Tese 1 Teodoro
Tese 1 Teodoro
Tese 1 Teodoro
SÃO PAULO
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO- PUC - SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2019
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria da Graça Marchina Gonçalves
Orientadora
______________________________________________________
Profa. Dra. Bader Burian Sawaia
Membro da Banca
______________________________________________________
Profa. Dra. Rosiran Carvalho de Freitas Montenegro
Membro da Banca
“Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em
silêncio sobre as coisas que importam”.
Martin Luther King.
AGRADECIMENTO A CAPES
RESUMO
ABSTRACT
This research discusses over domestic violence committed against children and
adolescents, highlighting child sexual abuse, with the family environment as
background, which makes it difficult to insert these families into the Integral
Protection Network. The studies based on social psychology made it possible to
analyze the historical construction of family and childhood concepts, also the social
roles occupied by each family member in society and how these conceptions are
produced in reality. Sexual abuse is a multifaceted and worrisome social
phenomenon, since it is not a natural event, but a social expression constructed
ideologically based on economic, social, cultural and political aspects. In order to
make this research feasible, an observation/participant survey was conducted at the
CEDECA Institution located in Osasco. The researcher went to several places,
which allows us to understand the complexity of the phenomenon that interferes in
the practice of professionals who deal daily with this demand, weakening the care
of the family that is victim of domestic violence in the Rights Guarantee System. The
collected information contributed to the analysis of the narratives, which identified:
weaknesses in the flow of care, network disarticulation, difficulty in inserting the
family into the protective system and the concern of professionals on protect the
child victim of violence. We emphasize the importance of future discussions about
interventions that comprehend the family as a whole to improve the construction of
policies to combat domestic violence intrafamily.
4
Abreviaturas e Siglas
5
LISTA DE QUADROS e MAPAS
Quadro 2. Tipo de violação por ano, por tipo de violação mais recorrente em
criança e adolescente. ……………………………………………………………….70
MAPAS
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9
2.2 A culpa, o medo e o silêncio: Por que o segredo não é revelado? E como as
práticas abusivas são mantidas por tanto tempo? ............................................. 47
2.3. E quando o segredo é revelado: como romper com o pacto do silêncio. .... 51
7
4.2. A experiência do Centro de Defesa da Criança e Adolescente no Bairro Munhoz
Junior: Desafios e Limites no território frente ao enfrentamento contra a Violência
Sexual ................................................................................................................ 81
c) Uma Rede sem infraestrutura: quais as estratégias para tentar tapar os “furos”
da Rede. ........................................................................................................... 114
5.3. Como desatar os nós? Possíveis caminhos para reflexão e discussão de novas
estratégias e elaboração para o enfrentamento da Violência Sexual Intrafamiliar
......................................................................................................................... 121
8
INTRODUÇÃO
1 Grifos do autor.
10
É preciso compreender as relações sociais e as formas de produção da
vida como fatores responsáveis pela produção do mundo psicológico. É
preciso incluir o mundo cotidiano e o mundo cultural e social na produção
do mundo psicológico (…) (BOCK, 2003, p. 27).
(…) tudo o que diz respeito aos processos sociais, políticos, econômicos
e humanos é explicado com base na semelhança com os processos e
mecanismos da natureza, portanto, concebidos como regidos por leis
naturais. Deste modo, a vontade humana não poderá interromper o curso
dos fenômenos sociais, como não o pode fazer em relação aos fenômenos
naturais (…). Assim espalha-se uma perspectiva a-histórica em relação á
sociedade, ao homem e ao conhecimento (…) (ROSA & KAHHALE, 2009,
p. 41).
11
reprodução da responsabilização da vítima e judicialização da família e prejudicam
uma visão crítica, totalizadora e reflexiva que conduza a saídas para a diminuição
da violência doméstica intrafamiliar. Furniss, (1993) afirma que as fragilidades dos
profissionais frente a esse fenômeno são envolvidas por questões complexas:
Com os avanços nos estudos fui percebendo que muitas vezes as famílias
envolvidas nessa questão ficam à deriva diante deste problema, são esquecidas ou
mal atendidas pelos profissionais. Diante disso, minhas indignações somente
aumentavam: E como fica a família envolvida neste contexto violento? Como
romper com o pensamento conservador entre os profissionais que lidam com essa
demanda? E qual seria o papel do Estado diante das violações sofridas por essas
famílias? Será que é preciso uma política específica para esse tipo específico de
violência doméstica intrafamiliar?
O Estado precisa rever e avançar nas políticas públicas voltadas para a
proteção das crianças e adolescentes e incluir suas famílias neste processo é
fundamental. Sabemos que a família é considerada como matricial dentro das
políticas públicas; porém, o acesso à rede de proteção ao grupo familiar, nos casos
de violência doméstica intrafamiliar ainda é difícil. A violência sexual intrafamiliar é
um problema grave e ascendente a ser enfrentado pela nossa sociedade, como
será demonstrado adiante. Está presente nas mais diversas formas de relações
sociais, afeta grupos, famílias e indivíduos. Portanto, os profissionais que lidam
diretamente com esse tipo específico de violência devem estar cientes de que estão
diante de uma situação complexa e são necessárias estratégias que possibilitem a
qualquer membro dessa família o acesso às políticas protetivas.
As autoras Dalka e Vecina (2002) ressaltam a importância do
comprometimento dos profissionais que atendem a família vítima de violência
12
sexual. É necessário compreender que precisamos avançar na reflexão com novas
estratégias de intervenções protetivas que possibilitem o enfrentamento deste
problema social existente no cotidiano profissional e social.
13
Neste sentido o presente trabalho tem por objetivo geral analisar aspectos
da violência doméstica intrafamiliar e do atendimento previsto no Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).
E, como objetivo específico, analisar quais as concepções de criança,
família e violência imbricadas no cotidiano profissional e suas implicações para o
enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar.
Nesse sentido nosso trabalho está organizado em cinco partes:
No Capítulo I apresentamos o referencial teórico e sua construção dos
conceitos de família e criança; também, a partir do referencial teórico adotado,
como se dá a compreensão a respeito da produção da violência no espaço familiar.
No Capítulo II, apontamos algumas dificuldades para a caracterização dos
conceitos de violência doméstica intrafamiliar e abuso sexual infantil devido à
complexidade do fenômeno social, buscando delimitar a compreensão que norteou
a pesquisa.
No Capítulo III, trazemos uma breve caracterização das políticas públicas
em defesa da criança e do adolescente, bem como da construção do ECA e do
Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente e os entraves, nesse
contexto, no enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar.
No Capítulo IV, apresentamos o Método e a descrição dos procedimentos
de pesquisa. Realizamos uma breve contextualização do local da pesquisa,
caracterizando o Município de Osasco e a organização CEDECA que atende
crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, indicando como a Rede de
apoio está articulada no território e quais ações das políticas de enfrentamento da
violência doméstica, especificamente o abuso sexual infantil intrafamiliar, são
desenvolvidas.
No Capítulo V, analisamos os dados da pesquisa de campo realizada,
procurando identificar os aspectos envolvidos no atendimento das famílias, os
limites, possibilidades e desafios presentes nessa intervenção. Por último, as
considerações finais apontam os principais aspectos desenvolvidos em relação às
indagações que orientaram a pesquisa.
14
Capitulo I – A construção social e histórica da criança e da família: conceitos
a serem reconstruídos.
15
Na visão conservadora, espera-se que a família cumpra sua função
socializadora a partir do modelo conjugal “tradicional”2. Espera-se a
presença de pai e mãe, cumprindo papéis – o pai o principal provedor, a
mãe a principal cuidadora (RECIO, 2017, p. 101).
2 Grifo do autor.
16
Esta cultura milenar favorece o poder do adulto sobre a criança e o
adolescente, transformando-os em “coisas”3 destituídas de necessidades,
desejos e direitos essenciais (MATTOS, 2002, p. 126).
Neste cenário podemos perceber que o cotidiano das famílias em que ocorre
a violência doméstica é um reflexo da complexidade existente na sociedade
contemporânea, marcada pela violência, vulnerabilidades econômicas e sociais
associadas a estratégias de sobrevivência.
No nível da reflexão científica, a literatura elucida e desconstrói essa
aparência de naturalidade. Apresentaremos a seguir alguns dados históricos que
destacam em alguns períodos em que o Estado aparece como regulador e
construtor das estruturas familiares e ao longo do percurso histórico desenvolve
modelos de famílias.
3 Grifo do autor.
17
subalterna presente nos períodos históricos anteriores e passam a dominar como
se fossem expressões de aspectos intrínsecos e naturais à família. Em função
disso, recorrer à noção de historicidade é fundamental.
Segundo Bock e Gonçalves, (2009):
18
desenvolvem-se modelos de família com o objetivo de suprir necessidades políticas
e econômicas por meio do controle do grupo doméstico.
A instituição família, como forma de agregação, tem as suas características
próprias, mesmo atravessadas por algumas questões que afetam o entorno da
família: ideologias sociais, econômicas e também culturais provenientes de
algumas questões que afetam o ambiente familiar. Este conceito de família,
ancorado na ideologia liberal, retira da esfera política as necessidades sociais da
família e as transfere para a esfera individual. Sendo assim, seus membros fecham-
se em si mesmos, aprofundando os seus laços de afetividade, solidariedade e
responsabilidade.
Como aponta Donzelot (1986):
Nessa perspectiva Ariès (2006) descreve que o Estado passa a ter um papel
importante no espaço social a partir do século XV, espaço esse antes entregue às
comunidades, à vida cotidiana. O pai de família torna-se uma figura moral que
inspira respeito na sociedade. A família muda de sentido, antes os filhos eram
educados em casa no seio da família; com a alteração na estrutura familiar
proporcionada pelo Estado, os filhos passam a ser educados em escolas e a
criança participa da vida do adulto.
19
frequência escolar. (…) na Idade Média a educação das crianças era
garantida pela aprendizagem junto aos adultos (…). A escola deixou de
ser reservada aos clérigos para se tornar instrumento normal de iniciação
social, a passagem do estado da infância ao adulto (ARIÈS, 2006, p.159).
Ou seja, o problema que antes era público passa a ser privado, a educação,
a saúde, a sociabilidade são deveres dos pais.
