Um Suplemento Literario de Eca de Queiro
Um Suplemento Literario de Eca de Queiro
Um Suplemento Literario de Eca de Queiro
RESUMO: O romancista Eça de Queirós, famoso por retratar a sociedade portuguesa de seu tempo, teve um
importante papel no jornal carioca Gazeta de Notícias. Além de trabalhar como correspondente estrangeiro, foi
criador e diretor de um “Suplemento Literário”, um informativo que trazia as notícias da Europa aos brasileiros
no final do século XIX. Neste artigo, será mostrado como fora executada essa tarefa e sua finalidade.
ABSTRACT: The romancist Eça de Queirós, famous for picturing a panorama of the portuguese society at his
time, had an important role at the Gazeta de Notícias journal. Besides working as a foreign correspondent, he
was both creator and director of “Suplemento Literário”, an informative section which reported the news from
Europe to the brazilians at the end of the XIX century. This article will show how he executed this task and its
goal.
1. INTRODUÇÃO
Eu porém tenho agora, não um jornal, mas um suplemento literário para a Gazeta de Notícias (do
Rio de Janeiro) de que sou Diretor, ou pelo menos o organizador. A Gazeta é, como V. sabe, um
dos primeiros jornais do Brasil. O suplemento comporta, e até necessita, um resumo do
movimento de Portugal - literário, científico, social, mundano, etc. Se V. vir que esta necessidade
do jornal concorda com seu plano de trabalho - mande dizer e ao mesmo tempo as condições. Em
todo caso V. tem jornal - diga pois que trabalho quer dar e em que período, e por enquanto. Com
um grande [jornal?] como a Gazeta é necessário tratar assim as coisas praticamente.
E eu por mim não tenho [senão que?] esfregar as mãos de alegria, pela sua boa idéia de trabalhar
para nós. (BERRINI, V.4, p. 943)
Todos esses interesses "mundanos", como diz o próprio Eça, que faziam parte da
sociedade brasileira do fim do século XIX seriam pesquisados e retratados por Eça. E
isso pode ser constatado por meio da observação das seções presentes que constituem os
exemplares: "A Europa em Resumo", "Livros Novos", "Bellas Artes", "Os Teatros",
entre outras.
2. UM AUTOR COMPLETO
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predominantemente realismo-naturalista, apesar de manter vivas as preocupações com a
crítica de costumes evidenciadas em A Relíquia, O Mandarim, Os Maias e na década de
1890 , temos A ilustre Casa de Ramires, A cidade e as serras, já com um discurso
artístico diferente daquele da década de 1870.
Como jornalista, Eça de Queirós escreveu especialmente para um jornal brasileiro,
Gazeta de Notícias, um dos mais influentes jornais do fim do século XIX editado no Rio
de Janeiro (durante a direção de Ferreira de Araújo -1875-1900). O seu senso político de
observador atento à atualidade internacional e capaz de interpretar os acontecimentos
com acuidade, é o traço predominante do cronista. Heitor Lyra comenta em seu livro O
Brasil na Vida de Eça de Queirós (p.156):
Como já desfrutasse da mais larga aceitação no Brasil, tudo o que lhe saía da pena era
simplesmente devorado pelos seus inúmeros leitores e admiradores brasileiros, tornando-se ele,
assim, um dos mais populares jornalistas da nossa imprensa diária.
3. O "SUPLEMENTO LITERÁRIO"
Apesar de ser um projeto com um intuito inovador, o Suplemento teve uma vida
curta. Como motivos de seu desaparecimento, pode-se certamente apontar as fatais
dificuldades econômicas. Embora em 6 de julho de 1892, Eça ainda escrevesse
entusiasmado e confiante a Batalha Reis, incitando-o a trabalhar exuberantemente,
informando-o, e referindo-se à Gazeta como “[...] um jornal rico, e, até certo ponto,
generoso [...]” ( BERRINI, p. 90), já deixa entrever suas desconfianças quanto às
perspectivas futuras do ponto de vista financeiro: “O que não me parece fácil é que eles
possam, com o câmbio atual, sustentar tal despesa. Até agora porém não cessam de
reclamar prosa” (p. 90)
4. UM TEXTO QUEIROSIANO
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Aquele que vive misturado a esta representação da Europa, topa a cada instante com o avesso
sórdido das coisas belas.
Desse poeta que pela manhã nos encantava, recitando a sua obra, vamos à noite saber que é um
borracho que espanca a mulher. O heroísmo que víramos aclamado na cidade, e que nos elevara o
coração, vamos daí a pouco descobrir que fora pago: com um cheque – e vemos o cheque. Não há
aqui possibilidade da Ilusão – que é a fonte perfeita de todo o gozo.
