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CAPÍTULO
As narrativas orais
ovimbundu como espaço de
produção de sentidos
Nsimba José
Universidade Agostinho Neto

Ovindele visonehã alivulo, etu tusonehã vutima


Os brancos escrevem livros, nós escrevemos no peito
(Provérbio ovimbundu)

Introdução
O presente estudo visa analisar as narrativas orais ovimbundu vistas como
espaço de interseção de saberes que revelam toda uma experiência sensível re-
lativa aos aspectos de ordem material e imaterial. Decorrentes de uma criação
estético-verbal fictícia, elas representam realidades diversas, evidenciando-se
como respostas às interrogações dos homens, no seu dia a dia. Para a análise das
referidas narrativas, propomos um modelo de leitura que se constrói a partir do
diálogo que se estabelece entre as premissas teóricas de autores como Vladimir
Propp, Claude Bremond e Paul Larivaille. A ideia é vermos a organização interna
das narrativas e percebermos a maneira como as instâncias lógicas se articulam
no seu interior, por um lado, e como, por outro, considerando os contextos de sua
enunciação, proliferam significados. Quanto à estruturação do presente estudo,
184 Kadila: culturas e ambientes

no começo, vamos apresentar um breve retrato sobre os ovimbundu, grupo étnico


angolano detentor de um riquíssimo reportório histórico-cultural do qual adqui-
rimos as narrativas a serem analisadas. A seguir, reservamos um espaço para nos
debruçarmos acerca da tradição oral nos espaços socioculturais bantu, seguindo-
-se à interpretação das narrativas ovimbundu.

Os ovimbundu: um breve retrato


Antes de entrarmos no tema central da nossa pesquisa, vamos apresentar, de
maneira sucinta, os ovimbundu, grupo etnolinguístico angolano donde as narra-
tivas a serem abordadas têm origem.51 Os ovimbundu pertencem ao vasto tronco
genealógico dos chamados povos bantu. Habitam o planalto central de Angola,
que, em termos administrativos, abrange as seguintes províncias: Benguela, Bié e
Huambo. No nordeste, a zona planáltica estende-se até a faixa sul da província de
Malanje, ao passo que a sul vai até à metade da Huíla. Estima-se que essa região
é habitada por mais de 5.500.000 habitantes (MALUMBU, 2005). Na vertente
da geografia econômica e dos recursos humanos, o planalto central apresenta
uma configuração cujo panorama tem formas variadas. É abundante em riachos e
rios de forte caudal, os quais permitem que tenha uma excedente produção agro-
pecuária influenciada com os aluviões que se acumulam ao longo dos rios e das
regiões baixas, o que, na verdade, tem favorecido a prática da agricultura, pesca
e pastorícia (MALUMBU, 2005).
A sua fauna e flora são fascinantes e diversificadas: têm capim, plantas me-
dicinais, savanas e variadíssimos animais que fazem parte não somente de sua
economia de subsistência, mas também do seu imaginário, ou seja, integram a
literatura expressa em umbundu, língua falada pelos ovimbundu, que, dentre ou-
tras variantes, tem as seguintes: mbalundu, ndombe, nganda, viye e wambu (FER-
NANDES; NTONDO, 2002).
A literatura oral ovimbundu está impregnada de vários gêneros orais, como
os de maior extensão estrutural (contos, lendas, mitos) e os de menor extensão
estrutural (adivinhas, adágios, canções, orações, provérbios) conservados na me-
mória dos seus detentores: anciãos, chefes de famílias, homens, mulheres e crian-
ças.52 É importante ressaltar que os povos da região planáltica, à semelhança de

51 Os textos a serem estudados são três. Foram recolhidos no município da Caala, província do
Huambo, em setembro de 2014, quando da nossa pesquisa de campo, que consistiu em reco-
lher seletivamente as narrativas orais em umbundu.
52 É importante referir que, de uma maneira geral, entre os povos africanos, há textos orais que
são do domínio restrito, ou seja, tendo em conta a sua dimensão místico-esotérica ou mesmo
histórica, não podem ser conhecidos pela sociedade, porque constituem o segredo dos clãs,
As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos 185

todos os outros povos do mundo, têm uma memória prodigiosa. Há milhares de


anos que conservam em sua memória milhares de adivinhas, adágios, canções,
contos, invocações, lendas e mitos, listas de lugares, listas genealógicas e muito
mais, os quais têm a palavra como seu principal vetor.

