2103 706 PB
2103 706 PB
2103 706 PB
VOL. 4. NÚM. 2
JUL-DEZ 2020
ISSN: 2526-9704
REVISTA CALUNDU
http://calundu.org/revista
https://periodicos.unb.br/index.php/revistacalundu
Gira Epistemológica:
ciências das macumbas e
outras encantarias
Volume 4, Número 2, Jul-Dez 2020
EXPEDIENTE E COMISSÃO EDITORIAL
COMISSÃO EDITORIAL
EQUIPE EDITORIAL
Adélia Mathias
Aisha – Angéle Leandro Diéne
Andréa Carvalho Guimarães
Ariadne Moreira Basílio de Oliveira
Danielle de Cássia Afonso Ramos
Francisco Phelipe Cunha Paz
Iyaromi Feitosa Ahualli
Nathália Vince Esgalha Fernandes
ii
CONSELHO EDITORIAL
iii
A Revista Calundu é uma publicação acadêmica semestral on-line do Calundu – Grupo
de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras, que apresenta trabalhos escritos (artigos,
resenhas de livros e textos extensionistas), com a temática afrorreligiosa/calunduzeira.
http://calundu.org/revista, https://periodicos.unb.br/index.php/revistacalundu
1
SEGATO, Rita Laura. Santos e Daimones. Brasília: Editora UnB, 2005. Republicação de livro de 1986.
2
SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2005.
3
SANTOS, Edmar. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia.
Salvador: EDUFBA, 2009. Livro digital em formato Amazon Kindle.
iv
são resultantes de um processo sócio-histórico iniciado com a colonização do Brasil
pode ser estendida para outros cantos das Américas: religiões afro-
americanas/ameríndias são resultados da colonização das Américas, que contou com a
trágica vinda forçada de africanas/os para este canto do planeta, para fins de trabalho
escravo. O prisma teórico desta interpretação são os estudos decoloniais.
A Revista Calundu busca, por meio de textos livres de caráter extensionista e textos
especializados, ouvir e amplificar a voz da comunidade afrorreligiosa, acadêmica ou
não. Neste sentido, a revista assume um caráter extensionista, abrindo espaço para
outras formas de conhecimento, diferentes – porém não menos importantes – do que
aquela considerada científica.
Com os textos livres o Grupo Calundu busca trabalhar na revista, ademais e sempre
horizontalmente, com pensadores considerados como mestres populares, no sentido que
vem sendo desenvolvido pelo antropólogo José Jorge de Carvalho (apoiador do Grupo
Calundu), em seu trabalho com o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na
Pesquisa, ligado ao INCTI - Instituto Nacional de Ciência Tecnologia e
Inovação/UnB/MCTI. Em linhas gerais, mestres populares são aquelas pessoas
detentoras de um saber popular extenso e relevante, que pode perpassar conhecimentos
técnicos diversos, filosofias e modos de vida de toda uma comunidade. Exemplos de
mestres populares que vivem a temática afrorreligiosa são as/os diversas/os mães e pais
de santo das religiões afro-brasileiras.
v
Gira Epistemológica:
ciências das macumbas e
outras encantarias
Volume 4, Número 2, Jul-Dez 2020
vi
SUMÁRIO
Artigos
Das Águas Ìyá Oxum: saberes ancestrais femininos em poesias negras 133
diaspóricas
Cristian Sales
vii
Aspectos Básicos sobre o Sujeito Individual e a Coletividade nas Religiões 156
de Matrizes Africanas
Joelcio Jackson Lima Silva e Thayná da Silva Felix
200 Anos não São 200 Dias: história, protagonismo e estratégia de 198
mulheres negras na Irmandade da Boa Morte (1820 – 2020)
Mariana Fernandes Rodrigues Barreto Regis
Textos livres
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
Há poucos dias assisti uma entrevista com o pensador Luís Simas2, bastante
inspiradora. Em sua fala, ele mencionava sobre a existência de dois Brasis: um,
normativo/normatizador, rígido e genocida, que formata, representa e oficializa o bem
sucedido projeto colonial – ou, no presente, acrescento, colonial moderno – de
domesticação, controle, exercício de poder sobre corpos, vidas, povos, saberes, etc.,
destoantes da branquitude eurocentrada. O outro Brasil é aquele não branco, que existe
nas brechas, nas margens, nas fendas do primeiro e que, embora combatido, violentado e
violado sistematicamente, ao longo de séculos escravidão, de dominação, de intentos de
exploração e posterior construção de uma nação e seu cruel e epistemicida Estado, segue
vivo, alegre e potente.
Simas fala, com efeito, de um fenômeno que não passa despercebido pela teoria
social, bastante bem denunciado já há anos, dentre outros, pela antropologia engajada de
Lélia Gonzales ou pela arte ativista de Abdias do Nascimento. Igualmente, já em tempos
mais recentes, pela erudição teórica do campo da Sociologia de Gênero e Raça brasileira.
Esta, recorrendo a diferentes linhas de estudos, nos lembra que no Brasil raça, gênero e
classe andam juntos e são marcadores do que é nacionalmente entendido como positivo
ou como negativo. Como bom e como mau. Como cobiçado e como rejeitado. Dialogando
com, e transcendendo para além desse campo, por meio de chave de leitura antropológica,
Rita Laura Segato (2007)3 qualifica esses referidos marcadores como capital racial
positivo ou capital racial negativo, que também operam com intersecções de gênero e
classe.
1
Tata Kambondo Mub’nzazi, da Cabana Senhora da Gória – Nzo Kuna Nkos’i. Doutor em Sociologia e
pesquisador colaborador do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Integrante fundador
do Grupo Calundu. E-mail: guidantasnog@gmail.com.
2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dnM5I5wWePs.
3
SEGATO, Rita Laura. La nación y sus otros Otros: Raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de
Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
1
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
Noto, seguindo Segato, não ser exclusividade do Brasil esse fenômeno social de
existência de duas noções de coletividade, sendo uma inclusiva a tudo e a todos e a outra
excludente, racista, patriarcal, classista, colonizadora. Pelo contrário, a teoria social
latino-americana já há muito – Dom Leopoldo Zea, dentre outros, que o diga – denunciava
o ódio que marca a fundação, as raízes de nossa/nuestra América. Pode-se dizer que era
também contra esse ódio excludente e colonizador que lutava o Coronel Aureliano
Buendía, guerreiro progressista dos “Cien años de solitud” de Gabriel García Marquez.
Mesmo que personagem de romance, é certo que a bravura desse guerreiro espelha –
quiçá inspira? – tantas outras batalhas, ainda que perdidas, contra as forças
conservadoras/domesticadoras na América Latina.
Voltando ao debate mais para essa região colonizada para falar português, cabe
lembrar que “o Brazil não conhece o Brasil”, como já nos ensinava o mestre Aldir Blanc.
Essa potência de cores, de sabores, de ritmos, de sons, de criatividade; de uma teimosia
em permanecer(mos) vivas/os e significativas/os; de gostar de índio, de planta nativa, de
coisas daqui – ou aprendidas e (re)criadas por aqui. Aliás, o daqui, como já rezava o
contexto que inspirou a canção daquele saudoso mestre, reitero, é peremptoriamente
combatido e marginalizado. Não obstante, resiste vivo e potente.
Tal potência está presente no Cerrado, que ainda resiste ao Matopiba – e em sua
baunilha, que é comida tradicional dos Kalungas da Chapada dos Veadeiros. Está presente
na Amazônia, que ainda respira, mesmo com o desmatamento, e mantém viva suas
caboclas, seus encantados, sua fauna, sua flora e seus saberes. Está presente nas Minas
Gerais, que seguem rezando seus Cultos às Almas, erguidos de seus Calundus. Está
presente nas praias mais a leste, onde a Jurema segue curando vidas. Está presente no
Espírito Santo, onde há mais de 80 anos meu avô aprendeu a Cabula. Está presente na
Bahia, que ainda hoje inspira e dobra atabaques à brasilidade. Está presente no muito
original samba de São Paulo, que colore de preto o cinza sem graça da urbe. Está presente
no Maranhão e por aquelas bandas, onde os bois e os tambores dão o ritmo e o passo das
vidas. Está presente no Sul e em seu extremo, onde é a Quimbanda que destranca a rua,
com seus elegantes Exus e Pombas Giras, muito bem entrosados com o Batuque de Porto
Alegre. Está presente nos morros do Rio de Janeiro, em que a calma das pretas e pretos
velhos segue abençoando – e amando – a quem quer que as/os busque. Está presente em
todo o país, enfim, que é afro-ameríndio, muito mais do que branco.
2
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
Sem poder ser de outra forma, a feminilidade dos terreiros também desponta em
“Das Águas Ìyá Oxum: Saberes Ancestrais Femininos em Poesias Negras Diaspóricas”,
de Cristian Sales, sétimo artigo deste número da revista. Oxum, poesia e filosofia africana
estão aqui presentes, dialogando em pensamentos sobre o mundo.
“Aspectos Básicos sobre o Sujeito Individual e a Coletividade nas Religiões de
Matrizes Africanas” são debatidos por Joelcio Jackson Lima Silva e Thayná da Silva
Felix, neste que é o oitavo artigo do dossiê. Resultante de uma incursão antropológica, a
partir do Serviço Social, o povo nagô é apresentado e noções êmicas de indivíduo e
coletivo são debatidas.
Indo do Nordeste ao Sul, o Batuque entra na gira com Marcus Vinicius de Souza
Nunes, que apresenta o nono texto dessa mui abrangente seção, as “Ritualidades do
Mistério Pessoal: o Segredo de Orixá no Batuque Afro-Sul”. Em seu trabalho, o Batuque
é apresentado como religião e algumas de suas especificidades são debatidas.
Ana Clara Souza Damásio dos Santos é a etnógrafa por traz do décimo e penúltimo
texto, “Voltando para a ‘Origem’? Considerações sobre o Campo entre Parentes e os
‘Segredos de Família’”. Esse bonito texto fala de família e de campo de pesquisa, uma
temática sempre importante para o povo calunduzeiro pesquisador.
Finalmente, a seção de artigos é concluída, lindamente, com as Senhoras (sim,
com “S” maiúsculo) da Boa Morte, que figuram no texto de Mariana Fernandes Rodrigues
Barreto Regis, “200 Anos não São 200 Dias: História, Protagonismo e Estratégia de
Mulheres Negras na Irmandade da Boa Morte (1820 – 2020)”. Questões do campo dos
estudos da afrorreligiosidade brasileira são abordadas, em diálogo com a história dessa
longeva e importante organização de mulheres calunduzeiras.
Ao que pese a robustez da seção de artigos, nenhum dossiê da Revista Calundu
está completo sem seus textos livres, que oferecem um diálogo próprio e desamarrado
com calunduzeiras/os e suas/seus seguidoras/es. Neste número, a beleza destes textos está
bem representada pelos trabalhos de Rychelmy Imbiriba Veiga, “Orixá ou Diabo: a
Construção Imagética de Exu no Brasil”; Ana Carolina de Souza Silva, “Ao Barro
Voltarás: Reflexões sobre a Nascença”; Cláudia Mirella Pereira Ramos e Aldemir Inácio
de Azevedo, “Tupinambá Balanceia mais não Cai: Identidade e Espiritualidade na Serra
do Padeiro/BA”; e, por fim, Yuri Macedo, “Escrita Ìyálodè”. Quatro textos potentes, que
seguem expandindo a gira por novos horizontes de debates que, quiçá, podem vir a
consubstanciar outros textos futuros.
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
A gira que se expande, de certo não se encerra. Pelo contrário, segue viva e
potente, inspirando letras e respirando saberes contra hegemônicos, contra
domesticadores, contra violentos, contra coloniais. Saberes que formam histórias outras,
que insistem em seguir sendo lembradas e contadas, ainda que pelas brechas da
normatividade enrijecida, que sonha em apagá-las. É que fazer Calundu é sacralizar
sonhos e mitificar aprendizados, sempre em respeito à ancestralidade e à força que dá ao
próprio movimento da gira. Não coincidentemente, concluo notando, foi Sinza Muzila
que abriu esse dossiê. E o que ela com sua dinâmica existência abre, não há força humana
que possa fechar.
Nzambi Ua Kuates’a!
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
Rafael Haddock-Lobo1
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34990
Resumo
O objetivo deste trabalho consiste em demonstrar como certos conceitos são
desenvolvidos a partir da perspectiva de uma filosofia popular brasileira. Para além de
apenas explicitar teoricamente os passos fundamentais para a elaboração conceitual
(quais sejam, o trabalho de campo ou o “trabalho” da e na rua, as anotações que se
seguem à experiência, a escrita a partir de tais anotações, tendo o conceito apenas como
resultado final e não o norteador da escrita), esse texto parte de um caso específico, ao
qual se seguiram algumas outras experiências, para, nos termos de Luiz Rufino,
alcançar uma “pedagogia das encruzilhadas”. É apenas a partir das experiências,
anotações e posterior escrita, em que a cada etapa a figura de Maria Navalha, pombagira
malandra carioca, vai se tornado mais presente, que os conceitos de “exubjetividade”,
“dona da navalha”, “navalha de gênero” e “filosofia a golpes de navalha” vão tomando
forma. Ainda assim, é preciso observar, mais do que conceitos fechados, esses termos
entram na gira para desconceituar, a golpes de navalha, tudo aquilo que se pretende uno,
coeso, perene e idêntico a si.
1
Doutor em Filosofia pela PUC-Rio e pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP (com bolsa da FAPESP), no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (com
bolsa do CNPq) e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ. É professor do Departamento
de Filosofia e dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ e da UERJ. Email:
outramente@yahoo.com
6
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
Pouco mais de cinquenta anos depois, a peça de Plínio Marcos era encenada sob
uma nova pegada, sob a direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. A puta, o
cafetão e a bixa2 são, eles próprios, as navalhas e a pele negra navalhada, como se a
peça cinquentenária fosse reescrita por esses corpos que ecoam n’A carne as letras de
Yuka e a voz de Donas Elzas e Seus Jorges.
Todos pretos, atriz, atores e diretor3, rasuram a branquitude dos palcos e dos
textos com suas navalhas, mostrando suas peles, costumadas a ser enviadas de graça pro
presídio, pros hospitais psiquiátricos, pros subempregos e pra debaixo do plástico 4.
Agora, contudo, em um movimento de inversão e deslocamento 5, as peles negras entram
em cena para não apenas denunciar o epistemicídio e a necropolítica, mas para serem
ostentadas, esfregando sua vitalidade na cara da branquitude, sambando na tumba de
uma civilidade morta, em sua falsidade, hipocrisia e ressentimento. José Fernando
Peixoto de Azevedo, o diretor desse manifesto, invocando Lucelia Sergio, Raphael
Garcia, Rodrigo dos Santos, navalha a própria carne de Plínio Marcos – mas não para
destruí-lo.
Ao contrário, a encenação navalhada de Navalha na Carne Negra é posta em
cena justamente para fazer justiça ao que há de mais navalhado na peça original, o jogo
2
A grafia remete ao termo de Paco Vidarte, em Ética bixa (n-1, 2018).
3
A peça, em cartaz em 2018, tem direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, com os atores Lucelia
Sergio, Raphael Garcia, Rodrigo dos Santos.
4
Referências à música “A carne”, de Ulisses Cappelletti, Jorge Mario Da Silva e Marcelo Yuka, gravada
no álbum “Moro no Brasil” (de 1998) do grupo Farofa Carioca e depois eternizado na voz de Elza Soares
no álbum “Do cóccix até o pescoço” (de 2002).
5
Os termos são utilizados pelo filósofo argelino Jacques Derrida para explicitar o que seria a arquitetura
estratégica da “desconstrução” (DERRIDA, 2001, 48-49).
7
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entre o cafetão, a bixa e a puta que, quando representados como e por pessoas brancas,
nunca alcançarão a realidade potente e viva das ruas.
Navalha na carne negra é a dupla navalha, a navalha sobre a navalha, a navalha
na carne mas também da carne negra, o duplo jogo que, como ensina Maria Navalha,
consiste em ser ao mesmo tempo a vara curta que cutuca a onça e a onça que é
cutucada.
Quando falo em alcançar a realidade potente e viva das ruas, ou seja, tentar fazer
justiça ao que está aí, diante de nós. Quero dizer com isso, e por isso esta encenação que
remete a outra e a chama para perto do mundo é paradigmática, que a melhor maneira
de representar as ruas é partir de alguma experiência – nunca do universal para o
particular.
Também, é bom lembrar, que tão pouco parece um movimento que se dirige de
uma experiência singular que deve ser universalizada. A representação das ruas, para
ecoar as ruas, deve propor um jogo de espelhamento entre as singularidades, resistindo
ao máximo à colonização do universal, que pretende justamente abstrair toda
singularidade. Para falar e escrever sobre as ruas (não de sua alma encantadora, como
queria João do Rio (RIO, 2012), mas de seu corpo encantado (SIMAS, 2019), como
propõe Luiz Antonio Simas), é preciso, como fizeram esses dois grandes pensadores
rueiros, ir para às ruas.
Ir às ruas quer dizer simplesmente: ir ao encontro do que não se espera, estar
disponível a ser surpreendido, estar aberto à experimentação. Se encontramos o que
esperávamos, nem vale a pena perder tempo na escrita, pois nenhuma experiência foi
realmente vivenciada e, nesse sentido, tanto faz estar em casa ou nas ruas. O que é
digno de nota – e sublinho, seguindo os rabiscos de Walter Benjamin e Guimarães Rosa
– é aquilo que acontece para além de toda expectativa e que, por isso, precisa ser
anotado.
Benjamin e Rosa nos ensinam que o filósofo das ruas, que é o filósofo nas ruas,
precisa ter consigo sempre seu caderninho de notas, para não deixar escapar – sabendo
que sempre vai escapar – o que lhe surpreende. Notas e notas, rabiscos e rabiscos,
memórias do dia seguinte, letras trêmulas da bebedeira ou nubladas de ressaca são, ou
deveriam ser, matéria privilegiada para o filósofo. É a partir disso, do que se viveu, do
que se bebeu e se comeu, dos cheiros, dos temperos, dos suores, das salivas, dos sons e
das letras, de todas essas palavras encantadas que tentamos captar, que o filósofo
precisa partir para a experiência de pensamento.
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Era uma sexta-feira, por volta das 13 horas. 16 de agosto, 2019. Eu e minha
amiga Elisa de Magalhães aguardávamos o início de nossa disciplina de pós-graduação
para alunos da filosofia e das artes visuais que aconteceria no Centro Municipal de Arte
Hélio Oiticica. Conversávamos distraidamente, quando entra na sala uma pessoa jovem,
cujo corpo dificilmente deixa ver quaisquer marcas de gênero, enquanto a marca social
se faz ver imediatamente pela pele negra, pelas cicatrizes no corpo e pela aparente
embriaguez ou qualquer outro estado de entorpecimento. Se anunciou: Sou Maria
navalha. Usava uma saia que só deixava transparecer os pés sujos e descalços. “Estou
aqui a mando de Sete Encruzilhadas”, continuou, exibindo orgulhosamente uma
tatuagem no braço que parecia um ponto riscado, com tridentes cruzados e outros traços
que, de minha distância, eram indiscerníveis.
Uma coisa era certa, aquela figura fluida, para além do masculino e do feminino,
ao exibir seu braço tatuado ganhava ainda mais minha atenção, pois se dizia porta voz
daquele que me acompanha, me cuida e abre meus caminhos. Disse que queria dinheiro.
Que precisava comprar cerveja, tirando seu chapéu panamá e jogando ao centro da roda
de conversas que ainda não tinha se completado. O chapéu flutuou, bailando como o
élitro que flutua, pairando exatamente no centro de todos nós, professores e alunos.
Como se aquele lance fosse alguma arte de extrema técnica ou de absoluta magia.
Pedi a todos e todas que ajudassem na cerveja de Maria Navalha, pois me
pareceu mais que merecido. Ela se sentou. Começamos nossa primeira aula, eu e Elisa,
depois de saudarmos Exu e, mais precisamente, essa mensageira, que chegava não sei
porque e não sei de onde. Quando a aula de fato se adianta, ela se levanta, sem interesse
algum no que falávamos, e vai, para onde ou de onde só ela sabe.
Terminando a aula, tinha que correr para o Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, que fica bem perto, para dar início o curso de graduação, às 17 horas, que
começaria com uma pequena homenagem aos 15 anos de morte do filósofo franco-
argelino Jacques Derrida. Além de dar início à disciplina de graduação, a mesa,
composta por Fabio Borges-Rosário e Marcelo José Derzi Moraes, foi também a
inauguração do Seminário Encruzilhadas, cujos textos se encontram publicados no livro
Encruzilhadas filosóficas, e o batismo do laboratório coordenado por mim (que, antes
chamado Laboratório Khôra de filosofias da alteridade, passa a se chamar Laboratório
X de Encruzilhadas Filosóficas).
Quando meus convidados chegaram, comecei a contar aos dois a inóspita cena
que antecedeu minha aula da graduação, quando Fábio Borges-Rosário me interrompe e
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pede para eu parar de contar e que eu entenderia a razão logo em seguida. Não entendi e
nem dei muita atenção no momento. Chamei os dois, que se sentaram junto à bancada
do lindo auditório de madeira, a sala em que dou aulas todas às sextas feiras às 17 horas,
quando Fábio Borges começa a ler seu texto sobre uma (im)possível e (im)provável
vinda de Derrida ao Brasil.
6
Sobre isso, remeto ao capítulo “Cadê Viramundo, pemba?” de Fogo no mato: a ciência encantada das
macumbas, que apresenta o cruzo como “perspectiva teórico-metodológica assentada nos complexos de
saber das macumbas brasileiras” (SIMAS e RUFINO, 2018, 25).
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De tal modo surpreso pela dupla chegada dessa moça em um mesmo dia, parecia
não conseguir acompanhar a linda mesa que se seguia, as belas falas de Fabio e
Marcelo, o debate que encerrou o evento. Quem é essa mulher? Porque apareceu? O que
ela abre? Fabio, um filósofo que encruza Exu e Lutero e que entende bem desses
encantos, também estava impactado pela co-incidência de Navalha. Só sabíamos, eu e
os dois desenroladores, naquele momento que, de algum modo, por alguma razão, ela
veio.
Fomos todos a irmos ao BDP, o bar que, em minha época de graduação era
chamado de Bar das Putas (porque, de fato, ali, na Praça Tiradentes, era o local onde as
trabalhadoras ficavam), mas que depois da “recuperação” (isto é, higienização) da
região do Centro do Rio, passou a se chamar Bar da Praça (sic). Sentamos, pedimos
uma cerveja. E o primeiro gole foi dela.
Passei dias, meses, e confesso que ainda estou tentando – aqui, justamente nesse
texto – entender o alcance da entrada em cena dessa malandra, abrindo o semestre,
inaugurando o seminário, batizando meu laboratório e nos convocando a outras escritas
filosóficas. Dela, até então, só sabia que gostava de cerveja, que trazia “um sorriso no
rosto e uma arma na saia”. E seu nome, saravá, Dona Navalha!
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(Ponto de Zé Pelintra)
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Sobre isso, remeto ao capítulo “Quem tem medo da pombagira??” de Fogo no mato: a ciência
encantada das macumbas, onde se lê o seguinte: “Torna-se emergencial rodas as saias a fim de incorporar
movimentos que credibilizem outros conhecimentos. Nessa encruza, a pombagira baixa para destravar os
nós do corpo e praticar um giro enunciativo que opere a favor do combate às injustiças cognitivas, sociais
e da disciplinarização dos corpos. (...) Os giros das saias rodadas nos indicam outras rotas, chamaremos
uma dessas perspectivas transgressivas de padilhamento dos corpos” (SIMAS e RUFINO, 2018, 96).
8
Como disse na apresentação do texto, só posso falar das experiências que me constituem, por isso a
ênfase nas macumbas cariocas. Minha filosofia popular brasileira tem sotaque carioca, fala desses
encontros que tive e tenho, mas precisa permanecer sempre aberta para outros encontros por vir.
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juremeiro pelo traje do malandro carioca ao chegar por essas bandas daqui; o segundo,
também pernambucano, nascido em Exu, ganha suas vestimentas emblemáticas de
“nordestino” quando sai de sua terra. Segundo Simas, o que os dois teriam em comum
seria a pelintração, que nada tem a ver com resignação, mas sim com uma forma de
adaptação transgressora. Mais recentemente, o malandro Simas lançou em sua conta de
twitter um macumbaforismo de Seu Camisa Preta que traduz melhor do que qualquer
conceitualização o que é pelintração: “Malandro usa sapato para continuar andando
descalço”9.
Era isso de que precisava. Se há alguma metodologia possível para se falar das
ruas, esse método tem de ser a própria pelintração, aprender com o cuidado que o
malandro tem com o balanço da canoa, saber que na hora que a polícia chega, quem é
malandro não pode correr e que, se a academia é a grande sapataria do pensamento,
precisamos botar nossos sapatos bicolores para poder escrevermos descalços.
9
Publicação de 22 de outubro da conta do Twitter de Luiz Antonio Simas.
10
A fala, apresentada primeiramente no XII Congresso Internacional “Questões fundamentais da
hermenêutica filosófica”: identidades, resistências e gêneros, na UERJ, em 6 de novembro de 2019, foi
publicada pela primeira vez em 4 de dezembro de 2019 na minha coluna “Filosofia Popular Brasileira”,
na HH Maganize (https://hhmagazine.com.br/os-generos-das-ruas/) e depois inserida no capítulo “Ensaios
de Filosofia Popular Brasileira” de meu Os fantasmas da colônia (HADDOCK-LOBO, 2020).
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11
Marcelo José Derzi Moraes e Adriano Negris, em seu potente texto “Escrituras da cidade: ordem e
desordem a partir de Derrida”, nos dizem: “O único peso é a navalha que carrega no bolso e a única
leveza é a da mão que entra nos bolsos alheios e traz o alimento do dia. (...) Um analfabeto que escreve.
Um marginal que é madame. Uma madame que é satânica. Um gay viril. Madame Satã não era nem seu
nome. Seu nome era: João Francisco dos Santos. Três nomes que fazem referência ao religioso, ao
sagrado. Nomes de santo num corpo de satã. Uma Madame Satã dos Santos. Um pecador com nome de
santo. Salve todos os santos, salve Madame Satã, hoje padroeiro da Lapa” (SOLIS e MORAES, 2016, 56-
64).
12
Essa ideia que me tomou na volta do bar acabou cumprindo parte fundamental no já citado “Os gêneros
das ruas”, mas também reaparece como golpe importante no capítulo “Quizumba”, do Arruaças, como
“Madame Satã e a rasteira em Espinosa” (SIMAS, RUFINO e HADDOCK-LOBO, 2020, 80-84),
ressaltando a estratégia de combate corporal e de ginga desconceitual que a filosofia popular brasileira
ensina.
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esporas segundo Derrida, que as tesouras desse, segundo Preciado, que marca na carne
ou na cara dos otários o próprio pensamento.
Vai exu, exu vai passear. Vai exu, exu vai passear
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Fomos passeando, cada um em sua estrada bonita, na linda noite de luar: ela, não
sei para onde e vi que não saber era minha tarefa; eu, para casa, pensando muito,
entendendo nada, mas com a certeza de que, de fato, com a navalha na porta de minha
sala, a Maria que porta o nome do objeto cortante e que o guarda sob sua saia era não só
a madrinha do Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas como a guardiã daquele
espaço. Mas essa certeza era acompanhada de outra certeza ainda maior: que ainda tinha
muita coisa por vir.
Ainda no caminho para casa, encomendava ansioso a navalha que me tinha sido
pedida, e aproveitei e achei uma linda imagem de gesso, de 20 centímetros, que
encomendei e pedi urgência na entrega, pois a escrita que tinha à frente seria feita à luz
(de vela) de Dona Maria Navalha.
Era carnaval e nem imaginávamos que seriam as últimas semanas de respiro pré-
pandêmico. Minha navalha e a imagem da dona do objeto haviam chegado. Grande
parte dos textos que preparava para o Arruaças, livro que escrevia com Luiz Antonio
Simas e Luiz Rufino estavam ainda em forma de anotações dispersas e precisava dar
logo forma a eles e botar no papel. E queria começar justamente por ela, Dona Navalha,
nome que, apesar de martelar e martelar em minha cabeça há seis meses, ainda não
tinha me percebido do óbvio: Dona Navalha para além de pronome de tratamento
seguido de nome próprio diz algo bem mais simples, que ela é a dona da navalha.
Meu primeiro dia de carnaval foi, portanto, escrevendo a partir dessa ideia. Com
a vela acesa aos seus pés, sua taça cheia, me punha a escrever sobre os segredos dessa
que, apenas ela, guarda todos os segredos de um pensamento que se constrói a
17
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navalhadas. Navalha iniciou a série de escritas para o livro, foi quem me deu o caminho
para a escrita arruaceira e, a cada dia, a cada texto que começava a trabalhar sobre, sua
vela era acesa junto a de alguém que ela trazia para a escrita, me ajudando a não mais
cunhar os conceitos, pois o processo de conceitualização é absolutamente outro do que
o da cunhagem tradicional, sendo mais próximo a um navalhamento dos conceitos, cujo
resultado são desconceitos.
Pois sim. Se Nietzsche defendia a filosofia a golpes de martelo, que pretende
destruir tudo que se quer solidificar; se Derrida disse que Nietzsche pensa com as
esporas, que dão o ritmo dos galopes; se Preciado disse que Derrida era o filósofo das
tesouras, que recortam, mudam de lugar, deslocam os poderes e muito mais – podemos
dizer então, graças à sua dona, que uma filosofia popular brasileira precisa ser escrita a
golpes de navalha.
Sendo de posse da mulher, a navalha pode ainda mais do que poderia se apenas
coubesse ao malandro. A mulher navalhadora é, também, é certo, a que carrega a arma
por debaixo de suas vestimentas – é bom lembrar que Maria Navalha pode usar tanto
saia quanto calça. Em suas mãos, a navalha é tanto a arma da luta que só é acionada em
última instância (pois a malandragem ensina a recuar o máximo que puder, deixar que o
inimigo venha pra cima de você, e nunca partir direto ao ataque), mas também é a
operadora do renascimento e feitora das curas que se escondem por detrás do efun, do
waji e do ossun.
Nos dois casos, vertedora do ejé, a navalha, para além do bem e do mal e para
aquém de vida e morte, marca a pele, deixa suas cicatrizes e mostra que o pensamento
tem que ser uma coisa de pele13. Esta arma encantadora, entregue ao malandro pela
mulher, como que o tornando Cavaleiro pelas mãos da Rainha da Lapa, seu valete das
encruzas, deve ser a mesma que ela, a Dona, nos lega ao batizar nossas canetas e ao
transformar nossas mãos um feixe de navalhas que, ao tocar as teclas do computador,
desconceitua, descaceta, despiroca tudo.
Assim, dia após dia, depois de finalizado o texto inaugural escrito em
homenagem àquela que parece ser madrinha dessas novas escritas que se me impõem14,
eu ia navalhando os outros rabiscos que tinha, à navalha de Dona Maria se somava à de
outro João, o da Gomeia, somavam-se índios, polacas, pretos velhos, exus e
13
Citação do recente e fundamental texto de Marcelo José Derzi Moraes “Por uma Filosofia dessa coisa
de pele: uma desconstrução da colonialidade” (NOYAMA, 2020).
14
Trata-se de “Filosofia a golpes de navalha”, (SIMAS, RUFINO e HADDOCK-LOBO, 2020, 25-29).
18
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15
Revendo o vídeo do lançamento do Arruaças, observo a importância, em diversos momentos, da ideia
de disponibilidade (https://www.eventials.com/labpub/lancamento-do-livro-arruacas-uma-filosofia-
popular-
brasileira/?utm_campaign=reminder&utm_medium=email&utm_source=email&fbclid=IwAR3NKnseue
DaFgBQI6SrNHzDjcQ3a4tzzLJN_95CfqgHPbtezU6dR63CunU). Dispinibilidade é a palavra central para
que aconteça a exubjetivação.
19
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porque, o que é a escrita navalhada, a que sangra e cura, senão uma resposta às
quizumbas das nossas vidas?
Cumpadre Rufino, filósofo jongueiro e capoeira, o triângulo fininho e preciso
que toca nossos xotes filosóficos16, me ensinou que pensar é estar preparado para o
tombo. Achava eu, com minha ignorância aliada ao corpo branco e gordo que
dificilmente consegue gingar, que otário era aquele que levava tombo. Rufino me
ensinou que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo cai, e o malandro é aquele que cai
bonito, porque sabe que vai cair. O otário, ao contrário, é o que cai feio, porque não
sabe cair e nem sabe que vai cair. Daí a lindeza filosófica das rasteiras, que é o golpe do
corpo navalhado, do devir navalha do corpo malandro.
Tal como as cadeiras de arruar que nos lembra a apresentação do Arruaças17,
onde as sinhás se acham protegidas dos corpos fundangueiros, quizumbeiros e
cafofentos. Essas, as sinhás em suas cadeiras, não preveem que esses corpos nas ruas
vão leva-las ao “tombo na subida” 18. “Subjetividade” é, portanto, outro desses conceitos
em cadeiras de arruar, que se quer protegido da zorra que come nas ruas e que, depois
de navalhado, se exuzilha19. É nesse sentido que o desconceito é o tombo que os
conceitos levam em seu caminho de subida e escorregam ladeira abaixo. E, notando
aparentemente que os conceitos querem sempre subir, nos entristecemos ao saber que,
para subirem, eles desceram, com a moral toda enterrada na lama, parafraseando Mauro
Bolacha20.
16
Ainda no lançamento do livro, Simas, ao pensar nossa trinca, lembra do trio que acompanhava Luiz
Gonzaga, cata milho, custo de vida e salário mínimo e, logo em seguida, afirmando que Luiz Rufino seria
o triângulo, fininho e capoeirista, sobrando para nós dois sermos a zabumba e a sanfona.
17
“Nos tempos da escravidão, as cadeiras de arruar eram liteiras carregadas por escravizados em que as
sinhás passeavam pelas ruas da cidade. Em geral, elas tinham portinholas que visavam proteger as sinhás
dos perigos representados pelos desordeiros que incendiavam as ruas com suas fundangas, promoviam
quizumbas nas encruzas e se entocavam em seus cafofos: os arruaceiros. Esse perigoso gentio, que
começava a anunciar a tarefa dos brasis contra o Brasil, era versado em muitas invenções, matutações e
feitiços, mestres em pembas e mandingas, doutores em queimações, trucos, mumunhas, desenfadados nas
mugingas e nas canjiras. Praticavam, como modo de vida, a arruaça, incorporando o cruzo e alargando o
tempo. Quando seu adversário tá fazendo um alarde danado, eles davam só aquela escorada, às vezes de
leve, que desequilibra o oponente e que gera o maior esculacho. Porque arruaça é jogo na aldeia”
(SIMAS, RUFINO e HADDOCK-LOBO, 2020, 11-12).
