Apostila Completa - Cultura Religiosa

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FACULDADE DOM ALBERTO

CULTURA RELIGIOSA

SANTA CRUZ DO SUL – RS


SUMÁRIO

1 A religião como forma de conhecimento 4

1.1 Religião e teoria do conhecimento........................................................4

1.2 Formas mitológicas e religiosas de conhecimento................................8

2.1 Conhecimento dogmático religioso......................................................11

2.2 Teologia: o irracional no racional.........................................................12

2.3 Intuição como experiência religiosa com o sagrado............................14

2.4 Considerações sobre o sagrado e a estruturação religiosa................17

3 A universalidade do fenômeno religioso 21

4 Investigação antropológica do fenômeno religioso 24

4.1 Animismo.............................................................................................26

4.2 Animatismo..........................................................................................26

4.3 Totemismo...........................................................................................27

4.4 Religioso e social.................................................................................28

4.5 Cultos de vegetação e fertilidade........................................................28

4.6 Experiências da morte nas sociedades primitivas...............................29

4.7 Conhecimento e magia primitivos........................................................29

4.8 Saúde e patologias..............................................................................30

4.9 Fenômeno religioso no domínio do sagrado.......................................31

4.10 Cerimônias de iniciação.......................................................................31

4.11 Propagação e nutrição.........................................................................32

4.12 Totemismo como coesão.....................................................................33

4.13 Morte como sobrevivência...................................................................33

4.14 Monoteísmo e moral primitivos............................................................36

5 O fenômeno religioso como social 36

6 Fenômeno religioso nas religiões desérticas e agrárias 38


6.1 Regiões áridas do Oriente Médio........................................................43

6.2 Regiões férteis da Índia e da China.....................................................43

6.3 Paralelos entre as matrizes do deserto e da terra fértil.......................45

6.4 Ouvir no deserto...................................................................................46

6.5 Ver nas regiões férteis.........................................................................47

6.6 Ressuscitar no deserto........................................................................47

6.7 Reencarnar nas terras férteis..............................................................47

7 Constituição científica das ciências da religião 48

8 Distinções do fenômeno religioso da cultura religiosa 53

9 A contemporaneidade do fenômeno religioso 58

10 Diversidade cultural e religiosa 66

10.1 Ensino religioso na promoção do respeito à diversidade....................70

11 Tradições, ritos e crenças no Brasil 74

12 Referências Bibliográficas 79
1 A RELIGIÃO COMO FORMA DE CONHECIMENTO

1.1 Religião e teoria do conhecimento

A religião é uma forma de conhecimento. O conhecimento implica


procedimentos indutivos e dedutivos. O conhecimento da religião está vinculado ao
procedimento dedutivo. A religião, assim como a arte e a filosofia, tem como objetos
o mundo e a vida, buscando soluções e interpretações da realidade, porém com
distinções de origem.
A origem da perspectiva religiosa se situa no campo da fé. A visão religiosa
principia por meio da vivência religiosa, ou seja, da experiência humana com Deus,
que envolve fatores subjetivos. Assim, o acesso ao conhecimento religioso
ultrapassa o âmbito racional e se insere no campo da experiência religiosa. A
religião foca a totalidade do ser e busca interpretar essa totalidade.
No que diz respeito à relação entre o sujeito e o objeto como ponto central do
conhecimento, ao contrário do que ocorre nas concepções fenomenológicas
(determinação do sujeito pelo objeto), na teoria do conhecimento, o sujeito é quem
determina o objeto. Nesse sentido, a consciência que conhece se comporta ativa e
espontaneamente ante o objeto. E, na religião, o encontro é o fator preponderante
do conhecimento. Conhece-se, portanto, pela experiência, e não pela via racional-
discursiva.
Desse modo, é preciso lidar com o problema da essência do conhecimento.
Para isso, coloca-se em questão outras possibilidades de conhecimento, que, para
além da apreensão racional do objeto e para além do conhecimento racional, são
intuitivas. Há, portanto, outros tipos de conhecimento humano além do
conhecimento racional-discursivo; é validado também o conhecimento religioso, isto
é, intuitivo. Outro problema é relativo à origem do conhecimento humano. Como
ocorre o conhecimento no sujeito pensante? Qual é a base para a validade do
conhecimento? A resposta pressupõe uma perspectiva psicológica que se desdobra
no racionalismo, no empirismo e no intelectualismo. Porém, com o apriorismo, há a
tentativa de mediar o racionalismo e o empirismo. O apriorismo considera tanto a
experiência quanto o pensamento e a reflexão como fontes de conhecimento.

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Na essência do conhecimento, está a relação entre sujeito e objeto. Aqui, a
questão fundamental é se o objeto determina o sujeito, ou se o sujeito é que
determina o objeto. Existem soluções pré-metafísicas, metafísicas e teológicas. A
solução para a problemático sujeito–objeto pode ser obtida por meio de um retorno
ao absoluto, isto é, aos princípios últimos das coisas; a partir daí, determina-se as
relações entre ser e pensamento. Essa é uma solução teológica do problema com
duas possibilidades: o sentido monista-panteísta ou o sentido dualista-teísta.
Na busca da solução do problema sujeito–objeto, ao se retroceder ao
absoluto, chega-se ao monismo. Esse conceito denota uma mesma unidade (e não
dualidade), ou seja, estão em jogo os dois lados de uma mesma e única realidade.
Espinosa desenvolve essa reflexão de maneira mais clara com base na ideia de
substância como centro de seu sistema, com dois atributos:

 O pensamento (cogitatio): mundo ideal ou da consciência;


 A extensão (extensio): mundo material.

Há uma concordância em Espinosa. Para ele, há semelhança entre a ordem e


a conexão das ideias e das coisas. Assim, com objeto e sujeito totalmente idênticos,
o problema sujeito–objeto estaria resolvido.
Já na visão dualista-teísta da solução teológica, o dualismo empírico entre
sujeito e objeto tem seu fundamento no dualismo metafísico, sustentando-se na
diferença metafísica essencial entre sujeito e objeto, isto é, pensamento e ser, cujo
princípio comum é a divindade. A fonte comum é Deus como causa criadora do
universo. Deus, portanto, coordena o ideal e o real de tal forma que eles concordam
entre si, possibilitando uma harmonia entre o pensamento e o ser. Esse é o ponto de
vista do teísmo cristão.
Há noções precursoras desse pensamento em Platão, Aristóteles e Plotino,
mas somente na Idade Média ele emerge de forma fundamentada e organizada.
Agostinho e Tomás de Aquino são seus principais representantes. Na Idade
Moderna, Descartes filosofava no terreno do teísmo cristão. A ideia de harmonia
preestabelecida fora dada por Leibniz. Para ele, o mundo “[...] é composto por
infinitas mônadas que se apresentam como mundos totalmente fechados em si

5
mesmos” (HESSEN, 1999, p. 68), nos quais ordem e harmonia se estabelecem a
partir de Deus.
Há um fio condutor da questão da intuição que é delineado desde Agostinho
até Scheler, em sua obra Do eterno no homem. Nessa obra, Scheler (2015) afirma
que seus esforços foram dirigidos a demonstrar o contato da alma com Deus,
iniciando com Agostinho, que experienciou Deus no coração e o apreendeu em
palavras. O intelectualismo religioso de Geyser e Messer é equivocado, por
confundir religião com metafísica; nesta última, só há conhecimento racional.
Entretanto, Deus não é objeto de estudo da metafísica. O Deus da religião
não é um ser, e sim um valor. Ele é dado exclusivamente na experiência interna, e
não na atitude racional-metafísica. É por meio da experiência religiosa que a
divindade chega à condição de algo dado. A crença em Deus não está
fundamentada nas inferências metafísicas, senão não haveria a absoluta
inquebrantabilidade do homem religioso.
O conhecimento humano não se restringe ao mundo fenomênico, mas avança
para a metafísica. Desse modo, a religião, a fé religiosa, fornece também
interpretação do sentido do mundo, do universo. As relações que se estabelecem,
portanto, são entre religião e filosofia, crença religiosa e conhecimento filosófico, fé e
saber. Essas relações foram concebidas, diferentemente, em quatro tipos, que se
dividem em identidade essencial e diferença essencial.
Na identidade essencial total, “[...] a fórmula dirá, então, ou que religião é
filosofia, ou que filosofia é religião, isto é, ou se dissolve a religião na filosofia, ou a
filosofia na religião” (HESSEN, 1999, p. 108). O sistema gnóstico, como identidade
na qual se considera a filosofia e a religião como uma única coisa, compartilha a
mesma busca pelo conhecer. Aqui, a religião é considerada um conhecimento
inferior, pois não trata de conceitos abstratos, mas se dedica às representações
concretas. Os filósofos Espinosa, Fichte, Schelling, Hegel e von Hartmann defendem
essa concepção. Já no sistema tradicionalista de identidade, há um reducionismo da
filosofia em relação à religião. Nesse caso, a tradição religiosa é fonte para os
filósofos, e a filosofia e a religião coincidem, não sendo a primeira autônoma diante
da segunda.
Na identidade essencial parcial, a filosofia e a religião possuem um campo
comum: a teologia natural (escolástica) ou teologia racional (filosofia do Iluminismo).

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O foco dessa vertente está em provar a existência de Deus e definir sua essência
por meio da razão, fundamentando as bases para a fé sobrenatural. Desse modo, a
religião baseia-se na filosofia, e a fé baseia-se no saber. Esse foi o modo como
Tomás de Aquino definiu as relações entre fé e saber.
Os sistemas dualistas, contrários aos de identidade, desdobram-se nos
sentidos estrito e moderado. No sistema dualista estrito, o saber é fenomênico, e a
fé é suprassensível. Essa é uma concepção de Kant, que foi o grande influenciador
da teologia protestante do século XIX. No sistema dualista moderado, religião e
filosofia são campos distintos que se aproximam da ideia de absoluto a partir de
diferentes prismas: o racional e cosmológico (na filosofia), que resulta na ideia
espiritual do mundo; e o ético e religioso (na religião), que resulta na ideia de um
Deus pessoal. Essa ideia foi defendida por Scheler (2015).
Scheler se opõe ao sistema de identidade quando analisa o seguinte:

Hoje, quando as posições religiosas divergem entre si mais profundamente


do que nunca, não há nada admitido mais uniforme e seguramente por
todos que tratam da religião de modo inteligível do que isto: que a religião
tem, no espírito humano, uma fonte que é fundamental e essencialmente
diversa da fonte da filosofia e da metafísica; que os fundadores da religião
— os grandes homines religiosi — são tipos espirituais humanos
completamente distintos do filósofo e do metafísico; e que, além disso, suas
grandes transformações históricas jamais nem em parte alguma resultaram
da força de uma nova metafísica, mas de um modo fundamentalmente
diferente (SCHELER apud HESSEN, 1999, p. 109).

A inadequação do sistema de identidade total ou parcial está na sua


impossibilidade de se aproximar do objeto de estudo da religião (o divino) pelas vias
racionais e metafísicas, uma vez que são campos distintos, e a passagem de um
para o outro é impossível. Como pontua Hessen (1999, p. 110), “[...] as supostas
conclusões metafísicas puramente racionais nascem, na verdade, de uma atitude
religiosa, de tal forma que poderíamos dizer com Scheler, que aquelas provas e
conclusões não fundamentam a religião, mas ao contrário, fundamentam-se elas
mesmas na religião”. Disso emerge a explicação psicológica de que a prova de Deus
satisfaz apenas àqueles que têm fé, por conta de sua atitude religiosa. Assim, ela se
torna inútil para os que assumem uma postura racional e crítica.
Para além da razão, há a vida vivida, independente de programas filosóficos;
a razão não capta totalmente a essência das coisas. Emotividade e volatilidade
devem ser consideradas no sentido essencial do ser e do agir, de modo que o

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pensamento ajuda na experimentação intensa e coesa. Portanto, o conhecimento
religioso é um conhecimento verdadeiro, que se alicerça em si mesmo.

1.2 Formas mitológicas e religiosas de conhecimento

O mito e as religiões procuram fornecer explicações sobrenaturais do mundo.


A fé incondicional em uma religião implica a aceitação dessas explicações de forma
dogmática. Isso garante inclusive a salvação, fundamentada também em
explicações sobrenaturais. Há maneiras e técnicas de se obter e conservar a
salvação, que são os ritos, os sacramentos e as orações.
Alguns especialistas, como Mircea Eliade (1992), estudioso de história
comparada das religiões, atribuem importância especial ao contexto religioso do
mito. Com efeito, são muito frequentes os mitos que versam sobre a origem dos
deuses e do mundo (chamados, respectivamente, “mitos teogônicos” e “mitos
cosmogônicos”), dos homens, de determinados ritos religiosos, de preceitos morais,
tabus, pecados e redenção. Em certas religiões, os mitos formam um corpo doutrinal
e estão estreitamente relacionados aos rituais religiosos, o que levou alguns autores
a considerar que os mitos surgiram para explicar os rituais religiosos. Mas tal
hipótese não foi universalmente aceita, por não esclarecer a formação dos rituais e
porque existem mitos que não correspondem a um ritual.
Nas religiões monoteístas, as mitologias, sobretudo as teogonias, são
geralmente repudiadas como exemplos de ateísmo ou politeísmo, pois
representariam uma desvirtuação do Deus único e transcendente, à medida que o
relacionam a manifestações ou representações de outras criaturas. Entretanto,
essas mesmas religiões também recorrem a descrições fantásticas, de caráter
simbólico, para explicar a origem do mundo e do pecado, o fim do mundo e a vida
ultraterrena, e não deixam de atribuir a Deus reações e sentimentos humanos.
O mito, portanto, é uma linguagem apropriada para a religião. Isso não
significa que a religião e o mito contam uma história falsa; ambos traduzem numa
linguagem plástica (isto é, em descrições e narrações) uma realidade que
transcende o senso comum e a racionalidade humana, e que, portanto, não cabe em
meros conceitos analíticos. Não importa, do ponto de vista do estudo da mitologia e
da religião, que Prometeu não tenha sido realmente acorrentado a um rochedo com

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um abutre a comer-lhe as entranhas, nem que Deus não tenha criado o ser humano
a partir do barro. Religião e mito diferem não quanto à verdade ou falsidade daquilo
que narram, mas quanto ao tipo de mensagem que transmitem.
A mensagem religiosa geralmente exige determinado comportamento perante
Deus, o sagrado e os homens, e é muitas vezes formulada de forma compatível com
conceitos racionais, em doutrinas sistematizadas. O mito abrange mais mensagens,
desde atitudes antropológicas muito imprecisas até conteúdos religiosos, pré-
científicos, tribais, folclóricos ou simplesmente anedóticos, que são aceitos e
formulados de modo menos consciente e deliberado, mais espontâneo, sem
considerações críticas.
A crença em poderes sobrenaturais é um aspecto intrínseco à humanidade.
Os seres humanos são seres religiosos e, independentemente das causas, buscam
algo além de si mesmos. Tal busca se manifesta nas inúmeras expressões
religiosas existentes no mundo todo. Existem evidências tanto no passado remoto
quanto no presente que demonstram o caráter da busca transcendental (ou
imanente) e suas complexas manifestações religiosas.
Essa complexidade se vê tanto nos rituais antropofágicos e nos sacrifícios de
animais como nas cerimônias religiosas simbólicas. As múltiplas manifestações
religiosas são fenômenos permanentes e constantes que se interligam no tempo e
no espaço. E, independentemente da forma e da evolução de suas manifestações,
elas revelam a atualidade das lendas e mitos antigos e a brutalidade atual de rituais
arcaicos, sugerindo que religião e magia acompanham a humanidade desde suas
origens, quando os homens se distanciaram dos animais a partir da consciência de
si mesmos.
O reconhecimento da religião como forma de conhecimento deve considerar a
experiência religiosa, alicerçada em si mesma. Ele está no campo do sentimento (ou
seja, da emotividade) e da vontade (isto é, da volatilidade). Veja como Eliade (1992,
p. 60) descreve a experiência religiosa:

A simples contemplação da abóbada celeste é suficiente para desencadear


uma experiência religiosa. O Céu revela-se infinito, transcendente. É por
excelência o ganz andere diante do qual o homem e seu meio ambiente
pouco representam. A transcendência revela-se pela simples tomada de
consciência da altura infinita. O “muito alto” torna-se espontaneamente um
atributo da divindade. As regiões superiores inacessíveis ao homem, as
zonas siderais, adquirem o prestígio do transcendente, da realidade
absoluta, da eternidade.

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O conhecimento religioso é intuitivo. Ele é capaz de dar respostas de alcance
universal aos enigmas do mundo e da vida. Mesmo que as múltiplas religiões
apareçam diversamente, é preciso reconhecer a especificidade do conhecimento
advindo dos inúmeros e diversos fenômenos religiosos, igualmente importantes e
com sentido determinado para seus praticantes e fiéis. Como pontua Hessen (1999,
p. 83), embora ninguém tenha se deixado torturar por uma hipótese metafísica,
muitos homens já sofreram fisicamente por sua fé em Deus; “Para qualquer pessoa
imparcial, esse fato fala uma linguagem bastante clara”.

2 A ESPECIFICIDADE DO CONHECIMENTO RELIGIOSO

Existem muitas formas de conhecer o mundo. Lakatos e Marconi apresentam


quatro tipos de conhecimento. Eles afirmam que a diferença entre o conhecimento
do senso comum e o conhecimento científico está mais no “[...] que se refere a seu
contexto metodológico do que propriamente por seu conteúdo” (LAKATOS;
MARCONI, 2017, p. 4). Essa mesma lógica se observa também no que tange aos
conhecimentos filosófico e religioso (teológico). A seguir, veja como Trujillo Ferrari
(1974) caracteriza os quatro tipos de conhecimento.

 Conhecimento popular: valorativo, reflexivo, assistemático, verificável,


falível e inexato.
 Conhecimento científico: real/factual, contingente, sistemático, verificável,
falível e aproximadamente exato.
 Conhecimento filosófico: valorativo, racional, sistemático, não verificável,
infalível e exato.
 Conhecimento religioso: valorativo, inspiracional, sistemático, não
verificável, infalível e exato.

O conhecimento religioso é um conhecimento que se apoia, segundo Lakatos


e Marconi (2017, p. 6), em “[...] doutrinas que contêm proposições sagradas
(valorativas), por terem sido reveladas pelo sobrenatural (inspiracional) e, por esse
motivo, tais verdades são consideradas infalíveis e indiscutíveis (exatas)”. Por conta
dessas características, “[...] é um conhecimento sistemático do mundo [...] como
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obra de um criador divino; suas evidências não são verificáveis: está sempre
implícita uma atitude de fé perante um conhecimento revelado” (LAKATOS;
MARCONI, 2017, p. 6).
Esse tipo de conhecimento pressupõe fé na crença incondicional de que a
realidade consiste em atos criadores de Deus, dispensando evidências e
verificabilidades. Temas atuais como aborto, teoria da evolução, eutanásia,
reprodução e clonagem são tratados de formas diferentes por teólogos e cientistas,
população e filósofos. Para Lakatos e Marconi (2017), de um lado, as posições dos
teólogos fundamentam-se nos ensinamentos de textos sagrados; de outro os
cientistas buscam, em suas pesquisas, fatos concretos capazes de comprovar (ou
refutar) suas hipóteses. No conhecimento teológico, não há procura por evidências,
uma vez que estas são tomadas “[...] da causa primeira, ou seja, da revelação
divina” (LAKATOS; MARCONI, 2017, p. 6).

2.1 Conhecimento dogmático religioso

Explicar a natureza é um empreendimento humano antigo, principalmente no


que tange às forças naturais e à morte, à qual os homens estão expostos e
submetidos. Por meio do conhecimento obtido a partir dos mitos, as explicações dos
fenômenos da natureza foram atribuídas a entidades míticas. A compreensão da
realidade era impregnada de noções sobrenaturais, cuja explicação se baseava em
motivações humanas atribuídas a potências sobrenaturais.
O conhecimento religioso, ao tentar explicar os fenômenos da natureza e da
morte, o fez de forma dogmática, com base em revelações divinas. Essas
explicações se fundamentam nas causas primeiras; deuses inspiram o ser humano
para o conhecimento de fundamentação religiosa. É por meio da sacralização de
leis, verdades e conhecimentos que as explicações são aceitas, sem nenhum tipo de
criticidade ou filtro teórico.
O conhecimento religioso ou teológico baseia-se em doutrinas com
proposições sagradas. Esse conhecimento é valorativo e inspiracional, pois suas
verdades são reveladas pelo sobrenatural; ele também é infalível e indiscutível (as
verdades são exatas). Ademais, é sistemático, por ser obra de um criador. Portanto,

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suas evidências não são verificadas. No conhecimento teológico, o fiel não se detém
à procura de evidências.
Para Hessen (1999, p. 23), o conhecimento religioso é dogmático, tem uma
doutrina estabelecida; assim, “[...] a possibilidade e a realidade do contato entre
sujeito e objeto são pura e simplesmente pressupostas”. No dogmatismo, o
problema da possibilidade do conhecimento não é discutido, pois não se reconhece
que o conhecimento se dá na relação sujeito–objeto. O dogmático pressupõe que
não há a mediação do conhecimento; ele acredita que o objeto é dado diretamente,
tanto na percepção como no pensamento. Aqui, a função pensante é
desconsiderada (inclusive com relação aos valores, pois são dados).
No dogmático, há uma desconsideração do sujeito e de sua função. O
dogmatismo religioso diz respeito ao conhecimento religioso. Não é demais observar
que ele se opõe ao subjetivismo, ao relativismo e ao pragmatismo. O criticismo se
coloca como via intermediária: ao mesmo tempo, com o dogmatismo, há confiança
na razão humana, e com o ceticismo, há desconfiança em relação a qualquer
conhecimento determinado. Dessa forma, está em jogo uma posição questionadora,
e o conhecimento se torna possível.
No apriorismo, o conhecimento consiste em elementos a priori, isto é, o
conhecimento é dado e não depende da experiência. Nesse caso, o apriorismo é
uma forma de conhecimento sem conteúdo; portanto, é diferente do racionalismo,
que pressupõe o a priori como conteúdo. O apriorismo, sendo forma de
conhecimento, recebe os conteúdos do conhecimento pela experiência. Assim,
conceitos precisam de intuições, e intuições necessitam de conceitos.
No apriorismo, a forma de conhecimento advém do pensamento, e o
material do conhecimento advém da experiência. O pensamento, ao receber da
experiência as informações, que se apresentam em forma de caos, organiza-as,
conectando conteúdos sensíveis entre si, produzindo relações entre eles. Tudo isso
se dá pela intuição e pelo pensamento; a consciência estabelece ordem na
desordem das sensações recebidas à medida em que as organiza espacial e
temporalmente, de forma simultânea ou sucessiva. O conhecimento religioso está no
campo da intuição.