Figura 12.1 – Cozinha tradicional do Namibe. Fonte: foto de Ilka Boaventura Leite, 2012.

Aspectos da tradição oral


Quando falamos de narrativas orais, assim como de outros textos estéticos
que se materializam com a palavra falada, estamos diante um tipo de comunica-
ção que encontra as raízes históricas nas chamadas sociedades de tradição oral,
opostas das sociedades de tradição escrita, conforme veremos a seguir.
Segundo Calvet (2011), esses dois tipos de sociedades, para o efeito de sim-
plificação, podem ser reduzidas a quatro casos específicos: (i) as sociedades de
tradição escrita antigas, nas quais língua escrita é utilizada na comunicação oral
do dia a dia das pessoas; (ii) as sociedades de tradição escrita antigas, nas quais
a língua escrita não é aquela que é utilizada na vida cotidiana dos seus locutores;

famílias e mesmo de profissionais como os das escolas iniciáticas, quer masculinas, quer femi-
ninas.
186 Kadila: culturas e ambientes

(iii) as sociedades nas quais se introduziu recentemente a prática alfabética, onde


foram impostas as línguas dos colonizadores; e (iv) as sociedades de tradição
oral, onde a oralidade, contrariamente à escrituralidade, vista como codificação
gráfico-visual do alfabeto verbal, representa uma comunicação que privilegia a
percepção auditiva da mensagem impregnada de um significado conceitual e sim-
bólico.
As sociedades africanas são sociedades de tradição oral, apesar de nelas ter
sido introduzida a escrita alfabética decorrente do contato com os árabes e os
europeus. Desse modo, pode se dizer que nas sociedades em questão é visível,
seguindo o plano abstrato de Zumthor (2011), a oralidade primária e imediata,
ou pura, sem contato com a escrita, assim como a oralidade coexistente com a
escrita, que pode funcionar de dois modos diferentes: seja como oralidade mista,
quando a influência da escrita aí contínua externa, parcial ou retardada, como
acontece na África e na América; seja como oralidade segunda, que recompõe a
partir da escrita e no interior de um meio em que predomina sobre os valores da
voz na prática e no imaginário.
É interessante sublinhar a importância que os bantu dão à voz, à palavra fa-
lada, pois, praticamente, na vida, nada tem um fundamento sem ela. Como vimos
atrás, para além de a língua possuir uma carga conceitual, nessas sociedades exis-
tem certas formas de comunicação oral que são separadas da fala comum. Nesse
tipo de fala incomum, a voz humana representa um conjunto de valores que não
são comparáveis a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura, criadores
de inumeráveis formas de arte (ZUMTHOR, 2005). Essas variadíssimas formas
artísticas orais (adivinhas, anedotas, canções, contos, epopeias, lendas, mitos,
orações, provérbios e outras) encontram as suas raízes nas sociedades antigas.
Elas estabelecem uma relação dialógica com o momento em que são enunciadas,
sem ignorar os aspectos extratextuais como entonações, danças, deslocações e
gestos que as integram, completando, às vezes, o sentido daquilo que é proferido,
narrado ou cantado. Não sendo nosso interesse estudar todos os textos de nature-
za oral, vamos prestar maior atenção às narrativas,53 mais precisamente contos e
fábulas.54 Por narrativas orais, entendemos uma história de caráter figurativo que

