Tese 1 Teodoro

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO- PUC - SP

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

CARLA CRISTINA TEODORO

O grito do Silêncio: abuso sexual infantil, proteção integral e família


A Violência Doméstica Intrafamiliar e os desafios do Sistema de Garantia de
Direitos

SÃO PAULO
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO- PUC - SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

CARLA CRISTINA TEODORO

O grito do Silêncio: abuso sexual infantil, proteção integral e família


A Violência Doméstica Intrafamiliar e os desafios do Sistema de Garantia de
Direitos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção de título de Mestre em Psicologia Social, sob a
orientação da Profa. Dra. Maria da Graça Marchina
Gonçalves.

SÃO PAULO
2019
BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Profa. Dra. Maria da Graça Marchina Gonçalves
Orientadora

______________________________________________________
Profa. Dra. Bader Burian Sawaia
Membro da Banca

______________________________________________________
Profa. Dra. Rosiran Carvalho de Freitas Montenegro
Membro da Banca
“Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em
silêncio sobre as coisas que importam”.
Martin Luther King.
AGRADECIMENTO A CAPES

Agradeço a CAPES, por retornar à educação o valor arrecado em imposto e


perceber a importância em manter as pesquisas científicas. Agradeço a
possibilidade da construção dessa dissertação através do apoio financeiro da
referida instituição.
AGRADECIMENTOS

Enfim mais um trabalho realizado! Escrever é a possibilidade de ampliar


horizontes e descortinar o “escondido”.
Agradeço a minha família: Sueli, Marcelo, Emerson Junior e Daniele que
sempre foi fonte inspiradora de força, afeto e determinação. É para onde olho
quando preciso reabastecer as minhas forças. Mesmo sem entender porque
“escreve” tanto, apoiou em todos os momentos essa construção, meus sobrinhos.
A nossa força é uma das minhas motivações. Amo vocês família!
Agradeço as pessoas que confiaram nesta pesquisadora, ao abrir as portas
da Instituição: Claudino, Gilberto, Dona Maria, Antônia, Solange, Simone e as
crianças que participam do Projeto CEDECA.
E como não agradecer aos novos colegas que encontrei na PUC, nos
corredores e nos cafés da vida que contribuíram com discussões, reflexões e
articulações de luta: Aline Matheus Cinara, Marcus, Gláucia, Laís, Regina, Thiago,
companheiras do Programa da Psicologia da Educação; alguns marcam mais
nosso caminho: Gislene (Gi) e a Aline Pereira que pelo afeto a nossa amizade
cresceu e tomou forma. Obrigada por tudo.
À Marlene, secretária do Programa de Pós-graduação, pela atenção,
gargalhadas e disponibilidade em nos ouvir e orientar.
Muito obrigada Prof. Dra. Graça por acreditar no meu potencial e de forma
tão afetuosa e firme, acolheu minhas ansiedades, dúvidas e inseguranças,
apoiando-me nas horas difíceis e sempre afirmando: “Calma, você viu e leu muita
coisa”. Te confesso que estava perdida mesmo! A você, o meu eterno
agradecimento!
Aos amigos e companheiros do NUTAS, nutenses e nutellas, obrigada pelo
respeito e o saber compartilhado: Andressa, Andreia, Bia, Camilla, Flávia, Graça
Lima, Lidiane, Mercedes, Monica, Myrte, Natache, Priscila, Sofhia, Sol, Winnie,
Andrei, Jean, Leandro, Guilherme.
À Profª. Dra. Bader Sawaia, Profª.Dra. Rosiran Carvalho, Profª. Dra.Elisa
Zaneratto e Prof. Dr. Claudinei que prontamente aceitaram o desafio de participar
da minha banca.
Aos amigos que me ensinam todos os dias que vale a pena ter amigos:
Miriam, Fernanda, Rose Bigueti, Thais, Hosana, Lucinéia, Luciane, Cidinha, Prof.º
Rodrigo, Prof.º Shinobo, Prof.ª Cláudia, Profª. Toninha enfim para não esquecer
ninguém, a todos os meus amigos e amigas.
Agradeço a Deus por ter propiciado esse tempo de desafio, alegrias e
surpresas. Obrigada!
TEODORO, Carla Cristina. O grito do silêncio: abuso sexual infantil, proteção e
família. A Violência Doméstica Intrafamiliar e o Sistema de Garantia de Direitos.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2019.

RESUMO

A presente pesquisa discute a violência doméstica perpetrada contra a


criança e ao adolescente, destacando o abuso sexual infantil, tendo como pano de
fundo o ambiente familiar e analisa aspectos do atendimento das vítimas e das
famílias na Rede de Proteção Integral. O estudo baseado na psicologia social
possibilitou a análise da construção histórica dos conceitos de família e de criança,
bem como os papéis sociais ocupados por cada membro da família na sociedade
e como essas concepções são reproduzidas na realidade, trazendo implicações
para o enfrentamento das situações de violência. O abuso sexual é um fenômeno
social multifacetado e preocupante, pois não é algo natural; sua delimitação,
expressão e as formas de cuidado definidas são socialmente construídas,
revelando aspectos ideológicos na sua articulação com aspectos econômicos,
sociais, culturais e políticos. Para viabilizar essa pesquisa realizamos a coleta de
dados a partir da observação participante na Instituição CEDECA, localizada no
Município de Osasco. A pesquisadora esteve presente em espaços voltados ao
atendimento dessa questão, o que permitiu apreender como a complexidade do
fenômeno interfere nas práticas dos profissionais que lidam cotidianamente com
essa demanda e identificar a forma como, além da vítima, a família é considerada
no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos. As informações coletadas
contribuíram para identificar aspectos presentes no atendimento a crianças e
adolescentes vítimas dessa violência: as fragilidades no fluxo de atendimento, a
desarticulação da Rede, a dificuldade de inserção da família no sistema protetivo e
a preocupação dos profissionais em proteger a criança vítima de violência.
Ressaltamos a importância de futuras discussões acerca de intervenções que
compreendam a família na sua integralidade para avanços na construção de
políticas de enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar.
Palavras-chave: Criança/ Adolescente. Família. Políticas Públicas. Violência
Doméstica.
TEODORO, Carla. Cristina. The cry of silence:
child sexual abuse, protection and family. Domestic Violence in the Family and the
System of Guarantee of Rights. Dissertation (Masters in Social Psychology) –
Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2019.

ABSTRACT

This research discusses over domestic violence committed against children and
adolescents, highlighting child sexual abuse, with the family environment as
background, which makes it difficult to insert these families into the Integral
Protection Network. The studies based on social psychology made it possible to
analyze the historical construction of family and childhood concepts, also the social
roles occupied by each family member in society and how these conceptions are
produced in reality. Sexual abuse is a multifaceted and worrisome social
phenomenon, since it is not a natural event, but a social expression constructed
ideologically based on economic, social, cultural and political aspects. In order to
make this research feasible, an observation/participant survey was conducted at the
CEDECA Institution located in Osasco. The researcher went to several places,
which allows us to understand the complexity of the phenomenon that interferes in
the practice of professionals who deal daily with this demand, weakening the care
of the family that is victim of domestic violence in the Rights Guarantee System. The
collected information contributed to the analysis of the narratives, which identified:
weaknesses in the flow of care, network disarticulation, difficulty in inserting the
family into the protective system and the concern of professionals on protect the
child victim of violence. We emphasize the importance of future discussions about
interventions that comprehend the family as a whole to improve the construction of
policies to combat domestic violence intrafamily.

KeyWords: Child/ Adolescent. Family. Public Policy. Domestic Violence.

4
Abreviaturas e Siglas

CEDECA Centro de Defesa da Criança e do Adolescente

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

NUTAS Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho e Ação Social

ONU Organização das Nações Unidas

SGDCA Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância

VDCA Violência Doméstica contra Criança e Adolescente

5
LISTA DE QUADROS e MAPAS

Quadro 1. Contexto Histórico sobre as Políticas Públicas de enfrentamento


à Violência Doméstica Infantil. (período de 1990 – 2010) ………………. 68 – 69

Quadro 2. Tipo de violação por ano, por tipo de violação mais recorrente em
criança e adolescente. ……………………………………………………………….70

Quadro 3. Tipo de Violação por Grupo.………...................................................71

Quadro 4. Vínculo/Grau de parentesco do agressor com a vítima segundo a


faixa etária…………………………………………………………..………………..…72

Quadro 5. Local da violação em que o agressor é


conhecido……….............................................................................……….……..74

Quadro 6. Local da violação em que o agressor é


desconhecido…………..............................................................................………74

Quadro 7. Reincidência de abusos sexuais quando o agressor é


conhecido……...…………………………………………………………………….….75

Quadro 8. Ranking dos casos de roubo nos Municípios de Osasco..............82

MAPAS

Mapa 1. Localização do Município de Osasco no Estado de São Paulo........81

Mapa 2. Localização do Bairro de Munhoz Junior em Osasco.......................82

6
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9

Capitulo I – A construção social e histórica da criança e da família: conceitos a


serem reconstruídos. .......................................................................................... 15

1. Família e Criança: a importância da desnaturalização dos conceitos ......... 15

1.1. As transformações ocorridas ao longo da história: a visão histórica da família


e do Estado. ....................................................................................................... 17

1.2. Criança e adolescente: aspectos históricos e breve trajetória do histórico


sobre abandono, negligência e omissão. ........................................................... 26

Capitulo II – A complexidade do fenômeno social da violência e suas diversas faces:


definindo a terminologia ..................................................................................... 33

2. Refletindo sobre a Família, a Sociedade, a Violência e as práticas abusivas. 33

2.1. Definindo a terminologia: Abuso ou Violência - concepções a serem


aprofundadas. .................................................................................................... 38

2.2 A culpa, o medo e o silêncio: Por que o segredo não é revelado? E como as
práticas abusivas são mantidas por tanto tempo? ............................................. 47

2.3. E quando o segredo é revelado: como romper com o pacto do silêncio. .... 51

Capitulo III - Criança e adolescente: do controle e tutela à concepção de proteção


integral. .............................................................................................................. 54

3. Da “invisibilidade” social à construção dos direitos da criança e do adolescente.


........................................................................................................................... 54

3.1. O caminho das intervenções nacionais e internacionais em defesa dos direitos


da criança e do adolescente............................................................................... 59

3.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Sistema de Garantia de Direitos: a


promoção e a proteção como garantias de enfrentamento à violência doméstica
intrafamiliar. ........................................................................................................ 64

Capitulo IV – Metodologia da Pesquisa: A pesquisa em Psicologia Social ........ 77

4. Caracterizando o Campo de Pesquisa ........................................................... 77

4.1. Caracterização do Município de Osasco ..................................................... 80

7
4.2. A experiência do Centro de Defesa da Criança e Adolescente no Bairro Munhoz
Junior: Desafios e Limites no território frente ao enfrentamento contra a Violência
Sexual ................................................................................................................ 81

Capítulo V – Análise da Pesquisa ...................................................................... 86

5. Análise dos Resultados .................................................................................. 86

5.1. Família: espaço de risco ou proteção? Como esses conceitos interferem na


visão dos profissionais que lidam com a complexidade da violência doméstica
intrafamiliar ......................................................................................................... 87

a) As concepções do conceito de família entre más e boas e os empecilhos para


na efetivação de direitos na Rede de proteção integral. .................................... 87

b) A concepção a respeito da maternidade como forma de enfrentamento do abuso


sexual infantil intrafamiliar. ................................................................................. 93

5.2. A Rede somos Nós! A complexidade do trabalho com as famílias vítimas de


violência doméstica frente ao fenômeno do abuso sexual infantil intrafamiliar. 103

a) Atendimento Psicológico: fragmentação da Rede nos atendimentos a vítimas


de violência doméstica intrafamiliar.................................................................. 103

b) A Desarticulação no fluxo de atendimento: uma rede de difícil acesso. ...... 111

c) Uma Rede sem infraestrutura: quais as estratégias para tentar tapar os “furos”
da Rede. ........................................................................................................... 114

5.3. Como desatar os nós? Possíveis caminhos para reflexão e discussão de novas
estratégias e elaboração para o enfrentamento da Violência Sexual Intrafamiliar
......................................................................................................................... 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 125

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 131

FONTES ELETRÔNICAS................................................................................. 139

ANEXO I ........................................................................................................... 141

8
INTRODUÇÃO

A aproximação e motivação com o tema da violência doméstica iniciou-se a


partir das reflexões, dúvidas e indignação que norteavam a minha permanência
como voluntária em uma Instituição religiosa com famílias em situações
vulneráveis. Ao me deparar com crianças, adolescentes e mulheres que sofriam
abusos sexuais, decidi no mesmo ano iniciar a graduação em Serviço Social para
tornar a minha prática assistencial em práxis profissional.
Escolhi a profissão de Assistente Social primeiramente na intenção de ajudar
aquelas famílias a sair daquele cenário de violência que viviam cotidianamente e,
juntamente com elas, encontrar formas de enfrentar essa demanda e acalmar
minhas inquietações pessoais.
No Serviço Social encontrei motivos para aflorar e aprofundar o senso crítico,
o meu aprendizado foi tomando corpo e forma para entender como trabalhar com
esse fenômeno social. Ao longo dessa trajetória fui construída, desconstruída e
reconstruída: do meu olhar simplista, pragmático, culpabilizador e assistencialista
para um olhar humano, reflexivo, crítico que movimentou as minhas ações de
enfrentamento a partir do conhecimento científico e da práxis profissional
consciente.
Durante essa trajetória entre graduação, trabalhos voluntários, estágios, foi
possível perceber o quanto a demanda resultante da violência doméstica, quer seja,
sexual, psicológica ou física é crescente e por vezes invisíveis aos olhos da
sociedade. A partir deste trabalho com famílias pude observar que, além das
vulnerabilidades econômicas e sociais presentes no cotidiano dessa instituição,
havia outro ponto a ser analisado vinculado a elas, mas com especificidade: a
violência doméstica intrafamiliar. As mulheres, crianças e adolescentes eram as
que mais relatavam as ocorrências das práticas violentas perpetradas por homens
contra as mesmas no interior das famílias.
As violências físicas são as mais visíveis e aparentemente as únicas que
ocorrem no interior da família. Mas ao aprofundar as questões de violência nas
relações familiares, para apreender a dinâmica que circulava entre os membros da
instituição, pude compreender as diversas dimensões que vão além da violência
física. Existe a violência psicológica e a violência sexual. No transcorrer deste
9
processo, a problemática do abuso sexual infantil adquiriu relevo frente às demais
possibilidades de investigação. Segundo Azevedo (2009), “a violência denunciada
constitui a ponta do iceberg de violências domésticas cometidas contra crianças e
adolescentes em qualquer sociedade”.
Diante dessa realidade voltei o meu olhar para a violência sexual infantil e
comecei a estudar com mais afinco sobre essa temática, para que pudesse
responder algumas perguntas que borbulhavam dentro de mim, perguntas que
circulam no senso comum: Como uma mãe pode permitir que acontecesse tal
violência com a sua filha? Porque não denuncia esse “monstro” que cometeu tal
crime? Ela também é conivente, omissa e deve ser responsabilizada por tal atitude
e ainda aceita essa situação? E assim no decorrer dos anos essas eram as minhas
indagações e limitações.
A violência contra criança e adolescente não é um fenômeno natural, e sim
uma expressão da construção social das relações de gênero, do amor romântico,
da desigualdade, e o resultado da contraposição e articulação entre as
subjetividades existentes, que muitas vezes legitimam consciente ou
inconscientemente as violências ocorridas nas relações familiares, baseadas que
estão, essas subjetividades, entre outros elementos, no papel que cada membro
ocupa nesta relação. Nesse sentido, Lane (2006) afirma:

(…) constataremos que nossos papéis e a nossa identidade reproduzem,


no nível ideológico (do que é “idealizado”1, valorizado) e no da ação, as
relações de dominação, como maneiras “naturais e universais” do ser
social, relação de dominação necessária para a reprodução das condições
materiais de vida (…) (LANE, 2006, p. 23).

Como a agressão ocorre no interior da família é a menos denunciada pela


vítima, porque é considerada um segredo e protegido pelo “respeito à intimidade”,
aprisionando o grupo familiar em uma relação submissa, silenciando a violência.
É preciso considerar o contexto em que se constitui a subjetividade, para
compreender suas características e manifestações. Segundo Bock (2003):

1 Grifos do autor.
10
É preciso compreender as relações sociais e as formas de produção da
vida como fatores responsáveis pela produção do mundo psicológico. É
preciso incluir o mundo cotidiano e o mundo cultural e social na produção
do mundo psicológico (…) (BOCK, 2003, p. 27).

Apoiada nesta lógica, a pesquisa realizada para meu trabalho de Conclusão


de Curso foi baseada no abuso sexual infantil intrafamiliar. O objetivo era entender
como a violência ocorria no interior das famílias e como esses abusos eram
mantidos e quais eram os seus reflexos na sociedade. No avanço dos estudos fui
percebendo o quanto a família também é refém de uma construção ideológica,
plena de símbolos e dificilmente se afastará dos contornos culturais e sociais
presentes historicamente no bojo da nossa sociedade, os quais,
contraditoriamente, naturalizam esses processos.

(…) tudo o que diz respeito aos processos sociais, políticos, econômicos
e humanos é explicado com base na semelhança com os processos e
mecanismos da natureza, portanto, concebidos como regidos por leis
naturais. Deste modo, a vontade humana não poderá interromper o curso
dos fenômenos sociais, como não o pode fazer em relação aos fenômenos
naturais (…). Assim espalha-se uma perspectiva a-histórica em relação á
sociedade, ao homem e ao conhecimento (…) (ROSA & KAHHALE, 2009,
p. 41).

Para as autoras Gabel (1997) e Azevedo e Guerra (1988), as consequências


do abuso sexual infantil intrafamiliar são várias: comportamento submisso, fuga de
casa, medo do sexo oposto, automutilação, mentiras, insinuações sedutoras, entre
outras reações psicossomáticas e desordens no comportamento. Tudo depende
da idade, das circunstâncias que envolveram a violência, a ligação da criança com
o agressor, o impacto que causará quando a vítima identifica a violência, e cada
caso deve ser visto como único, pois envolve um indivíduo neste fenômeno
agressivo e invasivo presente na sociedade de maneira significativa.
Outro aspecto a ser considerado seriam as dificuldades dos profissionais em
lidar com o fenômeno da violência. Pensamentos arraigados e internalizados na
perspectiva da naturalização e individualização da questão contribuem com a

11
reprodução da responsabilização da vítima e judicialização da família e prejudicam
uma visão crítica, totalizadora e reflexiva que conduza a saídas para a diminuição
da violência doméstica intrafamiliar. Furniss, (1993) afirma que as fragilidades dos
profissionais frente a esse fenômeno são envolvidas por questões complexas:

Como uma questão que envolve o sexo, é uma questão sexista e um


campo de batalha para fortes opiniões. Para os profissionais, que
precisam lidar com as consequências, o abuso sexual da criança é um
pesadelo, um campo minado de complexidade e confusão pessoalmente
e profissionalmente, uma ameaça aos papéis profissionais tradicionais,
um desafio às tradicionais estruturas de cooperação (...) (FURNISS, 1993,
p. 11).

Com os avanços nos estudos fui percebendo que muitas vezes as famílias
envolvidas nessa questão ficam à deriva diante deste problema, são esquecidas ou
mal atendidas pelos profissionais. Diante disso, minhas indignações somente
aumentavam: E como fica a família envolvida neste contexto violento? Como
romper com o pensamento conservador entre os profissionais que lidam com essa
demanda? E qual seria o papel do Estado diante das violações sofridas por essas
famílias? Será que é preciso uma política específica para esse tipo específico de
violência doméstica intrafamiliar?
O Estado precisa rever e avançar nas políticas públicas voltadas para a
proteção das crianças e adolescentes e incluir suas famílias neste processo é
fundamental. Sabemos que a família é considerada como matricial dentro das
políticas públicas; porém, o acesso à rede de proteção ao grupo familiar, nos casos
de violência doméstica intrafamiliar ainda é difícil. A violência sexual intrafamiliar é
um problema grave e ascendente a ser enfrentado pela nossa sociedade, como
será demonstrado adiante. Está presente nas mais diversas formas de relações
sociais, afeta grupos, famílias e indivíduos. Portanto, os profissionais que lidam
diretamente com esse tipo específico de violência devem estar cientes de que estão
diante de uma situação complexa e são necessárias estratégias que possibilitem a
qualquer membro dessa família o acesso às políticas protetivas.
As autoras Dalka e Vecina (2002) ressaltam a importância do
comprometimento dos profissionais que atendem a família vítima de violência
12
sexual. É necessário compreender que precisamos avançar na reflexão com novas
estratégias de intervenções protetivas que possibilitem o enfrentamento deste
problema social existente no cotidiano profissional e social.

Nesse sentido, qualquer profissional que se defronte com um caso de


violência intrafamiliar contra crianças ou adolescentes deve estar ciente
que está diante de uma situação complexa, que exige uma intervenção
interdisciplinar, envolvendo medidas protetivas. Tais medidas devem
garantir assistência psicológica, social, médica, jurídica, etc. Essa
assistência múltipla é necessária, pois existe grande probabilidade de
risco de vida e de consequências graves (…) (DALKA & VECINA, 2002, p.
161).

O rompimento da violência doméstica intrafamiliar, destacando-se os


abusos sexuais perpetrados contra criança e adolescente, requer a ampliação das
discussões sobre a práxis profissional: ação, intervenção, articulação em relação
ao fenômeno social. Tais práticas exigem aprofundamento da reflexão para
desconstrução de conceitos a-históricos sobre família, criança, adolescente e
violência reproduzidos no senso comum.

(…). Isso implica buscar nos fenômenos sociais a presença de um humano


que é sujeito, com uma subjetividade processual, complexa e histórica,
afirmando a unidade dialética entre indivíduo e sociedade. E considerar
que aquilo que identificamos como fenômeno social foi produzido na
relação dinâmica entre suas múltiplas determinações, em última instância
suas bases objetivas, como dita acima. Assim, identificar o processo de
constituição de um fenômeno social começa por identificar sua produção,
na relação com diferentes grupos sociais definidos por essa organização
material (BOCK, GONÇALVES, 2009, p. 144-145).

Esta pesquisa foi desenvolvida a partir das contribuições da psicologia social


sócio-histórica, pautada pelo compromisso de uma leitura crítica da realidade.
Ancorada no materialismo histórico dialético, possibilita a superação da dicotomia
entre indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade, no intuito de compreender
a subjetividade produzida a partir da realidade vivenciada.

13
Neste sentido o presente trabalho tem por objetivo geral analisar aspectos
da violência doméstica intrafamiliar e do atendimento previsto no Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).
E, como objetivo específico, analisar quais as concepções de criança,
família e violência imbricadas no cotidiano profissional e suas implicações para o
enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar.
Nesse sentido nosso trabalho está organizado em cinco partes:
No Capítulo I apresentamos o referencial teórico e sua construção dos
conceitos de família e criança; também, a partir do referencial teórico adotado,
como se dá a compreensão a respeito da produção da violência no espaço familiar.
No Capítulo II, apontamos algumas dificuldades para a caracterização dos
conceitos de violência doméstica intrafamiliar e abuso sexual infantil devido à
complexidade do fenômeno social, buscando delimitar a compreensão que norteou
a pesquisa.
No Capítulo III, trazemos uma breve caracterização das políticas públicas
em defesa da criança e do adolescente, bem como da construção do ECA e do
Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente e os entraves, nesse
contexto, no enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar.
No Capítulo IV, apresentamos o Método e a descrição dos procedimentos
de pesquisa. Realizamos uma breve contextualização do local da pesquisa,
caracterizando o Município de Osasco e a organização CEDECA que atende
crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, indicando como a Rede de
apoio está articulada no território e quais ações das políticas de enfrentamento da
violência doméstica, especificamente o abuso sexual infantil intrafamiliar, são
desenvolvidas.
No Capítulo V, analisamos os dados da pesquisa de campo realizada,
procurando identificar os aspectos envolvidos no atendimento das famílias, os
limites, possibilidades e desafios presentes nessa intervenção. Por último, as
considerações finais apontam os principais aspectos desenvolvidos em relação às
indagações que orientaram a pesquisa.

14
Capitulo I – A construção social e histórica da criança e da família: conceitos
a serem reconstruídos.

A ideologia é, assim, uma representação ilusória que fazemos do real. O ilusório da


ideologia está em que parte da realidade fica ocultada nas constituições ideais. (…). As
consequências disso são danosas (…) (BOCK, 2015, p. 32).

1. Família e Criança: a importância da desnaturalização dos conceitos

Ao pesquisar sobre o tema da violência intrafamiliar deparamos com dois


principais focos na literatura: a concepção de que a violência é da natureza do
homem e a que entende que a violência é socialmente construída. Para
compreensão da questão, deve ser também levada em consideração a trajetória da
construção familiar, bem como a sua evolução e transformação no decorrer da
história. É o caso dos conceitos de família e de criança. Para Ferrari (2002), a
constituição familiar precisa ser compreendida de forma total e não fragmentada.

Pode-se definir família como a constituição de vários indivíduos que


compartilham circunstâncias históricas, culturais e sociais, econômicas e
afetivas. Família é uma unidade social emissora e receptora de influências
culturais e de acontecimentos históricos. Possui comunicação própria e
determinada dinâmica (FERRARI, 2002, p. 28).

Para compreender a família na sua dinâmica, é fundamental considerar a


composição e função da instituição doméstica para além de uma simples
abordagem ou conceitos sociológicos e ideológicos reproduzidos no senso comum
a partir de um único modelo de família como forma básica e elementar para a
socialização dos seus membros. É necessário estabelecer reflexões sobre essa
construção histórica, pautada na divisão de papéis sociais e nas relações de afeto,
respeito e no amor mútuo entre os indivíduos.

15
Na visão conservadora, espera-se que a família cumpra sua função
socializadora a partir do modelo conjugal “tradicional”2. Espera-se a
presença de pai e mãe, cumprindo papéis – o pai o principal provedor, a
mãe a principal cuidadora (RECIO, 2017, p. 101).

Nesse sentido descolar a aparência de naturalidade da concepção de família


é perceber a instituição doméstica como mutável e humana, assumindo
configurações diversificadas em determinadas sociedades.

A família como a conhecemos atualmente em nossa sociedade não é uma


instituição natural assume configurações diversificadas em torno de uma
atividade biológica, a reprodução (BRUSCHINI, 2002, p. 15).

É de extrema importância dissolver essa reprodução de modelo nuclear


“correto” enraizado em costumes e valores conservadores e disseminados no
senso comum, delimitando as estruturas familiares. Segundo Araújo (2017, p.29)
essa visão política em nada auxilia na prospecção da autonomia das famílias, ao
contrário, dificulta reconhecer que o grupo doméstico se apresenta como instituição
social atravessada por influências cultural, social e econômica e com direito de
acessar os serviços de apoio social.
A consideração das diferentes posições ocupadas pela criança na história
da humanidade também é importante para nossa discussão sobre a violência
doméstica intrafamiliar. Não houve, desde sempre, um tratamento diferenciado
para as crianças e adolescentes. Mas, as crianças eram e (ainda são) vistas como
sujeitos inferiores em relação ao adulto no cotidiano do grupo doméstico. Segundo
Ariès (1986, p,150) a criança era vista como um “adulto em miniatura” por isso
ocupava todos os espaços e lugares sem diferenciação entre adultos, crianças e
adolescentes.

2 Grifo do autor.
16
Esta cultura milenar favorece o poder do adulto sobre a criança e o
adolescente, transformando-os em “coisas”3 destituídas de necessidades,
desejos e direitos essenciais (MATTOS, 2002, p. 126).

Neste cenário podemos perceber que o cotidiano das famílias em que ocorre
a violência doméstica é um reflexo da complexidade existente na sociedade
contemporânea, marcada pela violência, vulnerabilidades econômicas e sociais
associadas a estratégias de sobrevivência.
No nível da reflexão científica, a literatura elucida e desconstrói essa
aparência de naturalidade. Apresentaremos a seguir alguns dados históricos que
destacam em alguns períodos em que o Estado aparece como regulador e
construtor das estruturas familiares e ao longo do percurso histórico desenvolve
modelos de famílias.

1.1. As transformações ocorridas ao longo da história: a visão


histórica da família e do Estado.

Na história da humanidade encontramos períodos que comprovam que as


transformações ocorridas com a instituição família foram estruturadas para cada
tempo e espaço. A função social do grupo doméstico muda a partir da visão social,
política e econômica.
Apesar disso, a apresentação tendenciosa do modelo de família tradicional
e “ideal” é reproduzida no senso comum e naturalizada em nossa sociedade, como
forma básica e elementar para a socialização dos seus membros, pautados nas
divisões sociais, nos afetos, respeito e no amor mútuo considerados de forma
idealizada, sem levar em consideração as contradições familiares existentes nas
relações intersubjetivas entre os seus membros e sem que se atente para essa
produção histórica.
No capitalismo, a intervenção do Estado e a afirmação das concepções que
representam interesses da burguesia reformulam a moralidade da camada

3 Grifo do autor.
17
subalterna presente nos períodos históricos anteriores e passam a dominar como
se fossem expressões de aspectos intrínsecos e naturais à família. Em função
disso, recorrer à noção de historicidade é fundamental.
Segundo Bock e Gonçalves, (2009):

(…) incluir a historicidade neste processo de desenvolvimento social,


permite tomar sujeito e a subjetividade como constituídos historicamente.
No intuito de superar uma visão dicotômica e naturalista que fragmenta,
isola e individualiza o indivíduo, assumimos que a dialética possibilita esta
articulação a partir da historicidade (…) (BOCK, GONÇALVES, 2009, p.
141).

A autoridade do adulto sobre a criança varia de acordo com o tipo de relação


existente entre os mesmos. Como dissemos acima, a violência está presente no
dia a dia da sociedade e expressa padrões de sociabilidade.

A autoridade do adulto sobre a criança é uma autoridade social que


estabelece um certo tipo de relação entre ambos. Varia de acordo com os
indivíduos, alguns dos quais compensam suas frustações sociais,
afirmando seus desejos de poder absoluto sobra a criança. Difere,
também segundo as sociedades que reconhecem aos diferentes tipos de
adultos direitos variáveis sobre a criança. De qualquer forma, a autoridade
do adulto sobre acriança produz as formas dominantes de autoridade
numa determinada sociedade (GUERRA, 2005, p. 94-95).

