhos tomados de sombras, convidá-los para um
desencontro a três. Idéias que sumiram com um copo de uísque.
No dia seguinte fui até a casa de Augusto e avisei que tentaria matá-lo. Disse
assim, displicente, no meio de um copo de café, enquanto comentava o novo quadro na
parede. Tinha escolhido o caminho certo.
— Então o jogo continua? — foi o que ele respondeu. Para ser sincero, achei que
fosse me atacar naquele instante.
— Continua.
— Um novo valor para as apostas.
Não era mais Liana que estava em jogo. O símbolo da vida normal, de um
casamento feliz com cachorro no quintal e carro na garagem estava oficialmente
substituído. Eu tinha aberto as portas para o outro campo, onde realmente nasciam a
inveja, a ambição, o desejo de superar o inimigo. Augusto contou a história do quadro.
Tinha-o conseguido em uma exposição, acreditava que o pintor ficaria famoso em
alguns anos e o preço subiria. Explicou que os traços eram de um tipo que, e o nome
de quem, e as cores de tal, as tintas, os tons, os sons, tudo borrado, confuso, cores e
palavras misturadas, sem ordem, o significado fugindo das frases. Lembro de sua boca
se movendo, o braço gesticulando enquanto eu pensava no método que usaria para
destruí-lo de vez.
O nervosismo me consumiu por dias, até que o plano ficou pronto. Transmiti ao
círculo de magia que faria as coisas do meu jeito, sem interferência de ninguém, nem
assistências que pudessem atrapalhar mais do que ajudar. O dinheiro foi depositado na
conta, me deram o prazo de quinze dias para terminar o serviço. Eu sabia que Augusto
também estava preparando seu ataque e lidar com o medo não era nada fácil. Ele era
o caçador, eu, a caça. Avisar que iria matá-lo só invertia os papéis na minha cabeça.
Além disso, um duelo era mais honroso que um assassinato, apesar da lista de
possíveis mortos passar a incluir meu nome.
O tempo passou e os conspiradores me consideravam um herói. A grande
ameaça não representava mais um perigo. Augusto tinha desaparecido. Só havia um
problema. Eu não tive nada a ver com isso. A grande batalha que travei dia após dia na
cabeça não aconteceu. A armadilha de sombras que criei nunca foi usada. Para piorar,
me vi no dilema de ter que resgatá-lo do limbo, consumir visão e energia em um projeto
sem sentido. Os conspiradores acharam perfeito. Uma ótima forma de ocultar os fatos,
de lamentar a perda e usá-la como alerta para os que pretendiam seguir a mesma linha
de estudos de Augusto. E desnecessário falar que a paranóia virou parceira de cama,
inventando ataques a cada piscadela, sufocando meus sonhos na hora de dormir.
Pensando no futuro, imaginei diversas possibilidades de morte. Dessa vez, era
meu corpo que pendia inerte no sofá. Um tremor no indicador me avisava do
descontrole nascente. Senti falta de ar, a visão turvando rapidamente. Precisava de um
calmante alcoólico qualquer. Um bom uísque. Enquanto enchia o copo, tentei me
tranqüilizar, recordando a conversa com Paula na volta do hospital. Tão jovem e tão
esperta na hora de me transmitir energia. Seria uma excelente praticante nos círculos
de magia.
— Mamãe me teve muito nova.
— Isso é relativo. Tudo tem o seu tempo certo.
— Augusto não é meu pai.
— Quem te disse isso?
— Você. Você me disse em um sonho. Nós estávamos passeando em um parque
e você falou.
— E? E você respondeu o quê?
— Que eu já sabia disso.
— E depois, o que aconteceu?
— Você me deu um presente e sumiu. Não lembro direito.
— E você ficou lá sozinha?
— Não, Augusto apareceu. Disse para esperar por ele. Ia resolver assuntos
pendentes e depois vinha visitar a mamãe.
— Você fez bem em me ligar, Paulinha.
— Promete que toma cuidado?
— Prometo.
— Boa sorte, pai.
— Vou precisar.
Fui para o banheiro pensando no telefonema. Ele sabia que Paula era capaz de
lembrar dos detalhes. Usou a filha de mensageira para falar do acerto de contas. Muito
natural. Só uma conversa de cavalheiros. Dessas em que as partes riem juntas e
dividem uma cerveja no final.
Ajustei a torneira até a ducha virar um filete de água fria. Dei um passo para trás
fugindo dos respingos gelados. A pele entregava o que se passava por dentro e por
fora. O frio absoluto, conhecido por uns como medo e por outros como massa de ar
polar. Sentei no chão, sobre o tapete, esperando os sinais. Os olhos abertos,
cansados por antecipação, as sombras brotando no aconchego de minhas vísceras.
A água descia do chuveiro, pingando em gotas grossas que se acumulavam em
uma poça e logo escorriam para o ralo. Podia ouvir o barulho do cano sedento
roncando como meu estômago, ambos pedindo por mais num ritual que estava prestes
a se encerrar. Sem tirar os olhos das gotas, notei a luz no teto avermelhar perdendo
força. O chuveiro, enfim, parou de gotejar. A poça parecia um corpo morto, tentando
voltar à vida. Um pequeno cone espichava-se para cima e tombava de novo, vencido
pela gravidade. Cansada do balé da derrota, uma gota subiu pelo ar, e atrás dela outra
e mais outra. Elas flutuaram até penetrar os poros metálicos, retornando ao cano do
chuveiro. As leis enfim haviam se rompido. Era hora de mergulhar a casa na escuridão.
Do lado de fora, tudo parecia tranqüilo. Desci as escadas, espiando corredores e
quartos, sem encontrar ninguém. Fiz o mesmo com a sala e a cozinha. Vazios. Nenhum
sinal da presença de Augusto. Segui invisível em minha própria sombra, respirando
calmo para desacelerar o coração e não ter um colapso nervoso. E se ele tivesse me
enganado? Se estivesse agora com Paula e Liana? A cabeça doía demais. Sempre
ela. Manchas luminosas dançavam como vaga-lumes soltos pela casa. Resolvi segui-
los, fingir que sabia meu rumo.
Fechei os olhos. O mundo real é um reflexo da imaginação, repeti, lembrando das
frases prontas que usava na sala de aula. Não há lógica sem instinto. Lembrem-se da
prova, semana que vem. As palestras são opcionais. Eu ficaria feliz com a presença de
vocês. Todo inimigo pode ser vencido. A magia arcana é uma arapuca de caçador.