53 Barthes (2013) foi claro em dizer que são inúmeras as narrativas do mundo. A narrativa pode
ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo ges-
to ou pela pintura ordenada de todas as substâncias, ou seja, está presente no mito, na lenda,
na fábula, no conto, na novela e muito mais.
54 Concordamos com Goody (2010) quando diz que certos tipos de textos orais, como contos
e fábulas, atravessam as fronteiras sociopolíticas e linguísticas de forma livre, sofrendo adap-
tações à medida que vão passando pelas bocas de contadores de histórias individuais. Isso
acontece porque são considerados livres, ou seja, admitem a variação provocada pelo conta-
dor. Sua transformação é motivada por ele, sendo o mesmo também influenciado por fatores
As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos 187

comporta valores culturais de uma determinada comunidade com raízes e perso-


nalidade regionais, muitas vezes perdidas na amálgama da modernidade (ROSÁ-
RIO, 1989). Para esse autor moçambicano, na sociedade africana, em particular
a campesina, em que a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores
– quer educacionais, quer sociais, quer político-religiosos, quer econômicos, quer
culturais – apercebe-se mais facilmente que as narrativas são a mais importante
engrenagem na transmissão desses valores. Do ponto de vista da sua forma, são
geralmente em prosa e registram um número reduzido de personagens. Ao con-
trário do conto, que tem como personagens seres humanos, a fábula, de caráter
doutrinário e alegórico, encena animais, plantas, seres inanimados. Essas narra-
tivas, ao encenarem as personagens numa determinada situação de instabilidade
ou de instabilidade, reservam o triunfo e a felicidade ao herói, que varia de região
a região.
Vale sublinhar que, de uma maneira geral, em todas as culturas, esse sujeito
da narrativa é sempre o vencedor, não importando a grandeza, a força, a astúcia
etc. de que o seu adversário é portador, porque, por mais apático que ele pareça,
por mais desvantagens que tenha no decurso da história, ele tem sempre a possi-
bilidade de vencer. Caso não pela inteligência ou perspicácia que lhe é facultada
pela comunidade, é pela ajuda de um auxiliar, às vezes mágico (JOSÉ, 2010).
Tendo em conta esse aspecto, supõe-se que o que está na base da inviolabilidade
dos seus papéis e status nas narrativas seja o direito ao mérito que lhe é conferido
pela comunidade em forma de direito natural inalienável, tradicionalmente con-
sagrado nos princípios que regem a vida da comunidade (JOSÉ, 2010).
A enunciação dos textos orais poéticos entre os africanos é dependente de
contextos, os quais determinam a escolha do gênero textual, da parte do intér-
prete, em função a fatores como idade do ouvinte.55 Entre os ovimbundu e os
demais povos do grupo bantu, os textos orais a que estamos a nos referir neste
trabalho têm como espaço de maior difusão as aldeias, o que não significa que a
sua proliferação não ocorra nos centros urbanos. Na verdade, são várias as situa-
ções da sua enunciação, mas citaremos algumas para justificarmos o que estamos
a comentar. Por exemplo, havendo desentendimento entre duas ou mais pessoas,
alguém, no meio envolvente, pode proferir um provérbio cuja finalidade é redimir
o conflito.Nessa vertente, estamos diante de uma produção poética oral com uma
dimensão utilitária e finalística, uma vez que serve de resposta aos vários proble-

que podem ser de ordem sociológica, psicológica ou outras, fazendo com que os textos dessa
natureza ampliem, reduzam ou assimilem elementos decorrentes da atualidade nos domínios
sociais, políticos, militares, ideológicos, econômicos e tecnológicos.
55 É preciso explicar que há textos orais enunciados e ouvidos singularmente pelo seu executante.
É o caso de canções cantadas por um intérprete quando caminha sozinho.
188 Kadila: culturas e ambientes

