Nagel de Oliveira Fagundes
Nagel de Oliveira Fagundes
Nagel de Oliveira Fagundes
São Borja
2016
NAGEL DE OLIVEIRA FAGUNDES
São Borja
2016
“Imbuídas em um organismo vivo
chamado social, somos rendidas a
regimes normativos que nos cospem suas
leis. Chegar nessa terra povoada já é
receber pulsões, impulsos e desejos de
controle e molde do corpo. A partir de
nossa carne infantil, somos organizadas a
corresponder aos olhares dominantes: o
que é ser um homem e uma mulher, e só.
Vítimas do continuísmo podre, o
embocetamento conduz à mulheridade, e
os penianos que se façam de viris. Se
houver deturpação, que a repulsa e o
asco dos outros repreendam tal infante.
Nada além é permitido. O regime acalma
os olhos, faz tudo ser lido e
compreendido. O masculino para o
feminino, a fêmea para o macho. Tudo
certo. Tem-se a verdade.”
Léo Araruna
RESUMO
Thinking in transgenders health in Brazil is thinking also in the violence which this
population is conditioned, once they face many types of discrimination, which
includes the family background and state policies. At the healthcare system, there is
an access hindrance caused by the stigma that they carry, then discrimination is
materialized at the attendance. The denial of this legal right and the difficulty of
accessing it impacts transgender people social relations, they also may cause
isolation, depression e suicide thoughts, aside of worsening biologicals diseases,
sicking and weakening even more this population. Based on it, this study has as its
purpose the understanding of how is the transgender people access to healthcare. In
what concerns to the methodology, it is based on the historical and dialectical
materialist method, being considered a qualitative research, of exploratory type, that
has as objective exploring the reality of these attendances and of the violence and
violation of legal rights that this category is subject in healthcare policy. Finally, the
results obtained through the study reveal the precariousness of access, the lack of
knowledge of this population specifities, the disgard of the attendances, when it’s not
denied, beside the disrespect over the name and gender that they claim. The access
is characterized by embarrassment, humiliation and significant aggressions to the
dignity of these subjects.
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9
2 METODOLOGIA .................................................................................................... 11
2.1 Método................................................................................................................ 11
2.2 Tipo de Pesquisa ............................................................................................... 14
2.3 População e seleção de sujeitos ..................................................................... 17
2.4 Procedimentos e técnicas ................................................................................ 18
2.5 Técnica de análise e interpretação de dados..................................................18
2.6 Cuidados Éticos.................................................................................................20
3 BASES CONCEITUAIS SOBRE GÊNERO E TRANSGENERIDADE ................... 22
3.1 Entendendo a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual....30
3.2 Uma nota sobre nome social ............................................................................ 33
3.3 A tutela jurídica sobre as identidades trans....................................................36
4 HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA TRANSFÓBICA ................................................... 38
4.1 Patologização das identidades trans............................................................... 44
4.2 Saúde precarizada: as consequências da naturalização da transfobia nas
relações sociais das pessoas transgêneras ......................................................... 47
4.3 Dificuldades no acesso de pessoas transgêneras na política de saúde e os
impactos que elas geram.........................................................................................49
5 PESSOAS TRANSGÊNERAS E A BUSCA PELO ACESO À SAÚDE ................. 51
5.1 A saúde na perspectiva biopsicossocial.........................................................58
5.2 Identidade de gênero: o paradoxo do nome social nos serviços do
SUS............................................................................................................................61
5.3 O que está por trás da deslegitimação da identidade de gênero das pessoas
transgêneras e o não cumprimento da normativa do nome social nos
atendimentos em órgãos de
saúde.........................................................................................................................66
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 68
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 75
1 INTRODUÇÃO
10
2 METODOLOGIA
2.1 MÉTODO
11
existe dialética se houver movimento, e só há movimento se existir processo
histórico (SANFELICE, 2008).
O materialismo histórico-dialético enquanto método de investigação é
essencialmente crítico, uma vez que busca superar o senso comum, a maneira de
pensar dominante indo além da reflexão que se esgota em si mesma. O
conhecimento crítico, nesta perspectiva, pauta-se por uma postura de transformação
da realidade, ou seja, uma reflexão que implica em movimento, em mudança, e não
apenas limitar-se à análise crítica. A apreensão da realidade em sua gênese na
concepção dialética articula, a todo o momento, teoria e prática.
Esse método compreende categorias ontológicas fundamentais para a
explicação dos fenômenos que determinam a vida em sociedade, sendo as
principais: a historicidade, totalidade e contradição. Türck (2012) simplifica as
categorias da seguinte forma:
12
de determinações e condicionalidades. Logo, ter o reconhecimento da história nos
processos sociais é reconhecer o movimento dialético da realidade.
Lukács (2003) explicita que a totalidade existe nas e através das mediações,
pelas quais as partes específicas (totalidades parciais) estão relacionadas, numa
série de determinações recíprocas que se modificam constantemente. A categoria
totalidade busca a conexão dos aspectos particulares com o contexto social mais
amplo que produz as contradições.
Por fim, a categoria contradição rebate a concepção de linearidade, pois parte
do entendimento de que nada existe em permanência e, portanto, toda realidade é
passível de superação. A contradição promove o movimento que permite a
transformação dos fenômenos. O ser e o pensar modificam-se na sua trajetória
histórica movida pela contradição, pois a presença de aspectos e tendências
contrários contribui para que a realidade passe de um estado qualitativo a outro.
13
A contradição dialética é ao mesmo tempo destruição e continuidade, é
oposição que inclui [...] por esta razão é definida por Lefebvre, como
negação inclusiva, para morrer eu preciso estar vivo, e ao viver consumo
minha vida, ao viver mais me aproximo do tempo da morte, exemplifica
Lefebvre. A criança tenta andar cai e levanta, quer andar, quer alcançar os
objetos, tocá-los, para isto precisa locomover-se, quer superar a dificuldade
de deslocamento. A dificuldade de se deslocar é a negação que inclui
(PRATES, 2013, p.13).
Prates (2012) exprime que para Marx a categoria contradição imprime uma
função importante na explicação do fenômeno, contribuindo para uma melhor leitura
da realidade a ser interpretada ou pesquisada.
Com base em Gil (2007), cabe ressaltar que o referido estudo deve ser
apreciado em seu tipo de pesquisa a partir de duas dimensões: em relação ao seu
objetivo e em relação aos procedimentos e técnicas.
14
A pesquisa ora apresentada, na dimensão de seu objetivo, foi de caráter
exploratório, no sentido que teve como objetivo explorar a realidade dos
atendimentos de saúde voltados às pessoas transgêneras1 e da violência e violação
de direitos a essa categoria em órgãos de saúde.
1
Pessoa que reivindica um gênero diferente daquele imposto no nascimento.
15
Segundo Minayo (2010, p. 57) “o método qualitativo é o que se aplica ao
estudo da história, das relações, das representações, das percepções e das
opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como
vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam”.
Em relação à pesquisa bibliográfica, ela é feita a partir do levantamento de
referências teóricas já analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos,
como livros, artigos científicos, páginas de sites, dentre outros. Todo trabalho
científico inicia-se por com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador
conhecer o que já se estudou sobre o assunto. No entanto, existem pesquisas
científicas que se baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando
referências teóricas publicadas com o objetivo de recolher informações ou
conhecimentos prévios sore o problema a respeito do qual se procura a resposta
(FONSECA, 2002).
De acordo com Gil (2007), a pesquisa bibliográfica é indispensável nos
estudos históricos, uma vez que em muitas situações não há outra maneira de
conhecer os fatos passados se não com base em bibliografias.