Para pensarmos a evolução das ideologias dirigidas à composição da


estrutura familiar e às concepções de criança e adolescente, recorremos a Ariès
(2006) que aponta em sua obra “A História da Criança e da Família”, alguns
acontecimentos marcantes ao longo da história, referentes ao sentimento sobre a
infância, seu comportamento no meio social em cada época e suas relações com
a família. Também são referência os estudos de Donzelot (1980), e os estudos do
seu livro: “A Polícia das Famílias”, onde ressalta as regras, estratégias e manobras
do Estado e da burguesia em relação à construção dos costumes e modificações
das relações em torno da família. Observa-se que, ao longo do percurso histórico,

18
desenvolvem-se modelos de família com o objetivo de suprir necessidades políticas
e econômicas por meio do controle do grupo doméstico.
A instituição família, como forma de agregação, tem as suas características
próprias, mesmo atravessadas por algumas questões que afetam o entorno da
família: ideologias sociais, econômicas e também culturais provenientes de
algumas questões que afetam o ambiente familiar. Este conceito de família,
ancorado na ideologia liberal, retira da esfera política as necessidades sociais da
família e as transfere para a esfera individual. Sendo assim, seus membros fecham-
se em si mesmos, aprofundando os seus laços de afetividade, solidariedade e
responsabilidade.
Como aponta Donzelot (1986):

Ou seja, a passagem de um governo das famílias para um governo através


da família. A família não serve mais para identificar um interlocutor de
pleno direito dos poderes estabelecidos, poderes da mesma natureza que
ela. Transforma-se em relê, em suporte obrigatório ou involuntário dos
imperativos sociais, segundo um processo que não consistiu em abolir o
registro familiar, mas em exacerbar seu caráter, em tirar o máximo de suas
vantagens e inconvenientes aos olhos de seus próprios membros, a fim
de unir, em dois tipos de ligações, uma positiva e a outra negativa, as
exigências normativas e os comportamentos econômico-morais (...)
(DONZELOT, 1986, p. 77).

Nessa perspectiva Ariès (2006) descreve que o Estado passa a ter um papel
importante no espaço social a partir do século XV, espaço esse antes entregue às
comunidades, à vida cotidiana. O pai de família torna-se uma figura moral que
inspira respeito na sociedade. A família muda de sentido, antes os filhos eram
educados em casa no seio da família; com a alteração na estrutura familiar
proporcionada pelo Estado, os filhos passam a ser educados em escolas e a
criança participa da vida do adulto.

A partir do século XV, as realidades e os sentimentos da família se


transformariam: uma revolução profunda e lenta, mal percebida tanto
pelos contemporâneos como pelos historiadores, e difícil de reconhecer.
E, no entanto, o fato essencial é bastante evidente: a extensão da

19
frequência escolar. (…) na Idade Média a educação das crianças era
garantida pela aprendizagem junto aos adultos (…). A escola deixou de
ser reservada aos clérigos para se tornar instrumento normal de iniciação
social, a passagem do estado da infância ao adulto (ARIÈS, 2006, p.159).

Ou seja, o problema que antes era público passa a ser privado, a educação,
a saúde, a sociabilidade são deveres dos pais.

Esta concepção fundamenta-se na ideologia do pensamento liberal, na


qual produzir bem-estar e satisfação das necessidades sociais e na família
é compreendido como responsabilidade individual (COELHO, 2014, p.
77).

De qualquer maneira a escolarização não alcançou a toda a classe social,


tanto que até meados dos séculos XVI e XVII, não havia separação rigorosa na
aristocracia burguesa entre o público e o privado (esse aspecto será retomado no
capítulo 3). A família não tinha as funções afetivas e socializadoras, portanto:

Os progressos do sentimento da infância através dos séculos XVI e XVII,


e a desconfiança dos moralistas com relação aos criados ainda não
haviam conseguido dissociá-lo. Ele era como que a alma viva e
barulhenta da casa grande. Numerosas gravuras mostram-nos as
crianças misturadas com os criados (…). Eles brincavam juntos de
brincadeiras de crianças (…). Os filhos de família continuavam a
desempenhar funções domésticas que os aproximava do mundo dos
servidores: eram especialmente encarregados do serviço a mesa (…). A
sociedade ainda se apresentava como uma rede de “dependências”.
”Daí uma certa dificuldade em separar os serviços honrosos dos serviços
mercenários, reservados á baixa criadagem (ARIÈS 20011 p. 182 - 18).

Neste mesmo século XVII com a ascensão da burguesia, a família muda de


medieval para moderna e fica restrita ao lar burguês. Priorizam-se a intimidade
familiar e as funções socializadoras da família. As casas mudam suas arquiteturas,
os cômodos são separados para assegurar ainda mais a privacidade dos indivíduos
da família. Constituem-se alguns dos mecanismos fundamentais para a
constituição da família moderna patriarcal. Como descreve o autor:
20
No século XVII, a família começou a manter a sociedade à distância, a
confina-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais
extensa de vida particular. A organização da casa passou a corresponder
à nova preocupação de defesa contra o mundo. Era já a casa moderna,
que assegurava a independência dos cômodos (…). Essa especialização
de cômodos da habitação, surgida inicialmente entre a burguesia e a
nobreza, foi certamente uma das maiores mudanças da vida quotidiana
(ARIÈS, 2011, p. 184- 185).

Donzelot (1988) concorda com o pensamento de Ariès (2001) quando


descreve sobre a separação entre público e privado isolando o núcleo familiar da
sociedade, enfatizando que as mudanças que ocorreram no século XVIII, merecem
especial destaque. Enquanto nos séculos XVI, XVII os cuidados das crianças eram
compartilhados com toda a sociedade, no século XVIII passam a ser
responsabilidade dos pais, não há mais o comum e sim o individual. Como discorre
o mesmo autor:

Nas famílias aristocráticas do antigo Regime (séculos XVI e XVII) atribuía-


se pouco valor á privacidade, domesticidade, cuidados maternos, amor
fraterno, amor romântico e relações intimas com as crianças (DONZELOT,
1988, p. 30).

Por fim, Ariès destaca o século XIX, quando o processo de modernização


provoca outras mudanças na família, tais como a privacidade e intimidade familiar,
questionamento dos papeis sociais do homem e da mulher no casamento entre
outras alterações.
Nesse conjunto de períodos históricos percebe-se que as transformações
ocorridas com a instituição família expressam características mais amplas de cada
tempo e espaço. Donzelot (1988) descreve que a família atende a uma determinada
classe dominante, no decorrer dos séculos XIX e XX:

Há, em primeiro lugar, a história política em sua versão clássica; história


dos acontecimentos, das organizações, das ideias. No decorrer do século
XIX, a historiografia política pôde definir os campos em função de suas
concepções da família. Esta constitui uma linha de demarcação bem clara
21
entre os partidários da ordem estabelecida e os que a contestam, entre o
campo capitalista e o campo socialista, com algumas exceções, das quais
o proudhonismo foi a mais notória. Quem se identifica com a família?
Principalmente os conservadores, partidários da restauração de uma
ordem estabelecida centrada em torno da família, de um retorno a um
antigo regime idealizado como também os liberais, que nela vêm o garante
da propriedade privada, da ética burguesa da acumulação e, igualmente,
o garante de uma barreira contra as intervenções do Estado. Os que
atacam a família, os socialistas utópicos ou científicos, fazem-no contra as
próprias funções que as classes dominantes lhe atribuem. Seu
desaparecimento é programado no horizonte do socialismo cujos sinais
anunciadores seriam, entre outros, sua desagregação parcial e suas
crises. Contudo, no início do século XX, essa clara disposição do que está
em jogo se confunde rapidamente. Sem dúvida, a família burguesa é
sempre denunciada pela sua hipocrisia e seu egocentrismo, mas, a
destruição da família só permanece na ordem do dia para as minorias
anarquistas. Pelo contrário, nas organizações de massa, a família passa
a constituir o obstáculo contra o qual as críticas se apagam, o ponto de
apoio a partir do qual se lançam as reivindicações (DONZELOT, 1988, p.
27).

De acordo com o contexto histórico, a função social do grupo doméstico


muda, a partir da visão política e econômica predominantes. Acompanhando essa
lógica, no período histórico de formação do capitalismo, ganha forma e força uma
apresentação ideologizada do modelo de família nuclear composta por pai, mãe e
filhos. Este padrão é naturalizado como modelo familiar único e ideal na nossa
sociedade e reproduzido pelo senso comum como a forma básica e elementar para
a socialização dos seus membros.
Sem dúvida:

O conservadorismo não teria ganho o porte de uma ideologia política se


fosse apenas a reação a uma mudança ocasional, brusca ou violenta que
fosse, de governantes ou de uma forma de governo. Ele reagia a uma
pretensão muito mais ampla, de mudança civilizacional, implicando
simultaneamente Estado e sociedade, assim como suas bases
intelectuais e seus hábitos mentais (ARAÚJO, 2017, p. 13).

22
Partindo desse pressuposto, descolar a aparência de naturalidade da
concepção familiar concreta e perceber a instituição como mutável e histórica, é um
dos primeiros passos para a ressignificação da composição familiar. A concepção
de família sofre alterações conforme a realidade social na qual esteja inserida. A
instituição considerada como estrutura familiar é alterada com o decorrer da
história, assumindo configurações diversificadas em determinadas sociedades ou
grupos sociais.

Não se pode falar da família, mas de modelos de família estruturalmente


distintos. Reconhece-se por exemplo, a família burguesa do século XIX
(Europa); a família aristocrática dos séculos XVI e XVII (idem); a família
camponesa dos séculos XVI e XVII; a família colonial brasileira; e a família
urbana brasileira (burguesa) (AZEVEDO, 1993, p. 39).

Os traços patriarcais pautados no modelo burguês originário no século XVII


e legitimados no século XVIII e XIX pelo Estado, burguesia e sociedade atravessam
séculos com sua doutrina autoritária e moralista. Essa concepção de família
conservadora ainda é muito presente em nossa sociedade em pleno século XXI.

E no final deste mesmo século XIX, a família já ocupava um lugar de


destaque nas práticas de controle social, sendo as famílias burguesas
consideradas esclarecidas e capazes de compreender e seguir os
princípios da educação higiênica, tornando-se, portanto, as aliadas do
Estado moderno, enquanto as famílias pobres eram incapazes de
abandonar os antigos hábitos agrários e assumir o novo estilo de vida
exigido na recente formação urbana brasileira. Assim as famílias pobres
não foram consideradas aliadas, mas inimigas do novo Projeto do País,
tidas como incompetentes para cuidar de suas crianças (…) (MOREIRA,
2000, p. 41).

Dessa forma os aspectos simbólicos são vistos como consequência de uma


lógica prática, em favor da adequação e da divisão de papéis sociais
preestabelecidos. Esse é o modelo a ser seguido, os problemas precisam ser
resolvidos no interior das relações, cada família que os resolvam. Badinter, (1985)
afirma:

23
(…) é o nascimento da moderna família nuclear que constrói pouco a
pouco o muro de sua vida privada para se proteger contra toda a intrusão
possível da grande sociedade. O Amor isola o casal da coletividade (...).
É essa pelo menos a imagem proporcionada. (BADINTER, 1985, p. 179).

Pautada na divisão dos papéis sociais, nos afetos, no respeito e no amor


mútuo aos indivíduos presentes no modelo conservador burguês, a família
aprisiona os sujeitos a um determinado padrão ideológico que reforça a divisão dos
papéis sociais homem/ mulher, pai /mãe, filho /filha, atribui ao homem a posição de
chefe de família, corroborando com a cultura do patriarcado. Inspirados em Araujo
(2017, p.14): “A família nuclear burguesa, com seu modelo de assimetria sexual,
não é um modelo único ou norma universal, mas sim um fenômeno historicamente
construído”
É importante salientar que o Estado se apropria deste modelo burguês
conservador e moralista como referência de família para disciplinar, homogeneizar
o grupo doméstico em nossa sociedade. Tal referência também contribui para
isolar as instituições familiares, dificultando a convivência com outras pessoas e a
criação de vínculos sociais.
Cada instituição familiar precisa dar conta da sua demanda, pois seus
membros são responsáveis por educar, cuidar e devolver para a sociedade um
sujeito disciplinado em normas e regras conservadoras e “imutáveis”.
Essas ideias transmitidas, partilhadas no senso comum contam com as
relações dos sujeitos particulares possibilitando a reprodução social. Partimos
dessa noção como base para a desmitificação, desnaturalizaração e
desuniversalização da família como modelo ideológico do Estado.
Observamos que todo esse percurso histórico nos oferece um conjunto de
informações amplas e complexas no campo ideológico e psicossocial:

A referência na historicidade introduz a esse processo a identificação de


uma sua qualidade, que leva à compreensão de que a subjetividade não
está dada, nem para cada indivíduo, nem como processos ou estruturas
universais da humanidade, mas configura-se como algo que se constitui
nas relações sociais e históricas; é processo que decorre de situações

24
concretas que incluem, necessariamente, a atividade, objetiva e subjetiva,
do indivíduo. (…). Suas ações e experiências individuais subjetivas só são
possíveis a partir das relações sociais e do espaço da intersubjetividade,
pois falamos de um sujeito que é social e histórico (…) (BOCK &
GONÇALVES, 2009, p. 142).

Complementa Bruschini (2015):

A família é também um grupo social composto de indivíduos diferenciados


por sexo e por idade, que se relacionam cotidianamente gerando uma
complexa e dinâmica trama de emoções; ela não é uma soma de
indivíduos, mas um conjunto vivo, contraditório e cambiante de pessoas
com sua própria individualidade e personalidade. A sexualidade, a
reprodução, a socialização são esferas potencialmente geradoras tanto de
relações prazerosas quanto conflitivas. A divisão interna de papéis pode
ser a expressão de importantes relações de dominação e submissão, na
medida em que configura uma distribuição de privilégios, direitos e
deveres dentro do grupo (BRUSCHINI, 2015, p. 80).

Não se trata apenas de legitimar ou não os modelos de família criados ao


longo do tempo pelo Estado e seus aliados ou a manutenção de nexos que
correspondam a tais regras e normas. É preciso uma reflexão mais profunda para
observar como a lógica capitalista apropria-se das estruturas familiares
pulverizando o processo de reprodução entre as classes, ajustando os sujeitos
nessa trama desigual sem levar em consideração as desigualdades sociais,
econômicas e culturais. Utiliza-se sempre das mesmas estratégias:

(…) a fim de assegurar a ordem pública, o Estado se apoia diretamente


na família jogando indissociavelmente com seu medo do descrédito
público e com suas ambições privadas. Isto tudo se passa segundo um
esquema de colaboração muito simples, o Estado diz às famílias:
mantende vossa gente nas regras da obediência às nossas exigências,
com o que, podereis fazer deles o uso que vos convier e, se eles
transgredirem vossas injunções, nós vos forneceremos o apoio necessário
para chamá-los à ordem (DONZELOT, 1988, p. 46).

25
Uma das implicações desse processo é o Estado isentar-se de suas
responsabilidades e elevar a família como a instituição privilegiada para dar conta
de todos os problemas urgentes e presentes no tecido social marcado por
desigualdades que afetam o grupo familiar.

1.2. Criança e adolescente: aspectos históricos e breve trajetória do


histórico sobre abandono, negligência e omissão.

Com um olhar histórico mais apurado poderemos observar os determinantes


concretos do percurso de construção da infância e da adolescência. Esses
processos desenvolvidos ao longo da história nos permitem visualizar como
crianças e adolescentes foram envolvidos em situações de agressões, maus tratos,
negligências e omissões por diversas instituições sociais: a família escola, a
sociedade.
Entre os séculos XVII e XIII, crianças e adolescentes não ocupavam um
lugar privilegiado na sociedade ocidental, não eram reconhecidos como sujeitos,
em condição peculiar de desenvolvimento e, portanto, merecedores de proteção
especial da família, da comunidade ou da sociedade. A noção de direitos, ainda em
processo de explicitação para os indivíduos, de forma geral, não estava instituída
para esse grupo social.

Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não
tentava representa-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à
incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse
lugar para a infância nesse mundo. (…). Até o fim do século XIII não
existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim
homens de tamanho reduzido. (…). Isso sem dúvida significa que os
homens (…) não se detinham diante de uma imagem da infância, que esta
não tinha para eles interesse, nem mesmo realidade (ARIÈS, 2006, p.17-
18).

Tais apontamentos indicam que a infância não tinha importância, o tempo da


infância não era valorizado, até porque o índice de mortalidade infantil era muito
26
alto e como necessitava-se de pessoas para ajudar nas terras, era necessário ter
muitos filhos, na esperança da sobrevivência de pelo menos alguns. Segundo Ariès
(2006):

A criança seria vista como substituível, como ser produtivo que tinha uma
função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era
inserida na vida adulta. A criança tornava-se útil na economia familiar,
realizando tarefas e imitando seus pais e suas mães. Havia
responsabilidade legal de cumprir seus ofícios perante a coletividade
(ARIÈS, 1986, p. 226).

Portanto como podemos perceber, nesta época medieval, a criança não


estava ausente, porém as etapas da infância e da juventude eram ignoradas pelos
adultos e consideradas somente como ritos de passagem importantes para o
desenvolvimento da criança e adolescentes. Ariès (1986, p. 65) destaca que: À
descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode
ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas
os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e
significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVlI, a criança era
considerada um “adulto miniatura” e deveria ser treinado para tornar-se um “bom”4
cidadão”.

No fim do século XVI, o costume decidiu que a criança, agora reconhecida


como uma entidade separada tivesse também o seu traje particular. (…).
Isso sugere duas idéias: primeiro a de que na vida quotidiana as crianças
eram misturadas com os adultos, e toda a reunião para o trabalho, o
passeio ou o jogo reunia crianças e adultos; segundo, a idéia de que os
pintores gostavam especialmente de representar a criança por sua graça
(…) e se compraziam em sublinhar a presença da criança dentro do grupo
ou da multidão. Dessas duas idéias, uma nos parece arcaica: temos hoje,
assim (…) uma tendência de separar o mundo dos adultos (ARIÈS, 2006,
p. 38-21).

4 Grifo nosso
27
Outro ponto a ser abordado seriam as brincadeiras e os jogos voltados para
a criança entre os, séculos XIII e início do século XVIII. Nas brincadeiras e jogos
até a primeira infância não havia separação entre meninos, meninas e adultos,
jovens, idosos; não existia a preocupação de separar por faixa etária ou por sexo
as atividades. Os jogos e as brincadeiras eram comuns a todas as idades; sendo
assim as crianças também participavam de alguns jogos de azar, que não eram
reprovados pelos adultos daquela época:

Ao mesmo tempo em que brincava com bonecas, esse menino de quatro


anos a cinco anos praticava o arco, jogava cartas, xadrez (aos seis anos)
e participava de jogos de adultos, como o jogo de raquetes e inúmeros
jogos de salão. Aos três anos, o menino já participava de um jogo de rima,
que era comum ás crianças e aos jovens (ARIÈS, 2006, p. 44).

Era uma falsa liberdade que se atribuía às crianças na primeira infância, até
sete anos de idade, permitindo que estivessem misturados na vida dos adultos,
porque nesta fase dependiam dos cuidados da mãe, para o desenvolvimento oral
e a formação das primeiras palavras. Por isso as brincadeiras e os jogos eram
partes integrantes da educação nesta fase da infância. Até as brincadeiras eróticas
faziam parte da educação das crianças nas famílias5.

5 Ariès em seu livro: “A história Social da Criança e da Família”, cita vários trechos em que as
carícias eróticas faziam parte das brincadeiras entre adultos e crianças e estavam presentes no
cotidiano da família. Apresentaremos um trecho para elucidar a citação exposta. “Durante seus
três primeiros anos (…) era uma brincadeira comum e muitas vezes repetidas as pessoas lhe
dizerem:” Monsieur não tem pênis:” Ele respondia”: É olha aqui! “E alegremente levantava-o com
o dedo.”. Essas brincadeiras não eram restritas à criadagem ou a jovens desmiolados ou a
mulheres de costumes levianos, como a amante do Rei. A Rainha, sua mãe, também gostava
dessa brincadeira: “A rainha, pondo a mão no pênis, disse: - “Meu filho peguei a sua torneira.” O
trecho a seguir é ainda mais extraordinário: “Ele e a Madame (sua irmã) foram despidos e
colocados na cama junto com o Rei, onde se beijaram, gorjearam e deram muito prazer ao Rei. O
Rei perguntou-lhe: - Meu filho, onde está a trouxinha da Infanta? ----- Ele mostrou o pênis dizendo:
-----Não tem osso dentro, papai. ----- Depois, como seu pênis se enrijecesse um pouco,
acrescentou: ----- Agora tem, de vez em quando tem (ARIÈS, 2006, p. 76).

28
Os casamentos aconteciam em idades precoces. As meninas demoraram a
ir para as escolas e a educação era voltada para obedecer ao esposo, cuidar dos
afazeres da casa e da criação das crianças; ou, então, eram encaminhadas ao
convento para aprenderem ensinamentos religiosos.

Mas e as meninas! ‘As pessoas se acreditam no direito de abandonar


cegamente as meninas á orientação das mães ignorantes e indiscretas”.
As mulheres mal sabiam ler e escrever: “ (…) corretamente. É vergonhoso,
porém comum (…) não saberem comunicar bem o que lêem (..) cometem
erros grosseiros de ortografias, ou a maneira de formar ou ligar as letras
ao escrever” as mulheres eram semianalfabetas. Criou- se o hábito de
encaminhar as meninas a conventos que não eram destinados à
educação (ARIÈS, 2006, p. 126).

Ariès cita J.-B. de La Salle em sua obra a Conduite des écoles chrétiennes
(1720), para explicar que a preocupação com a educação estava mais focada em
tornar as crianças homens e mulheres racionais, com ótimas condutas e educação.
E também não havia como ser de outra forma a visão da criança ou do adolescente.

A criança não era divertida nem agradável: Todo homem sente dentro de
si essa insipidez da infância (…) familiarizar-se como os próprios filhos,
faze-los falar de todas as coisas, trata-los como pessoas racionais e
conquista-los pela doçura é um segredo infalível para se fazer deles o que
quiserem. As crianças são plantas jovens que é preciso cultivar e regar
com frequência: alguns conselhos dados na hora certa, algumas
demonstrações de ternura e amizade de tempos em tempos as comovem
e as conquistam. Algumas carícias, alguns presentinhos, algumas
palavras de confiança e cordialidade impressionam seu espírito, e poucas
são as que resistem a esses meios doces e fáceis de transformá-las em
pessoas honradas e probas. A preocupação era sempre a de fazer dessas
crianças honradas e probas mulheres racionais (ARIÈS, 2011, p. 104).
Neste percurso é perceptível que a infância passava despercebida, a criança
não era considerada como um sujeito com peculiaridades em seu desenvolvimento.
As famílias não tinham as funções de afetos, cuidados específicos com a prole. As
relações entre pais e filhos não se caracterizavam pela intimidade ou por

29
intensidade emocional. Tudo ocorria no movimento de uma vida coletiva, onde
público e privado se misturavam e as famílias conjugais se diluíam nesse meio.

Por outro lado, se a infância não era representada na vida familiar,


também, não havia a construção do sentimento de amor. (...). As crianças
eram jogadas fora e substituídas por outras sem sentimentos, na intenção
de conseguir um espécime melhor, mais saudável, mais forte que
correspondesse às expectativas dos pais e de uma sociedade que estava
organizada em torno dessa perspectiva utilitária da infância. O sentimento
de amor materno não existia, segundo o autor, como uma referência à
afetividade. A família era social e não sentimental (ARIÈS, 1988, p. 17).

A família preocupava-se com a disciplina e a transmissão dos costumes,


negligenciando os cuidados necessários para o desenvolvimento da boa saúde
infantil. Somente a partir da segunda metade do século XIX a criança pode ser vista
como ser em desenvolvimento. No século XX, a criança passou a ser o centro da
família, atenção, afeto e o cuidado com elas passou a fazer parte do dia a dia das
famílias.

Até o final do século XIX (...), a criança foi vista como um instrumento de
poder e de domínio exclusivo da Igreja. Somente no início do século XX,
a medicina, a psiquiatria, o direito e a pedagogia contribuem para a
formação de uma nova mentalidade de atendimento à criança, abrindo
espaços para uma concepção de reeducação, baseada não somente nas
concepções religiosas, mas também científicas (ARIÈS, 2011, p. 195).

Com o surgimento da industrialização a criança e a família assumem novo


lugar. A escolarização de crianças, realizada por instituições, separa-as do mundo
adulto, mantendo-as distantes. A responsabilidade por essa separação foi atribuída
por reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às leis e ao Estado,
com a cumplicidade sentimental das famílias. O autor destaca:

A família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre cônjuges e


entre pais e filhos, algo que ela não era antes. Essa afeição se exprimiu,
sobretudo, através da importância que se passou a atribuir à educação.
Não se tratava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos bens

30
e da honra. (...) A família começou então a se organizar em torno da
criança e a lhe dar uma importância, que a criança saiu do anonimato, que
se tornou impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, que
ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes, e que se tornou
necessário limitar seu número para melhor cuidar dela. (ARIÈS, 2006, p.
50)

Este ponto em que a afetividade passa a ser a marca da família moderna


requer atenção. Se antes na época feudal e medieval a criança era igualada ao
adulto, considerado adulto miniatura e não havia cuidados específicos respeitando
o seu desenvolvimento peculiar, nesta nova fase a força de conservação e
expansão da vida está no afeto.
A responsabilidade com os cuidados das crianças e adolescente passa a ser
função da família. A escolha da família é justificada através da sua principal
característica afetiva, pois é o único grupo que associa afetividade e intimidade com
obediência e submissão entendida como forma de amar.

A autoridade do adulto sobre a criança é uma autoridade social que


estabelece um certo tipo de relação entre ambos. Varia de acordo com os
indivíduos, alguns dos quais compensam suas frustações sociais,
afirmando seus desejos de poder absoluto sobra a criança. Difere,
também segundo as sociedades que reconhecem aos diferentes tipos de
adultos direitos variáveis sobre a criança. De qualquer forma, a autoridade
do adulto sobre acriança produz as formas dominantes de autoridade
numa determinada sociedade (GUERRA, 2005, p. 94-95).

Em período posterior, aponta-se que, quando a família passa a ser uma


ameaça aos direitos básicos da criança, essa deve dispor de uma rede de
atendimento, por meio de políticas públicas, visando complementar suas
necessidades apresentadas. E quando as políticas públicas falham, torna-se difícil
cessar com a violência e a negligência familiar. A proteção e o cuidado não podem
ser vistos como um atributo natural de todo e qualquer grupo familiar e a sociedade
como um todo passa a ser vista como responsável pelo cuidado com as crianças.
A negligência é o fio da meada das diferentes formas de violências
praticadas contra crianças e adolescentes. A negligência está atrelada ao

31
abandono, maus tratos e omissão por parte dos responsáveis em relação aos tratos
com a criança e aos adolescentes, por estarem sob os cuidados dos mesmos. E no
tocante às violências domésticas, a negligência contribui com a manutenção das
práticas violentas perpetradas no grupo familiar.
Nesse contexto, os danos e consequências físicas, psicológicas e sociais da
negligência sofrida na infância e na adolescência são extremamente graves, pois
se configuram também como ausência ou vazio de afeto. A omissão está atrelada
à falta de cuidado, prejudicial ao desenvolvimento da criança e do adolescente no
ambiente familiar.
Os direitos das crianças e adolescentes, quando são negados, negam
valores considerados universais: a liberdade, a igualdade e a vida. Conforme
Azevedo e Guerra (2005):

Negligência representa omissão em termos de prover as necessidades


físicas, emocionais e materiais de uma criança ou adolescente. Configura-
se quando os pais (ou responsáveis) falham (…) (AZEVEDO & GUERRA,
2005, p. 33).

Refletindo sobre a trajetória da história da criança, identificamos que a


criança não tornou o centro das atenções na Sociedade Moderna, porém ganhou
espaço no ambiente familiar. Notamos que as transformações sociais, culturais e
econômicas contribuíram para o reconhecimento desses atores como sujeitos em
desenvolvimento, exigindo algumas mobilizações da sociedade pública e civil para
garantir seus direitos.

32
Capitulo II – A complexidade do fenômeno social da violência e suas
diversas faces: definindo a terminologia

A família tal como a conhecemos atualmente em nossa sociedade, não é


uma instituição natural, assume configurações diversificadas em torno de
uma atividade de base biológica, a reprodução. (BRUSCHINI, 1996, p. 1)

2. Refletindo sobre a Família, a Sociedade, a Violência e as práticas abusivas.

Ao olharmos para o problema da violência no percorrer desta pesquisa,


imediatamente pensamos em várias questões. Entre elas estão as que indagam
sobre as causas, a manutenção das práticas violentas e porque perduram até os
dias atuais, diante de tantos avanços que defendem e protegem a criança. E assim
fomos formulando diversas respostas na tentativa de enfrentar essa complexidade.
Observamos durante toda a trajetória histórica da construção do conceito
sobre a família e a criança, que os papéis sociais estão presentes e cristalizados
nas relações intersubjetivas e geracionais nas famílias; também estão naquelas
que sofrem os tipos de violência encontrados no âmbito familiar. No contexto
familiar da violência doméstica, no caso do abuso sexual infantil, de forma geral o
homem assume o papel de abusador e a criança/adolescente o papel de vítimas
desses abusos. Essa relação assimétrica pode perdurar por anos, até que os
abusos venham a ser descobertos.

Esse modelo de relação, no qual se dá o poder do mais forte sobre o mais


fraco, permeado pela relação de dominação/submissão, está arraigado
em nossa sociedade. Criam-se estereótipos que tendem à reprodução e
ao não questionamento desse tipo de vínculo nas relações afetivas
futuras. Isso pode ser visto claramente nas relações adulto-criança (…)
(FERRARI & VECINA, 2002, p. 118).

O congelamento desses papéis homem abusador e criança/família vítimas


contribuiu para a manutenção da estrutura conservadora em que o homem dita as
ordens e a família obedece sem questionar, colaborando com a invisibilidade da

33
violência doméstica intrafamiliar e a submissão feminina a este modelo conservador
de família burguesa. É preciso fugir dos limites impostos a esses personagens
congelados e dar vida a esses sujeitos, que expressam a construção social de
relações de gênero, para desnaturalizar tais concepções ideológicas e
reproduzidas no senso comum. Lane descreve (2006):

(...) constataremos que nossos papéis e a nossa identidade reproduzem,


no nível ideológico (do que é "idealizado", valorizado) e no da ação, as
relações de dominação, como maneiras "naturais e universais" de ser
social, relação de dominação necessária para a reprodução das condições
materiais de vida e a manutenção da sociedade de classes onde uns
poucos dominam. (...) (LANE, 2006, p. 23).