22
Partindo desse pressuposto, descolar a aparência de naturalidade da
concepção familiar concreta e perceber a instituição como mutável e histórica, é um
dos primeiros passos para a ressignificação da composição familiar. A concepção
de família sofre alterações conforme a realidade social na qual esteja inserida. A
instituição considerada como estrutura familiar é alterada com o decorrer da
história, assumindo configurações diversificadas em determinadas sociedades ou
grupos sociais.
23
(…) é o nascimento da moderna família nuclear que constrói pouco a
pouco o muro de sua vida privada para se proteger contra toda a intrusão
possível da grande sociedade. O Amor isola o casal da coletividade (...).
É essa pelo menos a imagem proporcionada. (BADINTER, 1985, p. 179).
24
concretas que incluem, necessariamente, a atividade, objetiva e subjetiva,
do indivíduo. (…). Suas ações e experiências individuais subjetivas só são
possíveis a partir das relações sociais e do espaço da intersubjetividade,
pois falamos de um sujeito que é social e histórico (…) (BOCK &
GONÇALVES, 2009, p. 142).
25
Uma das implicações desse processo é o Estado isentar-se de suas
responsabilidades e elevar a família como a instituição privilegiada para dar conta
de todos os problemas urgentes e presentes no tecido social marcado por
desigualdades que afetam o grupo familiar.
Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não
tentava representa-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à
incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse
lugar para a infância nesse mundo. (…). Até o fim do século XIII não
existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim
homens de tamanho reduzido. (…). Isso sem dúvida significa que os
homens (…) não se detinham diante de uma imagem da infância, que esta
não tinha para eles interesse, nem mesmo realidade (ARIÈS, 2006, p.17-
18).
A criança seria vista como substituível, como ser produtivo que tinha uma
função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era
inserida na vida adulta. A criança tornava-se útil na economia familiar,
realizando tarefas e imitando seus pais e suas mães. Havia
responsabilidade legal de cumprir seus ofícios perante a coletividade
(ARIÈS, 1986, p. 226).
4 Grifo nosso
27
Outro ponto a ser abordado seriam as brincadeiras e os jogos voltados para
a criança entre os, séculos XIII e início do século XVIII. Nas brincadeiras e jogos
até a primeira infância não havia separação entre meninos, meninas e adultos,
jovens, idosos; não existia a preocupação de separar por faixa etária ou por sexo
as atividades. Os jogos e as brincadeiras eram comuns a todas as idades; sendo
assim as crianças também participavam de alguns jogos de azar, que não eram
reprovados pelos adultos daquela época:
Era uma falsa liberdade que se atribuía às crianças na primeira infância, até
sete anos de idade, permitindo que estivessem misturados na vida dos adultos,
porque nesta fase dependiam dos cuidados da mãe, para o desenvolvimento oral
e a formação das primeiras palavras. Por isso as brincadeiras e os jogos eram
partes integrantes da educação nesta fase da infância. Até as brincadeiras eróticas
faziam parte da educação das crianças nas famílias5.
5 Ariès em seu livro: “A história Social da Criança e da Família”, cita vários trechos em que as
carícias eróticas faziam parte das brincadeiras entre adultos e crianças e estavam presentes no
cotidiano da família. Apresentaremos um trecho para elucidar a citação exposta. “Durante seus
três primeiros anos (…) era uma brincadeira comum e muitas vezes repetidas as pessoas lhe
dizerem:” Monsieur não tem pênis:” Ele respondia”: É olha aqui! “E alegremente levantava-o com
o dedo.”. Essas brincadeiras não eram restritas à criadagem ou a jovens desmiolados ou a
mulheres de costumes levianos, como a amante do Rei. A Rainha, sua mãe, também gostava
dessa brincadeira: “A rainha, pondo a mão no pênis, disse: - “Meu filho peguei a sua torneira.” O
trecho a seguir é ainda mais extraordinário: “Ele e a Madame (sua irmã) foram despidos e
colocados na cama junto com o Rei, onde se beijaram, gorjearam e deram muito prazer ao Rei. O
Rei perguntou-lhe: - Meu filho, onde está a trouxinha da Infanta? ----- Ele mostrou o pênis dizendo:
-----Não tem osso dentro, papai. ----- Depois, como seu pênis se enrijecesse um pouco,
acrescentou: ----- Agora tem, de vez em quando tem (ARIÈS, 2006, p. 76).
28
Os casamentos aconteciam em idades precoces. As meninas demoraram a
ir para as escolas e a educação era voltada para obedecer ao esposo, cuidar dos
afazeres da casa e da criação das crianças; ou, então, eram encaminhadas ao
convento para aprenderem ensinamentos religiosos.
Ariès cita J.-B. de La Salle em sua obra a Conduite des écoles chrétiennes
(1720), para explicar que a preocupação com a educação estava mais focada em
tornar as crianças homens e mulheres racionais, com ótimas condutas e educação.
E também não havia como ser de outra forma a visão da criança ou do adolescente.
A criança não era divertida nem agradável: Todo homem sente dentro de
si essa insipidez da infância (…) familiarizar-se como os próprios filhos,
faze-los falar de todas as coisas, trata-los como pessoas racionais e
conquista-los pela doçura é um segredo infalível para se fazer deles o que
quiserem. As crianças são plantas jovens que é preciso cultivar e regar
com frequência: alguns conselhos dados na hora certa, algumas
demonstrações de ternura e amizade de tempos em tempos as comovem
e as conquistam. Algumas carícias, alguns presentinhos, algumas
palavras de confiança e cordialidade impressionam seu espírito, e poucas
são as que resistem a esses meios doces e fáceis de transformá-las em
pessoas honradas e probas. A preocupação era sempre a de fazer dessas
crianças honradas e probas mulheres racionais (ARIÈS, 2011, p. 104).
Neste percurso é perceptível que a infância passava despercebida, a criança
não era considerada como um sujeito com peculiaridades em seu desenvolvimento.
As famílias não tinham as funções de afetos, cuidados específicos com a prole. As
relações entre pais e filhos não se caracterizavam pela intimidade ou por
29
intensidade emocional. Tudo ocorria no movimento de uma vida coletiva, onde
público e privado se misturavam e as famílias conjugais se diluíam nesse meio.
Até o final do século XIX (...), a criança foi vista como um instrumento de
poder e de domínio exclusivo da Igreja. Somente no início do século XX,
a medicina, a psiquiatria, o direito e a pedagogia contribuem para a
formação de uma nova mentalidade de atendimento à criança, abrindo
espaços para uma concepção de reeducação, baseada não somente nas
concepções religiosas, mas também científicas (ARIÈS, 2011, p. 195).
30
e da honra. (...) A família começou então a se organizar em torno da
criança e a lhe dar uma importância, que a criança saiu do anonimato, que
se tornou impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, que
ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes, e que se tornou
necessário limitar seu número para melhor cuidar dela. (ARIÈS, 2006, p.
50)
31
abandono, maus tratos e omissão por parte dos responsáveis em relação aos tratos
com a criança e aos adolescentes, por estarem sob os cuidados dos mesmos. E no
tocante às violências domésticas, a negligência contribui com a manutenção das
práticas violentas perpetradas no grupo familiar.
Nesse contexto, os danos e consequências físicas, psicológicas e sociais da
negligência sofrida na infância e na adolescência são extremamente graves, pois
se configuram também como ausência ou vazio de afeto. A omissão está atrelada
à falta de cuidado, prejudicial ao desenvolvimento da criança e do adolescente no
ambiente familiar.
Os direitos das crianças e adolescentes, quando são negados, negam
valores considerados universais: a liberdade, a igualdade e a vida. Conforme
Azevedo e Guerra (2005):
32
Capitulo II – A complexidade do fenômeno social da violência e suas
diversas faces: definindo a terminologia
33
violência doméstica intrafamiliar e a submissão feminina a este modelo conservador
de família burguesa. É preciso fugir dos limites impostos a esses personagens
congelados e dar vida a esses sujeitos, que expressam a construção social de
relações de gênero, para desnaturalizar tais concepções ideológicas e
reproduzidas no senso comum. Lane descreve (2006):
6
Para a autora esse mecanismo utilizado pelo capitalismo como proteção é produzido através de
máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se não
fossem violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção á natural fragilidade
feminina, proteção que inclui a ideia de que mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois
como todos sabem, o estupro ainda é visto como um ato feminino de provocação e sedução.
34
que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega
para o lugar efetivo da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira.
Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as
expressões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de
funcionamento das instituições, o racismo, o machismo, a intolerância
religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto
é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e
a violência aparece como fato esporádico de superfície (CHAUÍ, 2017, p.
41).
36
À medida que vamos aproximando a família e a criança ao conceito de
violência, percebemos o quanto as ações violentas são confundidas como formas
de educar, proteger e impor as vontades do responsável sobre os membros
familiares. A vida familiar, ao passar a ser cada vez mais privada, intimista, parece
justificar essas ações violentas, pois é legitimada como instituição protetora e
provedora.
A família é caracterizada como o primeiro núcleo de socialização, o centro
da formação psíquica, do desenvolvimento, da transmissão de conceitos
socioculturais, valores, normas, hábitos, condutas, direitos e deveres para a criança
e adolescente em processo de formação, cumprindo assim sua função de
reprodução ideológica.
Por isso, mesmo, dela se espera uma conduta moralmente exemplar (…),
mais elevada e rigorosa do que normalmente, se espera (…). Dela
também se espera o desprendimento e abnegação necessária para o
futuro sucesso da família, ou seja, o sucesso das futuras gerações de toda
a sociedade. Desse ponto de vista, portanto, a questão do controle (…)
não é nada secundário ou de pequena monta, mas um dos problemas
cruciais da boa organização social (ARAUJO, 2017, p. 29).
37
Então como pensar em ações que não reproduzam a violência nas relações
familiares? Por isso é de suma importância a compreensão das estruturas
familiares, especificamente das famílias onde ocorrem as violências domésticas.
Para além de um simples conceito, é preciso responder as demandas que esse
lugar social impõe à família. Frente a essa discussão, poderemos compreender
porque as práticas violentas são reproduzidas nas dinâmicas familiares.