mas do cotidiano. Um outro exemplo: entre os ovimbundu, há canções cantadas


por mulheres quando moem o milho nas pedras para produzirem a sua farinha.
Sentadas no chão, enquanto moem o milho, cantam em conjunto, tematizando,
entre os assuntos, o amor ao trabalho, (re)introduzindo a mulher em atividades
produtivas.
Segundo Malumbu (2005), para os ovimbundu, não existe melhor método
de introduzir as pessoas em novos conhecimentos e de as forjar nos usos, nos
costumes, nas tradições e nas crenças senão através da participação direta nas
manifestações sociais dessas atividades. Entre eles, diz o citado autor, no processo
de educação não formal, está o ondjango, escola tradicional reconhecida dentro
da estrutura da família alargada aonde as crianças são conduzidas para aprende-
rem, com os mais velhos, aspectos da vida no sentido geral, que exerce um papel
importante na educação, justamente porque reúne os mestres de cerimônia para
transmitirem os seus conhecimentos acumulados ao longo dos tempos aos mais
novos. No ondjango, as narrativas orais, assim como os outros textos materiali-
zados com o código oral, como o provérbio e a advinha, são também tidos como
objeto de ensino-aprendizagem.

Figura 12.2 – Figueira do deserto. Fonte: foto de Ilka Boaventura Leite, 2012.
As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos 189

Aspectos teóricos e metodológicos


Os estudos cujos enfoques recaem para a narrativa são inúmeros. Todavia,
tendo em atenção os objetivos que pretendemos atingir, vamos revisitar as teorias
de Vladimir Propp, Claude Bremond e Paul Larivaille, no sentido de, a partir de-
les, fundamentarmos o modelo de leitura que adotamos, a fim de analisarmos os
textos selecionados para o nosso estudo.
Em Morfologia do conto maravilhoso, Propp (2006), analisando um corpus
de cem contos russos, descobriu que havia neles elementos constantes e variáveis.
Para ele, o que muda são os nomes (e, com eles, os atributos) das personagens, e
o que não muda são suas ações, ou funções (num total de trinta e uma funções).
Propp descobriu também que a sequência das funções era sempre idêntica, mas
chama atenção para o fato de que essa premissa tem a ver somente com o folclo-
re e não com os contos criados artificialmente. Uma outra questão que merece
destaque no trabalho desse teórico russo é o momento estático caracterizado pela
situação inicial e situação final como ponto de partida e ponto de chegada da
narrativa, que pode ser eufórico ou disfórico.
Em síntese, o que ele procurou fazer foi estudar formas e o estabelecimento
das leis que regem a disposição dos contos maravilhosos russos. Para o efeito, foi
possível analisá-los através do processo de segmentação, que consistiu em enume-
rar as funções. A cada uma delas atribuiu uma breve descrição da sua essência,
definição reduzida numa palavra e o seu signo convencional.
Essas e outras conclusões esboçadas por Propp despertaram o interesse de
vários pesquisadores, como Levi-strauss, Roland Barthes, A. J. Greimas, Claude
Bremond, Tzevetan Todorov e Cesare Segre. Bremond (2013), por exemplo, ao
revisar o trabalho de Propp, centra-se na própria lógica da narrativa, propondo
um modelo de análise extensivo para os enunciados narrativos, pois não se limita
aos contos da tradição oral, como Propp. O modelo do teórico francês é baseado
em quatro regras que passamos a enumerar: (i) o átomo narrativo é a função,
conforme Propp; (ii) O agrupamento de três funções engendra a sequência ele-
mentar, a qual corresponde às três fases obrigatórias de todo processo, sendo que
a primeira abre a possibilidade do processo, a segunda, o processo de atualização
de uma possibilidade, e a terceira, uma ação que fecha o processo sob a forma
de resultado esperado; (iii) tratando-se de possibilidades, as sequências não são
preestabelecidas, e as funções nelas relacionam-se em forma de árvore, encaixan-
do função de objetivo, de atualização e de fim (a primeira função apresenta o
objetivo do herói, abrindo as possibilidades de ação, a segunda seleciona uma das
possíveis ações do herói para atualizá-la, e a terceira conclui o sucesso ou a falha
do herói em atingir seu objetivo); (iv) as sequências elementares combinam-se en-
tre si para engendrar as sequências complexas. A crítica de Bremond a Propp as-
190 Kadila: culturas e ambientes

