Análise Do Filme "Eu, Daniel Blake"

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Análise do Filme - "Eu, Daniel Blake"

“Eu, Daniel Blake” (“I, Daniel Blake”) tem como enredo a história do
personagem que lhe dá título, um carpinteiro britânico e viúvo de 59 anos, que após
uma parada cardíaca é orientado pelos médicos a não exercer sua atividade laboral e,
portanto, se encontra desprovido de renda e impedido de prover o próprio sustento.
Em consequência, busca seus direitos junto ao Sistema de Seguridade Social do Reino
Unido (Employment and Support Allowance - ESA) no qual, após uma avaliação
baseada em critérios desarrazoados e a despeito das orientações dos cardiologistas,
Blake é considerado apto para o trabalho de modo que o auxílio por incapacidade
laborativa lhe é indeferido. A partir daí, disposto a recorrer dessa decisão, o
protagonista torna-se vítima da burocracia e da desumanização que permeiam o
aparato estatal de seguridade social, os quais dificultam seu acesso a direitos e
ameaçam sua dignidade.
A fim de efetuar uma análise da temática do filme, faz-se necessário destacar
alguns pontos ao longo do processo enfrentado por Daniel no âmbito do já referido
sistema de seguridade social. Bem como traçar comparativos com a realidade da
seguridade social no Brasil visando analisá-la com foco na dignidade da pessoa
humana.
Nesse intuito, já no início da película destaco a entrevista avaliativa para
concessão do benefício requerido pelo personagem. Essa avaliação não é efetuada por
cardiologista ou qualquer outro médico, mas sim por profissional da saúde sem o
conhecimento técnico adequado para tanto. Ela se compõe de questionamentos
absurdos referentes às condições físicas e faculdades mentais de Daniel que não
guardam qualquer relação com a doença dele – afinal, é óbvio que nenhuma
incapacidade laborativa decorrente de doença cardíaca será identificada sem o exame
do sistema cardiológico – e que visam preencher requisitos desconexos da realidade
social. E, assim, deixa patente o formalismo exacerbado dos serviços de concessão de
benefícios previdenciários e assistenciais, o qual é, muitas vezes, como acontece no
filme em questão, priorizado em detrimento da própria finalidade do serviço – isto é,
da concessão dos benefícios às pessoas em situação de vulnerabilidade social e/ou
econômica.
A avaliação feita pelo serviço britânico e acima descrita apresenta semelhanças
com as efetuadas em nosso Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Neste, embora a
maioria das avaliações sociais e perícias médicas sejam realizadas por detentores de
conhecimento técnico adequado, não são raros os indeferimentos indevidos
esdrúxulos de benefícios – como, por exemplo, o “caso 2” discutido em sala de aula na
disciplina de direito previdenciário em que o benefício é negado a um portador de HIV,
também acometido de outras enfermidades. O que geralmente ocorre em função do
formalismo excessivo empregue pelo INSS e da desigualdade social acentuada no país
que distancia a realidade dos destinatários dos serviços de seguridade social, advindos
das classes sociais menos favorecidas, e dos examinadores médicos, em sua maioria
provenientes das classes média e alta, inviabilizando, muitas vezes, o exercício de
empatia e compreensão destes para com aqueles.
Um segundo ponto a destacar é a excessiva burocratização estatal a que Blake é
sujeitado a fim de obter acesso a benefícios da seguridade social. Nesse sentido, ao
longo do filme, o protagonista é submetido a infindáveis ligações telefônicas; a
inúmeras idas e vindas às agências governamentais nas quais encontra profissionais
indiferentes e inflexíveis; a formulários que devem ser obrigatoriamente preenchidos
na internet a despeito de seu analfabetismo digital e a um labirinto de procedimentos
burocráticos para apelar contra a decisão do órgão previdenciário e também pleitear
um seguro-desemprego para se manter. Esse percurso de Blake pode ser descrito como
kafkaniano – uma vez que apresenta similitudes com toda a obra do autor, sobretudo
com O Processo, haja vista que em ambas as obras os personagens centrais enfrentam
situações desesperadores geradas pela incompreensão das informações e regras dos
procedimentos complexos pelos quais perpassam –, e tem seu ápice quando, para
requisitar o seguro desemprego, ele é obrigado a provar que está procurando emprego
através da entrega de currículos, mas precisa declinar das ofertas de trabalho por não
estar apto a trabalhar segundo orientações médicas, situação que expõe um
mecanismo que deixa todos os envolvidos insatisfeitos enquanto desperdiça tempo e
dinheiro.
Esse excesso de burocracia também se faz presente no INSS, acarretando lesões
ao mandamento constitucional de eficiência da administração pública (CF, art. 37) 1 e ao
direito fundamental do usuário a um processo administrativo de duração razoável (CF,
art. 5º, LXXVIII)2. O que pode ser depreendido dos dados do INSS obtidos via Lei de
Acesso à Informação pelo Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), os quais
apontam que em outubro passado cerca de 5,5 milhões de brasileiros aguardavam na
fila do INSS para concessão de benefícios e que o prazo de análise de benefícios que
deveria ser de 45 dias, prorrogáveis por mais 45, é frequentemente ultrapassado: “Os
benefícios por incapacidade acidentária (auxílio-acidente, invalidez, pensão por morte
e auxílio-temporário) tem média de 122 dias para concessão. Já o Benefício de
Prestação Continuada (BPC) à pessoa com deficiência tem uma média de 223 dias para
concessão3.
É imprescindível acrescer que o sistema de seguridade social pátrio vem
adotando medidas a fim de dar maior eficiência e celeridade a seus serviços, todavia
algumas delas ameaçam a própria finalidade desses serviços, ou seja, a concessão de
benefícios às pessoas em situação de vulnerabilidade. Foi com esse objetivo que, em
maio passado, o INSS passou a usar uma inteligência artificial para analisar pedidos de
benefício, o qual resultou em redução da fila de pedidos por benefícios previdenciários
paralelamente ao aumento da fila de pedidos de recursos, com especialistas
apontando que muitas solicitações estão sendo indeferidas de forma indevida pelo
robô4. Com o mesmo intuito, o INSS vem aumentando a oferta de serviços via internet,
o que pode dificultar o acesso a benefícios aos digitalmente excluídos, como ocorre no
filme com Daniel, os quais se encontram, majoritariamente, nas camadas sociais mais
vulneráveis e que, portanto, constituem a maior parcela do público alvo do INSS.
Prosseguindo, ressalto o momento da obra cinematográfica em análise em que
Blake desesperado, frente a situação descrita e que poderia lhe relegar à fome e à

