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CAPÍTULO
As narrativas orais
ovimbundu como espaço de
produção de sentidos
Nsimba José
Universidade Agostinho Neto
Introdução
O presente estudo visa analisar as narrativas orais ovimbundu vistas como
espaço de interseção de saberes que revelam toda uma experiência sensível re-
lativa aos aspectos de ordem material e imaterial. Decorrentes de uma criação
estético-verbal fictícia, elas representam realidades diversas, evidenciando-se
como respostas às interrogações dos homens, no seu dia a dia. Para a análise das
referidas narrativas, propomos um modelo de leitura que se constrói a partir do
diálogo que se estabelece entre as premissas teóricas de autores como Vladimir
Propp, Claude Bremond e Paul Larivaille. A ideia é vermos a organização interna
das narrativas e percebermos a maneira como as instâncias lógicas se articulam
no seu interior, por um lado, e como, por outro, considerando os contextos de sua
enunciação, proliferam significados. Quanto à estruturação do presente estudo,
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51 Os textos a serem estudados são três. Foram recolhidos no município da Caala, província do
Huambo, em setembro de 2014, quando da nossa pesquisa de campo, que consistiu em reco-
lher seletivamente as narrativas orais em umbundu.
52 É importante referir que, de uma maneira geral, entre os povos africanos, há textos orais que
são do domínio restrito, ou seja, tendo em conta a sua dimensão místico-esotérica ou mesmo
histórica, não podem ser conhecidos pela sociedade, porque constituem o segredo dos clãs,
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Figura 12.1 – Cozinha tradicional do Namibe. Fonte: foto de Ilka Boaventura Leite, 2012.
famílias e mesmo de profissionais como os das escolas iniciáticas, quer masculinas, quer femi-
ninas.
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53 Barthes (2013) foi claro em dizer que são inúmeras as narrativas do mundo. A narrativa pode
ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo ges-
to ou pela pintura ordenada de todas as substâncias, ou seja, está presente no mito, na lenda,
na fábula, no conto, na novela e muito mais.
54 Concordamos com Goody (2010) quando diz que certos tipos de textos orais, como contos
e fábulas, atravessam as fronteiras sociopolíticas e linguísticas de forma livre, sofrendo adap-
tações à medida que vão passando pelas bocas de contadores de histórias individuais. Isso
acontece porque são considerados livres, ou seja, admitem a variação provocada pelo conta-
dor. Sua transformação é motivada por ele, sendo o mesmo também influenciado por fatores
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que podem ser de ordem sociológica, psicológica ou outras, fazendo com que os textos dessa
natureza ampliem, reduzam ou assimilem elementos decorrentes da atualidade nos domínios
sociais, políticos, militares, ideológicos, econômicos e tecnológicos.
55 É preciso explicar que há textos orais enunciados e ouvidos singularmente pelo seu executante.
É o caso de canções cantadas por um intérprete quando caminha sozinho.
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Figura 12.2 – Figueira do deserto. Fonte: foto de Ilka Boaventura Leite, 2012.
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Figura 12.3 – Jovem pastor do Namibe. Fonte: foto de Nazareno Campos, 2014.
Era uma vez, um moço saiu da sua aldeia à procura de uma moça. Quando
chegou à outra aldeia, disse aos seus amigos que ele estava à procura de uma
moça que fosse muito bonita para casar-se com ela.
– Amigos, quero uma daquelas que todo o mundo considera a mais linda
desta aldeia – disse o jovem.
E um deles respondeu:
– Nesta aldeia, há uma moça muito bonita, mas não será possível, porque
não conseguirás dar aquilo que os pais dela te vão pedir.
– Eu vou tentar. Quero saber o que os pais dela vão pedir.
Chegado à casa dos pais da moça, eles perguntaram:
– O que é que o senhor quer?
– Quero pedir a vossa filha em casamento. Respondeu o jovem.
– Está bem. Nós não exigimos muito para o casamento. Traz apenas um saco
de ar.
– Não há problemas. Por enquanto eu gostaria de pedir aos pais uma rodilha
de fumo para por à cabeça durante a transportação de ar.
192 Kadila: culturas e ambientes
O macaco e o cágado
Era uma vez, havia um macaco que estava doente há muito tempo. Tomava
remédios, mas a sua saúde não melhorava.
Certo dia, resolveu ir a um curandeiro. Quando chegou à casa deste, expli-
cou tudo o que sentia.
O curandeiro ouviu-o atentamente e disse-lhe: – Para te curares, é necessário
que comas coração de um macaco.
