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No quarto alugado Paulete tomava um banho quando L chamou Elias para ver o
noticiário de uma emissora da Bahia. Era um programa policial que transmitia crimes e
notícias de menor porte. Julia a irmã de L estava dando entrevista da cela de uma
delegacia em Teixeira de Freitas, algemada e chorando. A cafetina se dizia inocente de
todas as acusações; pelo contrário, ela era a verdadeira vítima. O Gerente do
Supermercado onde Elias aplicou o golpe disse ter sido vítima de dois estelionatários
que lhe passaram um cheque falsificado. O homem se apresentou como um médico
bilionário, cujo nome era Doutor Leopoldo Heitor de Almeida e Albuquerque. Com
certeza ele e a jovem que se passou por sua sobrinha eram cúmplices. O Gerente disse
ainda que, os estelionatários haviam comprado metade dos artigos de luxo, disponíveis
no Supermercado. Tudo que ele como responsável pelo estabelecimento queria era o
ressarcimento do prejuízo e a prisão do outro golpista. Um comerciante da cidade de
Nova Viçosa ouviu a notícia no rádio e pela descrição do suspeito reconheceu ser o
Doutor Leopoldo (esta testemunha era o dono da locadora de veículos onde Elias
alugara o carro de luxo).
Elias passou a palma da mão direita sobre o rosto barbeado e deu uma
gargalhada. A Polícia não tinha pistas para pega-lo, até os documentos do Falso Médico
foram destruídos e só voltariam a existir quando seu criador o ressuscitasse. A foto da
menor mostrada na TV não se parecia em nada com a menina no quarto do hotel. Antes
de L se tornar Ana Gabriela, recebeu um disfarce permanente da parte de seu criador:
teve os cabelos cortados e alisados, mas foi Paulete quem os tingiu numa tonalidade
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mais escura. Nem o jeito de andar da garota e suas roupas eram iguais à antes de sua
transformação.
Elias começou a ensaiar Mãe Pretinha do Tucum, as mulheres idosas eram mais
difíceis de imitar que as jovens, mas se as preferia era por serem mais divertidas. Como
a mãe-de-santo era negra ele usou uma pasta preta sobre a pele postiça e enrugada. Pôs
uma peruca de cabelos crespos: vasta e parcialmente grisalha. Colocou suas lentes de
contato embaçadas. Usou uma cola para baixar as pálpebras inferiores. Pôs pequenos
chumaços de algodão no nariz para achatá-lo e dar-lhe característica negroide. Usou um
vestido branco e grande onde havia espumas que davam um enchimento, imitando as
gorduras de uma mulher na terceira idade. O pescoço cheio por uma massa de modelar
embaixo da pele postiça, também trazia colares de umbanda e candomblé. A velha se
equilibrava num cajado cujo cabo trazia a cabeça de um periquito incrustado na
madeira. Colocou o cachimbo da mãe preta num canto da boca e começou a imitá-la
com uma voz rouca. Olhou L na expectativa de vê-la sorrindo e para sua surpresa a
menina chorava.
Elias não acreditava que a menina pudesse estar chorando de saudades de casa,
afinal, lá ela não era mais que objeto de comércio da irmã. Os dois evitavam falar do
passado da garota na frente de Paulete, mas como este tinha ido ao saguão do hotel,
poderiam conversar sobre o que quisessem. Perguntou L porque estava chorando, como
não obteve resposta ele próprio respondeu: “Ela estava com saudades de Julia”! Sentia
falta de ser explorada pela corja de safados! Então podia voltar para Teixeira de Freitas,
se quisesse ele a levaria para seu pai... O Juiz Pedófilo da cidade!
Com sua lábia de malandro, conseguiu comover mais ainda a menina, que
chorou em dobro. L disse que não tinha saudade de Julia, mas também não queria que
ela ficasse presa por sua culpa. Até as doenças venéreas da irmã eram culpa sua, porque
se não fosse por ela, Julia e Elias não teriam feito sexo! Ele a repreendeu, dizendo que
não se culpasse. Foi dele a ideia de transar sem camisinha, para dar uma lição na
cafetina, esta merecia uma sarna para se coçar e um filho que lhe desse trabalho. Talvez
sendo mãe, fosse capaz de entender o quanto é triste uma criança ser explorada,
justamente por alguém em quem confia. Já as doenças venéreas foram para que visse os
perigos a que expunha sua própria irmã!
Era melhor ser o melhor dos bandidos que ser o pior dos Pastores! Os bons
nunca poderiam ser bons o bastante. Já ele gostava de fazer o melhor, mesmo se fosse o
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melhor de algo considerado ruim, como os crimes que praticava. Um Pastor por ética de
sua função, não poderia desviar dinheiro da igreja para o luxo. Já um malandro poderia
trapacear se fingindo de Pastor e ainda fazer o que quisesse do dinheiro ganhado, não
estaria infringindo a ética dos ladrões. Por isso escolheu ser um ladrão: para viver sem
regras e não ser obrigado a quebrá-las. Elias pediu a L que jamais sentisse pena de suas
vítimas ou remorsos de nada que fizesse a elas. Muitas só choravam por estarem sendo
as vítimas, pois se estivessem no lugar dos seus ofensores fariam muito pior que estes!