18
Título da apresentação do livro.
19
Exuzilhar, verbo neologizado por Cidinha da Silva em 2010, na tentativa de navalhar ainda mais o
verbo encruzilhar, aparece em diversas de suas obras e intitula seu recente livro (SILVA, 2018).
20
Ainda consigo ouvir Simas cantarolando, quando pensamos em botar o samba como epígrafe do livro:
“Pelo curto tempo que você sumiu / Nota-se aparentemente que você subiu / Mas o que eu soube a seu
respeito / Me entristeceu, ouvi dizer / Que pra subir você desceu / Você desceu. / Todo mundo quer subir
/ A concepção da vida admite / Ainda mais quando a subida / Tem o céu como limite / Por isso não
adianta estar / No mais alto degrau da fama / Com a moral toda enterrada na lama” (Lama, Mauro
“Bolacha” Duarte).
20
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Pois bem, depois desse desvio todo, desses salamaleques da escrita filosófica,
esse aforismo cumpre nesse texto o papel de contar que, um belo dia, a navalha
quebrou. Um dos pinos que prende a lâmina soltou e nunca mais achei. O engraçado é
que a navalha capenga antecipou a tomada de algumas decisões quanto à escrita final do
Arruaças, depois de revisões e revisões. Uma frase minha, justo a que fechava o texto
dedicado à navalha, estava destoando completamente da escrita do livro. Ao invés de
alterá-la, mudando alguns desconceitos que ali apareciam, preferi retirar a sentença
inteira. De início, não posso negar que tive um intenso conflito interno, mas, como
Simas me ensinou lá atrás, lembrando das ensinanças do Bar Madrid de meses atrás,
decidi vestir os sapatos no texto pra que a Navalha andasse descalça.
Porém, a navalha quebrada, em cima da minha mesa do escritório, que parecia se
recusar a ser despachada, parecia querer dizer que ainda tinha muito coro para comer.
Esse texto ganha sua forma final depois do lançamento de Arruaças, ou seja,
quando a filosofia a golpes de navalha já foi arriada cuidadosamente nas ruas. Talvez,
nesse sentido, esse texto seja uma longa nota de rodapé ao pequeno e cuidadoso texto
que escrevi para o livro em parceria com os pensadores que tanto admiro. Talvez aqui
tenha mais coisa, ou talvez menos, pois ali a navalhada é certeira, curta e grossa, indo na
cara daqueles que esperavam de mim qualquer escrita conceitual ou acadêmica.
Mas, então, o que me motiva a escrever estas páginas que não se encontra ali?
Em outros termos: o que a navalha ainda pode querer de mim?
Falo aqui da importância do lançamento do Arruaças – de modo algum para uma
autopromoção – pois houve algo naquele momento que me pareceu fundamental para
dar caminho a essa escrita: a forma. Como Simas explicou no lançamento do livro 21, o
livro é composto de um carteado de textos, no qual em cada capítulo um dá a primeira
21
Ver link supracitado.
21
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carta e fecha a gira: assim, “Fundanga” abre com Simas, seguido por Rufino e por mim,
“Quizumba” é Rufino quem abre, seguido por mim e por Simas, e eu abro “Cafofo”,
seguido por Simas e Rufino. O bacana do lançamento é que a essa gira se somou a voz
de Moyseis Marques, trazendo a lama, o ritmo, e completando a sacanagem.
Sim, sacanagem. A fala de abertura de Simas compara o livro ao petisco de bar
em que cada um ia trepando uma coisinha sobre a outra, a salsicha, o queijo, a cenoura...
Porém, essa fala do Simas, ela quebra a expectativa de seriedade, de linguagem erudita,
de qualquer intelectualismo. E ela deu o tom. Daí em diante, era só cada um assumir sua
parte na sacanagem geral que é o livro.
Essa epistemologia da sacanagem é coisa séria demais. É papo de boteco, muito
mais potente do que a forma dialógica da filosofia, pois se assemelha muito mais à
abertura ao improviso do partideiro, é um jogo de bola que sempre nos pega de surpresa
e nos obriga a inventar. Ele ensina que a ginga do pensamento está em frustrar qualquer
expectativa que se tenha, sem se deixar prender em nenhuma cela epistemológica, como
bem nos ensinaram Pelintra, Satã e Navalha: quando a rádio patrulha (que na maioria
das vezes pode ser o discurso acadêmico, o purismo religioso, o burburinho decolonial),
é hora de dar no pé!
Mas ainda tem mais: quando Simas solta a sacanagem no ar, parece que dá para
imaginar a boa e velha filosofia enrubescendo de vergonha de ouvir tal palavra de baixo
calão; a senhora academia se retira do salão diante de tal linguajar impróprio e os
cidadãos de bem piram. Pois é isso que um desconceito como a sacanagem opera na
boca de Simas: ele navalha o coração da arquitetura e da moralidade do pensamento
erudito. Me lembrou um professor, o falecido Clauze Ronald de Abreu, no primeiro
período da graduação em filosofia: ele entra na sala cheio de meninos burgueses e
pseudo-padrecos (a filosofia da UFRJ na década de noventa era isso, e eu estava entre
os meninos burgueses), em sua aula de Psicologia 1, diz que em psicanálise se trata de
desejo. Então, ali não se falará de pênis, vagina nem anus, pois esses conceitos
pertencem à biologia, mas sim de caralho, buceta e cu. Imagina a situação da turma.
Mas que, como eu, fui educado na pedagogia de Seu Tranca Rua das Almas, que
quando baixava a primeira palavra que seguia sua gargalhada era “puta que pariu”,
entendi no momento que quando se trata das ruas (parafraseando aqui a palavra desejo,
que ainda acho carregada demais de eruditismo) tem coisa que só se expressa no
palavrão. “Hahaha, puta que pariu, boa noite, moxo!” dizia, para além do expresso na
significação das palavras, a felicidade do encontro. Que bom estar entre vocês, que bom
22
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estar aqui para beber minha cachaça, fumar meu charuto, dar minhas risadas e encabular
quem não gosta de palavrão.
Alias, Seu Tranca Rua de meu pai merece um dia uma escrita só para ele, de
tanta sabedoria que me transmitiu, sempre regada de muito palavrão e muita sacanagem.
Mas o que Clauze, Tranca Rua e Simas fizeram foi me fazer retomar essas
anotações para pensar em uma possível conclusão a esse texto que nada mais é que um
relatório de campo de minhas experiências com Navalha e a malandragem. E o que a
navalha quebrada parece me pedir, para enfiar o pino que nunca encontrei no buraco
vazio, é a elaboração desconceitual de dois termos: embucetamento e descaralhamento.
Se Derrida, o magrebino velho, nos dizia que a desconstrução tem um duplo
movimento, que se complementam e se dão em um mesmo golpe (de navalha), a
inversão e o deslocamento22, podemos pensar que, da mesma maneira, embucetamento e
descaralhamento são movimentos complementares e só funcionam juntos na
navalhação.
Se despirocar é o ato de emascular a razão colonial e descacetar é tirar o cacete
ou baixar o cacete nos puliças dos saberes, descaralhar é tocar o maior zaralho e
bagunçar todo o coreto das caretices, dos calhordas, dos quiumbas do saber. Não há
maior potência de desconstrução do falocentrismo do que o descaralhamento.
Mas, para além das pirocas, dos cacetes e dos caralhos, que são destronados
nessa inversão do patriarcado colonial, em que a ereção cai e o sujeito branco ocidental
parece ficar frustrado com sua impotência, a frustração do sujeito broxa abre espaço
para a entrada de algo que só a mulher pode trazer para a cena do pensamento: o
embucetamento.
Se o padilhamento23, como nos mostram Simas e Rufino, é o imperativo
pindárico das macumbas, “o venha a ser a pomba-gira que tu és”, em que os corpos
ganham a leveza e giram e as saias se tornam as bocas de Enugbarijó24, quando essas
saias entram na gira com as navalhas escondidas sob suas sete camadas, mais do que
descaralhar, elas embucetam25.
22
Ver nota 4.
23
Ver nota 6.
24
Sobre isso, remeto ao importantíssimo capítulo “Tudo que a boca come: incorporações e mandingas”,
de Pedagogia das encruzilhadas de Luiz Rufino, onde lemos: “O domínio de Exu intitulado como
Enugbarijó, o senhor da boca coletiva, nos diz sobre (...) todas as dinâmicas de transformação,
reprodução, multiplicação, possibilidade, imprevisibilidade, criação, comunicação, mediação e tradução”
(RUFINO, 2019, 141).
2525
Uma linda demonstração desse embucetamento filosófico é o capítulo final do livro Querendo ou
podendo ser Lilith: a mulher um ser-outro, de Georgia Amitrano. Sua competente pesquisa sobre a
23
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Embucetar, que não é embocetar pois não tem nada a ver com guardar em uma
caixa, pelo contrário, pois o descaralhamento já arrancou fora todos os arcontes das
caixas e os guardas dos armários, é desconceito que aprendi desde cedo com minha mãe
e que sempre denotou em sua boca a pressa, a correria, mas com certa raiva ou
violência. “Aquele carro passou embucetado”, dizia ela. Tinha pressa, certamente, mas
uma pressa perigosa e que podia dar merda pra todo lado.
Contudo, tem algo que me parece ainda mais forte no embucetamento. Mais
pelíntrico do que o empoderamento, no qual o cajado, a bengala ou o ogó ainda parecem
ostentados, o embucetamento que se segue ao padilhamento recusa a ostentação fálica.
Seu poder, se é que esse termo ainda serve, já que o embucetamento é a
desconceitualização do poder, consiste justamente em esconder a arma em baixo da
saia. A malandragem nos abre a uma outra relação do poder, uma certa recusa, uma
certa passividade, contanto que a arma esteja lá, porque malandro não é otário.
E esse impoder, esse “prefiro não” como diria o malandro Bartleby, ao contrário
do que se pode pensar, não tem nada de fraco. A saia que roda é a saia que engole sem
mastigar, pois não precisa de dentes. Ela engole e cospe tal como o masculino, mas em
uma espécie de dança, de coreografia hipnótica em que o inimigo nem sabe que é
engolido. Embucetado, a pergunta de Espinoza “o que pode um corpo” parece nem mais
fazer sentido26, pois não se trata de poder, se trata de engolir, de cuspir e de criar novas
danças.
Sim. Talvez seja desse duplo movimento, desses dois golpes com uma só
navalha, que essa moça, minha madrinha sem ela nem mesmo saber, quisesse que eu
escrevesse para completar esse percurso que se segue há mais de um ano. Navalhar a
filosofia, escrever uma filosofia a golpes de navalha, desconceituar o que se pretende
ereto, é, ao mesmo tempo, navalhar as teorias do conhecimento, navalhar os gêneros,
navalhar os poderes. Com um só golpe.
ontologia do feminino ao longo da história do ocidente, sobretudo nas mitologias gregas e judaicas, ganha
uma potência ainda maior quando as figuras femininas embocetadas de brasilidade chegam e dão um
outro tom ao livro. Explica a autora: “Minha Lilith, ainda que esteja na base da Zohar e nos preceitos
judaicos que se mantêm no discurso dos ‘cristãos’, ultrapassa esse encosto europeu, excedendo o espectro
enorme e pesado que carrego. Minha Lilith roda, gira, faz as saias balançarem, anda pelos becos, bebe e
fuma, pode ser loura ou morena, polaca ou negra. Minha Lilith é o que sou, brasileira, miscigenada das
culturas, das etnias, uma ovelha Outra da família, uma Lilith que também pode e deve ser Pomba-gira.
Trazer essa minha Lilith aqui, todavia, implica dizer das Áfricas e das Europas, falar dos imaginários da
mulher africana e indígena, latino-americana e dos mitos que trouxeram para nós. A mitologia aqui se
mistura no ato miscigenado e autêntico de uma brasilidade. E é essa Lilith que eu pretendo aqui
apresentar, distorcer, profanar e, por fim, fazê-la numa gira pomba-lilithiar” (AMITRANO, 2020, 126).
26
Ver nota 11.
24
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É assim que essa malandra que não precisa trabalhar faz, Maria navalha bota
tudo em seu lugar, tirando tudo de seu lugar que é previamente dado, fazendo todos
recuarem com sua navalha afiada.
E isso só é possível porque Maria Navalha chega embucetada para descaralhar a
porra toda.
Referências bibliográficas
MORAES, Marcelo José Derzi. “Por uma Filosofia Dessa Coisa de Pele: uma
desconstrução da colonialidade”. In: N NOYAMA, Samon. Gingar, Filosofar, Resistir:
ensaios para transver o mundo. Curitiba: CRV, 2020.
RIO, Joao do. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
SILVA, Wallace Lopes (org.). Sambo, Logo Penso: afroperspectivas filosóficas para
pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis, 2015.
SIMAS, Luiz Antonio e RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
25
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SIMAS, Luiz Antonio e RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Mórula,
2019.
SIMAS, Luiz Antonio. O Corpo Encantado das Ruas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2019.
SIMAS, Luiz Antonio. Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros.
Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância lgbtq. São
Paulo: n-1, 2019).
26
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Resumo
O baraperspectivismo é um conceito que provem do exame do simbolismo dos mitos de
Exu e se conjuga com o propósito de produzir uma reflexão sobre relações raciais em
termos artísticos, filosóficos e políticos, em que não se estabeleça uma hierarquia entre
impulsos criativos e impulsos cognitivos, partindo do pressuposto de que o pensamento
se produz através de uma relação entre impulsos e afetos. Assim, o presente trabalho faz
uma abordagem dos principais aspectos que caracterizam a concepção de teatro para o
baraperspectivismo, a partir de sua ligação com a experiência vivida na companhia de
teatro negro carioca Cia dos Comuns. A ideia de teatro para o baraperspectivismo
corresponde à concepção de um teatro de nação relacionada à criação de uma poética da
revolta, que procura pensar a teatralidade da violência e da agressividade como estratégia
de superação do complexo de inferioridade.
1
Ilè Omiojúàrò. E-mail: rodrigodossantos@hotmail.com.
27
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Uma das primeiras coisas que a gente deve saber é que o baraperspectivismo é
uma concepção filosófica que pode ser pensada a partir de uma comparação com a figura
do Iroko, esse pé de árvore monumental, orixá plantado nas terras do Alaketo, a Ile
Maroialaji, em Salvador, e nas da Ile Omiojuaro, na Baixada Fluminense. Assim como o
Iroko renova suas folhas, se regenera de uma poda e eleva seus galhos muito acima da
estatura das pessoas, enquanto também aprofunda simultaneamente suas raízes nos
subterrâneos da terra, o baraperspectivismo é uma ideia cujo significado é inapreensível
em termos absolutos. Um processo de contínua ressignificação, de rupturas e alianças, de
abandonos e de encontros, de extravios e descobertas, caracteriza o baraperspectivismo
como um conceito dinâmico. Nutrição e crescimento são dois aspectos importantes do
processo integrado na vida dinâmica do conceito. Considerando suas raízes, existe uma
forte influência do pensamento nietzschiano sobre o trágico, que permitiu, por um lado,
a produção do conceito a partir de uma reflexão sobre o teatro e, por outro, uma ênfase
na exploração de possibilidades para a construção de um antagonismo veemente à
supremacia da razão na modernidade. Além disso, a ligação do baraperspectivismo com
o teatro pode ser explicada de um modo mais fundamental a partir da concepção de “ritual
trágico yorùbá”, proposta por Wole Soyinka, segundo a qual, a reprodução ritual, em
terra, das façanhas dos orixás expressa e mobiliza propriedades metafísicas e morais que
permitem a manutenção da vida na sociedade humana pela contínua restauração de uma
harmonia com a ordem cósmica e cosmológica do mundo. O ritual trágico de Soyinka
pressupõe a existência de quatro compartimentos, “estágios”, ou, eu diria, a existência de
quatro camadas do real afins ao que ele entende como visão de mundo dominante na
sociedade tradicional yorùbá. A cada camada corresponde um mundo: o dos ancestrais, o
dos vivos, os quais o povo de santo da nação nagô designa como araiye, e o mundo dos
não nascidos. A quarta camada do real seria uma zona de transição, um estágio em que
todas as coisas encontram sua dissolução e regeneração, um compartimento em que se
assenta o mistério do nascimento e da morte. Inerente aos outros domínios que compõem
a totalidade do real, essa perspectiva configurada por uma noção de mudança, já que
instaura a dinâmica do surgir e do desaparecer na vida de todos os seres, é um dos
principais elementos com os quais se ocupa a concepção do ritual trágico de Soyinka.
Assim, uma das funções desse ritual seria preservar o vínculo da sociedade dos araiye
com seus fundamentos metafísicos pela apresentação da reprodução empírica do estágio
de transição. Talvez uma das ideias mais sugestivas relacionadas à concepção do ritual
28
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trágico yorùbá seja a de que nem os orixás escapam das condições existenciais impostas
pelo estágio de transição. Ogum, então, figura como o “primeiro ator” no argumento de
Soyinka (SOYINKA, 1990, p.142). Nosso grande pai, caçador, soldado, metalúrgico e
agricultor, se destaca na narrativa de Soyinka, desempenhando fundamentalmente seu
papel de asiwajú, daquele que precede, abrindo os caminhos. Soyinka também descreve
o estágio de transição como um “abismo” e Ogum é o primeiro orixá a atravessá-lo,
enfrentando todos os riscos da dissolução e do aniquilamento. Só que, rs, do abismo, rs,
Ogum emerge renovado, mais poderoso ainda.
A ideia do estágio de transição determinando fundamentalmente a condição
existencial de todas as coisas é inerente à concepção do baraperspectivismo e, portanto,
está associada à maneira pela qual vamos pensar o teatro negro e esboçar os traços
principais do nosso teatro de nação. Aqui, entretanto, a gente se desvincula da figura do
abismo de Soyinka e passa a encarar o estágio de transição privilegiando pelo menos dois
aspectos reveladores de sua importância para nossa reflexão. Primeiro, a gente vê que o
estágio de transição é uma ideia que revela uma dinâmica que pode ser descrita com o
emprego de termos ontológicos. Pensar essa dinâmica, então, preservando, no nível da
experiência do pensamento, o poder sugestivo que a sensação do movimento, da
transformação e da mudança exerce na hora e no lugar da experiência empírica, implica
recorrer à fórmula designada pela figura conceitual do surgir e desaparecer. Segundo, o
mesmo estágio de transição também se mostra como a dinâmica que também pode ser
caracterizada com o emprego de termos propriamente fisiológicos, através da figura
conceitual da nutrição e crescimento, de acordo com o mesmo desejo de preservar
teoricamente, de um modo análogo, o poder sugestivo gerado pelas impressões sensoriais
em jogo no fluxo da experiência empírica. A ideia de empregar figuras conceituais nesse
exercício de reflexão é cara ao baraperspectivismo e faz parte de um trabalho, isto é, de
um esforço que busca evidenciar o aspecto sensível dos processos de compreensão,
eliminando uma suposta hierarquia cognitiva entre imaginação e entendimento, ao
mesmo tempo em que entende que o pensamento é uma relação entre impulsos e afetos.
Assim, operamos a substituição da figura de Ogum, privilegiada por Soyinka, pela de Exu
Elegbára. Trocamos a figura daquele que enfrenta o estágio de transição, pela figura
daquele que encarna em si mesmo o próprio estágio de transição. Como diria o poeta e
amigo Allan da Rosa, o baraperspectivismo também é um “elegbaraperspectivismo”, rs.
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porque queria comer mais preá. E não tinha. No dia seguinte, pediu peixe. E a mãe,
cantando, fez a vontade do filho. Òrúnmìlà comprou todo o peixe que havia na cidade.
Elegbára como até o fim e o peixe acabou. No terceiro dia de vida, Exu pediu aves,
galinha, pombo, pato e galo e todo o tipo de bicho de penas que havia. Devorou todos.
Até o fim. No quarto dia de vida, Exu disse que queria carne. A mãe cantou e os pais
fizeram a vontade dele. Òrúnmìlà saiu para comprar a carne e só encontrou cachorro.
Mataram cachorro. Elegbára comeu até o fim e ficou pedindo mais carne. Mataram todos
os cachorros. Depois mataram todos os porcos. Continuaram matando todos os bodes,
carneiros, touros, cavalos e todo tipo de animal de quatro patas que tinha na cidade. Até
o extermínio. No quinto dia de vida, Elegbára quis devorar a mãe e ela, cantando,
consentiu. Ele, então, a tomou e a devorou. E assim o medo mandou no corpo de
Òrúnmìlà. E ele foi ao seu babalaô para saber o que deveria fazer para que a criança não
o matasse também e o devorasse. O babalaô disse que ele deveria usar uma espada, um
bode e catorze mil búzios no ebó. Òrúnmìlà fez o ebó. No sexto dia do nascimento de Exu
Elegbára, ele disse, “pai, êh, pai, eu quero comer você”. E Òrúnmìlà cantou a mesma
cantiga de Yébìírú:
Quando a criança avançou para devorar o pai, Òrúnmìlà sacou a espada do ebó.
Apavorado, então, Elegbára fugiu. O pai foi atrás e, quando alcançou Elegbára, partiu o
filho em duzentos e um pedacinhos. Jogou cada parte num canto diferente do mundo e
cada pedaço de filho se transformou em Elegbára Exu novamente. Só que o último deles,
ao se transformar em Exu, fugiu do pai novamente. E antes de Òrúnmìlà alcançá-lo, ele
já estava inteiro e tinha ficado grande de novo. Mas, no segundo mundo do orun,
Òrúnmìlà o alcançou e cortou o filho de novo em duzentas e uma partes, atirando cada
pedaço de filho numa direção diferente do mundo. E cada parte cortada de Exu se
transformou de novo em Exu inteirinho. O Exu que se transformou por último também
correu do pai. E Òrúnmìlà foi atrás. Essa situação se repetiu igualzinha em todos os
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mundos do orun. Que são nove. Depois que o pai perseguiu e picotou o filho por todos os
nove mundos do orun, com cada pedaço do filho partido se transformando de novo no
Exu Elegbára inteiro, o último dos últimos pedaços de filho, quando virou Elegbára de
novo, lá nos confins do orun, disse que Òrúnmìlà não precisava mais perseguí-lo. Ele
disse ao pai que poderia utilizar, para realizar o que quer que fosse necessário, como se
fosse o seu próprio filho, cada um dos Exu espalhados por todos os nove mundos do orun,
por todo esse espaço que a astronomia definiu como universo. Elegbára, então, devolveu
a mãe devorada. E se Òrúnmìlà desejasse recuperar os animais da terra, dos céus e das
águas, de pena, de pelo, ou de escama, de dois, ou de quatro pés, que ele tinha devorado
ao nascer, Exu iria ajudá-lo, recebendo cada um dos bichos diretamente da mão das
pessoas que fazem casa na terra. E entregando depois nas mãos de Òrúnmìlà e de todo o
povo do orun. Òrúnmìlà e Yébìírú, depois de Elegbára, ainda tiveram muitas filhas e
muitos filhos. Elegbára, então, se tornou o guardião da família, livrando-a principalmente
da guerra e ensinou ao pai, à mãe e a todos e todas as descendentes de sua mãe a louvá-
lo, para que ele pudesse realizar todo e qualquer trabalho que fosse necessário.
Tem um livro que é o Silenciando o passado, é de um antropólogo haitiano finado,
um ancestral bem lembrado já, que se chama Michel-Rolph Trouillot. Nesse livro, o
Trouillot apresenta uma interpretação inovadora, pelo menos para o público brasileiro
talvez, da Revolução da Ilha de São Domingos, que durou de 1791 até 1804 com a
declaração de independência e a fundação do Haiti (TROUILLOT, 2015, p.37). Foi a
única revolução bem sucedida no mundo, capitaneada por gente preta que havia sido
escravizada. Nesse caso, foi pelo sistema colonial francês. A importância da singularidade
analítica do Trouillot está em fazer um exame da produção da história a partir das relações
de poder. Ele destaca, assim, dois níveis da historicidade: o que aconteceu, por um lado;
e, o que dizem ter acontecido, por outro. Entre um e outro nível, existe uma rede complexa
de relações estabelecidas entre atores, agentes e sujeitos que viveram e presenciaram os
fatos constituintes dos acontecimentos; entre a produção de arquivos que compilam os
eventos derivados dos fatos; e entre os historiadores profissionais que lidam com esses
arquivos, além de outros tipos de “narradores” que interpretam os eventos, incorporando
registros extra bibliográficos, como museus, monumentos, ruínas e narrativas hauridas da
tradição oral. Assim, entre o que aconteceu e o que dizem ter acontecido, o poder opera
uma dinâmica de menções e de silêncios (TROUILLOT, 2015, p.48). As narrativas, em
geral, as oficiais, ocultam determinados fatos em função de uma relação de poder. Por
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novamente ao lado da revolução, os africanos não teriam mais aceitado aqueles generais
como líderes. Sans Souci, de acordo com Trouillot, então, provavelmente, teria sido um
nome forte para encabeçar as fileiras da liderança. No entanto, muito pouco se sabe sobre
ele, que foi assassinado por Christophe em uma emboscada e de cujo corpo nunca se
soube o paradeiro. É provável que Sans Souci tenha desempenhado um papel muito
importante na Revolução do Haiti. Porém, sua história é feita muito mais de silêncios do
que de menções (TROUILLOT, 2015, p.54).
É importante ter em vista essa dinâmica entre a menção e o silêncio aqui. Tratamos
de ìtàn e não de uma historiografia compilada sistematicamente, que inventa padrões de
estabelecimento da história e da não história. Os textos do ìtàn sequer se concebem a
partir da mesma ordem cronológica em que se inserem os registros da historiografia
branca. E é nisso que consiste seu valor para o baraperspectivismo. Sua temporalidade
não fala absolutamente de uma época ultrapassada, nem pelo calendário, nem pelo
desenvolvimento tecnológico das grandes potências mundiais, nem pelas imposições
políticas e econômicas da situação colonial e nem pelos valores culturais da modernidade.
Quando supomos que o ìtàn fala a partir de uma época, essa época se refere a um momento
originário. Porém, trata-se de um momento que não pode ser computado em termos
cronológicos e que tenha deixado vestígios que possam ser medidos pelo carbono 14; e
também não se trata de um momento inserido no tempo compreendido como forma da
intuição a priori. Quando falamos que o ìtàn se refere a um momento originário, o que
permite essa afirmação é a qualidade da situação, ou do evento, de que trata o ìtàn. O ìtàn
é uma narrativa sobre um evento originário. A importância que o ìtàn confere ao momento
presente, ao estado de coisas atual que evoca seu poder de significação, está em sua
capacidade de revelar o sentido originário de qualquer problema concreto, de qualquer
problema que precisa de solução. O ìtàn é o estilo da narrativa que revela o sentido
originário da experiência humana. O ìtàn é a narrativa que preserva a lembrança de que a
natureza do esforço de todas as coisas pela manutenção da vida é o que nos implica nesse
caráter originário da existência. Agir conforme o poder de realização, conforme o axé, de
cada natureza, significa fazer da vida a cada momento uma experiência originária.
É dessa maneira que a narrativa veiculada pelo ìtàn se manifesta de um modo
necessariamente articulado com a pressão do presente, do momento em que ela vem à
luz, seja na mesa de jogo, seja no corpo do vodunsi, quando o orixá lhe pega a cabeça,
seja numa conversa, seja até mesmo através da escrita e da leitura, seja se manifestando
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no contexto e no interior dos processos criativos da companhia teatral negra carioca, Cia
dos Comuns, e a concepção do teatro de nação. Sob a ótica dos ìtàn, examinaremos, por
um lado, alguns aspectos característicos de dois textos exemplares da noção de teatro
negro proveniente dessa experiência vivida na Comuns. Tentarei demonstrar como alguns
desses aspectos manifestam rupturas e continuidades entre aquela noção de teatro negro
e a concepção do teatro de nação. Assim, farei uma abordagem de A roda do mundo,
primeira peça da Comuns, e do Cabaré da rrrrrraça, do Bando de Teatro Olodum. Por
outro lado, examinaremos alguns aspectos de um texto de minha autoria, que ainda se
encontra em processo de criação, que considero importantes para elucidar a ideia do teatro
de nação, que surge do desenvolvimento e da dinâmica conceitual do baraperspectivismo.
Esse texto se chama Elegbára beat e pode ser apresentado em linhas gerais como um
comentário cênico sobre o poder. Embora em fase de conclusão, Elegbára beat já se
constitui de elementos fundamentais à concepção do teatro de nação, porque são
elementos que se articulam através de uma poética da revolta. E o baraperspectivismo
compreende o teatro de nação como uma expressão de revolta, de libertação, de
resistência cultural. O teatro de nação deve nascer como uma expressão da resistência
cultural negra.
Encaminhando nosso exame, podemos supor que o poder de Exu Elegbára
reverbera e também se personifica na figura do primeiro sacerdote de Ifá, na medida em
que ele adquire os saberes implicados nas narrativas dos Odu Ifá, transmitidos pelo
próprio Òrúnmìlà, concebido como o pai de Elegbára. Se, por um lado, essa associação
entre os ìtàn explica o processo de concepção da ideia de teatro de nação a partir de uma
experiência e de uma reflexão sobre uma determinada noção de teatro negro; por outro, a
narrativa sobre o primeiro sacerdote é mais adequada para explicar a experiência vivida
no teatro negro da Comuns, enquanto o ìtàn do nascimento de Exu Elegbára explica
melhor o momento da gênese do teatro de nação.
Assim, em primeiro lugar, vejamos dois movimentos que se evidenciam no ìtàn
do sacerdote. Há um movimento de busca pela solução dos problemas que assolam sua
comunidade e um movimento de retorno para a comunidade com a solução dos
problemas. A figura do primeiro sacerdote é apresentada inicialmente como um
“feiticeiro” desolado, incapaz de solucionar o problema da mortandade que se abate sobre
seus discípulos. “Feiticeiro” é uma designação estrangeira, colonial, que banaliza e
implica uma pretensa subalternidade, quando atribuída ao indivíduo capacitado a produzir
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A busca por soluções retratada no ìtàn também é uma busca pelo conhecimento,
na medida em que reflete essa atmosfera plena de incertezas produzida pelo mundo
branco em que vivemos. Simultâneos ao terror perpetrado pelo genocídio, a negação do
corpo preto e o silêncio que resulta da amputação do nosso entusiasmo correspondem a
uma moral da exploração naturalizada no patamar simbólico da vida da cultura branca
dominante. Sufocados diante das dificuldades de elaboração dos esquemas de
autoconhecimento, estamos constantemente em vias de perder o fôlego e apagar psíquica
e fisicamente, como George Floyd. E, ainda, do “progresso” técnico e industrial das
sociedades globalizadas emerge uma pandemia provocada por uma síndrome respiratória
que afeta a grande maioria da população preta mundial, demonstrando como os impasses
políticos e sociais gerados no bojo do colonialismo e da sociedade burguesa impactam
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Cabaré e Elegbára beat, cujo cultivo e cuja exploração consistem no cerne da pesquisa
de elaboração da poética da revolta, que é necessário observá-la.
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O texto durava exatamente cinco minutos e era executado pelo ator, produtor,
diretor e fundador da Comuns, meu amor, Hilton Cobra, um dos grandes responsáveis
pelo poder político e criativo da Comuns e interlocutor fundamental na criação da poética
da revolta. Se foi possível criar o baraperspectivismo e estabelecer a gênese do teatro de
nação, Cobrinha, como é conhecido, foi o principal colaborador no cultivo dos impulsos
criativos que proporcionaram a elaboração de ambas concepções. Esse texto é um
verdadeiro discurso sobre o colonialismo e diz, com outros termos, o que Césaire exprime
em seu próprio Discurso, “colonização = coisificação” (CÉSAIRE, 2004, p.23). Uma
análise minuciosa desse discurso da Roda precisa ser efetuada em alguma ocasião, porque
é um discurso integrado com diversos temas cruciais, relacionados ao estudo das relações
raciais, políticas, culturais e econômicas, como racismo, colonialismo, cultura de massa,
capitalismo e subdesenvolvimento, violência, militarização, necropolítica e revolta. Para
além da lembrança do tom da voz e da veemência com que Cobrinha o gritava em cena,
é evidente que ele transcorre com a agressividade típica de um povo oprimido que decide
dar um basta aos abusos, ao terror e à violência dos poderes que o dominam. O teatro de
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A partir de um texto de Sandra Almada, escrito especialmente para a peça, improvisação de Hilton
Cobra e citação de Milton Santos.
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nação deve explorar essa agressividade, não no sentido de purgá-la, de produzir um efeito
catártico, como Aristóteles chegou a entender a função da catarse na tragédia dos gregos
com relação ao medo e à compaixão, mas no sentido de afirmá-la, absorvendo as
expressões de ódio do povo preto e produzindo uma elaboração estética desse ódio, que
deve ser devolvida ao povo preto; ou seja, restituindo ao povo preto suas próprias
expressões de ódio e de revolta através de uma teatralidade, de maneira que, enquanto
povo, ele possa decidir o que deve ser feito, por si e para si, a partir do reflexo e da
experiência teatralizada do ódio e da revolta, em nome de um futuro em que o mundo
reconheça verdadeiramente o peso da nossa dignidade negra.
Já no Cabaré da rrrrrraça, o elenco do Bando de Teatro Olodum exprimiu o poder
dessa agressividade nos momentos finais da peça. Assisti a três versões do Cabaré no Rio
e em Salvador e sempre me identifiquei com a revolta do elenco provocada pela alusão
que o texto faz a piadas racistas. Enquanto público, me identificava com a revolta e me
encantava com a combinação entre a beleza dos corpos das atrizes e atores, a elegância
de seus cabelos, maquiagens e figurinos, a altivez de suas atitudes e a agressividade de
suas falas. Enquanto criador, percebo que essa mescla de revolta e encantamento,
agressividade e beleza, não leva necessariamente ao desejo de derramamento de sangue,
mas à eliminação do complexo de inferioridade e ao desejo de organização política.
KARINE:
Negro quando não suja na entrada, suja na saída.
TODOS:
É o caralho!
JAQUE:
Branco correndo é atleta, negro correndo é ladrão.
TODOS:
É o caralho!
WENSLEY:
O que é um negro cagando? Clonagem.
TODOS:
É o caralho!
DRA. JANAÍNA:
Não existe flor negra, porque negro não é flor que se cheire.
TODOS:
É o caralho!
MARILDA:
Negro que não é besta é doido. Quando é sabido demais, dá pra roubar.
TODOS:
É o caralho!
EDILEUSA:
Nego devia ter nascido com dois dentes: um pra doer a noite inteira, o
outro pra roer osso.
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TODOS:
É o caralho!
M.C. :
Negro bom é negro morto.
TODOS:
É o caralho!
TAÍDE:
A semelhança entre um carro com o pneu furado e uma negra grávida é
que ambos estão esperando macaco.
TODOS:
É o caralho!
ABARÁ:
Deus fez o mundo redondo para o negro não cagar nos cantos.
TODOS:
É o caralho!