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2.2 Teologia: o irracional no racional

A tentativa de capturar o irracional e colocá-lo no nível racional faz da


teologia um conhecimento próprio. Os termos gregos “theós” e “logia” significam,
respectivamente, Deus e ciência ou saber. Portanto, etimologicamente, a teologia é
um saber de (ou sobre) Deus. Teologizar, por sua vez, é a tentativa de acessar o
sagrado, misterium tremendum, por meio da compreensão humana.
Para compreender melhor o termo “teologia”, também é preciso analisar a
questão semântica. No Ocidente, esse termo está ligado às tradições judaico-cristãs.
A experiência humana com os textos relaciona a teologia à palavra de Deus, o que
resulta na reflexão teórica sobre a própria fé. As origens do termo “teologia” estão na
cultura helênica, e não na cultura judaico-cristã. Theologeion é o lugar no qual os
deuses apareciam, um lugar especial. Já theologeo é o discurso sobre deuses e
cosmologias. “Theologia” era o termo usado para designar as ciências do divino e as
orações em louvor ou invocação aos deuses. Theologos, por sua vez, era a pessoa
que fazia discursos sobre as divindades.
Platão, Aristóteles e Agostinho já definiam o termo “teologia” como discurso
sobre a divindade. Além disso, utilizavam esse termo para categorizar os campos do
conhecimento e citar as fábulas mitológicas. Assim, referiam-se à teologia no sentido
mitológico, filosófico e civil, respectivamente.
A teologia foi definida como o conhecimento do mistério mesmo de Deus.
Orígenes assume essa acepção. Em Eusébio, há a sacralização do termo pagão. A
patrística assumiu a teologia como o discurso sobre o verdadeiro Deus trindade.
Abelardo utiliza o termo “beneficia”. A escolástica usava as expressões “doctrina
christiana”, “doctrina divina” e “sacra doctrina”. Na escolástica, o termo “teologia” era
desprezado. Mas Tomás de Aquino e Escoto associaram a teologia com a sacra
doctrina. Então, a teologia tornou-se especulativa, perdendo o sentido de sacra
doctrina. Daí em diante, o termo “teologia” passou a ser adjetivado (por exemplo,
“teologia mística”, “teologia natural” e “teologia escolástica”).
É no plano intelectual que o conceito de teologia permite a compreensão de
Deus, bem como o esclarecimento do ato de fé em Deus. A teologia trata de Deus,
mediado pela fé. No cristianismo, a teologia, partindo de Deus ou do teólogo, é
realizada na comunidade eclesial. Essa comunidade, que transmite a fé, é o espaço
próprio do fazer teológico, sem o qual a fé é excluída. Nesse sentido, a teologia leva
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em conta sua sintonia com a comunidade. O diálogo entre Deus e o homem é feito
no âmbito da comunidade, e esta é fortalecida e criticada a ponto de ser
aperfeiçoada.
A teologia é iniciativa do teólogo como obra humana, fruto de sua
inteligência, que somente é possível se iluminada pela divindade. Em suma, a
divindade se revela, e o homem procura compreender essa revelação, traduzindo-a,
na medida do possível, ao discurso humano. A teologia é a ciência da fé. Para o
conhecimento religioso, o exercício da fé é fundamental, pois fora do âmbito da fé
não há teologia. Entretanto, a teologia também é ciência, porque essa atividade
atende às exigências da racionalidade de um discurso estruturado e segue regras
bem definidas. E isso é mais do que enunciar um simples discurso religioso: é
produzir uma reflexão disciplinadora, elaborada e articulada ao responder questões
relativas à compreensão da fé. Assim, sem o caráter científico, também não se faz
teologia.
Tanto a atividade de fé como o exercício científico se fazem dentro da
comunidade eclesial e para ela. Não está em jogo nenhuma aventura individual e
arbitrária. Assim, sem eclesialidade, não se constrói teologia. Para se fazer teologia,
em seu sentido mais amplo e específico, deve-se refletir sobre Deus no âmbito da
fé, do caráter científico e da eclesialidade.

2.3 Intuição como experiência religiosa com o sagrado

Se você considerar a ideia de que conhecer é apreender um objeto, vai


perceber que apreender por meio da intuição não é simples. Seja na ciência ou na
metafísica, o objeto é analisado por vários prismas. As mais variadas operações
mentais estão envolvidas na apreensão. Desse modo, está em jogo um
conhecimento mediato e discursivo, mas também um conhecimento imediato e
intuitivo. Tudo o que é dado externa ou internamente pela experiência é apreendido.
“Um conhecimento intuitivo é um conhecimento, como o nome já diz, pelo olhar. Sua
característica consiste em que, nele, o objeto é imediatamente apreendido, como
ocorre principalmente na visão” (HESSEN, 1999, p. 70).
Portanto, há a possibilidade de apreender pela intuição, ou seja, existe a
apreensão intuitiva. Essa apreensão também pode ser material, formal. Ela está

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fundada na estrutura psíquica do ser humano com três potências (pensar, sentir e
querer). Consequentemente, urge distinguir a intuição racional (entendimento) da
emocional (sentimento) e da volitiva (vontade). O termo “visão” expressa a
apreensão nesses três casos. Quando se trata do objeto, a mesma situação ocorre:
“Todo objeto possui três aspectos ou elementos: o ser-assim (essentia), o ser-aí
(existentia) e o ter-valor” (HESSEN, 1999, p. 70), isto é, a intuição racional, a volitiva
e a emocional, respectivamente.
A intuição material de Platão, racional, foi renovada no tratado Da
contemplação de Plotino como uma intuição com elementos emocionais. Agostinho,
influenciado por Plotino, reconhece na experiência religiosa uma forma superior da
visão da divindade, e isso de modo imediato. Essa ideia mística de Deus se
desenvolve em direção à mística medieval, totalmente oposta à escolástica, de
cunho racional-discursivo, deflagrando conflitos entre o agostinismo (Boaventura) e
o aristotelismo (Tomás de Aquino).
Daí, passa-se a Descartes, com “penso, logo existo”. Ou seja, defende- -se
uma intuição material autônoma, que se encontra também em Pascoal. Nesse
contexto, a intuição é tida como fonte autônoma do conhecimento, que coloca lado a
lado o conhecimento racional e o emocional. A intuição não é considerada especial
por Espinosa, Leibniz e Kant. Porém, antes de Kant, há Hume, para quem existem
conteúdos que excedem a consciência humana e escapam ao conhecimento
racional. Hume coloca lado a lado o teórico e o prático, o racional e o irracional, e
chama de “crença” (belief) uma apreensão e um assentimento intuitivos e
emocionais.
Outros pensadores ingleses reconhecem o conhecimento intuitivo no campo
dos valores, que são apreendidos de modo imediato e emocional (sentido moral e
estético). Para Fichte, ao contrário de Kant, e também para Schelling, há uma
intuição espiritual. Schopenhauer concorda com Kant no que tange ao discurso-
racional, que tem limites na fronteira com o mundo fenomênico, porém se distancia
dele quando entende que há uma ocultação eterna da essência das coisas. É a
visão espiritual, a intuição. Schleiermacher e Fries tratam do conhecimento intuitivo
na religião. Fries distingue três fontes do conhecimento, o saber, a crença e o
pressentimento; pelo sentimento puro, apreende-se o eterno no temporal, o divino
no terreno. Para Schleiermacher, a religião é sentimento e intuição do universo.

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Os pensadores contemporâneos rejeitam o problema da intuição como
forma de conhecimento, voltando-se para um único método de conhecimento, o
racional-discursivo. Porém, há considerações fundamentais sobre a intuição em
Bergson, em Dilthey e na fenomenologia. Para Bergson, só a intuição é capaz de
penetrar na essência das coisas; o intelecto, não. Para Dilthey, a intuição é algo
totalmente irracional. A realidade é aberta para um contato emocional e volitivo.
Husserl reconhece uma intuição racional, já Scheler reconhece uma intuição
emocional.

Segundo Scheler, também Deus é intuitivamente conhecido. Pela via


metafísica racional, chega a um fundamento absoluto do mundo; jamais,
porém, a um Deus no sentido da religião. A nota característica da
personalidade tem um valor constitutivo para a ideia religiosa de Deus. Só
posso conhecer uma pessoa na medida em que ela se manifesta para mim.
A essa automanifestação de Deus corresponde, no lado do sujeito humano,
a experiência religiosa. E assim, segundo Scheler, o Deus da religião só se
eleva à condição de algo dado no contexto de uma experiência religiosa, de
uma vivência e intuição imediatas (HESSEN, 1999, p. 77).

A compreensão do ser humano não deve ser exclusivamente racional, mas


também emocional e volitiva. Dilthey coloca o conhecimento irracional-intuitivo ao
lado do racional-discursivo. Embora alguns advoguem que as intuições devam
passar pelo crivo da razão, é preciso lembrar que existe o caráter autônomo da
intuição, sendo esta uma entidade do conhecimento, uma vez que os seres
humanos são seres que sentem e desejam. A intuição é um ser-aí prático.
As forças irracionais da experiência e da intuição interna, não só da
sensação e da razão, participaram ativamente da história da civilização em formas
religiosas, filosóficas e artísticas. Inclusive, contrariando a noção equivocada de que
só é possível conhecer o comportamento religioso pela via racional e discursiva, a
vivência e a intuição desempenham papel relevante no campo religioso, como
demonstram a história e a psicologia da religião. Na vida religiosa intensa, há
sempre o contato da consciência com Deus. O divino transcendental penetra o
imanente e é experimentado imediatamente, ou seja, vivenciado. A vida religiosa é a
tomada consciente e imediata do inexplicável. Existem inúmeras formas de atestar a
certeza peculiar e intuitiva de perceber a união eterna do ser humano com o infinito.
O critério de verdade inicialmente é evidenciado pela ausência de
contradição, porém tal ausência não é universal, servindo apenas para o campo das
ciências formais e ideais. Para os objetos reais, esse critério perde seu sentido, o
16
que leva à procura de outros critérios de verdade. A presença imediata do objeto é
um critério de verdade, desse modo os juízos são verdadeiros quando da
imediatidade do objeto. Essa é uma certeza pré-lógica, anterior à articulação do
pensamento. Há também a evidência do pensamento, tanto no sentido irracional
quanto no racional. No sentido irracional, a evidência é o sentimento, portanto de
caráter emocional. Ela é subjetiva, de conhecimento intuitivo, não capturável de
modo lógico, mas pessoalmente vivenciada.
A religião se encontra no domínio dos valores autônomos, não se
fundamentando em nenhum outro domínio. Ela é firmada em si mesma, não se
validando nem pela filosofia, nem pela metafísica. A religião se firma em si mesma
na imediatez do pensamento religioso. Hessen (1999) apresenta as bases
epistemológicas da autonomia da religião quando destaca o tipo de conhecimento
caracterizado como imediato e intuitivo (ao tratar do problema da intuição, que por
sua vez reconhece o conhecimento religioso como conhecimento especial).
Surgiram resistências a esse pensamento, mas Scheler pontuou o seguinte:

Será que a religião, que de todas as disposições e potências do espírito


humano é, subjetivamente, a mais profunda, pode estar assentada sobre
uma base mais sólida do que sobre si mesma, sobre sua própria essência?
[...] Que estranha é, portanto, essa desconfiança no poder e na evidência
própria da consciência religiosa, desconfiança que se revela no fato de se
querer “assentar” suas primeiras e mais importantes afirmações sobre algo
diferente do próprio conteúdo essencial dos objetos dessa consciência
(SCHELER apud HESSEN, 1999, p. 110).

A confusão entre objetividade e validade universal está na base dessa


desconfiança, conduzindo à invalidação do conhecimento e da certeza religiosa
especial (logo, sem pretensão à objetividade), reduzindo-a ao subjetivismo.
Mas um juízo pode ser objetivo sem ser universalmente válido. A resistência
tem base em fundamentos racionais; o argumento dos intelectualistas é de que a
filosofia fornece verdades metafísicas para a religião. Entretanto, a religião definida
por eles é aquela que se adequa aos sistemas filosóficos. Assim, a pedra de
definição da religião não deve ser abalizada na filosofia, pois qualquer abalo nos
fundamentos tradicionais filosóficos criaria problemas para a religião.

17
2.4 Considerações sobre o sagrado e a estruturação religiosa

A experiência religiosa, tema tratado por Rudolf Otto em sua obra Das
Heilige (1917), é o escopo da análise de Mircea Eliade que embasa esta seção.
Eliade (1992) discorre sobre a presença e a ausência da noção de transcendência
no pensamento religioso e no pensamento científico. Ele esclarece que o sagrado
“[...] não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma
ideia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um
poder terrível, manifestado na ‘cólera’ divina” (ELIADE, 1992, p. 12).
O mysterium tremendum gera sentimentos de pavor e temor diante do
mysterium fascinans. Essas experiências são consideradas numinosas, “[...] porque
elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino” (ELIADE, 1992,
p. 12). Diante do totalmente outro, o ser humano vê sua limitação, que atinge a
nulidade, ante a grandiosidade da experiência da relação com o sagrado. Eliade
(1992, p. 13) afirma que a “[...] primeira definição que se pode dar ao sagrado é que
ele se opõe ao profano”. Dessa forma, a ideia de sagrado será sempre apresentada
em oposição à ideia de profano. Para ilustrar a ideia de que o sagrado se mostra, se
manifesta, Eliade (1992, p. 13) propõe o termo “hierofania”, que indica “[...] que algo
de sagrado se nos revela”. Os múltiplos fenômenos religiosos, portanto, revelam as
múltiplas hierofanias que ocorreram e ocorrem na história humana. Essas
hierofanias, segundo Eliade (1992), podem ser interpretadas de modo diferente
pelos seres humanos primitivos e pelos modernos, bem como por primitivos e
modernos de uma mesma época que vivem em regiões distintas. Dessa forma, “A
partir da mais elementar hierofania, por exemplo, a manifestação do sagrado num
objeto qualquer, urna pedra ou uma árvore e até a hierofania suprema, que é, para
um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
continuidade” (ELIADE, 1992, p. 13).
Quando os primitivos percebem a manifestação do sagrado em pedras, por
exemplo, não dirigem uma adoração/veneração a elas. Nesse sentido, os objetos
“[...] são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore,
mas o sagrado, o ganz andere” (ELIADE, 1992, p. 13). Eliade esclarece que a
manifestação do sagrado em um objeto sacraliza esse objeto, de forma que ele se
torna um meio de contato com o sagrado (não o próprio sagrado), sem, contudo,
mudar sua substância. Assim, “[...] para aqueles que têm uma experiência religiosa,
18
toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica” (ELIADE,
1992, p. 13).
Nesse sentido, diante do desejo de estar no cosmos em oposição ao caos,
os primitivos buscavam viver o mais próximo possível do sagrado e/ou dos objetos
sagrados, pois compreendiam o sagrado como a própria realidade. Assim, sagrado e
profano podem ser identificados como real e irreal para o primitivo, respectivamente.
A busca, portanto, do primitivo está em “[...] participar da realidade, saturar-se de
poder” (ELIADE, 1992, p. 14). Para ele, a realidade é transcendental.
Ao iniciar sua obra Magia, Ciência e Religião, Bronislaw Malinowski (1984, p.
19) defende que “[...] não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião
nem magia”. Henri Bergson (1978, p. 85), por sua vez, afirma que “[...] nunca existiu
sociedade sem religião”. Nas sociedades primitivas, existiam dois componentes
inseparáveis: “[...] dois domínios perfeitamente distintos, o Sagrado e o Profano; por
outras palavras, o domínio da Magia e da Religião, e o da Ciência” (MALINOWSKI,
1984, p. 19). É no domínio do sagrado que se encontra o fenômeno religioso. “De
um lado, encontram-se os atos e as práticas tradicionais, que os nativos consideram
sagrados [...] associados a crenças em formas sobrenaturais” (MALINOWSKI, 1984,
p. 19). De outro lado, está a ciência rudimentar ou o profano.
No domínio do sagrado, portanto, encontra-se o fenômeno religioso. Marconi
e Presotto (2001, p. 151) ressaltam que “[...] são dois os elementos constitutivos da
religião: crença e ritual [...] e enfatizam que somente a crença não basta para formar
uma religião, deve estar associada à prática”. O entendimento de crença ou fé “[...]
consiste em um sentimento de respeito, submissão, reverência, confiança e até de
medo em relação ao sobrenatural, ao desconhecido” (MARCONI; PRESOTTO,
2001, p. 151). Sobre o ritual e a prática, tratam-se “[...] da manifestação dos
sentimentos por um ou vários indivíduos, em qualquer meio, através da ação [...] de
caráter religioso ou mágico” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 151).
O que move as manifestações religiosas é o sobrenatural. Para Marconi e
Presotto (2001, p. 152), ele é o princípio ativo que mobiliza os seres humanos como
reação a “[...] tudo aquilo que escapa aos sentidos do homem, que foge à
compreensão humana, à observação e ao entendimento”. O sobrenatural está além
da dimensão humana e é “[...] considerado o cerne da religião, a base dos sistemas
religiosos” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 152). O homem pode imaginar seres,

19
entidades, forças e almas dos mortos na forma de anjos, santos, demônios, fadas,
espíritos, almas, mana ou espectros (MARCONI; PRESOTTO, 2001). Os seres
residem em lugares diferentes; as forças, no universo; e as almas dos mortos ou
espectros continuam membros da sociedade.
Em todas as expressões religiosas, em todas as épocas e lugares, há cultos,
com variações estruturais, organizacionais e de realização. Os objetos sagrados que
compõem o culto são “[...] adorados, venerados ou utilizados nos rituais”; é o caso
de “[...] imagens, objetos rituais, máscaras etc.” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p.
153). As representações dos deuses egípcios ou dos orixás do candomblé são
exemplos de imagens usadas no culto. Já os atabaques e colares das religiões
africanas são exemplos de objetos rituais. As máscaras “[...] simbolizam autoridade,
prestígio ou têm efeitos medicinais”; elas são “[...] usadas como disfarce nos mais
diversos rituais” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 153); é o caso da diablada no
Peru e das máscaras tradicionais de algumas religiões africanas.
No geral, as formas do ritual variam conforme a organização e o tipo de
culto. De acordo com Marconi e Presotto (2001, p. 154), os rituais “[...] consistem em
atos religiosos como rezar, cantar, dançar aos deuses, ofertar coisas, fazer
sacrifícios”. Os autores realçam três formas principais de ritual: as orações, as
oferendas e as manifestações. Há rituais com cânticos e danças, como rituais para
chuva, para plantio, para colheita, contra epidemias, etc. Nos rituais, há também
pantomimas, rogações e atos de magia. Outro tipo de rito comum em muitas
manifestações do fenômeno religioso são os ritos de passagem (ou transição).
Esses ritos aparecem “[...] quando ocorrem importantes modificações no status
social” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 155). Esses ritos são realizados por
ocasião do nascimento, da puberdade, do matrimônio e da morte.
Os locais de realização das celebrações cúlticas, ritualísticas e cerimoniais
são chamados de “santuários”. Consideradas sagradas, essas construções são os
lugares onde se queimam incensos, se acendem velas e se realizam orações. Os
santuários “[...] podem estar vazios, abrigar objetos de culto ou se constituir na
morada fixa ou temporária de deuses e espíritos. Templos, casas, cidades,
sepulturas, estábulos, árvores, objetos, pedras, animais e até cacos de cerâmica
podem ser considerados santuários” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 158).

20
Além dos santuários, existem “[...] locais e acidentes geográficos que
constituem a morada definitiva ou temporária de espíritos ou deuses” (MARCONI;
PRESOTTO, 2001, p. 158). São os lugares sagrados. “Montes, picos de montanhas,
rochas, bosques, árvores, rios, lagos podem ser considerados sagrados, e, às
vezes, até o caminho por onde passou um rei divino (Tibete) ” (MARCONI;
PRESOTTO, 2001, p. 158).

