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Calundu REVISTA

GIRA EPISTEMOLÓGICA: CIÊNCIAS DAS


MACUMBAS E OUTRAS ENCANTARIAS

VOL. 4. NÚM. 2
JUL-DEZ 2020
ISSN: 2526-9704
REVISTA CALUNDU
http://calundu.org/revista
https://periodicos.unb.br/index.php/revistacalundu

Gira Epistemológica:
ciências das macumbas e
outras encantarias
Volume 4, Número 2, Jul-Dez 2020
EXPEDIENTE E COMISSÃO EDITORIAL

Com o ISSN 2526-9704, a Revista Calundu é uma publicação on-line e semestral do


Calundu – Grupo de Estudos sobre Religiões Afro-brasileiras. O periódico publica
artigos em português e espanhol e conta com comissão editorial interdisciplinar.

A coordenação da comissão editorial é realizada pelas doutoras Tânia Mara Campos de


Almeida (editora chefe) e Gerlaine Martini (editora adjunta), que trabalham
horizontalmente e sem diferenciação hierárquica com os demais membros da comissão.

COMISSÃO EDITORIAL

Dra. Tânia Mara Campos de Almeida (editora chefe)


Dra. Gerlaine Martini (editora chefe adjunta)
Dr. Gabriel da Silva Vidal Sid
Dr. Guilherme Dantas Nogueira
Dr. Hans Carrillo Guach
Dr. Wanderson Flor do Nascimento

EQUIPE EDITORIAL

Adélia Mathias
Aisha – Angéle Leandro Diéne
Andréa Carvalho Guimarães
Ariadne Moreira Basílio de Oliveira
Danielle de Cássia Afonso Ramos
Francisco Phelipe Cunha Paz
Iyaromi Feitosa Ahualli
Nathália Vince Esgalha Fernandes

ii
CONSELHO EDITORIAL

Dr. Ariovaldo de Lima Alves, Professor Titular UNEB


Dr. José Jorge de Carvalho, Professor Titular da UnB
Dra. Karina Bidaseca, Professora da UBA – Argentina
Dr. Luís Ferreira Makl, Professor da UNSAM – Argentina
Dra. Rita Laura Segato, Professora Emérita da UnB
Dra. Yissel Arce Padrón, Professora da UAM-X – México

Autor corporativo: Calundu – Grupo de Estudos sobre Religiões Afro-brasileiras.


Departamento de Sociologia da UnB; Campus Universitário Darcy Ribeiro – Instituto
de Ciências Sociais – CEP: 70910-900
http://calundu.org
Editores-chefes do dossiê temático: Francisco Phelipe Cunha Paz e Luís Augusto
Ferreira Saraiva
Gestão editorial: Adélia Mathias e Guilherme Dantas Nogueira
Créditos da imagem da capa: Aisha – Angéle Leandro Diéne
Diagramação: Ariadne Moreira Basílio de Oliveira
Revisão ortográfica dos textos: Adélia Mathias e Gerlaine Martini

iii
A Revista Calundu é uma publicação acadêmica semestral on-line do Calundu – Grupo
de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras, que apresenta trabalhos escritos (artigos,
resenhas de livros e textos extensionistas), com a temática afrorreligiosa/calunduzeira.
http://calundu.org/revista, https://periodicos.unb.br/index.php/revistacalundu

NOSSA LINHA EDITORIAL

A Revista Calundu apresenta publicações na área das Ciências Humanas, com a


temática geral afrorreligiosa, trabalhada semestralmente por meio de números
temáticos. Os textos publicados são divididos em três grupos: (1) artigos acadêmicos;
(2) resenhas de livros recentes (publicados há no máximo 3 anos) ou antigos (públicos
há pelo menos 60 anos); e (3) textos livres com caráter extensionista, produzidos pela
comunidade afrorreligiosa, acadêmica ou não, de autoria própria ou de terceiros
trabalhando com material original de religiosos (entrevistas, ensinamentos orais,
discursos e palestras, etc.).

A temática afrorreligiosa é aqui entendida como aquela das religiões afro-brasileiras,


cujo fenômeno social hodierno se deriva de toda história e experiência dos Calundus e
da resistência do povo africano/afro-brasileiro escravizado no Brasil. É intrínseco a esta
compreensão a interpretação do Grupo Calundu (concorre para tanto bibliografia
especializada, e.g. SEGATO, 1986/20051, SILVEIRA, 20052, SANTOS, 20063), de que
as religiões afro-brasileiras foram formadas neste país, ao longo de séculos, a partir de
raízes afro-ameríndias e interações nem sempre diretas ou pacíficas com o colonialismo
católico português. Os textos aqui publicados devem seguir esta premissa editorial,
afastando-se, portanto, da premissa de que as religiões em pauta são mais propriamente
africanas no Brasil do que afro-brasileiras.