senta, entre outros aspectos, no fato de a metodologia daquele ter se limitado ao


conto maravilhoso e desconsiderar a intervenção do narrador, porque dirigia todo
o seu trabalho apenas para uma codificação finalista das funções, que também
foram alvo de críticas e revisões (ROSÁRIO, 1989; SEGRE, 1999; BREMOND,
2013; GREIMAS, 2013).
Portanto, sem minimizar as propostas de Propp e Bremond, segundo Rosário
(1989), Paul Lavivaille, que se situa na linha desses teóricos, tenta revisar o esque-
ma canônico de Propp e suas trinta e uma funções. Ao teorizar sobre o enredo da
narrativa, Paul Larivaille propõe um esquema pentadimensional, o qual divide o
enredo em cinco partes.
Ele considera os momentos estáticos descobertos por Propp: situação inicial
e situação final (eufórico ou disfórico), conforme assinalado atrás. Entre esses
dois momentos, aponta três: perturbação, transformação e resolução, considera-
dos momentos dinâmicos. A perturbação resulta da introdução de um elemento
que desequilibra a estabilidade, ao passo que a transformação, fase subsequente,
representa a unidade onde se efetuam os diversos passos que levam ao realinha-
mento que permite um desenlace. Ao contrário disso, a resolução é uma espécie
de recomposição de desordem provocada pelo primeiro momento dinâmico.
Feita essa síntese teórica, podemos dizer que são vários os ângulos de inci-
dência dos autores com quem estamos a trabalhar, porém, considerando as ques-
tões de ordem metodológica, vamos privilegiar somente os aspectos que se en-
quadram no nosso trabalho. Desse modo, parece-nos viável aplicar o modelo de
análise pentadimensional, pois, considerando o seu carácter operativo, permite-
-nos decompor e recompor a sintaxe das narrativas e verificar a sucessão dos seus
segmentos correlacionados suscetíveis de receber uma explicação contextualiza-
da, que mostra como se produz e se interpreta o sentido das mesmas. É assim que
vamos proceder nas páginas subsequentes, ou seja, vamos apresentar as narrati-
vas ovimbundu uma por cada vez, seguindo-se depois a sua análise.
As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos 191

O jovem à procura de uma mulher

Figura 12.3 – Jovem pastor do Namibe. Fonte: foto de Nazareno Campos, 2014.

Era uma vez, um moço saiu da sua aldeia à procura de uma moça. Quando
chegou à outra aldeia, disse aos seus amigos que ele estava à procura de uma
moça que fosse muito bonita para casar-se com ela.
– Amigos, quero uma daquelas que todo o mundo considera a mais linda
desta aldeia – disse o jovem.
E um deles respondeu:
– Nesta aldeia, há uma moça muito bonita, mas não será possível, porque
não conseguirás dar aquilo que os pais dela te vão pedir.
– Eu vou tentar. Quero saber o que os pais dela vão pedir.
Chegado à casa dos pais da moça, eles perguntaram:
– O que é que o senhor quer?
– Quero pedir a vossa filha em casamento. Respondeu o jovem.
– Está bem. Nós não exigimos muito para o casamento. Traz apenas um saco
de ar.
– Não há problemas. Por enquanto eu gostaria de pedir aos pais uma rodilha
de fumo para por à cabeça durante a transportação de ar.
192 Kadila: culturas e ambientes

Com a resposta do rapaz, os pais descobriram tratar-se de um rapaz esperto,


que tinha muito juízo, e disseram:
– Você é filho dum soba. Pode levar a nossa filha em casamento. Nós tam-
bém não temos lugar nenhum onde podemos buscar uma rodilha de fumo.