3 A UNIVERSALIDADE DO FENÔMENO RELIGIOSO

Logo no início da obra Magia, ciência e religião, Bronislaw Kasper


Malinowski afirma que “[...] não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem
religião nem magia” (1984, p. 19). Ao seu encontro, segundo Jorge (1998, p. 11), o
filósofo Henri Bergson afirmava que “[...] nunca existiu sociedade sem religião”. Seja
nas sociedades primitivas, seja na contemporaneidade, as manifestações religiosas
são permanentes. “No decorrer dos séculos, desde as épocas líticas até a presente
era da informática, o homem pôde conhecer e vivenciar, há um que, por sua
universalidade e permanência histórica, se sobrepõe: fenômeno religioso” (JORGE,
1998, p. 7).
O fenômeno religioso se mostra, “[...] marca sua presença, de modo
universal e constante” (JORGE, 1998, p. 11). Há estudos e pesquisas sobre o
fenômeno religioso em Frazer, Durkheim, Marrett, Hubert, Mauss, Spencer, Lowie,
Malinowski, Radcliffe-Brown, Lévi-Strauss, Firth, Evans-Pritchard, para citar apenas
alguns. Em suma, “[...] os antropólogos, em geral, concordam que a religião é
formada por um sistema de crenças e práticas e que todas as sociedades possuem
a sua ‘visão do universo’” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 151).
Para compreender as possíveis causas do fenômeno religioso, Malinowski
(1984) argumenta que, nas sociedades primitivas, existiam dois componentes
inseparáveis, mas perfeitamente distintos, como possíveis explicações que
conduzem ao fenômeno religioso: o sagrado e o profano, ou o domínio da magia e
da religião e o da ciência. Há uma associação intrínseca entre o fenômeno social
que mobilizava as sociedades primitivas para o fenômeno religioso. Segundo,
Malinowski (1984, p. 19, acréscimo nosso), é no domínio do sagrado que se
encontra o fenômeno religioso: “de um lado, encontram-se os atos e as práticas

21
tradicionais, que os nativos consideram sagrados... associados a crenças em formas
sobrenaturais”; de outro lado, está a ciência rudimentar, ou o profano.
De fato, o que move as manifestações religiosas é o sobrenatural. Ele é o
princípio ativo que mobiliza os seres humanos como reação a “[...] tudo aquilo que
escapa aos sentidos do homem, que foge à compreensão humana, a observação e
ao entendimento” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 152). Está além da dimensão
humana e é “[...] considerado o cerne da religião, a base dos sistemas religiosos”
(MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 152). Eles podem ser imaginados pelo ser
humano como seres, entidades, forças e alma dos mortos na forma de anjos,
santos, demônios, fadas, espíritos, almas, mana ou espectros. Os seres residem em
lugares diferentes; as forças, no universo, e as almas dos mortos ou espectros
continuam membros da sociedade.

Fonte: Rebeca Ângelis, 2018

Em todas as expressões religiosas, encontramos os cultos com variações


estruturais, organizacionais e de realização em todas as épocas e os lugares. De
acordo com Marconi e Presotto (2001, p. 153), os objetos sagrados que compõem o
culto são “[...] adorados, venerados ou utilizados nos rituais... compreende imagens,
objetos rituais, máscaras etc.”. A representação dos deuses egípcios ou dos orixás
do candomblé são exemplos de imagens usados no culto. Já os atabaques e colares
nas religiões africanas são exemplos de objetos rituais. As máscaras “[...]
simbolizam autoridade, prestígio ou tem efeitos medicinais” e são “usadas como
disfarce nos mais diversos rituais” como a Diablada no Peru e as máscaras
tradicionais em algumas religiões africanas (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 153).

22
No geral, as formas de ritual possuem variações conforme a organização e o
tipo de culto, “[...] consistem em atos religiosos como rezar, cantar, dançar aos
deuses, ofertar coisas, fazer sacrifícios” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 153). Os
autores realçam três formas principais de ritual: as orações, as oferendas e as
manifestações. Há rituais com cânticos e danças nos rituais para chover, para
plantio, colheita, contra epidemias, etc. Nos rituais, também há, pantomimas,
rogações e atos de magia. Outro tipo de rito comum entre muitas manifestações do
fenômeno religioso são os ritos de passagem (ou transição). Esses ritos aparecem
“[...] quando ocorrem importantes modificações no status social” (MARCONI;
PRESOTTO, 2001, p. 153), como por ocasião do nascimento, da puberdade, do
matrimônio e da morte.
Nas religiões, nenhum ritual, culto, rito e cerimônia pode ser realizado sem
levar em conta os oficiantes, pessoas preparadas e consagradas, muitas vezes,
desde tenra idade para ocupar esses cargos. Podem ser sacerdotes, como os
sacerdotes brâmanes, na Índia; reis divinos, como o Dalai-Lama, que é rei-sacerdote
do Tibete; chefes ou ministros religiosos, como ou pajé e o pai de santo no
Candomblé; especialistas, como os xamãs entre os Trobriandeses; e Oráculos,
como Oráculo de Delphos.
Os locais de realização das celebrações cúlticas, ritualísticas e cerimonias
são chamados de santuário. Consideradas sagradas, essas construções é onde se
queimam incensos, acendem velas e são realizadas orações. De acordo com
Marconi, Presotto (2001, p. 158, acréscimo nosso):

Podem estar vazios, abrigar objetos de culto ou se constituir na morada fixa


ou temporária de deuses e espíritos. Templos, casas, cidades, sepulturas,
estábulos, árvores, objetos, pedras, animais e até cacos de cerâmica podem
ser considerados santuários. [...] [Além do santuário, existem] locais e
acidentes geográficos que constituem a morada definitiva ou temporária de
espíritos ou deuses. [...] São os lugares sagrados Montes, picos de
montanhas, rochas, bosques, árvores, rios, lagos podem ser considerados
sagrados, e, às vezes, até o caminho por onde passou um rei divino
(Tibete).

Entre os dois domínios que habitam as sociedades primitivas, o sagrado e o


profano, Marconi e Presotto (2001, p. 164, grifos e acréscimos nossos) alertam que
não pode haver confusão entre religião e magia, uma vez que “[...] a religião implica
a crença em seres espirituais, deuses, o sobrenatural, sendo a oração a técnica
usada pelos adeptos para relacionar-se com eles [...] enquanto a magia não recorre
23
aos seres espirituais, mas vale-se de técnicas para controlar os poderes
sobrenaturais”. Outra diferenciação é o caráter das atitudes, enquanto “[...] a atitude
religiosa é de humildade, submissão, reverência e adoração [...] a atitude do mestre
da magia é de arrogância e autoconfiança, de compulsão, ou seja, coação sobre as
forças da natureza (animismo, animatismo) ” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 164,
acréscimo nosso).
Para Marconi e Presotto (2001, p. 162) “[...] a magia, da mesma forma que a
religião, deriva da crença na existência de poderes sobrenaturais, só que faz apelos
aos espíritos”. As ideias de métodos e influência, em Kessing, de controle do
sobrenatural, em Hoebel e Frost, e de conjunto, em Mauss, caracterizam a magia
como “[...] tipo de técnica para controlar a natureza, a fim de obter coisas ou
precaver-se contra forças misteriosas [...] praticada por alguns indivíduos, com
objetivo específico” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 162). As manipulações do
feiticeiro, ou mago, sobre os poderes sobrenaturais são feitas por meio de “[...]
ações, objetos mágicos e fórmulas verbais apropriadas (encantamentos), os quais
têm poderes intrínsecos ou estes lhes são atribuídos pelo mágico” (MARCONI;
PRESOTTO, 2001, p. 162).
Outra característica importante da magia é a possibilidade de “[...] ser
empregada com a finalidade de proteger o indivíduo ou grupo, em determinadas
circunstâncias: na guerra, na caça, em viagem, nas plantações, nos negócios, no
amor etc.” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 163). Com relação às designações de
magia branca e negra associando-as aos adjetivos benéficas e maléficas,
respectivamente, para além dos preconceitos associadas à cor, é importante
observar que “[...] nem sempre há muita diferença entre elas” (MARCONI;
PRESOTTO, 2001, p. 163), podendo ser simultaneamente maléficas e benéficas.
O reconhecimento da universalidade do fenômeno religioso no tempo e no
espaço denota o quão importante são as formas de olhar para a diversidades das
múltiplas manifestações religiosas. Todas elas têm mais em comum entre si do que
se supunha. Portanto, distanciar-se de concepções com pretensões à
hierarquização dos fenômenos religiosos contribui para a superação da intolerância
religiosa e para o desenvolvimento de uma cultura de diálogo inter-religioso,
principalmente em uma sociedade com a presença do pluralismo de religiões.

24
4 INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA DO FENÔMENO RELIGIOSO

Agora, vamos nos aprofundar nas teorias que abordam o fenômeno religioso
a partir de um fio condutor: as causas de suas origens. As teorias psicológicas e
sociológicas foram largamente utilizadas para explicar o surgimento da vida
religiosa. Porém, há várias outras teorias formuladas pelos antropólogos e cientistas
de outras áreas do conhecimento que também se debruçaram no estudo do
fenômeno religioso.
Há, segundo Ribeiro (2019), cinco campos de interesse dos estudos da
religião. As teorias são de orientações humanistas, psicológicas, sociológicas,
político-econômicas e antropológicas. Elas também podem ser classificadas como
teorias reducionistas e teorias não reducionistas. As teorias reducionistas são
divididas em (RIBEIRO, 2019):

 A religião como projeção subjetiva, em Feuerbach;


 A religião como alienação, em Karl Marx;
 A religião como neurose, em Freud;
 A religião como sistema de controle social, em Voltaire;
 A religião como projeção social, em Durkheim;
 A religião como sistema sociocultural, em Weber (sistema cultural) e
em Geertz (funções social e psicológica);
 A religião como violência;
 A religião como texto.

Por sua vez, as teorias não reducionistas da religião são classificadas, por
Mircea Eliade, em duas categorias: a primeira como “a obsessão das origens”,
ligada às ideias de origem e de constituição da religião; e, a segunda, como
“eliadiana” (RIBEIRO, 2019).
As teorias que investigam o fenômeno religioso a partir de suas origens são
as teorias psicológicas e teorias sociológicas. As teorias psicológicas tentam “[...]
explicar a religião tomando por base os sentimentos, uma vez que ela impregna o
pensamento e as emoções das pessoas” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 160).
Entre as teorias psicológicas, temos:
25
 Mito natural;
 Animismo (alma);
 Animatismo;
 Manismo;
 Magia;
 Totemismo.

Diferentes e divergentes das teorias psicológicas, as teorias sociológicas da


religião entendem a religião como fenômeno social, coletivo. Dukheim, Fustel de
Coulange, R. Smith, Marcel Mauss e Radcliffe-Brown são seus principais teóricos. A
teoria sobre o sagrado e profano, elaboradas por R. Smith e Durkheim, é a principal
teoria sociológica da religião.

4.1 Animismo

Quando fundamenta que o começo da vida religiosa tem uma estrutura


fundada no animismo, Malinowski (1984, p. 20) cita que foi Edward Tylor quem
estabeleceu “[...] as bases do estudo antropológico da religião”. Nessa crença, os
homens primitivos tiveram de se deter em temas importantes, como a separação
entre corpo e alma e a imortalidade da alma e seu poder sobre os seres vivos após
a morte. Além disso, associavam a existência da alma aos seres e objetos
animados.
Essa teoria foi criticada por estudos etnográficos que demonstraram que “[...]
o selvagem estava mais interessado no que pescava e no que cultivava [...] do que
matutar em sonhos e visões” (MALINOWSKI, 1984, p. 20). Foi de Sir James Frazer
(1982) a formulação de uma concepção mais ampla no estudo antropológico do
começo da vida religiosa. Ele formulou três problemas principais:

 A magia e sua relação com a religião e a ciência;


 O totemismo e o aspecto sociológico da fé primitiva;
 Os cultos de fertilidade e vegetação

26
4.2 Animatismo

Em O ramo de ouro, Frazer (1982) assevera que o homem primitivo,


percebendo a impossibilidade do uso da mágica no controle direto sobre os
fenômenos da natureza, passou a pedir ajuda para seres sobrenaturais,
diferenciando magia (controle direto da natureza) de religião (controle indireto da
natureza), por meio dos seres superiores (MALINOWSKI, 1984).
A diferenciação entre magia e ciência foi a teoria na qual se assentaram os
estudos antropológicos modernos da religião, cujos expoentes foram Preuss, Marret
e Hubert e Mauss, que, na formulação de suas teorias, ora refutavam Frazer, ora
concordavam com suas proposituras na aproximação que fez entre magia e ciência.
Ao demonstrar as divergências conceituais entre magia e ciência, os pensadores
mencionados demonstraram que a ciência:

[...] nasce da experiência [...] é norteada pela razão e corrigida pela


observação [e se] assenta na de forças naturais [...] [ao passo que a magia]
é construída através da tradição [...] é oculta, ensinada através de
misteriosas iniciações [...] transmitidas hereditariamente [...] desponta na
ideia de um determinado poder místico e impessoal, em que a maior parte
dos povos crê (MALINOWSKI, 1984, p. 21–22, acréscimo nosso).

Malinowski (1984, p. 22) afirma que tanto entre os aungquiltha quanto entre
os wakan, orenda manitu, esse poder é denominado mana. Essa ideia é tratada por
eles como “[...] quase universal, detectável onde quer que a magia prospere [...] uma
crença numa força sobrenatural e impessoal [...] originam toda a série de
acontecimentos realmente importantes no domínio do sagrado”. Assim, a essência
da religião pré-anímica foi o mana. A explicação do conceito de mana se dá a partir
do enfoque das teorias sociológicas, em que Durkheim (1965) associa mana com o
totemismo.

4.3 Totemismo

A relação entre pessoas aparentadas e que fazem parte de um mesmo


grupo com objetos naturais ou artificiais foi uma teoria construída por Frazer para
demonstrar as práticas realizadas por determinados grupos e seus respectivos e
específicos sistemas de sentidos religiosos. O totemismo associa o interesse pela
27
natureza e o desejo de controlá-la, de maneira menos intensa, o desejo de controlar
objetos inanimados e aqueles fabricados pelos homens. Eles queriam exercer
controle, especificamente, segundo Malinowski (1984, p. 22–23, acréscimo nosso),
sobre:

[...] espécies de animais e plantas utilizadas como principal alimento ou de


qualquer modo comestíveis ou como animais ornamentais, é atribuída uma
forma especial de “reverência totémica”. [...] socialmente, o totemismo
consiste na subdivisão da tribo em unidades menores, que em antropologia
se designam por clãs, tribos, sibs ou fratrias.

Dessa forma, não se trata do filosofar sobre sonhos e alucinações, mas, sim,
do “[...] misto de ansiedade de caráter utilitário em relação aos objetos mais
necessários” (MALINOWSKI, 1984, p. 23) à sua sobrevivência enquanto grupo.
Nessa atitude totêmica, compreende-se que “[...] a religião primitiva estaria mais
próxima da realidade e dos interesses imediatos da vida prática dos selvagens do
que parecia na faceta ‘anímica’” (MALINOWSKI, 1984, p. 23). Assim, os primitivos,
ao se associarem em clãs, revelaram a notabilidade do “[...] aspecto sociológico em
todas as formas primitivas de culto [...] o selvagem encontra-se na dependência do
grupo [...] tanto no que se refere à cooperação prática como à solidariedade mental”
(MALINOWSKI, 1984, p. 23). Com isso, Malinowski (1984) demonstra a relação
próxima entre cultos e rituais primitivos com os anseios práticos da manutenção da
sobrevivência, bem como com a satisfação de necessidades mentais.

4.4 Religioso e social

Essa linha de pensamento era a mesma que Robertson Smith, pioneiro da


antropologia da religião, já desenvolvia na elaboração de suas teorias. Malinowski
(1984, p. 23) informa que o princípio que R. Smith seguia era o de “[...] que a religião
primitiva ‘era essencialmente uma questão da comunidade e não dos indivíduos’ e
se tornou um Leitmotiv da investigação moderna”. Durkheim (1965) constata que o
religioso é convergente (igual) ao social. Da mesma forma, entende que o princípio
totêmico é convergente com o mana e as divindades do clã. Esse pensamento teve
influência nos teóricos Jane Harrison e Cornford.

28
4.5 Cultos de vegetação e fertilidade

Nos estudos da religião, ainda nos falta abordar os cultos de vegetação e


fertilidade na contribuição de Frazer. Conforme Malinowski (1984, p. 24), a partir do
ritual do bosque de Nemi na obra O ramo de ouro, Frazer demonstra a variedade de
cultos mágicos e religiosos idealizado pelos homens com a finalidade de:

[...] controlar o trabalho de fertilização dos céus e da terra; do sol e da


chuva, deixando-nos a impressão de que a religião primitiva pulula de forças
da vida selvagem, com a sua beleza e crueza, com sua exuberância e um
vigor tão violentos que de vez em quando originam atos suicidas de
autoimolação.

4.6 Experiências da morte nas sociedades primitivas

A morte tem uma importância especial entre os primitivos, uma vez que é
“[...] um passo para a ressurreição” (MALINOWSKI, 1984, p. 24). Essa relação
morte-ressurreição, decadência-renascimento, é denominada perspectiva vitalista da
religião. Crawley, Van Gennep e Jane Harrison evidenciaram que “[...] a fé e o culto
emergem das crises da existência humana” (MALINOWSKI, 1984, p. 24). A vida, em
sua especificidade, que compreende concepção, nascimento, adolescência,
casamento e morte, tem reverberação na religião, uma vez que a religião se ocupa
da sacralização desses aspectos da vida. A aflição da escassez involuntária e as
fortes experiências afetivas movimentam-se em direção ao culto e à crença. É o
desejo irrealizado que está na origem da arte e da religião, segundo Harrison (apud
MALINOWSKI, 1984).

4.7 Conhecimento e magia primitivos

Ao tratar do problema do conhecimento primitivo, conforme indica


Malinowski (1984), há inúmeros autores, com destaque para as inferências de Lévy-
Bruhl, que afirmaram que os nativos primitivos estavam integralmente mergulhados
em um estado de espírito místico, sem capacidade de abstração nem de raciocínio.
Discordando radicalmente deles, aparece J. L. Myres, que apresenta o aspecto
racional aplicado pelo primitivo ao seu cotidiano como independente do sagrado.
Exemplo disso seriam as “[...] tribos melanésias e papua-melanésias da Nova Guiné

29
Oriental e arquipélagos circundantes” (MALINOWSKI, 1984, p. 29), que demonstram
que há atividades econômicas e de produção. Os melanésios não são dominados
pela magia, mas detêm e utilizam conhecimento empírico e racional. Eles
conseguem produzir colheitas suficientes e, ainda, armazenar reservas. Junto a isso,
temos a magia: “[...] uma série de ritos executados anualmente nas hortas, em
estreita observância da sequência e da ordem” (MALINOWSKI, 1984, p. 29). A
liderança do trabalho hortícola está nas mãos do feiticeiro.
A magia é indispensável para o êxito nas atividades agrícolas. O nativo sabe
da importância do conhecimento racional e previsível, mas também conhece os
agentes e as forças que são imprevisíveis e fora de sua governabilidade, causas
externas incontroláveis pela ação humana. Para controlá-los, recorre à magia. Os
primitivos se viam, ao mesmo tempo, em duas situações inusitadas e
cartesianamente delineadas: a possibilidade do controle (pela via racional) e a
incapacidade sobre o incontrolável (apelo à magia). Daí encontramos as conotações
sociais do trabalho e as conotações sociais do ritual, ambas na função do feiticeiro.
Tanto os sujeitos pré-lógicos quanto os lógicos não se despojam de seu
conhecimento ou de sua razão para se apegar à segurança e ao conforto da magia.
Porém, a magia está presente, mesmo que haja conhecimento e domínio das
técnicas do trabalho, nos locais ou nas situações que representem perigos e
incertezas, justamente para garantir segurança e bons resultados. Tudo a “[...] fim de
dominarem os elementos do acaso e da sorte” (MALINOWSKI, 1984, p. 32), cujas
fronteiras da dualidade de causas (naturais e sobrenaturais) é tênue.

4.8 Saúde e patologias

A saúde é o estado natural para os melanésios, conforme Malinowski (1984),


e a morte natural faz parte da vida; porém, entendem que as mortes não naturais se
devem à feitiçaria, e o destino das almas dos falecidos percorrem direções
diferentes. Para eles, as doenças podem ser tratadas, mas a morte é considerada
um fenômeno incontrolável, então sujeito à destruição do corpo, como a morte por
velhice, por exemplo.
Estamos, de novo, na esfera do controlável e do incontrolável como origem
do fenômeno religioso. Além da causa natural do padecimento menor e maior, “[...]

30
há o domínio da feitiçaria na qual é-lhe atribuída a maior parte dos casos de doença
e morte” (MALINOWSKI, 1984, p. 33). Porém, havia um filtro segundo o qual os
primitivos designavam o que era feitiçaria ou causa natural (a perspectiva pessoal)
como tendência afetiva daquele que é diretamente afetado pela saúde e morte.
De qualquer forma, dos “selvagens” primitivos ao mais racional dos homens
civilizados, “[...] a saúde, a doença, as ameaças de morte pairam numa neblina
emocional incerta” (MALINOWSKI, 1984, p. 34), e todos se beneficiam ora do
conhecimento, ora da magia. Agarram-se, porém, a última sempre que têm de
reconhecer a impotência de seu conhecimento e de sua técnica racional,
caracterizando uma validade universal. A lógica dos primitivos pode ser assentada
nas dualidades substância e atributo, causa e efeito, fundamental e secundário.
“Tudo isso levaria exatamente à mesma conclusão: o homem primitivo é capaz de
observar e pensar, e possui, integrados na sua linguagem, sistemas de
conhecimento metódicos, só que rudimentares” (MALINOWSKI, 1984, p. 35).
Malinowski (1984) conclui que existem, nas comunidades primitivas, os princípios da
ciência, mesmo que rudimentares.

