Irrigando Desertos

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Irrigando desertos: educação

e imaginação em C.S. Lewis


Irrigating deserts: education and imagination
in C.S. Lewis

Irrigación de desiertos: educación e imaginación


en C.S. Lewis

Gabriele Greggersen

RESUMO
O objetivo do artigo, baseado no livro de C.S. Lewis, A Abolição do Homem, é compreender
e discutir a importância da imaginação numa educação baseada no Tao. Perguntamo-nos em
que situações e em que medida a educação se torna um deserto e como o uso da imaginação
pode remediar essa situação? Após a compreensão e discussão dos aspectos essenciais do
livro e de sua importância na educação, faremos algumas aplicações da filosofia educacional
de A Abolição do Homem à educação que se queira cristã. A questão central é: O que pode-
mos aprender do homem imaginativo, C.S. Lewis, e essa obra em particular sobre educação,
numa perspectiva cristã?
Palavras-chave: C.S. Lewis; imaginação; educação cristã.

ABSTRACT
The aim of the paper, that is based on the book of C.S. Lewis, The Abolition of Man, is to
realize and discuss the importance of imagination in an education based on the Tao. We are
asking in which situations and in which measure education is becoming desertic and how
can the use of imagination remediate that situation? After the understanding and discussion
of the essential aspects of the book and of its importance to education, we will apply the
philosophy of education of The Abolition of Man to an education which is Christian. The main
question is: what can we learn from the imaginative man in C.S. Lewis and this particular
work about education in a Christian perspective?
Keywords: C.S. Lewis; imagination, Christian Education.

RESUMEN
El propósito del artículo, basado en el libro de C.S. Lewis, La Abolición del Hombre, es com-
prender y discutir la importancia de la imaginación en una educación basada en el Tao. Nos
preguntamos en qué situaciones y en qué medida la educación se convierte en un desierto
y cómo el uso de la imaginación puede remediar esta situación. Después de comprender y
discutir los aspectos esenciales del libro y su importancia en la educación, haremos algunas
aplicaciones de la filosofía educativa de La Abolición del Hombre a la educación que quiere
ser cristiana. La pregunta central es: ¿Qué podemos aprender del hombre imaginativo, C.S.
Lewis, y de este trabajo en particular sobre educación, desde una perspectiva cristiana?
Palabras clave: C.S. Lewis; imaginación; educación cristiana.

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Introdução

Neste artigo, vamos apresentar e debater as implicações do livro de C.S.


Lewis, intitulado Abolição do Homem para a educação, particularmente a cristã.
Na obra, ele fala que a humanidade está prestes a se autodestruir, principal-
mente, se ela continuar a avançar em certas tendências de pensamento que se
manifestam em especial na educação. Lewis começa seu estudo, tratando de
um livro didático de língua e literatura inglesa para crianças. E na exposição,
ele vai argumentando e debatendo com os autores do livro, cujos nomes ele
substitui por outros fictícios e o livro, chama de Green Book [Livro verde]
por motivos éticos. Parafraseando a frase auge desse livro, ela diz que na
educação, não importa “derrubar florestas”, mas “irrigar desertos”. Vamos
tentar entender o que essa frase quer dizer a partir de uma metáfora.
Imagine-se perdido no meio de um deserto. Você está morrendo de sede
e tem uma visão do famoso oásis. E você contempla aquela imagem. Muitos o
advertiriam, dizendo: “não, essa imagem é pura ilusão”, “ela é fruto do seu de-
sejo, da sua sede, da sua psiqué que está tentando te enganar.” Então, o homem
ou mulher céticos dariam de ombros e caminhariam na direção oposta dela.
Na verdade, uma miragem, por mais distorcida que possa parecer, serve,
sim, para alguma coisa. Ela pode ter alguma distorção ocasionada pelo seu
desejo, mas ela é basicamente uma imagem objetiva, um fenômeno ótico
e, portanto, ela é dotada de fundamento na realidade concreta. Ela é um
fenômeno tão ótico, que se poderia tirar fotos dela, de tão real que é. Ela
pode até aparecer distorcida, ou de cabeça para baixo, porque ela é resul-
tante de reflexos, ou pode ser ampliada, como acontece no retroprojetor:
a imagem que fica sobre o vidro é lançada para frente de forma ampliada.
Hoje isso acontece de forma inteiramente digital com o uso do data-show.
Considerando que ela pode ter fundamento real, para que ela pode servir?
Muitas pessoas diriam: “Ela serve para motivar, para a pessoa ter esperança
de acabar conseguindo achar sombra e água fresca.
No entanto, ela faz mais do que nos acalmar e servir de estímulo psi-
cológico, ela mostra a direção, o rumo, o caminho que você deve seguir. Ali,
naquela direção é que há esperança. Não é para cá, nem acolá, nem para trás.
É para frente, em direção a ela, que você deve caminhar. E muitas vezes ela
não está bem ali onde você pensa que ela está. Comumente, está mais longe
do que você está pensando e enxergando.
É o mesmo que acontece quando você anda no asfalto quente, debaixo
de muito sol, e parece que ele está brilhoso, cintilante. E quando vem um
caminhão, parece que ele está em cima devocê, mas, na verdade, ele demora

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a chegar. O mesmo fenômeno acontece quando você olha para uma ilha
num dia muito quente, e pensa que ela está a seu alcance, se der umas boas
braçadas. Então, você entra em um barco e parece que o traslado demora
muito mais do que o esperado.
O sonho e a utopia (lembrando que u-topos, significa “não lugar”: não
apenas no sentido do inexistente, mas de algo que existe, mas está projetado
em um outro lugar) têm a mesma estrutura da miragem do deserto: Eles
parecem ao alcance da mão, mas na verdade estão mais longe. Eles nunca
se concretizam exatamente da forma como aparecem. E esse fenômeno vai
além da percepção, abarcando domínios da realidade que transcendem os
nossos sentidos e a nossa razão ou capacidade de explicação ou compreensão
Com esse tipo de experiência visionária se alcança o que Rudolf Otto (2007)
chamou de “numinoso”, que faz parte de sua ideia do sagrado.
O numinoso é para onde somos elevados, quando contemplamos a na-
tureza ou uma obra de arte, como uma pintura ou escultura, por exemplo, ou
uma poesia, ou uma música. A arte não é algo apenas agradável e encantador,
mas grandioso, magnífico, majestoso, esplêndido, extraordinário, muito no-
bre, enfim, algo poderoso, que evoca imagens. E o numinoso é também um
estado de graça, um estado de elevação e inspiração, e, no sentido religioso,
espiritual, algo que se abre ao transcendente. Ele nos transporta para além da
realidade, para algo de essência mais concreta do que a realidade dos fatos.
Mas o livro didático dos autores, mencionado por Lewis, se refere ao
sublime como um simples sentimento subjetivo. Mesmo se admitirmos que
é um sentimento, trata-se de um tipo especial, que está totalmente fora e
obliterado nos livros didáticos em geral e que não é de ordem apenas sub-
jetiva, como os livros didáticos nos querem fazer crer.
A própria natureza, se a considerarmos como obra de arte do Criador,
nos pode transportar para um estado ou condição espiritual destas, em
que nos espantamos e começamos, portanto, a filosofar e ir além do visto,
superando-o.
Em educação, a ideia de “projeto” ou até mais especificamente de
“projeto pedagógico” tem relação com o sonho, a utopia e a arte, já que tem
essa função de “projetar” um sonho educacional para frente, que envolve
a superação de certo estado de coisas. Ele dá ao educador e a todos os
envolvidos no processo, uma sensação de elevação, e assim provoca a moti-
vação e o rumo certo a seguir, de que tanto se carece no cotidiano escolar
desnorteado de hoje.
Também a pintura, e a arte em geral, sugere o poder que a imagem tem
de não apenas deslumbrar, de mostrar esteticamente o que é bonito, mas