Há espaço, contudo, para que outras formas afrorreligiosas americanas (sendo a


América entendida como um continente amplo, que vai de sul a norte) façam parte dos
diálogos aqui apresentados. Com efeito, a compreensão de que religiões afro-brasileiras

1
SEGATO, Rita Laura. Santos e Daimones. Brasília: Editora UnB, 2005. Republicação de livro de 1986.
2
SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2005.
3
SANTOS, Edmar. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia.
Salvador: EDUFBA, 2009. Livro digital em formato Amazon Kindle.

iv
são resultantes de um processo sócio-histórico iniciado com a colonização do Brasil
pode ser estendida para outros cantos das Américas: religiões afro-
americanas/ameríndias são resultados da colonização das Américas, que contou com a
trágica vinda forçada de africanas/os para este canto do planeta, para fins de trabalho
escravo. O prisma teórico desta interpretação são os estudos decoloniais.

A Revista Calundu busca, por meio de textos livres de caráter extensionista e textos
especializados, ouvir e amplificar a voz da comunidade afrorreligiosa, acadêmica ou
não. Neste sentido, a revista assume um caráter extensionista, abrindo espaço para
outras formas de conhecimento, diferentes – porém não menos importantes – do que
aquela considerada científica.

Com os textos livres o Grupo Calundu busca trabalhar na revista, ademais e sempre
horizontalmente, com pensadores considerados como mestres populares, no sentido que
vem sendo desenvolvido pelo antropólogo José Jorge de Carvalho (apoiador do Grupo
Calundu), em seu trabalho com o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na
Pesquisa, ligado ao INCTI - Instituto Nacional de Ciência Tecnologia e
Inovação/UnB/MCTI. Em linhas gerais, mestres populares são aquelas pessoas
detentoras de um saber popular extenso e relevante, que pode perpassar conhecimentos
técnicos diversos, filosofias e modos de vida de toda uma comunidade. Exemplos de
mestres populares que vivem a temática afrorreligiosa são as/os diversas/os mães e pais
de santo das religiões afro-brasileiras.

v
Gira Epistemológica:
ciências das macumbas e
outras encantarias
Volume 4, Número 2, Jul-Dez 2020

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SUMÁRIO

A Gira que Resiste ao Mundo – Apresentação da Gira Epistemológica: 1


ciências das macumbas e outras encantarias
Guilherme Dantas Nogueira

Artigos

Maria Navalha e a Filosofia Popular Brasileira – um “trabalho” de campo 06


Rafael Haddock-Lobo

A Experiência do Teatro Negro e a Ideia de um Teatro de Nação através do 27


Baraperspectivismo
Rodrigo dos Santos

Acontecimento-Èṣù: a circularidade como trânsito contra colonialista 53


Luís Thiago Freire Dantas

As Griôs no Brasil: saberes e fazeres de mulheres negras através da 73


categoria tia
Angélica Ferrarez de Almeida

Iyás e Abebés: existências, resistências e lutas matriarcais afrodiaspóricas 90


Mauricio dos Santos e Anaxsuell Fernando da Silva

Pensar-Viver-Água em Oxum para (Re)Encantar o Mundo 108


João Augusto dos Reis Neto

Das Águas Ìyá Oxum: saberes ancestrais femininos em poesias negras 133
diaspóricas
Cristian Sales

vii
Aspectos Básicos sobre o Sujeito Individual e a Coletividade nas Religiões 156
de Matrizes Africanas
Joelcio Jackson Lima Silva e Thayná da Silva Felix

Ritualidades do Mistério Pessoal: o segredo de orixá no Batuque afro-sul 169


Marcus Vinicius de Souza Nunes

Voltando para a “Origem”? Considerações sobre o campo entre parentes e 183


os “segredos de família”
Ana Clara Sousa Damásio dos Santos

200 Anos não São 200 Dias: história, protagonismo e estratégia de 198
mulheres negras na Irmandade da Boa Morte (1820 – 2020)
Mariana Fernandes Rodrigues Barreto Regis

Textos livres

Orixá ou Diabo: a construção imagética de exu no brasil 219


Rychelmy Imbiriba Veiga

Ao Barro Voltarás: reflexões sobre a nascença 228


Ana Carolina de Souza Silva

Tupinambá Balanceia mais não Cai: identidade e espiritualidade na Serra 240


do Padeiro/BA
Cláudia Mirella Pereira Ramos e Aldemir Inácio de Azevedo

Escrita Ìyálodè 246


Yuri Macedo

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A GIRA QUE RESISTE AO MUNDO – APRESENTAÇÃO