4.9 Fenômeno religioso no domínio do sagrado

Ao tratar do domínio do sagrado, Malinowski (1984) afirma que ele não é


exclusivamente “veneração do espírito” nem “culto dos antepassados”, nem “culto da
natureza”. Embora possua elementos do animismo, animatismo, totemismo e
fetichismo, de acordo com Malinowski (1984, p. 39), não é exclusivamente nenhum
desses ismos: “A religião não se prende a qualquer objeto ou classe de objetos,
embora ocasionalmente possa tocar ou venerar todos”. Malinowski (1984), ao tratar
dos atos criadores da religião, demonstra que ela está relacionada com fases
fisiológicas da vida humana. Mas, não só isso, inclui também “[...] suas crises, como
a concepção, a gravidez, o casamento e a morte, que constituem o núcleo de
inúmeros ritos e crenças” (MALINOWSKI, 1984, p. 40, acréscimo nosso).
O formalismo e o ritualismo são estabelecidos no início da vida a partir de
complicados entrelaçamentos entre crenças e ritos. Na concepção, há ritos cuja
finalidade é em favor da vida no parto, evitando a morte. Já na cerimônia sobre o
nascimento, o ato da apresentação não tem finalidade específica, apenas o ato em

31
si, o fim em si, então a comemoração, apenas, uma espécie de ação de graças. O
rito na concepção e a celebração no nascimento permite-nos distinguir magia de
religião: “[...] enquanto no ato mágico a ideia e o objetivo subjacentes são sempre
claros, evidentes e definidos, na cerimônia religiosa não existe qualquer objetivo
vocacionado para um determinado acontecimento subjacente” (MALINOWSKI, 1984,
p. 41).

4.10 Cerimônias de iniciação

As cerimônias de iniciação permitem compreender a lógica na religião


primitiva. Após passar por um período logo de (1) reclusão para a preparação, inicia-
se (2) a iniciação propriamente dita, com várias provas; em seguida, passa pelo
processo do (3) ato de mutilação do corpo. Segundo Malinowski (1984, p. 41), “A
prova está normalmente associada à ideia de morte e renascimento do iniciado, que
por vezes tem de desempenhar uma representação mimética”. No segundo
momento, há “[...] a instrução do jovem no mito e tradição sagrados” (MALINOWSKI,
1984, p. 41). Conforme o autor, para além da prova e do ensino da tradição, esse é
um rito de passagem para o estado adulto, no qual:

[...] o jovem toma conhecimento das tradições sagradas sob condições de


preparação e provação extraordinariamente impressionantes, e, à mercê do
poder sancionatório de seres sobrenaturais a luz da revelação tribal projeta-
se sobre ele, afastando as sombras do medo, da privação e da dor física
(MALINOWSKI, 1984, p. 42

A naturalização desses procedimentos na tradição fortalece a coesão do


grupo, afastando o risco de desagregação e desaparecimento existencial. Para
Malinowski (1984, p. 43), “[...] a fidelização à tradição é a mais importante, e uma
sociedade que torna sagrada a sua tradição conseguiu uma incalculável
superioridade de poder e continuidade”. A sacralização das crenças e práticas e sua
consequente rotulação sob a insígnia do sobrenatural se tornam “[...] um ‘valor de
sobrevivência’ para o tipo de civilização em que se tenham desenvolvido [...] serve
para imprimir nas mentes de cada geração esse poder e esse valor” (MALINOWSKI,
1984, p. 43), mantendo a tradição que permite a coesão social da tribo.

32
4.11 Propagação e nutrição

Malinowski (1984) elenca, ainda, a propagação e a nutrição entre as


preocupações vitais do homem. O ato sexual é considerado uma das principais
fontes da religião, pois a continuidade desse ato, uma vez sacralizado, proporciona
continuidade e preservação do grupo. Dessa forma, as celebrações cúlticas sexuais
“[...] exprimem uma atitude de reverência para com as forças da geração e da
fertilidade no homem e na natureza” (MALINOWSKI, 1984, p. 44–45). Além disso,
permite o ideal de castidade e a santificação da ascese.
A nutrição, por sua vez é um “[...] ato rodeado de etiqueta, de prescrições e
proibições especiais e de uma tensão emocional geral” (MALINOWSKI, 1984, p. 45).
O aspecto religioso em torno dos alimentos, que ultrapassa a aquisição, a
multiplicação e o armazenamento deles, é repleto de cerimônias. As comunidades
expressam alegria na Providência, e, pela religião, estabelecem reverência ao valor
do alimento, que ultrapassa suas características alimentares. É pelos alimentos que
o homem primitivo percebe o ambiente que lhe rodeia e que lhe fornece,
providencialmente, condições de sobrevivência. É o germe que, nas religiões mais
evoluídas, “[...] dará origem à sensação de dependência da Providência, de gratidão
e de confiança nela” (MALINOWSKI, 1984, p. 45). As atitudes de reverência feitas
por meio do sacrifício e da comunhão providenciam a distribuição de alimentos.

4.12 Totemismo como coesão

Em continuidade ao tema da nutrição, a seletividade na escolha de


alimentos pelo selvagem demonstra os interesses, os impulsos e as emoções de
uma tribo, que se desdobram em um sentimento de natureza social (MALINOWSKI,
1984). O anseio para controlar as espécies perigosas leva à fé no poder sobre elas.
É “[...] na espécie, na afinidade com ela, numa essência comum entre homem e
animal ou planta” (MALINOWSKI, 1984, p. 48–49).
Para Malinowski (1984, p. 49), o totemismo “[...] consiste num sistema de
cooperação mágica, numa série de cultos práticos, cada qual com a sua base social,
mas tendo todos um fim comum: proporcionar abundância à tribo”. O caráter
compensatório do totemismo advindo da religião está nos esforços do homem
primitivo para enfrentar o ambiente que o rodeia, em sua luta pela existência.
33
Simultaneamente, desenvolve seu respeito por aqueles animais e plantas de que
depende. O ser humano primitivo, portanto, sente-se agradecido. “Tudo isto emana
da crença na afinidade do homem com aquelas forças da natureza das quais
depende bastante. Encontramos, pois, no totemismo, num sistema de crenças,
práticas e disposições sociais, um valor moral e um significado biológico”
(MALINOWSKI, 1984, p. 50).

4.13 Morte como sobrevivência

A experiência da morte está circunscrita em uma das maiores fontes da


religião. Segundo Malinowski (1984, p. 50, acréscimo nosso), ela está na base da
inspiração de todas as religiões, então “[...] o homem vive sua vida sob o espectro
da morte. [...] Dessa forma a morte e sua negação a imortalidade sempre
constituíram, e ainda hoje constituem, o tema mais incisivo dos prognósticos do
homem”. Entre os primitivos, essa percepção de impotência diante da morte se
reveste de complexidades ainda maiores.
Horror e receio ao cadáver e a seu fantasma assolavam as comunidades
selvagens. É nessa trama dramática que se estabelecem o cerne das crenças
religiosas. Porém, há complexidades extremas e contradições nas emoções diante
do fato da morte. Amor e desprezo pelo morto e pelo cadáver, respectivamente,
além da “[...] ligação ainda forte à personalidade que paira sobre o corpo e um
horrível medo da coisa macabra que ficou, [...] parecem misturar-se e digladiar-se”
(MALINOWSKI, 1984, p. 51). São comportamentos de emoções extremas, em que
horror e medo se mesclam com amor e apego, em que elementos negativos e
positivos se encontram não hierarquizados, nos velórios. “Os procedimentos
fúnebres revelam uma extraordinária semelhança em todo o mundo” (MALINOWSKI,
1984, p. 51). Os sinais exteriores do luto se manifestam nos corpos e nos
comportamentos de tristeza diante da morte e do morto.
Duas tendências contraditórias estão presentes, segundo Malinowski (1984):

 Preservar o corpo, manter intacta sua forma ou reter partes dele;

34
 O desejo de se livrar do corpo, de o tirar do caminho, de o aniquilar
completamente.

Dessa forma, a cerimônia fúnebre “[...] obriga o homem a superar a


repugnância, a vencer os seus receios, a triunfar sobre a piedade e o afeto,
acarretando a crença numa vida futura, na sobrevivência do espírito”
(MALINOWSKI, 1984, p. 53). Ao temer em excesso a morte, os primitivos
desenvolveram a possibilidade de vida pós-morte. Aqui, “[...] agarrando-a, o homem
primitivo alcança a reconfortante crença na continuidade espiritual e na vida após a
morte” (MALINOWSKI, 1984, p. 53), em um misto de esperança e de medo diante
do óbito. Porém, há oposições diante do desejo da imortalidade e o medo de
enfrentar a aniquilação sozinho, cujas forças emocionais ambíguas se ampliam, “[...]
neste supremo dilema de vida e morte derradeira, entra a religião, escolhendo o
credo positivo, a visão reconfortante, a crença cultural válida na imortalidade, no
espírito independente do corpo, e na continuação da vida depois da morte”
(MALINOWSKI, 1984, p. 54)
De acordo com Malinowski (1984, p. 54), é nas cerimônias fúnebres com a
expectativa de vida pós-morte que “[...] a religião dá corpo e forma às crenças de
salvação”. A crença na imortalidade é uma necessidade humana frente à
incontrolável e inevitável presença da morte, e é resultante de aspectos emocionais,
sacralizada pela religião, que permite superar o receio da aniquilação. Assim, a “[...]
crença nos espíritos é consequência da crença na imortalidade” (MALINOWSKI,
1984, p. 54). A função da religião frente à morte é sua capacidade de resgatar o
homem de uma rendição à morte e à destruição, ou seja, é interiorizada nele a
esperança de continuidade e o desejo de viver. Essa é a essência do animismo.
Assim, a fé na imortalidade se manifesta no ritual de desespero que cria o
acontecimento social a partir de um fato natural. A morte desperta o instinto de
preservação da vida, provocando uma reação positiva em favor da vida naqueles
que ainda não morreram, pois, sabe o homem primitivo, que ceder a ela seria
colocar em risco a “[...] própria coesão e solidariedade do grupo, e disto depende a
organização da sociedade, na sua tradição e, por último, toda a cultura”
(MALINOWSKI, 1984, p. 55).

35
A religião, dessa forma, venerando e normatizando “o outro conjunto de
impulsos, concede ao homem o dom da integridade mental” (MALINOWSKI, 1984, p.
55). E, em relação ao grupo, “[...] a religião contraria as forças centrífugas do medo,
da dor, da desmoralização e proporciona o meio poderoso de reintegração da
abalada solidariedade do grupo e de restabelecimento do seu moral”
(MALINOWSKI, 1984, p. 56). A religião garante a vitória da tradição e da cultura
sobre as reações negativas do instinto perturbado. Temos, desse modo, a
concepção de que as crises da vida são o principal fio condutor do fenômeno
religioso.

4.14 Monoteísmo e moral primitivos

Malinowski (1984) informa que, espantosamente, duas correntes importantes


foram deixadas em segundo plano no pensamento antropológico da religião: a ideia
primitiva de monoteísmo e o lugar moral na religião primitiva. A explicação plausível
e possível poderia ser a não aceitação e, por isso, a estigmatização por parte dos
teóricos sobre as origens rudes, selvagem, incultas, iletradas e cruas das religiões
atuais, distanciando-a entre si. Porém, Andrew Lang identificou a crença, entre os
nativos australianos, em um ancião tribal, e o Rev. Wilhelm Schmidt também
apresentou provas de que a “[...] crença é universal entre todos os povos das
culturas mais simples, e, por conseguinte não pode ser tratada como um fragmento
irrelevante da mitologia e, muito menos ainda, como eco do ensino missionário”
(MALINOWSKI, 1984, p. 24). É a ideia de uma forma pura e simples de monoteísmo
primitivo. Os professores Westermarck e Hobsouse publicaram obras relacionadas
ao problema moral da religião primitiva, entendida como função religiosa primitiva.
Segundo Malinowski (1984, p. 24), a tendência dos estudos antropológicos
tem sido a de uma perspectiva de religião cada vez mais maleável e diversificada.
Tylor teria a tarefa de rechaçar a ideia de que existiam, ou existem, povos sem
religião. Mas essa falácia é demonstrada com a perspectiva de que “[...] tudo é
religião para o selvagem”: eles vivem ininterruptamente entre uma dimensão de
misticismo e outra de ritualismo (MALINOWSKI, 1984, p. 24). O que escapa é o
universo do profano na vivência primitiva.

36
Na concepção da antropologia moderna, a religião primitiva alberga toda a
espécie de aspectos heterogêneos, do animismo ao mana, foi introduzida ao
totemismo e se pauta pelas atividades e preocupações humanas, na alma coletiva
da sociedade divinizada.

5 O FENÔMENO RELIGIOSO COMO SOCIAL

Segundo Malinowski (1984), a maior parte dos atos sagrados tem caráter
coletivo ocorre em congregação. A religião precisa das associações de pessoas em
consórcio mútuo. “A sociedade carece da religião para a manutenção da lei moral e
da ordem. [...] Tanto nas sociedades primitivas quanto nas culturas superiores a
concessão mútua entre a fé religiosa e a organização social são pronunciadas”
(MALINOWSKI, 1984, p. 57, acréscimo nosso).
Robertson Smith já afirmara, segundo Malinowski (1984, p. 59), “[...] que a
religião primitiva exprime a preocupação da comunidade e não a do indivíduo”. A
sociedade vista como a própria divindade era a premissa de Durkheim (1965).
Porém, “[...] os momentos de maior religiosidade se verificam com a solidão,
afastamento do mundo, concentração e abstração mental” (MALINOWSKI, 1984, p.
59). O estar só fazia parte de vários momentos nas religiões primitivas, seja no
isolamento na iniciação, nas angústias nas cerimônias de provas ou “[...] na
comunhão com os espíritos e poderes em locais solitários” (MALINOWSKI, 1984, p.
59). A demonstração do aspecto individual nas religiões de cunho social dos
primitivos denota que “[...] a própria essência da moral reside no fato de serem
impostas pela consciência” (MALINOWSKI, 1984, p. 59), menos por conta do medo
das consequências das punições divinas e mais por sua responsabilidade e
consciência pessoais. Constata-se, portanto, que, sem hierarquias, a religião
primitiva é social e individual ao mesmo tempo.
Segundo Malinowski (1984, p. 60, acréscimo nosso), “A ideia religiosa brota
da sua efervescência [...] e essa é coletiva, mas não só nas várias situações
emocionais da vida, sentir-se-á alterado, inspirado, dotado de forças superiores”.
Nesses momentos solitários, emerge uma grande dose de inspiração religiosa. A
despeito das cerimônias públicas da religião, é reservadamente na solidão que

37
ocorrem as revelações religiosas. Há efervescência e paixão também coletivas, mas
completamente profanas.
O coletivo e o religioso não são coextensivos. “A sociedade, como guardiã
da tradição laica, do profano, não pode assumir-se como princípio religioso ou
divindade, pois o lugar desta última é unicamente no domínio do Sagrado”
(MALINOWSKI, 1984, p. 62). Sacralizar a parte religiosa da tradição é um dos
objetivos da religião primitiva. Portanto, não é a sociedade a própria divindade.
A investigação sobre as origens do fenômeno religioso envolve, também,
aspectos geográficos, que influenciam as práticas das manifestações religiosas de
modo a percebermos suas diferentes cosmovisões e cosmologias. O impacto das
paisagens na vivência dos povos influi nas elaborações religiosas, que demonstram,
ao mesmo tempo, a universalidade e a multiplicidade do fenômeno religioso em
regiões distintas, marcadas e determinadas em suas concepções pelo deserto, pelas
terras férteis, pelas florestas, pelas montanhas e pelas regiões litorâneas.

6 FENÔMENO RELIGIOSO NAS RELIGIÕES DESÉRTICAS E AGRÁRIAS

Para compreender as divergências e a complementaridade do fenômeno


religioso entre as religiões desérticas e agrárias, é necessário se apropriar de alguns
conceitos básicas da geografia da religião. Essa ciência, oriunda da geografia geral,
“[...] procura analisar o impacto da geografia, ou seja, do espaço físico e cultural, na
crença religiosa” (ANDRADE, 2010, documento on-line). Os valores espirituais,
culturais e estéticos são resultado dos impactos a partir da interação mútua entre
paisagem e religião. Segundo Andrade (2010, documento on-line), Gil Filho
esclarece que geografia da religião “[...] é uma disciplina que estuda a imagem
cultural da religião tirada do mundo perceptual e fenomênico constituído de marcas
pictóricas que fazem parte de uma determinada paisagem geográfica".
Existem poucas obras sobre a geografia da religião, mas é possível destacar
a obra National geographyc society, produzida por vários autores, como Desmond
Tutu. Segundo Andrade (2010, documento on-line), “[...] esta obra aborda as cinco
grandes religiões: Hinduísmo, Budismo, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo,
explorando as regiões geográficas do seu nascimento, áreas e culturas onde esses
sistemas religiosos floresceram”. Há destaque, também, para a obra de Roger W.

38
Stump intitulada The geography of religion: faith, place, and space, que trata do lugar
e do espaço do desenvolvimento da tradição religiosa.
Para a compreensão do fenômeno religioso entre as religiões desérticas e
férteis, é preciso enxergar essas religiosidades a partir de um olhar antropológico
que forneça pistas para o entendimento de que “[...] o vasto conteúdo moral,
espiritual e ritualístico das tradições religiosas é proveniente de determinados
contextos geográficos” (ANDRADE, 2010, documento on-line). Percebe-se isso nas
grandes construções sagradas, nos sagrados locais que permitem as peregrinações
e a formação religiosas, como ritos e práticas, que são resultados da interação entre
as pessoas e a paisagem. Dessa relação, surgem as inspirações das tradições
religiosas, “[...] contextos míticos, históricos e geográficos que determinam a
elaboração das divindades, lugares sagrados, templos, ritos e práticas morais e
espirituais de cada tradição” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
É na relação com o meio ambiente que o ser humano institui tanto suas
múltiplas formas culturais quanto a religiosa e a ética. Porém, na
contemporaneidade, pela relação destrutiva que os seres humanos estabeleceram
com a natureza, a devastação de paisagens cristalizadas é vista nas inúmeras
denúncias dos movimentos ecológicos; mas essa relação destrutiva não é a regra.
Na antiguidade, havia tempos mais harmoniosos na relação com a natureza. “As
sagradas escrituras de diversas tradições religiosas referem-se a uma íntima relação
com o meio geográfico” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
Foi essa relação harmoniosa que possibilitou a sensibilidade religiosa e a
contemplação, que são as bases nas quais a mística se desenvolveu, tanto na
Bíblia, quando se trata da reprodução visando preencher o ambiente, ou seja, da
“[...] qualidade da relação que ele estabelece para com a região geográfica”
(ANDRADE, 2010, documento on-line), quanto no Bhagavad Gita, escritura sagrada
do Hinduísmo, “[...] que remete para uma ideia de que o mundo vibra com a
presença de Deus, posto que é considerado como extensão do corpo do próprio
Deus” (ANDRADE, 2010, documento on-line). Essas concepções todas demonstram
a força da relação harmônica com a paisagem, base das concepções religiosas.
A variedade geográfica gera, também, diferenças no tipo de relação que os
humanos estabelecem com o lugar onde habitam, que implicam diferentes formas
constitutivas das culturas e das religiões, as quais acabam se caracterizando a partir

39
da qualidade dessa interação. Segundo Andrade (2010), existem cinco regiões que
são caracterizadas na Terra: regiões montanhosas, florestais, férteis, litorâneas e
desérticas. “Essas regiões condicionavam os modos como as pessoas viviam e as
emoções que expressavam” (ANDRADE, 2010, documento on-line). O contato que
os seres humanos estabeleceram com as regiões permitiu o desenvolvimento
diferenciado nítido de concepções culturais, éticas e religiosas.
Várias regiões produziram cosmovisões diferenciadas. No deserto, existem
características específicas que condicionam os comportamentos humanos. A
ausência de vegetação, por exemplo, leva à escassez de alimentos, que produzem
saques violentos, além da própria “[...] instabilidade provocada pela amplidão
geográfica exige a elaboração de uma cultura nômade que busca estabilidade”
(ANDRADE, 2010, documento on-line). A partir dessa vivência, os nômades
desenvolveram sua religiosidade em uma relação de uma divindade transcendente,
“[...] distante e tremendamente exigente de fidelidade e submissão de seus fiéis”
(ANDRADE, 2010, documento on-line). O céu azul passa a ser considerado a
morada da divindade, surgindo o desejo de estar lá, longe da aflição cotidiana
provocada pela vulnerabilidade do ambiente geográfico hostil. “No deserto o tempo é
linear, a lua é o elemento masculino e o sol, o feminino. A vida após a morte é
sustentada pela crença na ressurreição, pois não há retorno ao sofrimento do
cotidiano” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
Ao contrário das regiões desérticas, o desenvolvimento da relação com as
regiões de terras férteis é diferente. Nessas terras, a abundância de água, de
vegetação e, consequentemente, de comida, produz uma postura sedentária, de
fixação na região geográfica que se estabelece. Para Andrade (2010, documento on-
line), “[...] a vegetação permanente e a produção agrícola possibilitaram a
construção de um universo religioso em que o divino é concebido como imanente e
próximo, exigindo dos homens uma relação harmônica”. O tempo não é
caracterizado de forma linear, mas cíclico; o Sol não é o elemento feminino, mas,
sim, masculino; e a Lua é o elemento feminino. A ressurreição não faz sentido nas
religiões das terras férteis, mas, sim, a reencarnação, o desejo de voltar.
As cosmologias também são diferentes em outras regiões, como as
montanhosas, litorâneas e florestais. De acordo com Andrade (2010, documento on-
line), nas regiões montanhosas, há o privilégio de “[...] aspecto romântico nas