ROSE MARIE:
A diferença entre o negro e o câncer é que o câncer evolui.
TODOS:
É o caralho!
NEGAÇA:
Nego não morre afogado porque bosta não afunda.
TODOS:
É o caralho!
GEREBA:
O Brasil só gosta de dois pretos: asfalto e Pelé.
TODOS:
É o caralho!
DANDARA:
Negro só sobe quando o barraco explode.
TODOS:
É o caralho (MEIRELLES, 2005, pp.27 – 29)!
A agressividade de cada resposta para cada piada racista enunciada por uma atriz
ou por um ator se expressa como a fala de um coro, TODOS respondem, “É o caralho”!
É a fala de uma coletividade e soa como a resposta de um povo. As piadas, no geral,
evocam expressivamente todo o conjunto de estigmas imputados à gente preta desde os
primórdios das relações coloniais, quando navegantes, aventureiros, missionários e
colonizadores brancos produziram suas narrativas sobre os povos de pele preta habitantes
do vastíssimo e exuberante território que desde o imperialismo romano tem sido chamado
de África. Narrativas implicadas de complexas relações de poder que produziram
mistificações e ideias pré-concebidas com base na escolha entre menções e
silenciamentos. Estigmas que evocam a bestialização, a selvageria, a coisificação, a
irracionalidade, a animalidade, a descartabilidade e o atraso mental. Em suma, todos os
famigerados fantasmas que foram produzidos como atributos da pretensa inferioridade da
gente preta. Devido ao poder pandêmico e devastador que tais fantasmas exercem sobre
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as subjetividades pretas, sua destruição deve ser programada e implementada por toda
organização político-pedagógica que visa a busca e a produção de soluções para os
problemas enfrentados há séculos pelas populações pretas espalhadas pelo mundo. Por
isso, pensar essas soluções como a resposta de um povo deve consistir no esforço comum
e fundamental de artistas, ativistas, intelectuais, autoridades políticas, lideranças
comunitárias e tradicionais verdadeiramente comprometidas com a produção de um
futuro em que a dignidade negra tenha sobrepujado os estigmas depreciativos do racismo.
Finalmente, se partimos dos movimentos de busca pela solução dos problemas do
povo e de retorno para a comunidade com a solução desses problemas, conforme o exame
do ìtàn sobre o primeiro sacerdote de Ifá, para analisar a experiência inaugural de entrada
no mundo do teatro negro, vivida junto à Cia dos Comuns, agora em segundo lugar,
veremos como os movimentos relativos à dinâmica de surgir e desaparecer, por um lado,
e à dinâmica da nutrição e do crescimento, por outro, que identificamos no ìtàn sobre o
nascimento de Exu Elegbára, revelam algumas características dessa passagem que nos
traz até um esboço da concepção do teatro de nação. Na real, vou ressaltar um aspecto
que fala da continuidade e um aspecto que fala de uma diferença entre as duas noções de
teatro negro. A primeira noção, produzida no bojo da experiência com a Comuns, talvez
possa ser descrita como uma ideia mais primordial de teatro negro. Plena de significados
e trabalhando numa frente ampla de organização política, com atividades artísticas e
político-pedagógicas dentro e fora do palco, tais como espetáculos, seminários, oficinas
e a realização do Fórum Nacional de Performance Negra, em parceira com o Bando de
Teatro Olodum, e a busca de parcerias com associações de moradores de comunidades,
cursos de pré-vestibular comunitários e Ong’s, esse conceito de teatro negro se consolida
a partir da influência exercida diretamente pela criação do Teatro Experimental do Negro,
em 1944, por Abdias Nascimento, que via o teatro como uma forma de produção do
protagonismo negro na vida política, social e cultural da sociedade brasileira. Abdias
produziu um teatro em que a população negra marcada social, política e culturalmente
pela subalternidade pode se integrar de uma forma organizada com o propósito de superar
propriamente esse lugar da subalternidade. E, de um modo semelhante com o qual Abdias
pela primeira vez se indignou diante de um ator branco pintado de preto, performando
como um personagem preto no teatro, de passagem por Buenos Aires, e decidiu fundar o
Teatro Experimental do Negro, Cobrinha, perplexo com a ausência de atrizes e atores
negros nos espetáculos teatrais cariocas, na década de 1990, decidiu fundar uma
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companhia composta apenas de atores e atrizes pretas e pretos, cuja estética e dramaturgia
tinham que evocar antes de tudo o protagonismo das gentes e das culturas pretas. Se
chamo essa noção de primordial, é principalmente porque ela se dá a partir de uma estrita
continuidade com as propostas do Teatro Experimental do Negro. Já o teatro de nação é
uma noção incipiente, em gestação, que ainda não chegou a dar seus primeiros passos na
cena negra brasileira. Sua única e exclusiva especificidade em relação à noção primordial,
sua diferença, é que aqui o ìtàn ocupa um lugar privilegiado nos processos criativos. Na
real, a Comuns em seus espetáculos já concedia ao ìtàn um lugar privilegiado em suas
criações. Principalmente em Candaces – a reconstrução do fogo, em que Nanã, Oxum,
Iemanjá e Oya, com seus ìtàn, seus ritmos, seus orin e seus modos de dançar, nos
inspiraram na criação de um espetáculo sobre um “mergulho no universo feminino das
mulheres negras”, como Cobrinha sempre falava. Aliás, quem sugeriu ao Cobrinha a
figura das Candaces, rainhas pretas africanas do Reino de Kush e Méroe, que reinaram
por séculos, chegando a resistir continuamente ao imperialismo romano, como tema para
a montagem de uma peça negra, foi nossa bem lembrada Lélia Gonzáles. Assim, esse
processo de constituição do teatro de nação precisa mesmo ser expresso pelas dinâmicas
de um poder que se expande, que vigora em contínua expansão, isto é, pelas dinâmicas
implicadas na figura de Exu Elegbára. Talvez eu possa enunciar também a especificidade
do teatro de nação em relação à experiência junto à Comuns, dizendo que na Comuns há
uma perspectiva histórica orientando os processos de criação e organização político-
pedagógica, enquanto o teatro de nação se concebe eminentemente de uma perspectiva
que se consolida pelos saberes do ìtàn. Afinal, é o baraperspectivismo que permite a
produção dos traços fundamentais do teatro de nação, em que não existe espaço para a
crença em verdades absolutas e onde a imagem deve pesar tanto ou mais que o conceito
e a experiência do pensamento se concebe como relação entre impulsos e afetos. O poder
dos impulsos criativos é tão importante na produção de arte e conhecimento quanto os
impulsos cognitivos. Tanto o baraperspectivismo como o teatro de nação nascem, isto é,
surgem, da convicção de que a correlação entre arte e conhecimento define a
especificidade da experiência humana no mundo e na sociedade. E essa convicção
provém de um estudo sobre a metafísica de artista formulada pelo jovem Nietzsche. Na
real, a ideia do teatro de nação vem de um estudo sobre o teatro negro, desenvolvido com
a Comuns, que encontra suas raízes mais remotas no desejo de estabelecer uma relação
entre uma reflexão filosófica sobre o trágico e o treino da capoeira angola.
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O movimento ao qual nos levam essas afirmações pode ser compreendido a partir
dos termos do surgir e desaparecer, da integração e da desintegração. Pensá-lo em suas
implicações com o ìtàn sobre o nascimento de Elegbára, evoca ainda os termos da
regeneração e da multiplicação. E desde que o baraperspectivismo é um conceito
dinâmico, cuja vida se expressa nas dinâmicas da integração e da desintegração, a
concepção do teatro de nação é a forma em que a convicção sobre a importância da
correlação entre arte e conhecimento encontra agora sua expressão enquanto
renascimento e regeneração. Além disso, é sob a forma da concepção do teatro de nação
que a correlação entre arte e conhecimento encontra a expressividade do seu poder de
multiplicação, isto é, de seu potencial pedagógico, de um modo mais adequado ao
baraperspectivismo.
De um modo semelhante, quando pensamos nos termos da nutrição e do
crescimento a partir desse ìtàn, somos levados a pensar também num terceiro termo, o da
restituição. A compreensão do aspecto político-pedagógico do teatro de nação se
consolida, quando percebemos que essa ideia de restituição é fundamental, porque da
mesma forma que Exu se alimenta de todos os seres da natureza, ele também é quem os
devolve, promovendo o intercâmbio entre as instâncias da existência. Essa devolução é
fundamental à manutenção da harmonia entre as ordens sociais, metafísicas e
cosmológicas. Além disso, Exu figura ainda em outro ìtàn, ingerindo quantidades imensas
de comidas secas e fumo, oferecidos por Olówu, o generoso senhor de Ówu. Após a
excessiva ingestão de fumo preparado por Olówu e os demais habitantes da cidade, Exu
vomita infindáveis itens valiosos que estavam guardados em seu estômago, tornando a
cidade de Ówu rica e próspera (SANTOS, 2014, p.116). Assim, o aspecto político-
pedagógico do teatro de nação consiste em produzir arte e conhecimento como objetos de
restituição ao povo preto, a partir de todo o material absorvido no bojo de um processo
de crescimento e expansão de uma consciência negra que começa com a experiência na
Comuns e se intensifica a partir da elaboração do baraperspectivismo.
No sentido de concluir essa reflexão, vamos ver como vem se formulando na
escrita de Elegbára beat a expressão da agressividade já destacada no contexto da Roda
do mundo e do Cabaré da rrrrrraça. O texto é um comentário cênico sobre relações de
poder e explora as conexões entre o ìtàn sobre o nascimento de Exu Elegbára e alguns
eventos recentes, relevantes para o amadurecimento do debate sobre relações raciais no
mundo contemporâneo. Uma das características principais de Elegbára beat é justamente
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EDNA:
Eu sempre me senti humilhada. Nunca soube me colocar. Que fraqueza
nas pernas.
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ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
Era como se eu não tivesse meu nome. Me chamar só de “moçoila” era
como querer me convencer de uma inferioridade que não existe. Que
não é real.
EDNA:
Mas eu não concordo em reagir com violência. Por mais que tenha sido
tão humilhada.
ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
A violência desintoxica, Edna. Cura a gente da humilhação, do
complexo de inferioridade.
HERALDO:
Você que sempre cuidou da minha imagem, Edna, minha irmã. Que era
obrigada a me embranquecer, conforme a conveniência da direção.
Hoje, teve que me deixar mais preto pra valorizar o produto que eles
queriam vender no mercado. A morte de um irmão chamado George
Floyd. Mas, a gente não é mercadoria. E essa indústria vive de
aparências. De ideias pré-concebidas, distantes da realidade. Enquanto
não desaparecer o último racista, precisamos lutar. Destruir
preconceitos, padrões e modelos de pensamento e de comportamento
que se acham superiores, melhores do que os outros. Destruir e criar. E
isso pode ser muito bom. Criar. Pode ser muito gostoso.
ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
Edna, levanta, que você é uma mulher poderosa. Dá uma olhada no
espelho que eu trouxe pra você. Enxerga além das aparências. Aí tem
uma fonte de um poder divino (SANTOS, 2020, p.33).
Todos os personagens são pretos. Edna é a maquiadora tratada pelo diretor como
uma peça descartável. A assistente de direção, uma mulher cujo nome desconhecemos,
figura como uma pessoa que sequer possui uma identidade além da sua função de
empregada da emissora. Além delas, figuram um cameraman e um microfonista que
aderem à revolta de Heraldo, levando o diretor a acusá-los, de um modo pretensioso e
arrogante, de uma “revolta na senzala”. Embora não figure na citação extraída da peça, o
diretor é caracterizado de um modo extremamente hostil, soberbo e autoritário, mas se
revela um covarde, quando Heraldo parte para espancá-lo. Seu senso perverso de
oportunismo transparece na exigência imposta à maquiadora Edna de escurecer mais
ainda a pele de Heraldo, por tratar-se de uma reportagem sobre a morte de um homem
negro, quando o texto da peça nos leva a supor que usualmente ele obriga Edna a clarear
a pele de Heraldo. Edna, incapaz de reagir com violência à humilhação, sente as pernas
enfraquecerem, como se estivesse prestes a desmontar, a sucumbir ao espetáculo da
violência, mas a assistente de direção vem lembrá-la de que ela ainda abriga um poder
divino e que deve se levantar, no sentido de exercer sua capacidade de resiliência, da
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Referências bibliográficas
ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. [et al.]. Cidades negras: africanos, crioulos e
espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006.
DIAS, Luiz Sérgio. Quem tem medo da capoeira? Rio de Janeiro: Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
JAMES, C.L.R. Toussaint Louverture: the story of the only successful slave revolt in
history. Duham e Londres: Duke University Press, 2013.
SANTOS, Juana Elbein dos. [Deoscoredes Maximiliano dos Santos (Mestre Didi Axipá)]
Èsù. Salvador: Corrupio, 2014.
SANTOS, Rodrigo dos. Elegbára beat: um comentário cênico sobre o poder. São Paulo:
em processo de criação, 2020.
SODRÉ, Muniz. [e Luís Filipe de Lima] Um vento sagrado Um Vento Sagrado: história
de vida de um adivinho da tradição nagô-kêtu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.
5. ed., 2014.
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Resumo
Este ensaio, em diálogo com a filosofia nagô, propõe a circularidade como um trânsito
contra colonialista, fundamentado em Èṣù Ẹnugbárijọ – a boca que tudo come. Tal
fundamento articula-se com o paradigma da pluriversalidade, com a diáspora e com a
ancestralidade africana para orientar os princípios de um acontecimento dinâmico de
vitalidade: o acontecimento-Èṣù. Um acontecimento que interage com as diversas formas
de vidas produzindo uma encruzilhada filosófica.
1
Possui graduação em filosofia pela Universidade Federal de Sergipe (2009), graduação em Pedagogia -
Claretiano Centro Universitário (2018), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2013)
e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2018). Atualmente é professor adjunto de
Filosofia da Educação no Departamento de Estudos da Subjetividade e Formação Humana da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa nos seguintes temas: filosofia africana, estudos pós-
coloniais e decoloniais, ensino de filosofia, educação e formação humana.
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Preparação e posição ilustrada no oriki, canto de louvação, “Èṣù matou um pássaro ontem
com uma pedra que jogou hoje”, pois simboliza tanto uma retomada do passado quanto
uma proposta de futuro. Essa dupla junção mostra também que “[...] não está no horizonte
determinado, mas é temporalizante, funda o tempo, o que implica já trazer o seu poente e
o seu nascente” (SODRÉ, 2017, p. 187-188); ou ainda podemos dizer que “a pedra ‘está
no meio’ da ação de forma que expõe o presente no passado, já o pássaro ‘torna possível’
o acontecimento que atua nele mesmo” (DANTAS, 2018, 128). Assim, entre a permissão
e a exposição, interpretamos aquilo que acontece atuando em si mesmo, como
acontecimento-Èṣù.
Um acontecimento dinâmico de vitalidade produzindo eṣistência, ou seja,
deslocando os centros e marginalizando as essências. Com um circuito centrípeto, as
energias corporais são orientadas por uma circularidade que condiciona as nossas
possibilidades. Tal condição entende os principais orientadores epistêmicos atuando nos
campos visíveis e invisíveis, assentando a razão somente como um dos meios para
perceber o mundo. Uma percepção cosmopolítica perante o “campo político tal como
atualmente o reconhecemos”, um campo caracterizado não apenas “pela distinção entre
amigos e inimigos entre os humanos, mas também pela separação antitética da
‘Humanidade’ e da ‘Natureza’” (DE LA CADENA, 2019, p. 14). Uma distinção
movimentada, conforme Marisol de la Cadena, pela extinção da antítese humanidade-
natureza em prol da organização homogênea entre humanos e os mundos passíveis de
existência: “A relação entre mundos era de um antagonismo silencioso, com o mundo
ocidental definindo para a história (e com a ‘História’) seu papel soberbamente
hegemônico como civilizacional e, como consequência, acumulando poder para organizar
a vida homogênea que ele se esforçou por expandir” (DE LA CADENA, 2019, p. 14).
Contra isso, os princípios do acontecimento-Èṣù partem de uma perspectiva contra
colonialistas (BISPO, 2015) para construir uma filosofia a toque de atabaques (SODRÉ,
2017) e tornar a diáspora africana uma heurística (BRAH, 2011) alimentada pela noção
de “encontro” fundado no paradigma da pluriversalidade (RAMOSE, 2011). Vale dizer
ainda que o acontecimento-Èṣù possibilita esse caldeirão epistêmico através do Èṣù
Ẹnugbárijọ – a boca que tudo come – que, a partir disso, ratifica a circularidade como um
trânsito contra colonialista.
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O trânsito da biointeração
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(SODRÉ, 2017, p. 121). Nesse sentido, o transe guia os possíveis caminhos, individuais
e coletivos, para compor uma “filosofia a toque de atabaques”, já que “ [...] pode ser lido
como um ‘conceito’ suprarracional [...] em que o ato é o seu próprio efeito” (SODRÉ,
2017, p. 126). Com isso, há uma atribuição em série de signos que fornece à corporeidade
a própria constituição de linguagem expressada pelas vestes, pelas danças, pelas pinturas
corporais que podem, ou não, ser lidas ou traduzidas conforme a percepção daquelas
pessoas que estão presentes.
Percepção vinculada ao trânsito entre as dimensões do visível e do invisível,
reproduzida através da mente comunitária na “voz do comum” que ressoa as ações
ritualísticas engajadas por um coletivo: “no sentido de uma exigência radical de partilha
da existência com o Outro” (SODRÉ, 2017, p. 125). Sobretudo há uma dramaticidade do
ritual que faz o invisível não se equivaler “à ideia ocidental de ‘inconsciente’” (SODRÉ,
2017, p. 128), pois no cerne das comunidades de origem não há o recalque, a subtração.
De fato, o ritual constrói “o lugar próprio à plena expressão e expansão do corpo.
Diferentemente da teologia cristã ou da meditação oriental, ele não racionaliza os seus
conteúdos, mas constitui, em última análise, o modo de ser reflexivo da comunidade como
uma forma somática de pensar” (SODRÉ, 2017, p. 129, grifos do autor). Nesse corpo-
pensamento anuncia o mundo não como algo a ser des-coberto, e sim como o contínuo
da pessoa que se encontra na comunidade composta pelos vivos, pelos antepassados e
pelos vindouros. Com tal encontro, o intuito de atingir a “plenitude de uma experiência
existencial” para alcançar o fim ou o abá exibe, conforme Sodré (2017, p. 129), uma
dinâmica de forças, áṣẹ, entre pessoas, animais, plantas e toda a espécie viva e atuante
junto a humanidade:
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seja, nada é igual” (SANTOS, 2015, p. 89) e rege o pensamento plurista dos povos
politeístas. Divergindo da transfluência que ensina “nem tudo que se mistura se ajunta”
(SANTOS, 2015, p. 89) e rege o pensamento monista dos povos monoteístas. Com essa
diferença, os debates de realidade e aparência, ou como comenta Bispo dos Santos (2015,
p. 89) “entre o que é sintético e o que é orgânico” expõem e exigem uma posição no
mundo que percebe cada vida, não como algo abstrato, mas como concretização daquilo
que compõe a humanidade. Sendo assim, é preciso compreender que a
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masculino, que “como não pode ser visto materialmente, se apegam muito em monismos
objetivos e abstratos” (SANTOS, 2015, p. 39).
E movimentado pela cosmofobia, rapidamente houve justificativas de “invadir,
perseguir, capturar, derrotar e submeter todos os sarracenos e quaisquer pagãos e outros
inimigos de Cristo onde quer que estejam seus reinos” (BULA ROMANUS PONTIFEX,
1455 apud. BISPO, 2015, p. 28), desse modo os proprietários de Cristo tentaram colonizar
a circularidade para impor uma linearidade. No entanto, permeadas pelo fogo e pelo
nascimento as comunidades contra colonialistas atentos ao acontecimento-Èṣù perduram
na eṣistência: “porque mesmo que queimem a escrita/ Não queimarão a oralidade/ Mesmo
que queimem os símbolos/ Não queimarão os significados/ Mesmo queimando o nosso
povo/ Não queimarão a ancestralidade” (SANTOS, 2015, p. 45).
Jornada cósmica
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O enigma e o ritual das crianças são perspectivas que nos põem, adultos/as, em
um espaço além das normas de saber e de poder. Como também recusam as dicotomias
generificantes que reduzem a espiritualidade materna, feminina, à emoção e à
subserviência e já a paterna, masculina, produtora da disciplina e exercício da
racionalidade.
Por isso, ao destacar a criança como enigma e ritual evidencia-se a ancestralidade
como similar a um animal grandioso e forte, pois “ela, ao mesmo tempo, é enigma-
mistério e revelação-profecia. Indica e esconde caminhos. A ancestralidade é um modo
de interpretar e produzir a realidade” (OLIVEIRA, 2007, p. 257). Inclusive, com o escrito
até o momento podemos anunciar que a criança ancestral (algo que habita em nós e nos
acompanha em nossa vida terrena) busca nos incluir, unir, ligar e encantar em nossa
percepção de mundo. Uma busca fundamentada na ligação ancestral das crianças que é,
como nos explica Araujo, um recurso para evidenciar a conexão infantil com as
dimensões visíveis e invisíveis. Uma conexão possível já que “ser criança [...] significa
existir e coexistir desde sempre, sobretudo porque se entende que o protagonismo das
escolhas e o conhecimento dos mistérios espirituais não são menores quando se é
pequeno” (ARAUJO, 2019, p. 124).
Esse mistério se volta na vertente biocósmica do acontecimento-Èṣù na junção
ancestralidade e diáspora africana que justamente dinamiza a vitalidade dos corpos
negros. Com essa preparação do terreno podemos enfim interpretar o ìtan de Èṣù
Ẹnugbárijọ como princípio da pluriversalidade.
A boca pluriversal
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2
Ọ̀ rúnmìlà é quem guarda a sabedoria do Ifá (sistema de consultas) e por isso é representado com o seu
opelê ifá.
3
Òriṣàlá, ou Oxalá, é parte masculina da criação dos seres humanos. Na forma jovem é chamado de
Oxaguiã com um idá (espada), um pilão de metal branco e um escudo. Na forma idosa é Oxalufã carregando
um cajado de metal chamado opaxoró.
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dava aquilo que pedia, até o momento em que Ẹlẹgbára devorou a própria mãe, Yébìírú4.
E quando foi ao encontro do pai,
A narrativa possui vários elementos interpretativos que podem nos direcionar para
diferentes caminhos, mas para dialogar com a proposta deste ensaio é importante observar
a característica de devorar e regurgitar. Principalmente porque é a partir dela que marca o
Ẹnugbárijọ como a boca coletiva que “transforma o pensamento em palavra e os seus
cursos no alinhave da comunicação” (RUFFINO, 2019, p. 31). Desse modo, constrói-se
uma ponte entre o ọ̀run (supraterreno) e o àiyê (terreno) que se atrela à Èṣù e seu percorrer
em todos espaços do ọ̀run. Outro detalhe desse ìtan é a presença de outras faces: Yangí e
Ẹlẹgbára. Luiz Rufino (2019) explica que o Yangí é aquele que está no primeiro e também
no último, tal como os pontos do caracol (Òkòtó) que “nos possibilita pensar o presente
de forma alargada, que nos permite também transgredir com a linearidade histórica que
achata o presente (potência do ser e suas invenções em interação com o espírito do tempo)
entre passado e futuro” (RUFINO, 2019, p. 25). O Ẹlẹgbára é o dono do corpo, que para
Sodré atua assegurando a circulação das vias internas, animando o corpo e filtrando as
impurezas num processo de “dejeção”: “passível ser etimologicamente lida no próprio
nome – Exu – uma aglutinação do prefixo è com a raiz verbal xu e semioticamente afim
ao primeiro significado grego de Arkhé, que é ‘ânus’, ou seja, a boca ‘última’ do corpo”
(SODRÉ, 2017, p. 179).
Tais presenças nas narrativas compõem a multiplicidade eṣusíacas que são
envolvidas em várias faces. Mas como retirar dessa narrativa a interpretação de
4
Yébìírú é o ventre-continente da humanidade que dá nascimento as todos os tipos de filhos.
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para certo grupo humano e é negada a outros grupos, então a ideia de filosofia “universal”,
sem cultura, sexo, religião ou cor, afirma uma particularidade que não permite o
entendimento em seu todo. Com isso, não se adequa ao terceiro sentido do acontecimento-
Èṣù. Além disso, se trocarmos a palavra filosofia por cultura, ciência, espiritualidade ou
quaisquer outras, logo percebemos que a “universalidade” é uma acomodação da ideia de
humanidade como repetição do “mesmo”, pois “[a] ênfase na mesmidade (sameness) sob
a égide do ‘universal’, diz respeito à aparente intenção de estabelecer totalidade e
hegemonia” (RAMOSE, 2011, p. 10). Em decorrência, o “outro” é um alien, um
estranho, ao mundo que habita o meu “eu” e, doravante, necessita se adequar às
prerrogativas das minhas condições de existência. Porém, como o acontecimento-Èṣù nos
permite objetar essa concepção particular de “universal”? Aquilo que foi escrito até o
momento fornece uma saída dessa concepção ao enfocarmos na circularidade como um
trânsito contra colonialista. Uma ênfase que, ainda seguindo as palavras de Ramose
(2011, p. 12), afirmamos: “Ao falar da particularidade, temos em mente aquilo que está
incrustado na natureza e na cultura, revelando as características específicas, mas inter-
relacionadas, que constituem a sua identidade”.
Essa constituição da identidade é uma via importante para adentrarmos nas
implicações do acontecimento-Èṣù frente a “universalidade” ocidental. Uma
“universalidade”, retomando alguns pontos deste ensaio, que corrobora uma linearidade
monoteísta e uma formação de sujeitos dependentes do “olhar” ocidental. Em grande
parte, uma das implicações direciona-se para a noção de identidade vinculada à
característica de Èṣù como substância-fundamento àquilo que existe, dinâmica entre-
mundos e sempre escapável às categorizações racionais. Além disso, vale discutir a
questão da encruzilhada, pois sendo o lugar de Èṣù então o que acontece quando nos
encontramos nela? A própria noção de encontro entra no jogo, já que outros signos e
significados são destacados e a alteridade vincula-se a uma formação atravessada de
humanidades. Ainda mais como afirma Rufino (2019, p. 5): “A encruzilhada é a boca do
mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e
poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos”.
A encruzilhada comporta a circularidade da força vital, ou em termos iorubás: o
áṣẹ. A própria dinâmica que engendra e faz interagir os diversos caminhos, pois na
encruzilhada todos os caminhos nos levam a Èṣù. Nessa perspectiva, concordamos com
Wanderson Flor do Nascimento (2016, p. 30) que Èṣù “não é apenas a figura da
encruzilhada, mas também o movimento que se faz diante da multiplicidade de caminhos
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que a encruzilhada faz ver, nos possibilitando um deslocamento que pode nos encaminhar
para vários lugares e um movimentar que nos faz ser de outros modos”.
Outros modos que envolvem o próprio senso de comunidade e destaca como a
ancestralidade é uma dinâmica vital enigmática e ritualística que potencializa os “mais
novos” e atualiza “os mais velhos”. Criando um jogo, que desfaz a encruzilhada como
um local de assombro, de medo, bloqueando o áṣẹ, para abrir os caminhos e enviar
mensagens entre as dimensões visíveis e invisíveis. Portanto,
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ẸLẸGBÁRA YANGÍ
ẸNUGBÁRIJỌ
YANGÍ ẸLẸGBÁRA
ONTOLOGIA
ÉTICA
ESTÉTICA
EPISTEMOLOGIA
POLÍTICA
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Uma provocação atrelada aos diferentes modos de Èṣù e, principalmente, pelo seu
acontecimento. Nesse caminho, em outro ìtan em que Ele usa um chapéu de um lado
vermelho e do outro preto simboliza também a contrariedade do acontecimento-Èṣù
diante da verdade universal. Pois ao passar no meio dos dois amigos, cada um vê apenas
um lado de chapéu e toma como todo (universal) e a partir daí cria-se a discórdia pela
defesa da sua perspectiva acerca da “única” verdade. Assim, se exemplifica como a razão
ocidental preocupada em decifrar o enigma não atenta para o acontecimento, pois “um
momento pode se apresentar de uma forma ou de outra conforme os pontos de vista de
quem os observam e, nessa observação, revela mais a característica do observador ao
invés do próprio Èṣù” (OLIVEIRA, 2007, p. 128). O problema é que para saber quem é
Èṣù necessita-se dar uma volta em torno Dele e “dar uma volta é, de fato, um movimento
curvo e não retilíneo, que dependendo da velocidade que se cumpra a tarefa, pode levar à
vertigem o espectador. Exu é o mestre da vertigem!” (OLIVEIRA, 2007, p. 129) seja
impulsionando o inconformismo, seja contra colonizando o pensamento humano.
Últimas palavras
As linhas costuradas neste ensaio propuseram uma forma de entender Èṣù como
acontecimento e, para isso, a intepretação do ìtán de Ẹnugbárijọ aproximou-O do
paradigma da pluriversalidade. Tal paradigma expôs filosoficamente como tratar de
certos eixos através de uma circularidade que cruza dois ou mais caminhos. Com isso,
nós ilustramos a estética como referência dialógica entre a epistemologia, a ética, a
política e a ontologia. Tal ilustração tratou-se de uma percepção de como o
acontecimento-Èṣù propicia uma circularidade contra colonialista e, portanto, opõe-se ao
colonialismo que pretende regular a própria vida e suas expressões na humanidade.
Para tanto, apresentamos alicerçados no conceito de “biointeração” como a
espiritualidade, diferente do discurso religioso, trata-se de uma vinculação entre
aquele/aquilo que está no campo visível ou no invisível. Tal vínculo amplia a noção de
vida e expõe como o “outro” adequa-se a uma singularidade marcada por um coletivo.
Com isso, a diáspora e a ancestralidade africana tornam-se elementos que articulam um
dinamismo cósmico exibindo o caráter enigmático e ritualístico dos corpos negros. Nesse
conjunto a intenção foi subverter o discurso colonialista da razão ocidental.
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Como provocação, trazemos algumas palavras de Rufino (2019, p. 32), até mesmo
para ilustrar a dinâmica do acontecimento-Èṣù não percebido pelo discurso colonizador:
“[Hegel] firmaste um verso sobre as populações negras como sendo contrações imóveis,
rastejo e espasmo. Eu, cismado que sou, refaço a pergunta: Ora tu não viste um moleque
de pau duro que passou do teu lado? Não viu? Acabou de tirar um sarro de ti!” (RUFINO,
2019, p. 32).
Com o sarro desse “moleque de pau duro” encaminho a finalização deste ensaio
com o seguinte firmamento: o acontecimento-Èṣù faz com que aquilo que está vivo tenha
eṣistência.
Referências
HALL, Stuart. Quem precisa da Identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e
Diferença. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
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HEGEL, Friederich. Lectures on the Philosophy of History. London: York Street, 1857.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2019.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Ed. Mórula, 2019.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significação. Brasília:
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa
– INCTI, 2015.
SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 2015, p. 191.
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Resumo
Através da preservação da memória genealógica, traduzida em saberes e fazeres que
constituem as chamadas Tias, vamos refletir como se deu a construção desta categoria
política e como a aproximação com o ofício dos griôs da África Ocidental nos
proporciona uma linha de entendimento da importância da trajetória destas mulheres
negras, por ora, inviabilizadas na história. Logo, a reflexão dos regimes de visibilidade,
protagonismo e emancipação, desenvolvida por mulheres negras na dimensão política,
cultural e de organização dos espaços da memória em países de reminiscências
coloniais, como é o caso do Brasil, nos possibilita inscrever a categoria Tia como um
ofício na história social das mulheres. Refletindo assim sua intervenção no mundo a
partir do trabalho protagonizado às margens, acionando assim a potência das histórias
múltiplas na partilha do comum. Deste modo, vamos nos servir de uma costura
bibliográfica enquanto elaboramos e pesquisamos nossas próprias fontes, já que o
registro de tais memórias se encontra soterrado nas amarras do pacto colonial. Dito isto,
este é um trabalho por regimes de visibilidade e ajuste de memórias.
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propias fuentes, ya que el registro de tales memorias está enterrado en los lazos del
pacto colonial. Dicho esto, este es un trabajo para regímenes de visibilidad y ajuste de
memorias.
Sotigui Kuyaté3
O termo francês “griot” apareceu pela primeira vez em francês na obra de Alexis
de Saint Lô: Voyage au Sénégal de 1637. Sendo uma das instituições mais antigas da
África Ocidental, há relatos de viajantes árabes datados de 1350 sobre a corte do Mali
nos quais se descrevem a presença de músicos intérpretes com características bem
semelhantes aos “griots”, mas que eram conhecidos entre si pelo termo jeli. (BARRY,
2000).
Sendo um estrangeirismo francês, a utilização da palavra “griot”, ao mesmo
tempo que foi fruto do olhar europeu sobre um ofício mais antigo na África Ocidental, é
também uma apropriação por parte dos africanos de uma terminologia que eles
souberam bem incorporar enquanto categoria política de existência e (re) existência no
mundo. Como não há correspondência no português para esta expressão, vamos adotar a
forma aportuguesada griô, como há grafado na Epopeia Mandinga de Sundjata de 1982,
romance publicado em diversas versões por Niane Djibril Tamsir, no qual retrata a
formação da identidade griô sendo cunhada nas fronteiras, no contato com o olhar
classificatório do colonizador, transitando entre o processo de assimilação engendrado
pelo europeu e a apropriação por parte do próprio grupo africano.
2
Livre transcrição do documentário: “Sotigui Kouyaté: um griot no Brasil”, produzido pelo grupo SESC
TV em dezembro de 2006.
3
Sotigui Kuyaté nasceu no Mali em 1936 e faleceu em Paris em 2010, sendo considerado um dos griôs da
contemporaneidade. Seu reconhecimento internacional se deu por conta de seu trabalho no cinema e no
teatro, tendo atuado em diversas produções francesas, inclusive com Bernardo Bertolucci e Peter Brook.
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Chamando atenção para o apelo que a produção cultural da diferença fez a partir
dos corpos dos sujeitos negros, Gilroy aponta o estilo, a música e a performance dos
corpos como repertórios da cultura negra ou espaços performativos mais latentes para as
estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica. Se
refletirmos a dimensão do som no pós-Abolição, vemos que a música, que encontra seu
nascedouro nas dimensões das sociabilidades negras, teve um alcance muito maior que
os corpos negros. Aliás, a música dos sujeitos negros adentra espaços em que seus
corpos são interditados. Os sons produzidos pelas comunidades negras constituem a
paisagem sonora e por isto foram responsáveis pela organização das cidades, do
trabalho, da vida rural, das associações negras, dos próprios territórios musicais, vide as
escolas de samba no Rio de Janeiro, por exemplo. A partir do reflexo da agência negra
nas políticas de emancipação e luta de mulheres, temos no território do samba um
campo privilegiado de análise que aponta para a construção da categoria Tia.