Observa-se com estas reflexões que este fenômeno social não pode ser
analisado desvinculado dos desdobramentos das estruturas violentas existentes no
tecido social. É preciso romper com o determinismo que responsabiliza apenas os
indivíduos através de imagens fixadas e estereotipadas, evidenciando a associação
entre as práticas violentas e as desigualdades sociais, culturais e econômicas.
38
(…) cumpre lembrar que na medida em que damos explicações voltadas
exclusivamente às características da personalidade do indivíduo,
abandonando o seu meio social, estamos, de certa forma, contribuindo
para que a própria sociedade seja absolvida em termos de sua parcela de
responsabilidade quanto ao modo violento de viver que ela impõe (…)
(GUERRA, 2005, p. 148).
39
utilização de diferentes termos como sinônimos e como se
correspondessem a um mesmo conceito não é apenas uma questão de
terminologia, mas uma questão epistemológica, ou seja, revela a falta de
uma rigorosa e clara conceituação da problemática (FALEIROS, 2000, p.
4).
40
mesmo dicionário é traduzida como: uso da força física; ação de intimidar alguém
moralmente ou o seu efeito; ação, frequentemente destrutiva, exercida com ímpeto,
força.
As autoras Chauí (1985), Furniss (1988), Gabel (1997), Ferrari (2002) e
Guerra (2005) concordam que o conceito de violência sexual é uma violência
interpessoal, é um abuso de poder, é uma forma de violação dos direitos essenciais
e fundamentais aos valores humanos da criança e do adolescente, utilizando-se de
práticas sexuais para obter estimulação sexual, permeando todas as classes
sociais, além de englobar diferentes fatores: culturais, socioeconômicos,
estruturais, psicológicos, sexuais e físicos.
É preciso acompanhar a evolução da sociedade para pensar em definições
mais profundas que possibilitem avanços nas definições das práticas violentas. A
violência doméstica por apresentar diversas facetas dificulta a sua compreensão:
extrafamiliar, intrafamiliar, abuso sexual, incesto, negligência, violência de gênero
entre outras. Nossa análise procurou não descartar nenhum ponto de vista
conceitual, a fim de considerar a complexidade do fenômeno. Além disso, outro
aspecto foi considerado, como apresentado a seguir.
Para Saffioti (2011), o conceito de violência de gênero designa um tipo
específico de violência que visa à preservação da organização social de gênero,
fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuais. Segundo a
autora, a violência de gênero tem duas faces: é produzida no interior das relações
de poder, objetivando o controle sobre quem detém a menor parcela de poder e
revela a impotência do agressor e de quem a perpetra para exercer a exploração-
dominação, pelo não consentimento.
Tal discussão se faz importante porque alguns autores tratam a violência
doméstica e a violência intrafamiliar como únicas ou de formas conjugadas.
Saffioti (2011) salienta que são duas categorias diferentes, pois a violência
doméstica demarca o território em que a violência ocorre, ou seja, a residência onde
a família reside e está ligada estritamente à questão do gênero, isto é, a violência
está envolta na relação submissão – dominação. Já a intrafamiliar extrapola o
ambiente familiar, pode ocorrer em qualquer espaço territorial, mas é praticado por
alguém que tem laços consanguíneos com a vítima, e, baseando-se em uma
41
concepção ampliada de família, que também mantém laços de afetividade com a
mesma.
Notamos que a visão conceitual de violência defendida por não esgotou a
nossa necessidade de discussão frente ao fenômeno da violência contra crianças
e adolescentes. Embora discuta a verticalidade da construção social hierárquica do
gênero masculino sobre o feminino, reproduzida na relação de poder, não têm
como foco direto a prática violenta perpetrada contra a criança e adolescente.
Sabemos da importância de adotar a violência de gênero e não somente a violência
doméstica para a definição desta concepção, pois induz a uma reflexão para além
do ambiente familiar doméstico. Mas, o foco na violência de gênero dificulta abordar
a questão da violação dos direitos da criança e adolescente, cometidos não
somente por homens, mas também por mulheres agressoras, embora saibamos
que os abusos sexuais geralmente são cometidos pelos homens. Por outro lado,
a violência em sua totalidade agrega outras formas de violações: abandono,
negligência, maus tratos, etc. Por isso não consideramos somente o abuso sexual
como violação de direitos da criança e adolescente.
É importante salientar que a relação de gênero está presente na base de
análise deste fenômeno social. Porém, no caso da violência sexual aqui abordada,
compreendemos que a assimetria entre adulto e criança, o primeiro imbuído de
poder e dominação, traz outros aspectos: cristaliza cada indivíduo em sua posição
social, centralidade de poder, isto é, reforçando papéis construídos historicamente
e que perpetuam até hoje em nossa sociedade.
Devemos considerar ainda que a violência afeta a liberdade e impossibilita
o desenvolvimento do sujeito como transformador da sua própria história.
42
segundo nos submetemos ou não à força e à violência ou sejamos
agentes dela (CHAUÍ, 1985, p. 36).
Por isso não podemos delimitar o fenômeno social em uma única forma
específica, sem levar em consideração as demais modalidades que envolvem a
complexidade da violência sexual: física, psicológica e a negligência. Como
também não podemos deixar de considerar os fatores estruturais que contribuem
com a intensificação da violência doméstica.
Nessa direção, reconhecemos, como apontamos acima, que a questão do
gênero influencia e tem o seu lugar na dinâmica familiar. Muito bem discutida neste
tema por Saffiotti (2011), a questão do patriarcado, ancorado na dominação, na
43
força e no poder como fatores preponderantes na produção da violência familiar e
social devem ser levadas em conta.
Não há dúvida, entretanto, de que é importante dar visibilidade à violência
sexual e, para isso, cada autor utiliza o conceito que considera que mais se
aproxima do tema para definir as práticas sexuais perpetradas contra crianças e
adolescentes no ambiente familiar.
Essa reflexão contribuiu para evitarmos reducionismo e consideramos que,
ao unificar as terminologias, avançaremos na direção do enfrentamento, da
prevenção e promoção de políticas públicas que garantam os direitos das crianças
e adolescentes. Utilizamos a terminologia violência doméstica intrafamiliar ao nos
referirmos ao fenômeno social, com o objetivo de avançar em políticas públicas que
combatam todo e qualquer tipo de a violência doméstica contra a criança e o
adolescente. E destacamos, especificamente, o abuso sexual infantil. Dessa forma,
procuramos focalizar uma questão mais complexa, sem desconsiderar aspectos
mais amplos que, de forma predominante, estão também presentes.
Para esclarecer essa perspectiva de análise, alguns pontos podem ser
retomados e aprofundados. A partir das reflexões sobre criança e família nos itens
anteriores, pudemos perceber que as desigualdades são historicamente
determinantes nas construções subjetivas, culturais e sociais dos papéis de
homem, mulher e criança, delimitando o lugar de cada sujeito nesta relação familiar,
como forma de manutenção do controle e do poder de um sujeito sobre o outro.
Ao levarmos em conta que os atos violentos contra a criança e o adolescente
se expressam de diversas formas, concordamos com a visão conceitual de alguns
autores como: Furniss (1993), Gabel (1997), Ferrari e Vecina (2002) e Azevedo e
Guerra (2005) que reconhecem e conceituam quatro modalidades da violência
doméstica contra criança e adolescente: Violência Física, Violência Sexual,
Violência Psicológica e Negligência. Optamos pelos quatro conceitos sobre
violência doméstica intrafamiliar por acreditar que cada modalidade tem as suas
especificidades e estão na base das práticas desta dinâmica abusiva.
A violência física para Vecina e Ferrari (2002) materializa-se a partir:
44
por pai, mãe, madrasta, avô, avó, tio, etc. (VECINA & FERRARI, 2002, p.
83).
45
(…) aquela que atinge crianças e adolescentes, cometidas por seus pais,
membros da família extensa ou pelos responsáveis, revela uma
transgressão dos adultos, porque, além de não cumprirem o dever de
proteger e promover os direitos de suas crianças são eles os próprios
agentes da violência (AZEVEDO & GUERRA, 2005, p. 32).
E a extrafamiliar:
Neste caso, a violência sexual geralmente ocorre uma única vez, de forma
abrupta, e o abuso vem acompanhado de violência física. Como há
ausência de qualquer vínculo com o agressor, a quebra do silêncio por
parte da criança ou do adolescente e de sua família é impulsionada e, por
isso, a denúncia acontece mais facilmente. Acomete mais frequentemente
adolescentes do sexo feminino e a maioria dos casos acontece fora do
ambiente doméstico, (Caderno de Violência Doméstica Sexual contra
criança e adolescente, 2007, p. 16).
46
2.2 A culpa, o medo e o silêncio: Por que o segredo não é revelado? E como
as práticas abusivas são mantidas por tanto tempo?
Não é tarefa fácil lidar com esse tipo de fenômeno social e particularmente
com o que ocorre na vida privada; ou seja, no isolamento social em que vive essa
família, foi se criando um espaço propício para a permanência das práticas
violentas. A sociedade, a família e os órgãos de proteção social precisam estar
atentos às sutilezas que medeiam e evidenciam as facetas da violência, como bem
descreve Santos (2013, p. 346): “é preciso, portanto, estar atento aos mecanismos
sutis, a pequenos sinais que, muitas vezes, passam desapercebidos (…) nos casos
de violência”.
A violência doméstica revela uma ampla e complexa rede de relações
intrafamiliares; é cometida muitas vezes por uma pessoa de significação afetiva
importante para a criança ou o adolescente, o que pode provocar intenso sofrimento
emocional e conflitos familiares de diversas amplitudes.
No tocante à família em que ocorre o abuso sexual, cabe apontar alguns
fatores que favorecem a continuidade e a permanência das práticas violentas que
47
estão presentes na dinâmica familiar, pois todos os membros vivem consciente ou
inconscientemente suas consequências.
Uma das consequências é que as vítimas acabam assimilando valores
distorcidos sobre respeito humano. Geralmente através de ameaças, as vítimas
que foram abusadas silenciam a violência por medo de acontecer alguma coisa
com ela ou com a sua família.