40
relações humanas o Sol e a Lua, brilhando soberanos e ocultando-se entre as
montanhas, assemelham-se aos amantes em jogos eróticos”. Nas regiões
litorâneas, há abundância de alimentos, advindos do mar, o que implica a evocação
da divindade da esperança para proteger das ameaças de perigos. Nas regiões das
florestas, a “[...] densidade, a sombras e a riqueza evocam certa crença na
existência dos espíritos florestais e elaboram uma convivência harmônica nascida do
medo que esses seres inspiram” (ANDRADE, 2010, documento on-line). Há, ainda,
impactos na formação da religiosidade advindos das regiões geográficas frias e
geladas.
Embora as diversidades geográficas produzam suas especificidades
religiosas, há elementos comuns e diferentes nessas tradições, pelas quais
podemos afirmar que existam, no fenômeno religioso, um caráter uno (comum) e
outro múltiplo (divergente). A busca pelo sagrado, comum e universal a todo
fenômeno religioso, produz manifestações díspares, ou seja, “[...] um único
fenômeno, captado e percebido de forma plural de acordo com as diferentes regiões,
produz respostas diferentes, que dão a origem às múltiplas tradições religiosas”
(ANDRADE, 2010, documento on-line). A percepção do sagrado nas múltiplas
religiões pode ecoar a possibilidade de uma única fonte que produz vários olhares,
ou a possibilidade de múltiplas fontes que produzem múltiplas religiões. Daí, verifica-
se a possibilidade do monoteísmo e do politeísmo, e isso não descaracteriza o
elemento da busca pelo sagrado.
Segundo Andrade, “[...] os seres humanos de diversas regiões geográficas
veem a ‘Fonte’ de forma variada, conforme sua região, ou a única ‘Fonte’ apresenta-
se sob múltiplas formas aos seres humanos de regiões diferentes” (ANDRADE,
2010, documento on-line). A religião é, assim, encontrada, na experiência e na
intuição: “[...] intuição e experiência da mesma realidade são percebidas sob prismas
diferentes, mas notamos que, apesar das diferenças, certos princípios espirituais,
sociais e morais são comuns a todas as religiões” (ANDRADE, 2010, documento on-
line).
De qualquer forma, verifica-se as condicionantes geográficas que produzem
as manifestações religiosas/fenômeno religioso, que tem, na busca, sua origem
primeira. “A noção de Deus está presente em todas as regiões geográficas, mesmo
com percepções divergentes não há ser humano sem pensamento religioso”

41
(ANDRADE, 2010, documento on-line). As aproximações e os distanciamentos são
marcas do fenômeno religioso, remetendo-o à dupla característica: uno e múltiplo.
Um fator importante na compreensão do fenômeno religioso comum a todas
as manifestações religiosas é a solidão. Base da condição humana, a solidão pode
ser superada e o indivíduo pode transcender ao outro diferente de si, partilhando
experiências. Essa concepção de Kapferer (apub ANDRADE, 2010) substitui a
impossibilidade de vivenciar a experiência alheia pelo compartilhar dessas
experiências de si com o outro. Assim, a internalização da experiência alheia permite
um “[...] movimento de ir e vir, dinâmico, constante e consistente que leva os
indivíduos a produzirem experiências admiráveis, serem admirados, manifestar
calma ou indiferença, alegria, tristeza, orgulho ou humilhação” (ANDRADE, 2010,
documento on-line). A realidade da solidão e a busca por sua superação produz na
pessoa a busca pelo diálogo. Assim, a rota de fuga da solidão faz, do diálogo, no
âmbito religioso, oposto à solidão, de forma que a ausência do divino é
experienciada pelo indivíduo que “[...] a preenche com oração, ritos e outros meios”
(ANDRADE, 2010, documento on-line), em uma dinâmica que conduz o ser humano
em direção ao outro, diferente de si, seja humano ou sobre-humano.
Outro fator importante na compreensão da origem do fenômeno religioso é a
concepção comum, entre as religiões, dos princípios da dualidade ou do conflito. O
ser humano, por ser sociável, estabelece relações nas quais procura a convivência
harmônica como estado existencial saudável. Para tanto, cria condições sociais de
acordo mútuo para a manutenção desse citado estado. Essas condições, para que
todos as concretizem na realidade de suas vidas, são coercitivas, isto é, impostas na
dualidade de obrigações e proibições.
As sociedades, prevendo a possibilidade de quebra dessas regras e sua
consequente quebra de harmonia, pune o infrator. Igualmente, o indivíduo também é
punido pela culpa, quando “peca” no âmbito da pessoalidade. A forma de retomada
da condição anterior de harmonia está nos dispositivos criados pela sociedade, que
“[...] estabelece o diálogo do antagonismo ou do acordo (punição e reconciliação
com o grupo), o indivíduo estabelece o diálogo consigo mesmo, através de ritos ou
formas de austeridade” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
A dualidade pode ser vista, nas religiões, nos campos morais e espirituais,
em que a experiência. “[...] é expressa sob diversas formas, como culpa, ignorância,

42
impureza, maldade, imprudência ou quebra de regras e tabus” (ANDRADE, 2010,
documento on-line). Os conflitos são instrumentos bloqueadores, que impedem a
aproximação com o divino, e a busca por reparação é vista em todas as
manifestações religiosas na lógica dificuldade-superação, seja no Hinduísmo
(ignorância-conhecimento), no Taoismo (desequilíbrio-equilíbrio) no Budismo
(desejos- abstenção), no Islamismo (incredulidade-fé) ou no Cristianismo (conflito-
paz).
Nesse contexto, o eixo do surgimento do fenômeno religioso nas regiões
áridas e férteis está nos conceitos de solidão e dualidade experienciados pelos
indivíduos condicionados nessas regiões geográficas distintas e diferentes. Veremos
as diferenças e as aproximações das religiões oriundas das regiões do Oriente
Médio, de um lado, e, de outro, as religiões oriundas da Índia e da China.

6.1 Regiões áridas do Oriente Médio

Na intersecção entre Ásia e África, entre o mar Mediterrâneo e o oceano


Índico, encontra-se o Oriente Médio. Região desértica, com aridez, rochas e picos
vazios, poucos rios e raras chuvas, pouca vegetação, parcas pastagens e poucas
sombras. Região com atividade sísmica constante. Foi nesse espaço geográfico
com características pitorescas que surgiram três grandes religiões ocidentais:
Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.
Nilton Bonder (2008, p. 33, apud ANDRADE, 2010, documento on-line,
acréscimo nosso) assevera que:

[...] todas as regiões do mundo com movimentos tectônicos são, da mesma


forma, regiões de alta espiritualidade [...] as áreas geologicamente instáveis
ativam no ser humano a necessidade espiritual. [...] Além disso, outro
aspecto importante no desenvolvimento e na organização de sistemas
religiosos em regiões de grande aridez está na experiência do ser humano
com o deserto.

Dessa forma, a paisagem árida e as instabilidades das placas tectônicas


constituem o ambiente na qual se formaram as religiões do deserto. A fé em Deus
no deserto, seja no Judaísmo, Cristianismo ou no Islamismo, direciona seus fiéis
para o nomadismo e para a hipervalorizarão da árvore genealógica. Uma vez que

43
“[...] não podem fincar raízes na terra, os nômades fixam-se no passado”
(ANDRADE, 2010, documento on-line).
Essas religiões originárias do deserto se pautam pelas limitações diante da
vastidão e da dureza do deserto: “O Judaísmo reconhece sua impotência a partir da
‘aliança’ e da ‘fidelidade’; o Cristianismo, a partir do reconhecimento de Jesus como
‘Filho de Deus’, e o Islamismo a partir de total ‘submissão a Alá’” (ANDRADE, 2010,
documento on-line). Tanto no Judaísmo quanto no Cristianismo e no Islamismo, há
“[...] um investimento no Deus Transcendente, visto como todo poderoso e distante.
Aquele que oferece proteção e salvação ao mesmo tempo em que exige fidelidade e
submissão por parte dos seres humanos” (ANDRADE, 2010, documento on-line).

6.2 Regiões férteis da Índia e da China

As terras férteis banhadas pelos grandes rios caracterizam as regiões


geográficas nas quais se localizam a Índia e a China. Embora existam diferenciadas
paisagens geográficas, “[...] a paisagem que mais alimentou o imaginário de ambos
os países foi a das terras férteis” (ANDRADE, 2010, documento on-line). Na Índia, o
Hinduísmo foi profundamente impactado pelos aspectos geográficos. “A
religiosidade hindu apresenta seus complexos rituais que foram desenhados
conforme as metáforas das relações entre a montanha e a planície, picos nevados e
beiras de rios” (ANDRADE, 2010, documento on-line). A vida cotidiana boa e
santificada é representada pela geografia das margens do rio Ganges, pelos picos
do Himalaia e pela vegetação abundante. “O Ganges simboliza, assim, o Divino, que
passa por nossas vidas tornando tudo vivo e florescente; significa o fluxo contínuo
da divina graça em nossas existências” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
O Hinduísmo, religião viva mais antiga do mundo, atualiza-se
permanentemente. Etimologicamente, significa “longe da violência”, e não tem um
fundador específico, sendo variados os mestres ancestrais constituintes dos
preceitos hindus. De origem obscura, seu nome original, Sanathana Dharma,
significa “a religião eterna”, desprovida de origem ou fim (ANDRADE, 2010,
documento on-line). Pesquisadores procuraram estabelecer, historicamente, o início
dessa religião, tendo encontrado resquícios de uma civilização que reverenciava
uma divindade, Pashupathi, que “[...] evidencia claramente a relação entre a religião

44
e o meio, ele é, acima de tudo, o provedor; é também, o meio no qual os antigos
drávidas um dia se instalaram” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
O Budismo, também originário da Índia, tem raízes na relação com os
fenômenos da natureza. Os conceitos budistas de Anatman (negação do ego) e
Anichha (transitoriedade) apontam para o desejo e o apego: tendência
essencialmente humana. Assim, o ego nasce do desejo de acumular, vistos na
fartura dos grãos. A transitoriedade demonstra a perenidade dos vegetais em um
ciclo nascer × viver × morrer, que “[...] deduz que toda a existência e fenômenos do
mundo estão em constante mutação e não permanecem iguais, mesmo por um
momento sequer” (ANDRADE, 2010, documento on-line). O sofrimento, no Budismo,
está na “[...] eliminação do sofrimento [...] [que] encontra-se em saber o processo
pelo qual construímos o desejo, na compreensão da transitoriedade dos fenômenos
naturais” (ANDRADE, 2010, documento on-line, acréscimo nosso).
Abrangendo um universo mais amplo, as religiões chinesas incorporam
outros elementos. Entre elas, temos o Confucionismo, o Taoísmo e o Budismo.
Fundado por Confúcio, o Confucionismo é considerada a religião dos sábios, que
“[...] segue a ética e os ritos de passagem e, ao mesmo tempo, busca criar e praticar
a ordem e a harmonia na sociedade” (ANDRADE, 2010, documento on-line). O
Taoísmo, concebido pelos filósofos místicos chineses, “[...] procura compreender a
relação do ser humano com a natureza” (ANDRADE, 2010, documento on-line).
Confucionismo e Taoísmo são influenciados geograficamente pela região
fértil onde nasceram, que contribuiu para a construção do conteúdo religioso dessas
duas tradições chinesas, que se encontra na compreensão do universo cosmológico
chinês, no qual três planos (em baixo, meio e no alto) são os lugares dos deuses e
dos ancestrais (ANDRADE, 2010). Mutuamente dependentes, seus engendramentos
rituais e mitológicos são articulados na simbologia das forças da natureza e das
estrelas, na referência aos animais, aos elementos geográficos e aos cinco
elementos: água, fogo, ar, madeira e metal.

6.3 Paralelos entre as matrizes do deserto e da terra fértil

As experiências religiosas oriundas das regiões desérticas e férteis


influenciam o mundo todo, mesmo em regiões diferentes daquela de sua origem. A

45
associação de Deus como sopro indica certa predominância das imagens ligadas ao
ar no Judaísmo (ANDRADE, 2010). O sentimento de gratidão é amplamente
desenvolvido, pelo pouco recebido da natureza. A vulnerabilidade advinda pelos
parcos recursos oriundos do deserto denota os sentimentos de incapacidade e de
inferioridade na possibilidade de salvar-se, direcionando sua esperança na redenção
de alguém fortemente capaz e que venha de Deus.
Por sua vez, o apelo sensorial nas religiões das regiões férteis se pauta na
riqueza de sua biodiversidade. Desse modo, há estimulação constante e contínua
dos sentidos “[...] por cores, cheiros e por grande variedade de sabores”
(ANDRADE, 2010, documento on-line). Os indianos e os chineses procuram o divino
no estado de repouso advindos da “[...] meditação, contemplação, no vazio, no
silenciar da mente. [...] Caracterizado pela imanência, o divino se encontra em cada
elemento da natureza, imanente, mais próximo; o conceito de libertação, portanto, é
desenvolvido, pois cada indivíduo deve se libertar sem ter auxílio de outrem”
(ANDRADE, 2010, documento on-line, acréscimo nosso).
Nas religiões das regiões férteis, a possibilidade de fixação geográfica
promove estabilidade, e, nas regiões desérticas, a instabilidade e a vulnerabilidade
são oriundas do nomadismo. Nas regiões férteis, a masculinidade está relacionada
com o Sol, devido às atividades agrícolas estarem ligadas a ele. Nas regiões
desérticas, é a Lua que possui características masculinas, pois traz a força do
frescor da noite. Nessa mesma lógica valorativa, o calendário solar é advindo das
regiões férteis, já o calendário lunar tem sua origem nas regiões desérticas. A
influência do meio é notória em todos os fenômenos possíveis estudados.
As formas como os sentidos constroem os conteúdos espirituais e a
construção dos conceitos do mundo imaginado que será habitado após a morte
terrena são os elementos que vamos abordar para relacionar as religiões desérticas
e férteis:
 Visão e audição;
 Reencarnação e ressurreição

46
6.4 Ouvir no deserto

Se, no deserto, o sentido explorado pela religião é ouvir, nas terras férteis, o
sentido é o ver. Nas religiões do deserto, o divino é o transcendente, distante,
misterioso, que provoca receio, respeito, temor. Assim, as forças sobrenaturais,
desconhecidas, precisam ser apaziguadas para que sejam favoráveis às demandas
das necessidades advindas da vulnerabilidade dessas regiões áridas e sujeitas a
abalos sísmicos. “A existência do nômade nessa região; é penosa e solitária, e está
severamente subordinada ao destino” (ANDRADE, 2010, documento on-line). Daí,
urge a necessidade de proteção. Mas essa proteção está distante: Deus mora na
vastidão do céu, e o deserto não favorece a possibilidade de aproximação, nem por
edifícios religiosos devido à mobilidade da areia. Sem variedade de imagens, o
deserto favoreceu a fala. “O ser divino é considerado como Palavra, portanto o
desenvolvimento da espiritualidade dessas tradições religiosas parte do ato de ouvir”
(ANDRADE, 2010, documento on-line).

6.5 Ver nas regiões férteis

Nas regiões férteis, a exuberância de estabilidade, a fixação geográfica, a


firmeza do solo e a imanência da divindade permitem ver Deus na natureza. A
própria construção de templos e das imagens do divino aproxima essas tradições
religiosas da divindade. Nas religiões das regiões férteis, o divino tem de ser
contemplado, e a meditação faz parte do serviço religioso, isso pelo sentido da
visão. A imagem pauta a espiritualidade: “[...] no ‘ver’ está compreendida uma
expressão popular da terminologia hindi, a língua nacional da Índia: Darsan déna e
darsan léna (‘ver a divindade e ser visto por ela’) ” (ANDRADE, 2010, documento on-
line).

6.6 Ressuscitar no deserto

Os conceitos de “ressureição” e “reencarnação” são construídos


religiosamente pela força da paisagem dos locais geográficos nos quais se
originaram. Foi com base no medo do desconhecido e no sofrimento diário que as
regiões desérticas provocam no ser humano que a religiosidade dessa região
47
desenvolveu o conceito teológico de ressurreição: “Uma sensação de não voltar
mais ao ‘deserto de lágrimas’ foi embutida na mente humana e, posteriormente,
transformada em doutrina” (ANDRADE, 2010, documento on-line). A boa vida está
no céu azul e estrelado, que é o lugar do divino.

6.7 Reencarnar nas terras férteis

As religiões das regiões férteis, a partir das experiências com a natureza


generosa, despertam o desejo de permanência, de volta. Portanto, não há
necessidade de fuga nem de consolação, nem de proteção nem de cura. De acordo
com Andrade (2010, documento on-line), os anjos são substituídos por “[...] espíritos,
sejam da natureza ou dos mortos, para auxiliar ou interferir na vida cotidiana”. É a
partir do entendimento de fartura e de tranquilidade que as regiões férteis
proporcionam “[...] recursos naturais atraentes como rios, montanhas, flores e frutas
[...] e criam desejos de permanência e apego ao lugar” (ANDRADE, 2010,
documento on-line, acréscimo nosso). Assim, a mentalidade de voltar é associada
aos comportamentos na relação com a valorização da vida, ou não. Isto é, o
conceito de carma, elaborado pelo Hinduísmo: “[...] essa volta pode ser vista como
castigo por ações negativas praticadas na vida anterior ou como bênção pelas boas
ações realizadas [...] que provem da cosmovisão circular das religiões férteis”
(ANDRADE, 2010, documento on-line, acréscimo nosso).
Na contemporaneidade, os encontros e desencontros entre as cosmovisões
e cosmologias oriundas das religiões desérticas e férteis impulsionados pelas
migrações individuais ou coletivas, forçadas ou não, resultam em um amálgama de
comportamentos e de espiritualidades diferentes e divergentes no mesmo espaço
geográfico. Isso vem provocando intolerância e violência, pois cada religião arroga
para si o rótulo de detentora da verdade religiosa. “Os praticantes de cada religião
pensavam carregar a verdade absoluta e tentavam difundir sua mensagem em
ambientes culturais diversos da própria origem” (ANDRADE, 2010, documento on-
line). A superação dessas características etnocêntricas se dá pelo relativismo frente
às diferenças do fenômeno religioso, em que se encontra o respeito, a tolerância e a
valoração das religiosidades, das espiritualidades e das cosmologias alheias.