DA GIRA EPISTEMOLÓGICA: CIÊNCIAS DAS
MACUMBAS E OUTRAS ENCANTARIAS

Guilherme Dantas Nogueira1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.35814

Há poucos dias assisti uma entrevista com o pensador Luís Simas2, bastante
inspiradora. Em sua fala, ele mencionava sobre a existência de dois Brasis: um,
normativo/normatizador, rígido e genocida, que formata, representa e oficializa o bem
sucedido projeto colonial – ou, no presente, acrescento, colonial moderno – de
domesticação, controle, exercício de poder sobre corpos, vidas, povos, saberes, etc.,
destoantes da branquitude eurocentrada. O outro Brasil é aquele não branco, que existe
nas brechas, nas margens, nas fendas do primeiro e que, embora combatido, violentado e
violado sistematicamente, ao longo de séculos escravidão, de dominação, de intentos de
exploração e posterior construção de uma nação e seu cruel e epistemicida Estado, segue
vivo, alegre e potente.
Simas fala, com efeito, de um fenômeno que não passa despercebido pela teoria
social, bastante bem denunciado já há anos, dentre outros, pela antropologia engajada de
Lélia Gonzales ou pela arte ativista de Abdias do Nascimento. Igualmente, já em tempos
mais recentes, pela erudição teórica do campo da Sociologia de Gênero e Raça brasileira.
Esta, recorrendo a diferentes linhas de estudos, nos lembra que no Brasil raça, gênero e
classe andam juntos e são marcadores do que é nacionalmente entendido como positivo
ou como negativo. Como bom e como mau. Como cobiçado e como rejeitado. Dialogando
com, e transcendendo para além desse campo, por meio de chave de leitura antropológica,
Rita Laura Segato (2007)3 qualifica esses referidos marcadores como capital racial
positivo ou capital racial negativo, que também operam com intersecções de gênero e
classe.

1
Tata Kambondo Mub’nzazi, da Cabana Senhora da Gória – Nzo Kuna Nkos’i. Doutor em Sociologia e
pesquisador colaborador do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Integrante fundador
do Grupo Calundu. E-mail: guidantasnog@gmail.com.
2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dnM5I5wWePs.
3
SEGATO, Rita Laura. La nación y sus otros Otros: Raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de
Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
1
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Noto, seguindo Segato, não ser exclusividade do Brasil esse fenômeno social de
existência de duas noções de coletividade, sendo uma inclusiva a tudo e a todos e a outra
excludente, racista, patriarcal, classista, colonizadora. Pelo contrário, a teoria social
latino-americana já há muito – Dom Leopoldo Zea, dentre outros, que o diga – denunciava
o ódio que marca a fundação, as raízes de nossa/nuestra América. Pode-se dizer que era
também contra esse ódio excludente e colonizador que lutava o Coronel Aureliano
Buendía, guerreiro progressista dos “Cien años de solitud” de Gabriel García Marquez.
Mesmo que personagem de romance, é certo que a bravura desse guerreiro espelha –
quiçá inspira? – tantas outras batalhas, ainda que perdidas, contra as forças
conservadoras/domesticadoras na América Latina.
Voltando ao debate mais para essa região colonizada para falar português, cabe
lembrar que “o Brazil não conhece o Brasil”, como já nos ensinava o mestre Aldir Blanc.
Essa potência de cores, de sabores, de ritmos, de sons, de criatividade; de uma teimosia
em permanecer(mos) vivas/os e significativas/os; de gostar de índio, de planta nativa, de
coisas daqui – ou aprendidas e (re)criadas por aqui. Aliás, o daqui, como já rezava o
contexto que inspirou a canção daquele saudoso mestre, reitero, é peremptoriamente
combatido e marginalizado. Não obstante, resiste vivo e potente.
Tal potência está presente no Cerrado, que ainda resiste ao Matopiba – e em sua
baunilha, que é comida tradicional dos Kalungas da Chapada dos Veadeiros. Está presente
na Amazônia, que ainda respira, mesmo com o desmatamento, e mantém viva suas
caboclas, seus encantados, sua fauna, sua flora e seus saberes. Está presente nas Minas
Gerais, que seguem rezando seus Cultos às Almas, erguidos de seus Calundus. Está
presente nas praias mais a leste, onde a Jurema segue curando vidas. Está presente no
Espírito Santo, onde há mais de 80 anos meu avô aprendeu a Cabula. Está presente na
Bahia, que ainda hoje inspira e dobra atabaques à brasilidade. Está presente no muito
original samba de São Paulo, que colore de preto o cinza sem graça da urbe. Está presente
no Maranhão e por aquelas bandas, onde os bois e os tambores dão o ritmo e o passo das
vidas. Está presente no Sul e em seu extremo, onde é a Quimbanda que destranca a rua,
com seus elegantes Exus e Pombas Giras, muito bem entrosados com o Batuque de Porto
Alegre. Está presente nos morros do Rio de Janeiro, em que a calma das pretas e pretos
velhos segue abençoando – e amando – a quem quer que as/os busque. Está presente em
todo o país, enfim, que é afro-ameríndio, muito mais do que branco.