Na sociedade capitalista, a violência tornou-se uma forma de legitimar as


desigualdades sociais e, embora os jornais, a televisão, a internet, o rádio e outros
meios de comunicação a cada dia apresentem uma variedade de situações que se
remetem à violência e à criminalidade, tais acontecimentos têm provocado pouca
indignação na população devido a sua naturalização e banalização.
Tampouco, a violência é associada diretamente ao processo histórico da luta
de classes, sobretudo, a manutenção do sistema econômico capitalista. Em outras
palavras, dissocia-se o debate da violência do debate da questão social.
Chauí (2017) classifica esse mecanismo utilizado pelo capitalismo como
“inversão do real”6:
Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali
mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda
a prática e toda a ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que
viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações
sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural, isto é, de
ausência de direitos. Mais do que isso, a sociedade brasileira não percebe

6
Para a autora esse mecanismo utilizado pelo capitalismo como proteção é produzido através de
máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se não
fossem violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção á natural fragilidade
feminina, proteção que inclui a ideia de que mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois
como todos sabem, o estupro ainda é visto como um ato feminino de provocação e sedução.
34
que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega
para o lugar efetivo da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira.
Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as
expressões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de
funcionamento das instituições, o racismo, o machismo, a intolerância
religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto
é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e
a violência aparece como fato esporádico de superfície (CHAUÍ, 2017, p.
41).

Azevedo e Guerra (2005) também concordam com Chauí, ao afirmarem que


a violência doméstica está relacionada com a violência estrutural:

A violência doméstica, (…) apresenta uma relação com a violência


estrutural (violência de classes sociais, inerente ao modo de produção das
sociedades desiguais). No entanto, tem outros determinantes que não
apenas estruturais. É um tipo de violência que permeia todas as classes
sociais como violência de natureza interpessoal7. (AZEVEDO & GUERRA,
2005, p. 37).

A violência contemporânea está associada às questões políticas, sociais,


econômicas e culturais ligadas a outras expressões das questões sociais, que
passam despercebidas pelos sujeitos que materializam essa violência estrutural e
a reproduzem no ambiente familiar. Seguindo essa perspectiva, a violência
doméstica não pode ser analisada separadamente, pois não acontece
isoladamente, apresenta uma relação com a violência estrutural social. É um tipo
de violência que está presente em todas as classes sociais, embora fique mais
evidente nas classes com maior vulnerabilidade social.

(…) sob esta ótica, a violência expressa padrões de sociabilidade, modos


de vida, modelos atualizados de comportamentos vigentes em uma
sociedade em um momento determinado de seu processo histórico
(ADORNO, 1988 apud GUERRA, 2001, p. 31).

7 Grifo das autoras.


35
Portanto não podemos pensar a violência doméstica intrafamiliar,
apresentada em várias expressões, de modo isolado, desarticulado do contexto da
realidade em que vive a família. Porque a violência e as suas expressões não são
as mesmas ao longo da história, é preciso reconhecer que as práticas mudam
conforme mudam os rumos da sociedade.

Apesar de encontrarmos tentativas de definição de violência (…), não há


discurso nem saber universal sobre esse tema: cada sociedade está às
voltas com a sua própria violência segundo seus critérios e trata seus
próprios problemas com maior ou menor êxito (SAFIOTTI, 2004, p. 177).

Reconhecemos que a família também atua como elo de transmissão de


valores, crenças sociais, cumprindo sua função socializadora através das suas
práticas. Mas não podemos perder de vistas que essas práticas são orientadas a
partir de um padrão dominante inserido no bojo da sociedade, legitimando
consciente ou inconscientemente as práticas violentas, incluindo as práticas do
Estado.
Para Recio, 2017:

É necessário entender a família ou a instituição familiar como produto


histórico, sempre inserido e condicionado por contextos sociais e culturais,
e relacionada com as demais esferas e instituições socioeconômicas que,
como ela, sofre tensões e mudanças em processos de mútua influência
(RECIO, 2017, p. 101).

Desse ponto de vista, concordamos com Badinter (1985) ao afirmar que:

(…) cada membro desempenhará o seu papel de transmissão cumprindo


consciente ou inconscientemente as penosas funções e obrigações
criadas como forma de controle social. Com isso podemos dizer que são
criados estereótipos que tendem a reproduzir e não a questionar ou refletir
como seriam os vínculos dessas relações afetivas futuramente
(BADINTER, 1985, p. 242).

36
À medida que vamos aproximando a família e a criança ao conceito de
violência, percebemos o quanto as ações violentas são confundidas como formas
de educar, proteger e impor as vontades do responsável sobre os membros
familiares. A vida familiar, ao passar a ser cada vez mais privada, intimista, parece
justificar essas ações violentas, pois é legitimada como instituição protetora e
provedora.
A família é caracterizada como o primeiro núcleo de socialização, o centro
da formação psíquica, do desenvolvimento, da transmissão de conceitos
socioculturais, valores, normas, hábitos, condutas, direitos e deveres para a criança
e adolescente em processo de formação, cumprindo assim sua função de
reprodução ideológica.

Por isso, mesmo, dela se espera uma conduta moralmente exemplar (…),
mais elevada e rigorosa do que normalmente, se espera (…). Dela
também se espera o desprendimento e abnegação necessária para o
futuro sucesso da família, ou seja, o sucesso das futuras gerações de toda
a sociedade. Desse ponto de vista, portanto, a questão do controle (…)
não é nada secundário ou de pequena monta, mas um dos problemas
cruciais da boa organização social (ARAUJO, 2017, p. 29).

A violência doméstica intrafamiliar é uma violência interpessoal, envolvendo


relações assimétricas de poder, que, aliadas a fatores conjunturais e estruturais
podem predispor e contribuir para a eclosão da violência no lar. É um abuso do
poder disciplinador e coercitivo dos pais ou responsáveis; é um processo de
vitimização que às vezes pode se prolongar durante anos.

Portanto, a violência doméstica contra crianças e adolescentes representa


todo o ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra
crianças e /ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico,
sexual e /ou psicológico á vítima – implica, de um lado, uma transgressão
do poder/ dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da
infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm
de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar (GUERRA,
2005, p. 33).

37
Então como pensar em ações que não reproduzam a violência nas relações
familiares? Por isso é de suma importância a compreensão das estruturas
familiares, especificamente das famílias onde ocorrem as violências domésticas.
Para além de um simples conceito, é preciso responder as demandas que esse
lugar social impõe à família. Frente a essa discussão, poderemos compreender
porque as práticas violentas são reproduzidas nas dinâmicas familiares.

2.1. Definindo a terminologia: Abuso ou Violência - concepções a serem


aprofundadas.

Como dissemos anteriormente, na literatura da área, o tema violência


aparece com dois principais pressupostos: o de que a violência é da natureza do
homem e o de que a violência é socialmente construída. Entendemos que a
violência é socialmente construída e fere o conceito de direito à preservação do
valor físico e psicológico de forma progressiva e também o direito à possibilidade
do desenvolvimento geracional, bem como a atual ou a futura participação do
sujeito na vida ativa da sociedade.
Para Adorno (1998):

(…) a violência é uma forma de relação social; está inexoravelmente atada


ao modo pelo qual homens produzem suas condições sociais de
existência. (…). Ao mesmo tempo em que ela expressa relações entre
classes sociais, expressa também relações interpessoais (…) está
presente nas relações intersubjetivas que se verificam entre homens e
mulheres, entre adultos e crianças entre profissionais de categorias
distintas. Seu resultado visível é a conversão do sujeito em objeto
(ADORNO apud GUERRA, 2005, p. 31).

Observa-se com estas reflexões que este fenômeno social não pode ser
analisado desvinculado dos desdobramentos das estruturas violentas existentes no
tecido social. É preciso romper com o determinismo que responsabiliza apenas os
indivíduos através de imagens fixadas e estereotipadas, evidenciando a associação
entre as práticas violentas e as desigualdades sociais, culturais e econômicas.

38
(…) cumpre lembrar que na medida em que damos explicações voltadas
exclusivamente às características da personalidade do indivíduo,
abandonando o seu meio social, estamos, de certa forma, contribuindo
para que a própria sociedade seja absolvida em termos de sua parcela de
responsabilidade quanto ao modo violento de viver que ela impõe (…)
(GUERRA, 2005, p. 148).

As diferentes abordagens utilizadas para descrever as violações dos direitos


perpetradas contra a criança e adolescente ajudam a refletir sobre essas ações e
enriquecem a importância em definir o fenômeno que envolve comportamentos,
atitudes, afetos, práticas sexuais contra crianças e adolescentes para que não
sejam utilizados como se fossem equivalentes.
É preciso definir as expressões que são utilizadas como sinônimos no
senso comum e por vezes nos trabalhos acadêmicos: o abuso sexual como
sinônimo da violência sexual, dificultando o esclarecimento da profundidade do
fenômeno. Eva Faleiros (2000), em sua pesquisa “Repensando os conceitos de
violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes”, chama a atenção
sobre os diferentes conceitos utilizados na bibliografia para visibilizar o fenômeno;
observa-se que muitas vezes se confunde ou utilizam-se erroneamente as
terminologias.

Uma análise inicial do vocabulário sobre o tema e do material bibliográfico


disponível revelou imediatamente uma imprecisão terminológica. Por
exemplo, o fenômeno do abuso sexual é designado por diferentes termos,
como: violência sexual, agressão sexual, vitimização sexual exploração
sexual, maus tratos, sevícia sexual, ultraje sexual, injúria sexual, crime
sexual. Para designar a violência sexual intrafamiliar encontra-se os
termos abuso sexual doméstico, violência sexual doméstica incesto,
abuso sexual incestuoso. O uso sexual de menores de idade com fins
lucrativos é designado ora como prostituição infanto-juvenil, ora como
abuso sexual, ora como exploração sexual comercial. Por outro lado, um
mesmo termo pode designar distintas realidades, como, por exemplo, o
termo exploração sexual é utilizado pela OMS para designar situações de
abuso sexual intra e extrafamiliar e prostituição, enquanto que muitos
autores o utilizam referindo-se apenas à exploração sexual comercial. A

39
utilização de diferentes termos como sinônimos e como se
correspondessem a um mesmo conceito não é apenas uma questão de
terminologia, mas uma questão epistemológica, ou seja, revela a falta de
uma rigorosa e clara conceituação da problemática (FALEIROS, 2000, p.
4).

Diante das diferentes terminologias expressas qual seria a adequada para


conceituar o objeto desta pesquisa? A seguir analisaremos algumas terminologias
e apontaremos a que norteou a nossa pesquisa, diante da complexidade do
fenômeno.
Nas últimas décadas percebemos os avanços nas pesquisas para
compreender o fenômeno da violência doméstica e seus desdobramentos em
relação à criança ou o adolescente vítima dos diversos tipos de agressão: física,
moral ou sexual. Ao nos debruçarmos sobre essa temática percebemos a
dificuldade da caracterização da questão. Fato é que, na tentativa de destacar a
importância do fenômeno, algumas pesquisas expressam diferentes concepções
para compreensão da violência. Guerra (2005) problematiza tal dificuldade:

Quando se fala em violência, tem-se muitas vezes a tendência de separar


as visões: de um lado, a “violência doméstica”, entendida como
confrontação física entre os membros da família em que as vítimas são
encaradas como fracas e em que está presente uma perspectiva de
análise cósmica ou moral; de outro lado, está o discurso que denuncia a
violência, procurando encará-la como um caso de polícia a ser reprimido
(…). As visões parecem dicotomizadas não havendo aproximação entre o
mundo da violência doméstica e o mundo da violência mais geral (…).
Recuperar a discussão do circuito de violência doméstica interligada ao
circuito de violência mais geral da própria sociedade é uma tarefa a ser
construída e de extrema importância (GUERRA, 2005, p. 134).

No caso do termo abuso sexual, é utilizado para definir as práticas sexuais


e é também confundido com violência. Isso porque as palavras podem ser
interpretadas de formas diferentes em sua definição. No dicionário Houasis (2004,
p.762) da Língua Portuguesa a palavra abuso (2004, p.6) é definida como: uso
exagerado, injusto, desaforo, desrespeito, defloramento e a palavra violência no

40
mesmo dicionário é traduzida como: uso da força física; ação de intimidar alguém
moralmente ou o seu efeito; ação, frequentemente destrutiva, exercida com ímpeto,
força.
As autoras Chauí (1985), Furniss (1988), Gabel (1997), Ferrari (2002) e
Guerra (2005) concordam que o conceito de violência sexual é uma violência
interpessoal, é um abuso de poder, é uma forma de violação dos direitos essenciais
e fundamentais aos valores humanos da criança e do adolescente, utilizando-se de
práticas sexuais para obter estimulação sexual, permeando todas as classes
sociais, além de englobar diferentes fatores: culturais, socioeconômicos,
estruturais, psicológicos, sexuais e físicos.
É preciso acompanhar a evolução da sociedade para pensar em definições
mais profundas que possibilitem avanços nas definições das práticas violentas. A
violência doméstica por apresentar diversas facetas dificulta a sua compreensão:
extrafamiliar, intrafamiliar, abuso sexual, incesto, negligência, violência de gênero
entre outras. Nossa análise procurou não descartar nenhum ponto de vista
conceitual, a fim de considerar a complexidade do fenômeno. Além disso, outro
aspecto foi considerado, como apresentado a seguir.
Para Saffioti (2011), o conceito de violência de gênero designa um tipo
específico de violência que visa à preservação da organização social de gênero,
fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuais. Segundo a
autora, a violência de gênero tem duas faces: é produzida no interior das relações
de poder, objetivando o controle sobre quem detém a menor parcela de poder e
revela a impotência do agressor e de quem a perpetra para exercer a exploração-
dominação, pelo não consentimento.
Tal discussão se faz importante porque alguns autores tratam a violência
doméstica e a violência intrafamiliar como únicas ou de formas conjugadas.
Saffioti (2011) salienta que são duas categorias diferentes, pois a violência
doméstica demarca o território em que a violência ocorre, ou seja, a residência onde
a família reside e está ligada estritamente à questão do gênero, isto é, a violência
está envolta na relação submissão – dominação. Já a intrafamiliar extrapola o
ambiente familiar, pode ocorrer em qualquer espaço territorial, mas é praticado por
alguém que tem laços consanguíneos com a vítima, e, baseando-se em uma

41
concepção ampliada de família, que também mantém laços de afetividade com a
mesma.
Notamos que a visão conceitual de violência defendida por não esgotou a
nossa necessidade de discussão frente ao fenômeno da violência contra crianças
e adolescentes. Embora discuta a verticalidade da construção social hierárquica do
gênero masculino sobre o feminino, reproduzida na relação de poder, não têm
como foco direto a prática violenta perpetrada contra a criança e adolescente.
Sabemos da importância de adotar a violência de gênero e não somente a violência
doméstica para a definição desta concepção, pois induz a uma reflexão para além
do ambiente familiar doméstico. Mas, o foco na violência de gênero dificulta abordar
a questão da violação dos direitos da criança e adolescente, cometidos não
somente por homens, mas também por mulheres agressoras, embora saibamos
que os abusos sexuais geralmente são cometidos pelos homens. Por outro lado,
a violência em sua totalidade agrega outras formas de violações: abandono,
negligência, maus tratos, etc. Por isso não consideramos somente o abuso sexual
como violação de direitos da criança e adolescente.
É importante salientar que a relação de gênero está presente na base de
análise deste fenômeno social. Porém, no caso da violência sexual aqui abordada,
compreendemos que a assimetria entre adulto e criança, o primeiro imbuído de
poder e dominação, traz outros aspectos: cristaliza cada indivíduo em sua posição
social, centralidade de poder, isto é, reforçando papéis construídos historicamente
e que perpetuam até hoje em nossa sociedade.
Devemos considerar ainda que a violência afeta a liberdade e impossibilita
o desenvolvimento do sujeito como transformador da sua própria história.

(…) a liberdade não é a escolha voluntária ante várias opções, mas a


capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir. É
autonomia. Não se opõe à necessidade (natural ou social), mas trabalha
com ela, opondo-se ao constrangimento e à autoridade. Nessa
perspectiva ser sujeito é construir-se e construir-se como capaz de
autonomia numa relação tal que as coisas e os demais não se ofereçam
como determinantes do que somos e fazemos, mas como campo no qual
o que somos e fazemos pode ter a capacidade aumentada ou diminuída,

42
segundo nos submetemos ou não à força e à violência ou sejamos
agentes dela (CHAUÍ, 1985, p. 36).

Dessa forma o sujeito expressa, por exemplo, sua relação de dominação


sobre o outro através da manifestação da violência, negando o direito de liberdade
à criança ou adolescente acometidas pelo fenômeno. Como bem exemplifica
Adorno (1998):

A violência é simultaneamente a negação de valores considerados


universais: a liberdade, a igualdade, a vida. Se entendermos como o fez a
filosofia política, clássica que a liberdade é fundamentalmente
capacidade, vontade, determinação, e direito “natural” do homem, a
violência enquanto manifestação de sujeição e de coisificação só pode
atentar contra a possibilidade de construção de uma sociedade de
homens livres (ADORNO, 1988 apud GUERRA, 2001, p. 15).

Notamos que a violência foi construída através da relação de força, de poder


de um sobre o outro, o qual impõe e individualiza as suas vontades e desejos sobre
o mais vulnerável.
Ferrari (2008) afirma:

A violência é, portanto, uma ação que envolve a perda da autonomia, de


modo que pessoas são privadas de manifestar a sua vontade,
submetendo-a à vontade e ao desejo dos outros. É o caso da dominação
(…) (FERRARI, 2008, p. 88).

Por isso não podemos delimitar o fenômeno social em uma única forma
específica, sem levar em consideração as demais modalidades que envolvem a
complexidade da violência sexual: física, psicológica e a negligência. Como
também não podemos deixar de considerar os fatores estruturais que contribuem
com a intensificação da violência doméstica.
Nessa direção, reconhecemos, como apontamos acima, que a questão do
gênero influencia e tem o seu lugar na dinâmica familiar. Muito bem discutida neste
tema por Saffiotti (2011), a questão do patriarcado, ancorado na dominação, na

43
força e no poder como fatores preponderantes na produção da violência familiar e
social devem ser levadas em conta.
Não há dúvida, entretanto, de que é importante dar visibilidade à violência
sexual e, para isso, cada autor utiliza o conceito que considera que mais se
aproxima do tema para definir as práticas sexuais perpetradas contra crianças e
adolescentes no ambiente familiar.
Essa reflexão contribuiu para evitarmos reducionismo e consideramos que,
ao unificar as terminologias, avançaremos na direção do enfrentamento, da
prevenção e promoção de políticas públicas que garantam os direitos das crianças
e adolescentes. Utilizamos a terminologia violência doméstica intrafamiliar ao nos
referirmos ao fenômeno social, com o objetivo de avançar em políticas públicas que
combatam todo e qualquer tipo de a violência doméstica contra a criança e o
adolescente. E destacamos, especificamente, o abuso sexual infantil. Dessa forma,
procuramos focalizar uma questão mais complexa, sem desconsiderar aspectos
mais amplos que, de forma predominante, estão também presentes.
Para esclarecer essa perspectiva de análise, alguns pontos podem ser
retomados e aprofundados. A partir das reflexões sobre criança e família nos itens
anteriores, pudemos perceber que as desigualdades são historicamente
determinantes nas construções subjetivas, culturais e sociais dos papéis de
homem, mulher e criança, delimitando o lugar de cada sujeito nesta relação familiar,
como forma de manutenção do controle e do poder de um sujeito sobre o outro.
Ao levarmos em conta que os atos violentos contra a criança e o adolescente
se expressam de diversas formas, concordamos com a visão conceitual de alguns
autores como: Furniss (1993), Gabel (1997), Ferrari e Vecina (2002) e Azevedo e
Guerra (2005) que reconhecem e conceituam quatro modalidades da violência
doméstica contra criança e adolescente: Violência Física, Violência Sexual,
Violência Psicológica e Negligência. Optamos pelos quatro conceitos sobre
violência doméstica intrafamiliar por acreditar que cada modalidade tem as suas
especificidades e estão na base das práticas desta dinâmica abusiva.
A violência física para Vecina e Ferrari (2002) materializa-se a partir:

(…) do emprego de força contra a criança ou adolescente de forma não


acidental, de modo a causar-lhe diversos tipos de ferimentos e perpetrada

44
por pai, mãe, madrasta, avô, avó, tio, etc. (VECINA & FERRARI, 2002, p.
83).

Já a violência psicológica, para Azevedo e Guerra (1988), configura-se a


partir da:

(…) utilização constante, pelo adulto, de ameaças, depreciações,


ataques verbais à identidade e à autoestima da criança, produzindo-lhe
sofrimento mental e psíquico. Ameaças de abandono também podem
tornar uma criança medrosa e ansiosa, representando formas de
sofrimento psíquico. (AZEVEDO & GUERRA, 1988, p. 13).

Guerra (2005), uma das autoras citadas acima, descreve sobre a


negligência/abandono/ maus tratos:

(…) representa a omissão em termos de prover as necessidades físicas e


emocionais de uma criança ou adolescente. Configura-se quando os pais
ou responsáveis falham em termos de alimentar, de vestir adequadamente
seus filhos, etc. e quando tal falha não é o resultado das condições de vida
além do controle (GUERRA, 2005, p. 33).

E por fim o conceito da violência sexual:

A violência sexual se configura como todo ato ou jogo sexual, relação


hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou
adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou
adolescente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua
pessoa ou de outra pessoa (GUERRA, 2005, p. 33).

Esses tipos de violência podem ocorrer dentro ou fora do ambiente familiar,


por pessoas conhecidas ou desconhecidas do convívio da criança e do
adolescente. É caracterizada em violência doméstica intrafamiliar ou extra- familiar.
As autoras Azevedo e Guerra (2005) caracterizam a violência intrafamiliar
como:

45
(…) aquela que atinge crianças e adolescentes, cometidas por seus pais,
membros da família extensa ou pelos responsáveis, revela uma
transgressão dos adultos, porque, além de não cumprirem o dever de
proteger e promover os direitos de suas crianças são eles os próprios
agentes da violência (AZEVEDO & GUERRA, 2005, p. 32).

E a extrafamiliar:

Neste caso, a violência sexual geralmente ocorre uma única vez, de forma
abrupta, e o abuso vem acompanhado de violência física. Como há
ausência de qualquer vínculo com o agressor, a quebra do silêncio por
parte da criança ou do adolescente e de sua família é impulsionada e, por
isso, a denúncia acontece mais facilmente. Acomete mais frequentemente
adolescentes do sexo feminino e a maioria dos casos acontece fora do
ambiente doméstico, (Caderno de Violência Doméstica Sexual contra
criança e adolescente, 2007, p. 16).

Cabe ressaltar que a violência doméstica intrafamiliar pautada nas práticas


sexuais, em algumas pesquisas é caracterizada como incesto, por tratar-se de uma
relação assimétrica entre pai e filha, como definem Azevedo e Guerra apud
Andreotti, (2012, p. 35) “(...) toda a atividade de caráter sexual, implicando uma
criança de zero a 18 anos e um adulto que tenha para com ela, seja uma relação
de consanguinidade, seja de afinidade ou de mera responsabilidade”.
Como já apontamos acima, sabemos da importância da utilização da
terminologia para auxiliar na classificação dos fatores que envolvem o fenômeno a
ser estudado e para aprimorar a comunicação com a sociedade.
Por isso optamos em utilizar a terminologia violência doméstica intrafamiliar
para definir as práticas violentas ocorridas no ambiente familiar caracterizadas nas
diversas pesquisas bibliográficas como prática abusiva. Ao utilizarmos a
terminologia violência doméstica intrafamiliar, abre-se o leque para que as demais
modalidades sejam incorporadas ao fenômeno social e não somente para definir
as práticas sexuais. Sendo assim a comunicação precisa ser a mais clara possível,
de fácil interpretação para que o entendimento não se restrinja somente ao âmbito
acadêmico, pois é preciso envolver o maior número de atores para o enfrentamento
deste fenômeno tão complexo e crescente em nossa sociedade.

46
2.2 A culpa, o medo e o silêncio: Por que o segredo não é revelado? E como
as práticas abusivas são mantidas por tanto tempo?

Ao falarmos em família que inclui em suas dinâmicas a violência doméstica


intrafamiliar e as suas modalidades: física, psicológica, sexual e a negligência, em
consonância com o foco da discussão apontado acima, abordaremos
especificamente os abusos sexuais perpetrado contra criança e adolescente no
seio familiar. Compreendemos a importância de cada modalidade, porém
analisaremos os aspectos que organizam a manutenção da violência doméstica no
cotidiano da família, em termos de relação, vínculos e aliança existente entre os
membros da instituição familiar.

É preciso observar as características tanto pessoais como circunstanciais


dos membros familiares envolvidos, as condições ambientais em que
ocorre o fenômeno, as questões psicológicas de interação (…). Implica
também perceber que a violência não é um fenômeno natural (…). Temos
que ter sempre em mente uma visão mais abrangente (SILVA, 2002, p.
75).

Não é tarefa fácil lidar com esse tipo de fenômeno social e particularmente
com o que ocorre na vida privada; ou seja, no isolamento social em que vive essa
família, foi se criando um espaço propício para a permanência das práticas
violentas. A sociedade, a família e os órgãos de proteção social precisam estar
atentos às sutilezas que medeiam e evidenciam as facetas da violência, como bem
descreve Santos (2013, p. 346): “é preciso, portanto, estar atento aos mecanismos
sutis, a pequenos sinais que, muitas vezes, passam desapercebidos (…) nos casos
de violência”.
A violência doméstica revela uma ampla e complexa rede de relações
intrafamiliares; é cometida muitas vezes por uma pessoa de significação afetiva
importante para a criança ou o adolescente, o que pode provocar intenso sofrimento
emocional e conflitos familiares de diversas amplitudes.
No tocante à família em que ocorre o abuso sexual, cabe apontar alguns
fatores que favorecem a continuidade e a permanência das práticas violentas que

47
estão presentes na dinâmica familiar, pois todos os membros vivem consciente ou
inconscientemente suas consequências.
Uma das consequências é que as vítimas acabam assimilando valores
distorcidos sobre respeito humano. Geralmente através de ameaças, as vítimas
que foram abusadas silenciam a violência por medo de acontecer alguma coisa
com ela ou com a sua família.
É através deste silêncio que o agressor conduz a perpetuação das práticas
violentas dentro da família e em muitos casos a violência doméstica dura por muitos
anos.
A criança que está em situação de violência sexual sente-se sozinha e frágil
para romper com o silêncio estabelecido, pois entende que a sua fala será contra
a de um adulto, o qual exerce uma relação de poder sobre ela, e diante das
ameaças o segredo é mantido. Furniss (1998) afirma que o segredo contribui com
a manutenção da violência:

As crianças que sofreram abuso freqüentemente são obrigadas a não


revelar para ninguém dentro da família ou fora dela. Pode ser dito à
criança, especialmente às crianças pequenas, que aquilo que acontece
durante o abuso é um segredo entre a criança e a pessoa que abusa. O
segredo é geralmente reforçado pela violência, ameaças de violência ou
castigo. Algumas vezes encontramos uma mistura de ameaças e suborno,
em que o ganho secundário dos subornos e de um tratamento especial
mantém o segredo que, não obstante, é basicamente fundamentado nas
ameaças (FURNISS, 1998, p. 24).

Silva (2002) complementa:

Entre os fatores de manutenção dessa dinâmica (…) o segredo é um


ingrediente de fundamental importância. (…) Ameaças e seduções
ocorrem na busca de manutenção do silêncio, aprisionando todos em
relações complementares, patológicas, evitando, assim a quebra da
homeostase do sistema familiar (SILVA, 2002, p. 77).

Como a agressão ocorre no interior da família é a menos denunciada pela


vítima e a própria família, por isso é considerada como segredo.

48
Alguns fatores reforçam o pacto do segredo elaborado pelos adultos e
obedecido pelas crianças e adolescente. Um primeiro fator é que os abusos sexuais
intrafamiliares ocorrem em segredo. Os abusadores encontram no ambiente
familiar segurança e conforto para as práticas sexuais. Ambiente no qual, muitas
vezes, são legitimados como o provedor, reforçando as relações de poder e
submissão dentro desse lar, tornando as crianças/ adolescentes objetos fáceis de
manipulação. Os adultos encontram nelas parceiros sexuais que não resistem a
suas imaginações eróticas, concretizadas nos atos abusivos.

A dificuldade na identificação desses abusos tem origem a partir de relações


interpessoais, subjetivas, assimétricas e hierárquicas, marcadas por
desigualdade e subordinação. Ela é fruto da garantia de silêncio que o
abusador possui. Ele compra o silêncio a partir de promessas, cumplicidade
e até mesmo ameaças. Como em geral o abusador é alguém do convívio
familiar do adolescente, ele se beneficia da convivência com a família,
possibilitando a não visualização do ato (FURNISS, 1988, p. 100).

A forma com que as crianças são educadas, para respeitar e silenciar


quando o adulto fala, também contribui para essa situação. As crianças emudecem
diante da violência porque os adultos que realizam os abusos e são conhecidos da
criança/adolescente, são os responsáveis pelo desenvolvimento, pelo cuidado e
zelo da família. Ao aprender a obedecer aos pais, aos mais velhos, aprende-se
também a se submeter, a não “responder” quando o adulto falar.
O segredo aparece, então, como uns dos fatores para a manutenção dos
abusos sexuais. Não podemos esquecer que as violências físicas, psicológicas
corroboram com a dinâmica da violência doméstica intrafamiliar.
Outro fator refere-se ao papel e lugar da mãe/mulher. É importante salientar
que a genitora também passa por momentos angustiantes; a mãe também vive em
uma situação de conflito com a possibilidade de seu companheiro estar abusando
sexualmente de seus filhos. Araújo (2002) descreve:

A mãe, por sua vez, também vive uma situação de muita confusão e
ambiguidade diante da suspeita ou constatação de que o marido ou
companheiro abusa sexualmente da filha. Frequentemente nega os

49
indícios, denega suas percepções, recusa-se a aceitar a realidade da
traição do marido. Vive sentimentos ambivalentes em relação à filha: ao
mesmo tempo em que sente raiva e ciúme, sente-se culpada por não
protegê-la. Na verdade, ela também é vítima, vítima secundária, da
violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma
forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração
diante da ameaça de desmoronamento da unidade familiar e conjugal (…)
(ARAÚJO, 2002, p. 7).