48
7 CONSTITUIÇÃO CIENTÍFICA DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Todo ramo do conhecimento humano se interessa, em alguma medida,


pelos estudos da religião. Há reflexões importantes, nesse sentido, em inúmeros
estudos e pesquisas acadêmicas. Mas todas elas sempre estavam relacionadas aos
prismas, objetivos e métodos de cada disciplina, ou seja, a religião não era objeto
específico de estudo. O fenômeno religioso carecia de ser objeto de estudo
específico de um ramo da árvore do conhecimento. Seria possível estudar o
fenômeno religioso cientificamente?
A teologia, como forma de conhecimento, tem como objeto de estudo a fé,
no cristianismo. Essa forma de conhecimento religioso é válida, mas não é
especificamente científica. Há, portanto, dificuldades flagrantes no reconhecimento
da teologia para o estudo científico do fenômeno religioso: em primeiro lugar, esse
fenômeno não é único, mas múltiplo; segundo, sua metodologia se difere do método
especificamente científico.
Evidentemente que a ciência não responde a todas as perguntas; até
mesmo as ciências já constituídas, segundo Mendonça (2008, p. 150), “[...]
apresentam infinitos flancos de obscuridade, muitos deles ainda insuspeitados [...]”.
Mas, por conta da especificidade do estudo do fenômeno religioso, era preciso,
ainda, delimitar um campo para esse conhecimento específico. Faltava uma ciência
cujo objeto de estudo fosse o fenômeno religioso. Portanto, era necessário avançar
na possibilidade de desvincular o dogmatismo teológico cristão do estudo da religião
e admitir que há teologias também em outras religiões não cristãs, para se constituir
uma ciência que estude os múltiplos fenômenos religiosos, sem hierarquizá-las, nem
as carregar com aspectos êmicos.
Nesse sentido, há, nas inúmeras religiões no mundo, em suas respectivas
teologias, fundamentos importantes de cada fenômeno religioso, que, com justiça,
traduzem para seus fiéis as razões de ser de sua religiosidade. Desse modo, urge a
emergência de uma ciência que estude as religiões respeitando suas respectivas
perspectivas teológicas, relativizando assim a teologia cristã. E que, além disso,

49
estude as religiões em suas variadas dimensões e aspectos, utilizando uma
metodologia que produza seu conhecimento científico.
A recepção da religião como objeto de estudo da ciência na academia
sempre foi de suspeita e repulsa, uma vez que estava relacionada a fanatismos e
como algo de valor de direito privado. Somente no final do século XX houve maior
interesse dos estudiosos pelo fenômeno religioso, por conta da sua crescente
movimentação social. O estudo do fenômeno religioso como disciplina científica é
muito recente na universidade e se caracterizou por uma natureza multidisciplinar.
No século XIX, os estudos modernos do fenômeno religioso produziram a
ideologia da evolução religiosa, que é o resultado da conjunção de duas importantes
vertentes: (1) evolucionista; e (2) colonial, descolonial e imperialista. Com isso, uma
imposição da concepção religiosa cristã sobre as demais culturas que possuíam
religiões diferentes foi inevitável.
Entretanto, com a grande quantidade de informações oriundas das culturas
denominadas exóticas, estudiosos das ciências humanas passaram a organizar
sistemática e metodicamente os dados e a analisá-los, sem o viés evolucionista. Foi
o fortalecimento acadêmico das ciências humanas que deu base para a construção
constituinte do estudo especial da religião sob óticas disciplinares diferentes e
complementares.
Na academia, essa ciência adquiriu independência institucional, que foi
caracterizada pela grande extensão da área de pesquisa e pela neutralidade com
que analisa os objetos de estudo que não privilegia uma religião em especial. As
ciências da religião possibilitaram o estudo de outras religiões sem o caráter
apologético e missionário–proselitista. Essa relativização se deu por um processo de
alienação dos europeus de sua herança religiosa cristã. O enraizamento dessa
estrutura religiosa na Europa era uma postura etnocêntrica, não questionada
intelectualmente. Nesse sentido, as ciências da religião são uma ciência moderna.
Segundo Usarski (2006, p. 18), “[...] o pensamento sistemático sobre religião é um
produto da modernidade, mais precisamente uma consequência de mudanças
ideológicas e sócio-históricas a partir do período pós-reformatório, mais tarde
aceleradas no decorrer do movimento iluminista [...]
Desde o século XII, segundo Otto Brunner, citado por Usarski (2006), havia
duas tendências na cristandade. De um lado, os clérigos que tinham deficiência de

50
consciência histórica e, do outro, os leigos intelectuais. Estes, formados na cultura
da reforma, afastaram-se dos clérigos, buscando emancipação da cultura clerical.
Desse modo, não era mais a história clerical que se impunha, mas uma história do
progresso sem os pressupostos teológicos, e a religião passou a ser estudada a
partir dessas primícias modernas, científicas.
Por outro prisma, é possível, também, compreender esse processo a partir
da filosofia, conforme Hans Kippenberg, também citado por Usarski (2006, p. 19),
pois, para ele, “Thomas Hobbes, David Hume, Jean-Jacques Rousseau ou
Immanuel Kant depreciaram as religiões históricas, Johann Gottfried Herder foi o
primeiro que reconheceu a importância de um estudo histórico delas pela própria
filosofia [...]”. Foi com Herder que começou a história da religião cientificamente, sem
influência clerical. Ou seja, cem anos antes de a cátedra em ciências da religião ser
inaugurada.
O interesse pela literatura religiosa das novas culturas, a partir das
explorações marítimas, fez a filologia europeia se debruçar nos textos sagrados e
publicar coleções e traduções de tradições religiosas chinesa, zoroastriana,
hinduísta e budista. No entanto, os eruditos filólogos não estavam desinteressados
da lógica colonialista ou missionária. “As primeiras translações de clássicos
confucianos foram feitas a partir de 1662 por missionários jesuítas, em razão de
óbvios motivos religiosos [...]” (USARSKI, 2006, p. 21). No entanto, ainda assim,
esses filólogos contribuíram para uma filologia mais independente extraeuropeia. E
esses estudos contribuíram para a institucionalização das ciências da religião
Foi o orientalista alemão Max Müller, que, em 1867, introduziu, como
disciplina própria, o termo ciências da religião, que, para ele, era uma disciplina
comparativa. No entanto, sua tentativa de interpretar mitos religiosos como
personificações dos fenômenos naturais foi vencida pela teoria animista de Edward
Burnett Tyler. Mas, ainda, assim, foi de Müller a insistência no estatuto disciplinar
das ciências da religião, ao popularizar os estudos científicos das religiões.
As ciências da religião tiveram grande impulso quando foram inaugurados os
primeiros espaços de estudo das religiões, isto é, as primeiras cátedras fora das
faculdades de teologia, como a cátedra Histoire des Religions, na Facultè dês
Lettres da Universidade de Genebra, em 1873, e, quatro anos mais tarde, em 1877,

51
as cátedras em Geschiedenes van den Godsdienst nas universidades de Utrecht,
Groningen, Lyeden e Amsterdã.
Os professores das cátedras de Leyden, Cornelius Peter Tiele, e de
Amsterdã, Daniel Chantepie de la Saussaye, dadas suas contribuições, foram
considerados, junto com Max Müller, a tríade de fundadores das ciências da religião.
Tiele se dedicou à história das religiões, e sua obra paradigmática Geschiedenis van
den godsdienst tot aan de heerschappy der wereldgodsdiensten fora publicada. Já
Saussaye tornou-se notório com a obra Manual da História da Religião, que
estabeleceu a fenomenologia da religião como disciplina central das ciências da
religião.
Mas, foi em Paris, em 1879, que a inauguração de uma Cátedra em história
geral da religião no Collège de France, favoreceu uma abordagem histórico- -
empírica para as ciências da religião, com Tiele e Albert Réville, professor da
cátedra. Depois, as ciências da religião foram institucionalizadas na Bélgica (1884),
na Itália (1886), Suécia (1893), Inglaterra (1904), Alemanha (1910), Dinamarca
(1914) e Noruega (1925). E publicações, desde 1880, bem como conferências e
congressos, desde 1897, fizeram aumentar o interesse pelos estudos científicos das
religiões.
Em suas origens, as ciências da religião se desenvolveram em duas
vertentes: as fenomenológicas e as empiristas. No entanto, com a conhecida “briga
de métodos”, após a Segunda Guerra Mundial, as ciências da religião buscaram
alternativas à fenomenologia clássica de Otto, van der Leeuw e Eliade. Com isso,
houve início de inclinações para a multidisciplinaridade das ciências da religião.
O caráter de pluralidade das ciências da religião ocorre durante seu
desenvolvimento histórico, no qual foram se somando às antigas perspectivas
disciplinares as atuais tendências multidisciplinares. As quatro subdisciplinas
consideradas clássicas que compõe o sistema social das ciências da religião são: a
antropologia da religião; a história da religião, a psicologia da religião e a sociologia
da religião.
Na complexidade de sistema multidisciplinar, para Niklas Luhmann, citado
por Usarski (2006, p. 9), a ciência da religião “[...] compartilha com outras disciplinas
universitárias características que a qualificam como um sistema social [...]”. A ideia
de sistema social está, segundo Usarski (2006, p. 10), na “[...] dinâmica interna

52
gerada por seus próprios constituintes [...]”. A coparticipação das disciplinas que
compõe o sistema disciplinar das ciências da religião contribui para sua autonomia.
Há “[...] um consenso sobre a constituição específica e o lugar próprio da sua
matéria no mundo acadêmico em contraste com outras [...]” (USARSKI, 2006, p. 10).
Há, ainda, as disciplinas de geografia da religião e a estética da religião, que
não desfrutam, dentro do sistema social da ciência da religião, do mesmo status
formal das disciplinas clássicas, mas isso não é reducionismo da sua importância no
escopo das pesquisas em ciência da religião.
O processo de multidisciplinaridade também fez surgir paradigmas próprios
da área, como as contribuições de Michael Pye, que elaborou teorias interpretativas;
e de Donald Wiebe, com a noção de uma ciência crítica da religião. Além disso,
emergiram o novo comparativismo, a neurofenomenologia da religião e a religião
vivenciada entre outros
Há, ainda, outros projetos temáticos com tendências a fazer parte desse
sistema social das ciências da religião, como a economia da religião e a fisiologia da
religião, além das contribuições da ciência da computação, as pontes com a teologia
e o contínuo diálogo transdisciplinar entre a ciência e a religião, tendo as ciências da
religião como referência disciplinar.
Desse modo, em suma, o sistema social das ciências da religião possui um
caráter multidisciplinar no qual as subdisciplinas e as disciplinas auxiliares, história,
antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise, geografia, estética, economia,
fisiologia, neurociência e ciências da computação se articulam a fim de promover
uma análise científica mais completa dos complexos fenômenos religiosos.

8 DISTINÇÕES DO FENÔMENO RELIGIOSO DA CULTURA RELIGIOSA

A fim de compreender a distinção do fenômeno religioso da cultura religiosa,


apresentaremos a gênese do fenômeno e a formação da cultura religiosa, como
formadora das consciências e comportamentos.

Fenômeno religioso

53
O fenômeno religioso se situa no âmbito da experiência religiosa.
Conceituado por Rudolf Otto na obra Das Heilige (1917), a experiência religiosa se
dá pela relação do sagrado, que é um poder terrível, pavoroso. O sagrado é o
mysterium tremendum que gera um sentimento de pavor e de temor diante do
mysterium fascinans. Esses receio e fascínio são experiências denominadas
numinosas, “[...] porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do
poder divino [...]” (ELIADE, 1992, p. 12).
A ideia acerca do sagrado está relacionada em dualidade oposta ao profano.
Para Eliade (1992, p. 13), a “[...] primeira definição que se pode dar ao sagrado é
que ele se opõe ao profano [...]”. A experiência religiosa se faz a partir da
manifestação do sagrado que se mostra por si mesmo, em forma de, nas palavras
de Eliade, hierofania, isto é, “[...] que algo de sagrado se nos revela [...]” (ELIADE,
1992, p. 13). Os múltiplos fenômenos religiosos têm sua gênese nas múltiplas
hierofanias que ocorreram, e, ocorrem, na história humana. Essas hierofanias,
segundo Eliade (1992), podem ser interpretadas pelos seres humanos primitivos.
Para Eliade (1992), aqueles que tiveram experiência religiosa consideram a
suscetibilidade da natureza de forma sacralizada cosmicamente. Nesse sentido, os
primitivos, no desejo de sempre permanecer no cosmos em oposição ao caos,
esforçavam-se para viver o mais próximo possível do sagrado e/ou dos objetos
sagrados, pois ele é compreendido como a própria realidade. Assim, sagrado e
profano podem ser identificados como real e irreal para os primitivos,
respectivamente, que buscavam, assim, estar próximos dessa realidade, pois, para
eles, a realidade é transcendental.
Nesse sentido, é no domínio do sagrado que se encontra o fenômeno
religioso, que se manifesta pelos atos e pelas práticas tradicionais, que são
sacralizados e associados a crenças em formas sobrenaturais, de um lado; e, de
outro, está a ciência rudimentar, ou o profano.
No domínio do sagrado, portanto, encontramos o fenômeno religioso que é
caracterizado pela manifestação da crença e dos rituais. O princípio ativo do
fenômeno religioso é o sobrenatural, que move os seres humanos como resposta ao
irracional, isto é, àquilo que não é compreendido pelos sentidos humanos, fugindo à
nossa compreensão, contemplação e entendimento. Por isso que o cerne e a base
dos sistemas religiosos podem ser imaginados como seres, entidades, forças e alma

54
dos mortos na forma de anjos, santos, demônios, fadas, espíritos, almas ou
espectros.
Em todas as expressões religiosas encontramos os cultos com variações
estruturais, organizacionais e de realização em todas as épocas e lugares. Os
objetos sagrados que compõem o culto são adorados, venerados ou utilizados nos
rituais. As variações nas formas rituais se verificam pelos atos religiosos como
cantar, rezar, dançar às divindades, oferendas e sacrifícios, que realçam três formas
principais de ritual: as orações, as oferendas e as manifestações.
Há cânticos e danças nos rituais para chuva, plantio, colheita, contra
epidemias etc., bem como pantomimas, rogações e atos de magia. Outro tipo de rito
comum entre os primitivos eram os ritos de passagem (ou transição), que aparecem
quando da modificação do status social do indivíduo, e são realizados por ocasião
do nascimento, da puberdade, do matrimônio e da morte. A figura do oficiante é
caracterizada por pessoas preparadas e consagradas para oficiar religiosamente,
que ocupam cargos de sacerdotes, reis-sacerdotes, chefes ou ministros religiosos,
especialistas e oráculos.
As celebrações cúlticas e as cerimônias ritualísticas eram realizadas em
locais sagrados denominados santuários e edificações onde se queimavam
incensos, acendiam velas e realizavam intercessões. Além do santuário, existiam os
locais geográficos que eram consideradas habitações de espíritos ou divindades,
que podiam ser montes, rochas, bosques, rios, pedras, árvores, ou mesmo um
caminho por onde passou um rei divino. Os fenômenos religiosos, portanto, são
construções humanas expressas nas múltiplas religiões que denotam as relações
com o sagrado.
O reconhecimento da universalidade do fenômeno religioso no tempo e no
espaço denota o quão importante são as formas de olhar para as diversidades das
múltiplas manifestações religiosas. Todas elas têm mais em comum entre si do que
se supunha. Portanto, distanciar-se de concepções com pretensões à
hierarquização dos fenômenos religiosos contribuo para a superação da intolerância
religiosa e para o desenvolvimento de uma cultura de diálogo inter-religioso,
sobretudo em uma sociedade com a presença do pluralismo de religiões. Essas
manifestações, no entanto, não se esgotam em rituais, ritos e práticas cerimonias;

55
elas ultrapassam os locais de culto e sedimentam o comportamento das pessoas,
criando um fenômeno denominado cultura religiosa.

Cultura religiosa

Para compreender a cultura religiosa dos povos é preciso entender a religião


como forma de conhecimento. O conhecimento geral possui procedimentos indutivo
e dedutivo. O conhecimento da religião encontra-se no procedimento dedutivo e,
assim como a arte e a filosofia, tem como objeto o mundo e a vida, buscando
soluções e interpretações da realidade a partir de distintas gêneses.
A origem da visão da religião se situa no campo da fé. A visão religiosa
principia por meio da vivência religiosa, ou seja, na experiência humana com a
divindade, que envolve fatores subjetivos. O acesso ao conhecimento religioso se
encontra para além do racional, no campo da experiência religiosa, na qual a religião
caminha em direção à totalidade do ser e busca interpretá-la.
O ser humano em sua dimensão transcendental cria a religião. Incapaz de
explicar a dinâmica dos enigmas da natureza, recorreu aos deuses, nos quais
encontrou significado e sentido, à título de revelação, acerca das incertezas dos
fenômenos naturais. As divindades, portanto, acalmavam e davam explicações
sobre fenômenos da natureza por meio de mitos, dando sentido aos vários aspectos
da vida e orientando as práticas vivenciais de vida que permitiam a sobrevivência do
grupo social.
A experiência com o sagrado gera o fenômeno religioso; este, por sua vez,
cria conhecimentos válidos que são aplicados à vida criando e/ou modificando a
cultura. Nesse encadeamento, os homens desenvolveram formas de vida, desde
seus primórdios, culturalmente religiosas. Nesse aspecto, a religião era o centro da
vida humana.
Sabe-se que o mito e as religiões procuram fornecer explicações
sobrenaturais do mundo, as quais são recepcionadas pelo ser humano devido à sua
fé incondicional a essas explicações, que se tornam dogmáticas, transformadas e
reproduzidas em técnicas para obter e conservar essa relação com o sagrado, que
são os ritos, sacramentos e as orações.

56
Os mitos versam sobre a origem dos deuses, teogonia e do mundo
cosmogonia, dos homens, de ritos religiosos, de preceitos morais, tabus, pecados e
redenção. Embora nem todas sejam assim, há religiões cujo corpo doutrinal e os
rituais religiosos têm sua gênese nos mitos. Longe de ser uma história falsa, o mito é
a linguagem da religião, que produz narrativas e descrições de uma realidade
transcendental. Se na religião os compêndios teológicos exigem comportamentos
diante das divindades, do sagrado e dos demais seres humanos, por meio dos mitos
o conhecimento abrange maior amplitude de mensagens, desde atitudes
antropológicas muito imprecisas, até conteúdos religiosos, pré-científicos, tribais,
folclóricos ou simplesmente anedóticos, que são aceitos e formulados de modo
menos consciente e deliberado, mais espontâneo, sem considerações críticas.
O reconhecimento da religião como forma de conhecimento deve considerar
a experiência religiosa, alicerçada em si mesma, e está no campo do sentimento, ou
seja, emotividade, e, da vontade, ou seja, volatilidade. O conhecimento religioso é
intuitivo. Sendo capaz de dar respostas aos enigmas do mundo e da vida, de um
alcance universal, mesmo que as múltiplas religiões apareçam diversamente, é
preciso reconhecer a especificidade do conhecimento advindo dos inúmeros e
diversos fenômenos religiosos, igualmente importantes e com sentido para seus
praticantes e fiéis.
Em sua origem, as culturas foram formadas a partir do conhecimento
rudimentar religioso que alimentou o senso comum (maneira de difusão do
conhecimento popular), que, posteriormente, foi realimentado em sinergia com o
conhecimento religioso que explica e perpetua a experiência religiosa inaugural que
constituiu o pensamento popular. Nesse processo, o senso comum é enriquecido
pelo conhecimento religioso permanentemente direcionando o conhecimento popular
e transformando-o em uma linguagem que oriente uma cultura religiosa.
É conveniente para a produção do conhecimento popular que este seja
falível e inexato, pois somente assim o conhecimento religioso se impõe como
infalível e dogmático, formatando, dessa forma, a cultura religiosa a partir dos
parâmetros da religiosidade dominante de cada época. Por conta dessas
características, o conhecimento religioso “[...] é um conhecimento sistemático do
mundo... como obra de um criador divino; suas evidências não são verificadas: está

57
sempre implícita uma atitude de fé perante um conhecimento revelado [...]”
(LAKATOS; MARCONI, 2003, p. 79).
O conhecimento religioso, ao tentar dar explicações acerca dos fenômenos
da natureza e da morte, o fez de forma dogmática, com base em revelações divinas.
Essas explicações se fundamentam nas causas primeiras, onde deuses inspiram o
ser humano para o conhecimento de fundamentação religiosa. E é por meio da
sacralização de leis, verdades e conhecimentos que as explicações são aceitas,
sem nenhum tipo de criticidade, nem filtro teórico.
É possível verificar a cultura religiosa, de forma rudimentar, nas religiões
primitivas. Malinowski (1984, p. 40) verificou que atos criadores da religião estão
relacionados com “[...] fases fisiológicas da vida humana [...]”. Ele inclui também “[...]
suas crises, como a concepção, a gravidez, o casamento e a morte, que constituem
o núcleo de inúmeros ritos e crenças [...]” (MALINOWSKI, 1984, p. 40). O formalismo
e o ritualismo são estabelecidos no início da vida a partir de complicados
entrelaçamentos de crenças e ritos. Por exemplo, na concepção, a gestante
participa de ritos cuja finalidade é em favor da vida no parto, evitando a morte. Já na
cerimônia sobre o nascimento, o ato da apresentação não tem finalidade específica,
mas apenas o ato em si, o fim em si; portanto, apenas a comemoração é enfatizada,
uma espécie de ação de graças.
A naturalização desses procedimentos na tradição fortalece a coesão do
grupo, afastando o risco de desagregação e desaparecimento existencial. E isso é
feito por meio da sacralização das crenças e práticas, e sua consequente rotulação
sob a insígnia do sobrenatural, que se torna um valor de sobrevivência, imprimindo,
inclusive, esse valor nas mentes de cada geração, mantendo a tradição que permite
a coesão social.
A cultura religiosa, portanto, se origina no fenômeno religioso ou nas
filosofias de vida na contemporaneidade, fomentando estilos de vida, identidades e
pertencimentos; e, se devidamente formatada para a valorização da vida, contribui
com as gerações atuais e futuras na superação dos desmandos da atual condição
degenerativa da sociedade. A multiplicidade das contribuições de cada religião, se
pautadas na humanização, pode produzir epistemologias de modos de vida coletiva
com base no respeito, na tolerância e na promoção da paz.