São esses dispositivos culturais de origem negra no desenvolvimento de novas
epistemologias que junto ao fim de um império cognitivo - parafraseando Souza Santos
(2010) ao assinalar o desmonte epistemológico e político do pensamento ocidental -
auxiliam na audição das insurgentes vozes femininas na atualidade. Não basta apenas a
constatação da crise de paradigmas do pensamento hegemônico, há que se ouvir nos
espaços de dialogia as diferentes vozes dos sujeitos sociais. Como estamos olhando
sobre os ombros de mulheres negras, suas vozes emergem à força da ação política das
Tias, as nossas griôs do samba.
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Com estas palavras Yara da Silva abre seu livro: Tia Carmem: negra tradição da
Praça Onze sobre sua avó Tia Carmem do Xibuca. Sendo um dos poucos registros
escritos sobre as Tias, a autora faz deste uma singela homenagem e exercício afetivo de
resgate de uma determinada memória. Carmem Teixeira da Conceição proveniente de
Amaralina, Salvador, Bahia, nasceu em 1878 e foi para o Rio de Janeiro em 1893 indo
morar na rua Senador Pompeu, Zona Portuária. Recebeu o apelido do marido, Xibuca,
após casar-se com Manoel Teixeira com quem teve 22 filhos. Filha do Orixá feminino
Oxum ela era rezadeira, quituteira, vendia seus doces no tabuleiro na Lapa, Campo de
Santana e Praça Tiradentes. Relatam-na como uma mulher muito festeira que saía em
vários ranchos carnavalescos e frequentava os quintais das casas das amigas, Tia Ciata e
Tia Bebiana.
As Tias, que serão grafadas aqui em maiúsculo para não perdermos na dimensão
desta categoria de análise, a perspectiva do ofício, são, em sua maioria, mulheres mais
velhas, detentoras de um saber fazer que remonta uma memória genealógica de herança
africana na cidade do Rio de Janeiro. Existe no ser Tia algo de poder e de político, que
faz com que elas sejam legítimas ao ponto de: “mudar a forma de pensar e de agir do
povo escravo que veio para o Brasil em navios negreiros...”, como nos aponta Silva
acima. Progenitoras, líderes, rezadeiras, cozinheiras, sambistas, quituteiras,
quitandeiras, organizadas, conscientizadas, mães de santo; estas Tias manipulam tantos
códigos que chegam a concorrer com outras formas de organização das famílias, da
cidade e da cultura. Responsáveis pela primeira geração de sambistas, já que foram as
mães destes, elas eram as chefas de famílias extensas e muitas frentes familiares se
formavam a partir do crivo de uma Tia e da existência de seu quintal.
A dimensão histórica dos quintais cumpre papel importante para a compreensão,
pois território e cultura se articulam de maneiras diversas e geram representações e
valores em tempos históricos diferentes. Praças, terreiros, quintais foram centros
culturais, sinalizando uma dimensão do espaço que serviu às manifestações da cultura
negra. Logo, podemos vislumbrar o quintal das casas das tias e a reunião destes quintais
culminando numa cartografia negra das cidades.
Com relação à família, não se pode pensá-la como um fato universal e natural,
mas como sistema organizador de ideias, valores e aspirações. Na ordem colonial
burguesa, por exemplo, costuma-se fazer uma certa distinção entre família,
propriamente dita, e, parentesco. Os termos não significam exatamente a mesma coisa, e
assim predomina a visão institucional que delimita a família nuclear e a família mais
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Hilária Batista de Almeida, ou simplesmente Tia Ciata, era filha do Orixá Oxum,
mãe pequena no terreiro do famoso pai de santo João Alabá4, o mesmo frequentado por
tia Carmem e outras tias. Nasceu em 1854, em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo
Baiano, mudando-se para o Rio de janeiro em 1876 com 22 anos. Do relato acima
podemos depreender algumas características interessantes: “candomblezeira”,
“feiticeira”, “mãe de santo”, “cantadeira ao violão”, “negra velha”, “cabeleira branca”,
mas a que salta aos olhos é a rede de pessoas em torno dela, que precisam de suas rezas,
feitiços ou “macumba”. Uma rede heterogênea “... gente direita, gente pobre,
4
Fundado em 1886, este é considerado um dos primeiros terreiros de candomblé na cidade do rio de
Janeiro, no bairro da Saúde na Zona Portuária.
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Diz Tia Carmem do Xibuca: “A nossa casa era o ponto de encontro de todo
mundo que gostava de um pagode. O João da Baiana, por exemplo, só queria sambar e
tocar pandeiro (...), não sei como o João foi parar no rádio” (SILVA, 2009, p. 111).
Interessante a afirmativa acima porque demonstra que a familiaridade com estes
primeiros sambistas chegou ao ponto de não perceberem a projeção dos mesmos fora do
reduto dos quintais. E continua Silva: “Os sambistas também se reuniam na casa da
vovó, mas na época, ela dizia, que não havia o chamado tratamento de sambista: eram
apenas pessoas que cumpriam os rituais africanos e a coisa terminava em samba” (Ibid,
p. 80).
Segundo Michel Mafesoli é no imbricamento entre indivíduo, cultura e território
que deve ser buscado o fundamento para o apego afetivo, ou “enraizamento dinâmico”
(MAFESOLI, 1984, p. 13). As Tias acabam por formar uma rede familiar em torno
delas, no espaço da casa, nos usos festivo e religioso do quintal, no domínio sobre a
alimentação, nas recordações que eram ali ouvidas, afinal, ir ao encontro destas Tias,
que estavam impulsionando a cultura urbana e criando espaço para o desenvolvimento
do que seria uma cultura negra, é ir ao encontro das lembranças que animam este
universo.
O espaço privilegiado para as festas das Tias era o quintal, geralmente, nos
fundos da casa. Pensando nos discursos de subalternização, vemos que coube ao quintal
a tarefa de abrigar os eventos tidos como mais subalternos para a ascendente sociedade
burguesa e não à toa que este ficava nos fundos, diferente dos quintais da família
burguesa que ficavam na frente de casa. Lembrando que dentro da estrutura da casa, o
quintal, muitas vezes, tem que ser camuflado para que seus eventos não sejam
interrompidos pela repressão. Ao mesmo tempo, seu chão de “terra batida”, uma
imagem que remete ao elemento terra tendo o terreiro enquanto continuação possível de
valores ancestrais, não sem mais que é no quintal de “terra batida” que ficavam
“ritualmente dispostas às coisas do culto” de matriz africana. Essa religiosidade,
camuflada para que viva, foi estrategicamente pensada pelas Tias (ALMEIDA, 2013).
Celeiro de grandes encontros era também o quintal de Tia Amélia do Aragão,
que ganhou o Aragão no nome porque morava na rua do Aragão. Cantadora de modinha
e mãe do cantor e compositor Donga. Havia as rezadeiras, Tia Bebiana e Tia Perciliana,
esta última mãe do sambista João da Baiana que, unidas a Tia Ciata, Tia Carmem e
outras, pertenciam todas ao terreiro de candomblé de João Alabá. Havia a grande
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quituteira Tia Veridiana, e, também Tia Sadata da Pedra do Sal, que foi fundadora do
rancho carnavalesco Rei de Ouro.
Interessante que as Tias mencionadas até agora eram todas baianas e moradoras
da Zona Portuária de finais do século XIX. Contudo, não vamos repetir, sem
problematizar, a ideia de uma centralidade baiana. Aliás, a incipiente bibliografia sobre
elas cunhou no imaginário social a ideia de uma diáspora baiana que carece de estudos
mais aprofundados, interesse que vem se desdobrando em futuras pesquisas sobre a
Bahia oitocentista, mas, por ora, vamos tentar descobrir o que este mito encobre ao
descentralizar a influência baiana, a fim de ampliar os espaços políticos e territoriais da
“pequena África”.
Proponho que a espacialidade das Tias não seja lida entre baías - Baía de Todos
os Santos e Baía da Guanabara – representando Salvador e Rio de Janeiro
respectivamente, e, para tanto compartilho com o historiador Tiago de Melo Gomes
(2003) ao apontar a importância dos deslocamentos de mineiros e fluminenses para a
cidade do Rio de finais do século XIX. Em vez de colaborar com uma historiografia do
isolacionismo, pensando em grupos separados, queremos ampliar o debate, refletindo o
trânsito e experiência das Tias para além da centralidade baiana e da Zona Portuária.
[...] entre 1872 e 1890 a Bahia perdeu apenas sete mil habitantes através da
migração interprovincial. Na última década do século XIX, o mesmo estado
teve um saldo positivo de 40 mil pessoas no quadro nacional das migrações,
tornando-se um fornecedor de migrantes internos apenas a partir de 1900 e
nos vinte anos seguintes, quando perde por esta via 116 mil habitantes. Não
se pode, contudo, postular que a maioria destes migrantes tenha se dirigido à
Capital, pois esta recebeu apenas 55 mil novos migrantes internos no mesmo
período (menos que Pará e Pernambuco e pouco mais que o Rio Grande do
Sul). Por certo, uma parte significativa destes novos habitantes da Capital era
composta por mineiros, já que o estado de Minas Gerais cedeu 220 mil
pessoas a outras unidades da federação no mesmo período. (GOMES, 2003,
p. 7)
Tia Eulália, por exemplo, era mineira, chegando ao Rio de Janeiro foi para a
comunidade da Serrinha em Madureira por volta da década de 30. Outra que chega à
mesma época é Vó Maria do Jongo, proveniente do interior do Estado do Rio. Reduto
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5
Dança afrobrasileira de caráter mítico religioso, originária talvez da região de Benguela, atual Angola,
que se desenvolveu na região sudeste do país e tem no Rio as baluartes Vó Maria do jongo e a própria tia
Eulália, ambas da Serrinha.
6
O Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, ou simplesmente Portela, é uma escola de samba
fundada em Madureira no ano de 1923. Inicialmente ela foi fundada numa dissidência entre dois blocos
carnavalescos, o “Baianinhas de Oswaldo Cruz”, cujos diretores eram Paulo da Portela, Heitor dos
Prazeres, Antônio Caetano, Manuel Bam Bam Bam, Natalino José do Nascimento, o famoso Seu Natal,
dentre outros, e o “Quem fala de nós come mosca” cuja origem remete ao famoso quintal de Tia Esther.
Dessa dissidência Paulo da Portela liderou o grupo que formou o “Conjunto Oswaldo Cruz”, que foi
renomeado para: “Quem nos faz é o capricho”, e depois: “Vai Como Pode”, nome que a escola teve até
1935, ano de seu primeiro título quando assume o nome Portela.
7
Faceta da escravidão urbana em que escravizadas e escravizados eram liberados do trabalho doméstico
para comerciar nas ruas da cidade, entretanto, sem, contudo, perderem o vínculo de servidão com seus
donos, os quais recebiam uma boa quantia deste ganho, cláusula.
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O Vale do Paraíba ou Vale do Café, como é popularmente conhecido, é uma região cortada pelo rio
Paraíba do Sul, que abrange quinze municípios do Estado do Rio, e, que teve seu auge na economia
cafeeira, bem como na empresa escravocrata, na segunda metade do século XIX.
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A espacialidade desta cidade com suas fronteiras, além de não ser bem definida,
estava longe de representar algo homogêneo. À mistura de libertos, os ex-escravizados,
com os nascidos livres e os migrantes vindos da Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo,
além do interior do Rio, se juntaram os imigrantes europeus, eram italianos, espanhóis,
portugueses, franceses, ingleses e árabes compondo a paisagem desta cidade. Para além
de descentralizar a ideia de uma “diáspora baiana”, gostaríamos também de ampliar os
limites espaciais e políticos da “pequena África”. Expressão cunhada a partir da ideia do
sambista Heitor dos Prazeres que, ao observar o fluxo maior de negros nas ruas da
cidade, disse estar em “uma África em miniatura”, se referindo, sobretudo, à Zona
Portuária. Entretanto, quero pensar aqui os símbolos que justificam a defesa da
“pequena África” enquanto mito fundacional da vontade de uma civilização africana
entre nós para assim ampliar suas fronteiras a fim de costurar a cidade negra.
Imaginemos que chegar à região portuária era como se estivéssemos entrando
numa empresa escravocrata, com repartições, hierarquias que obedeciam a postos de
trabalho, divisão racional e instrumental, usos diferenciados dos espaços, enfim, tinha-
se desde o Cais do Valongo9, os espaços dos trapiches e pelourinhos, até a Pedra do Sal,
o Largo do Depósito, o Cemitério dos Pretos Novos, enfim, todo um complexo que
servia à empresa escravocrata. Com o pós-Abolição, essa memória, por vezes,
literalmente soterrada, encoberta em relações de poder e violência, emergiu pela agência
dos grupos negros quando resgataram a ideia de uma “pequena África”, nascida no solo
de muito trabalho e sofrimento, mas apoiada nos espaços de vivência e circulação dos
negros e na perspectiva de uma consciência histórica. Portanto, é como construção
política e vetor de reivindicação de existência e humanidades negadas que ampliamos a
ideia da “pequena África” a fim de pensar esta cidade.
A apropriação da “pequena África” enquanto um isolado idílico onde as
manifestações negras são tidas como coesas e homogêneas, e a de uma diáspora baiana,
como catalizadora para a produção da cultura urbana, foram imagens reproduzidas e
muito pouco problematizadas na historiografia (MOURA, 1995). Por isto, a ideia da
“pequena África” enquanto construção política de determinados herdeiros é mais
interessante e reflexiva. A partir da ideia da herança, Hall (2013) diz que herdeiro é
9
No ano de 2013, o Conselho Científico Internacional da Unesco, através do projeto “Rota do Escravo:
resistência, liberdade e herança”, fixou uma placa no Cais apontado como lugar de memória da Diáspora
Africana nas Américas. No ano seguinte, houve a candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo
a patrimônio da humanidade e em 2017, finalmente, houve a declaração do Cais como patrimônio do
mundo pela Unesco.
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aquele que usa e dissipa a herança a partir de uma ação do presente, ou seja, a relação
com o passado se desenrola a partir dos significados e das relações de poder que fizeram
com que as coisas viessem à tona. É o acionamento no presente que ativa esse passado
no acionamento das disputas.
Os usos comuns desta herança pela comunidade negra fizeram desenvolver, nos
espaços desta cidade, várias “pequenas Áfricas” para além da já consagrada região
portuária, e foram as Tias do samba e os sambistas transitando pela cidade, a cultura que
se desenvolve na relação com as ruas, ou a que estava sendo cultivada nos subúrbios
mais rurais ou ainda nos grandes ajuntamentos; todo esse movimento que produz a
cultura da cidade edificada no calçamento da herança escravocrata. Neste sentido, a
autoridade discursiva das mulheres se faz notória, seja na organização dos espaços da
cidade, no plano familiar, na gestão de pequenos negócios, na produção de seus
quintais, enfim, uma autoridade que se consolida através das lutas por emancipação e
protagonismo da comunidade negra. Pois o que está em jogo na atuação política da Tia
é sempre a emancipação de uma comunidade, de uma família, e, portanto, de outras
mulheres.
À guisa de conclusão
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Referências Bibliográficas
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Resumo
Com a Diáspora Negra, aportaram no Brasil as Iyás – mães e Iyabás, que são as
divindades matrigestoras afro-brasileiras, vindas do outro lado do Oceano Atlântico.
Assim, neste artigo se propõe discutir algumas ideias a respeito de como a divindade
afro-brasileira Oxum e o seu espelho de mão, o abebé, são efetivamente belicosos;
buscamos também evidenciar alguns elementos das vidas de Makota Valdina, Maria
Neném, Doné Runhó, Tia Ciata, Mãe Aninha, Chica Xavier, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe
Menininha, Olga do Alaketu, Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Gilda de Ogun e Giselle
Omindarewá, aqui nomeadas como Iyás: Mães de Santo, Matrigeradoras e Matrigestoras
afro-brasileiras. A partir de uma pesquisa bibliográfica, identificamos que as lutas
antirracistas e feministas são comuns nas vidas dessas Iyás, pois verificamos que em
diferentes períodos e em diferentes terreiros essas lutas se repetiram de distintas formas,
e compreendemos que as lutas contra o racismo e machismo são constitutivas e/ou uma
característica das Iyás afro-brasileiras. Concebemos Oxum como insígnia das Iyás e
Iyábás e, entretanto, consideramos que ainda as mulheres de terreiro permanecem
invisibilizadas.
1
Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
2
Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
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Iyás e Iyábás y, sin embargos, consideramos que todavía aun les faltan mucha
visibilidad.
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Assim, movidos pelo cântico de Gilberto Gil, trabalharemos neste artigo como a
cosmologia em torno da Iyábá Oxum e seu Abebé, as quais tiveram suas representações
distorcidas pela colonialidade do saber/poder.
Colonialidade foi um conceito que foi introduzido pelo sociólogo peruano
Anibal Quijano, no início dos anos 1990 e foi reelaborado por outros autores e autoras –
entre os quais destacamos, neste momento, Walter Mignolo (2003) e suas reflexões no
conhecido trabalho Histórias Locais/ Projetos Globais - Colonialidade, Saberes
Subalternos. Enquanto colonialismo se refere ao processo e aos aparatos de domínio
político e militar que se desenvolvem para garantir a exploração do trabalho e as
riquezas das colônias em benefício do colonizador (GROSFOGUEL, 2008); a noção de
"colonialidade" se configura como um fenômeno histórico muito mais complexo e se
estende até nosso presente, referindo-se a um padrão de poder que opera por meio da
naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a
reprodução de relações de dominação. Dito de outro modo, nesta compreensão, o
colonialismo não acabou com as guerras da independência, mas continuou o processo
de dominação na América Latina de diversas maneiras até os dias atuais (QUIJANO,
1997).
É exatamente por isso que é fundamental trazer para o debate acadêmico alguns
elementos biográficos das vidas de Iyás de comunidades religiosas afro-brasileiras, pois
acreditamos que essa temática pode, em alguma maneira, mesmo que minimamente,
contribuir aos/as leitores/as interessados/as em discutir que Oxum não pode ser
referenciada e/ou interpretada pela colonialidade do saber/poder (QUIJANO, 1997;
OYĚWÙMÍ, 2017) ou colonialidade da religião (SILVA; PROCÓPIO, 2019) e que as
Iyás são exemplos de lutas pelas causas antirracistas e anti-machistas. Considerando que
mães de santo e/ou mulheres de terreiro possuem “sabedorias vindas da África e
cruzadas nas travessias do oceano, [...] sabedorias essas que cotidianamente insistem em
dobrar a morte pela via do não esquecimento” (SIMAS; RUFINO, 2019, p.84).
Este debate que apresentamos aqui é construído considerando-se essencialmente
materiais escritos e alguns audiovisuais a propósito da crítica à colonialidade
(QUIJANO, 1997); as potências de Iyás e da Iyábá Oxum (OYĚWÙMÍ, 2017; FLOR
DO NASCIMENTO, 2019; RIBEIRO, 2020; AKOTIRENE, 2019), e suas narrativas
mitológicas (SIMAS; RUFINO, 2019; PRANDI, 2020). O objetivo desse texto é
mostrar como Oxum e seu Abebé são belicosos e não-eurocêntricos, e exemplificar
com notas biográficas de Iyás significativas para as religiões afro-brasileiras, por suas
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Iyás e Abebés
3
AKOTIRENE, Carla. Oxum. Postagem no Instagram. https://www.instagram.com/p/B-ws3Anlkop/ em
09 de abr. de 2020.
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Além das características descritas no Itan por Reginaldo Prandi, Oxum Opará,
como igualmente é conhecida, adorna-se nas religiões afro-brasileiras com dois
espelhos, um que mostra apenas as coisas boas e outro que mostra apenas as ruins. Para
qual estamos olhando? Aníbal Quijano ponderou que ainda estamos olhando para o
“espelho das coisas ruins”, o “espelho eurocêntrico” (QUIJANO, 2005, p.139).
4
Mito afro-brasileiro.
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Considerando que Franz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, indagou que “os
negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco” (2008, p.15).
Quijano, em Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina, ponderou a respeito
do espelho eurocêntrico:
5
Luciana Ballestrin explica que “descolonial” ou decolonial não deve ser confundida como mera
descolonização. “Em termos históricos e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo;
por seu turno, a ideia de decolonialidade ou descolonialidade procura transcender a colonialidade, a face
obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de
poder” (BALLESTRIN, Luciana. Para transcender a colonialidade. Revista IHU on-line, v. 431, p. 40-41,
2013).
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Divindades afro-brasileiras oriundas das culturas Nagô e Ewe-Fon.
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Notas biográficas
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Makota Valdina dizia que “não sou descendente de escravos; eu descendo de seres
humanos que foram escravizados” (2012). Integrou o Conselho Estadual de Cultura da
Bahia.
Maria Genoveva do Bonfim ficou conhecida como Maria Neném ou Mam'etu
Tuenda Dia Nzambi, e foi consagrada ao nkisi Kavungo, uma divindade banta retentora
da terra. Nasceu em 1865 no Rio Grande do Sul e faleceu em 1945, em Salvador, Bahia.
Filha de santo de Roberto Barros Reis, conhecido como Tata Kimbanda Kinunga,
africano que foi escravizado no Brasil, e dele herdou o Nzo Tumbensi, afamado terreiro
de liturgia Angola mais antigo da Bahia. Maria Neném foi a matriarca de muitos
religiosos que originaram outras grandes comunidades afro-brasileiras, como o Terreiro
Tumba Junsara e o Terreiro do Bate-Folha (ambos tombados pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o Terreiro Tanuri Junsara e muitos outros no
Brasil (ADOLFO, 2009).
Maria Valentina dos Anjos Costa ficou conhecida como Doné Runhó, ou Mãe
Ruinhó, e foi consagrada ao vodun Sogbô, divindade Jeje-Mahi das trovoadas e dos
raios. É descendente de africanos procedentes do antigo Daomé que confluíram a
Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, um levante significativo no Brasil
protagonizado por pessoas escravizadas que lutavam contra a situação em que viviam,
muitos de origem islâmica. Doné Runhó foi a quarta mãe de santo do Terreiro do Bogun,
ou Zoogodô Bogun Malê Rundó em Salvador, Bahia. O nome da praça do Engenho
Velho da Federação, na capital bahiana, é uma homenagem à memória de Doné Runhó
(PARÉS, 2018).
Hilária Batista de Almeida ficou conhecida como Tia Ciata e nasceu em Santo
Amaro, na Bahia, em 1854. Filha de Oxum, divindade que reina sobre as águas doces,
aos 22 anos mudou-se para o Rio de Janeiro. Tia Ciata foi mãe carnal de quinze filhos e
mãe de santo de muitos outros. Era doceira e vendia seus quitutes em um tabuleiro,
vestida com a indumentária tradicional de baiana, com saia, pano de cabeça e pano da
costa. Numa época em que a libertação dos escravizados ainda era recente e que as
religiões afro-brasileiras e a capoeira eram indesejadas e malquistas, Tia Ciata acolhia
em sua casa – na “Pequena África”, como era conhecido seu bairro no Rio de Janeiro -
africanos e seus descendentes e, da mesma forma, imigrantes europeus paupérrimos
recém-chegados ao Brasil. Em 1916, os tambores afro-brasileiros juntaram-se aos
violões italianos e aos cavaquinhos portugueses na casa de Tia Ciata para a produção de
Pelo Telefone, considerado o primeiro samba a ser gravado no Brasil, de autoria de
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Donga e Mauro Almeida. Entre 1920 e 1930 era significativo que as escolas de samba
passassem pela Praça Onze e pela casa de Tia Ciata para homenageá-la. A famosa Ala
das Baianas nas Escolas de Samba é uma referência à Tia Ciata e a outras senhoras
consideradas mães do samba (SIMAS, 2018).
Eugênia Anna Santos ficou conhecida como Mãe Aninha e nasceu em Salvador,
na Bahia, em 13 de julho de 1869, filha de Xangô, divindade da justiça, dos raios, do
trovão e do fogo. Foi iniciada na Casa Branca do Engenho Velho, o Ilê Axé Iyá Nassô
Oká, tombado em 1984 como patrimônio nacional. Em 1869 fundou o Ilê Axé Opô
Afonjá em Salvador, tombado patrimônio em 2000, e em 1895 fundou o Ilê Axé Opô
Afonjá no Rio de Janeiro. Em 1934, Mãe Aninha conversou com Getúlio Vargas — o
Chefe do Governo Provisório — sobre a coibição que as religiões afro-brasileiras
sofriam e, consequentemente, essas religiões foram descriminalizadas. Em 1936, Mãe
Aninha instituiu o Corpo dos Obás de Xangô, os chamados Ministros do Rei, títulos
honoríficos e diplomáticos afro-brasileiros com funções diplomáticas e políticas dentre
os quais já ocuparam funções Dorival Caymmi, Carybé, Jorge Amado, Vivaldo da Costa
Lima, Muniz Sodré e Gilberto Gil. Eles são os Ojú Obá, os olhos do rei, no Ilê Axé Opô
Afonjá. Além destas contribuições, Mãe Aninha participou do II Congresso Afro-
Brasileiro em 1937, falando sobre alimentação nas religiões afro-brasileiras (SANTOS,
2007).
Francisca Xavier Queiroz de Jesus é conhecida como Chica Xavier e nasceu em
22 de janeiro de 1936, em Salvador, Bahia. É atriz, dedicada ao teatro, cinema e
televisão. Filha de Iansã, divindade dos ventos e do fogo, é também mãe de santo da
Jurema, uma expressão religiosa afro-ameríndia brasileira, em seu terreiro Irmandade do
Cercado do Boiadeiro, no Rio de Janeiro. É casada com o ator Clementino Kelé desde
1956 e foi precursora e insígnia de gerações de atores e atrizes negros. Estreou em 1956
no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com Orfeu da Conceição, que marcou o início da
parceria de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, com cenários de Oscar Niemeyer. Na Rede
Globo de Televisão interpretou mais de cinquenta personagens e entre seus trabalhos
estão, por exemplo, as novelas A cabana do Pai Tomás (1969); Tenda dos Milagres
(1985); Dancin Days (1978); Sinhá Moça (1986); Força de um Desejo (1999) e A Lua
me Disse (2005). Em 1999 escreveu o livro Chica Xavier canta sua prosa, que reuniu
cantigas e preces para santos católicos e das religiões afro-brasileiras. Em 2011, foi
homenageada com o Centro Cultural Atriz Chica Xavier, em Ramos, no Rio de Janeiro,
e, em 2013, Teresa Monteiro escreveu sua biografia, Chica Xavier: Mãe do Brasil. A
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importância da atuação de Chica Xavier para o povo de axé se dá, entre outros motivos,
pela representatividade negra, de uma mãe de santo, na televisão e no teatro
(MONTERO, 2013).
Conhecida como Odé Kayodé, o caçador que traz alegrias, Maria Stella de
Azevedo Santos, conhecida como Mãe Stella de Oxóssi era filha do orixá-caçador da
fauna e da fartura e nasceu em 02 de maio de 1925, em Santo Antônio de Jesus, na
Bahia. Foi a quinta sacerdotisa do Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador, que liderou entre
1976 e 2018, como sucessora de Mãe Ondina, que permaneceu no posto entre 1969 e
1975, após os reinados de Mãe Aninha, a grande fundadora; de Mãe Badá, entre 1939 e
1941 e de Mãe Senhora, entre 1942 e 1967. Mãe Stella era Doutora Honoris Causa pela
Universidade do Estado da Bahia e Membra da Academia de Letras da Bahia. Instituiu a
Escola Municipal Eugênia Anna Santos e o Museu Ilê Ohun Lailai. Mãe Stella divulgou
as religiões afro-brasileiras por meio de seus livros, participou de espaços de discussão e
decisão como liderança religiosa e como intelectual. Odé Kayodé foi uma Agbá, isto é,
insígnia da ancestralidade afro-brasileira (SANTOS, 1993).
Maria Escolástica da Conceição Nazaré, que tem esse nome em homenagem à
Nossa Senhora Escolástica, é conhecida no Brasil como Mãe Menininha do Gantois.
Nasceu em Salvador em 1894 e era filha de Oxum, divindade da beleza, do amor, da
fertilidade e da maternidade. Entre 1922 e 1986 foi a Iyálorixá do Ilê Iyá Omi Asé
Iyamassê, o Terreiro do Gantois, tombado patrimônio em 2002, fundado e instituído por
sua antepassada, Maria Júlia da Conceição Nazaré. Entre 1930 e 1940, período em que
as religiões afro-brasileiras padeciam com perseguição e violência policial na Bahia,
Mãe Menininha consentiu que intelectuais, artistas, políticos e religiosos de outras
denominações frequentassem o Terreiro do Gantois, contribuindo para a popularização
das religiões afro-brasileiras. Gal Costa, Caetano Veloso e Maria Bethânia são alguns
dos famosos filhos de santo de Mãe Menininha, apelidada de Mão da Doçura. Recebeu
muitas homenagens, como a de Dorival Caymmi, que compôs, em 1972, Oração de Mãe
Menininha: “e a Oxum mais bonita, hein? / Tá no Gantois […] Ai, Minha Mãe / Minha
Mãe Menininha […]”. Igualmente, a famosa canção É D´Oxum, composta por Gerônimo
e Vevé Calazans em 1992, teve Mãe Menininha do Gantois como homenageada em seus
versos: “nessa cidade todo mundo é d´Oxum / Homem, menino / Menina, mulher”. Jorge
Amado, no livro Bahia de Todos os Santos (1945), escreveu que Mãe Menininha era a
mãe do povo da Bahia e a mãe do povo do Brasil (NÓBREGA; ECHEVERRIA, 2006).
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Olga Francisca Régis é conhecida como Olga do Alaketu, e seu nome religioso
no candomblé é Oyá Funmi. Nasceu em 09 de setembro de 1925, em Salvador, e era
descendente da família real Arô, do antigo reino de Ketu, no atual Benin, na África. Era
filha de Iansã, divindade do vento, do fogo e das tempestades, e por 57 anos foi a mãe de
santo do terreiro do Alaketu, o Ilê MarOyá Láji em Salvador, tombado em 2005. Contam
os velhos que duas princesas gêmeas, ainda crianças, foram enclausuradas e depois
escravizadas na Bahia durante a diáspora negra-africana. Uma dessas meninas era Iyá
Gogorisá e a outra era Iyá Otampê Ojarô, que passou a se chamar Maria do Rosário
Francisca Régis, e que após sua alforria teria voltado para África e se casado com Babá
Láji, com quem voltou para Salvador e fundou o Terreiro do Alaketu, o Ilê MarOyá Láji.
A princesa africana Otampê Ojarô, ou Maria do Rosário Francisca Régis, era a tia-avó de
Olga do Alaketu. Em 1997, Mãe Olga recebeu pelo então Presidente do Brasil, Fernando
Henrique Cardoso, a Ordem do Mérito Cultural, uma condecoração outorgada pelo
Ministério da Cultura a pessoas, grupos artísticos, iniciativas ou instituições a título de
reconhecimento por suas contribuições à cultura brasileira (CASTILLO, 2011).
Beatriz Moreira Costa é conhecida como Mãe Beata de Iemanjá e nasceu em 20
de janeiro de 1931, em Cachoeira, na Bahia. Era filha de Iemanjá, divindade das águas e
mãe dos peixes, e de Exu, mensageiro e dono das encruzilhadas. Foi filha de santo de
Mãe Olga do Alaketu no Ilê MarOyá Láji. Em 1969, separou-se de seu companheiro,
saiu de Cachoeira e foi para o Rio de Janeiro, cidade na qual trabalhou como atriz e
figurinista em novelas da Rede Globo de televisão até a sua aposentadoria. Em 20 de
abril de 1985, Mãe Olga do Alaketu consagrou Mãe Beata de Iemanjá como mãe de
santo do Ilê Omiojuarô, no Rio de Janeiro. Foi ativista pelos Direitos Humanos, em
especial os direitos das mulheres negras, e escreveu os livros Caroço de Dendê,
Sabedoria dos Terreiros (1997) e As histórias que minha avó contava (2005). Em 2006,
Glória Cecília de Souza Filho escreveu a tese de doutorado em Educação na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro Os Fios de Contos de Mãe Beata de Iemanjá:
Mitologia Afro-brasileira e Educação. Mãe Beata também foi conselheira da Rede
Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Recebeu a Medalha de Mérito Cívico
Afro-Brasileiro, conferida pela Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares de São
Paulo. Em 2007, recebeu o Prêmio Bertha Lutz, que foi instituído pelo Senado Federal
do Brasil para agraciar mulheres que tenham oferecido relevante contribuição na defesa
dos direitos sexuais e reprodutivos. Em 2017, receberia a Medalha Tiradentes da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que é uma honraria concedida e destinada a
101
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premiar pessoas que prestaram relevantes serviços pela causa pública do Estado do Rio
de Janeiro. Mãe Beata faleceu em 27 de maio de 2017, e a homenagem foi mantida e
recebida por seus filhos (COSTA, 2002; 2004).
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído em 2007,
homenageia Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, que foi a fundadora do
Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, na Bahia. Mãe Gilda teve sua imagem usada numa
edição de 1999 da Folha Universal, uma publicação da Igreja Universal do Reino de
Deus, ao lado da manchete Macumbeiros Charlatões Lesam a Bolsa e a Vida dos
Clientes — O Mercado da Enganação Cresce no Brasil, mas o Procon Está de Olho.
Esse fato, somado a invasão de seu terreiro por membros da Igreja Deus é Amor que
tentaram exorcizá-la, levou a mãe de santo a decidir por mover uma ação judicial contra
seus agressores e difamadores. Mãe Gilda faleceu em seguida, aos 65 anos, de um infarto
fulminante em consequência desses acontecimentos, que conforme sua família a
abalaram profundamente. Em 2004, a IURD e sua gráfica foram condenadas a indenizar
a família de Mãe Gilda em R$1,372 milhão pelo uso indevido de sua imagem, sendo um
real por cada exemplar do jornal publicado com a matéria difamatória. O caráter
emblemático deste caso levou nesse mesmo ano a Câmara de Vereadores de Salvador a
transformar a data de falecimento da mãe de santo, 21/01/2000, em Dia Municipal de
Combate Intolerância Religiosa. Seu legado e sua luta têm continuidade com Mãe
Jaciara, que atualmente organiza ebós coletivos em protestos contra o racismo religioso
(SILVA, 2007).
Giselle Cossard Binon é conhecida como Omindarewa e nasceu em 31 de maio
de 1923, em Tanger, no Marrocos. Viveu por muitos anos na França, como alude sua
biografia Omindarewa: Uma Francesa no Candomblé, escrita por Michel Dion, em
2002. Em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial, Giselle viu seu pai ser preso pelo
exército de Adolf Hitler e, no fim da guerra, em 1945, teria sido espiã em Paris,
fornecendo informações aos militares franceses sobre a localização de militares alemães.