Outro tipo de pesquisa a ser utilizada nesse estudo é a documental, que,
segundo Gil (2007), assemelha-se à pesquisa bibliográfica, alterando apenas a
natureza das fontes. Enquanto a pesquisa bibliográfica utiliza-se fundamentalmente
das contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa
documental utiliza-se de materiais que não receberam um tratamento analítico.
Esse tipo de pesquisa apresenta uma série de vantagens, sendo uma delas a
fonte rica e estável de dados encontrados em documentos, uma vez que subsistem
ao longo do tempo, tornando-se a mais importante fonte de dados em qualquer
pesquisa de natureza histórica. Além disso, esse tipo de pesquisa não exige contato
com os sujeitos da pesquisa, o que a torna vantajosa, dado que em muitos casos o
contato com os sujeitos é difícil ou até mesmo impossível, e a informação
16
proporcionada pelos sujeitos é prejudicada pelas circunstâncias que envolvem o
contato (GIL, 2007).
2
Nome designado às mulheres transgêneras na Índia.
17
2.4 PROCEDIMENTOS E TÉCNICAS
18
A análise tem como objetivo organizar e sumariar os dados de forma tal que
possibilitem o fornecimento de respostas ao problema proposto para
investigação. Já a interpretação tem como objetivo a procura do sentido
mais amplo das respostas, o que é feito mediante sua ligação e outros
conhecimentos anteriormente obtidos (GIL, 2012, p. 156).
19
Essa fase possui três objetivos: a escolha de documentos, a formulação das
hipóteses e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a
interpretação final (BARDIN, 2009).
A formulação das hipóteses na pesquisa foi substituída pelas questões
norteadoras, que por sua vez tornam-se mais amplas e não se restringem a
suposições, considerando a realidade dialética do mundo dos fenômenos, além de
reafirmar o estudo dialético-crítico.
A segunda etapa da análise de conteúdo em Bardin (2009) é a exploração do
material já elencado e encontrado na primeira fase da pesquisa, sendo o momento
de condução das descobertas em um processo minucioso e árduo ao pesquisador.
20
e Transgeneridade. Além da socialização do estudo e seus resultados em órgãos de
saúde e na Academia por meio deste Trabalho Final de Graduação em Serviço
Social e sua apresentação junto à banca examinadora e avaliadora.
21
3 BASES CONCEITUAIS SOBRE GÊNERO E TRANSGENERIDADE
3
Termo adotado pela Biologia para descrever as diferenças anatômicas entre os corpos:
cromossomos, gônadas, hormônios, genitália, dentre outras características. Ou ainda, para descrever
as diferenças entre pessoas diádicastesticuladas e pessoas diádicasovariadas, não incluindo aqui
pessoas intersexo (àquelas cujas características corpóreas relacionadas aos caracteres sexuais
estão entre os extremos legitimados e normatizados).
22
Quando a criança nasce encontrará uma complexa rede de desejos e
expectativas para seu futuro, levando-se em consideração para projetá-la o
fato de ser um/a menino/menina, ou seja, ser um corpo que tem um/a
pênis/vagina. Essas expectativas são estruturadas numa complexa rede de
pressuposições sobre comportamentos, gostos e subjetividades que
acabam por antecipar o efeito que se supunha causa (BENTO, 2008, p. 35).
Dessa maneira, percebe-se que foi constituído socialmente que a pessoa que
nasceu com pênis deverá ser reconhecida e lida como homem e a que nasceu com
vagina deverá ser reconhecida e lida como mulher. Desta forma, o gênero é a
primeira imposição social que as pessoas sofrem, atribuído de forma imperativa e
determinado por um mero órgão.
4
Àquelas que não reivindicam os gêneros binários (masculino e feminino).
24
Primeiramente, é necessário entender o gênero como uma construção social que
independe da biologia para ser performatizada.
5 Que abrange aspetos biológicos, psicológicos e sociais, enxergando o sujeito de forma integrada.
6
Pessoas que foram designadas do gênero feminino e se reivindicam e reconhecem nesse gênero.
25
mulher é uma construção simbólica que faz parte do regime de emergência dos
discursos que configuram sujeitos (COLLING, 2004).
O termo gênero passa a ser utilizado com mais frequência na década de
1950, período de mobilizações e reivindicações feministas, que questionavam o que
era ser mulher, uma vez que mulheres estavam se inserindo nas universidades e
problematizando os papéis sociais de gênero e as determinações sociais pautadas
nas diferenças anatômicas entre os corpos tidos até então como masculinos e
femininos. Atualmente se entende o gênero como uma questão política, já que é
possível enxergar através dele uma hierarquia de poder social e uma resistência. É
pertinente destacar que:
[...] A história das mulheres é uma história recente, porque desde que a
História existe como disciplina científica, ou seja, desde o século XIX, o seu
lugar dependeu das representações dos homens, que foram, por muito
tempo, os únicos historiadores. [...] Ao descreverem as mulheres, serem
seus porta-vozes, os historiadores ocultaram-nas como sujeitos, tornaram-
na invisíveis (COLLING, 2004, p. 13).
8 Modelo que antecede o dimorfismo. Nele acreditava que não existia diferença entre os corpos
sexuados, mesmo existindo aqui os gêneros binários. Nessa lógica, socialmente entendia-se que
existia um corpo e dois gêneros.
9 É uma forma de privilegiar os homens e está intrinsicamente relacionada ao patriarcado. Quando
experiências masculinas são tidas como universais, abarcando as mulheres. Ex: o termo "o homem",
designando a raça humana, difundida e reproduzida por muitos historiados e filósofos, é um perfeito
exemplo que ilustra o caráter androcêntrico.
27
Com os romanos, em seu código legal, é legitimada a discriminação feminina
através da instituição jurídica do paterfamílias10, que concedia o poder total ao
homem: sobre a mulher, os filhos, os servos e os escravos (COLLING, 2004).
Enquanto no século XVIII, com o avanço das ciências naturais e biológicas,
puderam legitimar essa colocação da mulher através de um parecer "científico". A
Medicina, em especial, descrevia a mulher como doente, histérica, à beira da
loucura, instintiva, mais sensível do que racional, incapaz de fazer abstração, de
criar, e acima de tudo, de governar. Criada para estar única e exclusivamente no
espaço privado, dedicando-se à família e aos afazeres domésticos, zelando pelo
bem-estar do marido e dos filhos, vocação benéfica para a sociedade de modo geral
(COLLING, 2004).
10 Estatuto familiar mais elevado na Roma Antiga, ocupado sempre pelo homem.
28
construção da autoestima e segurança acontecem no posto mais hostil da “pirâmide
social”.
É por isso que quando se pensa, discute e questiona o gênero, quando se
problematiza as estruturas, pensamos na mulher, no “ser” feminino, subordinado.
Afinal, qual a lógica de quem está no posto mais alto da hierarquia dos gêneros, o
homem, em revolucionar e repensar os discursos normativos que tanto os
beneficiaram historicamente?
Em relação à transgeneridade e a origem etimológica da palavra, o prefixo
“trans” é oriundo do latim e significa do outro lado, se opondo ao prefixo “cis”, de
cisgeneridade, que significa do mesmo lado/deste lado. Esses conceitos tiverem
início quando a Medicina deixa o posto de arte e técnica e passa a ocupar o lugar de
ciência, no século XIX, no auge do pensamento positivista, visando assim classificar
os corpos e comportamentos dos sujeitos, em especial os “desviantes” dos discursos
normativos. É válido ressaltar que pessoas trangêneras sempre existiram, não são
uma invenção pós-moderna, por isso são encontradas inclusive na mitologia greco-
romana e em produções literárias e antropológicas do século XIX.
31
sexual não tem sido diferente, estão afastando essa categoria de explicações
médicas e biológicas que tentam definir a “origem” dos desejos em uma base
genética.