Você só se dá conta do perigo quando enfia o pé.
Passei novamente pelo banheiro, um fio de água corria pelo teto. De repente,
Augusto apareceu diante de mim com um sorriso de amigos que não se vêem há muito
tempo. Desfiz a escuridão no mesmo instante, deixando a casa entregue somente ao
breu da noite. Pode não parecer um gesto inteligente, mas a primeira coisa que fiz foi
tocá-lo no peito, no pescoço, desenhar seu rosto com a mão. Sem se pronunciar, ele
se virou e seguiu para a biblioteca. Foi só então que percebi o rastro de sangue. No fim
das contas, Vitor não tinha conseguido trazê-lo de volta. — Preciso de ajuda, Arthur —
disse ele. — Estou morrendo.
— De novo — respondi sem pensar.
— Vitor tentou me matar.
Augusto é o que podemos chamar de caixa de surpresas, às vezes caixa de
Pandora, dependendo do referencial. Minos, seu nome no grupo, vinha do lendário rei
de Creta, filho de Zeus, que depois de falecer seguiu para o submundo, tornando-se
juiz dos mortos. Augusto adorava recitar as passagens de Inferno de Dante em frente à
cópia de um quadro de Bouguereau.
Ele começou explicando sua transição para o outro lado. Ao contrário do que eu
pensava, tinha sido um movimento proposital. Nada de acidentes. Era esse o objetivo
da magia arcana, transitar entre os planos, aprender no reino etéreo um conhecimento
superior, que complementasse os estudos daqui. Foi também um modo de me livrar da
responsabilidade do assassinato. Uma ilusão para escapar dos verdadeiros algozes,
que conspiravam contra nós.
— Não é possível matar o que não se vê.
Descobri que Augusto não era o problema, apenas o seu símbolo. Os
conspiradores tinham interesse em desfazer o grupo. Os quatro eram alvos potenciais.
Pensaram em nos matar numa emboscada, explodir minha casa. Os planos eram
vários. Concluíram que não seria necessário sujar as mãos, bastava transferir a
responsabilidade para um de nós. O escolhido fui eu, o trouxa. Augusto criou uma
nuvem de fumaça, na qual pude ver o interior dos salões de magia onde os superiores
se reuniam. Foi assim que ele soube dos planos. De cara, descartaram Liana pelo
romance com a vítima em questão. O mesmo romance me tornou o candidato perfeito
para fazer a proposta.
— Por que não me contou?
— Eles saberiam. Morreríamos todos. Isso ou uma guerra. Não sei o que seria
pior.
— E aí você dá uma de Harry Houdini e desaparece diante dos nossos olhos. Eu
quase fiquei cego tentando encontrar você, não havia rastro de energia. Vitor morreu
para te salvar.
— Está enganado mais uma vez.
Temendo que eu não concluísse a missão, os donos do dinheiro também
recrutaram Vitor. Novamente, o romance. Foi fácil aquecer o ciúme do excluído, do que
não tinha lugar entre os amantes, do que seria derrotado na primeira provocação,
aquele que nunca teria ninguém ao seu lado e mais um monte de pensamentos
soprados pouco a pouco em sua mente. Vitor vinha treinando com nossos algozes.
Estava mais forte do que parecia. Como uma enguia que emite campos elétricos para
mapear o ambiente, ele encontrou sinais da energia de Augusto e tratou de apagá-los.
Sentiu alívio por não precisar matar ninguém. Receberia a fama, enriqueceria. Ninguém
poderia acusá-lo de falhar na missão. O mesmo raciocínio que tive.
Cheio de orgulho, lá foi ele descobrir que os louros da falsa vitória eram meus.
Situação delicada.
Vitor continuou desmanchando os rastros. Ele usava a força para que eu não
percebesse nada, o que me esvaía da pior maneira possível. Quanto mais eu me
esforçava para encontrar, mais ele aumentava os níveis de eletricidade, provocando um
desgaste contínuo de ambos. E pensar na visão que perdi na busca de uma ilusão.
Cego em todos os sentidos. Na época, me senti um egoísta por parar. Hoje me sinto
um idiota por ter começado.
— Liana?
— Acreditou na minha morte, no começo. Pensei em usá-la para convencer vocês
dois a me procurar, mas não foi preciso. Duas mentiras caminhando juntas. Você para
me salvar, ele para me matar. Os dois livres de acusações de cumplicidade na minha
fuga. Só revelei minha presença a Liana por desejo. Foi impossível me controlar. Contei
parte da história para ela, Vitor contou a outra, tentando afastá-la de nós dois. Teve
muita coragem em alimentar a mentira de Vitor, como se não soubesse de nada.
— Vitor encontrou você, então. Descobriu sua farsa.
— Sim. Nossa farsa. Ele acreditava que você estava junto, que sabia de tudo. A
loucura tomou conta. Um dia, passando pela sua casa, me descuidei e ele me achou.
Tive sorte de não morrer de primeira — disse Augusto, apontando para a mancha de
sangue na roupa. Um pequeno rio vermelho fluía sem parar de um ponto qualquer
debaixo da camisa.
— Você tentou pedir ajuda a Liana?
— Sim, mas desapareci. Desde o confronto não consigo controlar a transição.
Sou puxado de forma violenta para o lado etéreo. Fiz a transição de Minos, Arthur. Meu
lugar é no mundo dos mortos.
NESTE THRILLER DE AVENTURA E TERROR, Gianpaolo Celli traz à vida antigos mistérios,
fazendo-os tão verossímeis e próximos que mesmo sua sanidade, leitor, deixará de ser
um porto seguro.
O suspense, quando o Outro Mundo das velhas mitologias se fundir à Viagem
Astral do esoterismo moderno e às seitas ancestrais, há muito esquecidas por nossa
sociedade, pintará nosso dia-a-dia com um tom sobrenatural que não mais poderemos
ignorar.
E quando velhas profecias apocalípticas se fizerem reais não só no cotidiano de
Úrsula, mas também em seu corpo e alma, você, leitor, temerá fechar os olhos antes
de ter certeza de que a história realmente terminou, ou se, além do horizonte, no futuro,
algo sombrio aguarda Entre Mundos.
Entre mundos
NOVAMENTE ÚRSULA HAVIA CONSEGUIDO O que queria. A discussão com a amiga Nádia e
com Marcel, namorado dela e seu amigo, não importava; assim como não importava o
quase meio ano que praticamente perdera traduzindo o velho manuscrito que, por uma
coincidência do destino, encontrara numa venda de família à qual, meio a contragosto,
fora com a amiga.