E o europeu termina por ser o mais enfastiado dos homens – porque, movendo-se entre os
cenários e os personagens, a cada instante palpa os papelões, reconhece sob o brilho do semideus
a pelintrice do histrião, verifica, como um budista, a completa inanidade de todas as aparências.
Grande senso mostrou esse humorista americano que tendo, em Londres, conhecido um alto
estadista e um alto poeta, se recusou a conhecer outros, e abandonou a Inglaterra dizendo: – «Da
minha pobre casa de madeira, no Texas, pareciam-me estes homens feitos duma substância
divina; agora descubro que são fabricados do mais ordinário dos barros. Homens e fatos duma
forte civilização, é necessário lê-Ias de longe. E para conservar a preciosa faculdade de admirar,
vou prudentemente recolher-me ao Texas!»
Justas palavras!
Com efeito, para saborear sem desilusão esta tão interessante Europa, é necessário estar
longe, no Texas – ou algures, além dos mares. O ideal, penso eu, seria habitar, por exemplo, no
Brasil logo que haja uma pouca de ordem e de juízo público), sob um céu que não tenha, como o
nosso, o peso e a melancolia de um teto enfarruscado, dentro de uma casa que não pareça, como
as nossas, uma boceta forrada de veludo e de micróbios, junto de água que não corra, como a
nossa, através de canos pútridos, num ar em que não estrondeiem, como no nosso, os ruídos
grosseiros de um materialismo desordenado: – e aí, em alegria e paz abundante, sob as
magnificências da luz natural, dentro do conchego fresco, uma boa poltrona, fumando um charuto
que não seja de couve de Hamburgo, observar curiosamente, finamente, com vagar e
diletantismo, esta nossa Europa, em tudo o que ela «faz» e tudo o que ela «diz», individualmente
e coletivamente, desde o fútil até o grande, nessa infinita e tumultuosa vaga de idéias e fatos onde
a última toilette de Worms se embaralha com a última encíclica do Santo Padre, e onde Paulus
sobrenada ao lado de Bismarck, que se afunda.
Ora, foi para que o Brasil pudesse realizar ideal tão cômodo, que nós criamos este
Suplemento. Ele é o compte rendu desta famosa representação que se dá no teatro da Europa,
mandado cada semana pelo paquete, para que o enredo e os atores possam ser conhecidos sem o
cansaço, a despesa, o tempo consumido em atravessar as águas e vir ao teatro, que não é
confortável, nem bem ventilado, e está cheio de lazaretos. Melhor ainda! É a própria
representação condensada em meia folha de jornal, com uma seleção cuidadosa dos seus
episódios mais atraentes, dos seus personagens mais característicos, das suas decorações mais
vistosas e ricas. Neste Suplemento vai o resumo de uma civilização. E toda ela deste modo se
goza no que tem de mais belo ou de mais fino, sem a desconsolação de perpetuamente se
surpreender a rude fealdade do seu avesso. Se a Europa, como disse não me lembro que afetado
poeta alemão, é no mundo o «Jardim da Inteligência» – nós remetemos para aí, Brasil ditoso, um
ramalhete das suas flores melhores, de modo que tu te possas regalar com o encanto das cores e a
harmonia dos perfumes, sem teres de descer ao jardim e sofrer-lhe a umidade, os espinhos, as
lagartas e os estrumes.
Não sei qual destas luxuosas imagens te agrade mais! É a Europa um teatro, ou um jardim?
Nós começamos: – se é um jardim recebe, como dizia Virgílio, a braçada dos lírios. Se é um
teatro – plaudite, cives!
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na análise dos dados sobre a carreira de Eça de Queirós pode-se perceber
que além de grande romancista, também atuou de forma exemplar na função de
jornalista.
Sabe-se que um texto literário destaca-se de um não-literário devido a sua
capacidade de transpor a imitação, ou seja, de projetar camadas mais profundas àquilo
que se lê. Em suas produções, seria justo dizer que Eça se adapta então a duas
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"realidades" distintas, pois como romancista, adere a uma forma peculiar de
narratividade, que certamente lhe ocorre devido ao gênero adotado. É nessas obras que
se instaura um Eça desejoso de denunciar uma sociedade com novos hábitos burgueses,
porém sob a condição de narrador buscando mostrar uma "realidade" por meio da
mimese.
Como jornalista então, a liberdade e a objetividade da linguagem, permitem-no ser
até certo ponto seco e direto.
Vale ressaltar que nos dois âmbitos, o escritor preserva um estilo próprio de narrar
ou de relatar: há sempre um tom de ironia em seus trabalhos que cede a suas obras de
ficção ou não-ficção um certo tom original, muito até pessoal.
Essa maleabilidade do escritor merece destaque quando se fala então nas múltiplas
possibilidades de se produzir um discurso sendo então ilustração dessa capacidade
lingüística.
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