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também de passar uma paz, uma calma, um refrigério que parece vir “de
outro mundo”. Trata-se daquele sentimento que uma criança tem ao estar
junto de sua mãe, perto daquela que a nutre e lhe presta toda a assistência e
cuidado. Trata-se de um sentimento subjetivo, sim, mas que tem base numa
realidade concreta que transcende o mundo restrito do bebê.
E, particularmente no campo da educação, que é um campo das me-
diações, mas também das projeções e superações, a imagem e a imaginação,
envolvidos por exemplo nas histórias e sua contação e no lúdico em geral,
têm um poder e uma eficiência especial.
A educação necessita das imagens como ferramentas, e mais, como
interfaces, como meios para alcançar determinados fins. Assim, o uso da
imagem e apelo para a imaginação é um dos meios mais primorosos para se
veicular a educação. Vamos detalhar essa ideia no que segue.

A situação “desértica” da educação

E por que a educação estaria no deserto, como sugere Lewis com a


sua frase? Realmente, hoje, mais do que na época de Lewis, a educação está
desértica. E eu a chamei aqui de “situação desértica da educação”, justamente
porque o que mais se vê é a derrubada de florestas. Derrubada da criativida-
de, pela imposição de uma agenda rígida de conteúdos que serão cobrados
nas várias provas que o aluno tem que enfrentar em sua curta existência.
Derrubada de educadores, pela sua situação financeira deplorável e falta de
valorização de seu trabalho, além da sobrecarga, pela qual eles são transfor-
mados em “dadores” de aula. Derrubada de aprendizes, que são substituídos
por alunos insatisfeitos que só fazem o que (e porque) são obrigados a fazer.
Derrubada de ensinamentos com uma moral clara em favor de relativismos,
tornando as aulas unilaterais e impositivas, que seguem filosofias baratas
e lugares comuns. Estamos nos referindo ao que Paulo Freire chamava de
“‘educação’ bancária”, do professor que deposita o “cheque” do conheci-
mento e vai embora, sem ter nenhuma interação ou dar satisfações ao aluno.
Professores e alunos sem rumo. Aulas sobrecarregadas de informações e
abstrações, desprovidas de gosto e de sentido. Grassa o racionalismo, em
que o que importa são programas carregados de informações e conteúdos,
muitas vezes inúteis e aceitos sem crítica e sem reflexão. Professores e alunos
céticos que pensam que todo e qualquer ideia de transformação do espaço
escolar, toda iniciativa, pode até ser motivadora e bela, mas não repousa
numa realidade: que não passa de visão subjetiva ou formal, sem realidade
concreta ou implicações na prática.

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A situação da educação é desértica, porque parece estar morta de
tão fragmentária, porque teoria e a prática não se articulam, muito menos
entram em reação química para formar realidades novas. Nela deparamos
com professores e alunos céticos que pensam que todo e qualquer ideia de
transformação do espaço escolar, toda iniciativa, pode até ser motivadora e
bela, mas não repousa numa realidade: que não passa de uma visão gerada
pela subjetividade, um idealismo sem fundamento numa realidade concreta
ou implicações na prática.
Mas o que é mais precisamente um “projeto pedagógico”. Elaborar
projetos é o que faz um arquiteto, um engenheiro, quando projeta, forja a
sua casa. Da mesma forma, o educador tem de bolar, maquinar, forjar aquilo
em que quer formar o seu aluno, mas não de forma passiva, como se molda
uma massa, mas na interação ativa entre o projetor e seu sujeito-objeto.
A aprendizagem acontece de forma contrária à fragmentação, quando
há uma sinapse (à imagem do que acontece com os neurônios no cérebro)
ou articulação e interação entre as coisas e as pessoas, que lhes dão sentido
para além da mera informação e conteúdo.

O livro: esse armazém de imagens

Mas porque o uso do livro (e não me refiro ao livro didático) e da lite-


ratura, particularmente de contos imaginativos, também chamados de mitos,
contos de fada e histórias fantásticas, é tão eficiente para pôr em prática o
que estamos defendendo aqui. Ele está repleto de imagens, mesmo que não
tenha ilustração nenhuma.
Destarte, todas as iniciativas de incentivo à leitura, seja através de con-
tação de histórias, ou de distribuição de livros e e-books estão dentro do
espírito lewisiano, principalmente no que diz respeito aos clássicos. Aliás, ele
e seu amigo, J.R.R. Tolkien são mencionados no livro de Ana Maria Macha-
do: Como e Por que ler os Clássicos Universais. (2002), que eu recomendo como
leitura obrigatória para educadores comprometidos com a sua profissão e
com um mundo melhor.
Mesmo os livros teóricos, filosóficos, pelo menos os bons livros, usam
a metáfora, a analogia com muita frequência, que é o caso do livro que es-
tamos focando aqui, A Abolição do Homem. Os grupos de discussão de Lewis
na internet o sugerem como um dos primeiros livros a serem lidos da obra
do autor. Claro que as Crônicas de Nárnia vêm antes. Elas representam aque-
le trampolim para se mergulhar mais fundo na teologia de C.S. Lewis. Mas
Abolição vem logo em seguida com alimento sólido.