E imaginar que eu nem queria ir, relembrou olhando para a serpente enrodilhada
na capa do tomo antigo, provavelmente de meados do século XIX, e lembrando de
todas as referências folclóricas que nele encontrara, todas as práticas místicas, os
rituais sazonais, assim como o trabalho com plantas e ervas medicinais e o culto a
divindades anciãs.
Muitos desses assuntos são exatamente os pontos fracos no meu trabalho
mágico, raciocinou, lembrando da famosa frase: “Quando o aluno está pronto, o mestre
aparece”, corrente nas mais diversas tradições esotéricas em que entrara e saíra em
sua busca pessoal por conhecimento e sabedoria.
Nada importava. Não mais. O velho livro: Liber Adeptus; Ordo Serpens Umbrae;
Opus Azathoth, ou Livro do Adepto da Ordem da Serpente Sombria, Obra de
Azathoth, deveria terminar em suas mãos e havia chegado, e ela sabia que essas
coisas não aconteciam por acaso. E se o motivo não havia sido claro na época, depois
de haver decifrado a receita para ampliar os horizontes de sua percepção eles se
tornaram inequívocos: cru o próximo passo em sua Jornada.
É claro que Marcel demorou para aceitar conseguir-lhe os ingredientes da poção,
e só o fez depois de estudá-la e ter certeza de que nada aconteceria se as doses
indicadas fossem respeitadas.
Eu não sou criança, Marcel, Úrsula lembrou do final da discussão com o amigo
quando, sarcástica, sibilou: E você deveria ter mais fé numa sabedoria mais antiga
que a ciência que você tanto venera.
Lembrar-se de tudo aquilo, assim como ter o alfarrábio às mãos e sentir a
serpente em baixo-relevo na capa do mesmo, parecia estranho num momento sagrado
como aquele, mas era parte do processo de concentração que criara como base de
suas experiências sobrenaturais. E o fluir desses fatos, do que aprendera, além de
clarear sua memória, deixar seu raciocínio mais afiado e pronto para o que pudesse
acontecer, ativava a egrégora que ela queria utilizar.
A Lua estava cheia e sua luz banhava diretamente o corpo esbelto e desnudo da
jovem através da janela aberta quando ela tomou o elixir.
Quase meia hora foi necessária até que a leve tontura desse lugar à sensação
maravilhosa de empatia com a natureza, um dos primeiros efeitos da viagem. Como da
primeira vez, estava adorando aquela sensação. Era como se ela e o universo fossem
um.
Foi, então, que seus sentidos começaram a se alterar. A saliva se formou em sua
boca quando o cheiro da terra úmida e das plantas dos vasos que tinha em sua sala de
estar, antes impossíveis de sentir, penetrou em suas narinas como que vindo de uma
floresta tropical. Era mais do que isso, na verdade. Diferente do que acontecera na
primeira viagem, o cheiro, uma mescla de um verde brilhante e artificial e de um
marrom escuro e soturno, chegava aos demais sentidos evocando memórias que não
tinha certeza de serem suas.
O chão, Úrsula percebeu. Antes duro, agora parecia macio, aveludado. Como
carne humana, ela constatou, não sem um certo nojo. Da mesma maneira que não
podia deixar de sentir os odores que chegavam às suas narinas, não conseguia evitar
que sua pele tocasse o piso de madeira.
Foi então que o próprio ar que a envolvia começou a pulsar quente e amargoso
por toda a sua pele, vivo como ela mesma, eriçando os pêlos, causando calafrios. Não!
Era mais do que isso. Era como se o ar arranhasse. Um zunido estranho começou a
soar em seus ouvidos. Irritante de início, mas suave quando percebeu que aquele era o
som de tudo o que era vivo, da própria Terra, do Cosmo e de tudo que existe.
O som da entropia, ela pensou com uma certa tristeza, do universo
envelhecendo e morrendo.
De repente, então, o conjunto de sensações sobrecarregou seus sentidos e a
realidade saltou em frente a seus olhos, quase fazendo-a gritar, tamanha a surpresa. A
luz da Lua se distorcia e se fundia com o negror da noite em estranhos miasmas
pulsantes de um vazio que parecia ter vontade própria e querer aproximar-se, envolvê-
la.
Não é real, considerou, tentando fazer com que o receio que tomava conta de
sua mente não se tornasse pavor e paralisasse a experiência. Fechou então os olhos...
Quando os abriu novamente Úrsula não estava mais deitada na sala de seu
apartamento. A sua frente, em vez da metrópole além de sua janela, descortinava-se
um deserto cinzento, inóspito e infindável. Apesar do medo, ela sentiu que conhecia
aquele local. Não talvez a duna onde estava, ou mesmo o céu, de um tom mais claro,
quase prateado, que cobria a abóbada celeste sem sol, mas aquele ambiente já havia
lhe aparecido em sonhos.
Sim, lembrou, vagando perdida naquela vastidão monocromática. Os sonhos que
eu tinha depois de meus rituais.
A memória da sensação de purificação, de renovação que sentia após acordar de
tais sonhos fez com que todo o receio fosse esquecido. Pelo que pareceram horas, ela
caminhou por aquele lugar.
À medida que o cinza do céu escurecia, no entanto — pois sem o sol aquele
escurecer parecia ser a única maneira de, se não medir o tempo, verificar se era dia ou
noite —, uma inquietação começou a tomar conta de sua mente: aquilo nada mais era
que uma viagem lisérgica, ela sabia disso. Mas também era a primeira vez que Úrsula
se desvinculara totalmente de nosso mundo no processo e, apesar de haver feito uma
pesquisa extensa sobre o tema, ignorava o que precisaria fazer para voltar à nossa
realidade, preocupação que parecia mais real com a chegada das trevas.
— O que será de meu corpo se eu ficar presa aqui? — pensou alto, começando
novamente a se desesperar enquanto sua imaginação brincava, sarcástica, com a
possibilidade de que, sem a consciência, seu corpo entraria em coma e, como morava
sozinha, ninguém se lembraria de que estava em casa, seu corpo pelo menos, até que
ela morresse.
— Será que minha alma vai ficar neste plano de existência para sempre? —
considerou em voz alta. Em outra ocasião aquilo teria soado estranho, mas ali, com o
que parecia ser o final do dia chegando e sem saber o que fazer...