Ora, como é que é possível nascer gostando e sentindo atração por
determinado gênero, se gênero é uma construção social? Não se nasce sabendo
que existem socialmente dois gêneros inteligíveis e hegemônicos, nem que existem
genitais que podem defini-los e separá-los. Isso se aprende, nossos conhecimentos
e gostos são colonizados, ou seja, existem transferências de saberes e padrões que
a sociedade adotou a fim de estabelecer uma norma, um padrão.
Ter, então, uma orientação sexual considerada não normativa para a
sociedade é algo que se pode desconstruir a fim de não sofrer com a violência? E
se o padrão sempre foi imposto, por que todas as pessoas não se constroem nesse
modelo a fim de respeitar a ordem estabelecida? Os sujeitos sociais recebem esses
ensinamentos e estímulos hegemônicos, muitas vezes com muita violência, no
entanto são seres pensantes que reagem, respondem aos estímulos e constroem
suas identidades nesse meio, podendo ou não se identificar com o que está sendo
estabelecido.
O padrão heteronormativo de família e relações sociais, inclusive, é muito
válido para o modo de produção vigente, para o capitalismo, uma vez que a
organização social depende da existência da família. Entende-se nesse modelo por
família a normativa: cisgênera e heterossexual. Nesse núcleo, irá se garantir o que é
fundamental para a produção e reprodução, sem necessitar dos gastos do governo
em demandas básicas como moradia, higiene, alimentação, saúde preventiva,
cuidado com idoso, educação das crianças, dentre outras.
Desta forma, o sistema tenta moldar os sujeitos a fim de corresponder esses
papéis. Então se torna perceptível que as orientações sexuais e as identidades de
gênero (cisgêneras e transgêneras) são construções sociais e que não há nada
“natural” nelas, mesmo nas normativas. Os sujeitos se constroem em interação com
o meio social, são seres sociais, e as categorias abordadas estão e estiveram
circunscritas nesse meio.
32
3.2 Uma nota sobre nome social
Afinal, o que é o nome social? Atualmente muito se fala sobre o nome social e
seu uso, que o mesmo tem sido aceito em instituições sociais a fim de inserir e
respeitar as pessoas transgêneras que buscam e encontram nessas instituições um
direito básico: o de poder pertencer e não ser constrangida e humilhada, tendo a sua
dignidade preservada.
O nome social é o nome pelo qual a pessoa se identifica e reivindica para si.
No caso das pessoas transgêneras, é o nome real adotado conforme a identidade
de gênero em detrimento daquele escolhido por outrem de acordo com o gênero
imposto ao qual a pessoa não se reconhece e que portanto a constrange. Dessa
forma, o nome social que a pessoa transgênera, travesti e transexual reivindica e é
reconhecida em seu círculo social difere daquele com o qual foram registradas.
Quando há possibilidade de usá-lo em determinada instituição, isto é, quando
existe documento oficial que respeite o uso do nome social, ele visa diminuir o
estigma que é portar um registro civil não representativo, minimizando assim
situações vexatórias, respeitando a autoidentificação do sujeito e facilitando a
entrada dessas pessoas no mercado de trabalho, âmbito escolar, saúde, etc.
Quando uma instituição social não adota essa medida, a divulgação verbal ou
escrita do nome civil agride de forma simbólica a dignidade da pessoa humana.
Posto isto, em abril de 2016, depois de muitas mobilizações do movimento
social de pessoas transgêneras, a então ex-presidenta Dilma Rousseff assinou o
Decreto n° 8.727/2016, que garante a utilização e o tratamento pelo nome social de
pessoas transgêneras funcionárias ou usuárias de órgãos públicos, autarquias e
empresas estatais federais, incluindo crachás, documentos oficiais, dentre outros
(TONHON, 2016).
33
primeiros dias de mandato anunciou-se inúmeros retrocessos, inclusive a tentativa
de anular o Decreto n° 8.727/2016 assinado pela ex-presidenta.
A proposta contra o Decreto n° 8.727/2016, que teve apoio de Michel Temer,
é de autoria de João Campos (PRB/GO), um dos líderes da bancada evangélica e
também autor da proposta de Emenda Constitucional que permitiria às entidades
religiosas contestar a constitucionalidade das leis diante do Supremo Tribunal
Federal (STF).
Com o apoio de muitos deputados federais e senadores da República, o atual
governo alega que, de acordo com a Constituição Federal, a alteração de nomes e
registros civis deve ser matéria de decisão colegiada, lei, e não unilateral, decreto.
Além disso, por não existirem legislações específicas para dar amparo legal
nessa questão do nome e gênero das pessoas, fica a cargo das instituições
acatarem ou não com a aprovação do uso do nome social para pessoas
transgêneras, sendo essa uma das dificuldades que essas pessoas encontram ao
buscar por direitos básicos (como Educação e Saúde) em instituições sociais, como
escolas, universidades e órgãos de saúde.
Através do Decreto, ao menos, há a possibilidade de pessoas transgêneras
serem respeitadas por seus nomes e gêneros em instituições e órgãos públicos
federais, no entanto, uma instituição que seja particular (não governamental) pode
não respeitar essa demanda, tornando as relações sociais das pessoas
transgêneras mais burocráticas e humilhantes.
Ademais, ter a portaria do nome social em determinada instituição,
automaticamente não transformará a vida das pessoas transgêneras em algo menos
discriminatório, uma vez que trabalhadores e gestores podem continuar sem
respeitar a normativa e reproduzindo preconceitos engessados.
34
Segundo Bento, o nome social é uma medida paliativa, é uma cidadania à
conta gotas, um puxadinho de cidadania, uma cidadania precária (não há cidadania).
Como pessoas transgêneras não tem direito a cidadania plena, erguem-se
puxadinhos em uma universidade ou outra, um órgão ou outro, um estado ou outro.
O Decreto assinado pela ex-presidenta Dilma Roullseff funciona no âmbito restrito
federal, apenas. Dessa forma, pessoas transgêneras tem que torcer e implorar para
que de fato as portarias sejam respeitadas.
No Brasil, para ter de fato esse direito garantido e respeitado, a pessoa
transgênera deve mover um processo judicial com envolvimento de um advogado
para quem sabe ter uma sentença favorável e ter um registro civil representativo.
Com uma sentença favorável, que reconheça a identidade da pessoa transgênera,
instituição nenhuma poderá negar seu nome e seu gênero, afinal o Estado estará
legitimando e reconhecendo a autoidentificação da pessoa.
Todavia, de modo geral, o judiciário reproduz conceitos de gênero
disseminados socialmente, encarando o mesmo como algo definido pelo genital,
exigindo muitas vezes que a pessoa transgênera passe por outro processo
compulsório, de violação, que é o procedimento de transgenitalização11.
Para ter acesso à cirurgia de transgenitalização a pessoa transgênera deverá
passar por mais burocracias e constrangimentos, respeitando o Processo
Transexualizador (portaria nº 1.707, de 18 de agosto de 2008), criado pelo Ministério
da Saúde, e submetendo-se à terapia compulsória de no mínimo dois anos, com
uma equipe multiprofissional composta por psicólogo, psiquiatra, endocrinologista e
assistente social. Ao término, a pessoa necessitará de laudos que comprovem que
de fato ela tem a identidade que reivindica, a fim de entrar na fila para se submeter à
cirurgia.
Caso a pessoa não queira se submeter à cirurgia, por questões pessoais ou
de saúde, existe uma grande probabilidade de que o judiciário não a reconheça
legalmente como parte do gênero que ela reivindica. Esse viés da judicialização da
vida das pessoas transgêneras será aprofundado no próximo item.
Dessa forma, se entende que a falta de um documento
adequado/representativo à identidade é motivo de violências transfóbicas em
instituições sociais, políticas, econômicas, culturais, dentre outras, dificultando e
11É a cirurgia que transforma o genital das pessoas transgêneras e tão somente o genital, afinal o
gênero não está instalado no genital.