58
9 A CONTEMPORANEIDADE DO FENÔMENO RELIGIOSO

O fenômeno religioso como manifestação humana inspirada pelo sagrado,


caracterizado por rituais, cultos, ritos, cerimônias, símbolos, objetos religiosos e
oficiantes é compreendido na contemporaneidade a partir do conceito de Émile
Durkheim e Mircea Eliade. Perceberemos a religião como fato social, em Durkheim,
conferindo identidade, pertencimento e coletividade que sedimenta o fenômeno
religioso nas consciências das pessoas na contemporaneidade. Em Eliade (1992)
teremos a ideia da convivência de pessoas religiosas e irreligiosas cujas
permanências e recorrências se encontram simultaneamente no atual mundo
dessacralizado.
O ser humano vivendo em determinado espaço e tempo constrói sua
realidade e por ela é construído. Esse processo de retroalimentação (produção e
reprodução) na formação do ser humano está ligado ao acúmulo de conhecimento
advindo das interações que os humanos estabelecem entre si. “O homem é um ser
cultural, à medida que é um contínuo vir-a-ser, não sozinho, mas em relação.
Podemos entender cultura como o processo de humanização em que o homo
sapiens vai se tornando humano [...]” (KLERING, 2007, p. 27).
Émile Durkheim, sociólogo, em suas análises da sociedade conceituou o
termo fato social. Fatos sociais são conjuntos de hábitos de agrupamentos de
pessoas pelos quais é possível identificar a consciência coletiva de uma sociedade.
O caráter de exterioridade, generalidade e coercitividade dos fatos sociais permite
identificar a maneira do agir individual das pessoas influenciadas pela ação
padronizada da coletividade sobre elas.
Durkheim (2007, p. 154) indica que há instituições que exercem coerção e
moldam seu comportamento no âmbito de educação, dogmas religiosos, regras
jurídicas e morais, sistemas financeiros etc. Na modernidade dessacralizada, o
fenômeno religioso, que age coercitivamente, não restringe sua influência aos seus
locais de culto e muito menos aos seus fiéis; ele se exterioriza e se impõe na
sociedade, determinando comportamentos religiosos, os quais penetram no tecido
social que se consolida como uma consciência coletiva em determinado momento
histórico.

59
Os participantes de grupos religiosos reproduzem comportamentos
padronizados e customizados que se impõem pelos discursos teóricos disseminados
nesses agrupamentos, que são reinterpretados e formatam subgrupos, os quais, por
sua vez, passam a determinar a forma de suas condutas.
Para Geertz (2008, p. 90), “[...] os conceitos religiosos espalham-se para
além de seus contextos especificamente metafísicos, no sentido de fornecer um
arcabouço de ideias gerais em termos das quais pode ser dada uma forma
significativa a uma parte da experiência intelectual, emocional, moral [...]”.
A título de exemplo, um cristão enxerga o comunismo como manifestação do
anticristo e naturaliza esse termo associando-o a toda e qualquer desgraça ou teoria
da conspiração, colocando inclusive no sentido moral e cognitivo-afetivo. Essas
reelaborações são esvaziadas de sentido causal. Segundo Geertz (2008, p. 90), “[...]
uma sinopse da ordem cósmica, um conjunto de crenças religiosas, também
representam um polimento no mundo mundano das relações sociais e dos
acontecimentos psicológicos. Eles permitem que sejam apreendidos [...]”.
Representados e exteriorizados, os fenômenos sociais determinam nossas
formas de conduta, e os pensamentos religiosos são:

[...] poderes indefinidos, formas anônimas, mais ou menos numerosas


conforme as sociedades, às vezes, até reduzidas a unidade cuja
impessoalidade é perfeitamente comparável às forças físicas que têm suas
manifestações perfeitamente estudadas pelas ciências da natureza [...]
(DURKHEIM, 2000, p. 203).

Observando o processo de construção histórica dos fenômenos religiosos,


percebe-se o seu entrelaçamento com a cultura, cujos sentidos perpassam pelo
processo de transmissão da herança cultural construída na relação tóxica ou
saudável entre os humanos em si e a natureza.

Quando se estuda historicamente a maneira pela qual se formaram e se


desenvolveram os sistemas de educação, percebe-se que eles dependem
da religião, da organização política, do grau de desenvolvimento das
ciências, do estado das indústrias etc. (DURKHEIM: 1985, p. 26).

Uma vez que o ser humano é um ser cultural, ele constrói sua realidade
socialmente, e a estrutura dessa construção se materializa no cotidiano em forma de
ensino e aprendizagem informal. Esse processo é conhecido como inculturação.

60
Para Klering (2007, p. 27), “[...] é um movimento de saída de si e de retorno a si
mesmo, simultaneamente centrípeto e centrífugo, uma vez que o humano só se dá
na abertura aos diversos níveis e dimensões do indivíduo e na relação com os
outros, com a natureza e com o transcendente [...]”. Nesse processo, a linguagem
exerce importante fator para a produção do conhecimento, seja ela rudimentar e
antiga ou sofisticada e moderna.
Eliade (1992) apresenta elementos importantes e esclarecedores sobre a
relação entre cultura, conhecimento e religião e enfatiza que o homem primitivo é
incompreensível ao olhar do homem moderno cristão. Este desconhece as religiões
primitivas, mitológicas e antigas, o que o impede de compreender as recorrências e
sobrevivências do universo mental do homo religiosus
Etnograficamente é possível entender a percepção existencial do homo
religiosus para além das práticas cúlticas, transcendendo para comportamentos
denotativos de “[...] um estado de cultura mais arcaico do que aquele testemunhado
pela mitologia da Grécia clássica [...]” (ELIADE, 1992, p. 79). Tanto o sagrado
quanto o profano se articulam como elemento psíquico no ser humano, que traz
lembranças transcendentais, presentes, de forma mais sofisticada, na modernidade
da sociedade laica e do pensamento dessacralizado.
O pensamento do homem moderno (religioso e irreligioso) é demarcado
pelas recorrências e sobrevivências presentes nele e análogas ao ser humano
primitivo. O próprio pensamento científico moderno não escapa às nuances do
pensamento religioso. Essa evolução não é substitutiva do pensamento religioso,
mas historicamente adaptativa ao processo de dessacralização da sociedade
outrora religiosa. Assim, o caráter do pensamento científico está repleto de
sugestões que revelam princípios, pistas, éticas e lógicas religiosas; em uma
combinação não excludente, mas complementar, adaptada.
A experiência religiosa é demarcada pelo pensamento dos primitivos, que,
imerso na cosmovisão do sagrado, isto é, na sacralidade, evolui historicamente e
adequa-se na contemporaneidade dessacralizada. O homem primitivo homo
religiosus “[...] se esforça por manter-se o máximo de tempo possível num universo
sagrado [...]” (ELIADE, 1992, p. 14); na comparação com o seu contrário, o homem
dessacralizado, identifica-se como “[...] homens privados de sentimento religioso, do
homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado [...]” (ELIADE, 1992, p.

61
14). Dessa forma é possível reconhecer a presença e a ausência da noção da
transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico na
contemporaneidade.
Eliade (1992) apresenta dois mundos de pensamentos distintos na
contemporaneidade:

 O pensamento religioso, pautado no mundo com princípios que se


circunscrevem na completude, conduzindo o homo religiosus a
comportamentos que manifestem desejo de retorno ao tempo mítico;
e
 O pensamento científico que aponta para o futuro descontinuando as
narrativas míticas e das arquês e caminha em direção à evolução.

Vale salientar que, conforme Eliade (1992, p. 14), “[...] o mundo profano na
sua totalidade, o Cosmos totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na
história do espírito humano [...]”e uma vez que o homem primitivo mantinha sua
relação com o cosmo, em sua totalidade, como espaço privilegiado do sagrado na
maior parte da história humana, defrontamos com o ineditismo da dessacralização
da sociedade em um contraste que cria estranhamentos e desconfiança na
contemporaneidade.
O mundo dessacralizado abre um fosso de oposição entre o sagrado e o
profano, perceptível em várias dimensões: no espaço sagrado; no debate público; no
espaço público; na construção ritualística das casas; nas experiências no templo;
nas relações do homem primitivo com a natureza; no universo dos utensílios; na
consagração da vida; na própria sacralidade que se desdobra em atribuições da
própria vida como o trabalho; na alimentação; na sexualidade, etc. (ELIADE, 1992).
Se tudo isso que acabamos de descrever se reveste de sacralidade ao
homem religioso expressa na forma de sacramento, de comunhão com o sagrado;
para o homem contemporâneo, é apenas “[...] um ato fisiológico a alimentação, a
sexualidade etc. não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que
seja o número de tabus que ainda o envolva [...]” (ELIADE, 1992, p. 14).
Há dois centros distintos pelos quais o ser humano gravita na sua relação
com a realidade, cada um deles caracterizados de modos específicos de pensar,

62
agir, falar, etc. Nas palavras de Eliade (1992, p. 14), “[...] o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais
assumidas pelo homem ao longo da sua história [...]”. Dessa forma, as dimensões
existenciais sagradas ou profanos do ser humano “[...] dependem das diferentes
posições que o homem conquistou no Cosmos [...]” (ELIADE, 1992, p. 15).
Tendo o sagrado como centro, o homo religiosus tem hábitos na mesma
base do homem contemporâneo dessacralizado. Há um padrão de comportamento
do ser humano que se aproxima no tempo e no espaço, a despeito das
condicionantes culturais, dos obstáculos e dos tabus que criam pensamentos que
lhe são verdadeiros, sejam eles sagrados ou profanos (ELIADE, 1992).
Ao ver-se como microcosmos, o ser humano vê em si “[...] a santidade que
reconhece no Cosmos [...]” (ELIADE, 1992, p. 80); que leva sua vida pautada por
essa realidade cósmica. Para Eliade (1992), essa é uma experiência transumana,
portanto, cósmica, uma existência aberta. Assim, o homo religiosus, portanto, tem
sua existência aberta ao mundo, que se percebe parte do cosmo, vivendo nele em
seu interior. Essa vida aberta não se dá de forma inconsciente, mas “[...] permite ao
homem religioso conhecer-se conhecendo o Mundo e esse conhecimento é precioso
para ele porque é um conhecimento religioso, refere-se ao Ser” (ELIADE, 1992, p.
81).
A dupla dimensão da vida, a condição existencial humana concomitante com
participação de uma vida transumana faz toda ação humana ser sacralizada, isto é,
para o homo religiosus tudo que se faz existencialmente na realidade tem conotação
religiosa. Às principais funções fisiológicas, regiões e fenômenos cósmicos são
atribuídos significados religiosos. O ato de comer se torna um sacramento; a prática
sexual é ritualizada “[...] assimilada aos fenômenos cósmicos (chuvas, semeadura) e
aos atos divinos (hierogamia, Céu, Terra) e o casamento nas dimensões pessoais,
sociais e cósmicas [...]” (ELIADE, 1992, p. 82). Por sua vez, para o homem
dessacralizado, “[...] todas as experiências vitais, tanto a sexualidade como a
alimentação, o trabalho como o jogo foram [...] desprovidos de significado espiritual
[...]” (ELIADE, 1992, p. 81).
Essa sacramentalização da vida fisiológica tem correspondências
antropocósmicas nas religiões mais evoluídas na contemporaneidade, que para o
homo religiosus significam transpor a vida da experiência humana para o

63
transcendente, cósmico, transumano. Até a habitação para o homo religiosus é um
microcosmos, assim como seu próprio corpo.
Essas ideias são reinterpretadas historicamente pelas religiões e filosofias
de vida evoluídas, chegando à modernidade, como demonstra o pensamento
religioso indiano, onde, a título de exemplo, o religioso cosmiza o universo, bem
como a sua casa, que são tratados como corpo humano, como canal de trânsito
para o outro mundo, o dos deuses (ELIADE, 1992). Essas ideias religiosas, porém,
são inconcebíveis ao homem dessacralizado. Ao homem irreligioso nada disso tem
significado. Eliade (1992, p. 86) é taxativo: “[...] para os modernos desprovidos de
religiosidade, o Cosmos se tornou opaco, inerte, mudo: não transmite nenhuma
mensagem, não carrega nenhuma ‘cifra’ [...]”.
Na contemporaneidade, entretanto, há sentimentos religiosos no homem
irreligioso que ainda persistem, exclusivamente na zona rural, onde as populações
ainda respiram uma religiosidade pautada na sacralidade. Na sociedade urbana
industrializada, por sua vez, o cristianismo perdeu seus valores cósmicos; nas
cidades, a experiência religiosa se manifesta no âmbito estritamente privado, não
mais acessível ao cosmos. O mundo já não é sentido como obra de Deus, ao
contrário, ele é o caos, onde não deve ser habitado, por não ser mais cosmizado.
A vida existencial dos primitivos, envelhecidos historicamente, com sua
correspondente sacralização não desapareceu por completo sem deixar rastros; ela
está presente, em formatos e interpretações diferenciadas, e aperfeiçoada ao
padrão do mundo irreligioso, o que nos ajudou a ser o que somos na atualidade.
Somos seres humanos religiosos cuja dessacralização foi incompleta, por isso, há
vestígios do pensamento religioso no pensamento científico. Do transcendente no
imanente.
O homem irreligioso nega a transcendência, torna-se autossuficiente,
rejeitando toda forma de vida fora da existência histórica, pois, ao desmitificar- -se,
ele se torna ele próprio, liberto dos deuses. O homem profano, sendo produto do
passado, não o pode abolir; sendo herdeiro do homo religiosus primitivo, tem a
natureza religiosa, mesmo esvaziado de sentido cósmico, sacro. No esforço de
dessacralizar, os impulsos religiosos permanecem e buscam reatualizar ao estado
religioso.

64
Os homens sem religião ainda reproduzem comportamentos religiosos e “[...]
estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico religioso, mas degradado
até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível [...]” (ELIADE, 1992, p.
99). Exemplos sobre isso são abundantes: comemorações religiosas, como a
passagem de ano novo, mesmo dessacralizada, demonstram um ritual de iniciação;
os casamentos também continuam a ser realizados.
Há aspectos do religioso nos espetáculos, nos livros, nos cinemas, onde há
a reprodução de mitos, mitologias e religiosidades, que promovem êxtase. Até
mesmo o ato de ler permite ao homem a liberdade de sair do tempo histórico
contínuo.
Verificam-se comportamentos religiosos nas ações e nos gestos no homem
dessacralizado. Por exemplo, no trato do paciente, pela psicologia, quando da
reflexão sobre si na volta às suas origens em si mesmo, com reflexos às descidas
iniciáticas aos locais habitados por seres espirituais. Termos como luta pela vida,
sofrimentos, torturas morais são associadas aos ritos de passagem para a vida
adulta.
Dessa forma, entende-se que o homem profano, sendo descendente do
homo religiosus, traz em seu bojo elementos comportamentais “[...] de seus
antepassados religiosos, que o constituíram tal como ele é hoje [...]” (ELIADE, 1992,
p. 100). As crises existenciais acionam a aura religiosa do inconsciente que
provocam questões acerca do sentido da vida, do passado, do futuro, do sentido da
existência; pois esta, vazia de sacralidade, da percepção do cosmos e de si, cria um
vácuo existencial, que ao final é uma crise religiosa.
65
Em suma, mesmo sem auxílio do cosmo, sacralizado, que inexiste nas
sociedades modernas laicizadas, o homem irreligioso é auxiliado pelos seus
arquivos inconscientes, e por isso tem possibilidade de abrir-se ao cosmos, mesmo
que parcialmente. Assim “[...] o inconsciente oferece-lhe soluções para as
dificuldades de sua própria existência e, neste sentido, desempenha o papel da
religião, pois, antes de tornar-se uma existência criadora de valores, a religião
assegura-lhe a integridade [...]” (ELIADE, 1992, p. 102).
A latência da religião encontra-se em seu inconsciente, pronto a despertar
diante das crises que lhe afligirem, “[...] que significa também que as possibilidades
de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito
profundamente neles próprios [...]” (ELIADE, 1992, p. 102). Partindo do pressuposto
de que, no século XXI, o mundo se encontra em constante crise, a busca pelo
sagrado, mesmo que parcial, é de cunho particularista, manifestada em conceito de
espiritualidade em vários nuances e formas mundo afora.
O crescimento das inúmeras religiões mundiais demonstra essa forma
rascunhada de tentativas de voltar às origens, à criação, ao tempo sagrado,
constituindo-se em um lugar qualquer, que caracterize para si o centro do Cosmos,
onde estão os deuses que permitem segurança a integridade. É o homo religiosus
que pulsa no interior do homem irreligioso. Essas são as aproximações propostas
aqui: do primitivo ao primitivo reinterpretado, ou seja, irreligioso, mas nunca em um
estado puro, mas sincretizado na relação religião-ciência. As múltiplas formas de se
relacionar com o sagrado, na contemporaneidade, estão além de suas formas
institucionalizadas, presas à estrutura religiosa. A dessacralização do mundo
contemporâneo desde a modernidade permitiu a existência de pessoas irreligiosas
com as religiosas, todos envoltos em uma estrutura religiosa enraizada, no mundo
ocidental, na religiosidade judaico-cristã, mas mesclada com contribuições das
religiosidades orientais, africanas e indígenas.
Assim como não existem cultura puras, também inexistem religiosidades
puras, uma vez que o trânsito religioso, acirrado no mundo globalizado, permitiu
aproximar religiosidades, de forma que o ser humano transita em vários universos
religiosos e formata sua religiosidade de forma multifacetada, a despeito do seu
pertencimento às matrizes religiosas específicas das religiões institucionalizadas.

66
10 DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSA

A contemporaneidade apresenta uma tessitura social e cultural


extremamente complexa. Isso não significa que em períodos anteriores a pluralidade
de ideias, culturas e modelos políticos e econômicos não existissem ou que fossem
menos distintos entre si. Significa, sobretudo, que dignificar a diferença é um
reconhecimento estritamente contemporâneo. Iniciou-se na modernidade em virtude
do papel que a razão assumiu nas ciências, principalmente nas ciências humanas,
que se desmembraram em áreas voltadas ao estudo da cultura como objeto
principal, como a antropologia. Contudo, o discurso essencialmente racionalista, ao
mesmo tempo em que promoveu nas ciências humanas o cientificismo, classificou
culturas não ocidentais como “incivilizadas”. Eram consideradas sociedades
evoluídas aquelas com significativo progresso, que as incluíam no rol das
sociedades civilizadas, criando uma alteridade depreciativa entre o “nós” e o “eles”.
Com o fim da modernidade, as ciências humanas se abriram para outras
formas de fundamentação teórica além da racional-científica. Passaram a considerar
outras teorias que não tinham caráter estritamente científico e empirista, como a
metafísica, a ontologia, entre outras. Essa abordagem envolve os termos
“pluralismo” e “diversidade”, que apresentam conceitos distintos. Recentemente,
essa distinção vem sendo reivindicada por autores como Beckford (2003) e Berger
(2014) sob o argumento de que o pluralismo é normativo, enquanto a diversidade é
descritiva. Beckford (2003, p. 268, tradução nossa) argumenta que “[…] o pluralismo
é uma resposta ideológica ou normativa à diversidade empírica”. Isso significa que
pluralismo e diversidade são sistemas autônomos: um não decorre necessariamente
do outro. Além disso, a diversidade tem um caráter mais empírico, sendo aquilo que
existe de diverso em uma sociedade; já o pluralismo tem um caráter ideológico que
celebra a diversidade, que a reconhece. O pluralismo está associado à normatização
da diversidade como positiva, pensamento necessário aos estudos sobre a
sociedade contemporânea a partir da secularização decorrida da modernidade e
aprofundada na atualidade. Já a diversidade mantém o caráter factual, de
constatação da diversidade de modo metodológico e analítico.
Ao fim da década de 1990, a diversidade foi tema de debates em diversas
convenções da Unesco que, por sua vez, passou a promover o termo como aquilo

67
de múltiplo que há em diversos grupos sociais. Segundo Wood (2003) e Berger
(2014), essa promoção do termo “diversidade” fez surgir uma bifurcação conceitual:
distingue-se a diversidade autônoma do pluralismo da diversidade empírica. A
dignificação do termo criou uma divisão entre a diversidade tal como passou a ser
pensada e entendida (ou até institucionalizada academicamente) daquela que já
existia nas sociedades. Etimologicamente, o termo advém do latim diversitas,
pensado sinonimamente em relação à diferença e variedade. Descritivamente, a
diversidade significa a representação da multiplicidade cultural e/ou a qualidade do
que é diverso frente à homogeneidade ou à monocultura. Como podemos notar, a
diversidade aparece sempre associada à pluralidade, de acordo com Crystal (2002,
p. 33, tradução nossa), “[...] incorrigivelmente plural” e, por isso, sempre pensada em
relação à cultura.
Podemos compreender que a diversidade, longe de ser um conceito relativo,
consegue abarcar uma tipologia complexa, o que leva diversos autores, como
Johnson e Grim (2013), Wood (2003), Gardenswartz e Rowe (c2016), entre outros, a
pensarem definições diversas para o termo. As definições diferem e ao mesmo
tempo se completam, o que é possível justamente pela tipologia da diversidade.
Segundo Johnson e Grim (2013), a diversidade interna é caracterizada por um grupo
étnico ou religioso, e a diversidade externa pode ser pensada a nível social. Já para
Gardenswartz e Rowe (c2016), a diversidade se divide nas quatro camadas a seguir.

 Organizacional: relaciona-se ao local de trabalho.


 Externa: reporta-se às escolhas individuais, como religião, educação
e hábitos.
 Interna: associa-se a características próprias do nascimento, como
etnia e gênero.
 Personalidade: relaciona-se à personalidade individual.

Podemos observar que, mesmo sendo um conceito, a diversidade se mostra


multifacetada em sua compreensão; por isso, havendo segmentação em seu estudo,
o que melhor a define é a heterogeneidade. Pensar a fração, que nada mais é a
divisão, a decomposição da diversidade em seus segmentos, é essencial para
compreendê-la em sua ampla manifestação cultural.