L não sabia dizer de maneira clara o que sentia, mas Elias apesar de não
conseguir sentir, entendia através de sua inteligência fria o calor de todos os sentimentos
humanos. Ele consolou L pelo que aconteceu a Julia, dizendo que esta era culpada,
aliás, todas as suas vítimas eram um pouco responsáveis pelo que lhes acontecia. Os
golpistas eram ladrões que viviam das ambições alheias. As vítimas eram ambiciosas,
por não serem espertas caiam nos golpes. Era a proposta de um carro pela metade do
valor. Era um cheque sem fundos aceito num negócio que poderia esperar por um
dinheiro de verdade. Era um dinheiro falso aceito sem uma avaliação demorada. Era um
bilhete de loteria premiado a disposição de qualquer um. Era uma multidão de pessoas a
espera de milagres, sem entenderem que os maiores milagres são aqueles que todos
podem fazer: buscar os médicos e os remédios na cura de doenças! “Nunca acreditar em
benefícios gratuitos, caindo de paraquedas sobre nossas cabeças”!
Elias sabia que L apesar de sua maturidade precoce, ainda era apenas uma
criança, entrando no princípio da adolescência (aquela fase que muitos chamam de
aborrescência) as crianças se revoltam por serem tratadas desta forma, mas também não
querem ser adultas. Quando era um adolescente e apaixonou-se por Glória, eles faziam
planos de se casarem e terem muitos filhos. Ensaiavam como seria a educação dos
garotos e planejavam os erros que jamais cometeriam como pais. Se tivesse se casado
com Glória ao completarem maior idade, então ele poderia ter uma filha da idade de L.
Isso e o fato da menina estar se mostrando tão carente, despertavam nele um sentimento
paternal.
Elias sabia que não estava na idade de namorar uma garota pré-adolescente,
então o melhor a fazer era assumir o papel de ser o pai verdadeiro da menina. Paulete já
tinha se acostumado com a ideia de ser mãe, era sua a vez de assumir um papel que
fosse sincero. O Elias Ator atuaria como o pai de Ana Gabriela, mas seria o pai
verdadeiro da pequena L. Daquele dia em diante não teria mais relações sexuais ou
indecentes com a menina: isso não era papel de pai e nem de homem. Se ela quisesse
satisfazer suas concupiscências, seu novo tutor deixaria que arrumasse um namoradinho
da sua idade. Com carinho e ternura ele passou a mão sobre os cabelos de L e a abraçou.
Neste momento Paulete entrou no quarto e comovida com a cena juntou-se aos dois.
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Formaram uma tríade familiar incomum: com uma mãe do sexo masculino, uma criança
sem inocência e um pai que jamais repreenderia a filha, por enganar as pessoas.
Em apenas dois dias em Nova Friburgo, Elias alugara uma casa bem grande,
ficava entre o centro da cidade e a periferia. Ali seria o Terreiro de Candomblé Aruanda
de Oxalá, onde Mãe Pretinha do Tucum realizaria todos os tipos de trabalhos espirituais:
desde despachos para conquistar a pessoa amada até vodus para eliminar inimigos. No
terreiro Elias era o responsável pela personagem principal, Paulete e L eram assistentes
e só incorporavam espíritos se a Mãe Preta estivesse ocupada. O trio aproveitou o mais
que pode daquela nova peça teatral que representavam. Mãe Pretinha pedia todos os
tipos de comidas e bebidas sofisticadas para os orixás, mas quem desfrutava de tudo
eram eles. Dinheiro era doado para agradar aos exus. Roupas sob o pretexto de estarem
enfeitiçadas: eram entregues para uma incineração que jamais aconteceria.
Para a cura de enfermidades era necessário doar três notas do mais alto valor,
para Exu Saúde. O primeiro que passasse, pegando aquelas cédulas deixadas na calçada,
ficaria com as doenças. A pequena L disfarçava-se de menino e pegava o dinheiro,
fazendo a vítima do golpe, pensar que a doença tinha ido embora com ela. Na leitura de
sorte, Mãe Pretinha jogava os búzios e previa muita sorte para suas vítimas, ela não
cobrava nada, mas os beneficiados tinham que doar todo seu dinheiro, para as três
pessoas que vissem depois das previsões de futuro, pois eram as testemunhas de defesa
dos orixás (como só o trio de vigaristas ficava na sala das adivinhações, então o dinheiro
doado ia para eles).
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