É através deste silêncio que o agressor conduz a perpetuação das práticas
violentas dentro da família e em muitos casos a violência doméstica dura por muitos
anos.
A criança que está em situação de violência sexual sente-se sozinha e frágil
para romper com o silêncio estabelecido, pois entende que a sua fala será contra
a de um adulto, o qual exerce uma relação de poder sobre ela, e diante das
ameaças o segredo é mantido. Furniss (1998) afirma que o segredo contribui com
a manutenção da violência:
48
Alguns fatores reforçam o pacto do segredo elaborado pelos adultos e
obedecido pelas crianças e adolescente. Um primeiro fator é que os abusos sexuais
intrafamiliares ocorrem em segredo. Os abusadores encontram no ambiente
familiar segurança e conforto para as práticas sexuais. Ambiente no qual, muitas
vezes, são legitimados como o provedor, reforçando as relações de poder e
submissão dentro desse lar, tornando as crianças/ adolescentes objetos fáceis de
manipulação. Os adultos encontram nelas parceiros sexuais que não resistem a
suas imaginações eróticas, concretizadas nos atos abusivos.
A mãe, por sua vez, também vive uma situação de muita confusão e
ambiguidade diante da suspeita ou constatação de que o marido ou
companheiro abusa sexualmente da filha. Frequentemente nega os
49
indícios, denega suas percepções, recusa-se a aceitar a realidade da
traição do marido. Vive sentimentos ambivalentes em relação à filha: ao
mesmo tempo em que sente raiva e ciúme, sente-se culpada por não
protegê-la. Na verdade, ela também é vítima, vítima secundária, da
violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma
forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração
diante da ameaça de desmoronamento da unidade familiar e conjugal (…)
(ARAÚJO, 2002, p. 7).
(…) se falarmos do homem sem falar de suas condições de vida, sem falar
do trabalho, fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social que o
constitui, na verdade não se fala nada, “faz-se ideologia” (BOCK, 2015, p.
34).
50
2.3. E quando o segredo é revelado: como romper com o pacto do silêncio.
51
secreções vaginais; infecções de garganta, crônica e não ligada a resfriados;
doenças somáticas, em especial dores de barriga, cabeça, pernas, braços e
genitais quando não existe patologia médica específica. Também existem os
sintomas comportamentais conforme destaca Zavaschi (1991):
52
intacta pode ser tão difícil para o profissional como é para a criança
e para os membros da família’’ (GABEL, 1997, p. 77).
São crianças que vivem uma relação assimétrica de poder, e um drama que
afeta o seu desenvolvimento físico, psicológico e sexual. O sofrimento, o medo, o
abandono, a culpa está presente no dia a dia da criança e adolescente vítimas das
práticas sexuais.
É necessário envolver a mãe no processo de revelação, assim como os
irmãos da vítima, devendo ser cada caso avaliado para buscar a melhor forma de
trabalhar com o grupo familiar. O índice de admissão da prática do abuso por parte
dos abusadores aumenta na medida em que a intervenção é bem preparada pela
rede profissional, existem mais fatos disponíveis e a pessoa que confronta o
suposto abusador é bem apoiada pela rede profissional e pelos fatos da evidência
perante ele.
A falta de compreensão e entendimento da violência doméstica pelos
profissionais que lidam com essa demanda pode gerar intervenções inadequadas,
com sensíveis prejuízos à criança, ao adolescente e à sua família e ainda contribuir
com a manutenção da violência doméstica.
53
Capitulo III - Criança e adolescente: do controle e tutela à concepção de
proteção integral.
55
Esse sistema escolar utilizado não consistia somente em uma formação para
uma vida em sociedade, mas uma formação dotada de elementos que seriam
indispensáveis para o aperfeiçoamento moral e intelectual dos indivíduos para a
vida social. Tal fato se consolidou através da implantação de severos métodos de
educação, uso de castigos e punição corporal, que os laços entre a escola e a
família estreitaram; as agressões físicas foram tomando corpo e forma na
sociedade.
56
A legitimidade da violência doméstica, especificamente a física, em virtude
da educação ainda é vista como um método disciplinar. No Código Hamurabi8,
redigido por volta de 1700 A.C. e ainda utilizado nos dias de hoje, o qual tem como
base a Lei de Talião, conhecida como olho por olho e dente por dente, destacamos
no parágrafo XI o artigo 192, que diz que “se o filho de um dissoluto ou meretriz diz
a seu pai adotivo ou mãe adotiva: tu não és meu pai ou minha mãe” dever-se-á
cortar a língua.
Em Roma, a família ficava debaixo da autoridade de seu chefe e os filhos
tinham que se curvar diante desta autoridade.
Em Roma (449 A.C.), a Lei das XII Tábuas permitia ao pai matar o filho
que nascesse disforme mediante julgamento de cinco vizinhos (Tábua
Quarta, nº 1), sendo que o pai tinha sobre os filhos nascidos de casamento
legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los (Tábua Quarta
nº2). Em Roma e na Grécia Antiga, a mulher e os filhos não possuíam
qualquer direito. O pai, o chefe da família, podia castigá-los, condená-los
e até excluí-los da família (AZAMBUJA, 2006, p. 12).
8 No Oriente Antigo, o Código de Hamurabi (1728/1686 A.C.) previa o corte da língua do filho que
ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais, assim como a extração dos olhos
do filho adotivo que aspirasse voltar à casa dos pais biológicos (art. 193). Caso um filho batesse
no pai, sua mão era decepada (art. 195). Em contrapartida, se um homem livre tivesse relações
sexuais com a filha, a pena aplicada ao pai limitava-se a sua expulsão da cidade. Código Hamurabi
disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm. Acessado em 10/04/2018.
57
Além disso, entramos na lógica do adultocentrismo, os resquícios da
concepção de que as crianças e adolescentes são propriedades dos pais
ou dos adultos que se responsabilizam por eles. Esta concepção ainda
arraigada é utilizada como práticas violentas, tais como os castigos físicos
tomados como ações educativas (MOREIRA apud RIZZINI, 2011, p. 220).
58
3.1. O caminho das intervenções nacionais e internacionais em defesa dos
direitos da criança e do adolescente.
9
Save the Children (International Save the Children Alliance) é uma organização não
governamental de defesa dos direitos da criança no mundo, ativa desde 1919, dedicando-se
tanto a prestar ajuda humanitária de urgência como ao desenvolvimento de longo prazo, através
do apadrinhamento de crianças. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Save_the_Children.
Acessado em 14/01/2019.
10
O primeiro instrumento internacional sobre os direitos da criança foi redigido em 1923, por
membros da "Save the Children", liderados por Eglantyne Jebb, juntamente com a União
Internacional de Auxílio à Criança. Trata-se da Declaração de Genebra sobre os Direitos da
Criança, conhecida por Declaração de Genebra, adotada em 1924 pela Sociedade das Nações
e que serviu de base para a Convenção dos Direitos da Criança, em 1989. A partir da criação
deste comitê, os Estados Unidos passam a não serem os únicos soberanos em matéria dos
direitos da criança. Um comitê lançado pela Liga das Nações apresenta objetivos mais
59
criança, que surgiu influenciando os estados e filiados a elaborarem suas próprias
leis em defesa dos direitos da criança e do adolescente.
No Brasil destacaremos o Código de Menores, criado em 192711 e
consolidado na era Vargas, nos anos 1930; juízes, médicos, desembargadores,
agentes policiais definiram um setor assistencial, um setor repressivo/
jurídico/policial sob a égide do Ministério da Justiça, um setor de saúde, um setor
de formação profissional e, articulado com esses setores, introduzem o paradigma
de proibição do trabalho infantil. “Contudo, [esse Código] não deixava de intervir na
manutenção da ordem e da defesa da moral” (FALEIROS, 2015, p. 89).
Ainda nessa seara, segue-se a cronologia no período compreendido entre
1946 e 1979:
No ano de 1946 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
recomenda a adoção da Declaração de Genebra12. Logo após a II Guerra Mundial,
específicos, no tocante à proteção das crianças, pois seu cerne era "tratar das questões relativas
à proteção da criança e da proibição do tráfico de crianças e mulheres", como relata SOUZA
(2002, p. 1). Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/o-historico-legislativo-dos-
instrumentos-internacionais-de-protecao-a-crianca-e-ao-adolescente/46189. Acessado em
14/01/2019.
11
É um documento extremamente minucioso, contendo 231 artigos. A legislação dirigida aos
menores de idade vinha a legitimar o objetivo de manter a ordem almejada, á medida que, ao
zelar pela infância abandonada e criminosa, prometia extirpar o mal pela raiz, livrando a nação
de elementos vadios e desordeiros, que em nada contribuíam para o progresso do país. Para
atingir a reforma almejada para “civilizar” o Brasil, entendia-se ser preciso ordená-lo e saneá-lo.
Designada como pertencente ao continente de “menores abandonados e delinquentes” (portanto
potencialmente perigosos), a população jovem que fugia aos mecanismos sociais de disciplina,
foi um dos focos para a ação moralizadora e civilizadora a ser empreendida. Sob o comando da
Justiça e da Assistência, julgou-se estar, dessa forma, combatendo os embriões da desordem. A
contribuição importante para a época foi a regulamentação do trabalho infantil e juvenil, que não
fossem empregados somente os menores de 12 anos, impondo restrições rigorosas quanto ao
local e a jornada de trabalho (RIZZINI, 2015, p.137,139).
12
Para abolir o trabalho infantil e a extrema pobreza em que as crianças viviam na Suíça, a britânica
Eglautyne Jebb a fundar a Save the Children e impulsionou a Declaração de Genebra sobre os
direitos da criança sancionado pela Sociedade das Nações , predecessora da atual ONU de
1924. Esta primeira declaração tinha apenas cinco pontos e conferia a criança o direito à
alimentação, a ser socorrido em primeiro lugar em caso de catástrofe, atendido em suas
60
um movimento internacional se manifesta a favor da criação do Fundo Internacional
de Emergência das Nações Unidas para a Infância – UNICEF.
A Assembleia das Nações Unidas proclama em dezembro de 1948 a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, os direitos e liberdades das
crianças e adolescentes estão implicitamente incluídos.