Em 1945 seu pai voltou da prisão e Giselle casou-se com Jean Binon, com quem passou
oito anos na África. Em 1956, voltaram para França e Jean Binon foi nomeado
Embaixador da França no Brasil. Omindarewa, assim como seus filhos, encantaram-se
com o Rio de Janeiro e com o país. Mas, contrariamente e conflituosamente, Jean Binon
detestava o Brasil e os brasileiros. Em 5 de dezembro de 1959, Giselle Cossard Binon
visitou o terreiro de Joãozinho da Goméia, no Rio de Janeiro, onde bolou no santo, isto é,
recebeu em transe pela primeira vez sua divindade, Iemanjá, que é mãe das águas e dos
102
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peixes. Após passar pelas cerimônias de iniciação afro-brasileiras, recebeu seu nome
religioso de Omindarewa, que podemos traduzir como “água límpida”. Jean Binon em
1963 pediu divórcio a Giselle, e no mesmo ano Omindarewa voltou para França, para
apresentar sua tese Contribution à l'Étude des Candomblés du Brésil: Le Rite Angola em
Paris, e lá tornou-se docente universitária. Conheceu o fotógrafo e etnólogo Pierre
Verger, do qual se tornou amiga. Em 1972, voltou para o Brasil e, em 1973, sofreu um
acidente de carro e foi diagnosticada sem esperança de vida. Pierre Verger levou
Omindarewa até Pai Balbino Daniel de Paula, Balbino de Xangô Obaraí, iniciado no
Terreiro do Opô Afonjá, que ajudou a filha de Joãozinho. Pai Obaraí tornou-se o
segundo pai de santo de Omindarewa, passando a cuidar de suas obrigações religiosas.
Ao receber seus direitos de sacerdotisa, fundou o Ilê Axé Atará Magba, em Duque de
Caxias, no Rio de Janeiro. Em 2005, participou do documentário A cidade das mulheres,
e, em 2009, do documentário Gisele Omindarewa que trata sobre sua biografia. Faleceu
em 2016 (DION, 2002; COSSARD, 2008).
Considerações finais
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Ansiamos que, ao mencionar aqui elementos das vidas dessas mães de santo e
mulheres de terreiro, tenha ficado compreensível que essas Iyás são exemplares das
potências matrigeradoras e matrigestoras afro-brasileiras, em que entendemos Iyábá
Oxum como sua insígnia conspícua. Esperamos ter refletido que, assim como Oxum e
seu abebé são efetivamente belicosos, e que apesar de suas representações serem
erroneamente distorcidas pela colonialidade, há de se lembrar do que elucida o
provérbio africano citado por Wanderson Flor do Nascimento (2020): ”o ventre de
Oxum pare poder”. Ademais, também é mister lembrar como canta o Ijexá: a Ekó a e
Egué e Iyálode Iyá Awo Orô, Orun o Yeye o, Iyá Monlé Odo, Oxum Ilê Opô, traduzido
como “nós lhe oferecemos ekó, pois ela pode tornar-se uma perigosa armadilha, ela é a
primeira Iyá, Iyábá do rio, Oxum é o pilar que sustenta a nossa casa”.
Glossário
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Referências
COSSARD, Gisele Omindarewá. Awó: o mistério dos orixás. Rio de Janeiro: Pallas,
2008.
COSTA, Beatriz Moreira. Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros: como ialorixás e
babalorixás passam conhecimentos a seus filhos. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
COSTA, Beatriz Moreira. Histórias que minha avó contava. Rio de Janeiro: Terceira
Margem, 2004.
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MONTERO, Teresa. Chica Xavier: Mãe do Brasil. Rio de Janeiro: Eldorado, 2013.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
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RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
SANTOS, João Baptista Tobiobá dos. “21 Cartas e um telegrama de mãe Aninha a suas
filhas Agripina e Filhinha, 1935-1937”. Afro-Ásia, n.36, 2007.
SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu tempo é agora. São Paulo: Editora Oduduwa,
1993.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula
Editorial, 2019.
SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
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Resumo
Oxum, na tradição afro-brasileira, é a senhora da fertilidade e a potência criadora da
vida. Oxum é quem nos permite enxergar, pensar, sentir-sonhar e esperançar a vida
mesmo diante da morte, a bonança mesmo diante da escassez. Nesse sentido, neste
texto, me dedico a refletir (em/com) Oxum, centrado na ideia do “pensar-viver-água” e
em toda a sua potência de encantamento, como uma forma de resistir aos tempos de
escassez e desencanto que temos atravessado, especialmente no Brasil. Teço essa
reflexão a partir dos mitos afro-brasileiros e da oralidade sagrada presente no terreiro.
Com isso, reivindico um outro “entendimento-mundo”, outra cosmopercepção de
mundo, engendrada fora dos limites da racionalidade colonial, gerada no útero ancestral
das comunidades-terreiro e inscrita nos modos de ser-viver do povo de santo. Em/Com
Oxum, a partir das “com-vivências” nos cotidianos do axé, aprendemos que é pela vida,
em todas as suas formas e em sua plenitude, que é a nossa peleja no ayê.
1
Mestre em Educação pela Universidade Federal de São João del Rei (PPEDU - UFSJ), licenciado em
Biologia pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Integrante do Grupo de pesquisa "Laroyê:
Culturas Infantis e Pedagogias Descolonizadoras" (UFLA) e da Rede Latino-americana em Educação,
Cinema e audiovisual - Rede Kino (MG). Email: joaoaugusto.reis@gmail.com
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Nós que somos de orixá aprendemos que tudo deve ser devidamente aberto e
fechado, que nada é por acaso e tudo no Santo (como chamamos as religiosidades afro-
brasileiras) tem seu significado. Aprendemos que é pela água que tudo se principia, que
a água é cura, é apaziguadora. Acalmamos a Terra com água fresca, louvamos os
ancestrais com a água, abrimos e acalmamos os caminhos com a água. De acordo com o
costume e a tradição dos orixás, ao lançarmos água fresca nas portas de nossos ilês
(casas/terreiros), estamos pedindo à Terra, a Exu e aos ancestrais que os nossos
caminhos sejam apaziguados, que tenhamos êxito em nossa caminhada, que tenhamos
paz, equilíbrio e tranquilidade em nossos dias. Pedimos que não nos deparemos com a
desarmonia e que os perigos não nos encontrem.
Ao fazermos isso estamos, além de um ritual, praticando a “ciência encantada
das macumbas” (SIMAS & RUFINO, 2019). Ao deitar água fresca na terra estamos
rasurando a racionalidade colonial2 que subalterniza todas as outras formas de ser-viver
“fora da norma” colonial (cristã e monológica). Com a água estamos anunciando que a
colonialidade3 não nos venceu e que a peleja é um valor do povo negro, do povo
brasileiro.
2
Por racionalidade colonial estamos nos referindo a uma cosmovisão baseada no pensamento cartesiano,
na lógica abissal e na hierarquização do conhecimento, conforme aponta Santos (2007) e Quijano (1997).
Nesse sentido, o ocidente (notadamente a Europa) compreende que há uma universalidade no seu discurso
e conhecimento, o que apaga a diversidade dos sujeitos e do próprio conhecimento.
3
A colonialidade, de acordo com Qujano (1998; 2014) é dos componentes do padrão/regime capitalista
de poder que procede do colonialismo europeu edificado sobre a exploração dos povos originários da
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“América”, tendo por base a ideia de hierarquização das “raças”, e que estrutura as relações sociais,
econômicas e de produção do conhecimento nos países outrora colonizados (QUIJANO, 1998; 2014).
Nesse sentido, a colonialidade é, em certa medida, um dos modos com que o Norte (eurocêntrico) peleja
pela manutenção de sua hegemonia sobre o conhecimento, a cultura, as epistemologias, bem como sobre
as relações sociais, se (auto)proclamando como padrão universal de humanidade.
4
Ao longo do texto utilizarei a expressão “com-vivência” ao invés de convivência, por compreender,
desde uma perspectiva nagô, que o cotidiano é sagrado e é nele que partilhamos as nossas existências e
fazemos nossas trocas de axé. Portanto, com-vivência potencializa a ideia da vida enquanto troca,
partilha.
5
O termo “cosmovisão”, que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta
o privilégio ocidental do visual. É eurocêntrico usá-lo para descrever culturas que podem privilegiar
outros sentidos. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de
mundo por diferentes grupos culturais (OYĚWÙMÍ, 2002, p. 03). Por isso o utilizaremos em detrimento
da ideia de cosmovisão.
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Oxum, de ouvir sempre das minhas mais velhas que ser de Oxum é ter a
responsabilidade de cuidar da vida, defender a vida. Essa sabedoria em forma de ofó
(encantamento pela palavra) remonta à própria essência de Oxum na tradição nagô.
Oxum, nesse contexto, é concebida como a divindade responsável pela saúde, pela
fartura, pela fecundidade, pela maternidade e, em síntese, pela própria vida.
No itan “Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens”, contado por
Prandi (2001), podemos ver como as águas de Oxum são vitais para a existência
humana:
Logo que o mundo foi criado, todos os orixás vieram para a Terra e
começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles, em
conciliábulos nos quais somente os homens podiam participar. Oxum
não se conformava com essa situação. Ressentida pela exclusão, ela
vingou-se dos orixás masculinos. Condenou todas as mulheres à
esterilidade, de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido da
fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar
Olodumare. Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem
filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses, sem
novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras e sem
descendentes para não deixar morrer suas memórias. Olodumare
soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os
orixás a convidá-la, e às outras mulheres, pois sem Oxum e seu poder
sobre a fecundidade nada poderia ir adiante. Os orixás seguiram os
sábios conselhos de Olodumare e assim suas iniciativas voltaram a ter
sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na Terra
prosperou (PRANDI, 2001, p. 345).
Se Oxum se recusa a dar suas águas para a manutenção da vida na terra, nós
perecemos. Sem as águas não podemos nos alimentar, não podemos existir. O ayê não
vive sem Oxum. Por isso, em nossos terreiros, é muito comum observarmos nos
presentes de Oxum, nas oferendas e cultos a ela pedidos de prosperidade, bonança,
fartura e fertilidade que são provas da potência criadora desse orixá. Conta-nos as mais
velhas que, em África, as mulheres que não podem ter filhos, ao tomar a água da
nascente do Rio Oxum, no outro ano retornam com seus filhos e filhas nos braços,
tamanho o poder dessa Yabá.
O verso de Ordep Serra e Roberto Mendes, imortalizados na voz de Maria
Bethânia em Louvação à Oxum, que dá título a essa parte do texto, reafirma a potência
criadora de Oxum e de suas águas. A “água que faz crescer as crianças” remonta à
essência das águas fecundas de Oxum. A água, na tradição dos orixás, está relacionada
com toda a nossa experiência de vida, já que desde o útero de nossas mães vivemos a
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água. Desde a concepção a água está em nós, no líquido seminal do pai que fecunda a
mãe e no útero, encruzilhada sagrada da vida que também pertence a Oxum, no interior
de nossas mães, somos envolvidas pelas águas sagradas. Ali, na cabaça-útero, é que nós
crescemos. A água é a nossa primeira morada. É Oxum que sustenta as nossas
existências até a hora de deixar a cabaça-útero para nossa experiência no ayê.
No candomblé a água está presente em todos os ritos e cultos (RANGEL;
GOMBERG, 2016). Ao longo de toda a vida do indivíduo e em todos os ritos, sejam
eles iniciáticos ou propiciatórios, na religião dos orixás, do ìkmọjàde (rito semelhante a
um “batismo”) ao axexê (rito fúnebre dos nagôs) a água está presente. Nas iniciações,
por exemplo, os múltiplos banhos estão relacionados com a potencialização do axé do
neófito, chamado iaô. Cada banho tem sua função no processo, bem como cada ewé
(folha) utilizada.
No axexê,
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O que podemos aprender tanto com as narrativas míticas quanto pelas com-
vivências e tradição oral do axé, nos terreiros, é que a água é a parte fundamental da
existência, assim como é também da nossa mãe-Terra. Sem a água não se pode fazer
nada. Assim, ela assume uma centralidade tanto na crença quanto na ritualística do povo
de santo; é vista como elemento fundamental para a vida (RANGEL; GOMBERG,
2016) e espiritualidade. Oxum, nesse contexto, assume, junto a Iemanjá, o lugar de mãe
de toda a existência, a potência criadora da vida, cujo elemento fundamental é a água, e
é isso que, nesse texto, nos interessa.
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que é muito popular também no campo das artes, da música popular brasileira e no
carnaval. Como nos ensina o Babalorixá Rodney William6, o verso “Ora ye ye ô,
mamãe Oxum” é um dos versos mais famosos dos sambas enredos de carnaval e que se
popularizaram muito a partir da década de 1980. Não é, então, uma ousadia dizer que
Oxum ama a alegria, o brilho e o carnaval.
Oxum ficou muito famosa também a partir da música popular brasileira quando
nomes como Dorival Caymmi, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gerônimo
Santana e outros/as artistas passam a cantar Oxum. Um exemplo disso é a canção
“Oração de Mãe Menininha” de Dorival Caymmi (1972), imortalizada também na voz
de Gal Costa e Maria Bethânia na década de 1980. A canção é uma homenagem àquela
que é considerada a maior Ialorixá de todos os tempos do candomblé brasileiro, Mãe
Menininha do Gantois, uma filha dileta de Oxum.
O verso “A Oxum mais bonita tá no Gantois” é um louvor à grandiosidade de
Mãe Menininha, filha de Oxum. A Ialorixá, sem dúvida, contribuiu para a
“popularização” de Oxum. Mãe Menininha foi chamada de a “Oxum entre nós”, aquela
que o colo e as mãos geraram centenas de filhos. O matriarcado de Mãe Menininha é
um patrimônio histórico e cultural do povo negro, do povo brasileiro. Seu legado se
confunde com a história do próprio candomblé. Menininha era, de fato, Oxum no ayê, a
grande Yalodê.
Outro fator, aliás, controverso, que contribuiu para a popularização desse orixá
no Brasil também foi a associação da Yabá com Nossa Senhora Aparecida (da
Conceição), no processo de sincretismo, na maior parte das regiões do Brasil,
especialmente nas umbandas. As semelhanças em relação à maternidade, ao cuidado às
crianças e a relação com as águas foram elementos que consumaram o sincretismo. O
azul do manto da santa católica, por exemplo, em muitas tradições de umbanda está
associado a Oxum, chamada de “mãe do Brasil”. Na Bahia, especificamente, Oxum foi
sincretizada com Santa Luzia.
Sobre este aspecto, como também apontado por Oro e Anjos (2009), ao tratar do
sincretismo, ainda que controverso, é preciso pontuar que ele tece importante papel em
algumas religiões de matriz africana, como é o caso das umbandas e batuques. Nesse
sentido, os autores demonstram, em uma percepção desde dentro em diálogo com os
praticantes dessas tradições, que aquilo que poderia sugerir uma certa “colonização” do
6
O ensinamento oral de Babá Rodney William está registrado em uma live e disponível em
https://youtu.be/AAMU4wfop7c.
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sagrado negro com o sincretismo é, na verdade, uma outra perspectiva de conexão com
a ancestralidade negro-africana nessas religiões.
Escolhi começar falar de Oxum tomando esse caminho, entretanto, para que se
possa compreender que Oxum faz parte de nosso imaginário coletivo, mesmo fora das
tradições afro-religiosas. Oxum, como nos ensina as minhas mais velhas e os meus mais
velhos, nunca passa despercebida. “Onde Oxum está tem brilho, riso e alegria” dizia
minha mãe de santo.
No candomblé, e demais tradições afro-brasileiras de origem nagô, Oxum é a
Yabá ligada à fecundidade e à fertilidade, sobretudo feminina.
Oxum é por excelência a senhora da vida. É ela que faz crescer as crianças e que,
junto a Iemanjá, é considerada senhora da maternidade (CABRERA, 2004). Sobre isso a
autora ainda nos conta que não se pode falar de Oxum sem falar de Iemanjá tamanha a
ligação de ambas. As duas Yabás ora são contadas na mitologia como irmãs, ora como
mãe e filha, sendo Oxum a filha mais nova de Iemanjá. O que isso revela, em suma,
independentemente da versão mitológica, é a essência criadora e a ligação dessas duas
Yabás que se revela no caráter gerador de vida de ambas.
Oxum é a senhora das águas doces e tem como seus domínios as cachoeiras, as
quedas d’água, as nascentes, os rios, as lagoas e demais domínios aquíferos (RANGEL;
GOMBERG, 2016). Ela é a senhora da vida, da criação, do parir, do amamentar e da
maternidade e encarna todo o signo da matripotência revelado na figura da Iyá
(OYĚWÙMÍ, 2016).
É importante dizer, desde já, que a leitura que faço de Oxum é uma operação
feita fora do ideário colonial eurocêntrico que tentou aprisionar Oxum na figura da
mulher sensual, hipersexualizada, infiel, manhosa, chorona ou da mãe imaculada, frágil,
submissa, recatada. Essa leitura etnocêntrica e patriarcal não cabe em Oxum. Em
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realidade, todo o complexo cultural, mítico e religioso dos africanos, nesse caso iorubá,
não cabe na visão cristã, binária, patriarcal e etnocêntrica do ocidente. Oxum, como
dona da abundância, transborda esses sentidos reducionistas da lente judaico-cristã.
Os afro-sentidos que trago para pensar Oxum neste texto estão centrados na
perspectiva iorubá, tratados brilhantemente pela filósofa nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí
(2016) e nas palavras de axé de minhas mais velhas. Oxum, nesse sentido, pensando
também nas palavras de Akotirene (2019), é muito além da figura da “vênus negra” ou
da “virgem imaculada” (ROSÁRIO, 2008). Oxum é a matripotência inscrita no social,
na religião e na política e que não cabe na fôrma de “bela, recatada e do lar”.
As palavras de Ribeiro (1996), ao contar sobre o culto de Oxum, inclusive em
África, remete a essa potência, quando nos informa que nos “assentamentos” de Oxum
(ou seja, em suas sacro-representações materiais) há sempre três elementos básicos: um
pote de água, o seu axé, que representa, sobretudo a vida, o abebé (leque de forma
circular adornado, que pode conter ou não um espelho ao centro) e uma espada de metal
(normalmente dourado). Além desses elementos encontramos em seus assentamentos
também búzios, metais e moedas. Esses elementos, de certa maneira, representam a
natureza de Oxum: doce, vaidosa, maternal, ao mesmo tempo em que é uma guerreira,
uma soberana.
Oxum, de acordo com Oyěwùmí (2016) é aquela que gerou em si toda a potência
da criação do mundo, presente inclusive nos mitos de fundação do mundo – a Iyá
primordial. Nas palavras da autora, a partir de um excerto de Oseetura (mito fundador
do complexo de Ifá):
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Iyá Oxum é também a senhora das artes. É Oxum que preside os processos
criativos, da inventividade e criatividade artística.
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Oxum, sendo uma àjẹ́, é aquela que conhecendo os segredos da magia está
sempre em favor dos seus filhos e filhas, daqueles que procuram sua força e amparo,
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Os versos que abrem essa parte do texto contam da potência de vida em Oxum,
de dar vida àquilo que aparentemente está morto. É ela quem traz a fecundidade à terra
seca e nos mostra que a escassez não é para sempre. Os versos remetem às sabedorias
de terreiro que nos ensinam que Oxum é muito mais do que a deusa do amor e da
beleza. Não se pode pensar na vida, em toda a sua potência e diversidade, sem pensar
em Oxum.
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7
Ao falarmos em “projeto colonial” estamos nos referindo, apoiados em Mbembe (2018) e Rufino
(2019), na permanência, no signo da colonialidade, de um projeto de dominação do Norte fundamentado
no racismo, na exploração, no sexismo, no apagamento da diversidade, no epistemicídio que tem suas
raízes na colonização. Esse projeto segue na forma, contemporânea, da necropolítica, no estado de sítio e
na produção e fortalecimento das políticas de inimizade, como bem aponta Mbembe (2018).
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A fala da Ialorixá está disponível no documentário “O cuidar no terreiro” de Neto Borges (2013).
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boas escolhas e traçar bons caminhos. Com isso, aprendemos que ser-viver-água exige
de nós a busca pelo equilíbrio, não no sentido neoliberal que essa busca pode ter. Ou
seja, o equilíbrio aqui está deslocado da ideia da ausência de problemas, ou da fuga das
resistências cotidianas, mas centra-se numa perspectiva inflexiva. Estar em equilíbrio,
nessa perspectiva, significa compreender que as tensões e as pelejas cotidianas não
podem retirar de nós a paz. Isso é promoção de saúde e vida, é encanto.
Os peixes, em seus cardumes, nos ensinam que resistir coletivamente é sempre o
caminho do equilíbrio. Novamente percebemos que a comunidade é fundamento desse
ser-viver outro, pensado desde as potências de Oxum. Além disso, a natureza aquática
dos peixes nos informa sobre a potência da água de gerar vida, há vida dentro d’água.
Assim, o peixe representa a fecundidade, aquilo que, pelo seu axé, proporciona a vida.
Outro elemento que tenho pensado na construção do ser-viver-água é o abebê. O
abebê, tradicionalmente, não é necessariamente um espelho. Em África o abebê é uma
espécie de leque, abano de forma circular de metal, madeira ou outros materiais e está
relacionado com as Yabás (orixás femininos). Assim, não é tão comum ver um espelho
aderido ao abebê em territórios africanos. O abebê faz parte da indumentária das Yabás
e no trânsito transatlântico, na diáspora, essa característica se manteve. Contudo, no
Brasil, isso ficou mais marcado nas paramentas de Oxum e Iemanjá. Há, entretanto,
uma variação em relação ao abebê tradicional africano.
Nas bandas de cá do Atlântico o abebê foi “ressignificado” em espelho, servindo
quase que como uma tradução dessa palavra de origem iorubá. Não é incomum nas
festas públicas, nos assentamentos desses dois orixás notar a presença do espelho. O
espelho ganhou um espaço central na construção mítica e estética dessas duas Yabás. E
é nesse sentido que eu desenvolverei minha reflexão, tomando, portanto, o abebê de
Oxum como um espelho. De acordo com Lima (2012),
É sabido que o espelho de Oxum não se limita à função de refletir sua bela
imagem, como muitos preconizam. Oxum não é narcísica, sobretudo porque essa é uma
percepção ocidental. Ela já se sabe bela e o espelho, nesse sentido, não é um objetivo de
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auto-veneração. Nas mãos de Oxum, o espelho é também uma arma, como dizem os
mais velhos, mais velhas. Contudo, quero me ater aos aspectos da alteridade, da
identidade que o espelho evoca e à ideia de “reflexão”.
Oxum, comumente, utiliza seu espelho virado para o outro e com isso acaba por
refletir a imagem do outro. Simbolicamente, tal fato representa a necessidade que temos
do outro para a construção de nossas identidades. A alteridade evocada pelo abebê de
Oxum traduz uma perspectiva de mundo na qual o outro é uma dimensão fundamental.
A perspectiva de encantamento, tal qual em Simas e Rufino (2020), não exclui o outro,
mas tem no diferente a presença possível de diálogo.
O abebê também mobiliza uma noção de reflexão no sentido de pensar sobre si,
sobre sua história, memória e nessa operação enxergar as possibilidades de reinvenção
de si e das resistências cotidianas. Mirar nossas imagens no espelho de Oxum nos
permite enxergar nela nossa humanidade, somos parte dela. Oxum, sobretudo aos
negros e negras, é a imagem resgatada de uma memória ancestral manchada pela
escravização. Mirar-se no espelho de Oxum significa ver em nossos olhos todos os
nossos ancestrais, todos e todas que vieram antes de nós. A memória coletiva presente
no rito que revive o mito é o veículo pelo qual fluem as epistemologias ancestrais do
povo de Santo e do povo negro. Além disso, a memória é, na lógica da circularidade
nagô, a possibilidade de reinvenção do presente e do futuro. Portanto, Oxum nos
permite pensar, nessa perspectiva, no reflexo como um processo de autocura e
autoconhecimento e de criação. Seu axé potencializador da vida, como senhora das
sabedorias, mobiliza em nós a reinvenção de nossas histórias e trajetórias tendo na água
inspiração para criar, encantar de novo.
Esses elementos-signos, de modo geral, são partes daquilo que tenho nomeado
de pensar-viver-água e que anunciam um outro modo de ser-viver, um outro
entendimento-mundo. Uma inspiração para uma vida que peleje em favor da vida e que
se inscreva na potencialização dela. Uma vida criada e realizada fora da gramática e da
lógica colonial individualista, antidiversidade e anti-amor. Uma vida voltada para o
(re)encantamento.
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viver, por isso, como nos ensina Ordep Serra, “eu saúdo quem rompe na guerra”. Daí a
afirmação de Oxum como essência, fundamento do pensar-viver-água. Um projeto
ético-político, fundado na comunidade, nos afro-sentidos que resistiram ao tempo, ao
racismo e à colonização e que se apresentam como um caminho fértil para o
encantamento do mundo, para colorir (de novo) as nossas existências aqui no ayê.
Oxum, portanto, representa a potência da fertilidade, da criação da vida, aquela
que pode nos oferecer um outro olhar sobre os nossos modos de vida desgastados pela
colonialidade, judiados pelo capitalismo selvagem e fundados no indivíduo. Com seu
abebê dourado, Oxum evoca a alteridade como fundamento de nossas existências e nos
convida a pensar-viver como a água, uma outra ética construída como um contra projeto
à individualização obsessiva forjada no capitalismo moderno. Uma ética que se constrói
na comunidade, no coletivo e na partilha. Iyá Oxum é a senhora de sua comunidade, por
ela vive e luta, e, assim, nos ensina os valores do ser-em-comunidade para refundar
nossas existências.
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Cristian Sales1
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34575
Resumo
Neste artigo, investimos numa discussão acerca dos saberes ancestrais femininos
articulados em poesias negras diaspóricas. Dessa maneira, ao apresentar um estudo
crítico dos poemas de Lívia Natália e Paula Melissa (Mel Adún), observamos como os
arquétipos de Ìyá Oxum são incorporados como tessituras e fundamentos epistêmicos.
A partir de contribuições teóricas formuladas na filosofia africana, o texto explora como
o orixá feminino Oxum se torna uma “categoria sócio-espiritual” (Oyěwùmí, 2016) de
abertura para uma transformação epistemológica para ver, sentir e compreender o
mundo, em contraposição ao pensamento ocidental.
Resumen
En este artículo, invertimos en una discusión sobre el conocimiento ancestral femenino
articulados en la poesía de la diáspora negra. De esta forma, al presentar un estudio
crítico de los poemas de Lívia Natália y Paula Melissa (Mel Adún), observamos cómo
los arquetipos de Ìyá Oxum se incorporan como fabricaciones y fundamentos
epistémicos. A partir de aportes teóricos formulados en la filosofía africana, el texto
explora cómo la orisha Oxum se convierte en una “categoría socioespiritual”
(Oyěwùmí, 2016) de apertura a una transformación epistemológica para ver, sentir y
comprender el mundo a través de otras fuerzas y lentes en contraposición al
pensamiento occidental.
1
Possui graduação em Letras Vernáculas com Espanhol pelo Centro Universitário Jorge Amado (2003).
Graduação em Letras com Inglês pelo Centro Universitário Jorge Amado (2005). Especialização em
Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia (2006). É Mestra pelo Programa de
Pós-Graduação em Estudo de Linguagens-PPGEL/UNEB (2011). É Doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Cultura, na linha de pesquisa Estudos de Teorias e Representações Literárias e
Culturais, da Universidade Federal Da Bahia (UFBA). Email: crissaliessouza@gmail.com
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Ori
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2
Vou utilizar a perspectiva filosófica de Wande Abimbola para explicar a relação entre Orun e Aiyê. Orun
e Aiyê não se limitam a céu e terra. Na visão iorubana, no Aiyê, que é também algumas vezes conhecido
por ìsálayé, é o domínio da existência humana, das bruxas, dos animais, pássaros, insetos, rios,
montanhas, etc. (ABIMBOLA, 2011, p. 2, grifos do autor). Ainda segundo Abimbola, no Òrun, que é
“outras vezes conhecido como ìsálórun, é o lugar de Olódùmarè (O Deus Todo Poderoso), que é também
conhecido como Òlórun significando literalmente o proprietário dos céus”. Logo, “o òrun é também o
domínio dos Òrìsà (divindades), que são reconhecidas como representantes de Olódùmarè; e dos
ancestrais” (ABIMBOLA, 2011, p. 2).
3
Em outra explicação importante assentada na/pela cosmovisão iorubá, “Òrìsànlá (deus da criação) era
responsável pela modelagem dos seres humanos, enquanto que Òrúnmilà, também conhecido como Ifá
(deus da divinação), foi encarregado com o uso da sabedoria para a interpretação do passado, presente e
futuro, assim como também para a “organização geral da terra” (ABIMBOLA, 2011, p.3).
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4
Penso que esses saberes ancestrais e saberes de terreiro circulam e se assentam na crítica, teoria e ficção:
poesias, romances, ensaios, contos.
5
Como tomo a palavra? Por que palavra-transe? “No rito-nagô, a palavra é, assim, mais performativa do
que semântico-referencial”. Ou seja, “a palavra aqui não é puro signo linguístico com um significado”.
Numa dinâmica regida de axé e ancestralidade, “a palavra em nagô implica a unicidade corporal de uma
presença indissociável de seus gestos, dons e tons” com suas forças visíveis e invisíveis. É incorporada de
sentido. Como “o axé se transmite através do contato, da comunicação, do hálito, da fala e da interação
ritual”. O axé está inscrito na palavra. A ancestralidade negro-africana está assentada na palavra/na poesia
de mulheres negras. O axé se assenta na palavra. Palavra-transe. (SODRÉ, 2017, pp. 138-139).
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6
Em minha tese de doutorado intitulada Assentamentos de resistência: intelectuais negras do Brasil e
Caribe em insurgências epistêmicas (2020), busco tornar operatório o conceito de assentamento para ler,
interpretar e traduzir a produção epistêmica e de conhecimento de mulheres negras em diáspora. Os
assentamentos de resistência estão fortemente ligados à ancestralidade negro-africana e às histórias e aos
legados de resistência de las ancestras. Dessa forma, manifestam-se através dos saberes de ancestrais,
saberes de terreiros e saberes ancestrais femininos através das poesias, romances, contos e ensaios críticos
de autoria negra.
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então, essa ligação com a natureza e ao que os orixás nos convidam a sentir o mundo, o
cosmos, em outra dimensão:
Nota-se, também, que a questão abordada, partindo das poesias de Mel Adún e
Lívia Natália, tem uma forma de escrita para reverenciar Oxum, a presença da
ancestralidade que carrega muitos orís (cabeças). São poesias que brotam da terra,
avançam o céu, penetram nas profundezas dos rios, cachoeiras e marés. Inauguram um
ciclo de palavras úmidas e únicas.
[...]
a minha alma escuta
lá longe,
do solo ancestral
um ijexá
(ADÚN, 2011, p. 153)
Omin
Sou enchente
Das águas profundas,
Escuras
Poço sem fundo
Fatal para os desavisados
Farta para os que com cuidado
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Oxum Oyê
“Oxum é a Ìyá, a Fonte da vida” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.22). Por esse motivo, a
Ìyá fundamenta um dos saberes ancestrais femininos que “têm um axé [àṣẹ] especial
(poder da palavra)” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.10, grifos da autora). De forma singular,
Oxum é uma “categoria sócio-espiritual” de abertura para “uma mudança
epistemológica de uma cosmopercepção” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.2). Na produção de
conhecimento, mobilizamos os poderes e os valores espirituais da Ìyá Oxum.
Ao apontar a centralidade em Oxum, Oyěwùmí chama atenção para todos os
esforços espirituais dessa Ìyá. Oxum é a “Ìyá primordial” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.23)7.
Oxum é a nossa “Ìyá soberana” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.29). Com o título de Ialodê,
“ocupa a única posição aberta para fêmeas no sistema político de Ibadan”8
(OYĚWÙMÍ, 2016, p.32). Oxum domina os espaços públicos, sendo uma grande
referência ao povo, aglomerações, espaços coletivos, como multidões etc. Ela é a “Ìyá
do povo, Ìyá da humanidade” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.33).
Vale ressaltar que Oxum, a Ìyá primordial, é reconhecida como tendo três
profissões: divinadora, cabeleireira e vendedora de alimentos (OYĚWÙMÍ, 2016, p.24).
De acordo com Oyěwùmí, as Ìyá iorubás “valorizam sua autonomia e acreditam que é o
cúmulo do insulto para uma fêmea adulta ter que pedir a alguém dinheiro para comprar
coisas como sal e variedades; seria um desrespeito” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.24).
Dito de outra maneira, Oxum é uma divindade iorubana que representa a beleza,
a feminilidade, a fertilidade, o amor, a maternidade, a insubmissão feminina, dentre
7
De acordo com Ìyá Oyěwùmí (2016, pp.-23-24), os iorubás são conhecides por sua produção e trabalho
em prol de sua progenitura. A base do seu engajamento ocupacional é prover seus filhos. “[...] As Ìyá
iorubás valorizam sua autonomia e acreditam no seu poder fêmea. A preocupação de Ìyá era defender sua
prole” (Oyěwùmí, 2016, p.26).
8
Em Ibadan do século XIX, a criação de um título de chefia apenas de mulheres assinalou a emergente
consciência de gênero em um estado militarista.
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outros atributos o poder feminino em suma. Sua casa são as águas, como mostra Oxum
que “habita as águas doces, condição indispensável para a fertilidade da terra e
produção de seus frutos, donde decorre sua profunda ligação”, por exemplo, com “a
gestação” (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 23).
Oxum significando o poder feminino, também rende homenagem à cor amarela
que espelha riqueza, como Oxum que “é o amarelo-ouro, e gosta de adornos dourados.
Quando dança, espalha o ouro e espelha-se no seu abébé”, sendo seus movimentos
muito exultantes (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 24, grifos das autoras). Desse modo,
trazendo o culto dos orixás para o contexto brasileiro do Candomblé, Sueli Carneiro e
Cristiane Cury (2008, p. 102) afirmam que o Candomblé “nasce como um campo
possível de resistência e sobrevivência cultural”.
No Brasil, o Candomblé se constituiu originalmente numa comunidade
eminentemente feminina. “O passado de luta, a determinação e a resistência da mulher
negra marcam profundamente o povo de santo” (CARNEIRO & CURY, 2008, p.123).
As yalorixás “são as grandes depositárias e transmissoras dos conhecimentos ancestrais
herdados: seus mistérios e segredos, de sua magia”. (CARNEIRO & CURY, 2008,
p.124).
Carla Akotirene (2019, fonte eletrônica) aprofunda na resistência ao
epistemicidio que se vive no Brasil, ao afirmar que Oxum “faz parte da resistência dos
escravizados trazidos pelas águas, das conexões religiosas e da espiritualidade
cumpridoras da missão de fazermo-nos viver belas, autônomas”. Nessa perspectiva, a
pensadora negra defende que somos “[...] fortes suficientemente para carregar o ouro
não somente por causa do brilho”. Por isso, estamos longe das “estereotipias da
dondoca, frágil, superficial” 9.