Por um momento, imaginou se deveria gritar, mas lembrou que não conhecia
realmente aquele lugar e que, se existisse algum ser que pudesse lhe fazer mal, ela
nem saberia como se defender.
Estava imaginando exatamente essa questão quando um som a fez se jogar no
chão de susto. Mil coisas passaram por sua cabeça até que ela novamente teve
coragem de buscar com o olhar o que poderia ser aquilo.
Ao longe, duas figuras humanas, ou pelo menos humanóides, pois vestiam
sombrios mantos cinzentos que as cobriam totalmente, surgidas como que do nada,
seguiam na direção do horizonte.
São seres humanos, Úrsula pensou, imaginando se deveria chamá-los. A dúvida,
no entanto, continuava a mesma: Quem são? O que estão fazendo aqui? Irão me
ajudar?
Como ela mesma, eram seres conscientes, de modo que as possibilidades
bailavam em sua mente: iniciados de alguma tradição esotérica, magos negros em
busca de algo, espíritos desencarnados ou mesmo seres inumanos de outros planos de
existência.
Sem ter certeza do que fazer, decidiu segui-los e ver se, de alguma maneira, a
levavam de volta a seu corpo.
O cinza celeste já havia se tornado negro, e ela mal conseguia ver os dois que
seguia quando notou o enorme templo surgindo em meio às trevas do horizonte.
— É fantástico... — foi tudo o que o espanto a deixou dizer ao chegar mais perto
e perceber que uma forma sutil de energia parecia emanar daquele local, fazendo-o
visível apesar das trevas reinantes. E era tão imenso que ela não compreendia como
não o havia visto antes. E tão estranho que todo o horror de ficar presa naquela
realidade deu lugar à curiosidade de descobrir onde estava.
Na verdade, estava tão perplexa que os dois estranhos chegaram a voltar-se
para onde pensaram ter ouvido algo antes de adentrar o imenso portal.
Apesar da tensão, Úrsula não pôde deixar de abrir um sorriso ao esconder-se
nas sombras. Era atrás daquilo, afinal de contas, que havia feito a viagem:
conhecimento, sabedoria em seu estado mais puro. Ali era onde os conseguiria, de
uma maneira ou de outra. Aquela, portanto, não era hora se ser precipitada. Antes de
entrar, ela resolveu verificar o templo por fora, até porque não entraria antes de ter
certeza de que o portal estivesse devidamente deserto.
Mesmo sabendo que não estava em nosso mundo, a gigantesca construção era
muito além do que qualquer um pudesse descrever: os ângulos eram estranhos,
errados de alguma maneira que ela não conseguia explicar. A geometria, anormal e
não-euclidiana, definitivamente desafiava as leis da física tradicional. Nenhuma
superfície ali parecia reta e as curvaturas que inicialmente pareciam côncavas numa
segunda verificação muitas vezes se mostravam convexas.
— E incrível — murmurou, novamente chegando à escadaria que levava à
entrada. O portal, notou, devia ter ao menos uns vinte metros de altura e terminava
logo abaixo de uma roseta decorada semelhante às presentes nas catedrais góticas.
A vagina e o umbigo, Úrsula lembrou, subindo sorrateiramente os degraus.
Olhando para dentro do templo em busca de algum ser vivo, continuou a notar o portal
daquele lugar; como acontecia em Notre-Dame e em outras igrejas consagradas a
Nossa Senhora, a entrada, em especial a porta e a roseta, era uma representação do
ventre feminino.
A entrada para a barriga da baleia, do monstro... o coração da Terra, continuou,
enquanto sorrateiramente avançava pelos degraus, olhando para dentro do templo em
busca de algum ser vivo.
O salão de entrada do templo novamente era semelhante aos das velhas
catedrais. Pouco depois da entrada, um enorme labirinto se estendia pelo chão.
— Não é possível... — exclamou ao perceber a serpente brilhando com uma luz
negra no centro do local. — É a mesma da capa do livro!
Evitando pisar ali, ela começou a seguir em frente quando, com um frio na
espinha, percebeu duas enormes gárgulas de pedra que, dividindo a entrada do
restante do templo, guardavam escadarias que davam para o andar superior. Além
delas, mais uma vez desrespeitando leis, agora as da perspectiva, o fim do salão,
inimaginavelmente mais longe do que se esperava pelo lado de fora, se encontrava
imerso numa escuridão brumosa, impenetrável, quase tangível.
Parece que vão me atacar, pensou, evitando as sombras mais além e sem tirar
os olhos dos dois demônios que a encaravam. Apesar de ilógico, era como se qualquer
coisa que fizesse ali fosse acordar as estátuas.
— O que foi isso? — questionou alto ao perceber sons e movimentos vindos do
andar de cima. Buscou à sua volta algum local para se esconder e, sem sucesso,
ignorou seu receio anterior e saltou para trás das gárgulas.
Por alguns minutos ficou escondida na escuridão, mas finalmente a curiosidade
superou o medo e Úrsula se espichou para olhar. Descendo a escadaria próxima ela viu
quatro jovens, dois homens e duas mulheres, com algo entre vinte e trinta anos, nus.
Como eu mesma, lembrou, não sem uma pontada de pudor. Olhando mais
atentamente, percebeu que eles tinham vendas nos olhos.
Atrás de cada um deles, guiando-os, vinham quatro outras figuras, sacerdotes,
pela maneira como se vestiam, que congelaram o sangue de Úrsula. Apesar de
aparentemente humanos, eles não possuíam olhos. Não pareciam possuir nem os
espaços reservados aos globos oculares, ela notou, sentindo seu estômago gelar. Era
como se, por algum motivo, há muito tempo eles, ou pior, seus ancestrais, os
houvessem perdido. No centro de suas testas, no entanto, havia uma protuberância de
onde saía um estranho olho, pequeno e brilhante, semelhante ao de um camaleão, que
não parava de se mexer... até que um dos sacerdotes cruzou olhares com ela.
— Oh, meu Deus, ele me viu! — constatou, voltando às sombras, agora já não
tão seguras, onde se escondia. Estava encurralada. Não tinha como fugir sem alertar a
todos ali e ficar parecia um convite à captura.
Os minutos passaram, angustiantes, até que, não ouvindo som algum, decidiu
olhar novamente. Nada! Não havia ninguém ali. Antes, porém, que considerasse que
aqueles seres fossem somente alucinações, ela detectou um movimento junto às trevas
do fundo do templo um segundo antes que o último deles se perdesse totalmente
naquele negror estranho.