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A abolição do homem

A Abolição do Homem é um livro sobre educação, que resultou de três


palestras dadas em 1943, portanto, antes do fim da Guerra, na Durkham Uni-
versity, voltadas para professores de ensino superior. Trata-se de uma crítica a
um “livro verde”, ou didático,1 que é The Control of Language: A critical approach
to reading and writing [O Controle da Linguagem: uma abordagem crítica da leitura e
da escrita], de Alex King e Martin Ketley, publicado em 1939.2
O livro está contextualizado na fase histórica de formação do nazismo e
de transição na educação: “a educação antiga era uma espécie de propagação
— homens transmitindo a humanidade para outros homens; a nova é apenas
propaganda” (LEWIS, 2017a, p. 21). Então ele já faz a crítica da falta de
educação clássica nas escolas, da literatura clássica, dos grandes pensadores
dos grandes escritores. E, no lugar disso, oferece-se uma educação cheia de
propaganda, cheia de consumismo e materialismo.
E Lewis introduz a temática do sublime ou do sentido estético, par-
ticularmente refletido na natureza, através de um riacho com uma queda
d’agua, que aparece no livro verde. Enquanto o livro didático exalta a emoção
subjetiva que se tem apreciando aquele cenário, a educação que Lewis quer
promover é objetiva, ou seja, fundada na realidade. Ela não fica analisando o
sublime em si, ou o sentimento que ele provoca, mas a realidade da cachoeira
e sua beleza. Uma educação que olha para a imagem, tentando descobrir,
não, que reações internas que ela provoca, mas a que outra coisa ela remete,
que outra coisa real e objetiva ela lembra. Ele discute até que ponto esse
sentimento de elevação que a natureza (ou a arte) provoca é algo puramente
subjetivo, e defende que ele tem fundamento no real. Essa ideia é fundamental
também para a sua filosofia (ou antropologia filosófica) e para a sua teologia.
Será que as coisas que nós vemos são puramente subjetivas? Ou será que
têm fundamento numa realidade externa, como aquela imagem no deserto?

Visão objetiva e subjetiva


Qual a diferença entre uma visão subjetiva e uma visão objetiva da re-
alidade? Se todas as percepções e até sentimentos fossem subjetivos (é claro
que muitos são), eles seriam todos irracionais.

1
A estatísticas dizem que o livro didático é o livro mais vendido no Brasil. Enquanto, no exterior, os
best-sellers são romances, ficções; no Brasil são os livros didáticos, que os alunos são obrigados a ler.
Qual a consequência dessa política para o hábito da leitura no Brasil? Até que ponto essa prática não
estraga o gosto saudável pela leitura, que se torna algo enfadonho ou chato?
2
Fonte: Disponível em: <http://www.lewisiana.nl/abolquotes/>. [Acesso 24 de junho de 2014].

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Então, restar-nos-iam duas alternativas: negá-los, recaindo no racionalis-
mo ou instituindo uma “polícia sentimental” e “mental” arbitrária, racionalista,
totalitária (à moda do que acontece na obra 1984, de George Orwell); ou
simplesmente afirmando que tudo é subjetivo, negando não as percepções e
sentimentos, mas a realidade objetiva.
Mas a literatura não concorda nem com o racionalismo, nem com
valores exclusivamente subjetivos. O próprio universo não concorda nem
com o racionalismo, nem com subjetivismo. Tanto na literatura, quanto
no universo, tudo remete a algo que é objetivo, que se encontra para lá da
percepção humana.
A antropologia filosófica (lembrando que antropos, em grego, significa
homem) de C. S. Lewis defende que a educação repousa precisamente na
visão de ser humano implícita nela. Ou seja, a filosofia que ela constrói
em torno do ser humano. A educação tem fins diferentes de acordo com a
visão de realidade, mas principalmente de homem e da cosmologia que ela
apresenta. E como essa concepção é interativa entre sujeito e objeto, e não
apenas subjetiva, há um mérito nas coisas, é valoroso e válido conhecê-las.
Enquanto uma visão subjetivista do ser humano não dá motivos concretos
para se galgar o saber a respeito do mundo e do ser humano. 3 Que bene-
fício se tem de conhecer o que já se sabe, ou de se iludir com impressões
dos sentidos, se o que vale é apenas a perspectiva interior (e ensimesmada)?
Na perspectiva lewisiana, que vou chamar de realista por falta de outro
termo melhor, agindo sobre as coisas, o ser humano causa uma resposta e
é capaz de interagir com o meio. Já, se tudo fosse subjetivo, se tudo fossem
ilusões, não se teria como receber um feedback, tudo seria relativo. E muitos
professores, que abraçam, quer seja o racionalismo, quer o subjetivismo, têm
dificuldade de convencer o aluno de que é bom e valioso aprender coisas
novas sobre o mundo e de provocar respostas nos seus alunos e reagir a
elas. Se tudo são ilusões, não há nada na realidade a que responder, não há
sinais a serem decifrados e não há critério nem mérito externo para aquilo
que você faz ou deixa de fazer. Não há rumo a seguir e assim, a ação se
torna desnorteada e aleatória, sem alcançar a tão esperada transformação que
a educação deveria almejar e alcançar na vida real e cotidiana.

Antropologia filosófica: ética

O homem é composto de mente, corpo e alma; razão, vontade ou im-


pulsos (instintos) e sentimentos. Se Deus é uma trindade e é nosso Criador,

3
É por isso que o projeto pedagógico prevê uma visão, uma missão e o perfil de egresso, ou seja,
pergunta-se que aluno é esse que se pretende formar.

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à Sua imagem e semelhança, nós também somos uma trindade. 4 A razão
domina o homem visceral, por meio do peito, que em Lewis simboliza o
elemento intermediário, mediador, responsável pelo equilíbrio através dos
hábitos e da razão prática. Qualquer dos três elementos do ser humano pode
ser exagerado, tornando-se destrutivo para a humanidade. Muitos “ismos”
(racionalismo, tecnicismo, subjetivismo etc.) se dão pela desarmonia entre
os membros da trindade humana.
A ética é precisamente a esfera que cuida do equilíbrio entre as coisas
como veremos mais adiante. E a concepção lewisiana de “men without chests”,
“homens sem peito” ou “sem elemento intermediário” entre a cabeça e os
membros inferiores, é a do ser humano a caminho de sua abolição ou extinção.
O termo que os chineses têm para ética ou moral é o Tao, citado por
Lewis em A Abolição... que significa o “Caminho Dourado do Meio”. A ética
básica deles diz simplesmente que se deve fazer “aos outros aquilo que gos-
taríamos que eles fizessem a nós”, ou inversamente, “não fazer aos outros o
que não gostaríamos que fizessem a nós”. Ora, isso é precisamente o que diz
a ética cristã. Daí que uma das teses centrais de A abolição... seja a aproximação
ou coincidência dos valores éticos das culturas de todos os tempos e lugares.5
Mas a cultura ocidental se esqueceu em grande parte dessa ética do
bom senso, que une ocidentais e orientais embaixo do guarda-chuva da
humanidade, criada à imagem e semelhança de Deus, criando vários Ersatz
(substitutos, em alemão) para ela.
Podemos alistar alguns substitutos para o Tao na cultura ocidental:
• Progressivismo - É a tese que diz que tudo o que é de última geração,
é melhor e por isso o bem e o mal depende de sua novidade. Se o
progressivismo (e evolucionismo) fosse verdadeiro, tudo que é mais
novo seria sempre melhor, todas as coisas passadas, piores. Não
haveria entropia, nem degradação. Ou seja, aqueles que acreditam
muito que o ser humano está sempre se desenvolvendo e nunca
degrada, vivem uma grande ilusão, por que nem tudo o que é mais
antigo tem que ser superado, ou moralmente mau, ou medieval.6