Com isso, muitas vezes a responsabilidade e a culpa pelos abusos sexuais


recaem sobre a figura feminina. A sociedade atribui um papel à mulher que é mãe,
idealizando esse papel e criando expectativa de um amor incondicional, que deveria
se sobrepor em qualquer circunstância. Acredita-se que a mesma, por ser mulher,
deveria ter uma postura diferente, já que os filhos nasceram de seu ventre e a
ligação entre mãe e filho seria diferente da que existe com a figura paterna. Que o
amor que ela sente pela criança ou pelo adolescente seria diferente do amor
paterno. A maternidade é vista como natural, sendo assim a mulher não pode fugir
de suas responsabilidades.
Compreender quais os sentidos, significados que estão intrínsecos nesta
base material, de como foi construído esse processo entre o subjetivo e o objetivo,
faz-se necessário recorrer a Bock (2015):

(…) se falarmos do homem sem falar de suas condições de vida, sem falar
do trabalho, fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social que o
constitui, na verdade não se fala nada, “faz-se ideologia” (BOCK, 2015, p.
34).

Sendo assim a família é envolta por este cenário constituído pela


subjetividade, ação, afeto, imaginação, poder e submissão. Para iniciar a violência
sexual o abusador traça estratégias para agir livremente e ao mesmo tempo não
ser descoberto. As autoras Gabel (1997), Furniss (1998), Dalka, e Vecina (2002)
concordam que o agressor tem suas estratégias para violentar; escolhe as crianças
que são vitimadas. O fato de o abusador realizar as práticas sexuais escondidas e
isoladas já caracteriza táticas para concretizar as suas fantasias sexuais.

50
2.3. E quando o segredo é revelado: como romper com o pacto do silêncio.

A revelação é um momento difícil para a criança/adolescente e também para


quem ouve o segredo. Após a revelação dos abusos sexuais, por medo, o segredo
fica guardado por anos. As palavras e frases de ameaças que o agressor utiliza
para manter os abusos abalam emocionalmente e provocam sensações diversas
no corpo, sensações físicas e psicológicas, tanto na vítima, bem como nos
membros que compõem a dinâmica da família onde se dá o abuso. Destacamos a
afirmação de Faleiros, que contempla precisamente tal questão:

Quando a revelação do abuso emerge, existe a possibilidade de um


desmanche da relação de forças autoritárias existentes na família. O
machismo e o poder do mais forte ficam desnudados, podendo-se olhar a
relação de abuso com a indicação do responsável (FALEIROS, 2008, p.
162).

Essas sensações e sentimentos variados provocam confusões na vítima que


está sofrendo os abusos. Não conseguem compreender porque o pai, o padrasto
age dessa forma com ela. Chegam a pensar que a culpa é delas. As consequências
dessa realidade vivenciada pelas vítimas podem contribuir com o desenvolvimento
de distúrbios e traumas emocionais, que podem durar a vida toda. Verifica-se que
as situações violentas a que a criança ou o adolescente estão expostos, poderão
desencadear consequências danosas, desenvolvendo traumas, comportamentos
violentos ou reprimidos, a depender de alguns fatores, como destaca Ferrari (2002):
da idade da pessoa que agride e da que é agredida; do tipo de relação entre eles;
da personalidade da vítima; da duração e frequência da agressão; do tipo de
gravidade do ato e da reação do ambiente.
Muitos sintomas são desenvolvidos diante do silêncio e até da negação do
abuso sexual infantil, mesmo que a vítima não tenha consciência da totalidade dos
atos violentos. Azevedo e Guerra (1993), Furniss (1998), Azambuja (2006),
destacam algumas consequências físicas e comportamentais que as vítimas
possam apresentar: lesões diversas da genitália ou ânus; anormalidades anais ou
vaginais; gravidez; doenças sexualmente transmissíveis; infecções urinárias;

51
secreções vaginais; infecções de garganta, crônica e não ligada a resfriados;
doenças somáticas, em especial dores de barriga, cabeça, pernas, braços e
genitais quando não existe patologia médica específica. Também existem os
sintomas comportamentais conforme destaca Zavaschi (1991):

(…) automutilação e tentativa de suicídio, adição a drogas, depressão,


isolacionismo, despersonalização, isolamento afetivo, hipocondria,
timidez, distúrbio de conduta (roubo, fuga de casa, mentiras),
impulsividade e agressão sexual, assim como é frequente a presença de
síndromes dissociativas, transtornos severos de personalidade e
transtorno de estresse pós-traumático (ZAVASCHI, 1991, p. 136).

Gabel (1997) também relata sobre as reações psicossomáticas e desordens


no comportamento que passam a ser comuns:

(…) pesadelos, medos, angústias, anomalias no comportamento sexual,


masturbação excessiva, objetos introduzidos na vagina e ânus
comportamento de sedução, pedido de estimulação sexual, conhecimento
da sexualidade adulta, inadaptado para sua idade (GABEL, 1997, p. 23).

Nas famílias incestuosas, há confusão referente às fronteiras


intergeracionais e há pouco respeito pelo espaço físico, privacidade e pertences,
sendo que:

(…) as fronteiras rígidas entre a família incestuosa e o mundo


externo contrastam de forma aguda com a indistinção de fronteiras
entre as gerações dentro da família, fronteiras das gerações não
são respeitadas na transgressão que uma relação sexual pai-filha
representa, pois, ao mesmo tempo em que a relação coloca o casal
pai e filha, mantém, no mesmo nível, mãe e filha.
A negação ou síndrome do segredo envolve todo o desenrolar do
processo de abuso sexual intrafamiliar, tanto nas etapas em que o
fato ainda não foi identificado, e que pode durar vários anos,
acompanhado de freqüentes ameaças; como nas etapas que se
desenvolvem junto ao sistema de saúde ou de justiça, cabendo
referir que, “sobreviver ao abuso sexual da criança como pessoa

52
intacta pode ser tão difícil para o profissional como é para a criança
e para os membros da família’’ (GABEL, 1997, p. 77).

A negação, via de regra, acompanha a situação de violência doméstica


intrafamiliar, sendo-lhe atribuída natureza específica de síndrome de segredo, para
a criança e a família, e síndrome de adição, para a pessoa que comete o abuso
sexual infantil.
O medo de ser castigada, não acreditada e desprotegida, pode levar a
criança a não revelar o abuso sexual. Afirma-se que a negação constitui um
mecanismo de defesa utilizado pelos membros da família:

(…) permanece um segredo de família, até mesmo depois de uma clara


revelação, e inclusive quando as ameaças legais e estatutárias há muito
tempo já foram removidas; este é o resultado da negação, não da mentira;
a mentira relaciona-se ao conceito legal de prova, a negação pertence ao
conceito psicológico de crença e assunção da autoria (…) (FURNISS,
1993, p. 31).

São crianças que vivem uma relação assimétrica de poder, e um drama que
afeta o seu desenvolvimento físico, psicológico e sexual. O sofrimento, o medo, o
abandono, a culpa está presente no dia a dia da criança e adolescente vítimas das
práticas sexuais.
É necessário envolver a mãe no processo de revelação, assim como os
irmãos da vítima, devendo ser cada caso avaliado para buscar a melhor forma de
trabalhar com o grupo familiar. O índice de admissão da prática do abuso por parte
dos abusadores aumenta na medida em que a intervenção é bem preparada pela
rede profissional, existem mais fatos disponíveis e a pessoa que confronta o
suposto abusador é bem apoiada pela rede profissional e pelos fatos da evidência
perante ele.
A falta de compreensão e entendimento da violência doméstica pelos
profissionais que lidam com essa demanda pode gerar intervenções inadequadas,
com sensíveis prejuízos à criança, ao adolescente e à sua família e ainda contribuir
com a manutenção da violência doméstica.

53
Capitulo III - Criança e adolescente: do controle e tutela à concepção de
proteção integral.

A relação entre a ordem e cidadania se expressa na articulação de políticas (…), nas


políticas repressivas, seja com ênfase na tutela pessoal da acriança, seja com ênfase na ordem
geral a ser preservada, seja na consideração da criança como menor e incapaz, seja na defesa da
raça e solidariedade (…). Uma política voltada para a cidadania implica outra relação com o
Estado, baseada no direito e na participação, combina a autonomia da criança, com a
solidariedade social e dever do Estado em propiciar e defender seus direitos como cidadã
(FALEIROS, 2011, p. 36).

3. Da “invisibilidade” social à construção dos direitos da criança e do


adolescente.

A passagem de uma sociedade medieval para a moderna e da moderna


para a contemporânea foi produzindo novas concepções sobre crianças e
adolescentes, levando à identificação de seus direitos específicos de forma cada
vez mais clara e plena. Isso ocorre em paralelo à identificação e afirmação de
direitos de uma forma geral, a partir da modernidade.
No mesmo processo, ações consideradas normais e toleradas passam a ser
identificadas como violência doméstica e negligência, possibilitando
posicionamentos favoráveis contra as ações violentas perpetradas contra as
crianças e adolescentes, as quais ocorrem com mais frequência no interior da
família, possibilitando o levantamento de questões voltadas para a identificação e
intervenção das violações dos direitos desses sujeitos.
O processo histórico nos permite, dessa forma, visualizar como as crianças
e adolescentes foram envolvidos em situações de violência (agressões físicas,
sexuais e psicológicas), as quais foram naturalizadas e negligenciadas em diversas
esferas sociais.
Até o final do século XIV, as crianças não estavam envolvidas em situações
de violências físicas ou autoridade dos adultos. Até porque, como eram
reconhecidas como adultos, os cuidados estavam voltados para a educação oral.
Não havia necessidade de encaminhá-las para a escola. A educação era
54
transmitida pelos pais ou a criança era enviada a outra família contratada pelos pais
para o exercício da aprendizagem.
A partir do século XV até meados do século XVII, o sistema familiar
disciplinar para educar as crianças seria alterado para o processo de escolarização.
Como os valores familiares e a infância eram considerados abstratos,
especificamente nos séculos XV e XVI, a criança e ao adolescente deixavam a
família para serem enclausurados em instituições.
Os educadores passaram a ser os católicos e protestantes, com o intuito de
estabelecer uma vida honesta para a criança e ao adolescente através de um único
sistema de disciplina social.

Desejava -se apenas proteger os estudantes das tentações da vida leiga


em uma vida que muitos clérigos também levavam, desejava-se proteger
sua moralidade. Os educadores inspiraram-se então no espírito das
fundações monásticas do século XIII, dos dominicanos e franciscanos,
que conservavam os princípios da tradição monástica (…). Mais tarde, o
objetivo fixado para esse tipo de existência, a meio caminho entre a vida
leiga e a vida monástica, se alterou. *No início, ele fora considerado um
meio de garantir a um jovem clérigo uma vida honesta. A seguir, adquiriu
um valor intrínseco, tornou-se a condição imprescindível de uma boa
educação, mesmo leiga. O colégio tornou-se então um instrumento para
a educação da infância e da juventude em geral. Nessa mesma época, no
século XV e, sobretudo, no XVI, o colégio modificou e ampliou seu
recrutamento. Composto outrora de uma pequena minoria de clérigos
letrados, ele se abriu a um número crescente de leigos, nobres e
burgueses, mas também a famílias mais populares. O colégio tornou-se
então uma instituição essencial da sociedade: o colégio com um corpo
docente separado, com uma disciplina rigorosa, com classes numerosas,
em que se formariam todas as gerações (…). O colégio constituía se não
na realidade mais incontrolável da existência, ao menos na opinião mais
racional dos educadores, pais, religiosos e magistrados, um grupo de
idade maciço, que reunia alunos de oito-nove anos até mais de 15,
submetidos a uma lei diferente da que governava os adultos (ARIÈS,
1986. p.170-171).

55
Esse sistema escolar utilizado não consistia somente em uma formação para
uma vida em sociedade, mas uma formação dotada de elementos que seriam
indispensáveis para o aperfeiçoamento moral e intelectual dos indivíduos para a
vida social. Tal fato se consolidou através da implantação de severos métodos de
educação, uso de castigos e punição corporal, que os laços entre a escola e a
família estreitaram; as agressões físicas foram tomando corpo e forma na
sociedade.

(…) todas as crianças e todos os jovens, qualquer que fosse a sua


condição, eram submetidos a um regime comum e eram igualmente
surrados. (..) Ele se tornou até mesmo uma característica da nova atitude
diante da infância (ARIÈS, 2006, p. 118).

O esnobismo dessa época favoreceu a humilhação das crianças através da


violência física que perdurou até o final do século XVI. Outro ponto importante que
não podemos deixar de destacar neste período seria o conceito de adolescência
que começa a ser misturado com a fase infantil. A disciplina escolar deveria
alcançar a todos os estudantes de qualquer idade, muitas vezes havia adolescentes
com idade de 20 anos que participavam dos castigos corporais atribuídos
primeiramente às crianças.

(…) a dilatação da idade escolar submetida ao chicote: reservado de início


às crianças pequenas, a partir do século XVI e ela se estendeu a toda a
população escolar, que muitas vezes beirava e outras ultrapassavam os
20 anos. Tendia-se, portanto, a diminuir as distinções entre a infância e a
adolescência, a fazer recuar a adolescência na direção da infância,
submetendo-a a disciplina idêntica. Toda a infância, a infância de todas as
condições sociais, era submetida ao regime degradante (…) (ARIÈS,
2006, p. 118).

Nesta época de escolarização a concepção da infância já era reconhecida,


mas acreditava-se que as crianças e os adolescentes eram fracos e por isso
precisavam de doutrinas rigorosas para educá-los e prepará-los para a vida adulta.

56
A legitimidade da violência doméstica, especificamente a física, em virtude
da educação ainda é vista como um método disciplinar. No Código Hamurabi8,
redigido por volta de 1700 A.C. e ainda utilizado nos dias de hoje, o qual tem como
base a Lei de Talião, conhecida como olho por olho e dente por dente, destacamos
no parágrafo XI o artigo 192, que diz que “se o filho de um dissoluto ou meretriz diz
a seu pai adotivo ou mãe adotiva: tu não és meu pai ou minha mãe” dever-se-á
cortar a língua.
Em Roma, a família ficava debaixo da autoridade de seu chefe e os filhos
tinham que se curvar diante desta autoridade.

Em Roma (449 A.C.), a Lei das XII Tábuas permitia ao pai matar o filho
que nascesse disforme mediante julgamento de cinco vizinhos (Tábua
Quarta, nº 1), sendo que o pai tinha sobre os filhos nascidos de casamento
legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los (Tábua Quarta
nº2). Em Roma e na Grécia Antiga, a mulher e os filhos não possuíam
qualquer direito. O pai, o chefe da família, podia castigá-los, condená-los
e até excluí-los da família (AZAMBUJA, 2006, p. 12).

No aspecto legal, podemos observar que as leis corroboravam com o poder


paterno através das regras autorizadas em nome da obediência, contribuindo com
o adultocentrismo e para a prática da violência contra as crianças.
Neste contexto Moreira, 1992, diz:

Numa sociedade adultocêntrica, o fato de que elas estejam vivendo uma


etapa de desenvolvimento, ou seja, de que ainda não sejam adultas, leva
à compreensão de que elas não teriam ainda condições cognitivas,
emocionais e sociais para compreender e defender seus próprios direitos.

8 No Oriente Antigo, o Código de Hamurabi (1728/1686 A.C.) previa o corte da língua do filho que
ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais, assim como a extração dos olhos
do filho adotivo que aspirasse voltar à casa dos pais biológicos (art. 193). Caso um filho batesse
no pai, sua mão era decepada (art. 195). Em contrapartida, se um homem livre tivesse relações
sexuais com a filha, a pena aplicada ao pai limitava-se a sua expulsão da cidade. Código Hamurabi
disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm. Acessado em 10/04/2018.

57
Além disso, entramos na lógica do adultocentrismo, os resquícios da
concepção de que as crianças e adolescentes são propriedades dos pais
ou dos adultos que se responsabilizam por eles. Esta concepção ainda
arraigada é utilizada como práticas violentas, tais como os castigos físicos
tomados como ações educativas (MOREIRA apud RIZZINI, 2011, p. 220).

Diante do exposto podemos perceber que a infância em determinado tempo


histórico, foi reconhecida como uma das fases do desenvolvimento da criança.
Porém, ainda considerados como extensão dos adultos e não como sujeitos de
direitos e por isso assujeitados a diferentes tipos de violações: castigos físicos,
sexuais, psicológicos e misturados às fantasias sexuais dos adultos, através das
brincadeiras e jogos eróticos culturalmente legitimados na família e na sociedade,
como vimos anteriormente.
É preciso considerar ainda, como discutido no capítulo 1, que o lugar da
criança foi se modificando ao longo da história, de forma articulada com o contexto
social. Os dados históricos atestam que em determinados períodos o Estado
aparece como regulador e construtor das estruturas familiares defendendo a
afetividade e a privacidade como estratégia de ação emancipadora e contribuindo
com a reprodução das práticas punitivas e violentas da violência ambiente familiar.
Dessa forma, observamos que as práticas violentas estão presentes nas
dinâmicas familiares, de formas diferentes em cada momento histórico. E devem
ser compreendidas de acordo com o contexto. Da mesma forma, porém, houve
mudanças históricas no reconhecimento da criança como detentora de direitos e
isso trouxe novas questões para a análise das relações familiares. A violência muda
de lugar e passa a ser objeto de outro tipo de avaliação. Assim, hoje,
independentemente de sua forma de expressão, toda e qualquer ação violenta
necessita de reflexões que busquem alternativas para o enfrentamento desse
fenômeno, na tentativa de romper com a dinâmica que a violência imprimiu no
cotidiano familiar.

58
3.1. O caminho das intervenções nacionais e internacionais em defesa dos
direitos da criança e do adolescente.

Cabe ressaltar algumas lutas que favoreceram a construção dos direitos da


criança e do adolescente que envolve a violência, mantendo, entretanto, o escopo
central da nossa discussão. Vamos destacar algumas intervenções que
possibilitam ampliar a nossa discussão sobre a atenção que é dispensada à
violência doméstica intrafamiliar.
Em 1871, é fundada em Nova York a Sociedade para a Prevenção da
Crueldade contra as Crianças, a partir do caso da menina Mary Ellen. Mary Ellen
era órfã de mãe, abandonada pelo pai e sofreu maus-tratos na família substituta. O
caso causou profunda indignação na comunidade e verificou-se que não havia um
local próprio para a denúncia; em virtude disso, o caso foi denunciado na Sociedade
para a Prevenção da Crueldade contra Animais. Como não havia leis que
assegurassem os direitos das crianças e adolescentes foi necessário equiparar o
caso à agressão de um animal para que houvesse o registro da denúncia junto aos
órgãos competentes da época.
Em 1919, foi fundado a ONG chamada "Save the Children”9, quando de fato
na Inglaterra houve a efetivação no direito internacional sobre as obrigações
coletivas em relação às crianças e adolescentes. Posteriormente no mesmo ano
foi criado o Comitê de Proteção10 da Infância, a primeira declaração dos direitos da

9
Save the Children (International Save the Children Alliance) é uma organização não
governamental de defesa dos direitos da criança no mundo, ativa desde 1919, dedicando-se
tanto a prestar ajuda humanitária de urgência como ao desenvolvimento de longo prazo, através
do apadrinhamento de crianças. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Save_the_Children.
Acessado em 14/01/2019.
10
O primeiro instrumento internacional sobre os direitos da criança foi redigido em 1923, por
membros da "Save the Children", liderados por Eglantyne Jebb, juntamente com a União
Internacional de Auxílio à Criança. Trata-se da Declaração de Genebra sobre os Direitos da
Criança, conhecida por Declaração de Genebra, adotada em 1924 pela Sociedade das Nações
e que serviu de base para a Convenção dos Direitos da Criança, em 1989. A partir da criação
deste comitê, os Estados Unidos passam a não serem os únicos soberanos em matéria dos
direitos da criança. Um comitê lançado pela Liga das Nações apresenta objetivos mais
59
criança, que surgiu influenciando os estados e filiados a elaborarem suas próprias
leis em defesa dos direitos da criança e do adolescente.
No Brasil destacaremos o Código de Menores, criado em 192711 e
consolidado na era Vargas, nos anos 1930; juízes, médicos, desembargadores,
agentes policiais definiram um setor assistencial, um setor repressivo/
jurídico/policial sob a égide do Ministério da Justiça, um setor de saúde, um setor
de formação profissional e, articulado com esses setores, introduzem o paradigma
de proibição do trabalho infantil. “Contudo, [esse Código] não deixava de intervir na
manutenção da ordem e da defesa da moral” (FALEIROS, 2015, p. 89).
Ainda nessa seara, segue-se a cronologia no período compreendido entre
1946 e 1979:
No ano de 1946 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
recomenda a adoção da Declaração de Genebra12. Logo após a II Guerra Mundial,

específicos, no tocante à proteção das crianças, pois seu cerne era "tratar das questões relativas
à proteção da criança e da proibição do tráfico de crianças e mulheres", como relata SOUZA
(2002, p. 1). Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/o-historico-legislativo-dos-
instrumentos-internacionais-de-protecao-a-crianca-e-ao-adolescente/46189. Acessado em
14/01/2019.
11
É um documento extremamente minucioso, contendo 231 artigos. A legislação dirigida aos
menores de idade vinha a legitimar o objetivo de manter a ordem almejada, á medida que, ao
zelar pela infância abandonada e criminosa, prometia extirpar o mal pela raiz, livrando a nação
de elementos vadios e desordeiros, que em nada contribuíam para o progresso do país. Para
atingir a reforma almejada para “civilizar” o Brasil, entendia-se ser preciso ordená-lo e saneá-lo.
Designada como pertencente ao continente de “menores abandonados e delinquentes” (portanto
potencialmente perigosos), a população jovem que fugia aos mecanismos sociais de disciplina,
foi um dos focos para a ação moralizadora e civilizadora a ser empreendida. Sob o comando da
Justiça e da Assistência, julgou-se estar, dessa forma, combatendo os embriões da desordem. A
contribuição importante para a época foi a regulamentação do trabalho infantil e juvenil, que não
fossem empregados somente os menores de 12 anos, impondo restrições rigorosas quanto ao
local e a jornada de trabalho (RIZZINI, 2015, p.137,139).
12
Para abolir o trabalho infantil e a extrema pobreza em que as crianças viviam na Suíça, a britânica
Eglautyne Jebb a fundar a Save the Children e impulsionou a Declaração de Genebra sobre os
direitos da criança sancionado pela Sociedade das Nações , predecessora da atual ONU de
1924. Esta primeira declaração tinha apenas cinco pontos e conferia a criança o direito à
alimentação, a ser socorrido em primeiro lugar em caso de catástrofe, atendido em suas
60
um movimento internacional se manifesta a favor da criação do Fundo Internacional
de Emergência das Nações Unidas para a Infância – UNICEF.
A Assembleia das Nações Unidas proclama em dezembro de 1948 a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, os direitos e liberdades das
crianças e adolescentes estão implicitamente incluídos.
Na Assembleia Geral da ONU em 1959, proclamou-se a Declaração dos
Direitos da Criança13, publicando um documento com dez pontos, assegurando

necessidades e educado. Tendo em conta que a necessidade de proporcionar à criança uma


proteção especial foi enunciada na Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança
e na Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral em 20 de novembro de
1959, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos. Depois de 10 anos de esforços e de negociações onde estados,
organizações, ONGs e outras instituições chegaram a um acordo, foi possível aprovar o texto
definitivo da Convenção sobre os Direitos da Criança cujo cumprimento, esta vez sim, seria de
cumprimento obrigatório para todos os países que o ratificassem. Foi em 20 de novembro de
1989, data que ficaria em todos os calendários como ‘Dia Internacional da Criança’. A Convenção
de direitos da Criança se converteu em lei em 1990 depois de ser assinada por 20 países. Na
atualidade é o Tratado mais ratificado do mundo ao qual aderiram 195 países entre os quais não
está os Estados Unidos. Disponível em: https://profuturo.education/pt/2017/11/23/a-historia-da-
convencao-dos-direitos-da-crianca/. Acessado em 03/09/2018.
13 A Convenção dos Direitos da Criança tem como meta incentivar os países membros a
implementarem o desenvolvimento pleno e harmônico da personalidade de suas crianças,
favorecendo o seu crescimento em ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e
compreensão, preparando-as plenamente para viverem uma vida individual em sociedade e
serem educadas no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, em espírito
de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade. Foi inspirada nas normas
internacionais que a antecederam e com a finalidade de particularizá-las em razão do sujeito de
direito que tem como alvo — a criança —, bem como desenvolvê-las a partir da criação de
mecanismos de aplicabilidade e fiscalização desses princípios e normas. A necessidade de
proporcionar proteção especial à criança foi enunciada anteriormente na Declaração de Genebra
sobre os Direitos da Criança, de 1924, e na Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959, e reconhecida na
Declaração Universal dos Direitos Humano, de 1948, no Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos, de 1966 no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também
de 1966 bem como nos estatutos e instrumentos relevantes das agências especializadas e
organizações internacionais que se dedicam ao bem estar da criança. Disponível em:
61
como necessidade essencial a proteção especial para o desenvolvimento físico,
mental e social da criança e adolescente, tornando os maus tratos objeto de
investigação.
Somente em 1969, no continente americano, a Declaração do Direito das
Crianças é adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada
Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica,
especificamente em 22/11/1969. Estabelecia que, todas as crianças têm direito às
medidas de proteção que a sua condição de criança requer, tanto por parte de sua
família, como da sociedade e do Estado.
Com a proclamação do Ano Internacional da Criança em 1979 pela
UNICEF14, iniciava a Década do Direito no campo da infância, reconhecendo
internacionalmente a necessidade de políticas voltadas para a criança e
adolescente, com ênfase nos programas preventivos. Segundo SILVA (2017, p.32)
foi neste momento que “Ocorreu uma ampla mobilização nacional, com
repercussão internacional, que visava à defesa da criança e do adolescente e
lutava por mudanças no Código de Menores, na mentalidade social e nas práticas
judiciais e sociais dos órgãos do Estado que contribuíam com a política destinada
a esse segmento”.
Na tentativa de corresponder às exigências desses movimentos, o Código
de Menores de 1927 é reformulado e cria-se um “novo” Código em 197915. Segundo

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/direitos/tratado11.htm. Acessado em
15/01/2019.

14 Fundo Internacional de Emergência para Infância das Nações Unidas. é um órgão das Nações
Unidas que tem como objetivo promover a defesa dos direitos das crianças, ajudar a dar resposta
às suas necessidades e contribuir para o seu desenvolvimento. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fundo_das_Na%C3%A7%C3%B5es_Unidas_para_a_Inf%C3%A2n
cia. Acessado em 15/01/19.

15 O Código de 1979 define a situação irregular: a privação de condições especiais à subsistência,


saúde e instrução, por omissão, ação ou irresponsabilidade dos pais ou responsáveis; por ser
vítima de maus tratos; por perigo moral, em razão de exploração ou encontrar-se em atividades
contrárias aos bons costumes, por privação de representação legal, por desvio de conduta ou
autoria de infração penal. Assim as condições sociais ficam reduzidas à ação dos pais ou do
próprio menor, fazendo-se da vítima um réu tornando a questão mais jurídica e assistencial,
62
Faleiros (2015, p. 70): esse Código adota expressamente a doutrina da situação
irregular16 em relação à criança e adolescente, “os menores são sujeitos de direito
quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente”.
Silva (2017) complementa o pensamento de Faleiros (2015) ao relatar que:

No caso o Código de Menores, já nasceu defasado para a sua época, pois


consistia no prolongamento de uma filosofia menorista do Código de Mello
Mattos, do início do século XX. Em 1979, quando se deu a sua
promulgação, comemorava-se o Ano Internacional da Criança, fruto de
uma mobilização mundial que exigia atenção especial aos direitos das
crianças e adolescentes. No entanto, esses direitos não estavam
contemplados com a legislação que acabara de nascer. O “novo” Código,
lançado em um momento de contestação política e respaldado na Política
Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM), representava os ideais dos
militares em crise. Não correspondia aos interesses das forças políticas e
da sociedade civil e nem representava os interesses das crianças e
adolescentes, os quais permaneciam confinados nas instituições totais e
submetidos ao poder discriminatório do juiz de Menores. Dessa forma, o
Código de Menores e a PNMB, com seu paradigma da situação irregular,
entraram em colapso, “desaparecendo” do cenário nacional em 1990, com
a aprovação do ECA (SILVA, 2017, p. 32).

É diante deste cenário punitivo e repressivo que se pode entender o


surgimento de uma crescente preocupação com a infância. Diante do “problema da
criança”, baseado na exploração da força de trabalho, a violência doméstica
começa a adquirir relevo na dimensão política e social. Não bastava apenas
reconhecer as violações era preciso intervir com políticas efetivas que focalizassem
a criança e o adolescente como sujeitos de direito, sob a orientação das doutrinas
educativas que tomaram lugar e posição como estratégias de defesa para
assegurar a organização da sociedade.

dando-se ao juiz o poder e decidir sobre o que seja melhor para o menor: assistência, proteção
ou vigilância (FALEIROS, 2015, p. 70).
16 Grifos do autor
63
De qualquer forma, esta análise do contexto da violência, como podemos
observar, não alcançou a violência sexual. A complexidade do fenômeno que não
se “expressa” perpassa a ordem social, econômica e política, pois envolve o que
ainda estava submerso: a família. E necessita de uma ampla implementação de
ações, ou seja, o enfrentamento será efetivo a partir de práticas integradas e
articuladas que promovam a proteção integral da criança e do adolescente frente à
violência doméstica intrafamiliar.

3.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Sistema de Garantia de


Direitos: a promoção e a proteção como garantias de enfrentamento à
violência doméstica intrafamiliar.