2
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Essa potência é inspiradora de histórias e é – não nos enganemos – acima de tudo,


a nossa história. A história de nós outros da nação, que insistimos em sermos e estarmos,
mesmo que marginalizados. Que insistimos em resistirmos. Uma história nossa que, nesse
número da Revista Calundu, resgatando a temática de seu primeiro ano, da Gira
Epistemológica que segue em expansão, traz ao debate as “Ciências das Macumbas e
Outras Encantarias”.
Assim, abrindo a gira com estilo e inaugurando a seção de artigos, o número
apresenta o texto “Maria Navalha e a Filosofia Popular Brasileira – Um ‘Trabalho’ De
Campo”, de Rafael Haddock-Lobo, que debate conceitos filosóficos brasileiros, relidos
na rua, pelo olhar da Pomba Gira Maria Navalha.
Em seguida, ainda na vibração comunicadora, o dossiê nos traz Rodrigo Santos e
“A Experiência do Teatro Negro e a Ideia de um Teatro de Nação através do
Baraperspectivismo”. Exu aparece aqui como teoria e ação, mostrando relações com a
carioca Cia dos Comuns.
Exu e filosofia seguem presentes no terceiro artigo, “Acontecimento - Èṣù: a
Circularidade como Trânsito Contra Colonialista” em que Luís Thiago Freire Dantas
revisita a diáspora e a ancestralidade, em leitura nagô, dialogando com a pluriversalidade
para pensar o dinamismo desse potente orixá.
“As Griôs no Brasil: Saberes e Fazeres de Mulheres Negras através da Categoria
Tia”, de Angélica Ferrarez de Almeida, é o quarto texto da seção de artigos, que recorda
a potência das mulheres negras na história construída nessa região do planeta, a partir da
diáspora. Questões como protagonismo e emancipação, em leitura política, são aqui
trabalhadas.
Maurício dos Santos e Anaxsuell Fernando da Silva assinam o quinto artigo deste
dossiê, “Iyás e Abebés: Existências, Resistências e Lutas Matriarcais Afrodiaspóricas”,
igualmente trazendo a potência das mulheres negras ao debate, que se mostra em lutas
antirracistas e contra o patriarcado, nas biografias de diferentes mestras da
afrorreligiosidade brasileira.
Como no texto acima, a mãe das águas doces é também lembrada por João
Augusto dos Reis Neto em “Pensar-Viver-Água em Oxum para (Re)Encantar o Mundo”,
o sexto texto da seção de artigos. Problematiza-se aqui a própria vida e, em/com Oxum,
busca-se sentidos para pelejas experimentadas no Brasil e no viver.