O que eu faço?, considerou. Tinha absoluta certeza de que o sacerdote a havia
visto. Sabia que precisaria sair dali. Não queria, no entanto, perder o que iria acontecer
naquele lugar.
Por um momento, Úrsula imaginou suas alternativas. Poderia e gostaria de seguir
os jovens vendados através do templo. Mas a possibilidade de encontrar um daqueles
seres de um olho só fazia da idéia algo não muito atrativo.
Olhando para cima, percebeu que as escadarias davam em bancadas que
acompanhavam toda a extensão do templo, das gárgulas até além das sombras ao
fundo. Apesar da chance de trombar com alguém lá em cima, essa parecia a melhor
opção, até porque seguir pelas trevas seria ir de encontro a todos aqueles que haviam
descido a escada.
E se perder neste deserto cinzento à noite também não é uma idéia agradável,
pensou, selando a escolha com a certeza de que havia sido levada para aquele local
com algum propósito.
Subindo as escadas, ela cautelosamente seguiu pelo corredor, sempre tentando
se manter escondida.
— Não é possível! — murmurou, estupefata ao olhar para trás. Já andara o que
lhe parecia ser quase um quarto de quilômetro naquele balcão. Por sorte, coincidência
ou destino, não havia encontrado ninguém. Já passara por horrendos vitrais que
pareciam se mover quando ela avançava, pela parede, que parecia ser a externa da
enorme catedral, e por portas que não poderiam estar ali. Mal conseguia distinguir as
escadarias por onde subira quando, depois de mais tempo do que o necessário para
cobrir uma distância aparentemente semelhante na parte externa do templo, só agora
chegava às bordas da parte sombria onde o grupo desaparecera de vista.
A lembrança daquela bizarra geometria, insólita e ilógica, gelou seu sangue — na
verdade, se soubesse que o templo fora construído tanto no espaço quanto no tempo e
que interceptava diversas dimensões, compreenderia que aquilo era totalmente
plausível — e ela titubeou por alguns momentos antes de adentrar aquela incoerente
ausência de luz.
Úrsula quase deu um grito de susto ao perceber que enxergava perfeitamente.
Como tudo ali, aquela escuridão não era constituída por um agrupamento natural de
sombras. Era mais como uma imagem em negativo.
Não é possível, repetiu pela que deveria ser a milésima vez desde que começara
aquela viagem, quando notou que, apesar de enxergar naquela anti-luz, as áreas
iluminadas de onde viera agora lhe eram obscuras.
Antes que pudesse se preocupar com a questão, a voz de um dos sacerdotes fez
com que voltasse sua atenção ao que acontecia abaixo.
Eles eram treze ao todo: os quatro jovens, os seres encapuzados que os guiaram
para as sombras e, um pouco atrás deles, outros quatro sacerdotes, formando um
círculo que se fechava em volta de um grande baixo-relevo de serpente, semelhante ao
que vira no labirinto da entrada e em seu livro antes disso. Além deles, fora da
formação e junto ao altar, havia mais um ser. Provavelmente o sumo sacerdote, ela
imaginou, notando os lúgubres detalhes de suas vestes.
Todos ali entoavam litanias à enorme figura draconiana que se projetava do altar,
a qual, como a serpente do labirinto na entrada, possuía um brilho baço e gelado.
Úrsula estava aterrorizada. Podia sentir a energia pulsando no ambiente. Chegando em
ondas, eriçando seus pêlos e lhe causando calafrios. Queria fugir, mas estava
paralisada, como que hipnotizada por aquele ritual macabro.
Os sons, os gestos, tudo aquilo parecia surgir em sua mente, ecos do que
acontecia ali. Era como se as palavras recitadas evocassem aquele horror diretamente
para sua mente.
— Oh, Azathoth — ela ouvia não a canção inumana, mas o sumo sacerdote a
recitar —, aquele que é senhor de tudo que não existe. Aparece e presencia o ordálio
de iniciação. Como acontece há milênios, agora, estes quatro neófitos deixarão suas
vidas mundanas e passarão a honrar a ti. Como prova de seu renascimento para uma
nova realidade. Adentrando os labirintos da vida e da morte, além de teus umbrais
sagrados...
O silêncio opressor que pontuou aquelas palavras fez com que um calafrio
subisse por sua coluna. Sua decisão de ficar ali, no entanto, foi mais forte.
— Existe aqui um que caminha sem fé! — gritou um dos sacerdotes do círculo,
quebrado o encanto que havia tomado conta do ambiente. Todos os demais olharam
uns para os outros, buscando uma lógica naquelas palavras enquanto os quatros jovens
enrijeceram seus corpos, receando por suas vidas. Úrsula nada viu daquilo. A
afirmação causou-lhe tal pavor que a única coisa que conseguiu fazer foi abaixar-se de
medo e agarrar forte seus joelhos, como se a posição, semelhante à de um feto,
pudesse protegê-la. Como os jovens abaixo, ela não sabia se aquilo havia sido parte do
rimai ou se, por alguma razão, o sacerdote falara dela mesma.
Será que foi o que me viu?, perguntou em pensamento, sentindo o estômago se
revirar e as pernas amolecerem ainda mais.
O tempo passava. Cada momento era uma tortura para sua mente, que via
aqueles monstros chegando e capturando-a, até que ouviu:
— Não! — o sumo sacerdote encheu a câmara escura com sua voz potente. — A
chama do altar crepita e as brumas surgem. Logo Azathoth estará entre nós.
— Mas os sinais...
— Os sinais são um aviso de que a profecia logo se cumprirá.
Por um momento a palavra profecia ecoou entre os demais sacerdotes, e até
Úrsula esqueceu seu medo e voltou a espiar o que acontecia lá embaixo. Com espanto,
percebeu que realmente uma névoa se formava acima da grande serpente.
Os sacerdotes do círculo então levantaram suas mãos, como numa saudação às
brumas, que começaram a pulsar. E a cada pulso, a cada contração das mesmas, que
pareciam respirar, um jato de luz negra surgia. E cada vez mais aquela massa de
névoa se tornava uma cópia da horrenda figura draconiana do altar.
— Iniciados, tirem suas vendas! — ordenou o sumo sacerdote. — Vocês estão
prontos para o futuro que Azathoth lhes reserva?
— Sim! — os quatro responderam em uníssono.