4 Essa ideia é explorada em A Mente do Criador, de Dorothy L. Sayers, que era amiga de Lewis e a
quem dediquei a minha atual tese de doutorado. O livro foi prometido a sair publicado pela Editora
É-Realizações.
5 Nos anexos do livro, Lewis inclui uma seleção de provérbios de todos os lugares e épocas que dizem
praticamente as mesmas coisas sobre justiça, fidelidade e outros valores humanos universalizáveis,
precisamente para provar a sua tese a respeito do Tao, ou seja, uma tábua de valores comuns a toda
a humanidade.
6 Palavra mal compreendida, porque a Idade Média tem mais de mil anos de duração e é impossível
que o ser humano estivesse vivendo no lado escuro da lua por um milhar de anos. E os historiadores
descobrem cada vez mais coisas boas inventadas durante a Idade Média e sobre a importância que
esse período teve para o progresso da humanidade.

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• Tecnicismo - Já para o tecnicismo, também denominado behaviorismo,7
que pode ser considerado uma variante do progressivismo, mas com
características bem marcantes, os instintos são suficientes para dizer o
que é bom e o que não é. O padrão normativo da conduta humana é
o animal, são os instintos. Mas eles esquecem que a ética da natureza,
o comportamento animal, por exemplo, é extremamente violento e
agressivo. Se o ser humano pauta a sua ação, a sua conduta e a sua
ética pelo comportamento instintivo, vai tender a ser agressivo. Irá
seguir a lei do mais forte. Na verdade, os seres vivos submetem-se a
uma guerra de instintos: a qual deles deveriam eles obedecer? Então,
os behavioristas não têm critérios para dizer qual instinto você deve
escolher como sendo o bom. Não há para eles critério do certo e
do errado. E eles esquecem que ética é diferente de comportamento.
Mesmo que se pregue o controle dos instintos pelo condicionamento,
quem vai ditar qual o comportamento certo a ser condicionado? Lewis
chama essa classe privilegiada da humanidade de “manipuladores”,
mas também podemos chamá-los de “nazistas”.
• Utilitarismo– É a tese que diz que o certo é o que é útil para a pessoa
individual ou para a coletividade. A pessoa que segue esse critério
moral toma as suas decisões de acordo com a utilidade. Então falta
para ela o compromisso, o interesse e a obrigação pessoal com uma
causa, que possa não ter uma utilidade. Essa tendência se mistura
com o pragmatismo, com o tecnicismo e todos os “códigos” de
ética mecanicistas. Para o utilitarista, o bom é aquilo que funciona.
Se não funciona, então não é bom.
• Consequencialismo – a quarta tendência que substitui o Tao no arca-
bouço de valores de uma pessoa é a eficiência das suas decisões, ou
seja, que consequências se espera que elas tenham para a pessoa, de
preferência consequências de sucesso e eficiência.8 Mas um ladrão
pode ser muito eficiente em sua técnica de ladroagem, tanto que se
enriquece. E, se ele for ainda mais eficiente, ele o fará sem ser pego,
ou seja, sem sofrer as consequências que a lei lhe imporia. Nem
assim pode ser considerada uma pessoa ética e correta. A pessoa
ética se comporta como tal, mesmo que ninguém esteja olhando,
coisa inconcebível e ilógica aos adeptos do consequencialismo.

7
Baseado em “behavior”, que significa “comportamento” e nas experiências de estímulo-e-resposta de
Pavlov, que serviram de base para as teses de Skinner.
8
A popularidade dessa moral nas pessoas consumistas e materialistas modernas se vê pelo sucesso que
fazem os livros que dão receitas para a vida “bem-sucedida” ou de sucesso, particularmente, financeiro.

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E mais uma vez, nos deparamos com a discussão sobre a realidade. Seria
ela o que se parece para nós (tal comportamento me parece justo porque nin-
guém está vendo) ou teria ela um significado vindo de fora, uma parte externa?
É em torno da noção de realidade e de confundir o paciente sobre ela
que giram noventa por cento das estratégias do diabo veterano de Cartas de
um Diabo a seu Aprendiz, de C.S. Lewis, com as suas recomendações e comen-
tários epistolares ao seu sobrinho, diabo de primeira viagem. Parafraseando
Lewis, o diabo diz:

E não o deixe usar a lógica nem ficar a sós com livros, nem abraçar a verdadeira ciência,
pois todas essas coisas representam o perigo de que o paciente humano se dê conta
de que existe uma realidade “lá fora”, que lhe permite chegar a conclusões, entrar em
comunicação com o autor (por mais distante ou até morto que ele esteja).

Fugir da realidade é a grande especialidade do homem decaído, já que


ele não quer admitir o seu estado, e os diabos só o apoiam nisso. Daí a busca
pelo controle dessa realidade, que significa poder. Pode-se dizer, de certa
forma, que a história da humanidade é a história da criação de formas de
controle da natureza, que segundo Lewis, acabará se revertendo em formas
de controle da natureza sobre o ser humano. O que parece que ela teima em
ignorar é que a natureza sempre lhe irá escapar, surpreendendo a humanidade
com as suas “vinganças” pelos excessos cometidos contra ela em nome do
tal “controle”. E Lewis alerta em A Abolição do Homem que a consequência
da teimosia nesse processo é a própria destruição:

O último estágio virá quando, mediante a eugenia,9 a manipulação pré-natal e uma edu-
cação e propaganda baseadas numa perfeita psicologia aplicada, o Homem alcançar um
completo domínio sobre si mesmo. A natureza humana será a última parte da Natureza
a se render ante o Homem (...) A batalha estará definitivamente vencida. Mas a pergunta
é: quem exatamente a terá vencido? (LEWIS, 2017a, p. 56).