A compreensão da necessidade de proteção integral da criança e do


adolescente proporcionou novos olhares, novos posicionamentos e novas práticas
que possibilitassem não somente o enfrentamento, mas a proteção integral para a
criança, o adolescente e que abarcassem a família no fluxo de atendimento.
Durante o século XX, alguns movimentos a favor da defesa da criança vítima
de violência infantil cresceram nacionalmente e internacionalmente no bojo da luta
pela garantia dos direitos da criança e do adolescente.
Em 1989 a Assembleia Geral das Nações Unidas que ocorreu nos Estados
Unidos, comemorou 30 anos da Declaração dos Direitos da Criança. Este
movimento de reflexão e discussão focada em políticas de enfrentamento resultou
na Convenção sobre os direitos da criança, um marco na legislação internacional
sobre os Direitos Humanos.
Em 1990, a UNICEF, organizou em Nova York o Encontro Mundial de Cúpula
pela Criança, no qual foram estabelecidas algumas metas, dentre elas a melhoria
na proteção da criança e a implantação, pelos países, da Declaração dos Direitos
da Criança.
O Brasil adere a esse movimento internacional e com a aprovação da
Constituição Federal de 1988, a criança passa a ser vista como sujeito de direitos
e prioridade absoluta. O texto contemplou algumas metas estabelecidas

64
internacionalmente, como assegura a Carta Magna17 no artigo 227 e nos parágrafos
1º e 4º:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º O
Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança
e do adolescente, admitida a participação de entidades não
governamental. § 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a
exploração sexual da criança e do adolescente.

No mesmo ano, 1990, no mês de julho, em substituição ao Código de


Menores foi instituído no Brasil o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), com o
objetivo de promover o pleno desenvolvimento e garantir a proteção integral da
criança e adolescente. O Estatuto emerge da sociedade civil através das lutas
sociais pautadas em processos históricos e baseadas na Declaração Mundial dos
Direitos da Criança e da Constituição de 1988, provocando mudanças na política
de atendimento em nossa sociedade, como consta nos artigos citados abaixo:

Art. 03 - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos


fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que se trata essa lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e de dignidade. Art. 04 – É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral do poder público assegurar, com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

17
Constituição Federal de 1988. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-
publicacaooriginal-1-pl.html. Acessado em 15/01/2019.
65
O ECA, ao reconhecer a criança como sujeito de direitos individuais e
coletivos, atrelando a família, a sociedade e o Estado como responsáveis pelo seu
desenvolvimento, revoga a Doutrina da Situação Irregular e implementa a Doutrina
de Proteção Integral à Criança e ao Adolescente. Significou o rompimento com a
visão estigmatizada a respeito da criança e do adolescente situação essa que
corroborava com a submissão e a desigualdade social.
O Estatuto define respeito, liberdade, inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias, crenças, espaços e
objetos pessoais. Dentre os seus 267 artigos, o artigo 5º contribui para a redução
das violações:

Art. 5° Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punindo na forma de lei qualquer atentado por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais.

O ECA é um dos documentos brasileiros e latino americanos mais


importantes e completos em questão de proteção e garantia de direitos e enfrenta
a violência doméstica intrafamiliar em todas as suas dimensões: físicas,
psicológicas, sexuais, negligência e abandono. Segundo Gadelha (2012):

O ECA traz uma síntese de toda a essencialidade e riqueza, quando


aponta caminhos – as políticas de garantias de direitos – como deveres
da sociedade, do Estado e da família. (…) ao eleger estas três figuras, O
ECA impõe a cada uma delas obrigações e responsabilidades: à família:
a obrigação de educar e criar; à sociedade a obrigação de zelar por todas
as crianças e adolescentes; e ao Estado a competência de executar e
promover políticas públicas capazes de garantir o atendimento dos direitos
assegurados por lei (…). Propõe detalhadamente os deveres de
instituições e atores em relação ao tratamento dispensado às crianças e
adolescentes no país (…). O ECA coloca à disposição desse segmento
um sistema bem estruturado de avaliação comparativa entre o que
determina a lei e o que demonstra a realidade (…) (GADELHA apud
FERRARI, 2015, p. 348).
66
O Estatuto fixa as normas para a intervenção, promoção, prevenção e
elaboração de programas e campanhas dirigidos à criança, ao adolescente e à
família, com o apoio da sociedade, Instituições e Estado. Conforme disposto no
artigo 88:

I - municipalização do atendimento; II - criação de conselhos municipais,


estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos
deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a
participação popular paritária por meio de organizações representativas,
segundo leis federal, estaduais e municipais; III - criação e manutenção
de programas específicos, observada a descentralização político-
administrativa; IV - manutenção de fundos nacional, estaduais e
municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e
do adolescente; V - integração operacional de órgãos do Judiciário,
Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social,
preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do
atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato
infracional; VI - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execução das
políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de agilização
do atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de
acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração
à família de origem ou, se tal solução se mostrar comprovadamente
inviável, sua colocação em família substituta, em quaisquer das
modalidades previstas no art. 28 desta Lei; VII - mobilização da opinião
pública para a indispensável participação dos diversos segmentos da
sociedade; VIII - especialização e formação continuada dos profissionais
que trabalham nas diferentes áreas da atenção à primeira infância,
incluindo os conhecimentos sobre direitos da criança e sobre
desenvolvimento infantil; IX - formação profissional com abrangência dos
diversos direitos da criança e do adolescente que favoreça a
intersetorialidade no atendimento da criança e do adolescente e seu
desenvolvimento integral; X - realização e divulgação de pesquisas sobre
desenvolvimento infantil e sobre prevenção da violência.

67
A partir dessas diretrizes que orientam o SGDCA segundo Azedo e Guerra
(2015, p.467) “a leitura do ECA fornece princípios capazes de orientar políticas
sociais de contenção da vitimização doméstica da criança e adolescente e
prevenção do fenômeno da violência em nosso país”.
O quadro abaixo apresenta uma linha do tempo com os principais
documentos e marcos nacionais que regulam a proteção integral e promoção dos
direitos da criança e do adolescente vítimas de violência doméstica.

Quadro 1. Contexto Histórico sobre as Políticas Públicas de enfrentamento à


Violência Doméstica Infantil. (período de 1990 – 2010).

• 1990 Promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente


• 1990 Promulgação das Leis Orgânicas da Saúde
• 1991 Criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)
• 1993 Criação da Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e do Adolescente
• 1993 Criação do Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (FNCA –
Resolução nº. 12 do Conanda)
• 1993 Criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Prostituição Infantil;
• 1993 Criação da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI);
• 1994 Criação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FPeti);
• 1994 Fundação da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância
e Juventude (ABMP)
• 1995 Início da Campanha Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes
• 1996 Promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
• 1996 Criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI);
• 1997 Publicação do estudo Criança & Adolescente: Indicadores Sociais pelo IBGE
• 1997 Criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos
• 1997 Criação do Sistema de Informações para a Infância e Adolescência (SIPIA)
• 1999 Fundação da Associação Nacional dos Centros de Defesa (ANCED)
• 1999 Formação da Rede Nacional de Combate ao Trabalho Infantil
• 1999 Fundação do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes
(CECRIA)
• 2000 Lançamento do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil
• 2000 Lançamento Mundial dos Objetivos do Milênio

68
• 2000 Aprovação do Protocolo Adicional às Convenção dos Direitos da Criança sobre o
envolvimento de crianças em conflitos armados
• 2000 Aprovação do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança sobre a venda
de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil
• 2002 Criação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil
• 2003 Criação do Disque Denúncia Nacional (Disque 100)
• 2003 Assinatura do Plano Presidente Amigo da Criança
• 2003 Criação do Programa de Proteção às Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte
• 2004 Aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e instituição do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS);
• 2004 Entrega do I Relatório sobre a situação dos Direitos da Criança e do Adolescente no
Brasil (governamental) e do Relatório Alternativo (não governamental) ao Comitê dos
Direitos da Criança da ONU
• 2006 Criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE);
• 2006 Lançamento do Plano Nacional do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária
• 2006 Criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)
• 2006 Aprovação pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da
Resolução nº. 113
• 2008 III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes (Rio de Janeiro);
• 2008 Criação do Cadastro Nacional de Adoção (CNA)
• 2009 Criação do Observatório Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
• 2010 Realização da 1ª Conferência Nacional de Educação
Fonte: ECA 20 anos.

Podemos dizer que é com este propósito que a política de atendimento é


composta, de forma coordenada, integrada e articulada entre Órgãos Públicos,
Entidades Governamentais, Não Governamentais, da União, dos Estados e dos
Municípios e do Distrito Federal e a Sociedade Civil, integrando uma rede de
atendimento. Conforme o ECA, o SGDCA configura-se em três eixos: o eixo da
promoção, que engloba as políticas sociais básicas e os serviços públicos de
atendimento visando a proteção, como as escolas e os serviços públicos de saúde;
o eixo do controle social, consequentemente da promoção dos direitos das crianças
e adolescentes cujos direitos já foram violados ou estão ameaçados, aborda as

69
entidades que exercem a vigilância sobre a política e o uso de recursos públicos
para a área da infância e da adolescência, como os Conselhos de Direitos e Fóruns;
por fim, o eixo defesa reúne órgãos como Defensorias Públicas, Conselhos
Tutelares, Ministério Público e Poder Judiciário, com a função de intervir nos casos
em que os direitos das crianças e adolescentes são negados ou violados e o
controle por meio da fiscalização e avaliação do funcionamento do SGDCA,
integralmente detalhados no ECA.
Podemos dizer que o enfrentamento da violência doméstica de natureza
física e sexual contra as crianças e adolescentes só passou a ser contemplado
mais adequadamente na legislação brasileira a partir da Constituição Federal de
1988 e, em particular, do ECA de 1990.(Azevedo e Guerra (2015, p. 465). A
violência física ainda é a mais denunciada, pois é mais clara, enquanto a sexual
ainda é velada. Conforme ilustra o quadro a seguir:

Quadro 2. Tipo de violação por ano, por tipo de violação mais recorrente em
criança e adolescente.

70
Conforme o Disque 10018, órgão do governo federal, foram registradas
84.049 denúncias no ano 2017, referentes a violações dos direitos da criança e do
adolescente. Essas denúncias correspondem a 58,91% das violações,
demonstrando claramente que as violações de direito contra a criança e ao
adolescente crescem em ritmo acelerado em nossa sociedade. Essas informações
podem ser melhor visualizadas pelo quadro 3 a seguir:

Quadro 3. Tipo de violação por grupo

Fonte: Disque 100(2017) Disponível em: http://flacso.org.br/files/2016/10/Relatorio-Avaliativo-ECA.pdf

Embora os indicadores da violência contra criança e adolescente sejam


crescentes, entende-se que estes dados ainda não abrangem a totalidade dessa
realidade na nossa sociedade. Como a violência doméstica intrafamiliar acontece
no íntimo da família, as denúncias dos abusos sexuais são mais difíceis de ocorrer.
E sem falar que a denúncia da criança é desqualificada, por se acreditar que elas
mentem, inviabilizando as falas das vítimas.

18
O Disque Direitos Humanos – Disque 100 é um serviço de utilidade pública da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Lançado em 2003, é vinculado à
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que recebe demandas relativas a violações de Direitos
Humanos. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/06/disque-100-e-
mecanismo-de-protecao-dos-direitos-humanos
71
O quadro a seguir revela a relação do agressor com a criança/adolescente;
as denúncias apontam que 24,1% dos agressores são os pais ou padrastos,
indicando que o maior índice dos casos ocorre no ambiente familiar.

Quadro 4. Vínculo/Grau de parentesco do agressor com a vítima segundo a


faixa etária

Outra fonte de suma importância o Atlas da Violência19 de 2018 (dados


referentes aos anos de 2009 a 2016) destaca que houve um aumento de 90,2%
nos casos de notificação de estupros contra crianças e adolescentes no país. Do
total de 22.918 casos de estupro registrados pelo sistema de saúde em 2016,
50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos. As adolescentes de 14 a
17 são 17% das vítimas e 32,1% eram maiores de idade. A proporção não se
mantém estável nos últimos 10 anos.

19 Disponível no site do IPEA: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2313.pdf.


Acessado em 10/01/2019.
72
Como podemos perceber, 50% das vítimas que sofrem violência sexual são
adolescentes, mas não sabemos há quanto tempo essa criança vem sofrendo os
abusos sexuais, pois é muito delicado trabalhar com esse tipo de dados. Segundo
Marques (IPEA, 2017):

O tema é delicado e de difícil tratamento no Brasil. Os dados de estupro


são sempre muito complicados de se trabalhar, existe um tabu muito
grande em se falar sobre esse crime na sociedade brasileira de forma
geral. Sempre tem uma desconfiança muito grande com relação à vítima,
situação em que isso se dá e uma dificuldade muito grande na produção
de prova, quando a gente vai falar do processamento desses crimes.

Reconhecemos que qualquer tipo de violência deve ser denunciada e a


criança e o adolescente protegido, porém ressaltamos a necessidade de um olhar
mais amplo para a questão da violência doméstica intrafamiliar, principalmente a
sexual. Segundo Azevedo (2009):

(…) a violência denunciada constitui a ponta do iceberg de violências


domésticas cometidas contra crianças e adolescentes em qualquer
sociedade. (AZEVEDO, 2009 apud SILVESTRE, 2013, p. 651).

E, por fim, demonstraremos que o ambiente familiar é o local em que


acontecem com mais frequência as violações do direito dos direitos da criança e do
adolescente. Conforme os dados fornecidos pelo IPEA (2014) em sua Nota
Técnica: Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão
preliminar), a violência doméstica intrafamiliar perpetrada contra a criança e o
adolescente, cometida na residência por pessoas conhecidas é duas vezes maior
do que a cometida no mesmo local por pessoas desconhecidas, apontando que a
família é a principal reprodutora da violência doméstica, como ilustrado nos quadros
5 e 6:

73
Quadro 5. Local da violação quando o agressor é conhecido.

Quadro 6. Local da violação quando o agressor não é conhecido.

Esses dados atestam que a relação afetiva, a privacidade, a intimidade, a


questão de gênero, corroboram com a vitimização e manutenção das práticas
violentas no ambiente familiar. Este comparativo revela que a violência intrafamiliar
ocorre com mais frequência e ainda é pouco notada.

74
Outro aspecto de extrema importância, é a revitimização. Os dados acima
demonstram que a violência doméstica é cometida pelo pai, no ambiente familiar e
as crianças e adolescentes são as vítimas que mais sofrem, por isso a chance da
recorrência é ainda maior, pois está dentro de um ambiente de relacionamento
pessoal e familiar, como demonstra o quadro 7.

Quadro 7. Reincidência de abusos sexuais quando o agressor é conhecido.

Essas informações são de suma importância para se pensar em políticas


direcionadas para as crianças que são vítimas e para as famílias que sofrem com
esse tipo específico de violência doméstica.
Para que o enfrentamento seja efetivo, protetivo e integral é necessário que
haja profissionais preparados para trabalhar com essa demanda, vítimas de
violência doméstica intrafamiliar. O ECA enfrenta a questão do abuso sexual
infantil, porém é preciso mergulhar no ambiente familiar, para compreender, entre
outros aspectos, as relações afetivas existentes que impedem que a denúncia seja
realizada. É preciso atentar para essas questões particulares, invadir o ambiente
da “sagrada família”, com o objetivo de romper com as práticas violentas
perpetradas conta a criança e o adolescente, “poder meter a colher”.
Nesta perspectiva, permite-se considerar que a tríade Família, Sociedade e
Estado não deverá atuar isoladamente, mas de forma coletiva e integrada. Assim,
é essencial a formação de uma rede de atendimento que contemple permanentes
construções no enfrentamento da violência doméstica intrafamiliar, onde a violência
é calada, silenciada e a dinâmica familiar gera entraves para a resolubilidade das
práticas violentas.
Mesmo com todo o aparato legal previsto a partir do ECA, a violência
doméstica sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes ainda é de difícil
75
discussão com os setores da sociedade, até mesmo entre os profissionais que
lidam diariamente com a problemática, principalmente por representar um tabu
frente à concepção de família e sexualidade.
Um dos desafios mais complexos que temos como cidadãos e profissionais
comprometidos com a efetivação, a fiscalização, a promoção dos direitos desses
sujeitos, será o de participar e contribuir com ações concretas e emancipatórias
para o fortalecimento eficaz dessa rede de proteção. Por representar uma ruptura
doutrinária, o Sistema de Garantia de Direitos caracteriza-se pela relação dialética
entre profissionais, instituições e saberes, alicerçado em três eixos que interagem
se retroalimentam com um objetivo comum: a garantia de direitos.

Nestas bases a rede não é um serviço, mas sim uma concepção de


trabalho que dará ênfase à atuação integrada e intersetorial, envolvendo
todas as organizações que desenvolvem suas atividades com crianças,
adolescentes e suas famílias e os próprios interessados. (AZEVEDO &
GUERRA, 2015, p. 418).

A capacitação profissional é importante, pois implica mudanças culturais e


de hábitos arraigados de trabalho isolados, pragmáticos e verticalizados. É
importante romper com concepções subjetivas que limitam o atendimento da família
no fluxo de atendimento e elaborar novas práticas profissionais, promovendo
avanços nas políticas públicas. No que tange ao fenômeno VDCA essa integração
entre pessoas de diversas instituições evidencia voltar o nosso olhar para as
diferentes realidades com que a violência está envolvida: família, sociedade,
economia e política, assentadas em produções violentas existentes em diversas
culturas na nossa sociedade.
Neste contexto não podemos perder de vista que os profissionais
desenvolvem o papel de extrema importância, por isso estar inserido em
capacitação contínua corrobora com o desenvolvimento da escuta, do olhar
qualificado e de práticas profissionais que visem o rompimento do ciclo da violência
doméstica e suas modalidades conforme descrito no ECA, sendo assim
contribuirão com à efetivação dos direitos da criança e do adolescente e da família.

76
Capitulo IV – Metodologia da Pesquisa: A pesquisa em Psicologia Social

4. Caracterizando o Campo de Pesquisa

A categoria historicidade é o complemento analítico, que aponta a


necessidade de se considerar o conteúdo histórico presente nos
processos de constituição dos sujeitos, subjetividade e dimensão
subjetiva de fenômenos sociais (GONÇALVES, 2015, p.125).

A pesquisa baseia-se na perspectiva da psicologia Sócio Histórica que


considera indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade de forma não
dicotômica, mas como partes de um todo, imbricadas uma na outra, como unidades
de contrários que interagem de forma dialética, constituindo e sendo constituídas
simultaneamente. O estudo deve privilegiar o processo de mudança de seu objeto,
por se tratar de um estudo dialético e que não se descola dos princípios concepções
e práticas dialéticas.
Dessa maneira para a realização desta pesquisa, primeiramente iniciamos
a pesquisa teórica acerca do tema sobre a violência doméstica intrafamiliar
perpetrada contra crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais e as
dificuldades de inserção das famílias abusivas no Sistema de Garantia de Direitos.
Durante a pesquisa teórica compreendemos que a violência sexual
intrafamiliar não se apresenta de forma clara, pode estar camuflada em outras
formas de violências domésticas: física, psicológica além da sexual. Neste sentido
a análise nos encaminhou a entender os abusos sexuais cometidos contra criança
e adolescente no interior do seio familiar como uma violação de direitos e a pensar
políticas de enfrentamento para este tipo de violação.
Partimos da compreensão de que o enfrentamento da violência doméstica
intrafamiliar só será possível a partir da articulação de vários atores sociais, Estado,
Sociedade Civil, Educação, Assistência Social que assegurem a garantia desses
direitos. Um desses atores seria o CEDECA (Centro de Defesa de Crianças e
Adolescentes), organização não governamental destinada ao atendimento
específico dessa demanda.

77
O objetivo dessa pesquisa foi analisar, a partir do trabalho dos voluntários e
do funcionamento do CEDECA/ Osasco, sua articulação com o Sistema de Defesa
e Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes (SDGDCA), existente no
Município e, de forma indireta, a própria dinâmica do SDGDCA. A partir da dos
dados colhidos e dos resultados analisados, proporcionar discussões e reflexões
que possibilitem superar os limites institucionais, propor novas intervenções,
ampliar a discussão a respeito da violência sexual intrafamiliar, transpor saberes a
partir de uma práxis profissional consciente.
Nesta lógica decidimos nos aproximar da Instituição para compreender:
quais os instrumentos utilizados para o acolhimento e encaminhamento da família,
da criança e do adolescente no espaço institucional para a Rede de proteção
integral; como os abusos sexuais foram revelados; qual a relação dos técnicos com
as crianças e as famílias vítimas da violência doméstica intrafamiliar; e quais os
limites e potencialidades encontrados na Instituição frente a esse fenômeno social.
A abordagem na Instituição ocorreu a partir do convite de um dos gestores
responsáveis pela organização. Foi marcada uma reunião entre esse gestor, a
pesquisadora e outro gestor, no local onde as atividades são realizadas, para que
pudéssemos conhecer toda a estrutura da Instituição. Durante a reunião a
pesquisadora foi convidada pelos mesmos a fazer parte do corpo técnico como
voluntária. No decorrer da conversa foi esclarecido que a participação seria como
pesquisadora e não como voluntária. Sendo assim, a pesquisadora não poderia
assumir nenhuma função específica, porém com as rodas de conversas focadas na
discussão sobre violência doméstica intrafamiliar, abusos sexuais, a participação
poderia ser um canal para colaborar com a construção da práxis profissional.
Para que pudéssemos analisar o trabalho realizado no CEDECA e sua
inserção no contexto mais geral de atendimento a essa demanda, foi necessária a
realização de algumas atividades dentro e fora do espaço institucional, para que
pudéssemos ter um olhar ampliado sobre a questão da violência e a efetivação
das medidas protetivas em relação a ela, tais como: discussões de caso com a
equipe técnica, participação da pesquisadora nas reuniões de Rede para discussão
e reflexão sobre as práticas profissionais, participação na organização de eventos
voltados para a Criança e Adolescente, além da participação da pesquisadora
também como voluntária na Instituição estudada.
78
Nesse processo, os procedimentos utilizados para a coleta de dados foram:
entrevista, diário de campo e a observação-participante da pesquisadora no espaço
institucional, apoiada no Código de Ética Profissional do Assistente Social e nos
preceitos dos Comitês de Ética na Pesquisa. A observação possibilitou a participar
do cotidiano das voluntárias na Instituição.
A coleta de dados ficou sob a responsabilidade da pesquisadora, com a
autorização dos técnicos envolvidos e dos gestores responsáveis pelo CEDECA. E
ocorreu no próprio local onde as crianças e os adolescentes participavam das
atividades em contra turnos. Para a realização da coleta de dados foram explicados
os objetivos da pesquisa e solicitado aos participantes à assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
De forma sucinta procurei relatar a articulação da Rede de proteção, o
fortalecimento da política pública de enfrentamento a violência doméstica
intrafamiliar e a articulação dos profissionais envolvidos na demanda dos casos de
abusos sexuais infantil. Para preservar o sigilo os entrevistados tiveram seus
nomes trocados e receberam nomes fictícios.
No decorrer da análise a partir das falas dos participantes, os relatos foram
organizados em grandes categorias procurando estabelecer itens correlacionados
com a construção do eixo central da pesquisa sobre o desafio profissional frente as
concepções da criança, do adolescente e da família vítimas de violência doméstica
intrafamiliar, destacando o abuso sexual infantil.
A violência doméstica perpetrada contra criança e adolescente no interior da
família por ser um fenômeno complexo requer uma análise profunda e apropriada
da realidade em que esses sujeitos estão inseridos. É importante compreender
como ocorre a acolhida, o atendimento, o encaminhamento dessa demanda para a
Rede de Apoio a partir do momento que iniciam o trabalha na Instituição.
Neste contexto, focalizamos os fenômenos sociais relativos ao objeto de
estudo e realizamos a análise do material coletado. A partir das entrevistas, do
diário de campo, com os registros produzidos na observação participante, pudemos
apreender as características da dimensão subjetiva a respeito do abuso sexual
infantil intrafamiliar, bem como de suas famílias, envolvidas neste fenômeno.

79
4.1. Caracterização do Município de Osasco

A partir dos dados fornecidos pelo IBGE20, sobre o Município de Osasco


informa-se que foi fundado em 1962, que é a quinta maior cidade do estado de São
Paulo. É uma das cidades com maior índice de desenvolvimento do estado.
Conhecida como “cidade-trabalho”, possui uma densidade demográfica de
10.264,80hab./ km², com uma população de 666.740 mil, conforme o censo
realizado pelo IBGE em 2010 e 697.886 mil de osasquenses no ano de 2017.
Segundo o IBGE possui o segundo PIB do Estado e o nono PIB entre os
municípios brasileiros, dados relativos a 2013.
Segundo os dados fornecidos pela Emplasa21, dos 39 municípios que
compõem a Região Metropolitana de São Paulo, Osasco é considerada a capital
regional da Zona Oeste paulistana. Porta de entrada da região Oeste da Grande
São Paulo, o município tem hoje uma economia dinâmica. Um desenvolvimento
promovido por indústrias, empresas do comércio varejista e atacadista e
prestadores de serviço, que atraíram para a cidade Federações, Associações e
outros importantes órgãos de apoio e representação da atividade produtiva.
Osasco hoje apresenta algumas deficiências oriundas do crescimento do
município, tais como: violência, problemas econômicos, desempregos, falta de
saneamento básico, déficit nas políticas de assistência social, bem como outros
problemas presentes nas grandes metrópoles. Mais adiante apresentaremos os
últimos dados estatísticos sobre a vulnerabilidade do Município referentes ao ano
de 2010.

20 Fonte IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Seção IBGE cidades- Disponível em
: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/osasco/historico. Acessado em 01/08/18.
21 Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano. Informações disponíveis em: https://www.e.
mplasa.sp.gov.br/RMSP
80
Mapa 1. Localização do Município de Osasco na grande São Paulo

Disponível em Emplasa, https://www.emplasa.sp.gov.br/RMSP

4.2. A experiência do Centro de Defesa da Criança e Adolescente no


Bairro Munhoz Junior: Desafios e Limites no território frente ao
enfrentamento contra a Violência Sexual

Na região leste do município de Osasco, está localizado o bairro Munhoz


Junior, zona norte de Osasco. Hoje este bairro é o de maior número de residências
na cidade, 9.350 moradias. Se multiplicarmos o número total de moradias pelo
número médio de moradores, quatro por casa, teremos no Munhoz o bairro de
maior número de habitantes na cidade, 29.859 habitantes em 2010, segundo o
censo do IBGE.
O Munhoz Jr. é um bairro diferente em relação aos demais bairros da cidade.
Sua topografia acidentada ensinou aos primeiros moradores que o
desenvolvimento urbano não chegaria se não fosse conquistado. E foi de conquista
em conquista, que o bairro hoje tem ruas asfaltadas, água encanada, luz nas casas
e na rua, comércio, posto de saúde, escolas de ensino fundamental, creche e EMEI.

81
No bairro do Munhoz Jr., as vielas, para quem quer se locomover rapidamente entre
o bairro e o Jd. Helena Maria ou Bonança são a salvação.

Mapa 2. A localização do bairro Munhoz Jr. no Município de Osasco

Disponível em: http://prefeitura.osasco.sp.gov.br/InternaCidade.aspx?ID=20

Como veremos no quadro abaixo o bairro Munhoz Jr aparece em quinto lugar


em casos de roubos, mas a violência doméstica, a drogadição, a prostituição e o
tráfico de drogas estão presentes em seu cotidiano, como de toda a sociedade.

Quadro 8. Ranking dos casos de roubo nos Municípios de Osasco

22

22 SSP/SP – Secretaria Segurança Pública, gráfico retirado da página on line- Osasco Notícias.
Acessado em 02/08/18. https://www.osasconoticias.com.br/noticias/policial
82
Entre os equipamentos de infraestrutura estão: nove Centros de Referência
de Assistência Social (CRAS), três Conselhos Tutelares, um Conselho Municipal
da Criança e do Adolescente (CMDCA), dois Centro de Referência Especializado
de Assistência Social (CREAS), trinta e cinco Unidades Básicas de Saúde (UBS),
três Unidades de Atendimentos (UPA), seis Pronto Socorro (PS), sete Hospitais,
duas Policlínicas23, uma Delegacia da Mulher, uma Delegacia de Idoso, dez,
Distritos Policiais24.
É neste cenário social que o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
(CEDECA) inicia as suas atividades. A Instituição CEDECA trata do enfrentamento
da violência infantil e enfrenta desafios para avançar e garantir os direitos das
crianças e adolescentes que são vítimas da violência doméstica intrafamiliar,
especificamente o abuso sexual e a inserção da família abusiva na Rede de Apoio.
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente foi fundado no
ano de 2015, sendo a mais nova das 31 unidades do CEDECA distribuídas em todo
o Brasil.
A instituição tem por finalidade a educação, cultura e a assistência social,
como instrumento de defesas e proteção da infância e adolescência, juventude,
incluindo a família caso necessite, em sintonia com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente – CEDECA, tem
por objetivo a constituição de espaço de convivência, formação para a participação

23 Uma policlínica típica oferece os serviços de um leque diversificado de profissionais de saúde,


incluindo médicos e enfermeiros de múltiplas especialidades, que prestam cuidados de saúde
em regime ambulatório, incluindo atendimento urgente e pequena cirurgia, mas não oferece
serviços cirúrgicos de média e grande complexidade e não permite a prestação de cuidados pré
e pós-operativos nem de cuidados intensivos.
24 Informações disponíveis em:
http://transparencia.osasco.sp.gov.br/portal/custom/arquivos/0337702B6F3044038759D811EA106
2FA.pdf//http://www.emsampa.com.br/delpol/sp_390.htm
/http://transparencia.osasco.sp.gov.br/portal/custom/arquivos/9531BF1F8D394C56852523696F
241111.pdf

83
e cidadania, desenvolvimento do protagonismo e de autonomia das crianças e
adolescentes, a partir dos interesses, demandas e potencialidades dessa faixa
etária.
O CEDECA de Osasco não possui local próprio, as atividades são realizadas
no salão cedido pela Igreja Católica. No mesmo espaço interno tem a cozinha, dois
banheiros e duas salas. Na área externa tem a quadra de esportes, três salas e
uma dispensa de alimentos e produtos de limpeza.
O corpo técnico é formado por cinco voluntárias sendo: uma oficineira, uma
auxiliar de serviços gerais, ora ajuda na limpeza, ora na cozinha, uma cozinheira e
duas voluntárias que aparecem na instituição esporadicamente e auxilia na
cozinha.
Por não ter apoio financeiro de nenhuma Instituição governamental e não
governamental e nem verba estaduais ou municipais, o CEDECA sobrevive de
doações espontâneas de amigos ou dos voluntários que trabalham no projeto
social. A doação em dinheiro ou alimentos contribui para realizar o café da manhã
ou da tarde das crianças e adolescentes assistidos pelo projeto.
Ao participar do dia a dia do CEDECA fomos percebendo alguns desafios
que transitavam no cotidiano dos trabalhadores: a defasagem de profissionais para
lidar com a demanda, as dificuldades de efetivar os direitos das crianças vítimas de
violência doméstica, a falta de mecanismos legais e conhecimento para articular a
rede de proteção, invisibilidade do tema sobre a violência doméstica, falta de
coordenação. Sentimentos de solidão e incapacidade para a resolução de
determinadas realidades, uma vez que as mesmas ficavam sozinhas no CEDECA.
Dada a complexidade do tema violência doméstica intrafamiliar e
destacando o abuso sexual infantil, percebemos que esse tipo de violência não era
discutido abertamente nem com as crianças e adolescentes e nem com o corpo
técnico da instituição.