35
impossibilitando a permanência de pessoas transgêneras na escola, mercado formal
de trabalho, acesso à saúde, dentre outros.
12 Segundo o DSM-IV e o CID, a transgeneridade é uma patologia, uma doença mental. Ao longo do
século, as Ciências Psi (Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise) trabalharam em direção à
desumanização das identidades transgêneras por meio do discurso patológico. Estar de alguma
forma incongruente segundo a norma cisgênera – homem/pênis – mulher/vagina – tornou-se uma
anormalidade, uma abjeção e por isso uma patologia.
36
acontece, tem uma visão despatologizante da transgeneridade, isto é, instituições
reconhecem que pessoas transgêneras tem o direito de ter suas identidades e
nomes respeitados e adotam portarias, resoluções e decretos para que se cumpra
essas demandas. Um exemplo disso é o próprio Decreto nº 8727, que respeita e
reconhece o nome social das pessoas transgêneras em seus órgãos em âmbito
federal nacional.
Já a esfera macro do Estado trata a transgeneridade em uma perspectiva
patologizante, dificultando que pessoas transgêneras acessem direitos básicos e
exerçam a cidadania, dado que o processo judicial para retificação do registro civil
adota medidas burocráticas e muitas vezes pessoas transgêneras, por toda violência
e violação que sofrem, não tem condições psicológicas, sociais e financeiras de
arcar com advogado ou de entrar com esse processo pela Defensoria Pública.
Não ter um nome representativo em documentos expõe e exime as pessoas
transgêneras de se inserirem na sociedade de forma integral, conferindo a elas um
imenso isolamento social. Um dos maiores fatores de exclusão e evasão escolar de
pessoas transgêneras é por estarem expostas a um nome que as ridiculariza e
constrange, por exemplo.
O mercado de trabalho não compreende a existência de pessoas
transgêneras e se sente afrontado quando recebe um currículo que traz um nome
incongruente com a pessoa que está diante de quem lê, independentemente do
nível de qualificação desta pessoa.
Em órgãos de saúde, mesmo existindo portaria de nome social, explicitada
pela Carta dos Direitos aos Usuários da Saúde, se solicitado, dificilmente se
respeitará a pessoa quando necessário for mostrar o documento com o nome civil.
Assim, enquanto experiências identitárias que divergem das normas de gênero
continuarem sendo encaradas e tratadas como doenças, obstáculos e violações de
direitos a essa categoria continuarão fazendo parte de suas relações sociais. E,
assim sendo, o reconhecimento social e a dignidade dessas pessoas ficarão apenas
em um plano imaterial.
37
4 HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA TRANSFÓBICA
38
Nascemos e somos apresentados a uma única possibilidade de
construirmos sentidos identitários para nossas sexualidades e gêneros. Há
um controle minucioso na produção da heterossexualidade. E como as
práticas sexuais se dão na esfera do privado, será através do gênero que se
tentará controlar e produzir a heterossexualidade (BENTO, 2008, p. 41).
40
corpos, como se acompanha em noticiários, são queimados, mutilados, jogados em
valas, esfaqueados incontáveis vezes.
De acordo com Bento, 2008, “as normas de gênero só conferem
inteligibilidade, ou seja, vida, àqueles seres que estão alocados em gêneros
apropriados aos corpos sexuados” (p. 164 e 165). E por haver o consentimento da
mesma sociedade que as jogou aos umbrais da margem, ninguém se sensibiliza
com a morte de travestis e transexuais. Não houve humanidade em vida, não haverá
em morte. Constata-se isso até mesmo na morte, quando pessoas transgêneras
continuam tendo seus nomes e gêneros deslegitimados. Assim, a sociedade autoriza
a morte dessa categoria, porque ela reforça que os corpos das pessoas
transgêneras não tem humanidade suficiente para viver no mesmo mundo que as
pessoas cisgêneras.
41
Além disso, é relevante destacar que o sistema capitalista intensifica essas
violências, uma vez que é competitivo e estimula a disputa entre os sujeitos sociais.
Logo, ofender/humilhar alguém que foge de determinada normativa social está para
além da naturalização, uma vez que gera sentimento de poder. O sujeito que
humilha e constrange a travesti, por exemplo, se sente mais digno na sociedade,
numa suposta hierarquia social. Produz sentimentos que o encorajam e os tornam
mais dignos desse sistema. Por isso violências transfóbicas são estruturais e tal
violência se encontra frequentemente em piadas, em risadas, na expressão gestual
e verbal de quem se encaixa melhor na normativa de gênero e quer manter abjeto
tudo que se distancia dela.
As piadas transfóbicas não tem graça nenhuma, mas todos riem para manter
o lugar de inferioridade das pessoas transgêneras. Elas demarcam o lugar (ou a falta
dele) na hierarquia social. Não há nada engraçado na aparência das pessoas
transgêneras (travestis, transexuais, etc.), em seus traços ou expressões, no entanto
muitos as ridicularizam simplesmente para demarcarem seus postos, de
superioridade, enquanto as pessoas transgêneras ocupam o de inferioridade.
Segundo essa lógica perversa, o padrão de beleza e de existência deve ser o
cisgênero, se pessoas transgêneras querem existir elas deverão ter uma
passabilidade cisgênera, o que faz com que muitas odeiem seus corpos e não
construam suas autoestimas e seguranças nas relações sociais, muitas vezes
acarretando em isolamento social ou suicídio.
Qual a graça que enxergam em uma pessoa que certamente sofreu intensas
e contínuas violências no decorrer de sua trajetória: na violência física e psicológica,
na expulsão de casa, da família e de outras instituições, da autopunição por
acreditar que deveria seguir os moldes de uma normativa que supostamente não
falha, mas falha, tendo em vista que não passa de um projeto social que visa uma
organização higienizada da sociedade? Não há graça, o há é uma disputa e uma
necessidade de posicionar os corpos em certos/normais e errados/anormais, e estes
devem ser extintos segundo essa realidade.
Essa disputa mostra os privilégios das pessoas cisgêneras quando pensamos
a normativa de gênero. A sociedade é estruturada pensando nas pessoas
cisgêneras: registro civil, acesso à saúde, família, empregabilidade, dentre outros
fatores que determinam a inclusão dessas pessoas. E enquanto não se conquista a
42
superação dessa estrutura e ordem, as pessoas transgêneras continuarão sofrendo
ataques transfóbicos, que vão desde olhares tortos, piadas, xingamentos à
exotificação e ridicularização de seus corpos, violências físicas, estupros e morte.
Pensando essa lógica, Paulo Freire nos faz refletir quando questiona um
provérbio popular: "Minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro",
diz ele: “A minha liberdade acaba quando acaba a liberdade do outro”. O que isso
pode significar é que enquanto alguns tem seus direitos assegurados (pensando as
pessoas cisgêneras aqui) e outros (pensando as pessoas transgêneras aqui)
permanecem invisibilizados, sem acesso aos mesmos direitos, ninguém tem direitos.
Direitos apenas para uma parcela da sociedade não são direitos, são privilégios, o
que caracteriza a negação do direito. Nessa perspectiva, pessoas transgêneras são
invisíveis para essa estrutura.
Sobre a invisibilidade das pessoas transgêneras, muito se evidencia também
na falta de representatividade13 essa questão. Não se enxerga pessoas
transgêneras na mídia e meios de comunicação, mesmo no dia-a-dia, participando
da sociedade, na formalidade, inseridas na categoria trabalho. Imediatamente a
invisibilidade se configura como outra forma de violência, de demarcar mais uma vez
que pessoas transgêneras não devem existir na sociedade. Não é uma violência
explícita, mas contribui para a marginalização e estigma dessa categoria, que não se
enxerga e, portanto, não se reconhece na sociedade.