Mais significativamente, Akotirene assevera que “a construção de poder
materno, por exemplo, remete a Osun” 10. “Osun vive na oralidade e na escrita dispostas
a traduzirem a beleza das mulheres negras, a sabedoria, a inteligência, a habilidade na
administração das riquezas e dentro das ciências sociais”. Oxum está distante “da
imagem da mãe chorona, parideira, contrária aos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres” (AKOTIRENE, 2019, fonte eletrônica).
9
Disponível em https://www.cartacapital.com.br/opiniao/osun-e-fundamento-epistemologico-um-
dialogo-com-oyeronke-oyewumi/acesso em 03 de outubro de 2020.
10
A grafia aqui se modifica de Oxum para Osun, porque respeita o pensamento de Carla Akotirene. Mas,
em todo o trabalho, preferimos grafar Oxum como aparece no texto traduzido de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí
(2016).
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11
O assentamento possui uma relevância importante, uma vez que está ligado ao assentamento de orixá.
“O orixá individual é fixado numa pedra – o otá – que é guardada ao interior de um pote ou vasilha (ibá),
de louça ou barro, a depender do orixá” (RABELO, 2011, p. 23).
12
Diáspora se baseia na etimologia muito citada do termo do grego dia que significa “através” e speirein
que significa “semear” ou “Dispersão”. O termo é encontrado no livro do Deuteronômio 28: 25. Em outra
perspectiva, os primeiros usos do conceito diáspora africana e atlântica estão ligados aos chamados
Estudos Africanos surgidos também na década de 1960. Para além do sentido religioso, representa êxodo,
expatriação, deslocamentos e migração não voluntária Já, nos termos de Stuart Hall (2003), o termo
diáspora tem designado a dispersão forçada do povo africano pelo mundo atlântico.
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Abebé Omin
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Sobre as autoras
Lívia Natália
Nascida em 25 de dezembro de 1979, baiana de Salvador, Lívia Natália ou Lívia
Natália Maria de Souza Santos, Omo òrìsà de Òsun e de Odé16, de fundamento Ketu,
além de ser poeta, possui mestrado (2005) e doutorado (2008) em Teorias e Crítica da
Literatura e da Cultura, pela Universidade Federal da Bahia, onde também é professora
adjunta de teoria literária (2010).
Para as mulheres negras, a relação com os orixás e os ancestrais está inscrita no
Odu (destino). Refiro-me à espiritualidade nosso ser e existir. Lívia Natália narra que
suas conexões com os Orixás eram profundas, pois, “desde a mais tenra idade”,
incorpora de Oxum. Mas, somente aos trinta anos, a escritora, finalmente, foi
consagrada ao Orixá, transformando suas percepções: “eixo do meu mundo se alterou
por completo” (SOUZA, 2018, p. 195). Esse evento permitiu re-existir e renascer.
Asé
Sou uma árvore de tronco grosso.
Minha raiz é forte,
nodosa,
originária,
betumosa como a noite.
[...]
16
Lívia Natália é uma das Egbomes do Ilê Axé Opô Aganjú, já tendo feito a sua obrigação de sete anos
(odu ejé). Segundo Mãe Stella de Oxossi, egbon “é o mais velho, mais maduro” (SANTOS, 2010, p. 172).
Ver o livro Meu tempo é agora.
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Minha fé é negra,
e minha alma enegrece a terra
no ilá
que minha boca escapa.
(Lívia Natália, 2011, p.33. grifos meus)
Lívia Natália com sua poesia traz uma fala, que aqui estrategicamente
posicionada reafirma que as poesias negras diaspóricas se tornam territórios de
assentamento da produção epistêmica negra, como quando ela afirma (2018, p. 198):
“para nós, representar Orixás e outros seres encantados constitui uma política de
representação, não um artifício literário que constitui um universo representacional
fantástico”.
Mel Adún
Filha de Oxum, jornalista, fotógrafa, tradutora, contista e poeta, Mel Adún é o
pseudônimo da intelectual negra diaspórica Paula Melissa Alves. Nascida em
Washington D.C, nos Estados Unidos, em 1978, em razão do exílio dos pais que fugiam
da ditadura militar, veio para o Brasil ainda criança em 1984. Em 1998, já adulta,
regressa aos EUA para estudar, retornando ao Brasil em 2001, quando se naturaliza
brasileira, fixando residência em Salvador (BA).
Percorrendo outros meandros de sua trajetória, Mel Adún participou de várias
edições dos Cadernos Negros e faz parte do Coletivo Literário Ogum´s Toques Negros.
É idealizadora do web TV Tobossis Virando a Mesa, um programa que aborda questões
relacionadas ao gênero e à raça. Foi uma das diretoras do Didá Associação Cultural
Educativa de Mulheres fundada sem fins lucrativos em 1993. Ativista do Movimento
Negro e feminista negra, “acredita que a militância como uma forma de ser, visível na
postura, na escrita, no jeito de vestir, de agir e de discursar” (ADÚN, 2016, p. 69).
Quanto à tematização dos saberes ancestrais, revelando os muitos mistérios que
nos envolvem, Mel Adún compartilha: “[...] venho de uma família de Candomblé da
Bahia e eu não teria como me desvincular disso ou me separar do meu ativismo mesmo
se quiser” (ADÚN, 2016, p. 70). Nesse sentido, a escritora negra reconhece que não
teve escolha. A ancestralidade nos ensina e nos prepara aberturas. É questão de caminho
(Odu)!
De abébé nas mãos, Mel Adún (2011, p. 10) acredita que “toda vez uma mulher
negra fala por si mesma em uma obra” é um gesto de empoderamento de outras
mulheres. É uma escrita negra feminina que traz consigo e compartilha a experiência da
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Aguada
Guiada pelas águas de seu Ori, Mel Adún costuma afirmar que “a sua escrita é
negra porque vem de uma realidade negra” (ADÚN, 2016, p. 69). “Eu escrevo poesia
que tem muito a ver com a realidade da mulher negra” (ADÚN, 2016, p. 72). Por isso, a
intelectual negra transfigura poeticamente suas experiências enquanto mulher negra em
diáspora. A escrita abébé “das águas profundas e escuras” que pede a benção e faz a
saudação a Omin: “[...] Ora rio Yê yê o, rio Ora yê yê ô, yalodê” (ADÚN, 2008, p. 91).
Dessa maneira, as águas se tornam um significante ancestral que integra as
poesias de Mel Adún. “É a espiritualidade entranhada em nosso viver/ser”
(MACHADO, 2020, p. 33). As águas como símbolos do feminino, da vida, da
maternidade e da fertilidade, reencenam na poesia Irê!: “[...] Nas águas de Oxum / sou
peixe de barriga cheia/ atingida pela flecha certeira/ Trago no ventre o poder de gerar,
explodirei água explodirei /sorte Ominirê” (ADÚN, 2012, fonte eletrônica). “O poder
procriar é considerado um presente, um dom espiritual” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.47).
Sob outra forma, a filosofia africana, portanto, territorializa a expressão sensível
na poesia de Mel Adún que anuncia outros significantes importantes de revelação nos
saberes femininos diaspóricos, presentes em Oxum e no Candomblé, assentados
também na resistência da poesia negra. Os princípios cosmológicos, ancestrais e a
dinâmica ritualística. “O transe mítico” (SODRÉ, 2017, pp. 122-123). Podemos dar
alguns exemplos como o prolongamento entre o que é visível e o que é invisível, as
simbologias no plano de uma espiritualidade, como também fundamentos epistêmicos
que são princípios coletivos de bem viver juntos, ou seja, princípios de uma ética, de um
caráter.
Estes fundamentos epistêmicos podem ser reconhecidos na conexão mítico-
religiosa e ancestral que se estabelece através da identificação com os arquétipos do
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Mel Adún dialoga de maneira intertextual com a poesia Vou-me Embora pra Pasárgada do poeta
modernista Manuel Bandeira.
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joias e flores etc. No Brasil, em ritmo de ijexá, as festas para Oxum também se
destacam pela devoção e rituais.
De forma amorosa, é um momento de renovação e fortalecimento com os laços
ancestrais através da reconexão com a divindade das águas doces. Segundo Carla
Akoritene, em Osogbo e nas demais cidades, “Osun encontra-se cultuada como
guerreira diplomática”. Desse modo, instala-se “a soberania iyalódè alimenta com água
o mundo nos seus fluxos de conhecimentos” (AKOTIRENE, 2019, fonte eletrônica).
Associado a isso, a voz poética lembra que Oxum é uma orixá que defende
distintas pautas relacionadas ao feminino. Em Vou-me embora pra Oshogbo, o sujeito
lírico explora questões afetivas, relações de gênero, emancipação e empoderamento
coletivo. Lembrando muitos orikis e itan que aprendi, a poeta negra diaspórica enfatiza
que Oxum se torna uma das porta-vozes contra o patriarcado, o sexismo e a dominação
masculina etc.
Lá sou filha de rainha
Me deitarei só com quem eu quiser
Só se for vontade minha
[...]
lá vou ser feliz
não terei que me relacionar
com homens de qualquer lugar
espanha, estados unidos, paris
Só se for vontade minha
(ADÙN, 2014, p. 154, grifos meus)
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ORISA DIDÊ
Minha fé é negra
e minha alma enegrece a terra
no ilá
que de minha boca escapa.
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18
Deusa do amor, terceira esposa de Xangô, quando vivia na terra, dizem ter sido sua preferida. Muito
vaidosa e de temperamento voluptuoso, Oxum usou de todas as artimanhas para prendê-lo, tanto que, por
meio de sutilezas, fez a sua rival, Obá, cortar a orelha e cozinhá-la, dizendo-lhe que com isso o agradaria.
Sua cor é o amarelo-ouro, e gosta de adornos dourados.
151
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Por outro lado, a ira de Oxum “pode provocar o desencadeamento de contrários a suas
qualidades” (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 23).
Dados os poderes místicos que lhe estão associados, os versos de Lívia Natália
possuem uma potência de múltiplos afetos que se espraiam no aquoso e liquefeito
terreno/território de emoções, sensações e devoções a orísá Oxum. É extraordinária a
qualidade de sua linguagem que desce às profundidades abissais dos rios, mares e
cachoeiras, traz à superfície a densidade de seus segredos sempre férteis em
significados. “Oxum, a Ìyá primordial, como nos diz o odu Oseetura” (OYĚWÙMÍ,
2016, p.3). Assim, gota a gota... Eu bebo e encanto-me com as palavras-feiticeiras. No
movimento de vidas-moléculas, vidas-correntezas, ao mesmo tempo... Neles, o eu lírico
é mulher e menina, deusa-rainha, mãe e filha, donas de todos os dengos, segurando o
abébé.
Ainda nesse sentido, cabe dizer que Oxum é vida pulsante nas poesias de
escritoras negras brasileiras. Poesia negra como ilá (grito) de orixá. Poesia negra feita
de abébé nas mãos. Nos versos de Mel Adún e Lívia Natália, os rios de águas doces,
negras, lodosas e profundas nunca se calam (SALES, 2018, p. 48). Águas de variadas
temperaturas que reviram tudo: passado, presente e futuro numa dimensão de tempo não
linear: ora são águas calmas e pacientes... Ora são correntes oceânicas insurgentes,
assim como são as mulheres negras que escrevem. Rios que também escondem
correntezas perigosas e segredos milenares. “[...] E mais o fogo, o sal das águas, a
tempestade” (SOUZA, 2011, p. 33).
Através do espelho-leque, reexistimos belas, sedutoras, vaidosas, bem como
produzimos conhecimento de outro lugar. No leque dourado de Oxum que o eu-lírico
segura com devoção, podemos exaltar os saberes femininos ancestrais, reverenciar as
nossas antepassadas, professar a nossa fé nos orixás e compartilhar as nuances de nossa
condição humana e espiritual enquanto mulheres negras. Ademais, aos rituais em
devoção a essa divindade das águas doces, intentamos, assim, assentar outras formas de
pensamento.
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Referências
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jun. 2017.
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Conquista v. 10, n. 2 p. 193-204 jul./dez. 2018.
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Resumo
Este trabalho apresenta os resultados da síntese entre as vivências e a pesquisa
bibliográfica desenvolvida durante o processo de ensino-aprendizagem proporcionado
pela disciplina Antropologia, que consta no Projeto Pedagógico (2007) do Curso de
Serviço Social, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). O objetivo deste artigo
descritivo é situar de forma generalizada os aspectos básicos e a configuração do sujeito
individual e da coletividade comumente observados nas religiões de matrizes africanas,
em específico as que se organizam de acordo com a ancestralidade do Povo Nagô/Iorubá.
Para isso, foi necessário sistematizá-lo em dois itens: 1) situando quem é o Povo Nagô e
os seus princípios na formação das religiões de matrizes africanas; 2) situando, de fato,
os aspectos básicos e necessários para entender os princípios de indivíduo e de
coletividade herdados por religiões de matrizes africanas.
Resumen
Este trabajo presenta los resultados de la síntesis entre las experiencias y la investigación
bibliográfica desarrollada durante el proceso de enseñanza-aprendizaje brindado por la
disciplina Antropología, la cual forma parte del Proyecto Pedagógico (2007) del Curso
de Servicio Social, en la Universidad Federal de Alagoas (Ufal). El objetivo de este
artículo descriptivo es generalizar los aspectos básicos y la configuración del sujeto
individual y de la colectividad comúnmente observada en las religiones de matrices
africanas, específicamente aquellas que se organizan según la ascendencia del Pueblo
Nago/Yoruba. Para eso, fue necesario sistematizarlo en dos ítems: 1) ubicar quien es el
Pueblo Nago y sus principios en la formación de religiones de base africana; 2) situar, de
hecho, los aspectos básicos y necesarios para comprender los principios de individual y
colectividad heredados por las religiones de origen africano.
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Introdução
3
Essas introduções dos mecanismos mercadológicos também entram em consonância com um processo de
folclorização das diversas culturas africanas.
4
Termo utilizado para não deixarmos velado que este foi um processo cultural e histórico, que não garantiu
a preservação de todos os elementos étnicos originários do continente africano, aculturando-se, inclusive,
a religiosidade dos/as nativos/as e dos colonizadores.
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pelos colonizadores como uma forma cruel de apagamento das diversas identidades
étnicas, é atualmente uma questão que possibilita a análise das diferentes configurações
de cultos afro-brasileiros. A utilização do termo também tem o intuito de entendermos a
África como o tão grandioso continente que se constitui, e não cairmos no erro que Braga
(1988) bem aponta:
Então, é partindo dessa atribuição identitária que este artigo descritivo se propõe
a situar de forma generalizada os aspectos básicos e a configuração do sujeito individual
e da coletividade comumente observados nas religiões de matrizes africanas, em
específico as que se organizam de acordo com a ancestralidade do Povo Nagô/Iorubá 5,
proveniente das regiões falantes do Iorubá, “que hoje compõem a Nigéria, o Benin e Togo
(iorubalândia)” (ARAÚJO, 2013, p. 6). Porém, isso não significa que tais aspectos
estejam limitados aos cultos de matriz Nagô, podendo, inclusive, estar ausentes desses
cultos, pois as religiões de matrizes africanas, na sua constituição e resistência, vêm
aglutinando diversos saberes, apresentando, na atualidade, uma vasta pluralidade.
Este artigo apresenta os resultados da síntese entre as vivências e a pesquisa
bibliográfica desenvolvida durante o processo de ensino-aprendizagem proporcionado
pela disciplina de Antropologia, que consta no Projeto Pedagógico (2007) do Curso de
Serviço Social, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). A partir da exposição em aula
do documentário 1912: Quebra de Xangô6, produzido pelo Prof. Dr. Siloé Soares de
5
A escolha por realizar esta análise a partir do grupo Nagô/Iorubá não tem o intuito de seguir o que foi
nomeado de “purismo Nagô”, mas tem, sim, o intuito de entender as características específicas de um grupo
específico, que se manifesta de forma heterogênea nas configurações atuais das religiões de matrizes
africanas. Seguimos, assim, o princípio de que essas religiões não são apenas parte da cultura negra, mas
são constituídas por culturas diversas (inclusive, dentro de uma diversidade africana), que passaram por um
processo de sincretismo e transculturação.
6
O documentário apresenta a história dos ataques e perseguições sofridas pelos/as adeptos/as das religiões
de matrizes africanas, legalmente iniciadas no dia 2 de fevereiro de 1912, em Maceió-AL, como resultado
da intolerância religiosa desenvolvida pela política do Estado, episódio histórico conhecido como Quebra
de Xangô.
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Os Ketu, Sabe, Oyo, Egbá, Egbado, Ijesa, Ijebu [que são grupos étnicos
Nagô/Iorubá] importaram para o Brasil seus costumes, suas estruturas
hierárquicas, seus conceitos filosóficos e estéticos, sua língua, sua
música, sua literatura oral e mitológica. E, sobretudo, trouxeram para o
Brasil sua Religião (SANTOS, 2008, p. 29).
7
A cidade de Ilê-Ifé (Ilé-Ifè) é considerada pelos yorùbá o lugar de origem de seus primeiros grupos. lfé é
o berço de toda religião tradicional yorùbá (a religião dos Òrìsà, o Candomblé do Brasil), um lugar sagrado,
onde os deuses ali chegaram, criaram e povoaram o mundo e depois ensinaram aos mortais como os
cultuarem, nos primórdios da civilização. Ilê-Ifé é o ‘Berço da Terra’” (BARRETTI FILHO, 1984).
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A religiosidade como uma das influências do Povo Nagô, que hoje é organizada e
agrupada em religiões de matrizes africanas ou religiões afro-brasileiras, é facilmente
identificada por características comuns que vão além da sua configuração litúrgica/ritual,
ultrapassando principalmente o âmbito filosófico. Dado o processo histórico,
8
Devido à vasta quantidade de relatos e discussões nas quais adeptos afirmaram o entendimento da criação
do mundo e dos orixás a partir de Olorum, identificou-se que, em sua maioria, as religiões de matriz africana
Nagô se consideram como monoteísta substancial, que seria a crença em inúmeros deuses diferentes,
provenientes de uma substância subjacente.
9
Olorum é utilizado principalmente quando utilizamos a comunicação oral, pois ao falar o nome Olodumarè
os adeptos das religiões devem fazer reverência a este.
10
É mais comum a identificação de Olodumarè como uma divindade masculina, porém, existem afirmações
advindas das religiões, que afirmam não ter ao certo um gênero a ser tratado.
11
O antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a
animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral.
160
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12
Em relação à grafia das palavras em Iorubá: não estamos certos de que a grafia está correta e
correspondente ao Iorubá, mas utilizamos a grafia que é comumente utilizada por comunidades de terreiros
e pesquisadores do assunto.
161
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Dessa forma, são definidas diversas funções dentro dos terreiros. Dentre elas,
destacam-se as funções de alguns cargos comumente encontrados nas religiões afro-
brasileiras, porém, devido ao processo histórico brasileiro, nem todas têm sua
correspondência no continente africano, tendo sido criadas aqui mesmo no Brasil, diante
das necessidades apresentadas ao longo da história. Os cargos mais comuns são: 1)
Iyalorixá ou Babalorixá, que se encontra no posto mais elevado dentro do terreiro, é
popularmente conhecido como Mãe ou Pai de Santo; 2) Ogan, cargo masculino que
desempenha várias tarefas espirituais e não entra em transe; 3) Iyaegbé ou Babaegbé,
responsável por manter a ordem, tradição e hierarquia, considerada a segunda pessoa na
hierarquia do terreiro; 4) Iyalaxé, quem zela pela distribuição da energia fundante e cuida
do ritual; 5) Iyakekerê, mãe pequena da casa, segunda sacerdotisa que está à disposição
para ajudar e ensinar as pessoas iniciadas; 6) Babakekerê, pai pequeno da casa, segundo
sacerdote, também está à disposição para ajudar e ensinar; 7) Ojubonã ou Agibonã, quem
supervisiona e auxilia na iniciação, é a “mãe criadeira”; 8) Axogun, cargo masculino que
é responsável pelo sacrifício dos animais; 9) Iyabassê, cargo feminino responsável pelo
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preparo dos alimentos sagrados, comida de santo; 10) Egbômi, toda pessoa iniciada que
entra em transe e que já cumpriu os ritos de sete anos de iniciação; 11) Ekedi, cargo
feminino 13 semelhante ao de Ogan, que é responsável por cuidar dos sujeitos iniciados
quando eles estão em transe; 12) Iyawô, filho de santo iniciado que entra em transe com
o orixá; e 13) Abian, neófito/a que ainda não foi apontado/a como Ogan ou Ekedi, nem
foi iniciado/a como Iyawô (PRANDI, 2001a)14.
13
Verifica-se também que os cargos têm um forte recorte de gênero, apontando uma boa temática para
discussão.
14
Os cargos citados são mais comuns no candomblé.
15
Vale ressaltar que não podemos fazer uma leitura de Orum como o Paraíso cristão. Na verdade, o Orum
constitui um plano coexistente e horizontal ao Ayê. Segundo Santos (2008), em Iorubá, as palavras que
designam literalmente Céu–Terra são Ilè–Sánmò.
16
É importante ressaltar que, por ser uma descrição feita a partir de vivências e pesquisa bibliográfica, pode
haver discordâncias em relação às formas de manifestações e sentidos dos elementos abordados, tanto no
Brasil como na iorubalândia. Ressalta-se essa questão dando ênfase à existência da pluralidade.
163
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Além das egbés ayê, também existem as egbé orum (comunidades do plano
espiritual/energético), as quais já foram citadas anteriormente e que também representam
uma coletividade ancestral que tem conexão com os terreiros através do axé dos rituais
de iniciação, rituais de passagens e rituais de morte, assim como dos objetos, atos, crenças
e cultos.
Ori é traduzido literalmente como “cabeça”, porém, existe toda uma crença
envolta nesse elemento, visto que, sobretudo, este também é uma divindade. Ori é a
partícula divina individual de cada ser. Para o Povo Nagô, cada pessoa, antes de vir ao
ayê, tem o seu destino modelado junto ao seu ori-orum (duplo do Ori no mundo espiritual)
pelo orixá Àjàlà, enquanto tem o seu ori-ará (cabeça física) e ori-inú17 (interior da cabeça)
desenvolvidos no ventre de sua mãe. No momento do nascimento, os pulmões recebem o
elèèmi (sopro divino ou ar-massa), que faz com que desperte o iponrí (energia espiritual
individual carregada de axé), responsável pela ligação desse Ori indivíduo com seu duplo
espiritual. O Ori, símbolo da individualidade de cada ser, também é o meio de conexão
17
Alguns estudiosos e estudiosas falam sobre a sua correspondência com as glândulas hipófise e pineal.
164
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com o élèdà (senhor ou senhora dos seres viventes), orixá que rege tal Ori, conectando-
se assim a uma coletividade energética natural. Sobre as culturas africanas e a simbologia
da cabeça, Braga (1988) aponta que:
Ará é o corpo físico, regido pelo orixá Exu Bará, senhor da comunicação e do
início, senhor do corpo. Ará junto a Ori formam as duas representações do sujeito
individual, pois cada um tem um corpo e um Bará ao qual prestam culto. Ori e Bará são
as duas divindades que formam o ser em seus aspectos espiritual e individual,
representado principalmente pelo corpo propriamente dito, que, para os Nagô, é algo
sagrado, pois é o que possibilita a comunicação com as divindades, entidades e energias,
e, consequentemente, com a egbé.
165
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Considerações Finais
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Referências
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Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Campinas,
2010.
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Resumo
Nesta pesquisa, apresentamos algumas características teológicas e rituais próprias do
Batuque, uma religião afro-brasileira típica do sul do Brasil, motivo pelo qual também é
referido como Batuque afro-sul. Colocamos esta tradição em perspectiva, olhando-a no
contraste com outras tradições religiosas afro-brasileiras, bem como introduzimos a sua
característica teológica mais própria, chamada segredo de Orixá, dando seu conceito,
sua finalidade ritual e as possíveis origens desta tradição peculiar ao Batuque.
1. Introdução
1
Universidade Federal de Santa Catarina. Email: mvinicius.snunes@gmail.com
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Não se trata, contudo, de uma análise de dados etnográficos. Partimos dos dados
desenvolvidos nas ciências sociais, que são indispensáveis em direção a uma reflexão
que lê existencialmente o fenômeno afrorreligioso e que deságua no campo de uma
possível teologia afrorreligiosa, ou ainda, afroteologia, buscando compreender seu
sentido e seus contributos para uma reflexão mais ampla para as ciências da religião.
Em primeiro lugar, trataremos de apresentar um amplo escopo das religiões afro-
brasileiras. De que modo podem ser agrupadas, quais são as características mínimas
comuns que nos permitem classificá-las de tal ou qual modo e seus traços teológicos
fundamentais, em especial a noção de possessão.
Em seguida apresentamos o Batuque. Suas principais nações, seus traços
litúrgicos e teológicos peculiares. Em especial trataremos do segredo de Orixá, fato
litúrgico e teológico que, segundo nossas pesquisas, é exclusivo dessa tradição
afrorreligiosa. Aventaremos possíveis causas para tal peculiaridade, tanto de ordem
material – econômica, social, política – quanto de ordem teológica intrínseca.
2. As religiões afro-brasileiras
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culturais que aqui apresentamos. Por isso apresentamos nesta introdução uma
classificação das religiões afro 2 em dois grandes grupos, um menos aculturado e outro
mais aculturado, pois levamos em conta que no primeiro também há evidentes traços de
aculturação e no outro também evidente busca de tradições e matrizes culturais
tradicionais.
Dentro do grande grupo das religiões afro menos aculturadas situam-se o sem
número de Candomblés, Batuques, Xangôs, que genericamente são chamados Nações.
Três grandes grupos étnicos estão na origem dessas nações, o jeje, proveniente da região
do atual Benin, o nagô ou yorubá, vindos da atual Nigéria e parte do Benin e o bantu,
da costa ocidental sul da África, principalmente da Angola e Congo. A cada um desses
grupos étnicos corresponde uma língua, ainda usada liturgicamente: O fon para os jejes,
o yorubá para os nagôs e o kimbundo para os bantus. A conservação da língua litúrgica é
uma das marcas dessas religiões menos aculturadas. Ademais, cultuam prioritariamente,
se bem que nem sempre exclusivamente, as divindades dos panteões de seus lugares de
origem: Vodun, para os jejes, Orixás, para os nagôs, Inkices para os bantus. Quando
dizemos, por exemplo, candomblé, sob esta rubrica abrigam-se uma variedade
gigantesca de tradições teológicas, litúrgicas, filosóficas, linguísticas. Por exemplo,
mesmo um candomblé de origem nagô pode ser Candomblé Ketu, Candomblé Ijexá,
pode ser ainda um culto de nação Nagô-Egbá, ou mesmo mesclada com o culto jeje,
como Nagô-Efon.
No grande grupo das religiões mais aculturadas se encontram as umbandas,
juremas, quimbandas, que mesclam muitos elementos da cultura popular, do
cristianismo, da cultura indígena com elementos afros, especialmente nagôs e bantus.
Sua língua litúrgica é o português e seu panteão inclui o culto de arquétipos da cultura
popular, como o preto-velho, o indígena, o marinheiro, a criança. São ritualmente
menos complexas, apesar de gozarem de patrimônio litúrgico e teológico próprio.
Entretanto, a separação entre esses dois grandes grupos não é tão rígida quanto à
primeira vista pode nos parecer. Há muitos trânsitos simbólicos que ocorrem em
diversas áreas, seja em divindades que se incorporam de um lado para outro, na língua,
nas roupas, na compreensão teológica. Ao fim, talvez pudéssemos falar de um único
grande grupo que varia em uma grande escala de aculturação.
2
Seguindo a nossa classificação, uma possível disjunção entre religiões afro-brasileiras e religiões de
matriz africana não se justifica. Assim, muitas vezes usamos apenas a expressão religiões afro para
amplamente conter o maior número possível de nuances de sentido.
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172
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3
Exceção deve ser feita ao culto de egun ou egungun, o culto dos antepassados da comunidade. Este,
todavia, não é praticado em muitas casas, sendo realizado apenas por sacerdotes inteiramente consagrados
a ele. No Batuque, especialmente em algumas de suas nações, o culto de antepassados é mais difundido,
sendo o seu sacerdote o mesmo do culto dos Orixás. O que é mais importante ressaltar é que em nenhum
momento se confundem culto de antepassados e de Orixás, como acontecem nas tradições mais
aculturadas, como a Umbanda
4
A língua dos cultos afro de origem nagô é o yorubá. Na medida do possível usamos os termos já
aculturados, aportuguesados. Quando mantivemos o termo em yorubá, citamos em itálico e conforme a
ortografia do yorubá moderno.
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3. O Batuque afro-sul
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língua litúrgica, seja nas divindades cultuadas, seja na elaboração teológica e filosófica
(SILVEIRA, 2014). A presença do elemento Jeje se verifica pelo culto a algumas
divindades, ou que ao menos são mencionadas em algumas cantigas (Legba, Sogbô);
por similaridades com o culto de Vodun que podem ser observadas (ABIOU, 2016); seja
pela presença do príncipe Osuanlele Erupé, de origem jeje, no Rio Grande do Sul, que
influenciou em boa medida a organização dos cultos de nação (SILVEIRA, 2014;
SILVA, 1999). Entretanto, a extensão real da influência do Jeje é passível de discussão.
Por exemplo, sua língua litúrgica, o Fon, não é utilizada no Batuque5.
Quanto à presença da religião bantu nos encontramos em terreno ainda mais
difícil de averiguar. Uns pretendem ligar a nação Cabinda a uma origem bantu
(SILVEIRA 2014). Reconhecem no patrono desta nação, Kamuká, associado ao culto de
Xangô, um nome bantu, assim como seria bantu a importância que se dá ao culto dos
antepassados, que nesta nação, ordinariamente, precede na ordem litúrgica o culto aos
Orixás. Ainda poder-se-ia reconhecer no fundador mítico dessa nação no Rio Grande do
Sul, certo africano chamado Gululu, um nome bantu. Entretanto, sua liturgia é yorubá,
sua língua de culto é yorubá (inclusive as dedicadas ao seu patrono Kamuká), e mesmo
seu nome seria mais corretamente lido Kambina em referência ao antepassado mítico de
Xangô Okambi, e não Cabinda, nome de uma província da moderna Angola. Fora as já
mencionadas e algumas outras poucas especificidades próprias suas, é no mais em tudo
similar às outras nações do Batuque afro-sul.
4. Segredo de Orixá
5
Talvez não tenham ido para o Rio Grande do Sul jejes “verdadeiramente” fon, mas habitantes do antigo
Daomé de origem yorubá, que os jeje chamavam ànàgónu. Não passa, todavia, de uma hipótese de difícil
comprovação.
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A origem dessa tradição é muito difícil de avaliar. Certo que no Rio Grande do
Sul, apesar da presença de uma corte africana (a de Osuanlele Okizi Erupé) e as boas
relações políticas que esta mantinha com o poder político local, não se pode dizer que o
Batuque tenha encontrado um ambiente favorável ao seu desenvolvimento. As
condições econômicas eram bem diversas daquelas encontradas no nordeste brasileiro
de então (final do século XIX e início do XX). Os rituais se tornaram muito mais
econômicos, barateados. Pouco a pouco os tempos de iniciação foram se reduzindo.
Rituais mais dispendiosos foram sendo abandonados. A terreira, como é chamado
tradicionalmente no Batuque o conjunto dos espaços sagrados dedicado ao culto dos
Orixás, equivalia à casa do babaláo e da babalôa6. O quarto-de-santo, onde ficam os
6
Tradicionalmente o pai e a mãe de santo eram chamados na tradição batuqueira, respectivamente, de
babaláo e babalôa, provavelmente corruptelas de bàbálawo, pai-do-segredo, sacerdote iniciado no culto
de Ifá, divindade da advinhação. Do início da década de 1990, pelo contato com outras tradições de
matriz africana e pelo despertar da pesquisa sobre as origens, começou a aparecer o uso dos termos
babalorixá e yalorixá, com o quase total desaparecimento dos usos anteriores. Também a expressão
176
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objetos litúrgicos dos orixás, muitas vezes não passava de uma prateleira coberta com
cortinas na sala da casa do babaláo, sala que funcionava como salão para as danças dos
orixás. Os assentamentos externos, altares (os peji, ajubo e ojubo) dão lugar a mínimas
credências, armários ou casinhas no exterior da casa onde se abrigam os assentamentos
de Bará Lodê, Bará Lanã, Ogun Avagan, Oyá Dirã e Oyá Timboá, assim como outros
Orixás menos cultuados, próprios de apenas uma ou outra entre as várias tradições,
como Legba, Zina, Gama.
Às condições econômicas muito limitadas se deve somar a pouca aceitabilidade
social do batuque. Apesar do dado de 23% da população brasileira adepta de religiões
de matriz africana, mais ou menos aculturadas, se encontrar no Rio Grande do Sul, isto
garantiu pouca visibilidade identitária de grande expressão até finais do século XX,
onde se reconhece uma organização mais consistente em busca de direitos. A nossa
grande pergunta é se é possível vincular o segredo de Orixá à repressão exercida sobre
as casas de Batuque. Não haveria aí uma saída litúrgica para uma sanção sociológica
que seria miticamente mediada? Poderia haver maior sanção que a loucura, isto é, a
exclusão total da comunidade de fala? A necessidade de proteção da comunidade
poderia ter gerado essa artimanha.
Contudo, parece-nos difícil explicar tal acontecimento apenas pela via
sociológica extrínseca. É preciso buscar as raízes dos próprios ritos dentro da própria
religião yorubá. Parece indiscutível que os rituais do Batuque têm parte de suas raízes
no culto de Xangô realizado na cidade de Oyó. Primeiro, reconhecemos uma nação do
Batuque homônima da cidade onde o Orixá Xangô é rei e onde é cultuado. Segundo,
percebe-se o papel de patrono principal de Xangô nas nações Oyó (Igbomina e Bangan)
e na Kambina, onde é cultuado como Xangô Kamuká. E o mais importante, o papel que
o culto de Xangô tem em todo o batuque.
A principal dança do Batuque só é executada nas festas grandes, ou batuques de
quatro-pés. Para serem realizadas, tais festas são antecedidas pelo sacrifício de vários
animais, em especial quadrúpedes, como cabritos, porcos, ovelhas, donde seu nome. É
também nessas festas que os babalorixás e yalorixás são feitos, isto é, consagrados como
babalorixás. Para confirmar que os Orixás receberam os sacrifícios se realiza essa dança
dedicada a Xangô chamada balança de Xangô, ou kasun. Nesta participam apenas os
terreira tem cedido espaço para ile, ile àse, terreiro. Mas ao contrário do caso anterior, a expressão
terreira parece fazer parte mais constante do vocabulário diário das casas de religião, como também são
chamadas.