A violência sexual é um campo minado de complexidade e confusão


pessoal e profissional para os trabalhadores que precisam lidar com as
consequências da violência (SOUZA, TAVARES, SOUSA, 2012, p. 104).

84
Esta afirmação citada acima, misturada à fala das trabalhadoras no campo
de pesquisa traduz a necessidade de rever concepções subjetivas a respeito do
abuso sexual infantil, pois elas contribuem para silenciar a violência doméstica
intrafamiliar e não permitem o avanço de políticas pensadas no coletivo para a
demanda. Gonçalves (2015) aponta que:

A implicação disso termina por ser a desconsideração da constituição


subjetiva dos fenômenos sociais (…) ou a desconsideração pela ênfase
dada aos processos individuais em uma perspectiva naturalizante, dos
próprios fenômenos sociais (GONÇALVES, 2015, p. 72).

Essa dimensão subjetiva a respeito do abuso sexual infantil, podemos


perceber o quanto interfere na construção de estratégias articulados com a Rede
de proteção, a partir do momento em que a violência é naturalizada e internalizada
no interior da Instituição.

85
Capítulo V – Análise da Pesquisa

5. Análise dos Resultados

A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa


em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar a
compreensão da realidade”. Temos que, nesse processo, considerar a
dialética objetividade/subjetividade e compreender que a realidade social
encontra múltiplas formas de ser configurada pelo sujeito, podendo tal
configuração ocorrer
sem a desconstrução de velhas concepções e emoções calcadas em
preconceitos,
visões ideologizadas, fragmentadas, etc. Mas, este é o nosso rumo
(KOSIK, 2002, p. 20).

A violência doméstica perpetrada contra criança e adolescente no interior da


família por ser um fenômeno complexo requer uma análise profunda e apropriada
da realidade em que esses sujeitos estão inseridos. Neste trabalho, procuramos
compreender como ocorre a acolhida, o atendimento, o encaminhamento dessa
demanda para a Rede de Proteção a partir do momento que se inicia o trabalho na
Instituição.
No exercício da prática profissional trabalhar com questões que envolvam
criança, adolescente e abuso sexual ainda é, muitas vezes, um tabu difícil de ser
enfrentado. A complexidade do fenômeno aumenta quando a violência ocorre no
seio da família, pois implica algumas questões como: mudança de pensamento
cultural, ideológico e concepções conservadoras a respeito da instituição família
entre outros, dificultando a proteção e a garantia de direitos desse grupo.
Apesar das políticas públicas estenderem esse direito às famílias, conforme
descrito no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), ainda hoje essa proteção não
está garantida.
Os dados coletados a partir do diário de campo possibilitaram analisar alguns
pontos: Como intervir na violência doméstica intrafamiliar? Como desconstruir
concepções naturalizadas para avançar em políticas de enfrentamento para esse

86
tipo específico de violência, a intrafamiliar? Por que os profissionais envolvidos não
alcançam a proteção integral para todos os membros da família?
A pesquisa de campo foi baseada em diferentes espaços, na Instituição
CEDECA, nas reuniões de Rede, participações nas reuniões para mobilizações nas
escolas e campanha nas ruas sobre o enfrentamento dos abusos sexuais infantis,
discussão de casos junto ao Conselho Tutelar, conversas com o gestor da
Instituição. Apresentamos a seguir os resultados, analisados em torno de algumas
categorias que expressam aspectos importantes para a caracterização dos
desafios presentes no enfrentamento dessa questão.

5.1. Família: espaço de risco ou proteção? Como esses conceitos


interferem na visão dos profissionais que lidam com a complexidade da
violência doméstica intrafamiliar

a) As concepções do conceito de família entre más e boas e os empecilhos


para na efetivação de direitos na Rede de proteção integral.

(…) tem-se o risco de culpabilizar, responsabilizar e sobrecarregar a


família como negociadora, provedora, cuidadora, alavancadora, lugar do
acolhimento. E não se pode esquecer também do perigo das
idealizações e dos estereótipos sobre a vida em família
(SAWAIA, 2015, p. 57).

Como vimos anteriormente, a concepção de família é perpassada por um


modelo específico de família padrão, em que cada membro familiar cumpre com o
seu papel social dentro desta instituição. Sua organização determina o lugar e o
papel do homem, da mulher e da criança.

Na visão conservadora espera-se que a família cumpra sua função


socializadora a partir do modelo conjugal “tradicional”. Espera-se a
presença de pai e mãe, cumprindo seus papéis sociais – o pai principal
provedor e a mãe principal cuidadora.” (RECIO, 2017, p. 112).
87
Ao longo de toda a observação participante, nas conversas, nas reuniões,
pudemos perceber como os profissionais, apoiados nessa visão conservadora e
tradicional, fortalecem a ideia de que, independente de outros fatores, culturais,
sociais, econômicos, o espaço familiar deve ser harmonioso e protetivo para todos
os membros, independentemente de qualquer realidade social:

Não importa o que os pais passaram o que importa é o cuidado com a


criança. O que não podemos aceitar é a irresponsabilidade dos
responsáveis. A criança precisa de um lar que garanta o seu
desenvolvimento saudável. Não quis ter filhos então é preciso cuidar.
Tantas famílias dão conta, independente da vida que levam (Sofia –
voluntária Cedeca).

A família precisa ser um lugar harmonioso onde pai e mãe garanta o futuro
das crianças. E não um lar com brigas, de proteção e não de violência,
abuso sexual. Precisa dar o exemplo, amor ao invés de violência (Ester –
estagiária de psicologia).

Esse modo de pensar o espaço da vida familiar a partir de um modelo padrão


burguês, que molda o espaço familiar como íntimo, seguro e fraterno, limita a
relação dos profissionais envolvidos com famílias que contém em sua dinâmica
familiar o abuso sexual infantil. Tais limites existentes não compreendem a família
como sujeitos coletivos e contraditórios resultando na exclusão da família nos
processos interventivos.
Algumas falas expressam essa questão:

Não adianta esperar que o agressor reconheça o seu erro. Pois do o


homem pode esperar qualquer coisa. Agora de a mãe ser conivente essa
situação já demais. Elas preferem muitas vezes o homem do que a
criança ou o adolescente. (Margarida – Assistente Social)

É tão culpada (mãe) quanto o pai. (José - Conselheiro Tutelar)

88
Porque a demanda de violência contra criança e adolescente cresce a
cada dia? Porque os pais não assumem o seu lugar nessa relação de pais
e filhos. Os mesmos que prometem dar carinho, são os mesmos que
batem estupram, abandonam. (Ana – voluntária)

A visão rígida baseada em normas disciplinadoras, tutela as vozes desses


sujeitos, fazendo recair sobre a família a culpa, a incapacidade de cuidar dos seus
membros, ao mesmo tempo em que se espera que resolvam todas as fragilidades
existentes no âmbito familiar.

Por isso que precisamos ser duros quando a mãe não leva a criança
/adolescente ao psicólogo ou não adere a nenhum serviço oferecido pela
Rede de. Atendimento, porque se os pais não cuidam, a justiça cuida. (Ana
– advogada, e estagiários de psicologia – reunião multidisciplinar)

Eu vejo pelo meu marido, ele trabalha fora, mas dentro de casa! Hum...não
quer saber de fazer nada. Não vou eu, levantar cedo, fazer almoço,
colocar os meninos para ir para a escola. Dar um jeito na casa para ver se
ele faz. E tem coisas que homem não sabe fazer mesmo, e como não
tenho paciência, vou e faço. As coisas de casa prefiro que eu faça mesmo.
Vejo essas crianças que a mãe não comparece na reunião e as
professoras tem a obrigação de educar. Educação tem que vir de casa, a
mãe precisa educar. (Tania – voluntária – Cedeca)

Essas situações são complicadas, porque quando chega a notificação é


porque todos os vínculos familiares já foram rompidos. As crianças foram
vitimadas. E nada foi feito. Quando chega às nossas mãos precisamos
pensar o que fazer, são muitos casos de violência infantil. Os responsáveis
nem querem comparecer e quando comparecem as desculpas são tantas,
que nem dá tempo para ouvir todas. Às vezes pegamos o caso,
investigamos e já encaminhamos a partir das informações colhidos. E
vamos conhecer a mãe, a tia, somente quando chega a notificação para
aparecer ao órgão responsável. (João – gestor Cedeca)

Em outro momento de conversa com algumas voluntárias do CEDECA, a


noção de violência é pontuada como falta de cuidado dos responsáveis, então

89
precisa ser” resolvida” no ambiente familiar a violação dos direitos da criança e do
adolescente. Como demonstra a fala abaixo.

A família precisa zelar pelo bem-estar da família, existe família com


diversos filhos, não conseguem cuidar nem de um, que dirá de tantos
outros. Já que colocou no mundo, precisa dar conta, eu criei meus 05
filhos, a situação era difícil, meu esposo bebia e chegava em casa quase
sempre alcoolizado, porém eu cuidei. Agora essas crianças passando por
essas situações de violência? Culpa dos pais! E na minha época não tinha
nenhum lugar para ajudar, como tem hoje o CEDECA. Tive que me virar
sozinha, sem ajuda de ninguém, Eu e Deus. Mãe é para isso! O que falta
nessas mulheres é vontade de trabalhar. Como que para ter mais filhos
ela tem? E não consegue resolver essa situação? Fica assistindo o pai
fazer essa crueldade com as filhas? A família é lugar de amor e paz,
mesmo que não tenha o que comer ou beber é preciso ser um lugar de
paz. Porque depois sobra para o CEDECA resolver essas coisas. (Isabel
– voluntária do Cedeca)

Com base nas falas acima podemos perceber a preocupação dos


profissionais em garantir os direitos da criança/ adolescente vítimas de abuso
sexual, porém dentro de famílias concebidas de maneira idealizada. Nesse sentido,
faz-se necessário ampliar a visão a respeito da violência doméstica intrafamiliar.
Sawaia (2015), em sua análise a respeito do núcleo familiar, aponta para a
necessidade da desconstrução dos pensamentos ideológicos arraigados sobre a
instituição familiar. E ao trabalhar com a instituição família não podemos
desconsiderar a relação afetiva existente entre membros. É necessário considerar
a família como espaço de afetos e alegrias, que potencializam e emancipam os
indivíduos, a partir de valores individualistas para enfrentar e resistir ao cotidiano
da sociedade. Por isso:

A escolha da família se justifica graças à sua principal característica, valor


afeto. Em minha opinião, está é a principal força que explica sua
permanência na história da humanidade. Ela é o único grupo que
promove, sem separação, a sobrevivência biológica e humana (…). Não
cinde razão, emoção e ação, nem eficácia instrumental estética (SAWAIA,
2015, p. 56).

90
Como pudemos perceber ao longo da pesquisa, os membros do grupo
familiar em nenhum momento foram citados pelos profissionais ou voluntários
participantes da reunião de Rede como sujeitos de direitos, a ponto de serem
incluídos no fluxo de atendimento da Rede de Proteção. E quando foram citados foi
para evidenciar que os mesmos não cumprem “regras” propostas pelo programa.

A família não adere aos programas de encaminhamento, faltam nas


oficinas, quando vêm não querem fazer as tarefas. Só comparecem
porque são pressionados pelo Ministério Público, CREAS, Colégios ou
Conselho Tutelar. (Reunião multidisciplinar)

Realizamos as oficinas de bonecas em que a família (mãe e filhos) pode


participar. Porém eles também não comparecem! Vem um ou dois dias e
não voltam mais. (Simone – psicóloga – Centro de Referência)

Se chegou até aqui agora é com nós (sic), resolveremos essa situação.
Já que a família não deu conta de resolver, já que ocorreu a quebra de
vínculos familiares, somos responsáveis por essa criança. (fala recolhida
na Reunião de Rede)

Já que temos que resolver de qualquer jeito essas questões (violências,


evasão escolar, abandono, negligência, alienação parental), tudo bate
aqui, então que seja da forma correta, do nosso jeito, com as armas que
temos. Porque depois que tem que prestar contas do atendimento, somos
nós. As instâncias superiores não perguntam para as famílias e sim para
os órgãos responsáveis. E temos prazo para dar esse retorno. Porque
senão respondemos pela demora. (Zilmar – Conselheiro Tutelar)

Como percebemos, mesmo na intervenção realizada de forma


multidisciplinar, as ações estão reduzidas a práticas punitivas, mecanicistas e
assistencialistas. É fundamental romper com as subjetividades que naturalizam,
reproduzem e legitimam certos estereótipos a respeito da mulher, da criança, do
homem e da família em favor da consolidação dos direitos efetivos desses sujeitos.

É preciso entender as razões históricas dos valores atribuídos à família


(SAWAIA, 2004, p. 20).
91
Ou ainda,

É preciso compreender as relações sociais e as formas de produção da


vida como fatores responsáveis pela produção do mundo psicológico. É
preciso incluir o mundo cotidiano e o mundo cultural e social na produção
e na compreensão do mundo psicológico (…) (BOCK, 2003, p. 27-28).

Então como pensar ações que efetivem os direitos dessas famílias no


Sistema de Garantia de Direitos? E como avançar nessas questões de proteção?
Na tentativa de responder a essas perguntas na perspectiva de contribuir
com estratégias que possibilite avanços nas Políticas Públicas que focam o trabalho
com a proteção de criança e adolescentes vítimas de violência doméstica,
especificamente o abuso sexual infantil intrafamiliar, é fundamental refletir a
respeito das transformações que ocorreram com o grupo familiar ao longo do
tempo.
É de extrema importância compreender a família na sua integralidade:
que famílias são essas, quais as suas trajetórias, como a dinâmica abusiva é
mantido nesta família, apreender particularidades de como as práticas violentas são
configuradas no seio familiar, permitindo realizar um registro mais amplo para que
possam aumentar a cobertura de inclusão dos membros familiares na Rede de
proteção integral.
O atendimento direto e cotidiano das vítimas de abuso sexual é um constante
desafio para o profissional, de como lidar com esse fenômeno complexo quer seja
com as crianças e adolescentes (vítimas diretas) ou as suas famílias (vítimas
envolvidas) na violência doméstica.
Dessa forma qualquer profissional que esteja envolvido com essa demanda
deve estar preparado para a complexidade da situação. Consideramos que são
fundamentais espaços de fala e escuta para que os trabalhadores possam refletir
a respeito da complexidade que envolve o fenômeno da violência doméstica
intrafamiliar: física, psicológica, abandono, negligência, e, especialmente, a
violência sexual, com o objetivo de construir estratégias de intervenção, articulação
e prevenção que direcionam o grupo familiar para a emancipação social.

92
No que consiste a prevenção no ciclo da violência contra criança e
adolescente, observa-se que de fato os profissionais desempenham um
papel de fundamental importância, e, por isso, devem estar inseridos em
um processo contínuo de formação permanente, qualificando o seu olhar,
sua escuta e suas ações (…) (ROCHA, 2015, p. 355).

Nesse sentido a abordagem da família como totalidade é inevitável e exige


desprendimento de conceitos pré-elaborados. É preciso observar a família como
ela é, dar voz e vez para o grupo o familiar na tentativa de diminuir a violência
doméstica intrafamiliar,
A importância do olhar ampliado, da escuta qualificada do profissional, com
o objetivo de proporcionar um atendimento acolhedor, solidário e protetivo, sem
julgamentos evitando a revitimização da violência, deve ser salientada. Focar não
apenas o direito individual (vítima), mas o direito coletivo (família). Tal ação exige
habilidade para manejar essa demanda garantindo atendimento especializado às
vítimas, fortalecendo o sistema de defesa e responsabilização dessas famílias.

b) A concepção a respeito da maternidade como forma de enfrentamento do


abuso sexual infantil intrafamiliar.

(…) os moralistas criticam as mulheres que preferem frequentar os


eventos mundanos a zelar pessoalmente da educação dos filhos. Por
outro lado, basta que um dos membros da família se recuse a se
confinar no “interior”, para que a mãe seja culpada. Se o pai não volta
para a casa depois do trabalho (…), é porque a mulher não sabe
proporcionar um lar aconchegante e filhos bem-comportados. Se as
crianças brincam na rua (…) é porque a mãe é incapaz de educa-lo
corretamente, aos olhos dos moralistas (…) o sinal mais evidente de
uma família malconduzida e, portanto, de uma mãe indigna. E por culpa
da mãe em primeiro lugar, pois é ela que é a polícia na família,
esperando-se que vigie constantemente os atos e os gestos dos filhos
(BADINTER, 1985, p. 277).

93
Como vimos no decorrer desta pesquisa, na família, uma instituição
historicamente construída que teve como modelo a família burguesa, a partir da
estrutura patriarcal, a mulher e a maternidade são cada vez mais valorizadas na
sociedade, como um espaço de afeto e vivência harmoniosa. Pautado em
habilidades “naturais” do gênero feminino, o ser mãe torna–se o foco central para
o rompimento da violência doméstica intrafamiliar, principalmente do abuso sexual
infantil. Como demonstram as falas que destacaremos a seguir:

Como a mãe pode permitir que a criança fosse abusada pelo pai? Onde
está o seu amor pelo filho? A mãe deve defender a criança em primeiro
lugar, pois ela é indefesa e inocente, ela é adulta e sabe se virar.
(Margarida – voluntária do Cedeca)

Um ponto importante a ser discutido dentro desta realidade que envolve


criança, adolescente e família seria: qual seria o lugar da mãe na concepção dos
profissionais envolvidos no processo de intervenção frente às violências
domésticas intrafamiliares, que envolvem abuso sexual infantil? O que ouvimos foi
“mãe sente”, ”mãe sabe, como ela não sabia?”, ”mãe tem instinto materno”, “ela foi
conivente com a situação”, “omissa”; falas essas utilizadas por profissionais que
participam da Rede de proteção para identificar e localizar a mãe nas situações de
violência:

A mãe é irresponsável, omissa, (…) vou enquadrar essa mãe, como


abandono de incapaz, vou coloca-la na parede é responsabilidade dela os
cuidados com os filhos, está negligenciando os cuidados com a filha. (Ana
– advogada)

Mãe é mãe, não adianta chorar! Para pensarmos em medidas de combate,


é necessário que a mãe se conscientize em relação a sua
responsabilidade frente à criança /adolescente abusada. (Cintia –
estagiária de psicologia)

Ou ainda

A questão do abuso sexual sabemos que é complexa, porém precisamos


da ajuda das mães. Elas precisam nos apoiar nesse momento. Já é difícil
94
e ainda elas não comparecem? Às vezes faltam para ficar em casa ou
porque não querem mesmo trazer a criança abusada. Não podemos fazer
milagres! Convocamos uma, duas, três vezes, através de contato
telefônico ou vamos até a residência. Quando não há saída é necessário
convocar a presença da mãe através do Ministério Público, fazer o que?
(João – ex-conselheiro Tutelar – gestor Cedeca)

Concordamos que a mulher não é vítima passiva na manutenção da


violência doméstica infantil no âmbito familiar. Ela também é sujeito na dinâmica
do abuso sexual intrafamiliar e às vezes atua como ponte para a manutenção dos
abusos sexuais ocorridos no ambiente familiar, vitimizando a criança e o
adolescente.
Porém, notamos que no decorrer das discussões de casos entre os
profissionais e estagiários, no que se refere à figura masculina, as falas em questão
demostram que os abusos sexuais perpetrados pelo homem são algo “esperado”,
ou seja, parece que essas questões de violência doméstica estão ligadas ao ser
masculino.

É pouca conversa com essas mães que encobrem os maridos, que são
coniventes com a situação dos abusos. É inaceitável essa situação, se
fosse com o meu filho esse cara iria ver só. O homem merece ser punido
criminalmente, e a mãe cuidar da família. Algumas sabem dos abusos
sexuais outras fingem que não sabem. (Denise – Conselheira Tutelar)

Do homem pode esperar tudo, essas atitudes “animais”, porque esse


instinto animal vem desde sempre. Existem pais bons, sim. Mas na maioria
dos casos de abuso sexuais são os homens. A mulher precisa estar ligada
24 horas nos filhos, principalmente a menina. E ainda mais quando é
padrasto, aí piorou. (Ana- voluntária Cedeca)

Coitadinhos das crianças, por descuido da mãe, elas sofrem esse tipo de
coisa. E depois sobra para nós tentarmos resolver os traumas que ficou
nela. (Simone- estagiária de psicologia)

Essa relação dicotômica entre homens e mulheres, em que os afetos e


a subjetividade naturalizam o lugar do homem, da mulher e da criança, desemboca

95
na submissão da mulher e da criança frente ao papel masculino. Lembrando que o
papel social do ser masculino e do ser feminino foi construído e definido através de
ideologias patriarcais que posicionam o homem como racional, pensante, provedor
econômico e protetor do grupo familiar, enquanto o papel da mulher fica
estabelecido como cuidadora da família em seus mais diversos aspectos, além de
manter a harmonia do lar. Portanto:

Não adianta contar com o homem, ele não entende nada. Precisa mesmo
é ir trabalhar para dar o que comer aos filhos, eles são moles. A mulher já
nasceu forte, consegue cuidar dos filhos, trabalhar fora lavar, passar, e
ainda cuidar dos filhos. Precisamos nos valorizar e deixar de correr atrás
desses homens que não querem saber de nada. (Joana – voluntária
Cedeca)

Sou separada, na realidade fui traída. Meu esposo disse que me amava,
temos 03 filhos e quando vi estava sendo traída. Tive que me virar,
arregaçar as mangas e ir trabalhar. Trabalhei em casa de família, vendia
pão, faço artesanatos, hoje tenho meu emprego fixo. Mas não deixo de
lutar e nunca deixei de cuidar dos meus filhos. E como essas mães não
cuidam? Gostam de sombra e água fresca, gostam de ficar pedindo daqui
e ali. Porque não vão pegar uma casa para limpar? Uma roupa para
passar? (Amanda – voluntária – Cedeca)

Querendo ou não, a mulher é a harmonia do lar, a mulher precisa estar


atenta aos conflitos, à mudança de comportamento dos filhos. Tem muitas
crianças que são levadas pela própria mãe para visitar pais, padrastos que
estão presos. Às vezes as crianças chegam com os braços cortados
porque estão sofrendo algum tipo de violência e a mãe está preocupada
em levar comida para o preso ou deixar o jantar pronto para o abusador.
E as crianças sofrendo. Claro que tem as mães que trabalham o dia todo,
chega a casa tarde e não consegue dar a atenção necessária, a correria
do dia a dia e hoje uma grande maioria de mulheres trabalha, mas a
responsabilidade com os filhos é dela. (João- ex-conselheiro tutelar-
gestor Cedeca)

Embora a valorização da independência da mulher seja reconhecida, ainda


não é visto uma alteração profunda na sociedade quanto aos papéis sociais

96
atribuídos ao gênero feminino e masculino. A mulher ainda é vista pela sociedade
e por ela mesma como mãe, educadora, esposa, trabalhadora e “guerreira”
desconsiderando os cuidados paternos com o núcleo familiar:

Sou mãe “guerreira”, por isso não precisei de homem nenhum para criar
meus filhos. Sofri e sofro, mas vou à luta, não fico esperando nada de
ninguém. Porque essas mulheres que não têm nada, não levantam cedo
e vai trabalhar? Lavar a roupa para alguém, pegar uma faxina. Gostam de
ficar pedindo, que as pessoas atenham dó delas. Acomodadas isso é que
elas são. (Joana- voluntária Cedeca)

Sempre dei conta dos meus filhos, trabalhava, meus fios estudavam,
andavam limpos. Não deixava ninguém passar fome, não me respondiam,
porque batia mesmo, com cabo de vassoura, espada de são Jorge, mas
não havia um que me respondesse. Agora hoje os filhos falta pouco bater
nas mães, elas só querem saber de ficar no celular. Não arruma a comida,
não ve os cadernos dos filhos, nem se preocupa com eles. Olha aqui já
fizemos várias reuniões e convidamos as mães, mas pergunta se elas
vieram – Nenhuma – Não querem saber de nada não. (Joana, Marlene,
Sofia – voluntárias Cedeca)

Essa dimensão subjetiva que vincula questões afetivas e maternidade à


figura feminina, reproduz que o cuidado paterno é simplesmente momentâneo e
que o afeto “natural” é entre mãe e filho, pois são elas as figuras mais próximas que
dividem com os seus filhos o “amor” materno.

A maternidade é algo que só pode ser sentido pela mãe. O homem não
terá esse privilegio nunca! Agora se ela gosta ou não da criança é outra
história. Se o pai ajuda ou não? Não sei. Mas nessas horas o amor de
mãe fala mais alto. Até a ligação entre mãe e filho é algo mágico que
somente a mãe sentirá. (Reunião multidisciplinar)

Eu vejo pelo meu marido, ele trabalha fora, mas dentro de casa!
Humm...não quer saber de fazer nada. Não vou eu, levantar cedo, fazer
almoço, colocar os meninos para ir para a escola. Dar um jeito na casa
para ver se ele faz. E tem coisas que homem não sabe fazer mesmo, e
como não tenho paciência, vou e faço. As coisas de casa prefiro que eu
faça mesmo. Vejo essas crianças que a mãe não comparece na reunião
97
e as professoras tem a obrigação de educar. Educação, cuidados com os
filhos tem que ser a mãe, homem só serve para bater, eles não têm
paciência. (Tania – voluntária – Cedeca)

Uma das estagiárias de psicologia, presente na reunião de Rede, relata que:

Esses casos de abuso sexual aparecem mais em pessoas pobres, na


maioria das vezes ligados ao álcool, a drogas, a pobreza, famílias
desestruturadas que geram violência na família. Mulheres que tem vários
filhos e não cuida de nenhum fica atrás do homem ou não tem coragem
de largar, porque não tem coragem de ir trabalhar, homem arruma outro,
agora o filho? Não pediu para nascer, então ela precisa cuidar, o que não
ela não pode permitir é que esse tipo atrocidade continue a acontecer.
Caso ela não queira, tem várias pessoas que desejam ser mães. Ou em
último caso tem os abrigos. Mas como pode? Ser mãe é tão único.

Sem dúvida, tais pensamentos implicam em lidar com posicionamentos


controversos, cristalizados e descolados da realidade, desconsiderando as
relações familiares existentes e olhando para elas a partir da sua subjetividade,
delimitam o modo de pensar, sentir e agir dos membros do grupo familiar a despeito
do modelo existente na sociedade.
Talvez os profissionais nem percebam que suas falas e práticas interventivas
são atravessadas por diversos pensamentos permeados e mediados pelo senso
comum. Entendemos que o abuso sexual é uma agressão de alta complexidade e
de difícil compreensão, ainda mais quando perpetrada contra criança e adolescente
no espaço familiar, porém é preciso um olhar humanizado, desnaturalizando a visão
romântica a respeito da figura feminina e, principalmente, da maternidade.
Até porque é importante salientar que a genitora também passa por
momentos conflituosos e ambíguos, diante da suspeita ou constatação de seu
companheiro estar abusando sexualmente de seus filhos. Essa nova realidade
desencadeia alguns impactos tais como: desilusão, vergonha, culpa, medo do
rompimento da família e da relação conjugal, ou seja,

98
A mãe, por sua vez, também vive uma situação de muita confusão e
ambiguidade diante da suspeita ou constatação de que o marido ou
companheiro abusa sexualmente da filha. Frequentemente nega os
indícios, denega suas percepções, recusa-se a aceitar a realidade da
traição do marido. Vive sentimentos ambivalentes em relação à filha: ao
mesmo tempo em que sente raiva e ciúme, sente-se culpada por não
protegê-la. Na verdade, ela também é vítima, vítima secundária, da
violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma
forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração
diante da ameaça de desmoronamento da unidade familiar e conjugal.
Pode acontecer também estar a negação da mãe relacionada com uma
cumplicidade silenciosa, muito frequente em casais com conflitos sexuais,
onde a criança ocupa um lugar (função sexual) que não é dela,
amenizando assim o conflito conjugal. Em qualquer das situações, o
desmentido materno, a afirmação de que nada aconteceu, é o pior que
pode acontecer a um adolescente que denuncia o abuso sexual
(ARAÚJO, 2002, p. 7).

Devemos lembrar que é dever da família, da sociedade e do Estado proteger


a criança e ao adolescente de qualquer situação de constrangimento e que ponha
em risco sua integridade física e emocional (ECA, 1990); e é um direito inalienável
da criança “estar a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão” (Constituição Federal do Brasil, art. 227). Não
pretendemos questionar os procedimentos utilizados na intervenção em casos de
violência doméstica e sim ressaltar a importância da compreensão das
peculiaridades existentes nas famílias em que o abuso sexual infantil está presente
na relação familiar e as realidades que possibilitam a manutenção dessas práticas
violentas no espaço familiar.
Com o intuito da manutenção familiar, a mãe, diante da violência
doméstica ocorrida, desencadeia os mais diversos sentimentos: culpa, ciúmes,
inveja, raiva; no primeiro instante é a negação do abuso sexual, buscando a
cumplicidade da criança/adolescente, desmentindo o que ocorreu através de pacto
de silêncio. Por isso,

99
Quando as mães não conseguem reconhecer o abuso, precisamos
realizar um trabalho com a negação. O trabalho da negação geralmente
leva a mudanças psicológicas e interacionais que possibilitam à mãe
reconhecer e acreditar na criança, e tornar-se protetora. O trabalho da
negação também pode mostrar que não é possível nenhuma mudança e
que a criança não deve ficar com a mãe, quando o abusador entrar
novamente no cenário familiar. No trabalho com a negação, precisamos
tratar de todas as ansiedades e possíveis desastres, que tornam
impossível para a mãe enfrentar a realidade do abuso sexual da criança
(FURNISS, 1993, p. 174).

Badinter (1985) em sua obra, “O mito do Amor materno”, faz alusão a essa
falsa ideia de que somente a mulher é responsável pelos cuidados da criança e
adolescente, da união do lar, pela boa ou má administração do ambiente privado.
A ideia da maternidade reforça a responsabilização e culpabilização da mulher pela
falta de cuidado com a prole; é uma ideia que está naturalizada na subjetividade de
cada profissional que atende essa demanda,

A associação das duas palavras, “amor” e “materno”, que significa só a


promoção do sentimento, como também da mulher enquanto mãe.
Deslocando-se insensivelmente da autoridade para o amor, o foco
ideológico ilumina cada vez mais a mãe, em detrimento do pai.
(BADINTER,1985, p. 145).

