Charles Darwin, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber
Charles Darwin, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber
Charles Darwin, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber
schall, b. darwin e marx, durkheim e weber: relações entre a forma de pensar evolução na biologia e na sociologia
DARWIN E MARX,
DURKHEIM E WEBER:
relações entre a forma de pensar evolução na Biologia e na Sociologia
brunah schall*
resumo O pensamento evolutivo é de grande importância na Biologia e na Sociologia, pois em ambas as disciplinas há
uma tentativa de compreender as mudanças que ocorrem ao longo do tempo, na natureza e na sociedade. Com foco
nesse tipo de pensamento, é possível delinear interseções entre a teoria da evolução por seleção natural de Darwin e as
ideias de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, comparando os tipos de perspectivas históricas desenvolvidas por cada
um. A discussão dessas interseções pode contribuir para uma melhor compreensão e ensino das disciplinas, fomentando
visões transdisciplinares e críticas que as enriquecem, advertindo também para possíveis interpretações ideológicas que
têm impacto sobre a realidade.
Introdução
antemão uma determinada variação dentro de uma população, alterando assim a com-
posição desta. Para o naturalista, a mudança da população não ocorre devido a uma
soma de mudanças individuais independentes, mas em razão de uma transformação
coletiva e conectada pelas relações estabelecidas entre os membros dessa população.
Durkheim explica de maneira clara e objetiva essa ideia em As Regras do Método
Sociológico, “Ele [fenômeno coletivo] está em cada parte porque está no todo, o que é
diferente de estar no todo por estar nas partes” (Durkheim, 2007, p. 09). Ao diferenciar
“classe em si” de “classe para si”, Marx parece também refletir sobre essa questão. A
“classe em si” seria a simples soma de partes iguais, que não forma necessariamente
um todo e não promove mudanças. Segundo Marx, somente a “classe para si” é capaz de
liderar uma revolução, pois nesse caso o grupo não é apenas a soma de indivíduos iguais,
já que há uma identidade coletiva formada pelo complexo de relações dentro do grupo.
Já Weber parece seguir outra direção ao ressaltar a importância de líderes carismá-
ticos, que sozinhos são capazes de conduzir grandes mudanças sociais. No entanto,
as lideranças não surgem isoladamente de um contexto. Em A ética protestante e o
“espírito” do capitalismo, Weber parece compartilhar do pensamento de Darwin sobre
o fato de a mudança se apresentar como um conjunto e não como uma soma de trans-
formações individuais:
Para que essas modalidades de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à pecu-
liaridade do capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham podido sobrepu-
jar outras modalidades, primeiro elas tiveram que emergir, evidentemente, e não apenas
em indivíduos singulares isolados, mas sim no modo de ver portado por grupos de pessoas
(WEBER, 2005, p. 48).
contrado por ele na história da humanidade. Porém, ele era contra a ideia comum
entre economistas de que o modo de produção burguês, baseado na livre competição,
deveria ser considerado uma lei natural eterna, e não histórica:
[...] mistas dão a entender que se trata de relações pelas quais se cria a riqueza e se desen-
volvem as forças produtivas, em conformidade com as leis da natureza. Portanto, tais rela-
ções são elas próprias leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas
que devem reger sempre a sociedade. Assim, já houve história, mas agora deixou de haver.
(MARX in BOURDIEU et al., 1999, p. 147).
Darwin assume, como os economistas, que é preciso haver sempre uma luta pela
sobrevivência, ou seja, competição, para que o homem continue a se desenvolver. Po-
rém, ele não estava assim defendendo o livre
comércio dos economistas. O que ele pregava
era que as taxas naturais de aumento popula-
cional não fossem muito diminuídas, como
propunha Thomas Malthus, pois, sem
um grande número de indivíduos, não
há competição. É preciso que nasçam
mais pessoas do que a natureza é capaz de
sustentar para que aquelas com melhores características possam ter vantagem sobre as
Man, like every other ani-
3.“��������������������������
outras e se tornem predominantes. Em A Descendência do Homem (1901) ele escreve: mal, has no doubt advanced
to his present high condi-
O homem, como qualquer outro animal, sem dúvida, avançou à sua presente condição tion through a struggle for
superior por meio de uma luta pela existência consequente de sua rápida multiplicação; e existence consequent on his
rapid multiplication; and if
se ele vai avançar ainda mais, é de se temer que ele deva permanecer sujeito a uma severa he is to advance still higher,
luta. Caso contrário, ele irá afundar na indolência, e homens com melhores características it is to be feared that he must
remain subject to a severe
não iriam ter mais sucesso que os outros na batalha pela vida. Assim, nossa taxa natural de struggle. Otherwise he would
crescimento, apesar de levar a vários e óbvios males, não deve ser grandemente reduzida sink into indolence, and the
more gifted men would not
de maneira alguma (tradução nossa, DARWIN in GERRATANA, 1974, p. 75)3
be more successful in the
battle of life than the less
Ao aplicar diretamente sua teoria ao homem, Darwin não leva em conta a própria gifted. Hence our natural
evolução humana, que demonstra ser o homem capaz de sobrepujar a natureza de rate of increase, though
leading to many and obvious
acordo com suas vontades. Ele não está submetido à lei natural como qualquer outro evils, must not be greatly
diminished by any means”
ser vivo, pois sua consciência lhe permite desafiar os limites do que lhe é imposto pelo (DARWIN in GERRATANA,
mundo natural, adaptando o ambiente a si mesmo. Como ironiza Engels: 1974, p. 75).