Em síntese, as violências transfóbicas tomam várias direções, se ramificam,
mesmo tendo se originado da mesma raiz, podendo acarretar na expulsão de casa e
da escola, na dificuldade/impossibilidade de inserção no mercado formal de trabalho
(seja pelo estigma que carregam ou pelas expulsões que foram condicionadas),
invisibilidade nas políticas públicas, prostituição, morte, etc. A raiz dessas violências,
segundo autoras referências desse estudo, está na normativa de gênero
estabelecida e vai influenciar diversas áreas do saber e consequentemente outros
instrumentos de opressão contra essa categoria continuarão o trabalho de violentá-
la.
13
Representatividade, nesse sentido, significa a possibilidade de um grupo discriminado,
marginalizado e estigmatizado se reconhecer/enxergar em determinadas áreas/espaços antes
negados- como a mídia, por exemplo – de forma positiva.
43
4.1 Patologização das identidades trans
14
Oposto de euforia. Sentimento de inadequação e tristeza. Relacionado ao gênero, significa
desconforto com o corpo ou alguma parte específica do mesmo. No caso das pessoas transgêneras,
pode ser o desconforto com o genital e/ou características físicas tidas como masculinas, no caso de
quem se reivindica mulher, ou femininas, no caso de quem se reivindica homem.
44
Há uma disputa acirrada, muitas vezes negada, entre os discursos. Aqueles
que são hegemônicos tem poderosas instituições que repetem em
uníssono: a normalidade da existência tem como fundamento a diferença
sexual. O saber médico é uma dessas poderosas instituições. Sua
legitimidade está na capacidade de produzir verdades inquestionáveis
(BENTO, 2008, p. 177).
O que está posto é uma disputa clara, aberta com os valores hegemônicos
que localizam e conferem direitos apenas a uma parcela da humanidade.
Essa disputa revela a precariedade de um sistema de gênero e sexualidade
assentados no império biológico e, consequentemente, na genitalização das
relações sociais (BENTO, 2008, p. 179).
46
4.2 Saúde precarizada: as consequências da naturalização da transfobia nas
relações sociais das pessoas transgêneras.
Toda violência social tem, até certo ponto, caráter revelador de estruturas
de dominação (de classes, grupos, indivíduos, etnias, faixas etárias, gênero,
nações), e surge como expressão de contradições entre os que querem
manter privilégios e os que se rebelam contra a opressão. [...] As
desigualdades sociais, a expropriação econômicosocial e cultural são
ingredientes que importa compreender como base da criminalidade
(MINAYO e SOUZA, 1998, p. 522).
desta população evita procurar serviços de saúde, mesmo quando necessita, por
47
medo de sofrerem preconceito, discriminação ou outro tipo de violência. Há um
medo bastante real de que a transfobia dos profissionais seja um obstáculo para
cuidar da saúde. Além disso, existe o receio de serem constrangidos caso tenham
seus nomes e gêneros deslegitimados por parte dos servidores da saúde
(NUH/UFMG; DAA/UFMG, 2016).
15
Automedicação principalmente em função da terapia hormonal, que visa às transformações físicas,
fisiológicas, psicológicas, etc., para adentrar os padrões estabelecidos de humanidade e
inteligibilidade: ser lida e reconhecida de acordo com a sua identidade de gênero.
16
Substância de uso não humano utilizada para transformar o corpo a custos muito baixos. As
consequências vão desde reações alérgicas, deformações severas, trombose à infecção generalizada
e óbito.
48
Diante disso, se percebe inúmeras consequências que podem intensificar a
situação de adoecimento de pessoas transgêneras devido à naturalização da
transfobia. Sendo elas: o medo de buscar atendimento em órgãos de saúde e sofrer
discriminação e ter a identidade de gênero desrespeitada (nome e gênero), recorrer
à automedicação e ao silicone industrial, tendo como maiores consequências às
complicações desses procedimentos. Além disso, a naturalização dessa violência
também pode gerar adoecimentos mentais, como depressão, isolamento social, etc.,
podendo acarretar em suicídio (como será tratado mais adiante nesse estudo).
49
Assim, “muitas travestis e transexuais são obrigadas a se internar em alas
masculinas de hospitais ou são tratadas insistentemente pelos nomes de batismo
em negação a sua autonomia de gênero. Essas mulheres também carecem de
políticas que possam garantir o acesso humanizado e cuidado integral em saúde”
(GUTERRES, 2016).
50
Uma mulher transexual com infecção nos seios é atendida com descaso em
um hospital do Rio de Janeiro. Uma travesti idosa acusa um médico da
Bahia de mandá-la embora para casa após um AVC. A mãe de uma travesti
vítima de uma agressão transfóbica relata que o médico de um hospital de
São Paulo sequer colocou a mão na filha antes de dizer que ela
morreu. Esses são apenas alguns dos casos relatados [...] que mostram o
descaso ou despreparo de profissionais da saúde frente à vida de travestis,
mulheres e homens transgêneros e outras transgeneridades (LUCON,
2016).
Nos últimos meses, repercutiu a notícia de uma mulher transgênera que foi
vítima de um ataque transfóbico e teve seu corpo esfaqueado incontáveis vezes.
Após a tentativa de homicídio, a vítima foi levada por um amigo para o hospital e
teve o atendimento negado. Como se não bastasse, as pessoas que a violentaram a
seguiram e continuaram a agredi-la dentro do hospital, mesmo implorando por ajuda
e atendimento, nenhum profissional a ajudou (CORREIO BRAZILIENSE, 2016).
Talvez esse seja o caso mais grave apresentado, e nos mostra a realidade
que pessoas transgêneras enfrentam quando buscam por atendimento na saúde.
Como constatado, além do desrespeito ao nome social, cujo direito foi conquistado
pela portaria supracitada, as pessoas transgêneras sofrem inúmeros ataques e
privações na política de saúde.
51
exemplo. Por isso a importância de uma consciência de classe17, para as
reivindicações tomarem proporções maiores e as chances de transformações serem
viáveis.
Essa busca de acesso de direitos de grupos vulnerabilizados (por uma
hierarquia social de dominação) é histórica. Não é à toa que grandes revoluções e
micro revoluções aconteceram e transformaram a forma de se relacionar com o
mundo e as pessoas.
17
Engels e Marx falam da importância da consciência de classe para angariar direitos no modo de
produção capitalista. No estudo da Sociologia surge esse conceito, que consiste na ideia, pelos
sujeitos, de pertencer reiterada e conscientemente a uma classe social específica. Para além da
consciência, o sujeito age de forma solidária e normalmente organizada com outros que possuem a
mesma orientação/condição, na defesa dos seus interesses coletivos, o que acaba por gerar várias
ações político-sociais (SANTIAGO, 2013). É o que ocorre com movimentos sociais, como o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento Feminista, Movimento LGBT (e
dentro desse próprio movimento existe o movimento das pessoas transgêneras, por exemplo). A
consciência de classe dá força aos movimentos e se torna imprescindível para que as transformações
e revoluções sociais aconteçam.
52
alcançar a justiça social”, dessa maneira “seria preciso também anular o preconceito
e o desrespeito aos grupos minoritários prejudicados pela hierarquização social”
(SANTOS, 2015).
53
Antes da aprovação da Lei Áurea, foram aprovadas leis, ao longo de
cinquenta anos, que libertavam parcialmente os escravos. Antes de tornar-
se universal, para as todas as mulheres, o voto feminino foi palco de
diversas propostas de restrições, e antes da lei federal entrar em vigor em
estados isolados as mulheres já votavam. E com a legislação trabalhista
notamos a mesma estrutura se repetindo: primeiro foram regulamentações
pontuais ao longo de mais de cinquenta anos. O reconhecimento das uniões
estáveis por parte de casais do mesmo gênero também foi precedida de
medidas localizadas, a exemplo da inclusão dos/as companheiros como
dependentes em planos de saúde, da inclusão na declaração de imposto de
renda. Nestes quatro casos, podemos observar como setores dominantes
(raça/etnia, gênero, classe, sexual) se apoderam do Estado e tentam
segurar com mãos de ferro seu lugar hegemônico (BENTO, 2014, p. 167).