3
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Sem poder ser de outra forma, a feminilidade dos terreiros também desponta em
“Das Águas Ìyá Oxum: Saberes Ancestrais Femininos em Poesias Negras Diaspóricas”,
de Cristian Sales, sétimo artigo deste número da revista. Oxum, poesia e filosofia africana
estão aqui presentes, dialogando em pensamentos sobre o mundo.
“Aspectos Básicos sobre o Sujeito Individual e a Coletividade nas Religiões de
Matrizes Africanas” são debatidos por Joelcio Jackson Lima Silva e Thayná da Silva
Felix, neste que é o oitavo artigo do dossiê. Resultante de uma incursão antropológica, a
partir do Serviço Social, o povo nagô é apresentado e noções êmicas de indivíduo e
coletivo são debatidas.
Indo do Nordeste ao Sul, o Batuque entra na gira com Marcus Vinicius de Souza
Nunes, que apresenta o nono texto dessa mui abrangente seção, as “Ritualidades do
Mistério Pessoal: o Segredo de Orixá no Batuque Afro-Sul”. Em seu trabalho, o Batuque
é apresentado como religião e algumas de suas especificidades são debatidas.
Ana Clara Souza Damásio dos Santos é a etnógrafa por traz do décimo e penúltimo
texto, “Voltando para a ‘Origem’? Considerações sobre o Campo entre Parentes e os
‘Segredos de Família’”. Esse bonito texto fala de família e de campo de pesquisa, uma
temática sempre importante para o povo calunduzeiro pesquisador.
Finalmente, a seção de artigos é concluída, lindamente, com as Senhoras (sim,
com “S” maiúsculo) da Boa Morte, que figuram no texto de Mariana Fernandes Rodrigues
Barreto Regis, “200 Anos não São 200 Dias: História, Protagonismo e Estratégia de
Mulheres Negras na Irmandade da Boa Morte (1820 – 2020)”. Questões do campo dos
estudos da afrorreligiosidade brasileira são abordadas, em diálogo com a história dessa
longeva e importante organização de mulheres calunduzeiras.
Ao que pese a robustez da seção de artigos, nenhum dossiê da Revista Calundu
está completo sem seus textos livres, que oferecem um diálogo próprio e desamarrado
com calunduzeiras/os e suas/seus seguidoras/es. Neste número, a beleza destes textos está
bem representada pelos trabalhos de Rychelmy Imbiriba Veiga, “Orixá ou Diabo: a
Construção Imagética de Exu no Brasil”; Ana Carolina de Souza Silva, “Ao Barro
Voltarás: Reflexões sobre a Nascença”; Cláudia Mirella Pereira Ramos e Aldemir Inácio
de Azevedo, “Tupinambá Balanceia mais não Cai: Identidade e Espiritualidade na Serra
do Padeiro/BA”; e, por fim, Yuri Macedo, “Escrita Ìyálodè”. Quatro textos potentes, que
seguem expandindo a gira por novos horizontes de debates que, quiçá, podem vir a
consubstanciar outros textos futuros.
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A gira que se expande, de certo não se encerra. Pelo contrário, segue viva e
potente, inspirando letras e respirando saberes contra hegemônicos, contra
domesticadores, contra violentos, contra coloniais. Saberes que formam histórias outras,
que insistem em seguir sendo lembradas e contadas, ainda que pelas brechas da
normatividade enrijecida, que sonha em apagá-las. É que fazer Calundu é sacralizar
sonhos e mitificar aprendizados, sempre em respeito à ancestralidade e à força que dá ao
próprio movimento da gira. Não coincidentemente, concluo notando, foi Sinza Muzila
que abriu esse dossiê. E o que ela com sua dinâmica existência abre, não há força humana
que possa fechar.

Nzambi Ua Kuates’a!

Brasília, 22 de dezembro de 2020.

5
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

MARIA NAVALHA E A FILOSOFIA POPULAR


BRASILEIRA – UM “TRABALHO” DE CAMPO

Rafael Haddock-Lobo1
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34990

Resumo
O objetivo deste trabalho consiste em demonstrar como certos conceitos são
desenvolvidos a partir da perspectiva de uma filosofia popular brasileira. Para além de
apenas explicitar teoricamente os passos fundamentais para a elaboração conceitual
(quais sejam, o trabalho de campo ou o “trabalho” da e na rua, as anotações que se
seguem à experiência, a escrita a partir de tais anotações, tendo o conceito apenas como
resultado final e não o norteador da escrita), esse texto parte de um caso específico, ao
qual se seguiram algumas outras experiências, para, nos termos de Luiz Rufino,
alcançar uma “pedagogia das encruzilhadas”. É apenas a partir das experiências,
anotações e posterior escrita, em que a cada etapa a figura de Maria Navalha, pombagira
malandra carioca, vai se tornado mais presente, que os conceitos de “exubjetividade”,
“dona da navalha”, “navalha de gênero” e “filosofia a golpes de navalha” vão tomando
forma. Ainda assim, é preciso observar, mais do que conceitos fechados, esses termos
entram na gira para desconceituar, a golpes de navalha, tudo aquilo que se pretende uno,
coeso, perene e idêntico a si.

Palavras-chave: Experiência. Trabalho de campo. Filosofia Popular Brasileira.


Navalha. Exubjetividade. Desconceito.

MARIA NAVALHA Y LA FILOSOFÍA POPULAR


BRASILEÑA - UN “TRABAJO” DE CAMPO
Resumen
El objetivo de este trabajo es demostrar cómo se desarrollan ciertos conceptos a partir
de la perspectiva de una filosofía popular brasileña. Además de explicar teóricamente
los pasos fundamentales para la elaboración conceptual (es decir, el trabajo de campo o
el “trabajo” de y en la calle, las notas que siguen a la experiencia, la escritura a partir de
esas notas, teniendo el concepto solo como resultado final y no como principio rector de
la escritura), este texto parte de un caso concreto, seguido de algunas otras experiencias,
con el propósito de, según Luiz Rufino, llegar a una pedagogía de la encrucijada. Es
solo a partir de vivencias, apuntes y escritos posteriores (y en cada etapa se hará más
presente la figura de María Navalha, pombagira malandra carioca), que los conceptos de
"exubjetividad", "dueña de la navaja", "navaja de género” y la “filosofía de golpes de
navaja” irán tomando forma. Aun así, es necesario observar que, más que conceptos

1
Doutor em Filosofia pela PUC-Rio e pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP (com bolsa da FAPESP), no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (com
bolsa do CNPq) e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ. É professor do Departamento
de Filosofia e dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ e da UERJ. Email:
outramente@yahoo.com

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

cerrados, estos términos entran en la “gira” para desconceptualizar, con golpes de


navaja, todo lo que se pretende como uno, cohesionado, perenne y auto-idéntico.