Lewis está falando aqui a partir de uma época em que a eugenia estava
em alta. O nazismo, por exemplo, dizia que as pessoas deficientes não tinham
o direito de viver e de reproduzir os seus códigos de DNA em meio à hu-
manidade. Elas eram separadas, segregadas, porque os genes delas poderiam
contaminar a sociedade. Da mesma forma que os judeus eram perseguidos,
as pessoas com qualquer deficiência eram também perseguidas. E o nazismo

9
Trata-se da ciência que estuda o cultivo de condições que tendem a melhorar as qualidades físicas e
morais de gerações futuras, especialmente pela genética e controle das características genéticas dos
filhos de um casal.

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prega que a evolução é tal que as pessoas mais brancas ou amarelas, arianas
ou mongóis, sejam as mais inteligentes, em detrimento das pessoas, negras,
mulatas ou latinas. E assim, de forma sutil e aparentemente “científica”,
instaura-se um Estado totalitário:

Mas os projetistas de homens destes novos tempos estarão armados com os poderes de
um Estado onicompetente e uma irresistível tecnologia científica: obteremos finalmente
uma raça de manipuladores que poderão, verdadeiramente, esculpir toda a posteridade a
seu bel-prazer [...] Os Manipuladores, nesse ponto, estarão em condição de escolher que
tipo artificial de Tao irão impor à raça humana, segundo as razões que lhes convierem.
(LEWIS, 2017a, p. 26).

Um mundo assim é retratado em Admirável Mundo Novo de Aldous Hu-


xley. O livro prevê como seria o mundo dominado pelo behaviorismo. Seria
um mundo artificial, como o que é promovido pelo N.I.C.E., a entidade re-
presentante da ciência e tecnologia no terceiro livro da trilogia espacial de C.S.
Lewis, Uma Força Medonha. Tudo o que é para ser feito ou deixar de ser feito
seria ditado por um cérebro central (ou no caso da trilogia, de uma cabeça
separada do corpo, que vive à base de máquinas) todo poderoso, com uma
programação que controlaria toda a humanidade. “Eles são os motivadores,
os criadores de motivos. Mas de onde é que tiram esses motivos?” (LEWIS,
2005, p. 59), questiona Lewis.
Mais adiante, ele comenta mais sobre esses manipuladores, apresentando
a ideia central que está no título do livro:
Não que eles sejam homens maus. Eles não são homens em absoluto. Saindo do Tao,
eles caíram no vazio. Nem os objetos do condicionamento serão homens infelizes. Eles
não são homens em absoluto: são artefatos. A conquista final do homem mostrou-se
a abolição do homem. (LEWIS, 2017a, p. 61).

Essa última frase foi inclusive citada por B.F. Skinner, o fundador do
behaviorismo ou comportamentalismo, no livro Beyond Freedom and Dignity
[Para Além da Liberdade e Dignidade]. E ele estava criticando a visão de Lewis
sobre a abolição do homem, pela ciência, pelo evolucionismo e o compor-
tamentalismo e suas previsões de que essas tendências farão o homem virar
máquina e, com isso, viria a destruição da liberdade e de toda a sociedade
humana, afirmando que tais coisas simplesmente não existem e não passam
de alarmismo inútil e anticientífico. Dai-o título “para além” da liberdade e
dignidade, pois elas são meras ilusões para Skinner. Segundo ele o que impor-
ta não é o bem e o mal, o homem está acima dessas coisas, mas o controle
sobre os instintos, reforçando alguns, que são alegadamente os que levam os
seres à evolução, e reprimindo outros, que representam o elemento retrógrado.

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Muitas pessoas acham que o bem e o mal lutam entre si como iguais
forças só que o bem acaba vencendo no final, por razões misteriosas ou por
alguma “lei do mais forte”. Isso se chama maniqueísmo e está muito presente
nos filmes de mocinho e bandido e nos desenhos animados de super-heróis.
Na verdade, como os medievais bem o reconheceram, o bem está na origem
do mal, sendo que o mal é uma corrupção, uma degradação do bem, como
o frio é uma degradação ou falta de calor e a escuridão, falta de luz. Mas o
frio não pode substituir o calor, nem a escuridão, expulsar a luz.
Nesse sentido, os manipuladores são o seu próprio mal e destruição. O
que faz o totalitário, o ditador, é armar a sua própria destruição, tanto que
a maioria deles não sobrevive muito tempo.
No fundo, eles odeiam o que fazem da mesma forma que odeiam a si
mesmos. Por isso é que Lewis admite: “Sou propenso a crer que os Manipula-
dores odiariam os produtos da sua própria manipulação” (LEWIS, 2017a, p. 63).
E é na manipulação que se originam todas as desigualdades humanas,
que são destruidoras da paz e da democracia entre os homens.

Portanto, no momento mesmo da vitória do Homem sobre a Natureza, encontramos


toda a raça humana sujeita a alguns poucos indivíduos, e estes indivíduos sujeitos àquilo
que neles mesmos é puramente “natural” – aos seus impulsos irracionais. A Natureza,
livre dos valores, controla os Manipuladores e, por intermédio deles, toda a humanidade.
A conquista do Homem sobre a Natureza revela-se, no momento da sua consumação,
a conquista da Natureza sobre o Homem. (LEWIS, 2017a, p. 64).

Em outro trecho, Lewis observa que:

Aquilo que chamamos de poder do Homem é, na realidade, um poder que alguns


homens possuem, e que por sua vez podem ou não delegar ao resto dos homens. No-
vamente, no que se refere ao poder do avião ou do rádio, o Homem é tanto o paciente
ou o objeto como o possuidor de tal poder, uma vez que ele é o alvo tanto das bombas
quanto da propaganda. (LEWIS, 2017a, p. 52).

Aqui Lewis deixa claro porque não é naturalista e não pode concordar
com o comportamentalismo, pois ele se origina de uma busca ilegítima e
ilusória pelo poder, pelo controle das forças naturais e das pessoas mes-
mas, que são manipuladas à sua revelia, pelo que se está infringindo a regra
universal da liberdade e da dignidade humanas, negadas por Skinner. Nessa
mesma esteira, filósofos como Nietzsche defendem a total independência do
homem para criar a sua própria vida, valores, história, de maneira egoísta e
relativista, mas que no fim, leva à loucura e destruição.

152 Irrigando desertos: educação e imaginação em C.S. LEWIS: Gabriele GREGGERSEN


Ora, essa lei é tão universal que dela falam todos os povos, cristãos ou
não. Todos os mitos e lendas se inspiram nela, porque ela se revela a quem
indagar a sua realidade e a si mesmo a respeito delas. Trata-se, por assim
dizer, de uma revelação universal a todos aqueles que inquirem a totalidade
do real com honestidade e abertura de mente e coração.