54
A busca pelo acesso à saúde é uma dificuldade bastante significativa, afinal
para ter um mínimo de dignidade se necessita estar saudável, e pessoas
transgêneras estão muito vulneráveis ao adoecimento por todo processo de
violência que estão condicionadas desde o momento que expressam e verbalizam a
não identificação com o gênero imposto. Sendo assim, a negação do acesso à
saúde é uma das violências mais expressivas e impactantes na vida de quem não
converge com o gênero designado no nascimento, ao mesmo tempo, a saúde é uma
questão decisiva na vida das pessoas transgêneras.
É sabido que a saúde no Brasil adquiriu depois de muitas mobilizações
sociais e muita luta um caráter universal, se tornando um direito fundamental de
todos os sujeitos sociais desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.
18
O ódio direcionado à população LGBT por muito tempo nomeou-se de “homofobia”, no entanto, tal
palavra não abarca todas as identidades que compõem esse movimento social, existindo um
consenso do próprio movimento em adotar o termo “LGBTfobia” para expressar as violências dirigidas
contra a população LGBT (PEREIRA, 2016).
56
Então se percebe que, na própria política de saúde, os corpos e identidades
das pessoas transgêneras são encarados como não funcionais para a sociedade e
sistema, dado que esse modelo está pautado em corpos funcionais para o bom
funcionamento da nação: mulheres procriadoras, homens fortes e trabalhadores,
crianças promissoras e saudáveis e idosos ativos e independentes (GUARANHA,
2013).
57
No âmbito da saúde é fundamental considerar a dimensão da diversidade
como mediação necessária para o entendimento da individualidade
humana. Os indivíduos em sua diversidade expressam diferenças quanto às
relações de gênero, étnico-racial, de orientação sexual e identidade de
gênero, entre outras questões que revelam a singularidade, o modo de
constituir a individualidade em sua relação dinâmica e contraditória com a
sociabilidade. No entanto, “na sociabilidade do capital, a tendência
prevalecente é que os indivíduos se reconheçam diversos na vivência da
opressão que é determinada pelo não reconhecimento ético-político e
jurídico da sua diferença. Ou seja, o processo inicial de identificação com
sua diversidade é permeado pela violação dos direitos, pela negação da
liberdade e extravio da igualdade” (SANTOS, 2008, p. 78).
58
saúde/doença ao “tratamento” medicamentoso (fármacos) e cirúrgico, o que é
benéfico para as indústrias farmacêuticas e para a Medicina no geral.
Essa concepção marcou a história de forma problemática pela maneira
equivocada que se pensou a saúde mental, por exemplo, ao longo dos anos.
Encarando a saúde metal ou a falta dela como loucura e excluindo do âmbito social,
internando em manicômios, todas as pessoas que caracterizavam em seus corpos a
ausência de saúde.
59
violência que ele está exposto na sociedade. A suicidabilidade varia de acordo com
o quanto de apoio social e familiar uma pessoa transgênera tem. Logo, quando
existe o apoio no bojo familiar e social, os riscos de tentativa de suicídio diminuem
drasticamente (PYNE, 2015). Assim, o apoio familiar é um fator decisivo para a
condição de saúde de uma pessoa transgênera, sem ele, outras consequências à
saúde são postas em jogo, uma vez que estarão vulneráveis psicologicamente e
socialmente, podendo também afetar o biológico.
Durkheim (1982 apud KÓVACS, 1992), em seu livro “O suicídio”, interpreta o
suicídio como um ato pessoal levando em consideração características da sociedade
que o produz, seja através de valores, de normas sociais, etc., interferindo assim no
nível de interesse do indivíduo pela vida. Então, o suicídio é um homicídio, com
intenção de matar a si próprio. É também uma ação desesperada de uma pessoa
que não deseja mais viver e decide acabar com a vida, encontrando tal solução no
suicídio. O suicídio pode ser causado por uma insatisfação interior e profunda na
qual o indivíduo no momento não está encontrando solução para seus problemas.
O suicídio, apesar de caracterizar o desespero e a desistência, é um grito de
socorro. Logo, se deduz que o suicida não procura a morte, mas sim a vida
(FUKUMITSU, 2005). Além disso, o suicídio atualmente é considerado um sintoma
ou consequência da depressão, existindo uma relação estre ambas e com as
exigências sociais. Percebe-se então que violências que acontecem socialmente
podem afetar a saúde psicológica das pessoas transgêneras, ocasionar depressão e
outras doenças graves, além de sucumbir ao suicídio.
Diante disso, para que essas problemáticas sejam resolvidas e para que o
modelo biopsicossocial seja adotado de forma integral, em todos os atendimentos,
necessitaria investir na readequação da formação profissional dos estudantes e
trabalhadores da saúde. Pensar na reestruturação dos currículos e das
metodologias do ensino, levando em consideração as relações sociais dos sujeitos e
seus enfrentamentos.
19
A carta é um documento que guia as ações profissionais no âmbito da saúde, visando garantir o
acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
Dessa forma, é uma importante ferramenta para a população conhecer e reivindicar seus direitos.
A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS)
em sua 198ª Reunião Ordinária, realizada no dia 17 de junho de 2009 (BRASIL, 2011).
62
destaques assegurados a partir das novas edições. Além de trazer no seu terceiro
princípio um salto bastante significativo para se pensar os atendimentos das
pessoas transgêneras na esfera da saúde:
Além da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, existe a Política Nacional
de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, também
lançada pelo Ministério da Saúde, no ano de 2010, que serve como um guia, um
documento orientador, de necessidades e especificidades da população LGBT, além
de ser um marco histórico de reconhecimento das demandas desta população em
condição de vulnerabilidade. Ainda, o Ministério da Saúde instituiu o Processo
Transexualizador no SUS no ano de 2008, que compreende um conjunto de ações,
tais como: terapia hormonal, acompanhamento psicológico e psiquiátrico,
acompanhamento pré-cirúrgico da transgenitalização, dentre outras. Apesar do seu
caráter burocrático, é um reconhecimento do Estado de que pessoas transgêneras
tem demandas específicas e emergentes de saúde.
Criam-se esses documentos justamente por existir um entendimento de que
se trata de um grupo populacional que sofre discriminação simplesmente por terem
uma identidade de gênero não normativa, por irem contra um projeto social imposto
e pautado pela anatomia dos corpos, pela biologia e genitalização das relações
sociais. Esses documentos são pautados em um dos princípios do SUS, a equidade,
que visa aproximar os enfrentamentos e direitos de determinados grupos que estão
em desvantagens aos demais, a fim de deixar essas relações mais justas e
isonômicas.
63
A política parte do reconhecimento da existência dos efeitos perversos dos
processos de discriminação e de exclusão sobre a saúde da população
LGBT e, visando a sua superação, orienta-se para a promoção da equidade
em saúde. Destaca, ainda, que a orientação sexual e a identidade de
gênero são reconhecidas pelo Ministério da Saúde como determinantes e
condicionantes da situação, na medida em que a intolerância, o estigma e a
exclusão social relacionadas à diversidade sexual são geradoras de
sofrimento e limitadoras do acesso da população LGBT aos cuidados de
saúde (FERRAZ e KRAICZYK, 2010, p. 77).