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prontos, isto é, que já deram obrigações maiores aos seus Orixás, que já são babalorixás
e yalorixás. Dão-se as mãos, voltados para o centro da roda que se encontra vazio, numa
dança que começa em marcha bem lenta e vai acelerando. É nesta dança que se
manifestam os Orixás ditos secos, a saber: Bará, Ogun, Oyá, Xangô, Odé, Obá, Ossanha
e Xapanã.
A balança não pode ser rompida, isto é, os que dela participam não podem de
maneira alguma soltar suas mãos antes do momento ritual prescrito, quando ocorre uma
mudança no toque da dança. As penas para o rompimento são as mesmas para a
revelação do segredo de Orixá. Desfeita a balança, os Orixás manifestados dançam
alegremente, em frente aos tambores, os Alujás de Xangô e Oyá e o jeje de Xangô. É
um ritual de máxima importância, realizado com máxima solenidade, que não pode ser
de forma alguma fotografado ou filmado. É a mais sagrada das danças no Batuque,
apesar de serem conhecidas outras balanças, como a de Xapanã ou a de Obá, menos
solenes e menos rígidas em suas sanções. Ou danças como a do Alá, realizada para
Oxalá, que são tratadas com uma reverência especial.
Segundo Verger (1997), nos rituais para Xangô realizados em Oyó, na Nigéria, a
manifestação do Orixá acontece com violentas convulsões. Após isso, o corpo do elegun
relaxa e Xangô mantém-se durante o ritual, manifestado no elegun, de forma serena e
cerimonial. Entretanto, o fim da manifestação não é tão brusco quanto o seu início. O
elegun passa do estágio de manifestação do Orixá a um segundo estágio onde “O se bi
asiwère” (literalmente, age como um louco) com comportamento infantil, tresloucado.
Após ainda esse estágio, passa para um outro de sonolência e fraqueza onde não se
lembra do que aconteceu. Ora, nesta palavra asiwère reconhecemos uma possível
origem do termo axero, muito usado no Batuque. Nas nações do Batuque, o Orixá,
ordinariamente, não abandona seu cavalo-de-santo repentinamente. Quando termina a
manifestação, o filho-de-santo permanece num estágio chamado intermediário entre o
Orixá e a consciência plena, que é o axero. Comporta-se também infantilmente, usa uma
gramática própria e incompreensível para quem não conhece o ritual. Quando o filho sai
do estado de axero não se recorda de nada do que lhe aconteceu. Parece possível
reconhecer aí elementos do culto realizado em Oyó tal como de descrito por Verger,
embora não possamos fechar a questão.
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5. Conclusão
180
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conjugadas podem apresentar uma resposta interessante. Parece provável que as causas
sociológicas acima apresentadas, as condições econômicas, a perseguição policial,
tenham contribuído para que se realizasse um culto mais econômico, não apenas quanto
ao espaço sagrado reduzido ou ao uso de certos materiais. O culto do Orixá se tornou
ritual e teologicamente mais econômico. A possível reminiscência simbólica do culto
realizado em Oyó, que envolvia um estado de consciência alterado mais longo,
provocando esquecimentos e letargias depois do transe, pode ter sido recuperada ainda
que inconscientemente nessa prática litúrgica.
Ir além da descrição do fato e perguntar-se por suas origens pode ser, relativo à
matéria por nós tratada, um pesado fardo sem resultados práticos. Entretanto, no
horizonte simbólico das religiões afro-brasileiras, o segredo de Orixá do Batuque abre
uma possibilidade inaudita. Encara-se a relação com a divindade como um mistério em
que a própria integridade da personalidade é posta em jogo.
O transe é um acontecimento de tal maneira precioso a ponto da lembrança da
fusão extática com o eu divino ser objeto de um cuidado extremo. Ninguém se pode
valer da manifestação do Orixá. Nem o próprio elegun. Se por um lado o Orixá se
apresenta como uma dimensão do eu da qual o elegun se ocupa, também é uma
dimensão transcendente que não pode ser aprisionada por nada, por nenhuma
discursividade, não pode ser dita.
Referências
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religiosas entre os Vodunsi do litoral sudeste do Benin, na África subsaariana, e o
Batuque do Rio Grande do Sul, no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, p. 202, 2016.
BASTIDE, Roger. Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
DEMOGRÁFICO, IBGE Censo. Disponível em: http://www. ibge. gov. br. Acesso em
12.06.2018, v. 3, 2010.
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ORO, Ari Pedro. “O atual campo afro-religioso gaúcho”. Civitas: revista de ciências
sociais. Porto Alegre, RS. Vol. 12, n. 3 (set./dez. 2012), p. 556-565, 2012.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
SILVEIRA, Hendrix Alessandro Anzorena et al. Não Somos Filhos Sem Pais: história e
teologia do batuque do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Teologia) –
Programa de Pós-Graduação em Teologia, Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
p.136, 2014.
VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e Novo Mundo. Salvador: Corrupio,
1997.
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Resumo
O presente artigo busca refletir, através da pesquisa realizada para a elaboração da
dissertação do mestrado, os impactos de voltar para a origem e como essa volta é
respaldada, resguardada e constituída por eventos que nos precedem. Entretanto, como o
campo ocorreu entre minhas parentes-interlocutoras, a mudança subjetiva não aconteceu
apenas na parente-pesquisadora, mas também em todo grupo de parentesco e ajudou a
construir e reconstruir novas paisagens narrativas sobre nossa origem.
Resumen
Este artículo busca reflejar, a través de la investigación realizada para la elaboración de
la tesis de maestría, los impactos del regreso al origen y cómo este regreso es
sustentado, protegido y constituido por hechos que nos preceden. Sin embargo, como el
campo se dio entre mis parientes-interlocutores, el cambio subjetivo ocurrió no solo en
el investigador-pariente, sino también en todo el grupo de parentesco y ayudó a
construir y reconstruir nuevos paisajes narrativos sobre nuestro origen.
1
Graduada em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB). É
Mestranda em Antropologia pelo PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) da
Universidade Federal de Goiás (UFG). Membra do Ser-Tão / Núcleo de Ensino, Extensão e Pesquisa em
Gênero e Sexualidade – Faculdade de Ciências Sociais (FCS/UFG). E-mail para contato:
anaclarasousadamasio@gmail.com
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A posição
2
Todas as palavras em itálico são categorias êmicas.
3
Dados acessados na página do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatística). Acesso à página no
dia 19/07/2020. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pi/canto-do-buriti/historico
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habitantes, sendo que apenas 8,8 % da população possuía alguma ocupação formal (um
total de 1.854 pessoas)4.
Ao ir para o campo, acabei levando minha avó Anita para sua casa, que estava
fechada em Canto do Buriti. Minha avó Anita foi para o mundo, pois depois que caiu
pra idade precisou que suas filhas-mulher tomassem de conta. O mundo é tudo aquilo
que não é a origem (Canto do Buriti), mas é categoria êmica atrelada principalmente a
São Paulo e Brasília. Tomar de conta é um fenômeno que envolve múltiplas questões,
como disputa de poder. Ao mesmo tempo o fenômeno trabalha para a construção e
manutenção da hierarquia entre os sujeitos envolvidos nesse processo. De um lado, um
sujeito que toma de conta e, do outro, o sujeito que é tomado de conta. Nisso, quem
toma de conta passa a ser encarregado de policiar, cuidar, tomar decisões, em suma, ele
impacta na agência do sujeito de quem toma de conta (DAMÁSIO, 2020).
Entretanto, no desenho inicial da pesquisa de campo eu não tomava minhas
parentes como interlocutoras. Minha avó e minhas tias, tios, primas e primos que
estavam em Canto do Buriti seriam apenas minha entrada em campo, me apresentariam
para outras famílias e não seriam o local em que eu permaneceria com o intuito
investigativo. Mas eis que, durante o campo, acabei ficando restrita ao ambiente
doméstico. Isso ocorreu justamente porque tive que tomar de conta da minha avó. Esse
processo de tomar de conta acabou fazendo com que eu passasse a perceber que minhas
parentes eram também interlocutoras, ou melhor, como passei a chamar, parentes-
interlocutoras.
Minha vó, que teve oito filhos, acabou mandando todos muito mininos para o
mundo (São Paulo). A migração para o sul e sudeste é atrelada à possibilidade de
realizar alguma acumulação que auxilie nos processos de troca para com toda a família
que ficou no contexto rural e crie novas oportunidades de melhoria de vida (GARCIA,
1989). A decisão de migrar pode ser tomada por indivíduos que tentam escapar de
situações extremas, mas geralmente é uma decisão tomada em conjunto com o grupo de
parentesco. É a rede de relações que decide quem pode migrar, quem deve migrar, para
onde, sob qual circunstância e tempo. A migração pode ser apresentada então como um
projeto familiar ordenado pelo parentesco, gênero e geração (ASSIS, 2007).
Com minha mãe indo muito minina para o mundo, acabei nascendo na periferia
de São Paulo. Quando eu estava com dois anos de idade, meus pais acabaram migrando
4
Dados do Censo 2010. Acesso à página dia 10/07/2020. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pi/canto-do-
buriti/panorama
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Um lugar do Não-Lugar
5
Exemplos de não-lugares dados pelo autor: aeroportos, autoestradas, lugares de passagem.
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Falo como uma mulher? Falo como periférica? Falo como pertencente de classe
trabalhadora? Falo como a “Clara”? Como apontei, algumas coisas demoram a fazer
sentido e ganhar corpo efetivamente. Angela Davis (Ibidem) conta que:
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“Branca”. Entretanto, as pessoas realmente presentes nesse novo contexto e que eram
“Brancas”, não me viam como “Branca”, me viam como “Clara”. Era um longo e
doloroso processo de entender o que consistia ser a “Clara”. Ou como era viver em uma
posição de “mestiza” para o mundo (ANZALDUÁ, 2005), assumindo meu lugar de
alguém que está entre-mundos, entre passagens, em territórios sem nome.
Sueli Carneiro (2004) narra o registro da sua filha, pelo seu então companheiro,
um homem branco. No momento do registro, o escrivão colocou que a criança era
“branca”, mas o pai corrigiu o escrivão. Esse último mudou a nominação para “parda”.
O pai corrigiu mais vez e afirmou que a criança era “negra”. Bem, para ele, enquanto
um homem branco, era óbvio que sua filha era negra, mas os processos de
embranquecimento são ainda operantes e eficazes e geram propositalmente múltiplos
desencontros. Como a autora coloca, por que a branquitude é encarada como plural e
complexa (loiros, ruivos, descendentes de espanhóis, italianos, portugueses, entre
outros)? Por que há uma complexidade de fenótipos na branquitude, mas a negritude
entra em todas as ordens dos desencontros? E onde estou no meio disso?
Demorei muito tempo para me ver como uma mulher negra de pele “Clara”.
Esse é um espaço difícil de ocupar, pois é como se eu tivesse ficado no meio do
caminho de um processo de embranquecimento. Escutei durante minha infância que eu
era muito bonita, que eu tinha uma pele de “porcelana”, mas que eu ficaria mais bonita
ainda se ao crescer fizesse uma “cirurgia para corrigir seu nariz”. Essa última frase,
escutei do meu pai. Afinal, qual o problema do meu nariz? O que mais eu teria que
corrigir em mim para chegar lá? Quais os privilégios da minha pele? Escutei a infância
toda que meu cabelo era de “Bombril” e isso gerou uma ojeriza minha para com ele.
Foram anos de alisamento e clareamento.
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Os “segredos de família”
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de Oxum jogar búzios para mim antes de ir ao campo e assim fomos para a mesa de
jogo. No momento do jogo ela disse que tudo ocorreria bem e isso me acalentou.
Entretanto ela comentou: “Você vai achar o que está procurando indo para lá”. No
momento em que Mãe Lídia disse isso, a frase não fez sentido nenhum para mim e
prossegui com outras questões. Afinal, o que eu estaria procurando ao voltar? Eu estava
procurando algo? Estava. Eu queria compreender os processos de periodização da vida e
do curso de vida em uma cidade pequena. Foi apenas a decisão quanto ao medo do corte
de bolsas que me arrastou para minha origem? O que mais haveria ali?
Eu estava a vida toda no mundo e ao voltar foi um momento de compreender
que, de múltiplas formas, eu era composta por um grupo de parentesco, por
ancestralidade, por uma família. Entretanto, ao resolver tomar minhas parentes como
interlocutoras, comecei a revolver o lago dos “segredos de família”. Era também um
processo de recuperar a história da minha família materna, mas eu não percebia, num
primeiro momento, que eu me recuperava por conseguinte.
Em um desses dias em campo uma prima minha veio visitar minha avó e a mim.
No final da conversa resolvi acompanhar a mesma até a esquina. Nessa conversa,
resolvemos comentar sobre meu falecido avô Luis. Ela havia acompanhado o mesmo no
seu leito de morte. Disse que após o falecimento dele minha avó chorava muito e um dia
ela (minha prima) encontrou a mesma (minha avó) perambulando pela cidade à noite.
Ela então levou minha avó para casa e perguntou o que havia ocorrido. Minha avó
afirmou que meu avô havia ido visitá-la e pedido para que ela não chorasse mais
daquele jeito, pois ele estava inquieto e precisava ir embora. Eu, mobilizada, perguntei o
que ela achava dessa história, ela apontou que: “Ah, é comum né. Rebinha tocava
Terecô, tambor, essas coisas, né”. Ela logo se despediu e seguiu caminho. Como assim
minha bisavó Rebinha tocava Terecô6? Por que ninguém havia me contado isso?
Em uma conversa de varanda com tia Itamar, filha da minha bisa Rebinha e irmã
da minha avó, resolvi perguntar sobre esse comentário que minha prima havia feito. Tia
Itamar então disse: “É verdade! Rebinha tinha salão. Fechou porque nenhum filho quis
continuar e ela ficou véia. Aí parou de mexer com essas coisas”. Por que passei tanto
tempo achando que era a primeira pessoa atrelada a uma religião de matriz afro-
ameríndia? Ou melhor, por que isso estava sendo enterrado e colocado na zona dos
6
“Terecô é a denominação dada à religião afro-brasileira tradicional de Codó [...]. É também conhecido
por Encantaria de Barba Soêra (ou Santa Barbara Soeira), por Tambor da Mata, ou simplesmente Mata
(possivelmente em alusão à sua origem rural)” (FERRETTI, 2012, p.296). Ver também SARAIVA
(2017).
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“segredos da família” e do que não vai sendo mais narrado (BENJAMIN, 1994) e
consequentemente a ser esquecido? Como Quijano (2005) coloca:
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separados. Quando comentei com minha mãe a intenção de escrever esse texto, ela me
perguntou se eu sabia o nome inteiro da minha bisa Rebinha e eu disse que não. Ela
disse: “Nome de Rebinha é Maria da Conceição. Só isso. Não tem outra coisa depois.
Vi esses dias que Conceição é como chamam, como é o nome mesmo? Oxum, né!”.
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pensar a condição de aprender e ensinar em grandes escalas. Nesse sentido, afirmo que
eu não pesquisava e escrevia apenas as minhas parentes-interlocutoras, mas também
com minhas parentes-interlocutoras e nossas ancestralidades. Era preciso que esse
processo reanimasse o meu mundo e minha forma de fazer antropologia. Como coloca
Ailton Krenak (2019)
E é justamente a partir dessas ausências criadas pelo nosso tempo que busquei
tratar e considerar que negociações e apagamentos fazemos de nós mesmos dentro dos
textos e teorias que construímos para entrar no “clube da humanidade” (Ibidem), dos
processos civilizatórios e englobantes de uma grande humanidade homogênea e sem
rosto (ou melhor, com o rosto de um “Ocidente” branco e masculino).
Penso isso, pois essas discussões em relação à família e à minha recuperação
como uma pessoa composta por ancestralidades não foi tão bem trabalho na dissertação.
Esses incômodos não pareciam caber naquele formato e tampouco tenho certeza de que
cabe nesse. Talvez ele não caiba num texto. Talvez ele extrapole, inclusive, minha
carne. É importante, entretanto, que não deixemos de falar desses processos que por
vezes nem nós compreendemos ou trazemos com sentido pronto. Às vezes, é preciso ter
mais dúvida, do que certeza. É preciso ter mais ancestralidade, do que cientificidade. É
preciso deixar que essas dúvidas corroam, adentrem, façam casa e ganhem corpo (ou
texto).
Referências Bibliográficas
195
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CARNEIRO, Sueli. Negros de pele clara por Sueli Carneiro. Portal Geledés. 2004.
Acessado em: https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/
INGOLD, Tim. Antropologia para que serve? Petrópolis: Editora Vozes, 2019.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia da Letras,
2019.
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SILVA, Kelly Cristiane. “O poder do campo e o seu campo de poder”. In: BONETTI,
Alinne. FLEISCHER, Soraya (Org.). Entre saias justas e jogos de cintura.
Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul : EDUNISC, 2007.
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Resumo
A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira – BA, completou 200 anos
no ano de 2020 e sua trajetória é essencial para a preservação das tradições provenientes
da diáspora africana. A Irmandade é um símbolo de resistência e exemplo de estratégias
para a criação e a manutenção de práticas sociais e culturais que combateram a ordem
colonial na Bahia e no Brasil. Além sua importância para as religiões de matriz africana
e para a luta antiescravista, a influência da Irmandade se disseminou em diversos
símbolos sociais e culturais da população negra, porém muitos nuances dessa história
ainda são desconhecidos ou ignorados pela historiografia tradicional devido a um
problema de “falta de fontes”. Esses e outros “problemas” de estudos das tradições afro-
brasileiras devem ser questionados para que possamos compreender até que ponto
interferem em trabalhos sobre tais organizações e qual a importância da oralidade na
transmissão, perpetuação e estudos destas tradições.
Resumen
La Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira (Bahia) cumplió 200 años
en 2020 y su trayectoria es fundamental para la preservación de las tradiciones de la
diáspora africana. La Irmandade es símbolo de resistencia y ejemplo de estrategias para
la creación y mantenimiento de prácticas sociales y culturales que combatieron el orden
colonial en Bahía y Brasil. Además de su importancia para las religiones de base africana
y para la lucha contra la esclavitud, la influencia de la Irmandade se ha extendido a varios
símbolos sociales y culturales de la población negra, sin embargo muchos matices de esta
historia aún son desconocidos o ignorados por la historiografía tradicional debido a un
problema de “ausencia de fuentes”. Estos y otros “problemas” de los estudios de las
tradiciones afrobrasileñas deben ser cuestionados para que podamos entender hasta qué
1
Possui mestrado em História pela Universidade de Brasília (2016), na linha de pesquisa: História Social e
suas múltiplas formas. Trabalha com Irmandades Negras na América Portuguesa e Metodologia da História.
Graduação em História pela Universidade de Brasília (2013). Pesquisadora Associada do Observatório da
Saúde da População Negra NESP/CEAM/UnB. Email: marianaregis@gmail.com
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Palabras clave: Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte. Mujeres de la Boa Morte.
Historia oral. Oralidad. Religiones matriciales africanas. Candomblé.
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cativos, não podemos esquecer de um ponto crucial na constituição da Irmandade: ela era
e ainda é constituída exclusivamente por mulheres negras.
Paralelamente, na contramão das instituições tradicionais portuguesas, a
Irmandade da Boa Morte transmitiu seus ensinamentos e perpetuou suas tradições e sua
organização de maneira exclusivamente oral, possibilitando desta maneira, a perpetuação
das tradições espirituais experienciadas em África, possibilitando a criação do
Candomblé e de outras religiões de matriz africana. A Boa Morte, além de tudo, representa
mais profundamente: estratégia e existência de mulheres negras.
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diáspora, além de recriar em terras brasileiras, suas práticas culturais tão importantes para
a sobrevivência dos povos africanos na diáspora e seus descendentes.
No campo religioso, o sistema colonial fez com que as concepções de mundo
africanas trazidas pela diáspora (HALL, 2006, p.28) fossem recriminadas, pois além da
catequização de índios e de africanos escravizados como estratégia de um projeto de
dominação e exploração, também era conveniente para tal projeto, combater os rituais e
práticas espirituais que não fossem cristãs nos moldes eurocêntricos.
Dentro deste contexto, as religiosidades africanas se perpetuaram no Brasil por
meio da resistência, transformação e adaptação do que existia em diversas etnias em
África e se reorganizaram na América Portuguesa sofrendo influência da cultura europeia
e indígena. Faz-se necessário ressaltar que os termos étnicos que diferenciavam estes
africanos se criaram com a diáspora compulsória e com o trabalho escravo, pois quando
se volta o olhar para a população cativa é possível perceber que ali se encontravam
pessoas de diversas etnias colocadas em categorias identitárias impostas pelo poder
colonial. (REIS, 1996, p.5)
As práticas espirituais vieram como herança dos africanos escravizados e aqui se
transformaram em religiões brasileiras de matrizes africanas, onde os rituais foram
trazidos através da memória e foram transmitidos majoritariamente de maneira oral para
seus descendentes. Ao longo das décadas e séculos, com as transformações do Brasil,
estas representações foram sendo transformadas ao mesmo tempo em que sofriam
intervenções culturais do ambiente no qual se construíram.
No contexto colonial, estes africanos foram arrancados de suas raízes e
submetidos a situações perversas, embarcados na travessia para as terras da América para
a submissão ao trabalho compulsório e para que este empreendimento colonial fosse
possível, era necessário tentar controlar várias experiências de vida dos africanos. REIS
(1996, p.4), atenta para o importante fato de que senhores e escravos conviviam em um
espaço de negociação e para que fosse possível a perpetuação do sistema escravocrata,
era necessário que os senhores “negociassem” com seus escravos, segundo suas palavras,
entre os extremos da “coerção e persuasão”. Ao mesmo tempo que o sistema vigente
tentava minguar as possibilidades de revoltas ou rebeliões, escravizados e seus descentes
se utilizavam de dispositivos internos, como as Irmandades Negras para criar um espaço
de sobrevivência e criação de identidades. Neste sentido, esse espaço de negociação
viabilizou o nascimento destas novas práticas sociais, culturais e políticas dos negros da
diáspora.
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organização política e social por toda a América Lusa. No caso das irmandades compostas
por africanos e seus descendentes, chamadas de “Irmandades Negras”, além destas
funções, elas representam um dos espaços onde se possibilitou a reconstrução cultural
destes povos nas terras americanas. Dentro de uma irmandade, o irmão associado a ela,
além de participar de atividades religiosas ligadas ao culto do santo ou da santa de
devoção, também podia desfrutar dos privilégios e auxílios promovidos por esta
instituição. Entre as funções de um irmão ou irmã devoto filiado a uma irmandade, estão
as contribuições financeiras, obrigações nas funções da igreja e as regras de conduta
colocadas pela igreja da qual é filiado. (REGIS, 2016, p.100-101)
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além destas funções, exerceu e exerce até os dias de hoje um grande papel de símbolo de
resistência para o povo negro. Tal atribuição se dá devido ao fato da Irmandade da Boa
Morte ter realizado ativamente um papel abolicionista ao longo do século XIX, seja
através de compra de alforrias ou de esconderijo para cativos, cumprindo assim o seu
importante papel político para a população negra. Paralelamente, a Irmandade também
possibilitou a fundação de terreiros de candomblé de diferentes tradições mantendo vivas
as tradições africanas amalgamadas pela diáspora.
A Irmandade da Boa Morte é um importante exemplo de preservação de tradições
culturais e religiosas, seja desde rituais sagrados de portas fechadas, restrito apenas a
integrantes da confraria, até ações cotidianas de exaltação e valorização da cultura afro-
brasileira até os dias atuais.
206
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26).
Após esse período de ascensão, Cachoeira teve o seu declínio comercial devido à
queda da produção econômica, por conta do pouco escoamento da produção de açúcar
proveniente da ascensão da produção de açúcar extraído da beterraba no continente
europeu e a proibição do tráfico de escravos, culminando na abolição, no final do século
XIX.
Cachoeira até os dias de hoje é reconhecida como uma cidade importante tanto
pelo seu passado quanto para o que representa nos dias de hoje, sendo atrativa
turisticamente pelos seus casarões e seu conjunto arquitetônico, suas festividades, seus
candomblés e a grande festa da Nossa Senhora da Boa Morte todos os anos no mês de
agosto.
O autor Renato da Silveira (2006) nos explica que a Irmandade da Nossa Senhora
da Boa Morte de Cachoeira foi fundada em um momento de grandes mudanças e feitos
para as tradições religiosas africanas no Brasil, como a fundação do culto aos eguns da
Ilha de Itaparica e a grande reestruturação do Candomblé da Barroquinha. A Irmandade
da Boa Morte cumpriu e cumpre até os dias de hoje, uma importante missão para os cultos
afro-brasileiros:
Assim como a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios era a
fachada legal que abrigava o Candomblé da Barroquinha e a associação
política dos nagôs-iorubás, a Devoção da Boa Morte abrigava a
Sociedade Geledé, ou pelo menos sua direção era integrada pelas
mesmas pessoas. Os dados disponíveis apontam para uma irmandade
mais aberta, com a participação de crioulos e malês, enquanto que a
devoção parece ter sido mais fechada, exclusiva de mulheres nagôs-
iorubás, exceção feita às suas descendentes crioulas e eventuais aliadas
de outras etnias africanas (SILVEIRA, 2006, p.454).
207
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Podemos assim pensar que originalmente a Boa Morte não era uma
irmandade no modelo que concebemos todas as outras que existiram
em todo o Brasil, e sim um grupo de mulheres economicamente
emancipadas e idosas, que se organizava num grupo feminino de
representação de status, que se reunia anualmente para celebrar seus
ancestrais, mascarada sob o culto de assunção e morte de Maria.
(NASCIMENTO, 1999, p. 109)
2
Corporação político-religiosa feminina, de origem Ketu, que celebrava forças cósmicas e seus poderes,
seus cultos tinham ligação com as divindades associadas a fertilidade e a terra.
3
Compromisso era o documento que regulamentava o funcionamento das Irmandades em todo o território
da colônia, perante a Igreja Católica, segundo as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” do
ano de 1707. O compromisso funcionava como um regimento da organização, onde era exposto qual a
função detalhada de seus irmãos e quais eram suas atividades.
208
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4
As comunidades e organizações negras foram constituídas em meio a desagregação familiar que é
resultado do tráfico de escravizados e as dificuldades vividas por essas pessoas. As tentativas de construção
de um vínculo familiar eram frequentemente destruídas por vendas de escravizados, sendo assim, os valores
culturais e os laços criados foram fundamentais para a recriação social e cultural afro-brasileira.
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO; 2006)
209
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agosto5 antes da festa, para se definir a organização da festa do ano seguinte. Os cargos
assim como os das irmandades convencionais são Escrivã, Tesoureira, Procuradora Geral,
Provedora e Juíza Perpétua, cargo ocupado pela irmã mais velha da irmandade.
Desta maneira, a Devoção da Boa Morte se mostra uma instituição essencial na
construção e permanência de identidades afro-brasileiras nas terras da América,
preservando ao longo de sua existência, a memória de mulheres negras do período
colonial até os dias de hoje.
O autor Marcos CARVALHO (2006, p.15), que escreveu sobre a trajetória de
Gaiaku Luiza, afirma em relação a Boa Morte, que:
5
A festa da Nossa Senhora da Boa Morte acontece dos dias 13 a 17 de agosto, na sede da Irmandade e
uma semana antes, as irmãs decidem a comissão da festa do ano seguinte.
210
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6
Sobre a dupla pertença religiosa, (SANTOS, 2018, 135) nos explica que a inserção em uma irmandade de
culto católico concomitantemente com o fato de ser filha de santo, possibilitou a preservação de tradições
e a criação de novos cultos. Permitindo tanto a devoção aos santos católicos quando aos seus orixás de
maneira coexistente.
7
Em seu texto, “Olhares sobre os candomblés na encruzilhada: Sincretismo, pureza e fortalecimento da
identidade”, (FLOR DO NASCIMENTO, 2017) denomina de sincretismo interno, aquele que se deve a
história de nascimento dos cultos que agruparam divindades no Brasil, quando tais divindades eram
cultuadas separadamente no continente africano. Tal fenômeno não envolveu elementos religiosos que não
fossem provenientes das práticas africanas, elemento essencial para o nascimento dos candomblés. O
sincretismo estratégico se caracteriza por ser uma tática de sobrevivência das crenças africanas,
estabelecendo uma ligação com um santo cristão, sem que essa relação afetasse negativamente nos cultos
tradicionais.
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212
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As detentoras do Awo
O “problema” da metodologia
8
Awo em Iorubá, significa ‘segredo’ elemento essencial presente nas religiões de matriz africana.
213
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que se dedicam ao estudo da História, que não existem trabalhos de pesquisa que não
possuam suas escolhas políticas. Por consequência, é sabido o porquê de temas que
envolvem candomblés, macumbas, calundus, batuques e outros cultos e tradições de
pretas e pretos, assim como este aqui trabalhado, não são abordados por alguns cientistas
e quando são, trazem uma visão completamente estereotipada e distorcida das realidades
vivenciadas, a serviço de reforço de estereótipos racistas e imaginários.
O relato oral sobre as memórias individuais diz muito, não apenas sobre o que está
sendo contado, diz também bastante sobre quem está contando tal relato e quais são suas
concepções e visões, devido ao fato de que estas memórias são construídas através do que
foi representativo sobre o passado para quem está trazendo um depoimento. Além disso,
é importante salientar que existem conexões entre as memórias pessoais e as memórias
coletivas, enquanto que, relatos pessoais, quando colocados em conjunto, apontam para
relatos construídos por uma memória coletiva, agregando valor a estes sinais que não
variam. (POLLAK, 1992).
Nas comunidades provenientes da diáspora africana, a memória é preservada e
transmitida através da oralidade, diferentemente da tradição eurocêntrica, que prioriza a
escrita em favor da palavra falada. Segundo HAMPATÉ BÂ (1982, p.180), as tradições
africanas prezam pela oralidade como canal de transmissão de conhecimento, poder e
representam sabedoria e autoridade. O autor explica que a importância dada a cada uma
das maneiras de transmissão de conhecimento, se dá de acordo com o valor que a própria
sociedade em questão atribui a tal forma de transmissão:
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apegaram a escrita e uma grande valorização das representações criadas pela memória.
(HAMPATÉ BÂ, 1982, p.180)
No contexto das Irmandades Negras, a oralidade se faz essencial para
compreensão de vivências dos indivíduos ou de entidades inteiras, no sentido que trazem
à tona dimensões acerca do passar do tempo e revelam diferentes percepções tanto com
o que é falado, quanto o que não é falado, trazendo novas possibilidades para o estudo da
organização. (SANTANA, 2013, p. 38–40)
Além do validade e importância da palavra dita e do cuidado com a transmissão
do conhecimento através da fala trazido como herança da travessia de África, existe o
fato de que o sistema escravagista dificultou bastaste as possibilidades de letramento de
escravizados, especialmente após 1835, quando foi proibido que escravizados
frequentassem escolas (PERES, 2020, p.162), tornando assim, a oralidade como meio de
comunicação mais eficaz e de maior entendimento para a população preta.
Assim como a Boa Morte, outras organizações também não possuem acervo
documental escrito que possam servir como fontes comprobatórias escritas de sua
fundação, funcionamento, porém isso não pode ser um impeditivo para seu estudo e para
seu devido reconhecimento.
A aclamada autora Nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie, em seu discurso,
posteriormente publicado como o livro: “O perigo da História Única” fala de maneira
simples e certeira sobre o ponto:
215
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Conclusão
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro
no Brasil. Salvador, Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília, DF: Fundação Cultural
Palmares, 2006.
Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Festa da Boa Morte. Salvador:
Fundação Pedro Calmon / IPAC, 2011
216
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FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi (Rio J.),
Rio de Janeiro, v.3, n.5, p.314-332, Dec.2002 . In:
https://www.scielo.br/pdf/topoi/v3n5/2237-101X-topoi-3-05-00314.pdf Acesso em: 25
set 2020.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, Vol.
5, n. 10, 1992
217
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020
REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da
Escravidão. Tempo, Rio de Janeiro, vo.2, nº3, 1996.
TVE BAHIA, Irmandade da Boa Morte | TVE Bahia. Youtube, 02 dez 2019. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=zkV5EWEm_iQ Acesso em: 20 set 2020.
218
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Fiz meu ensino fundamental em uma escola evangélica e ali compreendi que a
religião que eu praticava não era igual a de meus colegas da Escola Batista que
frequentava, pois eles seguiam os fundamentos de um livro “sagrado”, a Bíblia. Era ao
redor deste livro que nos reuníamos nas aulas de religião e nas celebrações das diversas
datas comemorativas. Os professores usavam todas suas capacidades pedagógicas para
explaná-lo. Foi com essa sede de descobrimento do mundo, em um sistema letrado, que
me vi ávido por livros que falassem sobre o candomblé.
Assim, no começo de minha adolescência, na casa de uma mãe de santo de
Xangô, descubro um volume de um livro de Pierre Verger: Orixás: deuses iorubás na
África e no Novo Mundo (1981). Aquele livro me foi mostrado como algo importante,
que continha segredos, e me foi permitido folheá-lo enquanto meus pais realizavam as
cerimonias rotineiras do terreiro. Além de um texto muito atrativo, o que me chamou
muito a atenção foram as inúmeras fotos que esse autor fizera tanto na África quanto no
Brasil, mostrando as semelhanças ritualisticas entre esses dois territórios.
Foi a primeira vez que pensei em nossa religião para fora do terreiro,
atravessando fronteiras e tradições longínquas. Para os adeptos do candomblé, um
trabalho como o de Verger nas mãos de um número cada vez maior de adeptos
escolarizados acabou por transformar a realidade dos cultos afro-brasileiros, criando no
imaginário das religiões de matriz africana no Brasil, a busca pela África. A
Antropologia, neste sentido, foi decisiva na configuração do candomblé atual e os
trabalhos nascentes das experiências dos antropólogos em torno das casas eleitas como
tradicionais, contribuíram para a primazia das casas de nação Nagô.
1
Mestre em Estudos Étnicos e Africanos/ CEAO/UFBA. E- mail: rychelmy@hotmail.com.
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apresentam seus percalços, como a perseguição sofrida pelas casas de culto pela polícia,
que constituiu como crime a prática ritual, logo, a relação imagética deveria ser evitada,
para não virar prova irrefutável de contravenção penal. A proibição que se deu para que
as pessoas não fossem fotografadas nas casas de culto, ou mesmo em estados de transe,
foi então atribuída a uma suposta aversão das divindades; porém, desde a década de
1940, os registros de pessoas e de cerimonias feitos nas fotos de Verger, por exemplo,
vêm desencadeando questões e debates em torno do tema. A antropologia, de alguma
forma, conseguiu fazer registros que se tornaram históricos.
Para nosso melhor diálogo, analisarei como a imagem do orixá Exu, que
carregou o estigma da demonização como herança do sincretismo religioso, vem sendo
transformada no decorrer dos últimos anos. Exu é o Orixá mais humano entre todos,
nem completamente bom, nem completamente mau.