Como romper com as práticas conservadoras que norteiam as intervenções


dos profissionais que lidam diretamente com essa demanda?
Partimos do pressuposto de que, para o rompimento da dinâmica do ciclo
abusivo no grupo familiar, é preciso desconstruir as relações que sustentam e
naturalizam essa submissão, envolvidas na questão de gênero.
A questão de gênero significa a atribuição de identidade e papel social ao
gênero feminino e masculino. O que corresponde a um conjunto de expectativas
socioculturais quanto aos comportamentos “apropriados” e esperados das pessoas
de cada sexo, geradas pela assimetria de poder existente nas relações entre
homens e mulheres.

100
Inspirados em Saffioti e Almeida (2004), Azevedo e Guerra (1999),
Saraiva e Mandelbaum (2017, p.166), afirmam que “(…) é no interior das relações
que são constituídas as relações de poder, controle e submissão que contribuem
com a manutenção da violência doméstica sexual intrafamiliar.” não temos dúvida
de que a discussão sobre violência doméstica intrafamiliar é perpassa pela questão
de gênero. Portanto, a família faz parte deste processo, são atores ativos ou
passivos nesta relação intrínseca em que sentimentos, sentidos e significados se
misturam.

(…) o indivíduo apesar de ser único, contém a totalidade social e expressa


nas suas ações, pensamentos e sentimentos. Assim, o processo,
apreendido (e não as manifestações externas, respostas) a partir de um
sujeito pode revelar algo constitutivo e outros sujeitos que vivem
condições semelhantes (AGUIAR, 2015, p. 170).

Nesta perspectiva o trabalho social exige contextualizações importantes: é


social e relacional. É importante entender qual o lugar ocupado por cada um na
dinâmica familiar, sua posição em relação à manutenção dos abusos sexuais, bem
como a contribuição para o rompimento ou reorganização dos papéis no núcleo
familiar, com o intuito de efetivar os direitos de proteção para todos os membros
familiares, fugindo de intervenções focadas em concepções de poucas
efetividades, possibilitando a mudança da realidade familiar.
Por isso, a intervenção profissional, ao considerar esses processos pelos
quais percorre a violência doméstica sexual intrafamiliar, contribui para a quebra do
sigilo, do segredo familiar e consequentemente fornece informações que
possibilitem o deslocamento, descongelamento e a ressignificação dos sujeitos
cristalizados: mãe omissa, pai abusador e família desestruturada. Em relação ao
referencial teórico, esta pesquisa está baseada na perspectiva da psicologia sócia
histórica, com fundamento de análise que deve considerar indivíduo e sociedade,
subjetividade e objetividade de forma não dicotômica, mas como partes de um todo
imbricadas uma na outra, como unidades de contrários que interagem de forma
dialética, constituindo e sendo constituídas simultaneamente
Pode-se considerar que a psicologia sócia histórica movimenta a teoria
informando o método e consequentemente orienta a teoria contribuindo com o
101
modo de compreensão da realidade, pois ao estudar os processos singulares, a
metodologia considera as mediações sociais e históricas que constituem o sujeito.
É um estudo que privilegia o processo de mudança de seu objeto, por se tratar de
um estudo dialético e que não se descola dos princípios, concepções e práticas
dialéticas.

O materialismo histórico e dialético incorpora ao método a compreensão


do movimento da realidade como resultado da contradição presente em
cada ser e determinante da relação entre sujeito e objeto; incorpora ao
método a noção de transformação. No caso dos fenômenos humanos e
sociais, isso permite a explicação de sua historicidade (GONÇALVES,
2009 apud SIQUEIRA et. al, 2000, p. 144).

Baseados nesta perspectiva sócio histórica, compreendemos o nosso objeto


de estudo: a violência sexual infantil intrafamiliar/abuso sexual e quais os
significados e sentidos produzidos e pelos sujeitos envolvidos neste processo de
atendimento da criança, adolescente e suas respectivas famílias.
Um dos indicadores que norteiam a psicologia sócia histórica é reconhecer
o homem como sujeito social, concreto e histórico que ao produzir e reproduzir suas
práticas/ações, subjetividade/objetividade e seus significados transforma a si
próprio, ao mesmo tempo em que transforma a sociedade.
Neste contexto, focalizamos os fenômenos sociais relativos ao objeto de
estudo e realizamos a análise do material coletado. A partir das entrevistas, do
diário de campo, com os registros produzidos na observação participante, pudemos
apreender as características da dimensão subjetiva a respeito do abuso sexual
infantil intrafamiliar, bem como de suas famílias envolvidas neste fenômeno.

102
5.2. A Rede somos Nós! A complexidade do trabalho com as famílias vítimas
de violência doméstica frente ao fenômeno do abuso sexual infantil
intrafamiliar.

Seguimos trabalhando de forma muito fragmentada, respondendo


demandas pontuais com o que temos em mãos, ou seja, não temos
ocupado com a questão da integralidade de uma forma mais “completa”,
pelo menos do ponto de vista daquela pessoa concreta que, naquele
momento, busca alguma forma de assistência (CECILIO, 2001, p. 119).

a) Atendimento Psicológico: fragmentação da Rede nos atendimentos


a vítimas de violência doméstica intrafamiliar.

Outro aspecto importante notado durante a pesquisa de campo foi o


atendimento psicossocial voltado para as crianças e adolescentes vítimas de
violência doméstica em todas as instâncias: física, psicológica, sexual, negligência,
alienação parental e qualquer outro tipo de sofrimento que a criança venha a sofrer,
no CEDECA não havia filtro para os atendimentos. Há um pensamento fixo de que
as vítimas necessitam primeiramente do atendimento psicológico e as outras
questões tais como: saúde, trabalho, educação, entre outros ficariam em segundo
plano.
Como segue nas narrativas abaixo:

O mais importante é o atendimento psicológico, pois faz muita diferença,


faz muita falta no Município e a demanda é grande e poucos são os
profissionais, por isso corro atrás dos psicólogos. (João – gestor do
Cedeca)
As medidas protetivas? Já estamos cumprindo, uma vez que essa
demanda tem o atendimento psicológico. Porque o queremos mostrar é o
nosso trabalho, buscamos visibilidade, quando suprimos a necessidade,
estamos incomodando e com isso poderemos sentar com o Prefeito para
conversar sobre a verba para a nossa Organização. A demanda cresce a
cada dia. É muito importante que o CEDECA esteja junto. A nossa política

103
está inclusa neste combate, no enfrentamento do abuso sexual infanto-
juvenil. (José – gestor do Cedeca)

Essas reflexões narradas pelos profissionais nos revelam como os direitos


protetivos são violados, pois a criança, o adolescente e a família têm direito ao
atendimento multidisciplinar integral, com diversos atores: médicos, assistentes
sociais, pedagogos, principalmente nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar.

Neste momento não temos como agregar o atendimento do serviço social,


porque sabemos que a prioridade é o atendimento psicológico.
Recebemos a demanda do Conselho tutelar, dos Abrigos, de pessoas
conhecidas, das escolas em busca deste profissional. E para lidar com
situações de violência, déficit escolar ou outras demandas, somente o
psicólogo mesmo. (João – Gestor do Cedeca)

Atendimento com a família? No momento seria o atendimento clínico, não


temos como realizar o atendimento terapêutico ou em grupo, atendemos
prioritariamente a criança, caso necessite atendemos a mãe, agora a
família precisa procurar outro lugar para ser atendida. As estagiárias não
fazem atendimento familiar. (Manoel - Supervisor de Estágio da faculdade)

Nós atendemos a família, sim. Os casos de abusos sexuais que chegam


até nós, atendemos mesmo a demanda sendo grande. Primeiramente
passa pelo acolhimento com a assistente social e depois elas
encaminham para nós (psicóloga) e assim continuamos com o processo
de intervenção. Já ativemos casos em que o membro familiar queria
conversar individualmente, mas não temos como atender a todas as
pessoas dessa forma, até porque a política não nos permite e não temos
tempo para este tipo de serviço. A intervenção acontece no grupo
terapêutico, através da oficina de bonecas. (socioeducativa). (Renata -
psicóloga- Núcleo de Atendimento às crianças vítimas de abuso sexual)

Já na Instituição CEDECA, os atendimentos clínicos realizados pelas


estagiárias de psicologia eram de cinco consultas por usuário, sem contar com o
atendimento das famílias. Somente as crianças ou os adolescentes vitimados são,
a priori, atendidos:

104
O nosso atendimento está voltado para os pacientes que chegam até nós,
criança e adolescente. O nosso estágio está voltado para esse tipo de
público. Quando é necessário, atendemos a mãe, para uma conversa e
não para sessões de psicoterapia. Agora, família, nunca atendi. E também
não é essa a proposta. O nosso supervisor deixou claro qual o que
poderíamos fazer ou não. Cinco sessões por pessoa. (Cintia- estagiária
de psicologia)

Quando analisamos e sentimos que as consultas precisam ser estendidas,


conversamos com o supervisor de estágio (faculdade) primeiramente e
depois conversamos com a supervisora da Instituição, para passar o que
decidimos com o nosso supervisor de estágio. Porque estamos aqui na
Instituição sob a supervisão dele, e em outros tempos já houve um
desconforto entre a faculdade e a Instituição, então prefiro recorrer a ele.
(Eduarda – estagiária de psicologia)

Após cinco sessões, se o paciente demonstrar que está bem, damos alta.
Os nossos atendimentos são acompanhados de relatórios e a carteirinha
que fizemos para cada paciente. Caso o mesmo falte em duas sessões,
entramos em contato com o Conselho Tutelar informando a sua ausência
nas sessões. As sessões duram em média 45 minutos. E acho que alguns
casos cinco sessões são suficientes sim. (Marilene – estagiária de
psicologia)

Notamos no decorrer da conversa que não havia um olhar diferenciado para


os casos de abuso sexual, comparando com outros casos, como depressão,
evasão escolar. Isso porque, no entendimento dos estagiários e da Instituição,
todos tiveram os seus direitos violados. Fica claro a importância de o profissional
entender como o fluxo de atendimento funciona, para este tipo específico de
demanda:

Sabemos que cinco sessões podem parecer poucas. Porém já é inicio de


um cuidado que eles têm direito. Conforme o acordado entre a faculdade
e o CEDECA é o que podemos fazer. Podemos notar o quanto as pessoas
mudam após as sessões. Há casos que acompanhamos por mais tempo,
mas não são todos que podemos prolongar. A demanda é grande demais,

105
e não damos conta de tudo. Porém o que estiver em nosso alcance será
feito. (Fátima – estagiária de psicologia)

(pesquisadora) E os casos de abuso sexuais? Na maioria dos casos esses


pacientes já vêm de outro local: abrigos, escolas. Já tem alguém cuidando
desse paciente. E ainda passam com as estagiárias aqui no CEDECA?
Sim porque o atendimento aqui é individual, e lá no abrigo seria em grupo.
(pesquisadora) Entendi, e os casos que são suspeitas de violência, no
caso o abuso sexual também passam pelas cinco sessões? E depois faz
como? (...). A princípio são cinco sessões para cada paciente, foi o acordo
com a faculdade. Mas claro sabemos desses casos complexos. Após as
cinco sessões eu informo ao Conselho Tutelar. E lá eles encaminham para
a Rede de atendimento. O ideal é que essas pessoas tenham pelo menos
esse primeiro atendimento, essa triagem. Mas tem casos que
permanecem conosco por um tempo. (João – gestor do CEDECA)

Apesar da inciativa da Instituição CEDECA e da Faculdade responsável


pelos estagiários, diante da complexidade do fenômeno, entendemos que o
atendimento psicológico deveria ser mais um braço nesta luta contra a violência
doméstica infantil intrafamiliar e não a centralidade dos atendimentos:

E após as sessões de psicoterapia acabar, esses pacientes são


encaminhados para onde? (pesquisadora). Nós não encaminhamos para
nenhum outro lugar. Após o encerramento das sessões, comunicamos a
Instituição e com o Conselho Tutelar, aí é com eles. (Sandra - estagiária
de psicologia)

Mas não tem relatório de atendimento ou de encaminhamento com as


informações deste paciente? A instituição não fica com nenhum
documento? Caso você não fique mais na Instituição e seja necessário um
novo atendimento para essa paciente, terá que iniciar de novo?
(pesquisadora). Qualquer problema o Conselho Tutelar saberá, caso
precisem, conversamos pelo aplicativo do celular. O meu
acompanhamento é durante as sessões de atendimento. Depois disso já
não seria mais comigo. (Marilene – estagiária de psicologia)

106
E continuamos a conversar com o gestor da Instituição para tentar
compreender porque as vítimas de violência doméstica, especificamente abusos
sexuais, não eram encaminhadas para a Rede Proteção:

E como fica o acompanhamento desse paciente? Como saber se os


abusos sexuais foram cessados ou se a violência doméstica foi superada?
E porque não entram no fluxo de atendimento da Rede? (pesquisadora).
Não tinha atentado para o acompanhamento dos casos, porque a nossa
intenção de cara, é chamar a atenção do poder público para os nossos
serviços. Sabem da nossa capacidade, confiam no nosso trabalho, mas
até o momento não recebemos nenhuma verba. Mas sei da importância
dos acompanhamentos dos casos. Como o Conselho Tutelar também
sabe, mas a nossa parceria é somente o atendimento psicológico. Foi
importante você (pesquisadora) ter falado sobre os relatórios, o
encaminhamento, porque caso apareça alguma fiscalização, como vamos
comprovar o nosso trabalho? Agora, a Rede não funciona, os usuários
não são atendidos, como deveriam. Muitos aguardam há tempos por uma
consulta com psicólogo e nada. Temos um Centro de Referência que não
supre as necessidades, das vítimas de abuso sexual. Outro profissional
que faz falta aqui no Município de Osasco seria o psicopedagogo. Por isso
fui atrás de psicólogos, e estamos ajudando nos atendimentos das
crianças. Temos a nossa reunião com o Conselho Tutelar, e lá discutimos
os casos, as estagiárias levam seus relatórios, suas anotações que
fizeram sobre os pacientes. Quanto à Instituição preciso providenciar um
armário com chave, para colocar os documentos. (João – Gestor do
Cedeca)

Outra concepção encontrada durante a conversa foi a correlação entre


alienação parental e oportunismo, referente à família, encaminhada pelo Conselho
Tutelar para as sessões de psicoterapia. Descrita pela estagiária:

Ao término do atendimento, chegou à sala de espera, em que estava o


Gestor e a pesquisadora dizendo que a mãe era folgada, oportunista
porque queria de qualquer forma colocar o filho de 13 anos contra o ex-
marido. Mas que ela conversou com o menino de 13 anos e disse que ele
precisaria ser mais firme diante daquela situação, e caso quisesse visitar
o pai, deveria fazer. A mãe não poderia impedi-lo se essa fosse a vontade

107
dele. E que o problema era entre ela (mãe) e o pai dele. E disse que a
mãe não ouvia o que ela dizia, queria ir embora e ficava pedindo o papel
de comparecimento na consulta. Que a mãe era oportunista queria
somente o dinheiro da pensão, por isso ela suspendeu o atendimento.
(pesquisadora) Porque não encaminhou a família para atendimento
terapêutico familiar? (estagiária) não era necessário, pois já havia
percebido que não tem o que fazer naquela situação, não é uma questão
que o psicólogo possa ajudar, é um caso de alienação parental.
(pesquisadora) Sim, informações vieram descritas no documento
encaminhado pelo Conselho Tutelar, mas e em relação ao menino será
que ele consegue administrar sozinho as informações que você orientou?
E a mãe, as filhas? (estagiária) Não sei por que ele não me respondeu
nada, somente ficou ouvindo. A menina não falou nada e eu não evitei
falar com ela porque tem 10 anos, ainda é criança e a outra era bebe de
colo. (Marilene – estagiária de psicologia).

Como pudemos perceber no relato acima a violência da alienação parental


foi reduzida a oportunismo da mãe e empoderamento. A violência doméstica tem
características específicas e complexas, como já discutimos em diversos
momentos nesta pesquisa e necessita do trabalho em Rede. Os vários eixos
interventivos existentes no fluxo de atendimento asseguram uma melhor tratativa
em relação à vítima e à família que sofrem a violência, ou seja, pode permitir a
intervenção na dinâmica familiar.
Observamos que o sigilo é outro ponto que interfere no atendimento dos
profissionais, principalmente nos casos de abusos sexuais intrafamiliares.
Pautados no Código de Ética Profissional, ancorados na questão da ética e do sigilo
profissional, por vezes reproduzem a omissão e revitimização dos sujeitos
envolvidos na dinâmica da violência doméstica, por medo de ferir as regras
estabelecidas pela profissão. Como na fala apresentada pela estagiária de
psicologia:

(Marilene – estagiária de psicologia). Não podemos deixar os nossos


relatórios e nem passar para ninguém, as informações registradas no
atendimento com o paciente, pois temos um Código de Ética que pede
sigilo e segredo das questões tratadas. Porque até onde eu saiba não é
possível falar sobre os atendimentos, pois seguimos as regras do nosso

108
documento. Ética. (pesquisadora) Tenho ciência da questão do sigilo, até
porque a minha profissão como assistente social, também temos um
Código de Ética que trata essa questão, porém é necessário que o mínimo
seja descrito no relatório para a discussão com outros profissionais
envolvidos com a intervenção da demanda. Mas como fica a discussão
dos casos com a equipe multidisciplinar? (Marilene – estagiária de
psicologia). Verificarei e depois conversamos E assim a nossa conversa
encerrou porque a mesma foi embora e não tivemos acesso às
informações nem verbal e nem descrita por parte da profissional.

É evidente que não se pode expor o usuário, algumas informações que


cabem somente ao profissional e ao usuário não precisam ser descritas neste
relatório que será compartilhado com os outros profissionais envolvidos; mas, as
informações necessárias para se decidir a melhor intervenção a ser realizada
devem ser compartilhadas, dentro dos preceitos éticos. Até porque a política de
atendimento descreve que as intervenções serão realizadas a partir de intervenção
multidisciplinar.

Concordamos com Furniss (1998), Gabel (1997), Dalka e Vecina (2002) que
comungam da mesma ideia de Antônio (2002) ao descrever que:

(…) esses profissionais têm, muitas vezes, se baseado na questão ética


para manter o sigilo dos atendimentos, porém o resultado dessa postura
pode levar a um papel de omissão, em que a ética, invocada
erroneamente, provoca o inverso, ou seja, pode levar a uma postura
perversa e antiética. Assim a alegação do sigilo, amparado pelo Código
de Ética, poderá levar a um novo quadro de violência intrafamiliar
perpetuando-a de maneira cruel (ANTÔNIO, 2002, p. 213).

É interessante pensar: Porque a Psicologia tem lugar de destaque neste


processo “interventivo” a ponto de interferir no fluxo da Rede de proteção integral?
Por vezes o descrédito atribuído ao fluxo de atendimento colaborou para que
saídas aparentemente efetivas, se tornassem excludentes e ineficientes. Os
obstáculos ocasionados pelas intervenções profissionais podem isolar as vítimas e
impedi-las de acessar integralmente o Sistema de Garantia de Direitos. Essa

109
compreensão deslegitima a inclusão de outros profissionais para o
acompanhamento integral e articulado no âmbito da Rede de proteção.

Aliás, integralidade não se realiza nunca em um serviço; integralidade é


objetivo de rede (CECÍLIO, 2001, p. 117).

É importante que esse profissional conheça como funcionam as políticas


públicas voltadas para as questões que envolvem violência doméstica, sobretudo
o abuso sexual intrafamiliar. Deve-se construir saberes entre os profissionais
envolvidos, visando o fortalecimento e a construção dos espaços multidisciplinar,
transdisciplinar e interdisciplinar para a compreensão das subjetividades que
cercam a complexidade do fenômeno e romper com práticas de caráter
assistencialista,
O trabalho multidisciplinar e interdisciplinar aparece como um dos
elementos básicos, como condição para se ter o fenômeno em questão
compreendido de forma ampla e integral. (…) numa perspectiva ampliada,
recuperando a noção de prevenção (…) não se restringindo á assistência
(…) políticas públicas devem combinar ações amplas com ações
específicas, de grande visibilidade (…) (GONÇALVES, 2015, p. 113).

Tal perspectiva de ação se faz importante para garantir um atendimento mais


assistido, amplo e atencioso, que incorpore estratégias qualificadas no trato com a
instituição familiar. Pois sabemos que a família é um forte núcleo transmissor de
valores morais, sociais e culturais, além de agente de proteção aos seus membros.
A partir das falas projetadas dos profissionais nas reuniões de Rede, que
atendem as demandas das vítimas de violência doméstica intrafamiliar, da análise
realizada na Instituição CEDECA, foi possível apreender, compreender e analisar
quais as dificuldades presenciadas a respeito da efetivação e articulação da Rede
em relação à proteção integral da criança, adolescente e suas respectivas famílias.
É importante destacar que durante a pesquisa ficaram nítidos alguns limites
e dificuldades encontrados no trabalho em rede para a concretização dos direitos
da família no Sistema de Garantia de Direitos, tais como: a falta de comunicação
entre as instituições e os profissionais fragmentando o fluxo de atendimento; a falta
de infraestrutura e a falta de recursos humanos em conjunto com o aumento da

110
demanda que é apresentada aos profissionais existentes; a rede não estar
organizada no sentido de garantir o feedback das ações e encaminhamentos; ou,
limites em relação ao conhecimento e entendimento do papel e atribuição de cada
instituição, bem como a falta de troca de informações entre a rede com relação ao
acompanhamento dos casos. E, de forma geral, a falta de apoio do Estado com
Políticas Públicas mais eficientes.

b) A Desarticulação no fluxo de atendimento: uma rede de difícil acesso.

Na abordagem de redes, o profissional utiliza, antes de tudo, o olhar e a


escuta, por isso precisa ser sensíveis e atentos ao gesto, à palavra e ao
silêncio, tanto seu quanto da pessoa que atende, pois eles também
carregam o significado das relações sociais (SOARES, 2008, p. 186).

A articulação é uma das competências indispensáveis e necessárias para


que as famílias sejam incluídas no fluxo de atendimento e garantam a sua inclusão
no Sistema de Garantia de Direitos. São as articulações com os diversos setores
da sociedade: educação, assistência social, saúde, judiciário, entre outros, que
ofertam ações emancipadoras para esses sujeitos vítimas da violência doméstica
intrafamiliar.
Por isso ressaltamos que a inclusão dos sujeitos do núcleo familiar no fluxo
de atendimento é primordial, pois além de representar toda a complexidade social
existente na instituição familiar, necessitam dos profissionais articulados para a
eficácia do sistema protetivo.
Além de estabelecer um diálogo entre as vítimas e os profissionais, a Rede
propicia intervenções e articulações para a construção de ações críticas e
reflexivas, tanto para o trabalho com as famílias quanto para o próprio trabalho em
Rede.

Precisamos dar conta da demanda, a Prefeitura, o Município, os Órgãos


que regulamentam não estão nem aí. Não há locais para atender as
crianças abusadas, quanto mais a família. Atendemos os casos mais
graves, primeiramente. A dificuldade de atendimento é tanta que
concorremos com os abrigos, às escolas para conseguir acesso às Ongs.

111
O CEDECA é um local que atende gratuitamente, não nos cobra nada.
Conhecemos o trabalho, conhecemos o João e vocês também, sabemos
do trabalho dele como ex-conselheiro tutelar, que mesmo sem verba
atende abrigos que recebem ajuda da Prefeitura. Utilizam os espaços que
nos restam com os seus atendimentos, sabemos que às vezes o valor
repassado não seja o suficiente, mas nós do Conselho Tutelar temos o
CEDECA como um dos nossos apoiadores e mesmo assim é insuficiente.
Sabemos do furo da Rede e por isso corremos atrás de outras
possibilidades. (Sofia – advogada – reunião de Rede)

(João – gestor do CEDECA). Para nós o primordial é a criança, pois ao


retirar a criança violada do local onde ocorrem os abusos, essas famílias
já foram atendidas. (Pesquisadora): E como fica o atendimento para os
demais membros? Mãe, irmãos. (João – gestor CEDECA): A nossa
prioridade é a criança vítima, os demais membros vimos através das suas
ações que não tem acesso. Ainda não conseguimos contemplar toda a
família. Porém por hora só conseguimos atingir a vítima, a demanda é
crescente, e as Redes não dão conta. Por isso o CEDECA entrou para
auxiliar no fluxo de atendimento.

Sabemos que trabalhar em Rede é difícil, porém a um fluxo a ser seguido


e precisa ser respeitado. (Cibele – assistente social – Centro de
Referência)

A forma como as Redes se organizam no território demonstra a inflexão e as


dificuldades relatadas pelos profissionais. A falta de investimentos, o aumento da
demanda, locais específicos que atendam a demanda, entre outros limites
expostos. Destacamos algumas falas para demonstrar como esses obstáculos
existentes no fluxo de atendimento interferem nas articulações com os demais
atores da Rede, impossibilitando o enfrentamento coletivo e a efetivação dos
direitos desses sujeitos vitimados:

(João – gestor do CEDECA). Não podemos contar com as Instituições que


compõem a Rede, pois os atendimentos são muitos e demoram e somos
cobradas por isso. Por isso recorremos a Organizações amigas que
possam nos ajudar. O importante é não parar o atendimento. Por isso o
CEDECA surge como uma opção para que as crianças e adolescentes
sejam assistidos e seus direitos sejam efetivados passar seguir. (Renata
112
– psicóloga – Núcleo de Atendimento à criança vítima de abuso sexual).
Estamos realizando essa reunião, porque algumas instituições estão
atendendo a demanda, sem ao menos estar incluso no Sistema de
Garantia de Direitos. Atrapalham os nossos atendimentos. Não somos
comunicados por essas instituições a realização desses atendimentos, por
estagiários. Isso não nos ajuda só atrapalha o andamento do nosso
trabalho. Pois temos experiência no atendimento com essa demanda. E
não podemos romper com o fluxo já estabelecido.

Como podemos ter uma Rede de apoio se nos falta apoio do Estado e das
Instituições. A cada dia cresce o número de casos de violência e como
damos conta? Não tem como dar conta de tudo, a nossa prioridade é a
criança que sofreu o abuso sexual ser atendida, precisamos fazer a nossa
parte e o Estado, os Órgãos competentes a parte deles. Não conseguimos
encaminhar alguns casos para o CREAS ou para outros espaços, então
recorremos às parcerias com as Ongs que estão ao nosso redor para nos
ajudar. Independentemente se estão ou não no fluxo de atendimento.
Precisamos atender a nossa demanda de alguma de alguma forma.
(Renata- conselho Tutelar)

Conhecer a política de atendimento na qual os profissionais, voluntários e


gestores estejam envolvidos pode ser uma saída para a desfragmentação do
serviço. Em uma das reuniões da Rede, a assistente social do Centro de
Referência, pergunta ao gestor, às estagiárias, às voluntárias da Instituição
CEDECA em que política o projeto está ancorado, se na Assistência Social, Saúde
ou Educação, e não souberam responder.

Em qual política o CEDECA está ancorado? Pois sem saber qual a política
fica difícil de fazer parte da Rede E vocês estagiárias sabem? Porque é
importante saber como agir, como atender a partir do momento em que
souber com qual política está trabalhando. E outro ponto importante é o
acolhimento. Pelo que percebi ocorre somente os atendimentos com os
usuários, mas e o acolhimento como fica? Os relatórios produzidos nesse
atendimento. A discussão ode casos, a demanda. Acho que é preciso
reavaliar se realmente essa forma de agir está ajudando. (Elaine –
assistente social- Núcleo de Atendimento à criança vítima de abuso
sexual)

113
Entramos no fluxo de atendimento, porque sabíamos que precisavam de
profissionais para atender as crianças e adolescentes vítimas de abuso
sexual. E realmente percebemos o quanto a demanda é grande, é preciso
de mais profissionais que atendam esses casos. Desde quando ajudo no
CEDECA como voluntária vejo que a demanda somente cresce. Hoje
atendemos até crianças de abrigos, que tem a ajuda do Governo. Porque
não consegue vaga com a psicóloga na Rede de proteção (Ana –
Supervisora de estágio)

Precisamos aprimorar a Rede! Pensarmos em articular como novos


atores. Mas é necessário que conheça como a rede funciona. Como está
articulada. A comunicação é primordial para que possamos pensar em
novos atores. (fala recolhida na reunião de Rede)

Os profissionais também vivem situações de vulnerabilidades, por isso a


importância de não trabalhar isolados. Então como trabalhar com tantos furos na
Rede? Quais estratégias podem ser utilizadas para tapar os furos existentes na
Rede?
Abordaremos esses temas nas discussões seguintes.

c) Uma Rede sem infraestrutura: quais as estratégias para tentar tapar


os “furos” da Rede.

Como pudemos observar o cotidiano profissional, enfrenta alguns desafios


em suas práticas. Dificuldades encontradas para as articulações,
encaminhamentos e a inserção das famílias na Rede de proteção integral; além
das deficiências materiais e a falta de profissionais. Porém, nesse sentido os papéis
não podem ser confundidos cada profissional deverá contribuir com a sua
especificidade de forma interdisciplinar para que avancemos com novas
metodologias para o enfrentamento da violência doméstica sexual intrafamiliar
perpetrada contra a criança e o adolescente, bem como com os membros
familiares.

114
Hoje a Rede de proteção convive em com um sistema cíclico de
pragmatismo e imediatismo porque o foco neste momento está em “dar conta” da
demanda:

Quando nos deparamos com a demanda e não temos para onde


encaminhar? Recorremos aos parceiros. Porque se houver novamente a
denúncia, bate primeiramente no Conselho Tutelar. Caso não ocorra o
encaminhamento, quem será cobrado pelo Ministério Público? O
conselheiro tutelar. Então, estamos utilizando as ferramentas que temos;
no momento seria o CEDECA. (Irene – Conselheira Tutelar)

Quando entramos em contato com o CREAS, para encaminhar o caso de


violência que chegou até nós, foi nos perguntado se era caso de abuso
sexual infantil. Respondi não sei. (Henrique – Conselheiro Tutelar)

E o Conselheiro continua enfatizando a dificuldade de acessar a Rede de


proteção:
Como vou saber se o caso é de abuso sexual? Recebemos a denúncia,
constatamos que ocorreu a violência doméstica contra a criança, agora se
ocorreu abusos sexuais, quem precisa investigar não seria o Conselho
Tutelar. Agora a dificuldade está em acolher a demanda, uma vez que não
há lugar para todos os que necessitam dela. (Henrique – Conselheiro
Tutelar)

Como pudemos perceber, a crescente demanda a respeito da violência


doméstica sexual intrafamiliar, limita as ações dos profissionais e por vezes impede
que novas estratégias sejam desenvolvidas, o que contribui com a reprodução da
violência no âmbito familiar.