— Por nove dias e nove noites vocês fitaram as trevas da morte, pois somente
aqueles que são cegos para um mundo podem ver o Outro. Estão prontos para o
sacrifício daquele que caminha na senda do adepto?
— As adagas! — ele exclamou ante a nova afirmativa.
Úrsula não pôde acreditar no que viu depois. Para seu horror, ao receberem as
armas de seus tutores, cada um do iniciandos enfiou a lâmina em seu olho esquerdo,
arrancando o globo ocular. Num ato reflexo, as mãos cobriram a boca, impedindo-a de
gritar ao ouvir o estouro seco, som que ficaria impresso em sua memória enquanto ela
vivesse.
Dando continuidade ao ritual, os jovens jogaram seus olhos na névoa, que
explodiu numa luz negra tão forte e cegante que ela foi jogada contra a parede da
bancada e desmaiou.
Ela recobrou a consciência com o calor do sol aquecendo gentilmente seu corpo.
Como uma gata, ela espreguiçou-se. Gemeu gostosamente enquanto os músculos
crispados se alongavam. Já há muito não dormia no chão.
— Uau! Que sonho — murmurou, finalmente abrindo os olhos. — Que exper...
A palavra morreu em sua garganta no momento em que percebeu que não havia
claridade.
— Não é possível! — exclamou, enquanto tateava para ter certeza de haver
voltado ao seu corpo, à nossa realidade.
Estava de volta. O chão não mais era de pedra fria, mas a madeira do assoalho
de seu apartamento. Estava em casa, em sua sala, como na noite anterior... mas
estava cega.
— Oh, meu Deus! Foi real! Foi tudo real! — Úrsula exclamou, mantendo os olhos
fechados como se, com isso, ao voltar a abri-los, a situação pudesse mudar.
Por incontáveis batidas de seu acelerado coração ela esperou, rezando em seu
íntimo para que aquilo não passasse, de alguma maneira, de uma macabra ilusão de
seu corpo para com ela mesma.
Eu não abri os olhos, considerou após algum tempo, depois de achar ter
piscado. Estava tudo escuro afinal de contas. Sua consciência lutou respondendo que,
com o calor que sentia em sua pele, não haveria negror, mas o tom rosa alaranjado de
suas pálpebras, mesmo com os olhos fechados.
Desesperada, Úrsula levantou-se e, ignorando a organização de sua sala de
estar, saiu a tatear. Só depois de haver batido em algo e ouvido o que quer que fosse
se estatelar no piso pela segunda vez foi que ela parou.
O que vou fazer?, perguntou em pensamento, imaginando possibilidades.
Precisava buscar ajuda, ligar para algum hospital, falar com um médico, chamar um
táxi. A resposta era clara, devia chegar ao telefone. Mesmo se tivesse o aparelho em
mãos e ouvisse o tom da linha, ela lembrou que a questão se manteria. Como faria a
ligação? O número dos Telefones Úteis bailou em sua mente, mas isso resolveria só
metade do problema, pois, havendo descoberto para onde ligar, como faria a ligação?
— Será que se eu falar com um atendente... — falou alto, tentando controlar o
pavor irracional que começava a tomar conta dela.
Algum amigo, pensou, o desespero diminuindo a vergonha da situação. Tinha de
fazer algo, sabia disso. Mas o quê?
A solução lógica seria ir a algum hospital e verificar aquilo. Mas como explicar o
que acontecera? Quem acreditaria se contasse o que se passara com ela?
E se não tiver cura?, questionou-se em pânico, novamente se levantando e
esbarrando nos móveis. — E se eu tiver perdido a visão para sempre?
Já sei! O Beto vai me ajudar. Lembrou-se do ex-namorado oftalmologista
enquanto, com dificuldade e quebrando mais algumas coisas em seu caminho,
conseguiu chegar ao telefone. A última coisa que queria era ter de passar por um
hospital e inventar algo para explicar como aquilo acontecera.
A semana seguinte foi bastante difícil para Úrsula. Havendo recobrado aos
poucos a visão, a incapacitante lembrança da cegueira ainda estava fresca e, passada
a curiosidade em relação à estranha experiência, sobrou somente o medo de que,
como a cegueira, aquilo também houvesse sido real e que de alguma maneira ela
estivesse atada àquelas criaturas estranhas e a tudo o que acontecera durante a
viagem.
Todos os déja vus foram ignorados, assim como os pressentimentos e previsões
que lhe surgiam à mente antes que as coisas acontecessem realmente. Tudo era
coincidência, um curto no cérebro ou tinha uma explicação científica e racional.
Mesmo assim, o reconhecimento de caras estranhas, de olhos vidrados na multidão
que pareciam segui-la aonde quer que fosse, isso foi algo que não conseguiu evitar e
que lhe trazia um pavor maior do que qualquer um que ela já houvesse sentido em sua
vida. Sobrava ainda o aperto no peito por não só precisar da ajuda de outra pessoa
como por esta ser, precisamente, um ex-namorado. E também pela falta de confiança
mostrada por Úrsula ao não ter coragem de contar para ele ou para seus amigos mais
íntimos sobre sua experiência.
Eu vou compensar, pensou, irritada por não conseguir se concentrar em seu
trabalho, por aquele episódio todo haver mexido tanto com ela. Vou ligar pro Beto e
marcar algo.
A imagem de si mesma com Marcel, Nádia e o próprio Roberto num barzinho foi
muito clara quando Úrsula tocou no telefone em sua mesa. Ela pôde sentir inclusive que
algo naquela situação a incomodava sobremaneira. Quando tentou descobrir o que era,
contado, o aparelho tocou, quase fazendo-a pular de susto.
— Vi? — ouviu. — Oi, é a Na. Eu tô ligando pra saber se você tá a fim de uma
happy hour hoje depois do trabalho. — E sexta, afinal de contas, e ninguém é de ferro!
— continuou a amiga, sorrindo do outro lado da linha ante o súbito mutismo de Úrsula.
Uma folga com os amigos pareceu natural naquela sexta-feira. Eles, entretanto,
também estavam ali, em busca de Úrsula, e agora não mais de uma maneira discreta,
mas abertamente. Por um momento ela não chegou a acreditar. Olhou uma segunda
vez por entre a multidão que se espalhava pela avenida lá fora somente para ter
certeza de que não estava imaginando aquele ser... aquele homem sem olhos que, a
não ser pelo estranho olho réptil que surgia logo acima da testa, ao contrário dos
sacerdotes em sua viagem, parecia vestir-se como uma pessoa comum.