68
É nesse contexto que encontramos a fração religiosa que compete à
diversidade. Segundo Alesina et al. (2003), essa fração é a que se mostra menos
arbitrária, justamente porque a religião é melhor delimitada entre os grupos. Isto é, a
distribuição de grupos religiosos, via de regra, é regionalizada em comunidades. A
heterogeneidade cultural aparece em blocos maiores, que são grupos localizados
em determinadas regiões. Dificilmente, segundo Alesina et al. (2003), encontramos
indivíduos pertencentes a uma religião e afastados totalmente de suas comunidades
e instituições que possibilitam a prática de sua fé. Portanto, o estudo sobre a
diversidade cultural religiosa encontra-se, muitas vezes, atrelado à distribuição
demográfica dos grupos que compõem determinada sociedade e cultura.
Com essa delimitação fundamental do que se entende por diversidade,
podemos compreender a diversidade cultural em relação às manifestações
religiosas no Brasil. Na convenção de novembro de 2001, a Unesco proclamou a
Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. Em seu primeiro artigo, encontra-
se o reconhecimento sobre a diversidade cultural como uma herança comum da
humanidade (UNESCO, 2002). Além disso, se retomarmos a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, encontramos, em seu artigo XVIII que:

[…] toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e


religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a
liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em
particular (NAÇÕES UNIDAS, 1948, documento on-line).

No Brasil, temos a Carta Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988), que defende a


liberdade de consciência de crença, o direito ao exercício dos cultos e liturgias, bem
como o Programa Nacional dos Direitos Humanos, que, além de combater a
intolerância religiosa, incentiva o diálogo entre diferentes movimentos religiosos
“[…] sob o prisma da construção de uma sociedade pluralista, com base no
reconhecimento e no respeito às diferenças de crença e culto” (BRASIL, 2010, p.
210). Essas declarações e programas, portanto, buscam não só garantir o direito à
crença e a seu exercício, mas também promover o debate entre pessoas de
religiões diferentes. Isso ocorre em virtude além das conquistas históricas de direitos
em relação ao exercício de religiões não oficiais, ou não hegemônicas da própria
percepção da diversidade de culturas religiosas como fundamental à humanidade.

69
Isto é, há algo em comum em todas as manifestações religiosas, por mais distintas
que sejam em suas doutrinas e contextos: a busca por um sentido metafísico.
Essa constatação, possível graças às ciências das religiões, permite
identificar em diversas religiões fenômenos individuais e sociais semelhantes, a ideia
de um sagrado, rituais, cultos, celebrações, instituições que acolhem seus membros,
além do uso de utensílios e instrumentos simbólicos. Essas semelhanças, de acordo
com Corrêa (2008), evidenciam a necessidade de institucionalização das práticas
religiosas como forma de reconhecimento e dignificação de suas existências em
uma sociedade. Por mais que cada religião seja singular em sua formação histórica
e cultural, elas se equiparam frente à necessidade de garantias e direitos
constitucionais. Ao garantir a existência de crenças antagônicas, o Estado passa a
reconhecer de forma pública a legitimidade dessas instituições religiosas e, por sua
vez, promove a diversidade cultural.
Em relação ao Brasil, podemos dizer que é essencial que o Estado garanta
direitos à liberdade de crença e seu exercício. Muito disso se deve não somente à
multiplicidade cultural e religiosa que identificamos na atualidade, mas também à
própria formação cultural heterogênea de nosso país. Lembremos que o Brasil,
desde sua formação como país colônia, apresenta um mapa religioso diversificado.
Em princípio, quando tratamos de cultura brasileira, é necessário retomar essa
diversidade original: povos indígenas, africanos e colonizadores portugueses.
Posteriormente, com a chegada dos imigrantes europeus e orientais, essa
diversidade se acentuou ainda mais.
No que compete à diversidade religiosa, é imprescindível que reconheçamos
a contribuição desses povos ao que chamamos aqui de diversidade empírica.
Apesar dos contornos históricos distintos em relação à chegada de cada um desses
povos ao Brasil (ou em relação aos que aqui já estavam), a fixação dessas culturas
em solo brasileiro fez com que a diversidade fosse vivida e, atualmente, é uma das
características mais fortes do país. Como ressalta Ribeiro (1995, p. 20), “[…] o Brasil
emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado de características próprias,
mas atado genericamente à matriz portuguesa, cujas potencialidades insuspeitadas
de ser e de crescer só aqui se realizariam plenamente”. Essas características
lusitanas possibilitaram a implementação do catolicismo como religião hegemônica,

70
que perdurou até segunda metade do século XX. Muito recentemente, as religiões
de outras matrizes passaram a serem reconhecidas pelo Estado brasileiro.
Na segunda metade do século XX, as religiões reconhecidas ainda eram
aquelas ligadas ao cristianismo; outras religiões, distintas em suas definições de
sagrado, ficavam à margem do reconhecimento social, principalmente as de
matrizes africanas, que se tornaram o principal alvo de intolerância religiosa. Isso
evidencia o racismo estrutural da sociedade brasileira, que mantém resquícios da
escravidão. Por serem religiões que sincretizam elementos do cristianismo (imposto
aos negros escravizados) com a filosofia e a teologia africana, essas religiões foram,
e são vistas ainda hoje, de forma depreciativa.
Conclui-se, a partir dessas noções, que a diversidade é um tema emergente
na sociedade contemporânea, na medida em que as práticas ideológicas
hegemônicas passam a apresentar fissuras, o que se reconhece no tecido social:
percebe-se o surgimento de uma heterogeneidade cultural insurgente ao final do
século XX. Muito disso se deve ao progresso acelerado decorrente da globalização
e do avanço tecnológico, que possibilitou a disseminação de pensamentos e culturas
de forma simples e rápida. Por isso, atualmente, pensar o pluralismo religioso é
essencial para promover respeito, liberdade e equidade entre as instituições
religiosas e seus membros.

10.1 Ensino religioso na promoção do respeito à diversidade

A escola é o primeiro ambiente social que garante certa autonomia à


criança. Por mais que a criança conviva com outros indivíduos, até da mesma faixa
etária, é na escola que ela se vê em um ambiente composto por pessoas que não
estão ali crucialmente por uma relação de afeto. É na escola que a criança percebe
o outro com suas necessidades e diferenças. Portanto, é na escola que a criança se
coloca socialmente. Nessa experiência, os valores morais também se mostram, o
que demonstra que a gestão do espaço escolar do ponto de vista ético é
extremamente importante para o desenvolvimento do respeito frente à diversidade.

71
O ensino religioso é uma ferramenta para que a escola promova o debate e
a compreensão de culturas diversas, tão importantes em um país que, apesar da
constituição multiétnica, tem altos índices de violência por intolerância em relação a
racismo, homossexualidade, religiões não cristãs, entre outros. No Brasil, as
diretrizes curriculares são direcionadas ao ensino público. As diretrizes para o
ensino religioso, por sua vez, têm como base as ciências das religiões, instituindo
como tarefa da disciplina a promoção da diversidade religiosa com uma metodologia
que compreenda, no mínimo, as manifestações religiosas dos alunos em questão.
Contudo, a assimilação cultural, educacional e formativa dessa forma de trabalhar o
ensino religioso, atualmente, encontra discussões. Para compreendê-las, voltemos
brevemente à origem da instituição escolar brasileira.
A escola pública brasileira, segundo Lobrot (1992), foi originalmente
concebida de acordo com os ideais promovidos pela burguesia que aderiu ao
protestantismo luterano em consonância com os ideais iluministas da modernidade.
Isto é, para o autor, a escola pública tal como é concebida na atualidade pouco

72
mudou em relação a sua concepção original e sua estrutura. Trata-se da
institucionalização e da formalização da escola entre os séculos XIV e XVIII: a
burguesia, após a Reforma Protestante de Lutero, se viu obrigada a atender aos
ideais protestantes de criar acesso público à educação para que todos pudessem ler
as Escrituras Sagradas. Dessa fora, foram surgindo escolas voltadas à alfabetização
e à educação moral.
Progressivamente, com o aumento da população instruída intelectualmente,
pensamentos sobre a necessidade de laicização econômica, social e cultural foram
ganhando força. Segundo Lobrot (1992), esse processo ainda persiste no modelo
curricular escolar público, que privilegia os conteúdos racionais e cognitivos ainda
como rastro do racionalismo científico da modernidade. Isso pode explicar a
presença na realidade escolar de pensamentos hegemônicos que ainda relutam
frente às disciplinas que trabalham outra dimensão do conhecimento humano. A
hegemonia do discurso religioso que desqualificava o argumento científico, portanto,
deu lugar à hegemonia do racionalismo científico. O ensino confessional foi
substituído pelo ensino voltado às disciplinas exatas e, com isso, foi se criando uma
hierarquia reversa que acaba não valorizando o conhecimento de forma equilibrada
e integral.
O objetivo da educação ainda apresenta, segundo Lobrot (1992), por meio
de um corpus propedêutico, a produção de indivíduos que sirvam como mão de obra
necessária à Industria, ainda que contemporânea. Na modernidade, o racionalismo
acabou por hierarquizar o conhecimento, bem como o tempo entre os conteúdos, o
que ficou fixado como essencial à formação de qualquer sujeito, ao menos no que
compete à escola pública. Com isso, a escola passou a formar indivíduos prontos
para desenvolver atividades ligadas às esferas técnicas e econômicas, ocorrendo a
desvalorização das humanidades e um deficit no desenvolvimento integral dos
alunos. Resta a indagação: como pode a escola ser pensada como lugar de
promoção à diversidade se o seu currículo ainda privilegia um pensamento
hegemônico sobre a educação?
Segundo Gimeno Sacristán (1995), esse modelo ainda vigente se faz
presente não só na promoção das disciplinas racionalistas a saber, aquelas que não
levam à reflexão crítica sobre a existência e a sociedade, mas também na linguagem
padronizada e no modelo de avaliação, acarretando na hegemonização do

73
conhecimento no sentido hierárquico do que se deve conhecer. Consequentemente,
observa-se a negação da diversidade cultural, na medida em que o currículo
apresenta uma seleção de alguns conhecimentos em detrimento de outros.
Na disciplina de ensino religioso, encontramos duas concepções
curriculares:

 A da escola como instrumento fundamental de evangelização,


contribuindo para o sistema civilizatório e colonizador;
 A que rejeita o ensino confessional como fundamento do ensino
religioso.

Por mais que tenha ocorrido a desconsideração moderna da religião em


favor da secularização social, o ensino religioso como ensino confessional serviu
muito bem ao ideal racionalista da modernidade em sua estrutura educacional.
Questões subjetivas passam a ser vistas como menos importantes na formação do
sujeito, o que acaba sendo sanado pelo discurso religioso em alguns aspectos.
Pensar as humanidades nesse contexto e, com elas, o ensino religioso como
instrumento de promoção à diversidade se mostra um desafio. Por mais que o
currículo atual busque privilegiar a diversidade, o modelo escolar público ainda
resiste estruturalmente moderno. Por outro lado, no século XXI vimos a reinserção
de disciplinas como filosofia e sociologia no currículo escolar, que se encontravam
subalternas às disciplinas de estudos sociais desde a censura ditatorial. Isso abre
um espaço para pensar essa formação integral como essencial ao currículo, por
mais que a carga horária dessas disciplinas sejam reduzidas em comparação às
disciplinas somente racionalistas (matemática e gramática, por exemplo). O ensino
religioso passa a ser implementado em seu caráter epistemológico, o que contribui
para a discussão sobre a diversidade religiosa e a promoção de culturas outras no
ambiente escolar:

Também as filosofias de vida se ancoram em princípios cujas fontes não


advêm do universo religioso. Pessoas sem religião adotam princípios éticos
e morais cuja origem decorre de fundamentos racionais, filosóficos,
científicos, entre outros. Esses princípios, geralmente, coincidem com o
conjunto de valores seculares de mundo e de bem, tais como: o respeito à
vida e à dignidade humana, o tratamento igualitário das pessoas, a
liberdade de consciência, crença e convicções, e os direitos individuais e
coletivos (BRASIL, 2018, p. 441).

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De acordo com Ribeiro (2009), isso exige uma didática específica pensada
diretamente segundo o termo religiosidade:

 Dignificar as experiências, memórias e valores de todos os alunos


igualmente;
 Promover o diálogo com base nessas distintas prospecções de
mundo, buscando incitar a abertura e o acolhimento de uns com os
outros;
 Explorar as culturas e contextos religiosos, sempre buscando
relacioná-los à vida ordinária em seus múltiplos aspectos.

Essa didática, segundo Ribeiro (2009, p. 242), possibilita que a religiosidade


seja vista e vivida pelos alunos como naturalmente humana, que “[…] pode
promover uma aproximação entre a diversidade religiosa e algumas conquistas da
modernidade, como a ética de um universal humano, transreligioso e transfilosófico”.

11 TRADIÇÕES, RITOS E CRENÇAS NO BRASIL

A última grande pesquisa sobre as religiões presentes no Brasil foi o Censo


do IBGE de 2010, que identificou a existência de dezenas de religiões no país
(IBGE, 2010). Para estudá-las, costuma-se dividi-las em matrizes religiosas para
designar eixos paradigmáticos e defini-las conforme sua origem geográfica e
histórica, além da identidade de seus elementos. São quatro as principais matrizes
religiosas no Brasil: indígena, ocidental-europeia, africana e oriental.
A matriz indígena é uma das mais variadas em formas e religiões. Até
mesmo povos da mesma etnia podem ter mitologias, crenças e manifestações
religiosas próprias. Com base em Eliade e Couliano (1993), é possível identificar
dois grandes paradigmas referentes às religiões indígenas no Brasil. O primeiro é
identificado como “religiões da Floresta Tropical”, que se refere mais
especificamente às religiões dos povos que habitam a Bacia Amazônica até as
Guianas. O segundo é identificado como “religiões do Gran Chaco”, que são as
religiões do centro do continente sul-americano entre o Mato Grosso e os Pampas.
75
As divindades das religiões da Floresta Tropical “[…] ocupam uma posição
intermediária entre um ser supremo e um herói cultural, sendo esta última função
mais marcada” (ELIADE; COULIANO, 1993, p. 53). Essas religiões têm em comum a
existência de um universo invisível e suprassensível, capaz de ser acessado apenas
por meio de estados alterados de consciência “[…] como o sonho, o transe, a visão
provocada pela inalação de drogas, etc., ou ainda por uma predisposição mística
natural adquirida após um treino especial” (ELIADE; COULIANO, 1993, p. 54). Outro
elemento comum são as crenças em espíritos que assumem diferentes papéis,
como seres que controlam animais e outros elementos da natureza, além de
espíritos de antepassados que, de algum modo, participam da vida dos vivos. Os
xamãs ou pajés são os especialistas religiosos com funções de cura do corpo social
e do corpo humano. Os pajés costumam acumular o papel de curandeiros e
orientadores sociais, políticos e espirituais.
As Religiões do Gran Chaco se assemelham às das Florestas Tropicais em
relação à instituição do xamanismo e na crença de seres sobrenaturais que habitam
um mundo invisível e sobreposto ao mundo dos seres humanos. Há mitos que
contam a origem do mundo e dos seres que nele habitam, além de explicarem as
relações entre os seres. As religiões descrevem de modo distinto os seres
sobrenaturais supremos com características de heróis culturais ou divindades
(ELIADE; COULIANO, 1993).
O cristianismo faz parte da matriz ocidental-cristã brasileira, introduzido no
Brasil com a chegada dos portugueses a partir de 1500, sendo considerada religião
oficial do país até o fim do século XIX (WACHHOLZ, 2011). Na atualidade, o
cristianismo é, em número de adeptos, a principal matriz religiosa brasileira, ainda
em constante mudança. No entanto, a partir 1991, identifica-se a diminuição do
número de católicos no Brasil e o aumento do número de evangélicos (IBGE, 2010).
Destaca-se, na história brasileira, a catequização forçada de populações
indígenas e dos africanos trazidos como escravos ao Brasil, bem como a proibição
de crenças judaicas e protestantes. O cristianismo foi amplamente imposto aos
povos ameríndios e aos africanos escravizados, utilizado como sistema ideológico
de reforço da hierarquia social por meio da elaboração e da imposição de duas
teologias (WACHHOLZ, 2011):

76
 A da culpabilização, que tinha como alvo os povos não cristãos e se
destinava à denúncia dos “pecados” dos “selvagens”;
 A da acomodação, que cria uma ética tranquilizadora da consciência
dos escravocratas, por meio de pensamentos fatalistas de que tudo é
a vontade de Deus, além de ressaltar a necessidade de tutelar,
ensinar e “converter” os povos “selvagens” da desgraça do inferno.

Em relação aos protestantes, antes do século XIX sua presença foi pontual,
porque, após a invasão holandesa, foi aprovada uma lei que proibia a presença de
“estrangeiros” no Brasil, legislação que tinha o evidente objetivo de evitar outras
invasões e consolidação dos poderes monárquicos português e brasileiro, bem
como impedir a expansão protestante, indo contra calvinistas franceses, reformados
holandeses, anglicanos, protestantes alemães, entre outros (WACHHOLZ, 2011).
A partir do século XIX, observou-se a inserção de diversas correntes
protestantes no Brasil, que de um modo ou de outro confrontavam o catolicismo por
meio de propostas de denotar as inverdades e irrealidades da fé católica. Wachholz
(2011, p. 793) afirma que “[…] o protestantismo precisou do solo católico para se
firmar, negando e estigmatizando, contudo, esse solo. Inversamente, o catolicismo
romano precisou se reinventar a partir da inserção do protestantismo, igualmente
estigmatizando e negando-o”. É, portanto, uma política de retroalimentação, com
ambos buscando atingir supremacia.
Em relação à matriz africana, Prandi (1998) explica que a formação das
religiões afro-brasileiras envolve as crenças dos africanos trazidos na diáspora, as
relações e hierarquias socais já existentes no Brasil e a relação com as demais
crenças e religiões. Segundo o autor, podemos separar o processo de formação
dessas religiões em três momentos: sincretização, branqueamento e africanização.
A sincretização ocorreu a partir da chegada dos africanos escravizados no
Brasil, formando religiões e práticas a partir do sincretismo com o catolicismo
imposto a eles e a religiões indígenas. Prandi (1998) explica que muitas práticas
religiosas africanas se fundam em cultos ancestrais baseados nas famílias e suas
linhagens, o que não pode ser reproduzido, uma vez que, com a escravidão,
deterioraram-se as estruturas sociais e familiares tradicionais. Por isso, a religião
tradicional pode ser apenas parcialmente reproduzida.

77
Esses fatos, geraram, principalmente, duas consequências. O catolicismo
ganhou força como cultura de inclusão das populações negras após o fim da
escravidão e gerou o efeito de uma dupla ligação religiosa estabelecida a partir do
sincretismo. Desse modo, somente a partir dos anos 1960 e em razão das tradições
culturais preservadas, é que as religiões de matriz africana começaram a afirmar
suas origens, podendo ser legitimadas na vida social.
O branqueamento se refere ao processo de formação da umbanda no início
do século XX, que decorreu da junção de elementos do espiritismo kardecista,
preceitos cristãos e tradições do candomblé. A formação da umbanda foi um
processo para “[…] ‘limpar’ a religião nascente de seus elementos mais
comprometidos com a tradição iniciática secreta e sacrificial, tomando por modelo o
kardecismo, que expressava ideais e valores da nova sociedade capitalista e
republicana, ali na sua capital” (PRANDI, 1998, p. 157).

Apesar de diversas alterações, como a eliminação quase completa de


sacrifícios de sangue e utilização da língua vernácula, manteve elementos do
candomblé. Uma das principais mudanças desse período foi interferir em hierarquias
sociais rígidas e incentivar a mobilidade social, tornando-se uma religião aberta a
todos, irrompendo na origem social ou racial de seus praticantes. Isso, porém, até o

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final dos anos 1950, ainda era uma tentativa de apagar as origens africanas da
religião com a predominância de práticas brancas e europeias (PRANDI, 1998).
A partir dos anos 1960, houve um processo de africanização do candomblé
e de religiões afro-brasileiras. Nesse período, marcado por efervescências culturais
e de contracultura, passaram a ser valorizados aspectos culturais, antropológicos e
da cultura negra. A africanização do candomblé, nesse contexto, significa:

[…] o retomo deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos


ritos e mitos que foram deturpados e perdidos adversidade da diáspora;
voltar à África não para ser africano nem para ser negro, mas para
recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho,
sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura
que já é ao mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil já se
reconhece no orixá (PRANDI, 1998, p. 161-162).

Africanizar não significa propriamente viver como os africanos. Trata-se de


valorizar o simbolismo próprio do candomblé, legitimá-lo como religião, recuperar
sua autonomia em relação ao catolicismo, etc. Em todo esse processo, a religião
também passa por transformações, se altera, mas se legitima como religião,
elemento e patrimônio cultural brasileiro (PRANDI, 1998).
As religiões de matriz oriental, por sua vez, são bastante numerosas e
incluem algumas das mais antigas que se tem registro, como o hinduísmo, o
budismo, o confucionismo, além de outras denominadas “novas religiões” orientais,
como a messiânica, a seicho-no-iê, a perfeita liberdade e a tenrikyo.
O fluxo migratório das populações orientais define, em grande medida, a
expansão dessas religiões no Brasil. As imigrações de japoneses ao Brasil, que
começaram oficialmente em 1908 e findaram aproximadamente após a Segunda
Guerra Mundial, trouxeram diversas religiões e influências religiosas. Segundo o
Censo do IBGE (2010), as religiões orientais com maiores números de adeptos no
Brasil são o budismo e as chamadas “novas religiões” orientais de origem japonesa.
Não é de se negar, porém, a existência e a influência de outras práticas comumente
vistas no Brasil, como ioga e meditação.

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