Na Assembleia Geral da ONU em 1959, proclamou-se a Declaração dos
Direitos da Criança13, publicando um documento com dez pontos, assegurando
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/direitos/tratado11.htm. Acessado em
15/01/2019.
14 Fundo Internacional de Emergência para Infância das Nações Unidas. é um órgão das Nações
Unidas que tem como objetivo promover a defesa dos direitos das crianças, ajudar a dar resposta
às suas necessidades e contribuir para o seu desenvolvimento. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fundo_das_Na%C3%A7%C3%B5es_Unidas_para_a_Inf%C3%A2n
cia. Acessado em 15/01/19.
dando-se ao juiz o poder e decidir sobre o que seja melhor para o menor: assistência, proteção
ou vigilância (FALEIROS, 2015, p. 70).
16 Grifos do autor
63
De qualquer forma, esta análise do contexto da violência, como podemos
observar, não alcançou a violência sexual. A complexidade do fenômeno que não
se “expressa” perpassa a ordem social, econômica e política, pois envolve o que
ainda estava submerso: a família. E necessita de uma ampla implementação de
ações, ou seja, o enfrentamento será efetivo a partir de práticas integradas e
articuladas que promovam a proteção integral da criança e do adolescente frente à
violência doméstica intrafamiliar.
64
internacionalmente, como assegura a Carta Magna17 no artigo 227 e nos parágrafos
1º e 4º:
17
Constituição Federal de 1988. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-
publicacaooriginal-1-pl.html. Acessado em 15/01/2019.
65
O ECA, ao reconhecer a criança como sujeito de direitos individuais e
coletivos, atrelando a família, a sociedade e o Estado como responsáveis pelo seu
desenvolvimento, revoga a Doutrina da Situação Irregular e implementa a Doutrina
de Proteção Integral à Criança e ao Adolescente. Significou o rompimento com a
visão estigmatizada a respeito da criança e do adolescente situação essa que
corroborava com a submissão e a desigualdade social.
O Estatuto define respeito, liberdade, inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias, crenças, espaços e
objetos pessoais. Dentre os seus 267 artigos, o artigo 5º contribui para a redução
das violações:
67
A partir dessas diretrizes que orientam o SGDCA segundo Azedo e Guerra
(2015, p.467) “a leitura do ECA fornece princípios capazes de orientar políticas
sociais de contenção da vitimização doméstica da criança e adolescente e
prevenção do fenômeno da violência em nosso país”.
O quadro abaixo apresenta uma linha do tempo com os principais
documentos e marcos nacionais que regulam a proteção integral e promoção dos
direitos da criança e do adolescente vítimas de violência doméstica.
68
• 2000 Aprovação do Protocolo Adicional às Convenção dos Direitos da Criança sobre o
envolvimento de crianças em conflitos armados
• 2000 Aprovação do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança sobre a venda
de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil
• 2002 Criação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil
• 2003 Criação do Disque Denúncia Nacional (Disque 100)
• 2003 Assinatura do Plano Presidente Amigo da Criança
• 2003 Criação do Programa de Proteção às Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte
• 2004 Aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e instituição do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS);
• 2004 Entrega do I Relatório sobre a situação dos Direitos da Criança e do Adolescente no
Brasil (governamental) e do Relatório Alternativo (não governamental) ao Comitê dos
Direitos da Criança da ONU
• 2006 Criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE);
• 2006 Lançamento do Plano Nacional do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária
• 2006 Criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)
• 2006 Aprovação pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da
Resolução nº. 113
• 2008 III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes (Rio de Janeiro);
• 2008 Criação do Cadastro Nacional de Adoção (CNA)
• 2009 Criação do Observatório Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
• 2010 Realização da 1ª Conferência Nacional de Educação
Fonte: ECA 20 anos.
69
entidades que exercem a vigilância sobre a política e o uso de recursos públicos
para a área da infância e da adolescência, como os Conselhos de Direitos e Fóruns;
por fim, o eixo defesa reúne órgãos como Defensorias Públicas, Conselhos
Tutelares, Ministério Público e Poder Judiciário, com a função de intervir nos casos
em que os direitos das crianças e adolescentes são negados ou violados e o
controle por meio da fiscalização e avaliação do funcionamento do SGDCA,
integralmente detalhados no ECA.
Podemos dizer que o enfrentamento da violência doméstica de natureza
física e sexual contra as crianças e adolescentes só passou a ser contemplado
mais adequadamente na legislação brasileira a partir da Constituição Federal de
1988 e, em particular, do ECA de 1990.(Azevedo e Guerra (2015, p. 465). A
violência física ainda é a mais denunciada, pois é mais clara, enquanto a sexual
ainda é velada. Conforme ilustra o quadro a seguir:
Quadro 2. Tipo de violação por ano, por tipo de violação mais recorrente em
criança e adolescente.
70
Conforme o Disque 10018, órgão do governo federal, foram registradas
84.049 denúncias no ano 2017, referentes a violações dos direitos da criança e do
adolescente. Essas denúncias correspondem a 58,91% das violações,
demonstrando claramente que as violações de direito contra a criança e ao
adolescente crescem em ritmo acelerado em nossa sociedade. Essas informações
podem ser melhor visualizadas pelo quadro 3 a seguir:
18
O Disque Direitos Humanos – Disque 100 é um serviço de utilidade pública da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Lançado em 2003, é vinculado à
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que recebe demandas relativas a violações de Direitos
Humanos. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/06/disque-100-e-
mecanismo-de-protecao-dos-direitos-humanos
71
O quadro a seguir revela a relação do agressor com a criança/adolescente;
as denúncias apontam que 24,1% dos agressores são os pais ou padrastos,
indicando que o maior índice dos casos ocorre no ambiente familiar.
73
Quadro 5. Local da violação quando o agressor é conhecido.
74
Outro aspecto de extrema importância, é a revitimização. Os dados acima
demonstram que a violência doméstica é cometida pelo pai, no ambiente familiar e
as crianças e adolescentes são as vítimas que mais sofrem, por isso a chance da
recorrência é ainda maior, pois está dentro de um ambiente de relacionamento
pessoal e familiar, como demonstra o quadro 7.
76
Capitulo IV – Metodologia da Pesquisa: A pesquisa em Psicologia Social
77
O objetivo dessa pesquisa foi analisar, a partir do trabalho dos voluntários e
do funcionamento do CEDECA/ Osasco, sua articulação com o Sistema de Defesa
e Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes (SDGDCA), existente no
Município e, de forma indireta, a própria dinâmica do SDGDCA. A partir da dos
dados colhidos e dos resultados analisados, proporcionar discussões e reflexões
que possibilitem superar os limites institucionais, propor novas intervenções,
ampliar a discussão a respeito da violência sexual intrafamiliar, transpor saberes a
partir de uma práxis profissional consciente.
Nesta lógica decidimos nos aproximar da Instituição para compreender:
quais os instrumentos utilizados para o acolhimento e encaminhamento da família,
da criança e do adolescente no espaço institucional para a Rede de proteção
integral; como os abusos sexuais foram revelados; qual a relação dos técnicos com
as crianças e as famílias vítimas da violência doméstica intrafamiliar; e quais os
limites e potencialidades encontrados na Instituição frente a esse fenômeno social.
A abordagem na Instituição ocorreu a partir do convite de um dos gestores
responsáveis pela organização. Foi marcada uma reunião entre esse gestor, a
pesquisadora e outro gestor, no local onde as atividades são realizadas, para que
pudéssemos conhecer toda a estrutura da Instituição. Durante a reunião a
pesquisadora foi convidada pelos mesmos a fazer parte do corpo técnico como
voluntária. No decorrer da conversa foi esclarecido que a participação seria como
pesquisadora e não como voluntária. Sendo assim, a pesquisadora não poderia
assumir nenhuma função específica, porém com as rodas de conversas focadas na
discussão sobre violência doméstica intrafamiliar, abusos sexuais, a participação
poderia ser um canal para colaborar com a construção da práxis profissional.
Para que pudéssemos analisar o trabalho realizado no CEDECA e sua
inserção no contexto mais geral de atendimento a essa demanda, foi necessária a
realização de algumas atividades dentro e fora do espaço institucional, para que
pudéssemos ter um olhar ampliado sobre a questão da violência e a efetivação
das medidas protetivas em relação a ela, tais como: discussões de caso com a
equipe técnica, participação da pesquisadora nas reuniões de Rede para discussão
e reflexão sobre as práticas profissionais, participação na organização de eventos
voltados para a Criança e Adolescente, além da participação da pesquisadora
também como voluntária na Instituição estudada.
78
Nesse processo, os procedimentos utilizados para a coleta de dados foram:
entrevista, diário de campo e a observação-participante da pesquisadora no espaço
institucional, apoiada no Código de Ética Profissional do Assistente Social e nos
preceitos dos Comitês de Ética na Pesquisa. A observação possibilitou a participar
do cotidiano das voluntárias na Instituição.
A coleta de dados ficou sob a responsabilidade da pesquisadora, com a
autorização dos técnicos envolvidos e dos gestores responsáveis pelo CEDECA. E
ocorreu no próprio local onde as crianças e os adolescentes participavam das
atividades em contra turnos. Para a realização da coleta de dados foram explicados
os objetivos da pesquisa e solicitado aos participantes à assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
De forma sucinta procurei relatar a articulação da Rede de proteção, o
fortalecimento da política pública de enfrentamento a violência doméstica
intrafamiliar e a articulação dos profissionais envolvidos na demanda dos casos de
abusos sexuais infantil. Para preservar o sigilo os entrevistados tiveram seus
nomes trocados e receberam nomes fictícios.
No decorrer da análise a partir das falas dos participantes, os relatos foram
organizados em grandes categorias procurando estabelecer itens correlacionados
com a construção do eixo central da pesquisa sobre o desafio profissional frente as
concepções da criança, do adolescente e da família vítimas de violência doméstica
intrafamiliar, destacando o abuso sexual infantil.
A violência doméstica perpetrada contra criança e adolescente no interior da
família por ser um fenômeno complexo requer uma análise profunda e apropriada
da realidade em que esses sujeitos estão inseridos. É importante compreender
como ocorre a acolhida, o atendimento, o encaminhamento dessa demanda para a
Rede de Apoio a partir do momento que iniciam o trabalha na Instituição.