Não pode ser, pensou, olhando em volta para confirmar se ninguém havia
reparado. Sentiu um calafrio ao perceber que a criatura havia sumido naquele mar de
gente que saía para relaxar após uma semana de labuta.
— Úrsula? — perguntou Marcel, chamando a atenção da namorada, Nádia, para
o comportamento estranho da amiga. — O que você está procurando?
— E! O que está acontecendo? — Nádia perguntou, encarando-a. — Você está
estranha nestes últimos dias. Distante... sei lá!
— Eu... — Úrsula gaguejou em resposta, não sabendo como ou se queria dizer
algo sobre a estranha experiência que, apesar de sua vontade, parecia se estender por
muito mais do que deveria.
— Isso não tem nada a ver com o problema dos... — Roberto comentou, sem
poder terminar a frase, pois, quando a garota se virou para interrompê-lo, ela sentiu
toda a tensão dos últimos dias amolecer suas pernas. Teria ido ao chão se o próprio
ex-namorado não a tivesse segurado.
— Eu sinto muito... — Úrsula começou a desculpar-se. O sorriso morreu em seus
lábios, assim como as palavras, sufocadas na contração de sua garganta quando,
envergonhada, viu a preocupação estampada na face de seus amigos.
— Acho que minha pressão está baixa. Eu vou dar um pulo no banheiro e já volto
— continuou, tentando sorrir enquanto se desvencilhava de Roberto e se distanciava
antes que os outros pudessem dizer algo. — Vão pegando uma mesa!
Como ninguém vê esses ciclopes?, Úrsula questionou-se, aproveitando o
momento de privacidade no toalete do barzinho para enxaguar o rosto e pensar no
pesadelo em que sua vida havia se transformado. A única e inescapável opção em
relação à situação, no entanto, era que estaria ficando paranóica, louca ou pior, estava
tendo alucinações.
— Não é possível! — exclamou para o recinto vazio, negando com veemência a
idéia.
— O que não é possível? — perguntou uma voz desconhecida vinda de suas
costas.
— Desculpe — Úrsula gaguejou em resposta, sorrindo após recobrar-se do
susto. — Não é nada, não! Eu achei que o banheiro estivesse...
— Vazio? — continuou a estranha, terminando a frase que morrera na garganta
de Úrsula ao perceber que seu olho esquerdo era baço, opaco como o de alguém com
catarata. — Em uma semana haverá uma lua nova — ela continuou, após perceber que
havia sido reconhecida — e nós teremos uma nova cerimônia na qual você deverá estar
presente. Você receberá instruções sobre o que e como irá fazer na data. E lembre-se,
caminhante sem fé, nós te conhecemos, sabemos quem são seus amigos e sua
família. Se você não agir de acordo, pessoas que você ama poderão acabar... como
direi? Como cinzas ao vento. Agora volte pra mesa, Roberto, Nádia e Marcel estão
esperando. Lembre-se: sete dias de hoje!
O final de semana estava quase terminando quando Úrsula, após muita tensão e
desespero, conseguiu aquele que parecia ser seu único trunfo contra o terror que ela
mesma invocara para sua vida. Havia lutado contra tudo, desde os medos que aquela
situação havia aflorado até sua descrença em relação à questão de destino, o qual
sempre achara uma baboseira.
Haviam sido quase dois dias e noites lendo o Eiber Adeptus, mas, após limpar
todo o contexto folclórico e adaptar algumas palavras para uma linguagem atual, ela
finalmente leu:
O início será, como sempre, na hora mais negra que antecede o final da noite
— da razão. Essa data será marcada pela presença de um caminhante sem fé. Será
dele, de suas entranhas que Azathoth renascerá. E, em vez do final dos tempos, o
messias trará de volta uma nova era de tradição, sabedoria e poder reais, quando não
a vã ciência, mas a magia e a alquimia serão adoradas como verdade, quando nosso
mestre Azathoth nos guiar pelos abismos da loucura e do outro mundo... l nós i
reinarmos sobre a Terra numa orgia de glória suprema.
Com o que havia descoberto durante sua pesquisa, buscou sentido naquelas
misteriosas palavras.
— “O início será, como sempre, na hora mais negra que antecede o final da noite
— da razão” — releu ela, lembrando que aquela sociedade, Ordo Serpens Umbrae ou
a Ordem da Serpente Sombria, original de algum lugar do Leste Europeu, Prússia pelo
que pôde deduzir, havia sido criada no final do século XVIII.
Afigura da serpente leva ao aspecto mítico. A analogia à sombra, o inverso da
luz mostra que o objetivo deles era, portanto, ser um contraponto ao iluminismo, ela
puxou pela memória, buscando a liberdade pessoal em vez de esperá-la de
organizações e governo, além de magicamente evocar a energia da Terra para cada
um deles...
— De modo que cada pessoa deveria tomar a iniciativa de sua evolução
pessoalmente, buscando sozinha seu desenvolvimento em todos os sentidos, físico,
energético e espiritual, sem depender do Estado, do governo ou da sociedade para
isso — terminou, em voz alta, algo chocada com a semelhança de tal doutrina com
aquilo em que ela mesma acreditava.
Assim, sou eu este “caminhante sem fé”, continuou pensando, ignorando os
medos que lhe surgiam à mente, e essa data, “o final da noite da razão” pode estar
relacionada às inúmeras teorias de que o final dos tempos aconteceria por volta de
2014. A baboseira final não passa de discurso malfeito de vilão, continuou,
jocosamente, buscando com isso se acalmar, de modo que eu só preciso me
preocupar em descobrir o que eles querem comigo...
Realmente, a parte que falava dela, apresentando-a como um caminhante sem fé
de cujas entranhas Azathoth renasceria, era o que lhe gelava o estômago.
— Só há uma maneira de saber o que aqueles malucos de um olho só querem de
mim em outra cerimônia — falou alto para a solidão, não conseguindo acreditar na
loucura que sua vida havia se tornado enquanto, tentando enganar o medo, com as
mãos trêmulas levava o último frasco de elixir à boca.
Cada uma das sensações pareceu mais intensa do que das duas vezes
anteriores em que Úrsula tomara a poção. A nova, e pior delas, contudo, foram o gosto
de bile que sentiu desde sua garganta e o cheiro dele em suas narinas.
♦
Apesar de abrir os olhos esperando ver o local onde vomitara em sua sala, Úrsula
não estranhou quando seu olhar não pôde distinguir nada além do cinza à sua volta.