A narrativa apresentada, como se pode observar, começa com uma situação


inicial instável, ou seja, nela, subjaz a ideia de carência, pois há um jovem que
procura por uma mulher para casar. Quando ele manifesta o interesse aos seus
amigos em querer ter a moça mais linda da aldeia, em resposta, um dos amigos
diz que é difícil, porque os pais dela pedem algo em casamento da filha que nunca
um homem conseguiu dar. Isso representa a perturbação, expressão de contrarie-
dade, contraposta ao desejo do jovem que vai conversar com os pais da moça.
Quer isso dizer que o texto sugere termos disjuntivos: entenda-se negação/
aceitação. Percebe-se que, se por um lado os amigos mostram-se céticos ao desejo
do jovem, este contraria-os e vai conversar com os pais da moça com quem deseja
casar. Dito de outra maneira, a perturbação representa uma obstrução, mas é
ultrapassada, pois o desafio surge como a possibilidade de se ultrapassar a situ-
ação crítica ou conflituante. Relativamente a essa questão, como é sabido, “nas
estórias de qualquer tipo e gênero, é o conflito – seja ele de que tipo for e tenha a
dimensão que tiver (interpessoal, psicológico, religioso, político, ideológico etc.) –
que estimula a catarse e os processos cognitivos” (MOTTA, 2013, p. 167).
Aliando esse aspecto com o comentário, podemos dizer que a introdução do
elemento perturbador abre espaço para novas ações e sequências que se estendem
até ao fim da narrativa. O exemplo disso é o fato de depois da transformação
seguir-se um outro segmento narrativo, a resolução, na qual, seguindo os traços
presentes no texto, tem um sinal positivo, na medida em que, quando o jovem
chega aos pais da moça, é-lhe pedido um “saco de ar” como requisito para o
matrimônio. De seguida, replicando, ele pede aos pais da moça uma “rodilha de
fumo” para transportar o “saco de ar” na cabeça. Depois de os pais ouvirem a
resposta sábia do jovem, deram-lhe a filha.

O macaco e o cágado
Era uma vez, havia um macaco que estava doente há muito tempo. Tomava
remédios, mas a sua saúde não melhorava.
Certo dia, resolveu ir a um curandeiro. Quando chegou à casa deste, expli-
cou tudo o que sentia.
O curandeiro ouviu-o atentamente e disse-lhe: – Para te curares, é necessário
que comas coração de um macaco.
As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos 193

Este aceitou cumprir as orientações do curandeiro. Porém, ao invés de pro-


curar pelo coração do animal que lhe tinha sido recomendado, foi a um rio onde
estava o cágado sentado sobre uma pedra e disse-lhe:
– Tio, preciso da sua ajuda.
– Em que lhe posso servir? Perguntou o cágado ao macaco.
– Fui a um quimbanda para ser tratado. Ele orientou-me para comer o cora-
ção de cágado. O tio pode me dar o seu?
Em resposta, o cágado disse:
– Dar-te-ei o coração que deixei na outra margem do rio.
O macaco pediu ao cágado que subisse nas suas costas para que atravessas-
sem o rio depressa. O cágado subiu e foram. Quando chegaram lá, ele desceu e foi
algures em busca do suposto coração. Mas como a demora era tanta, o macaco
que estava à espera há muito tempo, clamou:
– Tio, onde está? E por que demora?
– Meu sobrinho, já algum dia viu um animal a tirar o seu coração? Eu nunca
lhe darei o meu. Respondeu o cágado.
Quando o macaco ouviu estas palavras, ficou desmoralizado. Regressou
muito triste à aldeia onde morreu.

À semelhança do primeiro texto analisado, esse também apresenta uma situ-


ação inicial instável. Retrata o estado precário da saúde do macaco que, apesar
de tomar remédio durante algum tempo, não melhorava. A sua ida ao curandeiro
denota a possibilidade de ultrapassar a situação crítica em que se encontra. Sig-
nifica que se põe em causa dois saberes numa relação de invalidade e validade.
Justifica-se, porque quando o macaco toma remédios implica que tem conheci-
mento medicinal, mas este falha, e é por isso que vai ao curandeiro a fim de ser
tratado. Quando o curandeiro orienta o seu paciente que vá comer coração de
um macaco e este aceita e vai à procura do objeto, ocorre uma manipulação. O
paciente é levado a agir segundo o querer do curandeiro.
Vendo bem, a perturbação é implícita, sendo que depois da situação inicial
segue-se a transformação. Quer isso dizer que o texto em análise não apresenta
uma rigidez estrutural. Essa questão remete-nos para um outro tipo de transfor-
mação: a transformação de natureza sintagmática que se refere à relação existente
entre o universo da narrativa e o universo da sociedade que a produz (ROSÁRIO,
1989). Normalmente, conforme dito anteriormente, ocorre nos textos orais li-
194 Kadila: culturas e ambientes