Neste contexto, focalizamos os fenômenos sociais relativos ao objeto de
estudo e realizamos a análise do material coletado. A partir das entrevistas, do
diário de campo, com os registros produzidos na observação participante, pudemos
apreender as características da dimensão subjetiva a respeito do abuso sexual
infantil intrafamiliar, bem como de suas famílias, envolvidas neste fenômeno.
79
4.1. Caracterização do Município de Osasco
20 Fonte IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Seção IBGE cidades- Disponível em
: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/osasco/historico. Acessado em 01/08/18.
21 Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano. Informações disponíveis em: https://www.e.
mplasa.sp.gov.br/RMSP
80
Mapa 1. Localização do Município de Osasco na grande São Paulo
81
No bairro do Munhoz Jr., as vielas, para quem quer se locomover rapidamente entre
o bairro e o Jd. Helena Maria ou Bonança são a salvação.
22
22 SSP/SP – Secretaria Segurança Pública, gráfico retirado da página on line- Osasco Notícias.
Acessado em 02/08/18. https://www.osasconoticias.com.br/noticias/policial
82
Entre os equipamentos de infraestrutura estão: nove Centros de Referência
de Assistência Social (CRAS), três Conselhos Tutelares, um Conselho Municipal
da Criança e do Adolescente (CMDCA), dois Centro de Referência Especializado
de Assistência Social (CREAS), trinta e cinco Unidades Básicas de Saúde (UBS),
três Unidades de Atendimentos (UPA), seis Pronto Socorro (PS), sete Hospitais,
duas Policlínicas23, uma Delegacia da Mulher, uma Delegacia de Idoso, dez,
Distritos Policiais24.
É neste cenário social que o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
(CEDECA) inicia as suas atividades. A Instituição CEDECA trata do enfrentamento
da violência infantil e enfrenta desafios para avançar e garantir os direitos das
crianças e adolescentes que são vítimas da violência doméstica intrafamiliar,
especificamente o abuso sexual e a inserção da família abusiva na Rede de Apoio.
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente foi fundado no
ano de 2015, sendo a mais nova das 31 unidades do CEDECA distribuídas em todo
o Brasil.
A instituição tem por finalidade a educação, cultura e a assistência social,
como instrumento de defesas e proteção da infância e adolescência, juventude,
incluindo a família caso necessite, em sintonia com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente – CEDECA, tem
por objetivo a constituição de espaço de convivência, formação para a participação
83
e cidadania, desenvolvimento do protagonismo e de autonomia das crianças e
adolescentes, a partir dos interesses, demandas e potencialidades dessa faixa
etária.
O CEDECA de Osasco não possui local próprio, as atividades são realizadas
no salão cedido pela Igreja Católica. No mesmo espaço interno tem a cozinha, dois
banheiros e duas salas. Na área externa tem a quadra de esportes, três salas e
uma dispensa de alimentos e produtos de limpeza.
O corpo técnico é formado por cinco voluntárias sendo: uma oficineira, uma
auxiliar de serviços gerais, ora ajuda na limpeza, ora na cozinha, uma cozinheira e
duas voluntárias que aparecem na instituição esporadicamente e auxilia na
cozinha.
Por não ter apoio financeiro de nenhuma Instituição governamental e não
governamental e nem verba estaduais ou municipais, o CEDECA sobrevive de
doações espontâneas de amigos ou dos voluntários que trabalham no projeto
social. A doação em dinheiro ou alimentos contribui para realizar o café da manhã
ou da tarde das crianças e adolescentes assistidos pelo projeto.
Ao participar do dia a dia do CEDECA fomos percebendo alguns desafios
que transitavam no cotidiano dos trabalhadores: a defasagem de profissionais para
lidar com a demanda, as dificuldades de efetivar os direitos das crianças vítimas de
violência doméstica, a falta de mecanismos legais e conhecimento para articular a
rede de proteção, invisibilidade do tema sobre a violência doméstica, falta de
coordenação. Sentimentos de solidão e incapacidade para a resolução de
determinadas realidades, uma vez que as mesmas ficavam sozinhas no CEDECA.
Dada a complexidade do tema violência doméstica intrafamiliar e
destacando o abuso sexual infantil, percebemos que esse tipo de violência não era
discutido abertamente nem com as crianças e adolescentes e nem com o corpo
técnico da instituição.
84
Esta afirmação citada acima, misturada à fala das trabalhadoras no campo
de pesquisa traduz a necessidade de rever concepções subjetivas a respeito do
abuso sexual infantil, pois elas contribuem para silenciar a violência doméstica
intrafamiliar e não permitem o avanço de políticas pensadas no coletivo para a
demanda. Gonçalves (2015) aponta que:
85
Capítulo V – Análise da Pesquisa
86
tipo específico de violência, a intrafamiliar? Por que os profissionais envolvidos não
alcançam a proteção integral para todos os membros da família?
A pesquisa de campo foi baseada em diferentes espaços, na Instituição
CEDECA, nas reuniões de Rede, participações nas reuniões para mobilizações nas
escolas e campanha nas ruas sobre o enfrentamento dos abusos sexuais infantis,
discussão de casos junto ao Conselho Tutelar, conversas com o gestor da
Instituição. Apresentamos a seguir os resultados, analisados em torno de algumas
categorias que expressam aspectos importantes para a caracterização dos
desafios presentes no enfrentamento dessa questão.
A família precisa ser um lugar harmonioso onde pai e mãe garanta o futuro
das crianças. E não um lar com brigas, de proteção e não de violência,
abuso sexual. Precisa dar o exemplo, amor ao invés de violência (Ester –
estagiária de psicologia).
88
Porque a demanda de violência contra criança e adolescente cresce a
cada dia? Porque os pais não assumem o seu lugar nessa relação de pais
e filhos. Os mesmos que prometem dar carinho, são os mesmos que
batem estupram, abandonam. (Ana – voluntária)
Por isso que precisamos ser duros quando a mãe não leva a criança
/adolescente ao psicólogo ou não adere a nenhum serviço oferecido pela
Rede de. Atendimento, porque se os pais não cuidam, a justiça cuida. (Ana
– advogada, e estagiários de psicologia – reunião multidisciplinar)
Eu vejo pelo meu marido, ele trabalha fora, mas dentro de casa! Hum...não
quer saber de fazer nada. Não vou eu, levantar cedo, fazer almoço,
colocar os meninos para ir para a escola. Dar um jeito na casa para ver se
ele faz. E tem coisas que homem não sabe fazer mesmo, e como não
tenho paciência, vou e faço. As coisas de casa prefiro que eu faça mesmo.
Vejo essas crianças que a mãe não comparece na reunião e as
professoras tem a obrigação de educar. Educação tem que vir de casa, a
mãe precisa educar. (Tania – voluntária – Cedeca)
89
precisa ser” resolvida” no ambiente familiar a violação dos direitos da criança e do
adolescente. Como demonstra a fala abaixo.
90
Como pudemos perceber ao longo da pesquisa, os membros do grupo
familiar em nenhum momento foram citados pelos profissionais ou voluntários
participantes da reunião de Rede como sujeitos de direitos, a ponto de serem
incluídos no fluxo de atendimento da Rede de Proteção. E quando foram citados foi
para evidenciar que os mesmos não cumprem “regras” propostas pelo programa.
Se chegou até aqui agora é com nós (sic), resolveremos essa situação.
Já que a família não deu conta de resolver, já que ocorreu a quebra de
vínculos familiares, somos responsáveis por essa criança. (fala recolhida
na Reunião de Rede)
92
No que consiste a prevenção no ciclo da violência contra criança e
adolescente, observa-se que de fato os profissionais desempenham um
papel de fundamental importância, e, por isso, devem estar inseridos em
um processo contínuo de formação permanente, qualificando o seu olhar,
sua escuta e suas ações (…) (ROCHA, 2015, p. 355).
93
Como vimos no decorrer desta pesquisa, na família, uma instituição
historicamente construída que teve como modelo a família burguesa, a partir da
estrutura patriarcal, a mulher e a maternidade são cada vez mais valorizadas na
sociedade, como um espaço de afeto e vivência harmoniosa. Pautado em
habilidades “naturais” do gênero feminino, o ser mãe torna–se o foco central para
o rompimento da violência doméstica intrafamiliar, principalmente do abuso sexual
infantil. Como demonstram as falas que destacaremos a seguir:
Como a mãe pode permitir que a criança fosse abusada pelo pai? Onde
está o seu amor pelo filho? A mãe deve defender a criança em primeiro
lugar, pois ela é indefesa e inocente, ela é adulta e sabe se virar.