Darwin não sabia que amarga sátira havia escrito sobre a humanidade e especialmente
sobre seus compatriotas, quando mostrou que a livre competição, a luta pela existência,
que os economistas celebram como a maior conquista histórica, é o estado normal do
reino animal. Apenas a organização consciente da produção social, na qual a produção e a
distribuição são levadas de maneira planejada, pode levantar a humanidade acima do resto
do mundo animal quanto ao aspecto social, da mesma forma que a produção em geral
elevou o homem no seu aspecto como espécie (tradução nossa, Dialectics of Nature, 1883,
4.“Darwin did not know what p. 35. In GERRATANA, 1974, p. 74)4
a bitter satire he wrote on
mankind, and especially on Para Marx e Engels, Darwin, sem perceber, demonstrou que, ao seguir o modo de
his countrymen, when he
showed that free competi- produção burguês, o homem se coloca no mesmo nível dos outros animais. Portanto,
tion, the struggle for exis-
esse modo de produção não é o topo mais alto de uma escala de progresso evolutivo,
tence, which the economists
celebrate as the highest como defendem os economistas, mas é a base de qualquer organização de seres vivos.
historical achievement, is the
normal state of the animal Somente quando o homem planeja o seu modo de produção de maneira racional, a
kingdom. Only conscious condição humana se eleva e se liberta de sua animalidade, afirmam os dois. Sendo o ho-
organization of social pro-
duction, in which production mem capaz de ativamente transformar a si mesmo e o mundo a sua volta, sem se deixar
and distribution are carried
on in a planned way, can lift
domar pela natureza, a história humana não corre o risco de estagnar devido à ausência
mankind above the rest of de competição. Segundo Marx, diferentemente do animal “que produz apenas o que
the animal world as regards
the social aspect, in the same precisa imediatamente para si ou seu filhote”, o homem “produz mesmo livre da neces-
way that production in gene-
sidade física e só produz verdadeiramente sendo livre da mesma”, ele “também forma
ral has done this for men in
their aspect as species.” (Dia- segundo as leis da beleza” (Marx, 1983, p. 157). Assim, o caminho da humanização, para
lectics of Nature, 1883, p. 35.
In GERRATANA, 1974, p. 75). esses teóricos, seria a sociedade comunista, na qual não haveria mais conflito entre os
homens e entre eles e a natureza, pois nesse tipo de sociedade os homens poderão:
[...] assumir a direção da produção, orientando-a, segundo sua vontade consciente e suas
necessidades, e não de acordo com um poder “externo” que regule a atividade que caracte-
riza a espécie. (QUINTANERO et al., 2003, p. 53)
Progresso ou acaso
A questão da superioridade humana em relação aos outros animais constitui outro
ponto de divergência entre o pensamento de Marx e Durkheim e o de Darwin: a con-
cepção de evolução como progresso. O homem para Darwin não é o maior exemplo de
perfeição ou o ápice de uma escala evolutiva progressista, do simples para o complexo.
Marx, por sua vez, aplica o conceito de progresso em seus estudos sobre a evolução dos
modos de produção, assim como Durkheim identifica uma escala de progresso ao es-
tudar a história da divisão do trabalho e da vida religiosa. Esse tipo de pensamento pro-
gressista era comum à grande maioria de cientistas do século XIX, influenciados pelo
contexto dos grandes desenvolvimentos da
Revolução Industrial. Darwin, entre-
tanto, não usou a palavra “evolução”
em seu trabalho, que em sua época estava
“firmemente ligada ao conceito de pro-
gresso” (Gould, 1999, p. 26). Esse termo foi
introduzido por Herbert Spencer e passou
a ser largamente adotado pelos cien-
tistas que “precisavam de uma pala-
vra mais sucinta para a descendência com modificação de Darwin” (Gould, 199, p. 28).
Além disso, a maioria deles acreditava no progresso em direção a formas complexas ao
longo do tempo, apesar de defenderem que, no início da vida, existiam formas simples
e que, ao longo da história, surgiram estruturas mais complexas. Darwin esclarece que
essa mudança nem sempre representou um progresso. Muitas estruturas complexas
foram extintas, enquanto outras simples foram mantidas durante milhares de anos.
Para algumas espécies, é mais vantajoso possuir uma estrutura simples de organiza-
ção, como aponta Darwin em A Origem das Espécies:
Na verdade, a Seleção Natural, ou a sobrevivência do mais apto e mais forte, não leva
necessariamente a um desenvolvimento progressivo, apenas se apodera das variações que
se apresentam e que são úteis a cada indivíduo nas relações complicadas de sua existência
[...] em virtude de condições de existência muito simples, uma alta organização passa a ser
inútil e até mesmo desvantajosa porque, sendo frágil, degenerar-se-ia mais facilmente e
também de forma fácil seria destruída (2005, p. 189-190).
