Deus É Diferente, Mas Não É Desigual de Mim
Deus É Diferente, Mas Não É Desigual de Mim
Deus É Diferente, Mas Não É Desigual de Mim
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Programa “Cyberspace”, exibido na GNT, em 2 de julho de 1998, às 22:00 h.
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Siddha Yoga é o nome oficial sob o qual o grupo é registrado; e siddha ioga o tipo de ioga praticada por
ele. Estima-se que o grupo tenha hoje cerca de 40.000 adeptos espalhados em cerca de 90 países, entre os
quais o Brasil, onde possui centros ou grupos de canto nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina, Pernambuco e Minas Gerais.
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A ioga possui diversas ramificações, associadas a diferentes tipos de práticas, apoiadas em exercícios
físicos e/ou mentais. Entre os tipos mais conhecidos estão a hatha , a raja, a bakhti, a karma e a jnana ioga.
O siddha ioga é apresentado aos adeptos como sendo uma maha ioga, ou grande ioga, por sua capacidade
de induzir a manifestação de diferentes tipos de ioga nos praticantes de acordo com suas características
individuais.
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embora reconheça que elas façam parte daquilo que constitui o acervo de experiências
do grupo associadas ao sagrado. Também não tratarei das experiências de eliminação de
barreiras entre a mente e o mundo circundante, do tipo descrito pela artista canadense,
ainda que alcançar de forma permanente este estado de consciência esteja entre os
objetivos finais das práticas ióguicas de meditação, produzindo aquilo que se reconhece
como o estado de iluminação.
O foco de minha atenção serão os mecanismos reflexivos acionados dentro do
Siddha Yoga, cuja utilização continuada me parece constituir a principal via de produção
da experiência de imanência entre os devotos ocidentais, e algo característico, ao mesmo
tempo, da apropriação que eles fazem destas práticas, conforme apontei acima. Com isto
não quero dizer que, para muitos devotos, as sensações de unidade entre tudo
alcançadas de forma intermitente durante a meditação também não contribuam de forma
central para a construção da experiência de imanência. O que quero demonstrar,
contudo, é que esta não será a única nem a principal via para a produção desta
perspectiva entre eles. Processos reflexivos, à primeira vista inteiramente estranhos às
religiosidades de tipo místico, serão essenciais para constituir e legitimar a experiência
mística proposta pelo grupo. Serão eles também que irão conferir um aspecto bastante
radical à experiência de imanência que se constrói.
A radicalidade desta experiência de imanência estará associada em grande
medida ao fato de que ela não fica restrita aos espaços rituais ou aos momentos
específicos em que se medita, com todo o imenso espectro de sensações físicas e
psíquicas então produzidos, mas vai abarcar a totalidade da vida dos devotos, impondo-se
como evidência em momentos do quotidiano tradicionalmente associados ao profano.
Para tal, este quotidiano é transformado em espaço de produção de significados
associados ao sagrado, responsáveis pela transformação de acontecimentos ordinários em
acontecimentos extraordinários. A vivência da presença de Deus em si mesmos e em tudo
será dada pela imersão do devoto num processo de sacralização contínua do quotidiano,
que tenderá a diluir as fronteiras entre sagrado e profano, obrigando-nos a repensar
alguns dos marcos mais tradicionais da literatura sobre ritual. Em primeiro lugar, porque
os espaços rituais perdem o privilégio de se constituir em momentos únicos e exclusivos
de conexão com o sagrado, não podendo mais ser definidos por esta via (Gluckman e
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Gluckman 1977); em segundo lugar, porque o momento ritual fica destituído também de
outra das características que lhe é freqüentemente atribuída, a de ser o lugar por
excelência para a produção e transmissão de significados (Leach 1972). Neste sentido,
poder-se-ia dizer que o praticante de siddha ioga tenderia a ritualizar a vida como um
todo, não só por perceber-se como continuamente conectado a Deus, mas também por
estar o tempo todo produzindo significados novos para as experiências que vive. Esta
ressignificação de acontecimentos quotidianos, que servirá de prova da presença e da
atuação do divino dentro de si, será uma prática central dos devotos, freqüentemente
relatada nos momentos de partilhamento de experiências dentro do grupo.
A ressignificação do quotidiano será feita por meio da construção de
homologias, metáforas e da observação de coincidências que conectam acontecimentos e
ações aparentemente díspares e sem relação uns com os outros na vida das pessoas,
criando a percepção de uma unidade subjacente a tudo, que é o que instaura a sensação
da presença do sagrado para o devoto a partir de si mesmo. A experiência da imanência
advém assim, em primeiro lugar, do fato de que são os próprios mecanismos mentais do
devoto os responsáveis pela construção das homologias e pela identificação de
coincidências significativas entre os acontecimentos; além disso, são os acontecimentos
de sua própria vida, e não outros, os utilizados neste processo.
Desta forma, a busca de identificação com a Consciência Pura ou self, que é
a busca central das tradições da ioga, será mediada, nesta via reflexiva, por todo um
processo que colocará em cena, nos termos de Simmel, a uniqueness de cada indivíduo,
criando-se com isto uma tensão permanente entre singular e universal. Serão as histórias
individuais, ressignificadas continuamente, que propiciarão para o devoto a percepção
de que Deus age dentro de si, criando-se assim uma dialética entre singular ⎯ as
experiências individuais ⎯ e universal ⎯ a Consciência Pura ou self ⎯ que funcionará
como o motor do processo de imanentização instaurado.
Esta reflexividade desencadeada entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga
através da ressignificação de vivências pessoais demonstra que a articulação entre
espiritualidade e reflexividade, ao invés de se constituir em obstáculo para a afirmação da
religiosidade no cenário ocidental contemporâneo, como frequentemente apontado, pode,
ao contrário, constituir-se no caminho por excelência para o seu desenvolvimento.
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Este paradoxo acompanha, na verdade, boa parte das tradições religiosas hindus, que, enfatizando o deus
impessoal, o princípio absoluto, Brahman, acionam por outro lado não só a adoração de todo um imenso
panteão de deuses, como também a adoração de avatares e gurus, personificações da divindade. O fato de
que princípios imanentes e transcendentes estejam presentes nestas tradições tem suas origens históricas
bem explicadas em Weber (1967) e em Berry (1996).
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“Felicidade do Jogo da Consciência Divina” é o significado do nome da atual mestre espiritual do Siddha
Yoga, Swami Chidvilasanda.
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Bibliografia
AMARAL, Leila. 1996.“As Implicações Éticas dos Sentidos Nova Era de Comunidade”. Religião
e Sociedade, 17(1-2):54-75.
BERRY, Thomas. 1996. Religions of India. New York: Columbia University Press.
D’ANDREA, Anthony. 1996. O Self Perfeito e a Nova Era. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
IUPERJ.
GIDDENS, Anthony . 1991. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP.
GLUCKMAN, Mary e GLUCKMAN, Max. 1977. “On Drama, and Games and Athletic Contests”. In:
MYERHOFF, Sally e MOORE, Sally. Secular Ritual. Amsterdam: Van Gorcum. pp. 227-243.
JACKSON, Carl T. 1994. Vedanta for the West. Indianapolis: Indiana University Press.
LEACH, Edmund. 1972. “Ritualization in Man in Relation to Conceptual and Social Development”. In:
LESSA, W, e VOGT, E. (eds.). Reader in Comparative Religion. New York: Harper & Row. Pp.
333-337.
WEBER, Max. 1967. Religions of India. The Sociology of Hinduism and Budhism. Estados Unidos: The
Free Press Corporation.