Palabras clave: Experiencia. Trabajo de campo. Filosofía Popular Brasileña. Navaja.


Exubjetividad. Desconcepto.

Para Katia Barbosa e Dona Maria Navalha da Lapa

Abertura – A navalha na carne negra

Neusa Sueli: - Vovó das putas é a vaca que te pariu.


(Plínio Marcos, Navalha na Carne)

Pouco mais de cinquenta anos depois, a peça de Plínio Marcos era encenada sob
uma nova pegada, sob a direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. A puta, o
cafetão e a bixa2 são, eles próprios, as navalhas e a pele negra navalhada, como se a
peça cinquentenária fosse reescrita por esses corpos que ecoam n’A carne as letras de
Yuka e a voz de Donas Elzas e Seus Jorges.
Todos pretos, atriz, atores e diretor3, rasuram a branquitude dos palcos e dos
textos com suas navalhas, mostrando suas peles, costumadas a ser enviadas de graça pro
presídio, pros hospitais psiquiátricos, pros subempregos e pra debaixo do plástico 4.
Agora, contudo, em um movimento de inversão e deslocamento 5, as peles negras entram
em cena para não apenas denunciar o epistemicídio e a necropolítica, mas para serem
ostentadas, esfregando sua vitalidade na cara da branquitude, sambando na tumba de
uma civilidade morta, em sua falsidade, hipocrisia e ressentimento. José Fernando
Peixoto de Azevedo, o diretor desse manifesto, invocando Lucelia Sergio, Raphael
Garcia, Rodrigo dos Santos, navalha a própria carne de Plínio Marcos – mas não para
destruí-lo.
Ao contrário, a encenação navalhada de Navalha na Carne Negra é posta em
cena justamente para fazer justiça ao que há de mais navalhado na peça original, o jogo

2
A grafia remete ao termo de Paco Vidarte, em Ética bixa (n-1, 2018).
3
A peça, em cartaz em 2018, tem direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, com os atores Lucelia
Sergio, Raphael Garcia, Rodrigo dos Santos.
4
Referências à música “A carne”, de Ulisses Cappelletti, Jorge Mario Da Silva e Marcelo Yuka, gravada
no álbum “Moro no Brasil” (de 1998) do grupo Farofa Carioca e depois eternizado na voz de Elza Soares
no álbum “Do cóccix até o pescoço” (de 2002).
5
Os termos são utilizados pelo filósofo argelino Jacques Derrida para explicitar o que seria a arquitetura
estratégica da “desconstrução” (DERRIDA, 2001, 48-49).

7
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

entre o cafetão, a bixa e a puta que, quando representados como e por pessoas brancas,
nunca alcançarão a realidade potente e viva das ruas.
Navalha na carne negra é a dupla navalha, a navalha sobre a navalha, a navalha
na carne mas também da carne negra, o duplo jogo que, como ensina Maria Navalha,
consiste em ser ao mesmo tempo a vara curta que cutuca a onça e a onça que é
cutucada.
Quando falo em alcançar a realidade potente e viva das ruas, ou seja, tentar fazer
justiça ao que está aí, diante de nós. Quero dizer com isso, e por isso esta encenação que
remete a outra e a chama para perto do mundo é paradigmática, que a melhor maneira
de representar as ruas é partir de alguma experiência – nunca do universal para o
particular.
Também, é bom lembrar, que tão pouco parece um movimento que se dirige de
uma experiência singular que deve ser universalizada. A representação das ruas, para
ecoar as ruas, deve propor um jogo de espelhamento entre as singularidades, resistindo
ao máximo à colonização do universal, que pretende justamente abstrair toda
singularidade. Para falar e escrever sobre as ruas (não de sua alma encantadora, como
queria João do Rio (RIO, 2012), mas de seu corpo encantado (SIMAS, 2019), como
propõe Luiz Antonio Simas), é preciso, como fizeram esses dois grandes pensadores
rueiros, ir para às ruas.
Ir às ruas quer dizer simplesmente: ir ao encontro do que não se espera, estar
disponível a ser surpreendido, estar aberto à experimentação. Se encontramos o que
esperávamos, nem vale a pena perder tempo na escrita, pois nenhuma experiência foi
realmente vivenciada e, nesse sentido, tanto faz estar em casa ou nas ruas. O que é
digno de nota – e sublinho, seguindo os rabiscos de Walter Benjamin e Guimarães Rosa
– é aquilo que acontece para além de toda expectativa e que, por isso, precisa ser
anotado.
Benjamin e Rosa nos ensinam que o filósofo das ruas, que é o filósofo nas ruas,
precisa ter consigo sempre seu caderninho de notas, para não deixar escapar – sabendo
que sempre vai escapar – o que lhe surpreende. Notas e notas, rabiscos e rabiscos,
memórias do dia seguinte, letras trêmulas da bebedeira ou nubladas de ressaca são, ou
deveriam ser, matéria privilegiada para o filósofo. É a partir disso, do que se viveu, do
que se bebeu e se comeu, dos cheiros, dos temperos, dos suores, das salivas, dos sons e
das letras, de todas essas palavras encantadas que tentamos captar, que o filósofo
precisa partir para a experiência de pensamento.