(Margarida – voluntária do Cedeca)
Ou ainda
É pouca conversa com essas mães que encobrem os maridos, que são
coniventes com a situação dos abusos. É inaceitável essa situação, se
fosse com o meu filho esse cara iria ver só. O homem merece ser punido
criminalmente, e a mãe cuidar da família. Algumas sabem dos abusos
sexuais outras fingem que não sabem. (Denise – Conselheira Tutelar)
Coitadinhos das crianças, por descuido da mãe, elas sofrem esse tipo de
coisa. E depois sobra para nós tentarmos resolver os traumas que ficou
nela. (Simone- estagiária de psicologia)
95
na submissão da mulher e da criança frente ao papel masculino. Lembrando que o
papel social do ser masculino e do ser feminino foi construído e definido através de
ideologias patriarcais que posicionam o homem como racional, pensante, provedor
econômico e protetor do grupo familiar, enquanto o papel da mulher fica
estabelecido como cuidadora da família em seus mais diversos aspectos, além de
manter a harmonia do lar. Portanto:
Não adianta contar com o homem, ele não entende nada. Precisa mesmo
é ir trabalhar para dar o que comer aos filhos, eles são moles. A mulher já
nasceu forte, consegue cuidar dos filhos, trabalhar fora lavar, passar, e
ainda cuidar dos filhos. Precisamos nos valorizar e deixar de correr atrás
desses homens que não querem saber de nada. (Joana – voluntária
Cedeca)
Sou separada, na realidade fui traída. Meu esposo disse que me amava,
temos 03 filhos e quando vi estava sendo traída. Tive que me virar,
arregaçar as mangas e ir trabalhar. Trabalhei em casa de família, vendia
pão, faço artesanatos, hoje tenho meu emprego fixo. Mas não deixo de
lutar e nunca deixei de cuidar dos meus filhos. E como essas mães não
cuidam? Gostam de sombra e água fresca, gostam de ficar pedindo daqui
e ali. Porque não vão pegar uma casa para limpar? Uma roupa para
passar? (Amanda – voluntária – Cedeca)
96
atribuídos ao gênero feminino e masculino. A mulher ainda é vista pela sociedade
e por ela mesma como mãe, educadora, esposa, trabalhadora e “guerreira”
desconsiderando os cuidados paternos com o núcleo familiar:
Sou mãe “guerreira”, por isso não precisei de homem nenhum para criar
meus filhos. Sofri e sofro, mas vou à luta, não fico esperando nada de
ninguém. Porque essas mulheres que não têm nada, não levantam cedo
e vai trabalhar? Lavar a roupa para alguém, pegar uma faxina. Gostam de
ficar pedindo, que as pessoas atenham dó delas. Acomodadas isso é que
elas são. (Joana- voluntária Cedeca)
Sempre dei conta dos meus filhos, trabalhava, meus fios estudavam,
andavam limpos. Não deixava ninguém passar fome, não me respondiam,
porque batia mesmo, com cabo de vassoura, espada de são Jorge, mas
não havia um que me respondesse. Agora hoje os filhos falta pouco bater
nas mães, elas só querem saber de ficar no celular. Não arruma a comida,
não ve os cadernos dos filhos, nem se preocupa com eles. Olha aqui já
fizemos várias reuniões e convidamos as mães, mas pergunta se elas
vieram – Nenhuma – Não querem saber de nada não. (Joana, Marlene,
Sofia – voluntárias Cedeca)
A maternidade é algo que só pode ser sentido pela mãe. O homem não
terá esse privilegio nunca! Agora se ela gosta ou não da criança é outra
história. Se o pai ajuda ou não? Não sei. Mas nessas horas o amor de
mãe fala mais alto. Até a ligação entre mãe e filho é algo mágico que
somente a mãe sentirá. (Reunião multidisciplinar)
Eu vejo pelo meu marido, ele trabalha fora, mas dentro de casa!
Humm...não quer saber de fazer nada. Não vou eu, levantar cedo, fazer
almoço, colocar os meninos para ir para a escola. Dar um jeito na casa
para ver se ele faz. E tem coisas que homem não sabe fazer mesmo, e
como não tenho paciência, vou e faço. As coisas de casa prefiro que eu
faça mesmo. Vejo essas crianças que a mãe não comparece na reunião
97
e as professoras tem a obrigação de educar. Educação, cuidados com os
filhos tem que ser a mãe, homem só serve para bater, eles não têm
paciência. (Tania – voluntária – Cedeca)
98
A mãe, por sua vez, também vive uma situação de muita confusão e
ambiguidade diante da suspeita ou constatação de que o marido ou
companheiro abusa sexualmente da filha. Frequentemente nega os
indícios, denega suas percepções, recusa-se a aceitar a realidade da
traição do marido. Vive sentimentos ambivalentes em relação à filha: ao
mesmo tempo em que sente raiva e ciúme, sente-se culpada por não
protegê-la. Na verdade, ela também é vítima, vítima secundária, da
violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma
forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração
diante da ameaça de desmoronamento da unidade familiar e conjugal.
Pode acontecer também estar a negação da mãe relacionada com uma
cumplicidade silenciosa, muito frequente em casais com conflitos sexuais,
onde a criança ocupa um lugar (função sexual) que não é dela,
amenizando assim o conflito conjugal. Em qualquer das situações, o
desmentido materno, a afirmação de que nada aconteceu, é o pior que
pode acontecer a um adolescente que denuncia o abuso sexual
(ARAÚJO, 2002, p. 7).
99
Quando as mães não conseguem reconhecer o abuso, precisamos
realizar um trabalho com a negação. O trabalho da negação geralmente
leva a mudanças psicológicas e interacionais que possibilitam à mãe
reconhecer e acreditar na criança, e tornar-se protetora. O trabalho da
negação também pode mostrar que não é possível nenhuma mudança e
que a criança não deve ficar com a mãe, quando o abusador entrar
novamente no cenário familiar. No trabalho com a negação, precisamos
tratar de todas as ansiedades e possíveis desastres, que tornam
impossível para a mãe enfrentar a realidade do abuso sexual da criança
(FURNISS, 1993, p. 174).
Badinter (1985) em sua obra, “O mito do Amor materno”, faz alusão a essa
falsa ideia de que somente a mulher é responsável pelos cuidados da criança e
adolescente, da união do lar, pela boa ou má administração do ambiente privado.
A ideia da maternidade reforça a responsabilização e culpabilização da mulher pela
falta de cuidado com a prole; é uma ideia que está naturalizada na subjetividade de
cada profissional que atende essa demanda,
100
Inspirados em Saffioti e Almeida (2004), Azevedo e Guerra (1999),
Saraiva e Mandelbaum (2017, p.166), afirmam que “(…) é no interior das relações
que são constituídas as relações de poder, controle e submissão que contribuem
com a manutenção da violência doméstica sexual intrafamiliar.” não temos dúvida
de que a discussão sobre violência doméstica intrafamiliar é perpassa pela questão
de gênero. Portanto, a família faz parte deste processo, são atores ativos ou
passivos nesta relação intrínseca em que sentimentos, sentidos e significados se
misturam.
102
5.2. A Rede somos Nós! A complexidade do trabalho com as famílias vítimas
de violência doméstica frente ao fenômeno do abuso sexual infantil
intrafamiliar.
103
está inclusa neste combate, no enfrentamento do abuso sexual infanto-
juvenil. (José – gestor do Cedeca)
104
O nosso atendimento está voltado para os pacientes que chegam até nós,
criança e adolescente. O nosso estágio está voltado para esse tipo de
público. Quando é necessário, atendemos a mãe, para uma conversa e
não para sessões de psicoterapia. Agora, família, nunca atendi. E também
não é essa a proposta. O nosso supervisor deixou claro qual o que
poderíamos fazer ou não. Cinco sessões por pessoa. (Cintia- estagiária
de psicologia)
Após cinco sessões, se o paciente demonstrar que está bem, damos alta.
Os nossos atendimentos são acompanhados de relatórios e a carteirinha
que fizemos para cada paciente. Caso o mesmo falte em duas sessões,
entramos em contato com o Conselho Tutelar informando a sua ausência
nas sessões. As sessões duram em média 45 minutos. E acho que alguns
casos cinco sessões são suficientes sim. (Marilene – estagiária de
psicologia)
105
e não damos conta de tudo. Porém o que estiver em nosso alcance será
feito. (Fátima – estagiária de psicologia)
106
E continuamos a conversar com o gestor da Instituição para tentar
compreender porque as vítimas de violência doméstica, especificamente abusos
sexuais, não eram encaminhadas para a Rede Proteção:
107
dele. E que o problema era entre ela (mãe) e o pai dele. E disse que a
mãe não ouvia o que ela dizia, queria ir embora e ficava pedindo o papel
de comparecimento na consulta. Que a mãe era oportunista queria
somente o dinheiro da pensão, por isso ela suspendeu o atendimento.
(pesquisadora) Porque não encaminhou a família para atendimento
terapêutico familiar? (estagiária) não era necessário, pois já havia
percebido que não tem o que fazer naquela situação, não é uma questão
que o psicólogo possa ajudar, é um caso de alienação parental.
(pesquisadora) Sim, informações vieram descritas no documento
encaminhado pelo Conselho Tutelar, mas e em relação ao menino será
que ele consegue administrar sozinho as informações que você orientou?
E a mãe, as filhas? (estagiária) Não sei por que ele não me respondeu
nada, somente ficou ouvindo. A menina não falou nada e eu não evitei
falar com ela porque tem 10 anos, ainda é criança e a outra era bebe de
colo. (Marilene – estagiária de psicologia).
108
documento. Ética. (pesquisadora) Tenho ciência da questão do sigilo, até
porque a minha profissão como assistente social, também temos um
Código de Ética que trata essa questão, porém é necessário que o mínimo
seja descrito no relatório para a discussão com outros profissionais
envolvidos com a intervenção da demanda. Mas como fica a discussão
dos casos com a equipe multidisciplinar? (Marilene – estagiária de
psicologia). Verificarei e depois conversamos E assim a nossa conversa
encerrou porque a mesma foi embora e não tivemos acesso às
informações nem verbal e nem descrita por parte da profissional.
Concordamos com Furniss (1998), Gabel (1997), Dalka e Vecina (2002) que
comungam da mesma ideia de Antônio (2002) ao descrever que:
109
compreensão deslegitima a inclusão de outros profissionais para o
acompanhamento integral e articulado no âmbito da Rede de proteção.
110
demanda que é apresentada aos profissionais existentes; a rede não estar
organizada no sentido de garantir o feedback das ações e encaminhamentos; ou,
limites em relação ao conhecimento e entendimento do papel e atribuição de cada
instituição, bem como a falta de troca de informações entre a rede com relação ao
acompanhamento dos casos. E, de forma geral, a falta de apoio do Estado com
Políticas Públicas mais eficientes.
111
O CEDECA é um local que atende gratuitamente, não nos cobra nada.
Conhecemos o trabalho, conhecemos o João e vocês também, sabemos
do trabalho dele como ex-conselheiro tutelar, que mesmo sem verba
atende abrigos que recebem ajuda da Prefeitura. Utilizam os espaços que
nos restam com os seus atendimentos, sabemos que às vezes o valor
repassado não seja o suficiente, mas nós do Conselho Tutelar temos o
CEDECA como um dos nossos apoiadores e mesmo assim é insuficiente.
Sabemos do furo da Rede e por isso corremos atrás de outras
possibilidades. (Sofia – advogada – reunião de Rede)
Como podemos ter uma Rede de apoio se nos falta apoio do Estado e das
Instituições. A cada dia cresce o número de casos de violência e como
damos conta? Não tem como dar conta de tudo, a nossa prioridade é a
criança que sofreu o abuso sexual ser atendida, precisamos fazer a nossa
parte e o Estado, os Órgãos competentes a parte deles. Não conseguimos
encaminhar alguns casos para o CREAS ou para outros espaços, então
recorremos às parcerias com as Ongs que estão ao nosso redor para nos
ajudar. Independentemente se estão ou não no fluxo de atendimento.