A pergunta foi realizada, porque como todos sabem o CREAS trata a


quebra de vínculos na família. E às vezes chegam para nós casos de
violência física, psicológica, negligência, esses casos são primeiramente
no CRAS. Nós estamos trabalhando acima do limite. (Cláudia – CREAS)

Por isso utilizamos dos parceiros, encaminhamos para o CEDECA. O


nosso parceiro que atende a nossa demanda. Sabemos dos desafios, e
precisamos de ajuda. Essa reunião para pedir explicações porque
115
encaminhamos para o CEDECA, sendo que a Instituição não faz parte da
Rede? Porque os locais de referência para os atendimentos no Município
de Osasco, não atendem todas as demandas. Já tivemos casos de
pessoas que ficaram até dois anos na fila esperando por atendimento.
Com a entrada do CEDECA conseguimos equilibrar. Mesmo assim tem
pessoas que demoram 6 meses para ser atendidas. Então para nós
Conselheiros vemos o CEDECA como um grande parceiro. (Deise –
Conselheira Tutelar)

A falta de comunicação entre os profissionais envolvidos na articulação


dificulta o encaminhamento, a elaboração de técnicas profissionais para o
atendimento da demanda, a troca de experiência entre os profissionais. É
importante rever os processos metodológicos utilizados pelas equipes, entre outras
possibilidades de enfrentamento existentes no trabalho em Rede.

Sabemos que a demanda é crescente, porém esses atendimentos


atrapalham o nosso trabalho. Recebemos a notificação e quando ligamos
para a pessoa, ela nos diz que já está passando com o psicólogo ou
quando iniciamos o tratamento, a pessoa não comparece mais à oficina,
quando perguntamos ela diz que está passando em outro local. E o nosso
trabalho? Nós fomos nos aperfeiçoando no trato com essa demanda.
Nossa equipe multidisciplinar tem reunião uma vez por semana, para
discussão de casos, acompanhamos as famílias que passam conosco. E
o CEDECA, com as estagiárias? Não vejo que há esses processos, como
é que atendem à demanda de violência, se são estagiárias? E porque não
comunicaram conosco que o CEDECA também estava atendendo esses
casos? Deveria ter nos avisado. Entramos em contato com o CREAS para
saber se tinham ciência desses atendimentos no CEDECA. E a resposta
foi a mesma: não (Silvia – assistente social – Núcleo de Atendimento à
criança e adolescente vítima de abuso sexual)

Trabalhamos articulados com o CREAS, com o Conselho Tutelar, com a


Educação e também com o poder Judiciário. Não podemos desarticular a
Rede. Sabemos das dificuldades, dos obstáculos, mas o trabalho precisa
ser coletivo. (Valquíria – assistente social – Núcleo de Atendimento à
criança e adolescente vítima de abuso sexual)

116
Ações isoladas aparecem como saídas estratégicas para a crescente
demanda dos casos de violência doméstica, práticas que supostamente auxiliam
na “diminuição da demanda”, porém atrapalham o andamento do fluxo de
atendimento, não efetivam os direitos das vítimas e não contribuem para a
elaboração de políticas de enfrentamento.

Nós notamos que os casos encaminhados pelo Conselho Tutelar, a


demanda passou a diminuir, e pensamos que o Centro de referência
estava atendendo. Foi quando nos deparamos essa informação, de que o
CEDECA estava atendendo alguns casos de abuso sexuais. E esses
encaminhamentos não eram notificados em nenhum lugar, pois
precisamos dessas informações para repassar ao Município, a área da
Saúde, precisamos de dados para apresentar aos órgãos responsáveis.
Se quisermos avançar no enfrentamento da violência, se queremos cobrar
do Município precisamos dos dados, das informações. Somente com
números somos ouvidos e atendimentos pelos deputados, prefeitos,
gestores. Então precisamos entender como esse trabalho está sendo
realizado por vocês? Essa reunião é para entendermos como acontecem
esses encaminhamentos, como é realizado os atendimentos. (Vanessa –
CREAS)

A partir dessas indagações que surgiram no decorrer da reunião, relatadas


pelas profissionais do CREAS e Do Núcleo de Atendimento para crianças vítimas
de abuso sexual, os Conselheiros Tutelares, o responsável pelo CEDECA, algumas
estagiárias e a Supervisora de estágio do CEDECA, defenderam a permanência da
Instituição nos atendimentos dos casos de violência.

As informações relatadas pelas responsáveis alegam que vem para o


Centro de Referência para ficar na oficina de bonecas, e não é isso que
elas querem. Relatam que precisam ser atendidas, ou, quando precisam
falar individualmente não são atendidas, pois a conversa seria em grupo.
Então como resolvemos isso? Vocês não querem o CEDECA no circuito,
então como faremos, pois, a demanda não está sendo atendida. E o
primeiro lugar que bate a denúncia é no Conselho Tutelar. Se a Rede não
nos atende a quem vamos recorrer? Aos parceiros. E todos que aqui estão
conhecem o trabalho do João como Conselheiro Tutelar, sabemos do seu
comprometimento com a causa. (Rose – Conselho Tutelar)

117
Nós atendemos orientadas pelo nosso supervisor de estágio, quando vejo
que é uma situação de violência, não prossigo. E passo os dados para
outra pessoa. O nosso trabalho é bem consciente, respeitoso e ético.
(Simone – estagiária de psicologia)

Foi uma ação pontual, individual, no intuito de atender a demanda, porém


não é possível caminhar sozinho. É preciso estar incluso no fluxo de atendimento.
Não são apenas as ações que garantem o atendimento integral dos sujeitos vítimas
de violência doméstica e sim pensar estratégias que não reforcem essas práticas:

A Rede de atendimento é muito importante, por isso estamos contribuindo


para essa articulação. Trabalhar em Rede é a melhor saída. Por isso
viemos nesta reunião para que a nossa comunicação seja única. (João –
gestor do CEDECA).

A Rede ainda é de difícil acesso, quando precisamos de atendimento para


as crianças. Não conseguimos tão fácil assim. O motivo é porque não tem
vaga, outro é porque não há tantos profissionais na Rede. Precisamos de
psicopedagogo e até o momento não conseguimos encontrar na Rede. E
o CEDECA nos auxilia nesse sentido. (Zilmar – Conselheiro Tutelar)

Podemos perceber através das falas apresentadas por diversos profissionais


de diferentes espaços, a dificuldade de articulação com a Rede por diversos
motivos: a falta de encaminhamento, a falta de acolhimento, a falta de material que
possibilite a visibilidade do fenômeno, que acabam desembocando em decisões
isoladas e fragmentadas no dia a dia profissional.
Entendemos a preocupação do Núcleo de Atendimento para crianças
vítimas de abuso sexual para crianças vítimas de abuso sexual, do CREAS e de
outros atores envolvidos nos cuidados com esse tipo específico de demanda.

Precisamos de uma Rede mais forte, porque os casos de abuso sexual só


crescem, e como faremos? Às vezes nos sentimos atados e precisamos
correr para conseguir profissionais que atendam a demanda. E os
psicólogos do CEDECA nos ajudam muito. (Margarida – Conselheira
Tutelar)
118
Estamos nesta reunião e ainda não decidimos nada em relação aos
atendimentos, como podemos fortalecer a Rede? Porque precisamos de
uma saída, pois ao passarmos por aquela porta nós, principalmente os
Conselheiros Tutelares terão que resolver as situações que chegam para
nós. (Deise – conselheira Tutelar)

Que há um furo na Rede isso ninguém nega. Mas precisamos encontrar


uma foram da nossa comunicação ser mais eficaz e produzir efetividade
nos atendimentos. (Valquíria – assistente social – Núcleo de Atendimento
à Crianças vítima de abuso sexual)

Esse sentimento de solidão e isolamento foi o que podemos apreender nos


espaços em que estivemos presentes; e, em alguns casos a falta de sensibilidade;
ambas as situações provocam essas ações fragmentadas, pontuais e isoladas
contribuindo para a formação de pequenas redes dentro da própria Rede.

Entendemos que há um furo na Rede, porém precisamos verificar qual a


melhor maneira para que o atendimento das crianças vitimizadas, não
sejam interrompidos e sim siga o fluxo de atendimento. (Simone-
psicóloga do Núcleo de Atendimento à criança e adolescente vítima de
abuso sexual)

Não podemos esquecer que existe um fluxo a ser seguido, políticas que
garantem o atendimento das crianças. Sei que aqui todos têm as melhores
intenções, sabemos que o objetivo é a proteção da criança, porém não
podemos desarticular a Rede. (Joana – CREAS)

Eu vejo o quanto os Conselheiros Tutelares necessitam e ajuda. E não


tem. Pensamos nesta forma de apoio, para ajudar no fluxo de atendimento
e auxiliar o trabalho deles (Conselheiros Tutelares). Tem horas que diante
da situação não sabem para onde correr. ÀS vezes bate um desespero
mesmo e é preciso buscar parceria. (João – gestor Cedeca)

Devido à complexidade do fenômeno, os profissionais envolvidos no


processo de intervenção, por falta de estrutura na Rede, adaptam a forma de

119
trabalhar com a demanda, definem algumas estratégias de ação e enquadram os
sujeitos nessa nova metodologia de trabalho.
A Rede continua sendo a saída para o atendimento dos casos de violência,
especificamente os abusos sexuais. A questão torna-se mais complexa quando os
abusos ocorrem no interior da família, é preciso (re) pensar as práticas evitando a
invisibilidade do fenômeno, por isso:

Os profissionais precisam manter um contato mais íntimo, constante e


coordenado com os profissionais de outras áreas (educação, social,
justiça entre outros), com a formação de uma rede eficaz de proteção à
criança e à família (SILVA & VECINAS, 2002, p. 281).

Como pensar ações que possibilitem o fortalecimento da Rede de proteção


e a inclusão das vítimas e da família no Sistema de Garantia de Direitos?
Como foi discutido é necessário que esses casos de violência doméstica
intrafamiliar garantam um manejo especializado, diferenciado dos demais tipos de
atendimentos. Há a necessidade de um olhar mais amplo, totalizador, pela equipe
de atendimento, o enfoque na proteção integral da família, foco na interrupção da
violência, articulação em Rede e atendimento multi, inter e transdisciplinar. Para se
pensar essas questões:

Neste encontro de usuário com a equipe, haveria de prevalecer, sempre,


o compromisso e a preocupação de se fazer a melhor escuta possível das
necessidades de saúde trazidas por aquela pessoa que busca o serviço,
apresentadas ou “travestidas” em alguma(s) específica(s). Poderíamos
trabalhar com a imagem de alguém (…) trazendo uma “cesta de
necessidades” (…), que caberia à equipe ter a sensibilidade e preparo
para decodificar e saber atender da melhor maneira possível (CECILIO,
2001, p.116).

Consideramos que a intervenção realizada em conjunto é imprescindível


para a articulação, reflexão das ações interventivas. É essa diversidade de
profissionais: assistentes sociais, psicólogos, juízes, médicos entre outros que
possibilita o processo de construção permanente e profunda sobre o fenômeno,

120
apreendendo a dinâmica familiar e de que maneira a violência foi instaurada no
seio da família25.

5.3. Como desatar os nós? Possíveis caminhos para reflexão e


discussão de novas estratégias e elaboração para o enfrentamento da
Violência Sexual Intrafamiliar

A priori poderíamos pensar na revisão do fluxo de atendimento para vítimas


de abuso sexual intrafamiliar e extrafamiliar na esfera das políticas públicas. Porém
percebemos que os sentidos e significados, as simbologias, as subjetividades, as
realidades que estão presentes em forma de abuso sexual, não são interpretadas
da mesma forma nem pela vítima, nem pela família e nem pela sociedade. Essa
diversidade aparece entre os profissionais que trabalham nos serviços que
atendem essa demanda.
Dentre muitas sugestões levantamos alguns pontos para serem analisados,
sugerimos algumas ações que são fundamentais para a compreensão e
enfrentamento da violência sexual intrafamiliar.
A rede de atendimento e os órgãos que estão articulados com o Sistema
de Garantia de Direitos de Crianças a Adolescentes (SGDCA), precisam utilizar a
mesma “língua” para que a denúncia siga o fluxo de responsabilização. Faleiros e
Faleiros, 2001 enfatizam que a atuação em casos de abuso sexual intrafamiliar de
crianças e adolescentes tem que ser, necessariamente, intersetorial,
interinstitucional e integrada com uma comunicação fluente entre os diversos
segmentos.

25
Conforme Furniss, “ (…) Os objetivos e as etapas que constituem a base desse tipo de intervenção
são bloquear a continuação do abuso sexual, estabelecer os fatos do abuso como uma realidade
familiar compartilhada, assunção de responsabilidades pelo abuso e trabalhar com as díades
mãe, criança e pai criança e os paios como parceiros” (1993, p. 116).
121
Muitas vezes observa-se o despreparo dos profissionais da área da saúde,
assistência social, ora pela atuação limitada em relação à proteção da criança, ora
pela falta de acolhimento da vítima e da família, gerando intervenções inadequadas
colaborando com a manutenção da violência. Investir na qualificação dos
profissionais seria uma das saídas e a outra seria o profissionalismo sem
julgamento, cada caso deve ser tratado como único, não pode ser igualado a
nenhum outro por mais parecido que seja. (…) A intervenção descoordenada
geralmente conduz ao fracasso da intervenção, com traumatização secundária da
criança e da família (FURNISS,1993). O autor adverte ainda sobre a necessidade
de distinção entre sigilo e segredo na atuação profissional em casos de abuso
sexual de crianças.
O abuso sexual infantil intrafamiliar é visto como o mais perverso, por isso
para potencializar a importância de incluir a família nos atendimentos interventivos
para compreender a dimensão subjetiva a partir dos sujeitos ativos ou passivos
participantes na dinâmica familiar, é preciso aproximar-se da realidade para melhor
apreender a sua base material, objetivando compreender como esse tipo de
violência é estruturado no ambiente familiar.
Como expõe Bock (2003):

(...). É preciso compreender as relações sociais e as formas de produção


da vida como fatores responsáveis pela produção do mundo psicológico.
É preciso incluirmos o mundo cotidiano e o mundo cultural e social na
produção e na compreensão do mundo psicológico (...) (BOCK, 2003, p.
27).

Nesse sentido, podemos dizer que na situação de violência doméstica


intrafamiliar, destacando o abuso sexual infantil, a criança e o adolescente
vivenciam um rompimento de confiança com a pessoa em quem ela poderia confiar,
e conforme explicado anteriormente, o segredo familiar entra neste circuito, o que
pode significar a manutenção da violência. Tais processos têm sido deixados de
lado pelos profissionais envolvidos SDGCA na maioria dos casos atendidos, o que
torna a intervenção fragmentada.

122
Torna-se cada vez mais urgente criar estruturas de tratamento para as
pessoas que abusam sexualmente, na comunidade e nas prisões, de
modo a podermos transformar uma Intervenção Punitiva (…) em
Intervenções Terapêuticas. (…) (FURNISS,1993, p. 268).

Diante deste fato cabe ressaltar que cada caso de violência doméstica
intrafamiliar, deve ser analisado de forma única, individual e peculiar porque cada
núcleo familiar tem suas características próprias. E aprofundar essa discussão
acerca das famílias e sua dinâmica é desenvolver ações preventivas e não somente
estabelecer formas punitivas.
Os abusos sexuais intrafamiliares são diferentes dos abusos sexuais
extrafamiliares e precisam ser vistos de forma diferente, isto quer dizer, utilizar
diferentes manejos para a intervenção. No caso do abuso sexual intrafamiliar,
cometido pelo pai, a criança necessariamente convive todos os dias com o
agressor. Existe uma dinâmica que envolve a violência sexual infantil.

Não é somente incluir a família na ação interventiva, mas compreender a sua


integralidade e para, além disso, entender o lugar que cada sujeito ocupa na
conformação das lealdades, sua posição relativa na coesão familiar, bem como o
seu rompimento, reorganização dos vínculos, ressignificação de papéis pelos
integrantes da família abusiva. Furniss (1993) ressalta que “é necessário trazer a
mãe no processo de revelação, assim como os irmãos da vítima, devendo ser cada
caso avaliado para buscar a melhor forma de trabalhar com o grupo familiar”. Pois
a família faz parte deste processo, são atores passivos ou ativos nesta relação
intrínseca em que sentimentos, sentidos e significados se misturam.
Essa nova forma penalizadora está em jogo para criminalizar a família como
desestruturada, em seus discursos argumentativos. Sendo assim o Estado reduz
as políticas públicas voltadas para essa demanda, isentando-se de qualquer
responsabilidade e assiste de fora a recuperação dessa tal família através das
Ongs ou da sua própria capacidade de se reinventar.
Sabemos que é fácil falar e complexo fazer, porém é necessário ir em
direção aos avanços das políticas públicas que assegurem a inclusão de todos os
membros familiares no Sistema de Garantia de Direitos, bem como condições

123
melhores de trabalho aos trabalhadores que lidam com essa demanda e com este
fenômeno repetitivo, cansativo e complexo.
E as políticas públicas necessariamente precisam estar atentas a esses
detalhes específicos. Para pensar em enfrentamento e avanços. O desafio é
levantar alguns questionamentos interventivos que possibilitem a e a inclusão do
abusador no ciclo das Políticas Públicas, contribuindo com a diminuição da
violência doméstica intrafamiliar.

124
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sou feita de retalhos. Pedacinhos coloridos de cada vida


que passa pela minha e que vou costurando na alma.
Nem sempre bonitos, nem sempre felizes,
mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou.
Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior.
Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade…
que me tornam mais pessoa, mais humano, mais completo.
E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de outras gentes
que vão se tornando parte da gente também.
E a melhor parte é que nunca estaremos prontos, finalizados…
haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma.

Cora Coralina – colcha de retalhos

Com o desenvolvimento da pesquisa, ficou evidenciado que o debate acerca


do assunto da violência doméstica intrafamiliar é extremamente importante e que
diante de sua complexidade, obviamente, não se esgota aqui. Como vimos,
(Azevedo & Guerra, 2015) o abuso sexual infantil é o mais perverso, pois este tipo
de violência carrega consigo a física, a psicológica e também a negligência.
Essa é a violência mais difícil de ser identificada, dada a sua complexidade,
podendo ocorrer por anos sendo silenciada no ambiente da família. Mas por que
esse tipo de violência ainda é tão difícil de ser denunciada?
Mesmo diante de políticas que contribuem para a redução das violências, as
denúncias mostram que o problema não diminui, como foi dito por diversas pessoas
durante a pesquisa. Onde está o nó?
Talvez o princípio do nó esteja nos adjetivos ideológicos acoplados à ideia
de família, tais como: a família como algo sagrado e intocável; a figura do pai como
o provedor e a da mãe como afetuosa, bondosa e carinhosa; que o ambiente
familiar é um lugar seguro, afetivo e protetor. Quiçá desmistificar esses conceitos
seja o começo?
Pode ser o início da ruptura do ciclo da violência intrafamiliar. Não estamos
dizendo que todo o ambiente familiar seja violento ou que nessas ou naquelas
famílias não exista carinho, afeto e respeito. Porém esta dimensão subjetiva
125
construída ao redor do núcleo familiar reforça ideias naturalizadas de submissão,
obediência, centralidade de poder, legitimando a reprodução da violência através
dos papéis sociais definidos para o gênero masculino e feminino. Chauí (1985)
retrata bem as consequências dessas estruturas ideologizadas:

A violência deseja a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela


vontade do outro que consente em ser suprimido na sua diferença (…) a
violência perfeita é aquela que resulta em alienação, identificação de
vontade e da ação de alguém com a vontade e a ação contrária que
domina (CHAUÍ, 1985, p. 37).

Pois é na vida cotidiana que essa reprodução acontece, os pressupostos


ideológicos são inseridos nos hábitos, nos costumes das pessoas ou de grupos; e
é também aí que as contradições se expressam e, a partir disso, eles podem mudar,
se modificarem, ou podem aparecer ideias novas.
O imaginário social continua a articular este tipo de violência doméstica
intrafamiliar a práticas sexuais onde exista a penetração anal ou vaginal,
esquecendo que a violência sexual se manifesta de forma ampla e tem como
premissa básica a identificação da criança como mero objeto de desejo sexual.
Como notamos no decorrer da pesquisa, no contexto aqui analisado, o
atendimento das crianças e adolescentes que sofreram abusos sexuais está
baseado em uma concepção clínica, pontual e focado na vítima. A não inclusão das
demais pessoas do convívio familiar, que consequentemente estão implicados com
a questão da violência, vêm dificultando e/ou impossibilitando que a complexidade
do fenômeno seja compreendida em sua totalidade, uma vez que o lócus da
questão está no ambiente familiar.

Uma das implicações das concepções tradicionais é o estabelecimento de


dicotomias, sendo a mais significativa (…) a dicotomia entre indivíduo e
sociedade. (…) (GONÇALVES, 2015, p. 116).

Portanto, é preciso cada vez mais conhecer a respeito da dinâmica da


violência doméstica, quer seja física, psicológica, sexual ou negligência, que ocorre
no ambiente familiar e de suas consequências, tanto para a criança como para a

126
família. Deve-se levar em consideração a singularidade da experiência de cada
vítima, bem como a história de vida da criança, considerando também o
funcionamento familiar, o contexto em que está imerso o ciclo da violência.
Como apontamos anteriormente e de acordo com Furniss (1993), Ferrari
(2013) e Azevedo e Guerra (2015) no exercício da prática profissional, trabalhar
com questões que envolvam criança ou adolescente e abuso sexual ainda se
apresenta como um tabu na nossa sociedade.
Nesta perspectiva a violência doméstica intrafamiliar trouxe alguns desafios
para os profissionais que lidam com a demanda de crianças vítimas de abusos
sexuais no ambiente familiar, pois o profissional traz consigo concepções subjetivas
e conservadoras que refletem em suas práticas ao lidar com este tipo específico de
demanda.
Ressaltamos que nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, é
imprescindível conceber a família em sua totalidade, para não reforçar as
concepções de pai abusador, criança vítima e mãe omissa e ou negligente e não
excluir os demais sujeitos da família do fluxo de proteção integral.
Ao mesmo tempo, presenciamos nas reuniões de rede os problemas
existentes no decorrer do processo para efetivar os direitos protetivos da criança e
do adolescente vítimas da violência doméstica intrafamiliar, o que torna mais difícil
a inclusão dos responsáveis no SGDCA. Então qual o caminho a seguir para a
inclusão desses sujeitos no sistema de proteção?
Nesse momento da análise essa díade exclusão/inclusão será
compreendida como um processo multidimensional, no qual a dimensão subjetiva
está presente intrinsecamente; ligada a concepções individuais referentes aos
lugares sociais ocupados por cada sujeito do núcleo familiar. É neste emaranhado
de aspectos individuais e sociais que está localizado o fenômeno da violência
doméstica.
Sawaia (2001) em sua obra” As artimanhas da Exclusão”, tem o intuito de
ampliar a visibilidade social dos aspectos subjetivos, através de diversos prismas

127
presentes nas estratégicas históricas que vieram tecendo artimanhas de exclusão26
no cotidiano, nas relações sociais e nos modos de subjetivação.
Alerta que é preciso olhar para além do indivíduo. Observando que as
práticas violentas são, aparentemente individuais, mas não podemos perder de
vista que estamos inseridos em uma sociedade violenta e desigual.

A exclusão não é um estado que se adquire ou do qual se livra em bloco,


de forma homogênea. Ela é processo complexo, configurado nas
confluências entre o pensar, sentir e o agir e as determinações sociais (…)
(SAWAIA, 2001, p. 110).

Independentemente da violência doméstica perpetrada contra a criança e


adolescente, é necessário uma abordagem em rede em que o profissional antes de
tudo, trabalhe com dois instrumentais importantíssimos: a escuta e o olhar
qualificado. A sensibilidade do profissional e a atenção a cada gesto, a cada palavra
ou até o silêncio, têm o seu valor nesta abordagem, pois carregam o significado
das relações sociais presentes de forma concreta na dinâmica familiar.
Nesse sentido qualquer estratégia coordenada, que interrompa com a
violação dos de direitos e o ciclo da violência doméstica intrafamiliar requer uma
metodologia diferenciada e atuação de uma equipe multidisciplinar embasada em
teorias e criticidade. Ao dar voz e vez ao grupo familiar, estamos respeitando a sua
história, a peculiaridade de cada sujeito além de compreender toda a dinâmica
familiar.
Os serviços de proteção responsáveis pela identificação, apuração da
violência e responsabilização dos agressores, principalmente as delegacias e o
poder judiciário, ainda trabalham com provas, ou seja, com os efeitos e marcas
físicas observadas no corpo da criança, esquecendo que a violência sexual não só
pode causar danos físicos, mas, sobretudo, psicológicos e sociais, o que acarreta
profundas mudanças negativas ao seu desenvolvimento.
Desta forma, ao minimizar os efeitos e as manifestações da violência sexual
na criança, contribui-se para a impunidade e perpetuação da violência, pois uma

26 Grifo nosso.
128
vez não responsabilizado, o agressor pode pôr em risco outras crianças e
adolescentes.
A ênfase não está em responsabilizar o indivíduo, em detrimento do contexto
social, mas trabalhar com essa articulação. O Estado deve criar e desenvolver
programas que contemplem esses aspectos, ou seja, cabe aqui refletir sobre os
métodos de intervenção e como estão ou não oportunizando meios para que os
sujeitos transformem sua história. Como destaca Gonçalves (2015):

Na verdade, a desobrigação do Estado em relação ao cumprimento dos


direitos sociais coloca a importância da defesa dos direitos humanos, pois,
quando os direitos sociais não são garantidos para todos, os direitos
humanos são violados. (…) A defesa dos direitos humanos nos fala de um
tipo de sociedade que se quer. A defesa de políticas públicas nos fala do
compromisso com a construção de uma sociedade democrática e que
respeita os direitos sociais (…) (GONÇALVES, 2015, p. 101).

Fomentar e promover dispositivos que integrem todas essas ações de forma


eficiente e eficaz é de responsabilidade do poder público, da sociedade civil e dos
profissionais que lidam com essa realidade, mas ao mesmo tempo uma grande
contribuição para os avanços das políticas protetivas. Faleiros (2006) defende que:

A construção de uma metodologia de trabalho para o enfrentamento desta


questão complexa é um desafio a ser enfrentado através do
desenvolvimento do trabalho social em rede, de articulação
família/instituição, inter/profissional e inter/institucional. É através da
estratégia do trabalho em redes que se fortalecerão a defesa, a
responsabilização e o apoio as pessoas envolvidas em situações de
violência sexual, o que implica mudanças específicas e mudanças mais
profundas que dependem de relações em nível mais geral (FALEIROS,
2006, p. 122).

Faz-se necessário conhecer as relações familiares e sociais presentes n vida


da criança, os limites entre os subsistemas, bem como as relações de simetria e
complementaridade, entre todos os membros. Trabalhar, dentro da família, os
papéis existentes e suas responsabilidades.

129
A comunicação não deve ser esquecida, uma vez que pode traduzir e conter
características do que se passa naquele sistema. Não podemos deixar de citar o
ECA como um documento eficiente e importante no enfrentamento da violência
infantil intrafamiliar, sem esse documento como estariam as crianças hoje?
Sabemos que a nossa sociedade avançou consideravelmente em
dispositivos e programas voltados para a criança e adolescente. Mas não podemos
parar. A nossa práxis deve ser construída coletivamente, a construção precisa ser
plural, com vistas a possibilitar a constituição de novas subjetividades, que possam
redimensionar os pensamentos naturalizados e reprodutores da ideologia, em prol
da elaboração de a novas estratégias de enfrentamento, de um novo
posicionamento ético político frente à violência doméstica intrafamiliar.
Durante o desenvolvimento da análise me deparei com outros
questionamentos interiores:
E a questão do abusador como fica diante de concepções que delimitam o
seu acesso ao Sistema de Garantia de Direito? Como fazer? Por onde caminhar?
É necessário aprofundar essa investigação para que amanhã, não seja esta
pesquisadora a corroborar com a cultura da violência e a exclusão do sujeito.

130
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140
ANEXO I
(TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO)

141
TERMO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Convidamos o (a) Sr. (a) para participar da Pesquisa ________________ sob a


responsabilidade do (a) pesquisador (a)______________________ vinculado ao curso de
Pós Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-
PUC-SP. O objetivo geral é: analisar o fluxo de atendimento das crianças vítimas de
violências domésticas e as dificuldades de inserção dessas famílias no Sistema de Garantia
de Direitos.
Sua participação é voluntária e se dará por meio de coletas de dados não haverá
alteração de sua atividade, horário ou função. Se depois de consentir em sua participação o
Sr. (a) desistir de continuar participando, tem o direito e a liberdade de retirar seu
consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja antes ou depois da coleta dos dados,
independente do motivo e sem nenhum prejuízo a sua pessoa. O (a) Sr. (a) não terá
nenhuma despesa e também não receberá nenhuma remuneração ou indenização. Os
resultados da pesquisa serão analisados e publicados, mas sua identidade não será
divulgada, sendo guardada em sigilo. Para qualquer outra informação, o (a) Sr. (a) poderá
entrar em contato em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa – O CEP – Sede Campus
Monte Alegre localiza-se no andar térreo do Edifício Reitor Bandeira de Mello, na sala 63-C,
na Rua Ministro Godói, 969 – Perdizes – São Paulo – SP – CEP: 05015-001 – Tel./FAX: (11)
3670-8466 – e-mail: cometica@pucsp.br.

Consentimento Pós – Informação.


Eu,_______________________________________________________________
________ fui informado sobre o que o pesquisador quer fazer e porque precisa da minha
colaboração, e entendi a explicação. Por isso, eu concordo em participar do projeto,
sabendo que não vou ganhar nada e que posso sair quando quiser. Este documento é
emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e pelo pesquisador, ficando
uma via com cada um de nós.
Data: ___/ ____/ _____

_____________________________
Assinatura do Participante

_____________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável
Caso não saiba assinar.

142

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