8
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Uma filosofia que possa ser considerada verdadeiramente brasileira e popular


deve partir da própria experimentação, com seu próprio sotaque, e afirmar a
regionalidade contra a universalidade. Não para uma exaltação de si em detrimento do
outro, mas, ao contrário, como uma presentação de si que na verdade é um convite para
que outras vozes, outros sotaques, outras experiências também entrem em cena.
É nesse sentido que quando proponho, eu, fazer uma filosofia popular brasileira,
só posso fazer isso a partir de meu lugar como carioca, homem branco, bicha, com
sobrenome de colonizador, crescido em um bairro de classe média do Rio de Janeiro
(que pretende apagar seus rastros populares das ruas, dos bares e dos morros), tendo o
privilégio de a macumba cair sobre a minha cabeça desde cedo em minha vida. Só a
partir daí, disso que vivo e que me constitui, posso empreender uma filosofia que, como
diria Nietzsche, seja feita com sangue, mas, como ensina Maria Navalha, com o sangue
meu e do outro, o sangue que é também o das batalhas, das lutas, dos inimigos. É com
esse sangue que, com a ponta da navalha, gostaria um dia de ter a força para escrever.
Nesse sentido, esse texto aqui nada mais é que um experimento. Ou melhor, um
relato sobre as anotações que se seguem a algumas experiências que se impuseram a
mim, ou melhor, me aconteceram. Ele não propõe nada de original, nenhuma novidade,
é uma reflexão – um espelhamento – de situações, a partir de situações, e que me
levaram a outras situações. Poderia ser considerado uma espécie de relatório filosófico
de um trabalho de campo mas que, talvez, seja mais justo chamar de um trabalho nas
ruas.
Só espero conseguir corresponder aos chamados, às graças e alegrias, às
surpresas, às amizades, às proteções, em especial das moças que andam pelas ruas,
vivas ou mortas, encantadas, com suas lâminas por debaixo das roupas, com tanto a
ensinar, querendo ensinar, me obrigando a aprender. Saravá!

Primeiro golpe: A anunciação

Traz um sorriso no rosto e uma arma na saia


O seu nome é, é Maria Navalha
(Ponto de Maria Navalha)