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O caçador e o elefante
Era uma vez, um caçador resolveu ir à caça. Pelo caminho, encontrou um
elefante morto e decidiu regressar à casa para que fosse buscá-lo no dia seguinte.
Quando chegou, contou à sua mulher o que tinha visto, advertindo-a que não
contasse a ninguém porque, se o segredo fosse revelado, a carne do elefante seria
partilhada na aldeia.
56 Conforme dito anteriormente, as narrativas orais que têm vindo a circular há milhares de anos
nas diversas partes do mundo, de geração a geração, por sofrerem permanentes reciclagens ou
reajustes, chegam-nos sempre como fragmentos, difíceis de serem reconstruídas para se obter
o texto-modelo, dito de outra maneira, a narrativa derivante.
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Na manhã do dia seguinte, saiu para ir buscar o elefante. Porém, pelo cami-
nho, viu um passarinho que atraiu a sua atenção e resolveu segui-lo. Cada vez que
o seguia, o passarinho fugia e cantava:
– Não te preocupes comigo. Vai buscar o que você deixou, porque senão vais
perder tudo.
O caçador seguia o passarinho, e este fugia cada vez mais e cantava:
– Não te preocupes comigo. Vai buscar o que você deixou, porque senão vais
perdê-lo.
O caçador seguiu o passarinho o dia todo e não o apanhou até que ficou
tarde, e resolveu ir onde tinha encontrado o elefante para levá-lo à sua casa.
Quando chegou no local onde tinha visto o elefante, não encontrou nada,
porque, afinal, enquanto ele seguia o passarinho, os outros caçadores que iam
à caça viram o grande animal pelo caminho e levaram-no à casa do soba. Pois,
como dizem as regras da comunidade, caso alguém encontrasse um animal morto
pelo caminho, tinha de transportá-lo à aldeia a fim de ser dividido e comido por
todos.
Quando o caçador chegou à aldeia, encontrou uma grande festa. Perguntou
à sua esposa a que se devia a mesma, e esta contou tudo ao seu marido, que ficou
muito triste e não aceitou participar da festa.
porque não se revela como uma situação estática e isolada na narrativa, pelo
contrário, é parte dela. Basta observar que evolui e estabelece relações dialógicas
com as outras instâncias narrativas, mais precisamente com a situação final e não
com a resolução que, como a perturbação, é implícita.
Quanto à situação final, é disfórica para o caçador. Conforme nos mostra o
texto, ele perdeu muito tempo seguindo o passarinho e, quando o dia escureceu,
resolveu ir buscar o elefante que tinha visto pelo caminho, mas não o encontrou, e
isso deixou-o mais triste quando chegou à aldeia e apercebeu-se que a presa tinha
sido transportada para a lá, e com ela fez-se a festa de que se recusou a participar.
No contexto na narrativa em análise, é evidente a ideia da coesão comunitária.
Entendemos que o indivíduo e o grupo mostram-se conciliados, ou seja, o indiví-
duo é consubstancial ao grupo. O contrário revela-se como ruptura aos princípios
aceites pela comunidade, por isso é punido. E é o que acontece. O caçador, por
valorizar a sua ambição desmedida, perdeu tudo.
Considerações finais
Feito este estudo, revela-se importante considerar os seguintes aspectos: as
narrativas ovimbundu aqui analisadas, do ponto de vista da sua organização in-
terna, não apresentam uma rigidez estrutural, conforme tivemos a ocasião de
explicar. Essas narrativas, no processo de encadeamento dos seus segmentos no
nível profundo, propõem discursos cuja articulação privilegia termos opostos
como aceitação versus negação, euforia versus disforia, para revelarem compor-
tamentos e atitudes incorporados nas personagens que contracenam nelas.
Fora do universo textual, essas narrativas da tradição oral expressam a reali-
dade humana simbolicamente representada para justificar situações de superfície
social, constituindo-se, desse modo, respostas aos problemas do dia a dia dos seus
produtores.
Referências
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BÁ, H. A. A tradição viva. In: KIZERBO, J. K. (Org.). História geral da África I, meto-
dologia e pré-história. São Paulo: Ática, 1982. p. 167-212.
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BREMOND, C. A lógica dos possíveis narrativos. In: BARTHES, Roland et al. Análise
estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 105-135.
CALVET, L-J. Tradição oral & tradição escrita. São Paulo: Parábola, 2011.
______. As raízes históricas do conto maravilhoso. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2002.