O que defende o Tao

Mas o que mais precisamente defende a filosofia antiga oriental ou


clássica? Dizíamos que ela defende o chamado “caminho dourado do meio”
entre dois extremos: nem tanto ao céu, nem tanto à terra, assumindo uma
posição intermediária, equilibrada, moderada.
Confúcio exprimia essa regra única e universal em “Não faça aos outros
o que não quer que os outros façam a você”. E Jesus usou palavras seme-
lhantes a essas também na Bíblia, mas numa versão mais proativa, positiva:
“Faça aos outros o que você gostaria que fizessem a você”.
O Tao defende a relação correta entre fins e meios e a atitude correta
diante do outro. O antiético acusa o outro de o ter induzido ao erro. Ora,
não se pode simplesmente querer justificar um erro por outro erro. Não
se pode dizer que se agiu de determinada forma, porque outro o induziu a
tanto. Cada um tem responsabilidade por seus atos. Do contrário, estaríamos
diante de um regresso infinito de justificações e então, estaria tudo justificado
e cairíamos no relativismo.
Não se pode justificar os meios pelos fins ou tomar fins por meios ou
vice-versa. Não se pode querer ganhar dinheiro pelo prazer de simplesmente
acumular riqueza, como um fim em si mesmo, deve-se ganhar dinheiro como
recompensa, como meio de subsistência, de bem-estar e de ajuda ao próximo.
Da mesma forma, não se deve usar o desejo das pessoas pela felicidade como
meio de ludibriá-las e exercer domínio sobre elas, como faz a propaganda.
Reiteramos: o Tao não é uma consequência, mas um ponto de partida.
Então não é uma ética voltada para fazer coisas que, se não forem feitas,
terão consequências ruins para a pessoa. O Tao é por onde se começa, de
onde se parte, pois se não se parte daí, não se chega a lugar algum ou se
chega a um lugar equivocado. Fica-se desnorteado. É uma ética, até certo
ponto, muito prática, muito assertiva.10

10
Trata-se de um conceito amplo, mas que pode ser equiparado à pro atividade e à adoção de uma
postura de respeito ao próprio espaço e àquele do outro. Ser assertivo é, diante de uma situação de
estresse, não reagir nem de forma agressiva, nem passiva, mas equilibrada.

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Trata-se de um fundamento último, basilar, universal, que orienta o
certo e o errado em moldes bem abrangentes. Podemos ilustrar isso com o
exemplo da geometria. Para se localizar um ponto no espaço, é preciso que
esse seja colocado em um sistema cartesiano, ou seja, no interior de dois (na
geometria plana; ou três, na espacial) eixos: um horizontal, um vertical (e o
terceiro diagonal) que se cruzam no que se convencional chamar de ponto
zero. Somente a partir desses grandes pontos referenciais (veja eles não vão
ao detalhe da conduta particular em situação determinada) é possível situar
um ponto no espaço. Essa é a técnica empregada pelos mapas para a orien-
tação e localização de uma localidade na geografia local.
Mas é preciso que esses referenciais sejam tidos por absolutos e inde-
pendentes de tempo e espaço para que funcionem. É preciso que sejam está-
veis, para que se possa lidar com a instabilidade do tempo-espaço. O mesmo
acontece com os valores. A grande maioria deles depende: das circunstâncias,
do contexto histórico, geográfico-político, linguístico e tantos outros. Mas
há aqueles valores estabelecidos desde a ética clássica (de Aristóteles e que
foi assumida por toda a Idade Média) das virtudes cardeais, que não mudam
através do tempo, que são milenares:

Nunca houve, e nunca haverá, um juízo de valor radicalmente novo na história do


mundo. Tudo aquilo que pretende ser um novo sistema ou (como se diz agora) uma
“ideologia” consiste em fragmentos do próprio Tao, arbitrariamente arrancados de seu
contexto e então hipertrofiados até a loucura em seu isolamento, mas devendo ainda
ao Tao, e somente a ele, a validade que possuem. (LEWIS, 2017, p. 42).

Os valores que o Tao prega, o amor ao próximo e dar a cada um o que


lhe é devido (que é o conceito de Justiça, que encabeça as chamadas virtudes
cardeais), são milenares. Não são coisas que o homem tão avançado de hoje
criou. São valores que a humanidade toda aprendeu com a experiência e a
vida, e apregoa desde sempre em sua arte e sua literatura.

Ciência e magia

Em seguida, Lewis faz uma comparação interessante entre ciência e


magia. A magia é a manipulação de certas coisas para você atingir um de-
terminado fim. É conseguir controlar alguma coisa para atingir determinado
resultado, manipulando elementos da natureza. A ciência de certa forma
também é assim, propondo-se a controlar as variáveis de determinado ex-
perimento, para chegar a uma conclusão ou teoria sobre um fenômeno. Só
mesmo quando quem determina as leis e aqueles que são controlados por

154 Irrigando desertos: educação e imaginação em C.S. LEWIS: Gabriele GREGGERSEN


elas chegam a um acordo é que pode haver progresso e avanço no processo
civilizatório, do contrário, o que ocorre é um domínio de uns sobre os outros.
E esse acordo deve ser regido pela ética e por valores universais. Nas palavras
de Lewis, “somente o Tao é capaz de prover uma lei de ação humana comum
que possa abarcar legisladores e legislados igualmente” (LEWIS, 2017, p. 69).
A quem, por exemplo, se deve apelar, quando se está diante de um crime
contra os direitos humano? Um tribunal internacional? A ONU? Sim, mas
será que esses órgãos também não representa um poder que tem interesse
em controlar o certo e o errado?
Mais adiante, Lewis conclui:

O grande esforço da bruxaria e o grande esforço científico são irmãos gêmeos: um deles
era doente e morreu, o outro era forte e sobreviveu. Mas eram gêmeos. Nasceram do
mesmo impulso... Para os sábios da antiguidade, o problema principal era como con-
formar a alma à realidade, e a solução encontrada foi o conhecimento, a autodisciplina
e a virtude. Tanto para a bruxaria quanto para a ciência aplicada, o problema é como
subjugar a realidade aos desejos dos homens, e a solução encontrada foi uma técnica.
(LEWIS, 2017, p. 72-73).