Era o que eu queria, afinal de contas, lembrou. Nem teve tempo de perguntar-se
como encontraria o templo, pois quando voltou seu olhar em busca de um ponto de
referência no horizonte monocromático percebeu, quase caindo de susto, que estava na
frente da ciclópica catedral.
Sem perder um instante, rolou por uma duna e buscou abrigo junto às estranhas
paredes do edifício. Não queria dar chance alguma para aqueles malditos.
Apesar de aparentemente a entrada do templo estar vazia, aguardou pelo que lhe
pareceu uma eternidade antes de decidir-se por entrar e, quando o fez, teve de ignorar
totalmente os sentimentos conflitantes que assaltavam sua mente para se por em pé. E
apesar de a lógica, a coragem ou a loucura haver prevalecido, ela sentia, no fundo de
seu ser, que não deveria estar ali.
Com passos leves e uma cautela muito maior do que a inicial, esgueirou-se pelas
paredes, mais uma vez evitando o labirinto, até chegar junto à gárgula que guardava as
escadarias.
Esta escuridão estranha pode esconder qualquer um, lembrou, novamente
aguardando. Pelo menos eles não me esperam aqui.
Um som que lhe pareceu vir das suas costas quase fez com que Úrsula pulasse
de susto, levando-a a olhar para trás.
Nada! Não havia nada ali, a não ser a parede vazia de pedra cinzenta. Da
escadaria acima, no entanto, descia um par daqueles estranhos sacerdotes que, sem
notá-la, passou pelas gárgulas e seguiu pelo labirinto e pelo portal em direção ao
deserto cinzento.
Respirando fundo, ela tomou coragem e seguiu o caminho inverso do feito por
aqueles insanos, subindo a escada e indo de encontro ao andar superior. Estava ali em
busca de respostas e não as encontraria se escondendo.
Seguindo pelo mesmo corredor que usara da vez passada, ela caminhou,
passando pelos vitrais e pelas portas que, apesar de normais, pareciam impossíveis
pela lógica, se esta fosse aplicada àquele local, pois simplesmente dariam na parte
externa da construção. Já de chofre, por não haver conseguido nada nas duas
primeiras portas, que estavam trancadas, ao tentar a terceira Úrsula teve duas
surpresas. A primeira: a porta aberta dava num grande salão, uma espécie de
biblioteca da Ordem. A segunda: quatro dos sacerdotes estavam ali e agora a
encaravam com seus olhos centrais reptilianos.
Antes que pudesse fazer algo, uma voz que ela reconheceu como a do sumo
sacerdote gritou:
— Segurem-na! — E dois braços fortes como aço a apanharam, prendendo suas
mãos junto às costas.
— Obrigado por cair em nossa armadilha, querida — sorriu desdenhosa uma
mulher que Úrsula reconheceu como aquela que a encontrara no happy-hour da sexta
anterior.
— Foi como o senhor previu, mestre — comentou outro deles.
— Sim! — continuou mais um sacerdote, num tom quase jocoso. — Instigá-la a
vir aqui e possibilitar sua captura foi genial...
— Obrigado, irmãos — o sumo sacerdote respondeu num tom solene. — Mas
isso nada mais é do Azathoth dirigindo nosso destino. Agora prendam-na c vamos ao
ritual.
— M-mas ele não seria s-só na semana que vem? — Úrsula gaguejou, tentando,
apesar do terror que lhe queimava as veias, ganhar algum tempo.
NUNCA O DITADO “cuidado com o que deseja, pois você há de conseguir” foi tão efetivo
como aqui. Com seu estilo quase televisivo, que leva o leitor para dentro da história,
Nazarethe Fonseca relata as aventuras de um clube de literatura cujos membros usam
contos de horror para encobrir suas falhas, vícios e deslizes morais.
Nesta corrupta e imoral Ciranda dos Desejos, a única coisa que vale é atingir
objetivos, não interessa quão torpes e depravados sejam eles. Mesmo assim, tudo
acabaria bem se, além do sexo e das drogas, também não houvesse magia negra.
Os membros, no entanto, perceberão seu engano, pois aqui a magia cobra um
preço por tudo que oferece. E esta é uma troca que, seja cruel e macabra, seja doce e
prazerosa, quase nunca é justa.
A Ciranda dos Desejos
Alexandre Fernandes Heredia, Camila Fernandes, Gianpaolo Celli, Giorgio Cappelli e Richard Diegues
Um livro que reúne cinco talentos da literatura de suspense e terror, cada um deles apresentando uma história com 30
páginas, ambientada em uma metrópole genérica. Os vampiros — criaturas misteriosas e ao mesmo tempo tão
difundidas na literatura — são apresentadas pelos autores em tramas bem estruturadas e inusitadamente
surpreendentes. Este é o primeiro volume de uma coleção que a editora Alaúde pretende dedicar ao segmento
suspense/terror. A coleção sempre trará histórias inéditas com as mais promissoras revelações do gênero em
edições temáticas: lobisomens, espíritos, bruxas, seres míticos e outros assuntos relacionados. O principal aspecto
deste projeto não é apenas a pontualidade da coleção, mas também a apresentação de novos talentos da literatura
brasileira de terror e suspense.
LEIA TAMBÉM.
Alexandre Fernandes Heredia, Camila Fernandes, Dóris Fleury, Gianpaolo Celli, Giorgio Cappelli, Marcelo Dias Amado
e Richard Diegues
Desde que a humanidade começou a formular seus primeiros pensamentos racionais, algumas perguntas pairam
sem resposta: Haverá vida após a morte? Existe realmente uma alma imortal? E se existir, poderão algumas delas
continuar vagando entre nós, invisíveis, impregnadas de sentimentos conflitantes e por vezes perversos, manipulando
nossos medos e povoando nossos piores pesadelos? Em cada uma das sete histórias que compõem este volume
uma situação nova surgirá, reacendendo estas dúvidas, jogando-nos de cabeça numa realidade cruel, na qual a morte,
ao invés de um alívio, na verdade é o início de um horror ainda maior. Necrópole — histórias de fantasmas é o
segundo volume de uma coleção dedicada à nova nata do suspense e do terror. A cada livro, um tema diferente,
sempre com escritores brasileiros, que apresentam histórias distintas, mas o mesmo cenário: a Necrópole, metrópole
que noite e dia digere nossas almas, gerando em seu ventre cadáveres célebres e assassinos anônimos.