vres, os que admitem a variação em relação ao texto-modelo,56 que dá origem


às diferentes versões. Isso acontece porque o intérprete tem a liberdade de criar
e recriar uma série de combinações, reajustes dos episódios e outras alterações
possíveis no texto. Contextualizando, nessa narrativa constata-se uma transfor-
mação do tipo redução. Apresenta um ligeiro desvio em relação ao modelo canô-
nico, através da omissão ou supressão de um ou vários elementos do texto, quer
por opção quer por esquecimento de quem o narra.Depois dessa breve incursão
à volta das transformações das narrativas, resta-nos refletir sobre a resolução e a
situação final. De acordo com o texto em análise, quando o curandeiro orienta
o macaco para comer o coração do animal da mesma espécie, este aceitou, mas
simula, ou seja, ao invés de procurar pelo coração do animal que lhe tinha sido
recomendado, foi a um rio onde estava o cágado e pediu que este lhe desse o seu
coração. O cágado, simulando, aceitou, e assim o macaco ficou com a esperança
de recuperar da doença que tinha. Portanto, nessa parte da narrativa, verificam-
-se, do ponto de vista dos discursos das duas personagens, as suas intenções e
os efeitos esperados das mesmas pelas personagens e pelos ouvintes ou leitores.
Nesse sentido, “taticamente, a estratégia narrativa cria expectativas, confronta
rupturas com a expectativa pela normalização das coisas” (MOTTA, 2013, p.
156). É isso o que acontece. Enquanto o macaco espera pelo cágado para lhe dar
o seu coração, quer dizer que espera do outro o resultado positivo da artimanha
por si planejada.
No entanto, o cágado, como força oposta, também socorre-se da mesma
estratégia a seu favor, o que revela uma dicotomia: vida/morte, justificando os
interesses das duas personagens. Acontece que o cágado vence e o macaco perde.
Este fato mostra, nas relações sociais, isso é, no contexto da narrativa em análise,
a punição da ingenuidade do macaco, enquanto o cágado não possui um sinal
negativo, etnologicamente e simbolicamente.

O caçador e o elefante
Era uma vez, um caçador resolveu ir à caça. Pelo caminho, encontrou um
elefante morto e decidiu regressar à casa para que fosse buscá-lo no dia seguinte.
Quando chegou, contou à sua mulher o que tinha visto, advertindo-a que não
contasse a ninguém porque, se o segredo fosse revelado, a carne do elefante seria
partilhada na aldeia.

56 Conforme dito anteriormente, as narrativas orais que têm vindo a circular há milhares de anos
nas diversas partes do mundo, de geração a geração, por sofrerem permanentes reciclagens ou
reajustes, chegam-nos sempre como fragmentos, difíceis de serem reconstruídas para se obter
o texto-modelo, dito de outra maneira, a narrativa derivante.
As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos 195