Diante disso, o nome social nos permite analisar e pensar como as elites
econômicas, raciais, de gênero e sexual se apropriam da estrutura do Estado para
frear e impedir a ampliação e a garantia de direitos plenos às populações excluídas
(BENTO, 2014), mostrando a quem pertence os privilégios sociais.
64
trabalhador com o usuário que se dará a efetivação (ou não) dessa política. Caso o
trabalhador compreenda a importância para a saúde da pessoa transgênera em
respeitá-la, ou seja, caso compreenda a saúde no seu mais amplo significado,
biopsicossocial, se dará então a efetivação dessa política. No entanto, dificilmente
essa será a realidade do espaço e dos sujeitos dessa ação, sendo as pessoas
transgêneras alvo de discriminação, tendo o acesso dificultado e até mesmo negado
no atendimento no âmbito da saúde.
65
processo de opressão estrutural que está condicionada essa categoria, faz com que
a saúde da mesma seja uma das questões mais decisivas para suas vidas.
5.3 O que está por trás da deslegitimação da identidade de gênero das pessoas
transgêneras e o não cumprimento da normativa do nome social nos
atendimentos em órgãos de saúde.
Neste item do capítulo se propõe fazer uma síntese de tudo que foi
anteriormente discutido e repensar todas as problemáticas que envolvem a negação
das identidades transgêneras nos serviços de saúde, fazendo com que o uso do
nome social por esse grupo seja desconsiderando, assim como as propostas dos
documentos criados e estabelecidos pelo Ministério da Saúde que
normatizam/regulamos serviços que visam à saúde integral dessa população.
A primeira problemática social que reflete nos atendimentos de pessoas
transgêneras no âmbito da saúde e que contribui para que a violência transfóbica
institucionalizada ocorra se respalda no entendimento simplista de gênero, de que o
mesmo segue um único modelo, sendo ele cisnormativo e heteronormativo. Esse
entendimento está arraigado na estrutura social de forma profunda, a ponto de a
sociedade não questioná-lo, de tê-lo como certo, normal e padrão, corroborando
para que as violência transfóbicas sejam naturalizadas.
Ter uma identidade que desvie dos discursos heteronormativos e
cisnormativos já é, por si só, algo perigoso, pois quem se constrói de acordo com a
normativa e beneficia desses discursos, possuí estratégias perversas para quem não
segue essa normativa a fim de coagir e corrigir esses sujeitos, seja através de
insultos, estupro, violência física, assassinato e inúmeras outras maneiras de se usar
a violência em favor da norma. Mas, para além dessa problemática, existem outras
várias, como observamos no decorrer do estudo.
Sendo assim, ser uma pessoa trangênera (travesti, transexual, não-binária,
dentre outras identidades de gênero contra-hegemônicas) é ter que lidar com a
violência extrema. Essas identidades para existirem na sociedade necessitam resistir
às violências cometidas cotidianamente por familiares, sujeitos externos, médicos,
66
enfermeiros, psicólogos e todo resto de sujeitos privilegiados pelo sistema
cisnormativo.
Diante disso, é notório como o conceito raso de gênero está engessado na
sociedade de forma estrutural, influenciando todas as esferas sociais (culturas,
instituições sociais, convenções, etc). Tal influência exerce violência em todos os
sujeitos sociais, em maior grau nas pessoas transgêneras, que fogem da normativa
de gênero. Assim, pode-se compreender que a estrutura cissexista é responsável
pela violência que pessoas transgêneras enfrentam na sociedade, e mesmo que
existam conquistas concebidas, como no caso das portarias e decretos que
asseguram o direito do gênero e do nome pelo qual as pessoas transgêneras
reivindicam, o preconceito e processos discriminatórios em âmbitos sociais
continuarão existindo.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
68
Assim, para evitar a transfobia essa categoria não busca por atendimento ou evita
buscá-lo, o que caracteriza outra violência, oriunda da já existente. Foi naturalizada
por toda a sociedade a violação do uso do nome social das pessoas transgêneras
nas políticas públicas, dado que não é assegurado por lei esse direito básico, de
reconhecimento e cidadania.
Além do mais, os servidores da saúde não estão preparados para atender
essa população, em razão de não estudar as demandas e especificidades das
pessoas transgêneras em seus cursos, tanto técnicos quanto superiores,
desconhecendo, além disso, a categoria gênero, que de umas décadas para cá vem
sendo tratado também de forma teórica, exigindo uma compreensão mais densa,
histórica e cultural, ressignificando e abrangendo-se além do campo biológico.
Para além da discriminação por ser identificada a identidade de gênero da
pessoa transgênera e para além do desrespeito ao nome social e autoidentificação
de gênero, a naturalização da violência transfóbica tem também como consequência
o uso indiscriminado de substâncias químicas que interferem o funcionamento do
organismo de modo geral. Isto é, pessoas transgêneras estão se automedicando por
questões primordiais e emergentes de se relacionar com os próprios corpos de
forma mais saudável, no que se refere à saúde psicossocial, sem acompanhamento
especializado, acarretando riscos e consequências no campo biológico.
Constatou-se que essa categoria, por essas e outras razões, priva-se de
buscar atendimento e serviços na saúde a fim de evitar transfobia. Diante disso, a
vulnerabilidade que esse segmento está sujeito é tratada pelo poder público com
mínima atenção. Em consequência, todos esses danos morais e psicológicos
causados pela violência intensificam a situação de vulnerabilidade e adoecimento
das pessoas transgêneras, incluindo aqui, além do adoecimento físico, o mental.
Entende-se que a violência é exercida enquanto processo social e assim não
é objeto específico da área da saúde. No entanto, tais processos perpassam a
saúde, uma vez que ela implica em questões e relações sociais. Dessa maneira, a
saúde trabalha na perspectiva de cuidar dos agravos físicos e emocionais que os
conflitos sociais geram na vida dos sujeitos. Ademais, hoje o intuito da saúde é ir
além do modelo curativo, atinge a prevenção. Por isso, pensar a violência e as
consequências na saúde que a mesma pode ocasionar é fundamental para a
69
efetivação dessa nova proposta e roupagem que a saúde assumiu de uns tempos
para cá.
Assim, no que tange a saúde e adoecimento mental das pessoas
transgêneras nesses processos de violência, percebe-se que as consequências de
violências cotidianas no âmbito social resultam em depressão, isolamento social,
transtornos no geral, etc., podendo ocasionar ou impulsionar o suicídio.
À vista disso, chegou-se ao seguinte resultado ao analisar as consequências
da naturalização da violência transfóbica na saúde e relações sociais das pessoas
transgêneras: o nível de transfobia, violências simbólicas, verbais, físicas, dificuldade
e negação de acesso a direitos básicos, atendimentos discriminatórios em políticas e
instituições sociais, invisibilidade e falta de representatividade na mídia, meios de
comunicação no geral e dia-a-dia, dentre outros, são alguns dos elementos
resultantes que pesam a existência das pessoas transgêneras na sociedade, afetam
a saúde e tencionam o suicídio.
A segunda questão norteadora por finalidade teve averiguar por que as
portarias/normativas do SUS voltadas para o atendimento não discriminatório de
pessoas transgêneras não são respeitadas e efetivadas. Ao pensar o SUS aqui, se
considera as portarias criadas pelo Ministério da Saúde que visam minimizar as
situações de discriminação e preconceito contra essa população e facilitar o acesso
de pessoas transgêneras na política de saúde, tais como Política Nacional de Saúde
Integral LGBT, Processo Transexualizador e a Portaria do nome social (1.820, de 13
de agosto de 2009), expressa na Carta de Direitos dos Usuários do SUS.
Como resposta a esse problema identifica-se que existem modelos de
existência normatizados, hegemônicos, que reprimem e oprimem a diversidade das
existências humanas, isto é, outras formas de ser e expressar as construções
sociais que cercam os sujeitos. No caso das pessoas transgêneras, os modelos que
deslegitimam e ferem suas existências são pautados na cisnormatividade e
heteronormatividade.