1
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
2
Art. 5º, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
3
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/12/07/espera-na-fila-por-beneficio-do-
inss-pode-ultrapassar-480-dias.ghtml
4
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/10/07/robo-que-analisa-processos-do-
inss-causa-aumento-de-recursos-por-indeferimento.ghtml
miséria, faz uma pichação na parede do órgão público expondo sua situação. Em razão
da comoção popular gerada por esse momento, ele finalmente obtém uma audiência
com juiz que julgará seu recurso de apelação da decisão que lhe negou o benefício
previdenciário na esfera administrativa. Essa judicialização de demandas
previdenciárias é corriqueira no Brasil, onde, em média, 7 mil delas são diariamente
ajuizadas – nas quais cidadãos inconformados buscam reverter judicialmente decisões
do INSS que lhes negaram a concessão ou a revisão de benefício previdenciário – e
representam mais de 10% de totalidade de processos pendentes na Justiça5.
O filme, então, culmina com a morte de Blake, por novo infarto, no dia e lugar
em que a análise de seu recurso de apelação seria finalmente efetuada. Esse final
denuncia a lentidão do sistema de seguridade social – que permite que os destinatários
de seus benefícios morram esperando pela concessão dos mesmos – e, apesar de
parecer hiperbólico, há que se considerar que, além de seu roteiro ser baseado em
histórias reais, não é rara a morte de indivíduos em espera de benefícios que lhes são
de direito na seguridade social, o que se sucedeu, por exemplo, no “caso 2” já citado. E,
na sequência, já no velório do protagonista sua amiga lê a carta que o mesmo
pretendia ler ao juiz no julgamento de seu recurso. Nessa carta Blake afirma não ser
um cliente, consumidor ou usuário do serviço; ter pago suas contas; não ser mendigo,
ladrão ou parasitam nem um nº do seguro ou um clique em uma tela; mas sim ser um
mero cidadão que só por essa condição faz jus e exige respeito a seus direitos sociais.
Esse longa-metragem desenvolve, em suma, uma narrativa que denuncia a
burocratização, a desumanização e o desrespeito que o Estado delega aos cidadãos que
buscam acessar seus direitos no sistema de seguridade social inglês. Provavelmente foi
inspirado em situações geradas pela agenda de austeridade implementada no Reino
Unido, após a chamada Era Blair, que privilegiou uma agenda de cortes e dificultação
da obtenção de benefícios, mas que resultou em pífias economias enquanto o seu
impacto no empobrecimento da população se fez sentir de maneira pronunciada.
Infelizmente, essa narrativa não está restrita à Seguridade Social inglesa, mas se
espalha por todos os estados sob o paradigma neoliberal, sendo o filme, em última
análise, clara crítica a este último. Sob tal paradigma, conforme ilustrado pelo filme e
pelos exemplos comparativos com o Brasil, os estados ao em invés de cumprirem com
5
Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2174
suas obrigações de concretizar direitos passam a atuar como empresas, ocorrendo,
portanto, um desmonte do papel do Estado como promotor de políticas públicas de
bem-estar social. E, nesse cenário, a dignidade da pessoa humana é reiteradamente
violada, haja vista que o Estado, paralelamente à negativa de concessão de benefícios
de seguridade social a pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica,
também lhes nega condições adequadas de sobrevivência. O que, no caso do Brasil,
impossibilita o exercício de direitos sociais constitucionalmente garantidos por
expressa redação do Art.5º, caput6.
Em suma, o filme em questão consiste em uma crítica ao sistema neoliberal
efetuada através do retrato de um sistema de seguridade social que fere inúmeras
vezes a dignidade dos destinatários de seus serviços, enquanto deveria ser justamente
o veículo de garantia dessa dignidade.

6
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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