Na manhã do dia seguinte, saiu para ir buscar o elefante. Porém, pelo cami-
nho, viu um passarinho que atraiu a sua atenção e resolveu segui-lo. Cada vez que
o seguia, o passarinho fugia e cantava:
– Não te preocupes comigo. Vai buscar o que você deixou, porque senão vais
perder tudo.
O caçador seguia o passarinho, e este fugia cada vez mais e cantava:
– Não te preocupes comigo. Vai buscar o que você deixou, porque senão vais
perdê-lo.
O caçador seguiu o passarinho o dia todo e não o apanhou até que ficou
tarde, e resolveu ir onde tinha encontrado o elefante para levá-lo à sua casa.
Quando chegou no local onde tinha visto o elefante, não encontrou nada,
porque, afinal, enquanto ele seguia o passarinho, os outros caçadores que iam
à caça viram o grande animal pelo caminho e levaram-no à casa do soba. Pois,
como dizem as regras da comunidade, caso alguém encontrasse um animal morto
pelo caminho, tinha de transportá-lo à aldeia a fim de ser dividido e comido por
todos.
Quando o caçador chegou à aldeia, encontrou uma grande festa. Perguntou
à sua esposa a que se devia a mesma, e esta contou tudo ao seu marido, que ficou
muito triste e não aceitou participar da festa.

Já tivemos a oportunidade de analisar as narrativas anteriores e explicamos


a maneira como se organizam e geram significados. Para terminarmos, importa
proceder à análise deste último texto. A começar pela situação inicial, é visível a
representação do caçador que vai à caça; é um indício da falta de algo que consti-
tui um motivo determinante de incentivo para luta pela sobrevivência.
Pelo que se constata, depois da situação inicial, não é explícita a perturba-
ção. Na transformação, a atualização temática é caracterizada pelo desejo do
caçador que vai buscar o elefante onde o tinha encontrado. Porém, pelo caminho,
vê um passarinho que atrai a sua atenção e resolve segui-lo, mas é advertido pelo
passarinho, que fugia e cantava. Trata-se uma narrativa que se constrói na base de
uma dualidade discursiva, que é uma das características das narrativas africanas
no geral, e bantu, em particular, que dialogam com outros gêneros orais, como é
o caso de canções.
Continuando, e tendo em atenção o segmento em análise, justifica a falta de
descrições pormenorizadas nos textos dessa natureza na medida em que o passa-
rinho surge de forma esporádica e, pelo que nos parece, reveste-se de valores a si
atribuídos pelo imaginário grupal que os testa com os do seu opositor – o caça-
dor. Aqui, subjaz a perseguição, fuga e alerta, como um processo em transcurso
196 Kadila: culturas e ambientes

porque não se revela como uma situação estática e isolada na narrativa, pelo
contrário, é parte dela. Basta observar que evolui e estabelece relações dialógicas
com as outras instâncias narrativas, mais precisamente com a situação final e não
com a resolução que, como a perturbação, é implícita.
Quanto à situação final, é disfórica para o caçador. Conforme nos mostra o
texto, ele perdeu muito tempo seguindo o passarinho e, quando o dia escureceu,
resolveu ir buscar o elefante que tinha visto pelo caminho, mas não o encontrou, e
isso deixou-o mais triste quando chegou à aldeia e apercebeu-se que a presa tinha
sido transportada para a lá, e com ela fez-se a festa de que se recusou a participar.
No contexto na narrativa em análise, é evidente a ideia da coesão comunitária.
Entendemos que o indivíduo e o grupo mostram-se conciliados, ou seja, o indiví-
duo é consubstancial ao grupo. O contrário revela-se como ruptura aos princípios
aceites pela comunidade, por isso é punido. E é o que acontece. O caçador, por
valorizar a sua ambição desmedida, perdeu tudo.

Considerações finais
Feito este estudo, revela-se importante considerar os seguintes aspectos: as
narrativas ovimbundu aqui analisadas, do ponto de vista da sua organização in-
terna, não apresentam uma rigidez estrutural, conforme tivemos a ocasião de
explicar. Essas narrativas, no processo de encadeamento dos seus segmentos no
nível profundo, propõem discursos cuja articulação privilegia termos opostos
como aceitação versus negação, euforia versus disforia, para revelarem compor-
tamentos e atitudes incorporados nas personagens que contracenam nelas.
Fora do universo textual, essas narrativas da tradição oral expressam a reali-
dade humana simbolicamente representada para justificar situações de superfície
social, constituindo-se, desse modo, respostas aos problemas do dia a dia dos seus
produtores.

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