Além do primado da técnica para o controle da realidade (daí surge a


tecnologia), a ciência tem a característica que tentar ir até o princípio pri-
meiro de todas as coisas. Ela quer descobrir as chamadas leis da natureza.
Mas qual é a utilidade disso?
Parafraseando Lewis, ele afirma que: “Não há nenhuma utilidade em
tentar ‘enxergar o que está por trás’ dos primeiros princípios”. Ou seja, ele
está discutindo aquela mania que o cientificista tem de querer desvendar, tirar
os véus, da realidade, como se fosse algum Deus (aliás, a semelhança com o
pecado do Éden, não é mera coincidência). Se você “enxergar” o que está
“por trás” de todas as coisas acabará por estabelecer um mundo “transparen-
te”, sem substância. Por exemplo: o marxismo enxerga por trás da injustiça
social a luta de classes; a psicanálise tenta enxergar por trás do comportamen-
to o impulso sexual. Parece que o ser humano da era do cientificismo e da
contemporaneidade é totalmente subjetivo, subjetivista. Ele é que determina
o que quer enxergar na realidade e o faz de forma determinista.
Essa ideia de que é a impressão dos sentidos na mente que determina
a realidade se desdobra em duas convicções: 1. O que acontece só pode ser
levando em conta se for registrado; 2. Se você ainda não conquistou certo
saber, não controlou certa doença, é só uma questão de tempo para o fazer.
Para o indivíduo que pensa assim, a ciência vai conquistar todas as coisas, se
ela não conquistou é porque não alcançou ainda. Perguntaram a uma criança

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da contemporaneidade o que pensa da morte. Ela disse “ah, é algo ruim que
a ciência ainda não resolveu”.
A ideia de que a ciência vai chegar à perfeição ou levar a um mundo
perfeito é uma ilusão que tem o potencial de se tornar uma religião. E ela
diz que não há o concreto, apenas o pensado e percebido. Mas um mundo
completamente transparente é um mundo invisível. Por isso é que Lewis diz:
“Ver o que está ‘por trás’ de todas as coisas é o mesmo que não ver nada”
(LEWIS, 2017a, p. 77).
Ao invés disso, Lewis nos convida a “ver as coisas como elas são”, a
“cair na real”, não só no sentido de deixar de ter ideias psicodélicas, mas
de olhar para além do “aqui e agora”, para “além” do real, partindo desse
mesmo aqui e agora, ou seja, partindo do concreto.
Por isso, a via do concreto e do real é a via mais importante e segura
para uma visão maior, para “abrir os horizontes” da nossa perspectiva limi-
tada para a transcendência. E essa é a perspectiva que o educador que quer
“irrigar desertos” deve assumir.

O Tao e a educação

Mesmo que nunca tenha desenvolvido uma teoria educacional, pode-


-se extrair das obras de Lewis bases da sua educação: a formação clássica
e medieval das Artes Liberais, que envolviam o Trivium (Lógica, Retórica,
Gramática) e o Quadrivium (disciplinas curriculares); a teologia e a autobio-
grafia como uma busca pela a alegria; o “batismo” da mente (razão) pela
imaginação e a colaboração entre ambas na construção do conhecimento; a
crítica contra os “ismos” modernos; e a possibilidade e até a propensão para
se aprender, mesmo em tempos de guerra.
E qual a finalidade real da educação? É formar o ser humano no sen-
tido de Bildung (o termo em alemão que significa formação). Essa palavra
vem de “Bild” (que significa imagem). Então Bildung é a formação a partir
de uma imagem (portanto com uso da imaginação), de um modelo, de um
padrão externo. E Bildung é unir razão, emoção e imaginação em torno do
ser. Educar não significa nada mais do que isso: e- ducere (colocar para fora
o ser). Significa envolver o sujeito em uma integralidade, incluindo a mente,
o coração e o espírito.
Nesse sentido, é preciso repensar os currículos, que hoje estão limitados
às chamadas “disciplinas”, porque a informação está presente em qualquer
internet que você a possa acessar. Não é preciso nem professor, nem escola
para isso. A função do professor não é transmitir informações. A função
dele é de coordenar o aprendizado e mediar a educação. A escola não deve

156 Irrigando desertos: educação e imaginação em C.S. LEWIS: Gabriele GREGGERSEN


ser um lugar de ditadura da maioria, de nivelação por baixo. Ela não deve
promover a ideia de que todos têm que estar no mesmo patamar e estar
com a mesma média de nota, como prova ou sinal de qualidade. Cada ser
é um ser único. A diferença deve existir e a igualdade, ser decorrência dela.
A escola e o educador devem lutar contra as gangues, o bullying, e passar a
gerar um ambiente de empatia, favorável aos estudos, destacando o prazer
de aprender, através do uso da imaginação.
Então, Lewis defendia uma educação integral, também chamada de
holística. Educação entendida como Paidéia, um conceito grego e também
judaico da educação. Ela abarca o ser humano em sua integralidade, envol-
vendo mais do que os dois hemisférios do cérebro: envolvendo o corpo
todo e a mente toda.
Se a mente é um órgão da verdade, diz Lewis, a imaginação é o órgão
do sentido. Uma coisa não vive sem a outra. São as duas asas do anjo. Para
uma criança que só recebe informações, ela entra por um ouvido e sai pelo
outro. O conhecimento tem que ter para ela algum peso, algum sentido ou
articulação significativa com o cotidiano, se não, ela não aprende. Então Lewis
defendia a educação (inclusive a teológica), mediada pela imaginação poética.
E trata-se de uma proposta significativa contrária às escolas experimentais
(pelas quais ele passou na infância), fomentadoras da autossuficiência, das
gangues e do pragmatismo utilitarista e do tecnicismo.
Ele acreditava que a educação tem a priori absolutos. Se não há verda-
de, não há educação para a verdade. Mas se não existe “a verdade”, como
é possível existirem “as verdades”? Tem que haver um critério para que as
verdades sejam consideradas verdadeiras. Há de haver algum padrão. A edu-
cação pressupõe uma lei moral ou natural, o “Tao”. Educar, então, é conduzir
para um fora, realizar (que é tornar real) potencialidades e complexidades.
Somente assim é possível atingir aquela excelência a que se pode chegar, o
maximum potentiae, ou ao auge da potencialidade realizada, que foi o termo
cunhado por Tomás de Aquino.