Desde o contato da cultura europeia com o continente africano, o choque
cultural esteve presente e o imaginário eurocêntrico atribuiu ao orixá uma carga
negativa, seja devido ao seu caráter humano, à sua sexualidade aguçada, ou à forma
antropomórfica, principalmente fálica, de seus objetos de culto, levando vários
missionários a criarem a partir deste orixá o diabo cristão. Logo, no processo de
cristianização, Exu torna-se a fonte de todos os males, a personificação do mau. A
identificação desse orixá com o diabo se consolidou nos dicionários e nos escritos de
diversos estudiosos desde o começo da colonização até os dias atuais, como em
Crowther (1852), Maupoil (1938) e Abraham (1958); e foi essa mentalidade propagada
pelo colonizador que encontrou eco no Brasil colonial.
Na construção do candomblé, na busca pela legitimidade de um culto aceitável
pela sociedade, o culto a Exu deveria ser escondido aos olhos dos não iniciados. Isso
influenciou o modo como o xirê, a roda constitutiva das cerimonias públicas, foi
instituído. Exu deveria ser agradado a portas fechadas antes das festividades públicas,
para não aparecer ao público em geral e para não atrapalhar a festa. A fim de fazer a
comunicação entre os humanos e as divindades, mediador entre estes dois mundos, foi
impossível anular o culto ao Orixá, mas seu ritual se tornou interno e secreto. Até hoje,
nas casas tradicionais da Bahia, as cantigas aos orixás no xirê começam pela saudação a
Ogum.
Na liturgia iorubá, para além das ideias colonialistas, Exu é um orixá muito
complexo. Ligado ao começo da vida na terra, ele é o equivalente ao Adão cristão, a
massa primordial que ganha vida com o sopro divino de Olodumare, tendo nessa forma
221
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Embora a figura fálica seja um dos mais importantes atributos em seus objetos
de culto, esta nem sempre está representada de forma óbvia, sendo comum que o orixá
seja representado por um chapéu que cai por suas costas, numa cauda fálica, ou por
vezes em esculturas com penteados fálicos. A sexualidade pode ser também
representada pelo prazer oral, em várias esculturas, como no ato de chupar o próprio
dedo, assobiar ou tocar flauta. À Exu são atribuídos ainda os sonhos eróticos, o
adultério e toda relação sexual ilícita. Para entender esse processo, devemos levar em
consideração também os valores sociais vigentes nas sociedades africanas, a relação
com o corpo e a necessidade da fertilização, de ter famílias grandes, para o sucesso
social e financeiro das mesmas.
Exu, no Brasil, mantém alguns de seus atributos, porém, com a socialização dos
negros africanos e a construção de novas formas de culto, como a umbanda e a
quimbanda – religiosidades construídas no sincretismo – as associações ao diabo cristão
começam a moldar o imaginário popular de maneira diferente da Africana. Dessa
associação, nasce a representatividade do tridente, arma de Netuno na mitologia
romana, ou seu equivalente Poseidon na mitologia grega, bem como de demônios
inferiores que passam a fazer parte do imaginário religioso coletivo. A imagem da
mulher, em sua associação com Exu, associa-se à figura da Pombagira, considerada uma
mulher lasciva, promíscua e de caráter ambíguo. Essa associação ao diabo se torna
222
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evidente também nas diversas imagens vendidas pelas lojas especializadas em cultos
afro-brasileiros, quando é representado por uma tez de cor vermelha e com chifres. No
Brasil, principalmente na umbanda, Exu está associado a espíritos “menos evoluídos”:
Os exus são, pois, os escravos que não aceitam seu destino, que se
revoltam contra os senhores, que os matam com o veneno e a
feitiçaria. Nos cosmos umbandistas, são depreciados, situados fora do
mundo dos espíritos evoluídos, nas trevas da ignorância, mas, ao
mesmo tempo, valorizados em razão do poder que essa posição
marginal lhes dá. São poderosos por serem impuros (CAPONE, 2009,
p. 102).
223
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matrizes não o iniciem, é cada vez mais comum que as casas que descendem delas o
façam. Nos últimos anos, podemos ver casas tradicionais iniciando homens pra Exu,
como o Pilão de Prata, o Terreiro do Cobre e o Opô Aganju.
Nas casas onde se inicia Exu, existe o cuidado de delimitar quais as fronteiras
entre o que é cristalizado na africanidade e os modelos de culto organizados a princípio
no Brasil. Até mesmo em casas matrizes é usual, por exemplo, o uso de assentamentos
rituais com tridentes, atribuição, como já foi colocado, do culto a Exu no novo mundo.
É sempre um dilema em muitas casas a feitura ou não deste orixá, pois, por um lado, se
busca a legitimação de uma raiz nobre, quanto mais esteja ligada a uma casa matriz,
pela fidelidade à sua tradição — portanto, quanto mais “pura”, mais difícil se torna
realizar a iniciação. Por outro lado, uma pessoa que se propõe a cultuar este orixá
demonstra ser um sacerdote ou uma sacerdotisa com um conhecimento do culto muito
grande, uma vez que é capaz de manipular o axé de um orixá tão poderoso e raro.
Os escritos e registros imagéticos de Verger sobre Exu (1999), tanto na África
quanto no Brasil, buscam legitimar as imagens do culto africano. Em nenhum momento,
em suas obras, ele fala sobre como o orixá é representado usualmente, tampouco
fotografa imagens ou assentamentos ao modo brasileiro tão comum em casas
tradicionais, até mesmo nas casas onde realizou suas pesquisas e era ligado às liturgias.
Ele deu ênfase a poucos assentamentos que mantinham uma ligação mais estreita,
porém menos comum, com a África. No capítulo em que o autor fala sobre Exu no
Brasil, há certa contradição, pois, segundo os informantes aos quais ele recorre para a
pesquisa, existiriam 21 qualidades de Exu, as quais descreve com nomes africanos,
como Alaketu, Lonan, Jelu, Jigidi, dentre outros. Nos dois parágrafos seguintes, ele
descreve a casa de uma iniciada para Exu, onde encontra diversos assentamentos do
orixá. Porém, com nomes característicos da umbanda, como: Sete Facadas,
Mulambinho, Vira, dentre outros, e, de certa forma, faz vista grossa para esses deslizes
etnográficos.
É interessante que em um retrato feito por Verger na década de 1940 há um
registro da incorporação de uma Iaô de Exu, de um modo que não seria provável,
devido ao entendimento que se tinha deste orixá na época. O capacete pontiagudo, que
no mito africano esconde uma faca na cabeça de Exu, os símbolos fálicos em sua
cintura, as cabaças, as fileiras de búzios e o colar de chifre de boi, bem como o ogó,
bastão em forma de falo, são elementos do culto iorubá resgatados nos últimos anos,
principalmente devido ao contato com africanos e o crescimento do culto a Ifá.
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Questiono-me se essa construção fotográfica não teria forte influência de Verger, visto
que se sabe que ele fazia a ponte cultural e litúrgica entre África e Bahia no vai-e-vem
de suas pesquisas.
Outro dado que corroboraria para essa “montagem” realizada por Verger é o fato
de que, como é sabido até mesmo pela tradição oral, a iaô fotografada, Sofia de
Mavambo, não era da tradição ketu, tendo sido iniciada pelo Tata Ciríaco do Tumba
Junsara, casa tradicional da nação angola.
Podemos observar, nas três fotos de Sofia disponíveis na Fundação Pierre
Verger, que o orixá não está dentro de uma roda de candomblé, como todas as outras
fotos do transe sagrado de outros orixás — está paramentado sozinho, do lado de fora
da casa. Questiono-me se essa construção fotográfica não teria forte influência de
Verger, visto que ele fazia a ponte cultural e litúrgica entre Áfricas e Bahia no vai e vem
de suas pesquisas.
O que posso afirmar é que havia, sem sombra de dúvidas, um grande
intercâmbio entre intelectuais e artistas da época. É notável que há, por exemplo, uma
grande semelhança entre o Exu fotografado por Verger e o idealizado nos desenhos de
Carybé: a mesma roupa, os mesmos instrumentos, paramentos e a mesma postura
corporal, mostrando que essa construção imagética atravessa os meios acadêmicos,
artísticos e culturais. Na prancha esculpida em madeira que se encontra no Museu Afro
da Universidade Federal da Bahia, localizado na histórica Escola de Medicina, que fica
no Pelourinho, nota-se que Carybé continua idealizando, como Verger, um Exu nos
moldes da tradição africana, não esquecendo, porém, mesmo que discretamente, de
expor um tridente.
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O culto a Exu, como orixá africano, é uma realidade, sendo, hoje, a resistência à
sua iniciação uma prática de pouquíssimas casas, que carregam a alcunha de
tradicionais e procuram se manter fiéis às suas ideologias iniciais. A foto de Verger,
assim como a arte de Carybé, cristalizou uma forma característica de ser desse orixá que
foi replicada por algumas casas de santo, sem maiores problematizações. Entretanto,
enquanto um babalorixá e pesquisador que sou, sinto na pele uma parte da natureza
dinâmica e inexplicável desta divindade. Também tenho feito da parte explicável, uma
bandeira de luta tanto para o entendimento deste Orixá na sociedade, quanto com a
finalidade de colocar na gira epistemológica saberes e fazeres oriundos destas matizes.
Para tanto, o trabalho de reflexão e descolonização de sua imagética, bem como de
elaboração de novas imagens, desponta como possibilidade da construção de novas
narrativas a partir de olhares negros.
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Referências
ABRAHAM, R.C. Dictionary of Modern Yoruba. London: University of London Press.
1958.
BOUCHE, P-B. Sept Ans en Afrique Occidentale: la Côte des Esclaves et le Dahomey.
Paris: Plon, Nourrit & Cie. 1885.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: pade, àsèsè e o culto Égun na Bahia.
14a ed. – Petrópolis: Vozes, 2012.
VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos
os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. Tradução: Carlos
Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
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Começo
Mbanda Nzila
1
Universidade de Brasília. Email: css.ana@hotmail.com
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conforme Tata nos diz, não se aprende nos livros. Portanto, malembe aos mais velhos
caso o que eu diga aqui esteja indevido.
Assim, sendo uma ndumbe recém chegada, reconheço que pode haver diversos
equívocos aqui, por isso ensaio essa reflexão. No entanto, me recordo de um recém
muzenza, um amigo, que dizia: “você, criança, hierarquicamente não tem muita
importância, mas tua fala pode nos trazer/lembrar algo importante, justamente por
perceber tudo pela primeira vez”. À vista disso, meu desejo é de transgredir. Por
associação, teço uma rede que propõe minhas vivências e aquilo que mestres e mestras
como Bispo dos Santos, Ailton Krenak, Beatriz Nascimento, minha avó e outras e
outros mais velhos já discorriam.
Meio
Pois bem, era dia 12 de outubro no calendário gregoriano. Nesse dia, aqui no
Brasil, temos o feriado em comemoração ao dia de Nossa Senhora, e também ao dia das
crianças. Os nossos referenciais, como sempre, são capitalistas, uma vez que dia das
crianças é o dia de comprar brinquedos e gastar dinheiro em parques e ambientes de
recreação. Nossa sociedade modernizada não é capaz de celebrar as crianças como
possibilidades de cura para o futuro; pelo contrário: a data é um reforço das práticas de
consumo exacerbado. Próximo a data há um grande investimento em publicidade a fim
de alcançar o interesse dos pequenos com parafernálias de plástico – tudo isso me faz
rememorar a crônica e a bola de Veríssimo.
Ademais, o dia de Nossa Senhora é um feriado católico. Lembremos que o país é
laico, mas sabemos que, entre outras coisas, essa é só mais uma formalização; a nossa
burocracia, cheia de seus rococós, serve, na verdade, para manter o estado de coisas. O
Estado junto à modernidade e suas ordens políticas e econômicas não prioriza a
verdade, mas a conveniência. É por isso que descaradamente o país permanece sob
grande influência euro-cristã.
Pois bem, estamos no terreiro e, nesse momento, Pai Lua Branca começa os
rituais. Ele é um caboclo encantado, o que significa que, conforme ele mesmo diz,
esteve em terra e um dia não pisou nela mais. Encantado é esse ser que nem vive, nem
morre, mas se encanta e faz história nas histórias dos outros a partir de suas próprias
histórias.
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Relembro bem! Ele sabe e compartilha o conhecimento de que nada nos impede
de sermos devotos de Maria Padilha e de uma santa; um boiadeiro e Santo Antônio;
tudo ao mesmo tempo. Sua fala vai de encontro a uma das maiores referências
intelectuais vivas que acredito termos no Brasil. Não o chamarei de intelectual negro,
pois ele mesmo não admitiria isso. Ele é um ancião, alguém que veio antes, alguém que
teceu e desteceu muitas redes e, por isso, hoje tem muito a ensinar. O Mestre Antônio
Bispo dos Santos, quilombola e morador da comunidade Saco do Curtume, no Piauí,
evoca sobre a potência do contracolonialismo, essa força que nos permite ir além das
nossas próprias cosmossensações. A epistemóloga Oyěwùmí (1997) retrata bem o termo
ao cunhá-lo, definindo enquanto “um modo inclusivo de descrever a concepção do
mundo por diferentes grupos” (p. 2-3).
Isso porque somos capazes de ter conhecimento do mundo para além da
racionalidade advinda da modernidade. Enxergamos para além da visão positivista,
ouvimos para além de nosso aparelho auditivo, dizemos muito mais com nossos corpos
que com nosso aparelho fonador. Há algo além que permanece tradicionalmente em
nossa memória e, por isso, cosmossentimos. O próprio Mestre Bispo nos lembra de
como tivemos a capacidade de ter adicionado em nossa percepção cósmica a crença do
colonialista. Isso só foi possível, pois somos povos plurais. O colonialista é monoteísta,
nós não.
Pois bem! Esse encantado, Pai Lua Branca, transcende os limites do que se
imagina de um terreiro. Isso porque, curiosamente ou não, é extremamente católico e
devoto de Nossa Senhora Aparecida, de modo que, em todo 12 de outubro, um terço é
rezado em homenagem à santa. É Mestre Bispo dos Santos que lança crítica aos saberes
lineares e monoteístas em oposição a nós, politeístas, ao dizer que:
230
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p.22); depois complementa que “é aqui que mais uma vez a nossa Linguagem precisa
gingar para entender o que está se fazendo presente” (idem). Em consonância, Mestre
Bispo conclui: o que demonstra se um povo está dominado/colonizado ou não é a forma
como se porta. Logo, se o Caboclo é católico ou não, torna-se o menor dos “problemas”
em nosso terreiro.
Mais uma vez me recordo dos relatos de Saraiva (2020) e o Tambor de Mina nas
festas de São Pedro e São Marçal presentes na pesquisa do intelectual. Segundo Saraiva
o código que é detectado nas festas é euro-cristão, mas a essência das celebrações é
afro-pindorâmica-pagã-politeísta. Tudo isso só é possível quando reconhecemos a
pluralidade dos saberes orgânicos (SANTOS, 2019) presentes nos calundus, nos
quilombos, na capoeira, no samba e em tudo que gira. Tudo isso só é possível quando o
mais novo permite olhar para o mais velho e encontrar nele uma sabedoria viva. Assim,
***
A ideia da transfluência a qual se propôs Mestre Bispo dos Santos não é muito
diferente do que falou Ailton Krenak em A vida não é útil (2020). Krenak é uma
liderança, um mestre, um disseminador de saberes da contemporaneidade; ele sabe que
é possível ouvir a voz do rio, das montanhas, da floresta. Fico honestamente encantada
em como suas palavras parecem ser aquilo mesmo que Mestre Bispo nos fala, ou seja,
ideias que transfluem. Tudo isso me leva a crer que, de fato, estamos em um momento
de nossa contemporaneidade que, se continuarmos levando adiante ideias arcaicas e a
caminho da falência como as de Platão e Kant, continuaremos regredindo. Os saberes
reais e relevantes não estão em livros clássicos, mas no conhecimento passado por
gerações de nossos ancestrais da terra e nossos ancestrais africanos.
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Mestre Bispo dos Santos nos diz que “nosso olhar está voltado para a beleza [...]
Assim como a água transflui, por baixo da terra ou pelo ar, nós transfluímos pela
cosmologia e pela cultura” (SANTOS, 2019, 24). Foi transfluindo com nossos
ancestrais da terra que sobrevivemos diante da extorsão colonialista. Quando volto ao
terreiro, volto a aprender a base. Agradeço aos meus antigos.
Sendo uma profissional da linguagem, aprendo a ensinar que a linguagem é a
habilidade que se restringe aos seres humanos de comunicarem-se por meio de uma
língua. Língua será um sistema constituído de signos vocais (com exceção das línguas
de sinais) utilizados em dada comunidade linguística (MARTELOTTA, 2016). Desde
Saussure, o pai da Linguística, é dito que a linguagem é uma habilidade exclusivamente
humana, mas tenho uma forte tendência em desacreditar nesse princípio básico dessa
ciência.
Lembro de Altaci Rubim, mulher indígena do povo Kokama. Ainda na época do
mestrado, estava eu atuando enquanto sua estagiária na disciplina “Introdução à
Linguística” na Universidade de Brasília. Diante problematizações que permeiam as
diversas correntes linguísticas, a Professora Altaci nos diz: “Gente, eu ensino isso que é
programado, mas honestamente não consigo acreditar. A Linguística diz que a
linguagem é exclusivamente humana, mas quando o pássaro pia, eu sei o que diz. Eu
converso com o pássaro”. Não posso deixar de revelar o meu estado de choque no
momento. Altaci declaradamente foi de frente com o princípio básico da Linguística e,
honestamente, foi ótimo ouvir algo tão real.
Tiradas todas as barreiras do positivismo que ainda pairam nas ciências
firmemente, Altaci conseguiu simplificar para mim o conhecimento de algo que tem
feito cada vez mais sentido na vivência do terreiro. Quando entro no terreiro e peço
licença a Pambu Njila, eu me comunico com o guardião que, desde a “minha decisão”
de ir ao terreiro, autorizou que eu estivesse lá. Quando, de pés descalços, lavo meu
corpo e meu mutuê com kijauá, me comunico com as ervas que preparam meu corpo e
tiram qualquer carrego que possa obstruir o ngunzo que receberei. A bênção que peço
de meu Pai ao mais novo é mais do que uma bênção concedida por aquele ser
materializado, pois tenho a cosmossensação que toda uma herança de seres está presente
no ato. O tambor que toca se comunica com a entidade; a entidade autoriza que as mãos
de toque dos Tatas toquem para ela. Quando eu rodo no terreiro, minha dança é a
comunicação sagrada. A galinha comunica-se com todos nós; ela tem o propósito de
uma obrigação, de uma missão divina; ela sabe para que veio; ela é sagrada por
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alimentar uma energia sagrada, portanto, não sou melhor que ela, uma vez que “os
outros seres são junto conosco” (KRENAK, 2020, p. 71).
Aliás, é a partir do alimento que me comunico com minhas entidades. Recordo-
me do dia que fui até minha casa a fim de realizar um fundamento direcionado a
Ndanda Lunda, Nkise que representa as águas doces, a fertilidade e outras coisas mais
que só saberei vivendo o terreiro. Eu estava gestante, na época, e esse fundamento foi
solicitado por uma entidade. Bem, se a comunicação com Nkise se dá pelo alimento, é
por isso que o alimento é tão sagrado para nós. Tatetu Kanamburá disse ao final “é de
Ndanda Lunda, essa menina tua; ela vai mamar muito, você terá muito leite”. E assim
foi. E assim é. Oferto alimento, recebo alimento, dou alimento, e tudo circula. Segundo
Saraiva, “nossos mortos sentem fome. Iku também come” (SARAIVA, 2020, p. 20). A
isso, o autor chamou de “Filosofia da Fome” ao dar-se conta do “alimentar e do fazer-
alimentar” presente nas festas negras (idem).
Toda a resistência de nossas tradições me faz pensar no que chamarei de
metafísica do quilombismo que atravessa os espaços pretos. Pareceu e ainda parece um
atrevimento o que Abdias Nascimento dizia desde a década de 70, mas seus saberes
transfluem na sabedoria de Mestre Bispo. O quilombismo é a força motriz do
contracolonialismo. Em síntese, se o quilombismo se apresenta nas formas associativas
que desempenham “um papel relevante na sustentação da continuidade africana”, temos,
por excelência, uma prática contracolonial, uma vez que não permite que o colonialismo
adentre os espaços de resistência.
“Quem deve desmanchar o colonialismo é quem tentou colonizar”, já dizia
Mestre Bispo (2019, p. 24), “então devemos contracolonizar: impedi-los de fazer”
(SANTOS, 2019, p. 25). Vejamos: essas associações formaram e ainda formam “uma
unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma
prática de libertação e assumindo o comando da própria história” (NASCIMENTO,
2019, p. 281). É como Beatriz Nascimento, grande historiadora brasileira, já dizia, que
“os homens e seus grupamentos, que formaram no passado o que se convencionou
chamar ‘quilombos’, ainda podem e procuram fazê-los”. O quilombo passa a ser, nesse
sentido, a práxis contracolonial.
Mestre Bispo dos Santos reconhece essa práxis nas favelas. Para ele, a favela
não é a margem do centro, mas uma centralização em si mesma. Para ser margem,
pressupõe-se que faça farte, mesmo que minorizada, de um centro; mas o que
percebemos nas comunidades faveladas é que, não fosse a força comunitária, não
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haveria existência. O centro centralizador e dominante não passa de uma parte opressora
do qual procuramos nos esquivar para não morrer (de fome, de bala, de depressão que
seja). “Comunidade é feita de pessoas e essa sociedade é feita de posses” (SANTOS,
2019, p. 31). Enquanto mulher negra que não está no centro de dominação, me sinto em
comunidade em minha favela, em meu terreiro, em meus quilombos.
Nesses espaços, sinto que eu e minhas famílias “andamos em constelação”
(KRENAK, 2020, p. 39). Especificadamente no terreiro, tenho meu Pai e irmãos, mais
velhos e mais novos. Tenho outros Pais, e muitas Mães que, como Mestre Bispo disse,
carregam “um saber ancestral que nos ensina” (SANTOS, 2019, p. 32). As makotas
sempre sabem o que fazer com as crianças. Eu sou uma criança. E minhas crianças estão
no terreiro. E sempre há remédio para tudo. Para o menino que não tem obedecido,
benzimento e água de canjica no mutuê. O peito empedrou? Repolho. Umbigo estufado?
Cueiro e botão! Dor de cabeça? Tome esse chá e cubra esse mutuê. E todos,
absolutamente todos, cuidam de minhas crianças, cuidam de mim, que sou uma criança.
E assim vamos rodando.
Se sou criança, há ainda mais segredo. “Não olhe para o quartinho que você não
tem idade para isso”. “Não fique aqui dentro”. “Use sua cinta”. “Não pode deixar
comida no prato”. “Não pode roer osso”. “Mulher não pode fazer isso”. “Homem não
pode fazer aquilo”. E por quê? Só saberei vivendo, porque a tradição é viva e orgânica.
Francamente, não há feminismo europeu que me faça crer que é um desprestígio
estar na cozinha quando estou no terreiro. Dar e receber o ngunzo que o alimento
sagrado me proporciona é uma sensação de fazer parte do todo. Aliás, ainda sobre o
quilombismo no terreiro, esse espaço contracolonial, penso sobre os hábitos
alimentares. Ao contrário do que dizem os radicais veganos, nosso consumo de carne é
sagrado. Diferente dos moldes de produção desenfreados, a alimentação é um ato de
sacralização. Dispensar a carne do bicho ofertado ao Sagrado é, no mínimo, uma
afronta. Me lembro de uma experiência de Mestre Bispo dos Santos:
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***
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Essas avós são várias; são mulheres comunicadoras que me ensinam mesmo
quando estão caladas. Eu as observo com a destreza das mãos que falam tanto. São
receitas, costuras, rezas, manias, garrafadas, plantações; são matanças de galinha,
feituras do sabão; é o bate-bate do pilão, a técnica de enrolar folha de bananeira; são os
diversos espaços de resistência nessa terra em diáspora. Como diz meu irmão de santo,
“o conhecimento só é válido quando é passado para frente”. Por isso estamos sempre
ganhando, pois “a colonização não é um fato histórico, é um processo histórico”, logo,
não perdemos ainda (SANTOS, 2019, p. 24). Nossos saberes estão vivos nas mãos de
nossas mais velhas e mais velhos, basta observar com respeito.
***
Com essa canção de caboclo vou encaminhando mais algumas reflexões antes de
ir ao começo de novo. Sim, aquele ciclo que Mestre Bispo já dizia.
Bem, eu amo dançar. É um poder natural. Acontece um verdadeiro estado
transeunte em que vou sem ir. Estou sem estar. A dança me liberta dos carregos
também. A mão de toque bate na pele do bicho no tambor e abre caminhos. Nossa
música é a louv’ação de chamamento ao encantamento. Dança, gira, ginga, vira, desvira
e poeira sobre à medida que os pés pelados batem na terra seca do barracão. No meio de
tanto suor, poeira, cura e alegria evoco Saraiva ao questionar “Será se aqui todo mundo
é caboclo?” (SARAIVA, 2020, p.19). Capaz. E eu não me canso. As mãos que tocam
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O terreiro é o lugar que busco uma memória a partir das vivencias. É a terra boa
para o banzo, é o retorno. É o caminhar para trás; é a tentativa de achar uma luz que
desobstrua o esquecimento, a pressão alta, a loucura que o colonialismo me empurra.
Busco entrelaçar meu corpo à memória e identidade fragmentados em mim. Busco
referenciar e reverenciar uma verdade. Eu morro em quase tudo que estive para
finalmente encontrar espaço em ser. O lugar para o princípio é a iniciação. Busco nesse
quilombo o nascimento. Esse nascimento pode ser o que Beatriz Nascimento chamou de
Orí, no momento que o compreende enquanto “a identidade individual, coletiva,
política, histórica” (NASCIMENTO, 1989 apud RATTS, 2006, p. 65). Dessa maneira,
Evoluir dói. Sair da ignorância dói. Entender dói. Não entender dói. Sozinha dói.
Junto, mais ainda. Morrer dói. Nascer, também. E a dor evolui. Eu quero voltar. Para a
base. Para o barro. Eu quero nascer de novo.
Começo de novo
Como Mestre Bispo falou, o colonialista nos denomina a fim de nos enfraquecer
com palavras vazias. Porém, em nossa atuação contracolonial de resistência, sabemos
ser necessário não alegorizá-la e compreendê-la para além das rodas de samba, rodas de
capoeira e terreiros. Sabemos que essas giras se estendem aos quintais, cortiços,
aglomerados, batalhas de rap, slams, feiras livres e outros potenciais quilombos os quais
falavam Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento e que, atualmente, também trata
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Pois bem, era dia 12 de outubro no calendário gregoriano. Nesse dia, aqui no
Brasil, temos o feriado em comemoração ao dia de Nossa Senhora, e também ao dia das
crianças. Nesse dia, Pai Lua Branca batizou minha mais nova. Ela tinha 45 dias em
terra, apenas. Embora nunca tivesse presenciado um batizado antes, sei que aquele ritual
ocorrera aos moldes católicos. Um encantado incorporado em Tata Kanamburá dentro
de um terreiro angola batizando, aos moldes católicos, a minha criança... Beleza que
transflui e nada mais. Apesar de tudo, continuamos rodando.
Nzambi Wa Kuatensá
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Referências
HAMPATÉ Bâ, Amadou. A Tradição Viva. In: Ki-Zerbo, Joseph. História geral da
África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167- 2012.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2006.
SANTOS, Antônio Bispo. As fronteiras entre o saber orgânico e o saber sintético. In:
Organização OLIVA, Anderson Ribeiro...[et al]. Tecendo redes antirracistas: Áfricas,
Brasis, Portugal. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p.23-35.
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1
Professora na Unesulbahia-UniFtc/BA. Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia-UFBA. E-mail. cmirella93@gmail.com.
2
Professor do ensino básico, técnico, tecnológico e da educação superior no Instituto Federal da Bahia.
Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. E-mail.
aldemirfms@yahoo.com.br.
3
A Sra. Glicéria é filha do Pajé Sr. Lírio (Rosemiro Ferreira da Silva) e irmã do Cacique Babau. Ela que
auxilia o Pajé nos trabalhos espirituais e também puxa o toré nas festas religiosas.
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4
As Entidade com nome de Martim são também chamadas de Marinheiro trabalham na Linha de Iemanjá
e também de Oxum, que compõem o chamado “Povo da Água”. Observou-se que os indígenas também
cultuam alguns orixás como oxum, iemanjá, obaluayê e Oxóssi. Os demais não foram citados e/ou não se
manifestaram durante a festa de São Sebastião.
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Por volta das 08:00 da manhã todos os presentes foram levados para tomar o café
da manhã. Aos que quiseram contribuir na organização, foram orientados a ajudar na
confecção do almoço que seria servido às 12:00 horas e nos preparativos do caruru a ser
ofertado por Dona Maria às 15:30. Durante esse intervalo não tivemos programação
religiosa. Às 15:30 o salão de santo foi preparado para o caruru de Cosme e Damião 5. A
mesa foi montada com um pano branco no centro do salão. Em cima tinha a imagem de
Cosme, Damião e Doum, velas coloridas, flores, balas, doces, mel, vinho, pipoca, 3 bolos,
xinxim de galinha, vatapá e caruru feito com folhas de taioba. Por conseguinte, colocaram
as crianças mais novas em círculo para comerem e as cantigas começam: “São Cosme
mandou fazer duas camisinhas azul; no dia da festa dele São Cosme quer caruru”. Muitas
músicas foram cantadas e alguns indígenas começaram a incorporar, segundo relatos,
eram Cosme e Damião.
Após distribuírem as comidas, deu-se um intervalo e por volta das 19:30 serviu-
se o jantar para todos na aldeia. Haviam chegado mais pessoas, inclusive um ônibus com
as pessoas da redondeza. Muitos levaram barracas de camping, pois, as casas estavam
muito cheias. Após o jantar que se encerrou às 21:00 horas os festejos em homenagem a
São Sebastião continuaram. Deram início ao toré com cantigas parecidas ao do período
matutino como: “quebra a cabaça e espalha a semente; corta a língua de quem fala mal
da gente; E de quem fala mal da gente corta e arranca os dentes”. Aos poucos os
“encantados” foram se manifestando nos indígenas presentes e as cantigas e danças
continuavam initerruptamente. Os convidados foram chamados para entrar no toré
formando uma belíssima roda energética e espiritual. Outros optaram em ficar ao redor
da fogueira que fica em frente ao salão de santo. A festa em louvor a São Sebastião foi
até o dia amanhecer. Segundo relatos de Dona Maria toda a comida, bebida, flores e velas
que sobraram da festa são colocadas embaixo do altar na casa de santo e na primeira
quarta feira após a festa são ofertados aos encantados na natureza.
Considerações Finais
Terminamos esse relato com a certeza que voltaremos na aldeia indígena
Tupinambá da Serra do Padeiro. Foram muitos aprendizados com essa população de luta
e resistência, sobretudo, no que se refere a luta pela demarcação de terra, reconhecimento
5
Nas religiões de Matriz Africana como o Candomblé e Umbanda essas divindades são referenciadas como
Ibêjes.
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Referências
ALARCON. Daniela Fernandes. O RETORNO DA TERRA: as retomadas na aldeia
Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. Dissertação de mestrado em Estudos
Comparados sobre as Américas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Brasília, 2013.
6
É considerado o processo espiritual vivenciado pelos Tupinambás da aldeia Serra do Padeiro. As sessões
de “encante” passa por iniciação, obrigações, abertura e fechamento dos trabalhos espirituais. É considerado
o culto dos Tupinambás da aldeia Serra do Padeiro.
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ESCRITA ÌYÁLODÈ
Yuri Macedo1
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.29647
ARA WA R`ÓMI WÀ
ARA WA R`ÓMI WÀ
YÈYÉ OSUN
OMI OLOWO
(Canta Gilberto Gil e Marisa Monte)
1
Universidade Federal do Sul da Bahia. Email: yurimacedo@id.uff.br
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realizar suas invasões colonizadoras em diversos continentes, ao ver o outro, não refletia
uma imagem conhecida. Por meio de estereótipos (pré)definidos, as sociedades não
brancas e não cristãs estavam sujeitas a serem postas em questionamentos quanto às suas
capacidades.
Saliento ainda, acerca da Igreja, principalmente a Católica até o século XVIII, que
era a responsável por determinar quem era considerado humano ou não, tornando-se um
dos maiores processos excludentes de toda a humanidade, que até hoje estão enraizados
pelos processos racistas e intolerantes nas sociedades. Sob esse olhar da igreja, “pensava-
se na humanidade como um gradiente – que iria do mais perfeito (mais próximo do Éden)
ao menos perfeito (mediante a degeneração) –, sem supor, num primeiro momento, a
noção única de evolução” (SCHWARCZ, 1993, p.48).
Mbembe (2018) nos diz que a soberania é a capacidade de definir quem importa
e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é. A partir de Mbembe, e pelos
inúmeros silenciamentos que ocorreram nos processos escravagistas no Brasil,
principalmente daqueles que foram trazidos de África, se faz necessário trazer à tona todo
o conhecimento da “mulher-negra-não cristã”, enraizado de ancestralidade.
Sobre trazer à tona, as religiões afro-brasileiras como o Candomblé, Umbanda,
Catimbó, Jurema, Macumba, Tambor de Mina, Xangô, Jarê, Quimbanda, entre outras,
evidenciam que a mulher exerceu e exerce um papel importantíssimo e fundamental para
manutenção dessas religiões, pois, representam a força e importância do matriarcado
africano e afro-brasileiro, que nasce no contexto religioso, e que dele perpassa para o
movimento de resistência sociocultural dos “ex-escravizados”2.
Silva Simoni (2019), nos apresenta e afirma que, “se tratando de mulheres negras
e de religião, as perseguições são maiores, já que elas agregam os elementos motivadores
desta postura”. Evidenciamos que a religiosidade é também uma forma de conservar a
identidade, principalmente em um contexto de opressão, e as mulheres negras são um
exemplo desta afirmação.
A Escrita Ìyálodè, assim como a Pedagogia da Ancestralidade, descrita por
Kiusam de Oliveira em (2008),
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“Utilizaremos a palavra ex-escravizado, ao invés de escravo, mais uma vez por acreditar na força política
das palavras” (Passos, 2019)
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3
Força vital que promove o dinamismo do ser humano. É uma energia que existe nos seres e precisa ser
mobilizada e veiculada pelas relações, isto é, dada e retribuída. SÀLÁMÌ e RIBEIRO (2011)
4
Carneiro, S. (2005) define: “pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio
da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana
ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do
fracasso e evasão escolar”.
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Referências
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não ser como fundamento
do ser. Tese (doutorado) em Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SÀLÁMÌ, Sikiru (King); RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Exu e a Ordem do Universo. São
Paulo: Editora Oduduwa, 2011.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. SP, Companhia das Letras,2004.
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