Assim, o modelo de existência exige que pessoas se identifiquem com a
imposição do gênero, de acordo com o genital que a pessoa possuí, identificando
aqui a cisnormatividade (a cisgeneridade compulsória), e para que esse projeto seja
efetivado, a heteronormatividade adapta-se à ele. Pessoas transgêneras fogem
desses modelos impostos que estão arraigados na estrutura social, e por serem
70
verdades inquestionáveis e tidos como coerentes e inteligíveis, a sociedade de
modo geral tenta corrigir através de violência as destoantes dessas normas.
Dessa maneira, instituições irão reproduzir esses discursos e materializar a
violência contra pessoas transgêneras. Uma das formas é deslegitimar o gênero que
essas pessoas reivindicam, discriminá-las, constrangê-las, expor os nomes que não
as representam - por exemplo - no atendimento a qualquer órgão de saúde, mesmo
que exista um instrumento/documento que oriente o uso e respeito ao nome e
identidade de gênero de pessoas transgêneras.
Ademais, outro resultado obtido no estudo que revela o porquê de tais
normativas instituídas pelo Ministério da Saúde serem deslegitimadas e
desrespeitadas é o poder/saber médico. Esse saber foi elaborado por pessoas
cisgêneras, que ocupam e dominam espaços privilegiados, de disputas de poder, e
prezam as normativas impostas por estarem de acordo com elas e por
consequentemente terem privilégios.
Nessa perspectiva, o poder médico está em congruência com o saber
biomédico, que impera apenas no conhecimento biológico dos corpos e não se
compromete com o entendimento amplo de saúde, mais complexo, que envolve
características sociais e psicológicas dos sujeitos. Assim, esse saber viola tudo que
foge das normativas sociais moldadas pensando o funcionamento e entendimento
“coerente” e “lógico” da sociedade, marginalizando grupos com características e
expressões destoantes das padronizadas.
As portarias não são respeitadas por essa associação complexa de fatores,
todos eles hegemônicos fundamentados na estrutura social. Estrutura essa que
concede normatividade e legitimidade a cisgeneridade e heteronormatividade. Já o
saber médico, em conjunto com o entendimento biomédico, se funda e ganha
autoridade pela consagração histórica, quando a Medicina tenta deixar o posto de
arte e técnica no século XIX e começa a ocupar lugar de ciência. A partir disso ela
classifica os corpos e comportamentos das pessoas, em especial, os que desviam
da norma e do considerado adequado. Isso é refletido até hoje, quando médicos
inferem que a transgeneridade é uma patologia.
Patologizar as experiências identitárias transgêneras é outra forma de
violentar essa categoria, uma vez que subsidia a sociedade a tratá-la como inferior e
abjeta. A partir disso, fica evidente que o poder médico estabelece as normalidades
71
e anormalidades, o que deve ser combatido e corrigido na sociedade e o que não
deve. E isso é seguido à risca em instituições que lidam com a saúde: discursos
normativos são feitos a fim de humilhar, constranger e invisibilizar o que não se
encaixa no que foi determinado para as existências.
A perversidade do poder médico é impor normas e saberes distantes da
realidade, uma vez que ignora a multiplicidade de expressões humanas nas relações
sociais. Ademais, as normas elaboradas pela Medicina, em especial a Psiquiatria, no
que se refere à transgeneridade, ignoram os avanços de entendimento e
compreensão no campo social tecido pelas próprias pessoas que vivenciam essa
experiência.
Manter o posto de doença dessas experiências gera poder, facilita a ordem e
mantém privilégios de quem está no alto da hierarquia social. Logo, a patologização
contribui para o estigma e violências transfóbicas, dificulta acesso a direitos básicos
e fere a dignidade e integridade das pessoas transgêneras. A patologização da
transgeneridade, então, é apenas mais um mecanismo identificado para a não
efetivação de portarias que respeitam e pensam a saúde integral dessa população,
emaranhada as demais práticas mencionadas.
A última questão norteadora buscou verificar como as dificuldades
enfrentadas por pessoas transgêneras nos serviços de saúde impactam suas vidas.
Dificuldades essas que perpassam a falta de acolhimento, o não
reconhecimento/desrespeito ao nome social, desconhecimento das demandas
específicas dessa população, além do entendimento disseminado de que se trata de
um grupo em condições patológicas. Todas essas dificuldades impactam e
prejudicam a saúde e vida das pessoas transgêneras.
Os resultados dessa questão foram evidenciados em notícias encontradas na
mídia, em veículos virtuais de informações, que mostraram a realidade dessa
categoria quando busca por atendimento na saúde. As dificuldades que mostram os
impactos são várias: descaso nos atendimentos em órgãos de saúde, negação de
atendimento mesmo em circunstâncias extremamente graves, repulsa aos corpos
transgêneros a ponto de médicos não tratarem doenças físicas, consentimento para
funcionários e usuários violentarem pessoas transgêneras nesses espaços, seja de
forma verbal ou física.
72
Conclui-se assim que as dificuldades de pessoas transgêneras na busca pelo
acesso à saúde impacta na privação desse direito, isolamento, adoecimento, suicídio
condicionado por violências de várias direções, até mesmo de instituições que
deveriam ser protetivas e assegurar o acesso sem discriminação, de forma digna e
equânime. É sabido que casos de violência e violação de direitos contra pessoas
transgêneras na saúde são comuns. Estão sendo noticiados e também denunciados,
seja em secretarias que dão suporte, seja nas redes sociais, seja na fala entre
discussões do movimento de pessoas transgêneras, etc.
Isso revela uma contradição, na qual por um lado se reivindica uma melhora
na política, um acolhimento e efetivação de um direito, e por outro uma realidade
complexa, inflexível, fazendo com que esse grupo se isole e não busque por
atendimento, já que provavelmente sofrerá discriminação. O que isola e torna o
grupo em questão ainda mais vulnerabilizado, invisibilizado, sem acesso, sem
pensar estratégias e políticas públicas que os contemplem e respeitem suas
particularidades, identidades, pluralidades.
Retomando o problema de pesquisa, o acesso de pessoas transgêneras
acontece de forma precária e é permeado por violências. Adentrar a politica de
saúde é um caminho arriscado para essa população, que possivelmente será
constrangida, humilhada e terá sua dignidade agredida. Dessa forma, na tentativa de
superar essa realidade e pensar estratégias propositivas, uma solução seria investir
na readequação das bases curriculares dos cursos voltados para a saúde,
superiores e técnicos, como Medicina, Enfermagem, Psicologia, Serviço Social,
dentre outros. Adicionando a grade curricular de forma obrigatória cadeiras sobre
gênero e sexualidade para melhor atender as demandas das pessoas LGBTs.
Ainda, para os profissionais já formados, investir na capacitação sobre as
especificidades das pessoas transgêneras, para isso deveria haver uma grande
mobilização e o Ministério da Saúde deveria ser mais arbitrário.
Outra solução parcialmente eficaz para esse problema seria a aprovação de
uma lei de identidade de gênero, já que se comprovou que portarias, resoluções e
decretos não asseguram o direito à identidade e ao nome social das pessoas
transgêneras. Não basta existir uma normativa contemplativa às pessoas
transgêneras se não há a vontade de treinar os funcionários para receber essa
população de forma respeitosa. Ademais, leis e decretos do tipo só funcionam no
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âmbito restrito daquele órgão ou instituição, dessa forma é preciso lutar pela
aprovação de uma lei de identidade de gênero, que alteraria a lei de registros
públicos, proporcionando o direito ao reconhecimento integral à identidade de
gênero dessas pessoas perante as leis brasileiras em qualquer parte do país e em
qualquer órgão, instituição, etc.
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