O imaginário, o lúdico e a educação


Em Homo Ludens, Huizinga (1971) já destacava o aspecto inalienável do
homem: sua capacidade imagética ou lúdica, do jogo e da festa. O ser huma-
no é um ser que age e reage a partir de imagens, do lúdico. Ele aprende, se
revela e se realiza através de sua capacidade imagética, do lúdico, do jogo e
mesmo da fé. Lembrando que fé é uma certeza que se tem de coisas que os
olhos não enxergam. E é da imaginação que procede a fé.11

11 Nesse sentido, não há momento da vida mais imaginativo do que a oração, mas isso daria substrato
para outro capítulo.

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Mais que humano, o lúdico é traço divino (imago dei). Por Deus ser
criador, nós também somos criadores. O ser humano é um ser análogo ao
divino, em plano inferior, em um plano decaído. Educação nesse sentido é
um projeto de restauração, que por sua vez, é resultado de uma projeção de
Deus no homem, que o mal não teve poder suficiente para desfazer. Assim,
a educação se desenvolve de acordo com um projeto (divino) de formação
(Bildung), resgate e restauração do ser.
Parafraseando Lewis (2017) em Cristianismo Puro e Simples: “esse mundo
é um lugar ocupado pelo inimigo” e nós estamos engajados na missão de
subverter esse poder ilegítimo. Nesse sentido, educação é, quer os teóricos o
abominem, quer não, uma missão e uma das mais importantes para o futuro
da humanidade, pois é uma missão de regeneração e de resgate.12 Portanto,
a educação deve, sim, ter um compromisso com a razão, mas também com
o lúdico, a imaginação, o sentido e a experiência vital.
Mas só imaginação e lúdico não basta. Tem que ser boa imaginação. E
para merecer o título de boa, o bem tem que ser assumido e com ele, todos
os valores da liberdade e dignidade humanas que se encontram no Tao. Do
contrário, se for má imaginação, servirá para o mal. E não adianta impor a
bondade às imagens. É preciso extrair a bondade delas, através da interpre-
tação. Trata-se da árdua tarefa (e por ser árdua, muitas vezes é abandonada)
de extrair o joio do trigo.
Aquele pai ou mãe que se preocupa com o filho que gosta de Harry
Potter, que gosta de Vídeo Games violentos, deve se preocupar sim, mas
é em acompanhar o filho, e não proibir simplesmente o filho de assistir,
ler ou jogar. Eles devem ensiná-lo a lidar com a sua própria imaginação, a
pegar aquelas imagens e interpretar da forma correta, tirando os valores de
coragem, de lealdade, de amizade, que todo jogo tem. Ele deve focar nestes
aspectos positivos, não nos negativos.
Nesse sentido, todos os textos, especialmente os imaginativos, são
uma pequena encarnação de valores que para nós parecem abstratos. E tal
encarnação se dá sem dar aviso. É como o Espírito que sopra e não se sabe
quando e onde vai se revelar. A criança, de forma análoga, também não
escolhe o lugar onde vai aprender, ela aprende simplesmente. Ela não pede
licença para aprender, o que sempre envolve uma superação, um salto para
algum lugar que transcende o nível anterior de conhecimento do educando.
Em última instância, essa superação alcança até o próprio Criador.

12
Isso lembra novamente a ordem de Lewis em A abolição... de “irrigar desertos” e não “derrubar
árvores”.

158 Irrigando desertos: educação e imaginação em C.S. LEWIS: Gabriele GREGGERSEN


E o mundo está cheio de sinais e imagens de Deus. Um verdadeiro cam-
po minado para Screwtape. 13 Mas a literatura é mais concentrada em termos
de sinais. Deus também não pede licença para se manifestar. Ele escolheu
se revelar na natureza, no Verbo, Logos encarnado, e, de forma indireta, nas
artes e nos textos, orais ou escritos. Tudo que é bom, inclusive esteticamente,
remete a Deus. Parafraseando Simone Weil, “o Belo é a prova experimental
de que a encarnação é possível”.
A literatura é a encarnação mais contundente do Criador. Tanto que
Ele escolheu se revelar através de um livro. E é por isso também que o livro
é o meio educacional por excelência. Principalmente aquele que envolve a
imaginação.
E como educar através da literatura imaginativa? Primeiro, sendo um
bom leitor e bom contador de histórias, que usa todo tipo de imagem. Isso
significa saber interpretar da forma correta. É preciso saber usar recursos
imagéticos como mediadores para a compreensão de níveis mais profundos
da realidade circundantes, fazer boas perguntas, ser um mediador e um facili-
tador. É preciso indicar boa literatura, bons filmes, que valorizam os aspectos
positivos da vida humana e suas manifestações imagéticas, usar a imaginação
menos para veicular conteúdos (pelo que ela fica asfixiada) do que para a
fruição e contemplação. Por exemplo, você não vai perguntar qual a moral
da história no começo da história. Deixa que a criança interprete ela mesma,
que ela mesma chegue a uma moral. E deve aproveitar a oportunidade para
promover o discernimento e a sabedoria, lembrando que a sabedoria vem de
saber, de sabor, de Sophia, que é o nome grego da sabedoria. É nesse sentido
que educar “não é derrubar florestas, mas irrigar desertos”. E a educação
atual está mais do que precisando dessa irrigação.

Considerações finais

Ao final deste artigo, resta-nos perguntar: Quais as implicações educa-


cionais de A Abolição do Homem?
São elas: que devemos combater a situação desértica da educação, cheia
de sentimentos ilusórios, irrigando-a com sentimentos verdadeiros. Parafrase-
ando Lewis novamente, que “a defesa adequada contra os falsos sentimentos
é inculcar os sentimentos corretos”. Ao sufocar a sensibilidade dos nossos
alunos, entupindo-os com informações, apenas conseguiremos transformá-los
em presas mais fáceis para o ataque do propagandista.

13
Nome original do Diabo em Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz, de C.S. Lewis.

Revista Caminhando v. 25, n. 3, p. 141-160, set./dez. 2020 159


É preciso desenvolver um trabalho com uso da imaginação e da litera-
tura para fomentar uma visão mais equilibrada da vida e do homem, em um
mundo racionalista, materialista e cientificista. Assim, poderemos fomentar
a regeneração do ser do educando para que ele se torne o que ele realmente
é, parafraseando Píndaro: “Torna-te o que tu és”. Destarte, poderemos ainda
seguir uma visão do que o educando deve ser, visão inspirada em valores
universais do Tao, orientando o aprendizado esperançosamente para ela.
Só assim impediremos a derrubada de árvores na educação e sua de-
vassidão e, pelo contrário, faremos o deserto verdejar.

Referências bibliográficas

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência do fundamento; A determinação do Ser do Ente segundo


Leibniz; Hegel e os gregos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades, 1971.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens, o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro e
Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1971.
OTTO, Rudolf. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Trad. Walter O. Schlupp. São Leopoldo; Petrópolis: Sinodal; Vozes, 2007.
LEWIS, C.S. A Abolição do Homem. Trad. Gabriele Greggersen. São Paulo: Thomas Nelson,
2017a.
Audiobook – Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=VTum5vajIXg&list=PL
96511B9130D52FBB>. [Acesso em: 24 de junho de 2014].
LEWIS, C.S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Trad. Gabriele Greggersen. São Paulo: Tho-
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LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. Trad. Gabriele Greggersen. São Paulo: Thomas
Nelson, 2017c.
LEWIS, C.S. Uma força medonha. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002.
SARTRE, J.P. A imaginação. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1987.

Submetido em: 6-11-2020


Aceito em: 9-12-2020

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