Precisamos atender a nossa demanda de alguma de alguma forma.
(Renata- conselho Tutelar)
Em qual política o CEDECA está ancorado? Pois sem saber qual a política
fica difícil de fazer parte da Rede E vocês estagiárias sabem? Porque é
importante saber como agir, como atender a partir do momento em que
souber com qual política está trabalhando. E outro ponto importante é o
acolhimento. Pelo que percebi ocorre somente os atendimentos com os
usuários, mas e o acolhimento como fica? Os relatórios produzidos nesse
atendimento. A discussão ode casos, a demanda. Acho que é preciso
reavaliar se realmente essa forma de agir está ajudando. (Elaine –
assistente social- Núcleo de Atendimento à criança vítima de abuso
sexual)
113
Entramos no fluxo de atendimento, porque sabíamos que precisavam de
profissionais para atender as crianças e adolescentes vítimas de abuso
sexual. E realmente percebemos o quanto a demanda é grande, é preciso
de mais profissionais que atendam esses casos. Desde quando ajudo no
CEDECA como voluntária vejo que a demanda somente cresce. Hoje
atendemos até crianças de abrigos, que tem a ajuda do Governo. Porque
não consegue vaga com a psicóloga na Rede de proteção (Ana –
Supervisora de estágio)
114
Hoje a Rede de proteção convive em com um sistema cíclico de
pragmatismo e imediatismo porque o foco neste momento está em “dar conta” da
demanda:
116
Ações isoladas aparecem como saídas estratégicas para a crescente
demanda dos casos de violência doméstica, práticas que supostamente auxiliam
na “diminuição da demanda”, porém atrapalham o andamento do fluxo de
atendimento, não efetivam os direitos das vítimas e não contribuem para a
elaboração de políticas de enfrentamento.
117
Nós atendemos orientadas pelo nosso supervisor de estágio, quando vejo
que é uma situação de violência, não prossigo. E passo os dados para
outra pessoa. O nosso trabalho é bem consciente, respeitoso e ético.
(Simone – estagiária de psicologia)
Não podemos esquecer que existe um fluxo a ser seguido, políticas que
garantem o atendimento das crianças. Sei que aqui todos têm as melhores
intenções, sabemos que o objetivo é a proteção da criança, porém não
podemos desarticular a Rede. (Joana – CREAS)
119
trabalhar com a demanda, definem algumas estratégias de ação e enquadram os
sujeitos nessa nova metodologia de trabalho.
A Rede continua sendo a saída para o atendimento dos casos de violência,
especificamente os abusos sexuais. A questão torna-se mais complexa quando os
abusos ocorrem no interior da família, é preciso (re) pensar as práticas evitando a
invisibilidade do fenômeno, por isso:
120
apreendendo a dinâmica familiar e de que maneira a violência foi instaurada no
seio da família25.
25
Conforme Furniss, “ (…) Os objetivos e as etapas que constituem a base desse tipo de intervenção
são bloquear a continuação do abuso sexual, estabelecer os fatos do abuso como uma realidade
familiar compartilhada, assunção de responsabilidades pelo abuso e trabalhar com as díades
mãe, criança e pai criança e os paios como parceiros” (1993, p. 116).
121
Muitas vezes observa-se o despreparo dos profissionais da área da saúde,
assistência social, ora pela atuação limitada em relação à proteção da criança, ora
pela falta de acolhimento da vítima e da família, gerando intervenções inadequadas
colaborando com a manutenção da violência. Investir na qualificação dos
profissionais seria uma das saídas e a outra seria o profissionalismo sem
julgamento, cada caso deve ser tratado como único, não pode ser igualado a
nenhum outro por mais parecido que seja. (…) A intervenção descoordenada
geralmente conduz ao fracasso da intervenção, com traumatização secundária da
criança e da família (FURNISS,1993). O autor adverte ainda sobre a necessidade
de distinção entre sigilo e segredo na atuação profissional em casos de abuso
sexual de crianças.
O abuso sexual infantil intrafamiliar é visto como o mais perverso, por isso
para potencializar a importância de incluir a família nos atendimentos interventivos
para compreender a dimensão subjetiva a partir dos sujeitos ativos ou passivos
participantes na dinâmica familiar, é preciso aproximar-se da realidade para melhor
apreender a sua base material, objetivando compreender como esse tipo de
violência é estruturado no ambiente familiar.
Como expõe Bock (2003):
122
Torna-se cada vez mais urgente criar estruturas de tratamento para as
pessoas que abusam sexualmente, na comunidade e nas prisões, de
modo a podermos transformar uma Intervenção Punitiva (…) em
Intervenções Terapêuticas. (…) (FURNISS,1993, p. 268).
Diante deste fato cabe ressaltar que cada caso de violência doméstica
intrafamiliar, deve ser analisado de forma única, individual e peculiar porque cada
núcleo familiar tem suas características próprias. E aprofundar essa discussão
acerca das famílias e sua dinâmica é desenvolver ações preventivas e não somente
estabelecer formas punitivas.
Os abusos sexuais intrafamiliares são diferentes dos abusos sexuais
extrafamiliares e precisam ser vistos de forma diferente, isto quer dizer, utilizar
diferentes manejos para a intervenção. No caso do abuso sexual intrafamiliar,
cometido pelo pai, a criança necessariamente convive todos os dias com o
agressor. Existe uma dinâmica que envolve a violência sexual infantil.
123
melhores de trabalho aos trabalhadores que lidam com essa demanda e com este
fenômeno repetitivo, cansativo e complexo.
E as políticas públicas necessariamente precisam estar atentas a esses
detalhes específicos. Para pensar em enfrentamento e avanços. O desafio é
levantar alguns questionamentos interventivos que possibilitem a e a inclusão do
abusador no ciclo das Políticas Públicas, contribuindo com a diminuição da
violência doméstica intrafamiliar.
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
126
família. Deve-se levar em consideração a singularidade da experiência de cada
vítima, bem como a história de vida da criança, considerando também o
funcionamento familiar, o contexto em que está imerso o ciclo da violência.
Como apontamos anteriormente e de acordo com Furniss (1993), Ferrari
(2013) e Azevedo e Guerra (2015) no exercício da prática profissional, trabalhar
com questões que envolvam criança ou adolescente e abuso sexual ainda se
apresenta como um tabu na nossa sociedade.
Nesta perspectiva a violência doméstica intrafamiliar trouxe alguns desafios
para os profissionais que lidam com a demanda de crianças vítimas de abusos
sexuais no ambiente familiar, pois o profissional traz consigo concepções subjetivas
e conservadoras que refletem em suas práticas ao lidar com este tipo específico de
demanda.
Ressaltamos que nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, é
imprescindível conceber a família em sua totalidade, para não reforçar as
concepções de pai abusador, criança vítima e mãe omissa e ou negligente e não
excluir os demais sujeitos da família do fluxo de proteção integral.
Ao mesmo tempo, presenciamos nas reuniões de rede os problemas
existentes no decorrer do processo para efetivar os direitos protetivos da criança e
do adolescente vítimas da violência doméstica intrafamiliar, o que torna mais difícil
a inclusão dos responsáveis no SGDCA. Então qual o caminho a seguir para a
inclusão desses sujeitos no sistema de proteção?
Nesse momento da análise essa díade exclusão/inclusão será
compreendida como um processo multidimensional, no qual a dimensão subjetiva
está presente intrinsecamente; ligada a concepções individuais referentes aos
lugares sociais ocupados por cada sujeito do núcleo familiar. É neste emaranhado
de aspectos individuais e sociais que está localizado o fenômeno da violência
doméstica.
Sawaia (2001) em sua obra” As artimanhas da Exclusão”, tem o intuito de
ampliar a visibilidade social dos aspectos subjetivos, através de diversos prismas
127
presentes nas estratégicas históricas que vieram tecendo artimanhas de exclusão26
no cotidiano, nas relações sociais e nos modos de subjetivação.
Alerta que é preciso olhar para além do indivíduo. Observando que as
práticas violentas são, aparentemente individuais, mas não podemos perder de
vista que estamos inseridos em uma sociedade violenta e desigual.
26 Grifo nosso.
128
vez não responsabilizado, o agressor pode pôr em risco outras crianças e
adolescentes.
A ênfase não está em responsabilizar o indivíduo, em detrimento do contexto
social, mas trabalhar com essa articulação. O Estado deve criar e desenvolver
programas que contemplem esses aspectos, ou seja, cabe aqui refletir sobre os
métodos de intervenção e como estão ou não oportunizando meios para que os
sujeitos transformem sua história. Como destaca Gonçalves (2015):
129
A comunicação não deve ser esquecida, uma vez que pode traduzir e conter
características do que se passa naquele sistema. Não podemos deixar de citar o
ECA como um documento eficiente e importante no enfrentamento da violência
infantil intrafamiliar, sem esse documento como estariam as crianças hoje?
Sabemos que a nossa sociedade avançou consideravelmente em
dispositivos e programas voltados para a criança e adolescente. Mas não podemos
parar. A nossa práxis deve ser construída coletivamente, a construção precisa ser
plural, com vistas a possibilitar a constituição de novas subjetividades, que possam
redimensionar os pensamentos naturalizados e reprodutores da ideologia, em prol
da elaboração de a novas estratégias de enfrentamento, de um novo
posicionamento ético político frente à violência doméstica intrafamiliar.
Durante o desenvolvimento da análise me deparei com outros
questionamentos interiores:
E a questão do abusador como fica diante de concepções que delimitam o
seu acesso ao Sistema de Garantia de Direito? Como fazer? Por onde caminhar?
É necessário aprofundar essa investigação para que amanhã, não seja esta
pesquisadora a corroborar com a cultura da violência e a exclusão do sujeito.
130
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140
ANEXO I
(TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO)
141
TERMO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
_____________________________
Assinatura do Participante
_____________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável
Caso não saiba assinar.
142