Darwin também escreve que nem tudo é mantido porque exerce alguma função
ou proporciona algum benefício, o que também diferencia o seu pensamento do de
Durkheim. Inicialmente Darwin defendeu em A Origem das Espécies que toda es-
trutura biológica possui uma função e foi mantida no decorrer da evolução porque de
alguma maneira contribuiu para a sobrevivência da espécie, assim como Durkheim
acreditava que toda estrutura social servia para garantir a existência da sociedade. No
entanto, na obra A Origem do Homem, Darwin se corrige:
Transformação ou seleção
Para Weber, assim como para Marx e Darwin, o conflito é uma das chaves para
entender as mudanças históricas. Por isso, ele concentra muitos de seus estudos nas
formas de dominação, procurando explicar como a visão de mundo de grupos social-
mente selecionados passa a orientar as atitudes subjetivas de todos os indivíduos de
uma sociedade. Diferentemente de Marx, que defendia que os modos de produção
determinavam a maneira de pensar dos homens, Weber via um encaixe entre um
modo de produção e um modo de pensar já existentes, sem que um tenha feito o ou-
tro surgir. Ele chama de materialismo histórico ingênuo a concepção “segundo a qual
‘ideias’ como essa [as do espírito capitalista] são geradas como ‘reflexo’ ou ‘superes-
trutura’ de situações econômicas” (Weber, 2007, p. 48). Pode-se dizer, então, que a ex-
plicação de Marx é transformista, enquanto a de Weber é selecionista. Marx defendia,
por exemplo, que os males do capitalismo, como alienação, exploração, desperdício e
ineficiência se tornariam tão graves “a ponto de criar as condições subjetivas para uma
revolução comunista” (Elster, 1989, p. 179). Portanto, o ambiente seria capaz de pro-
vocar o aparecimento de novas características nos indivíduos. Já Weber oferece uma
explicação selecional em A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, segundo a
qual as variações existem a priori e são selecionadas ao se adequarem a um ambiente.
A ética protestante já existia, de maneira independente do “ambiente” capitalista, to-
davia, quando essa ética apareceu inserida no contexto capitalista, ela foi selecionada
e, ao longo do tempo, passou a predominar na maioria dos indivíduos, perdendo sua
conexão com a religião e formando o espírito do capitalismo. Assim, “esse ‘espírito’ do
capitalismo pode ser entendido como puro produto de uma adaptação” (Weber, 2005,
p. 64) e “teve de travar duro combate contra um mundo de forças hostis” (Weber,
2005, p. 49) para se estabelecer.
Considerações finais
As ideias de Darwin, assim como as de Marx, Durkheim e Weber, deram margem,
na história, a uma série de diferentes interpretações. Muitas vezes, essas interpreta-
ções se tornaram ideologias que custaram muitas vidas, como no caso da eugenia na-
zista e da repressão do partido comunista na antiga União Soviética. A aplicação da
teoria da evolução por seleção natural às sociedades humanas, o chamado darwinismo
social, também gera até hoje muitas discordâncias e implicações antiéticas. Como foi
dito, é preciso levar em conta a peculiaridade do homem entre os outros animais an-
tes de transformar as leis que regulam a natureza em explicações da evolução e das
relações humanas. Porém, fazer conexões entre as ideias dos clássicos da sociologia e
as do maior clássico da biologia nem sempre tem consequências desastrosas. Por trás
de teorias e conceitos de diferentes áreas, podem existir os mesmos princípios epis-
Referências
BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J. C.; PASSERON, J. A profissão de sociólogo. Tradução Guilher-
me João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1999.
BROOKE, J. H.; HODGE, J. (Ed.); RADICK, G. (Ed.) Darwin and Victorian Christianity. The Cam-
bridge Companion to Darwin, 2003, p. 192-211.
COLP, R. Jr. The myth of the Darwin-Marx letter. History of Political Economy v. I4:4, p. 461-482,
1982.
DARWIN, C. A Origem das Espécies. Tradução John Green. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
DURKHEIM, É. As Regras do Método Sociológico. Tradução Paulo Neves, revisão da tradução Eduar-
do Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ELSTER, J. Marx Hoje. Tradução Plínio Dentzien. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
GOULD, S J. Darwin e os Grandes Enigmas da Vida. Tradução Maria Elizabeth Martinez. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
KALBERG, S. Max Weber: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
MARK, K.; FERNANDES, F. (Org.). Trabalho alienado e superação positiva da autoalienação huma-
na (Manuscritos econômicos e filosóficos). K. Marx, F. Engels – História. São Paulo: Ática, 1983.
RUNCIMAN, W.G. 2001. Was Max Weber a Selectionist in Spite of Himself? Journal of Classical
Sociology. 2001, p. 1- 13.
WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução José Marcos Mariani de Macedo,
edição Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Editora Schwarcz, 2005.