9
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Era uma sexta-feira, por volta das 13 horas. 16 de agosto, 2019. Eu e minha
amiga Elisa de Magalhães aguardávamos o início de nossa disciplina de pós-graduação
para alunos da filosofia e das artes visuais que aconteceria no Centro Municipal de Arte
Hélio Oiticica. Conversávamos distraidamente, quando entra na sala uma pessoa jovem,
cujo corpo dificilmente deixa ver quaisquer marcas de gênero, enquanto a marca social
se faz ver imediatamente pela pele negra, pelas cicatrizes no corpo e pela aparente
embriaguez ou qualquer outro estado de entorpecimento. Se anunciou: Sou Maria
navalha. Usava uma saia que só deixava transparecer os pés sujos e descalços. “Estou
aqui a mando de Sete Encruzilhadas”, continuou, exibindo orgulhosamente uma
tatuagem no braço que parecia um ponto riscado, com tridentes cruzados e outros traços
que, de minha distância, eram indiscerníveis.
Uma coisa era certa, aquela figura fluida, para além do masculino e do feminino,
ao exibir seu braço tatuado ganhava ainda mais minha atenção, pois se dizia porta voz
daquele que me acompanha, me cuida e abre meus caminhos. Disse que queria dinheiro.
Que precisava comprar cerveja, tirando seu chapéu panamá e jogando ao centro da roda
de conversas que ainda não tinha se completado. O chapéu flutuou, bailando como o
élitro que flutua, pairando exatamente no centro de todos nós, professores e alunos.
Como se aquele lance fosse alguma arte de extrema técnica ou de absoluta magia.
Pedi a todos e todas que ajudassem na cerveja de Maria Navalha, pois me
pareceu mais que merecido. Ela se sentou. Começamos nossa primeira aula, eu e Elisa,
depois de saudarmos Exu e, mais precisamente, essa mensageira, que chegava não sei
porque e não sei de onde. Quando a aula de fato se adianta, ela se levanta, sem interesse
algum no que falávamos, e vai, para onde ou de onde só ela sabe.
Terminando a aula, tinha que correr para o Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, que fica bem perto, para dar início o curso de graduação, às 17 horas, que
começaria com uma pequena homenagem aos 15 anos de morte do filósofo franco-
argelino Jacques Derrida. Além de dar início à disciplina de graduação, a mesa,
composta por Fabio Borges-Rosário e Marcelo José Derzi Moraes, foi também a
inauguração do Seminário Encruzilhadas, cujos textos se encontram publicados no livro
Encruzilhadas filosóficas, e o batismo do laboratório coordenado por mim (que, antes
chamado Laboratório Khôra de filosofias da alteridade, passa a se chamar Laboratório
X de Encruzilhadas Filosóficas).
Quando meus convidados chegaram, comecei a contar aos dois a inóspita cena
que antecedeu minha aula da graduação, quando Fábio Borges-Rosário me interrompe e

10
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

pede para eu parar de contar e que eu entenderia a razão logo em seguida. Não entendi e
nem dei muita atenção no momento. Chamei os dois, que se sentaram junto à bancada
do lindo auditório de madeira, a sala em que dou aulas todas às sextas feiras às 17 horas,
quando Fábio Borges começa a ler seu texto sobre uma (im)possível e (im)provável
vinda de Derrida ao Brasil.

Com licença das encruzilhadas: Saúdo a Exu Rei das Sete


Encruzilhadas, Exu Tranca Ruas das Almas, Exu Mirim, Exu Gira
Mundo, Dona Cruzeiro, etc. Dona Jocília Borges, Dona Maria
Barcelos, Dona Iara Joio; etc. Isto é, a todas e todos que estão
espectralmente presentes para nos acolher e garantir acontecimentos
de resistência aos fantasmas que tentam obsidiar a Filosofia
amordaçando-a nas margens e fronteiras da Europa. (Borges-Rosário,
2020, pág. 29)

Inaugurava-se, naquele momento, uma forma de escrita corajosa, ousada e que


marcaria profundamente a todos nós ali presentes. Fabio trazia as encruzilhadas para a
desconstrução, ou melhor, mostrava as encruzilhadas da desconstrução e o quão potente
seria esse encontro entre Derrida e macumba.
Lembrando que Derrida falecera logo após uma viagem ao Brasil (onde deu sua
última conferência), Fabio desfia seu Rosário apresentando os temas da espectralidade,
o nome que a desconstrução dá para ancestralidade, das margens, nome derridiano das
encruzilhadas, e de como o filósofo magrebino, a partir de então, se tornaria mais um de
nossos ancestrais – iniciando assim seu “ai se sesse...”:

E enquanto os espectros que retornam para obsidiar enclausuram-se


nas casas, bibliotecas, faculdades, departamentos para garantir a
repetição da mesmidade e impedir a novidade, quiçá o filósofo da
iterabilidade tenha preferido atravessar o oceano e vir às terras
brasileiras para conhecer outras mitologias com os ancestrais que
habitam as ruas, matas, cachoeiras, terreiros. (Borges-Rosário, 2020,
pág. XX)

Essa fala de Borges-Rosário marcaria o cruzo6 entre desconstrução e macumba,


entre realidade e ficção, atacando o centro da filosofia em um duplo golpe. E para a
surpresa de todas presentes, quem aparece para receber o Derrida-ancestralizado em
nossas terras?

6
Sobre isso, remeto ao capítulo “Cadê Viramundo, pemba?” de Fogo no mato: a ciência encantada das
macumbas, que apresenta o cruzo como “perspectiva teórico-metodológica assentada nos complexos de
saber das macumbas brasileiras” (SIMAS e RUFINO, 2018, 25).

11
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Um dia... Quando chegou ao Porto da cidade do Rio de Janeiro


Derrida avistou um malandro vestido de saia. Lembrou da
malandragem parisiense, lembrou de Jean Genet. Talvez, pensou que
aquela pessoa era não binária ou transgênero. Percebendo o embaraço
do argelino, Maria Navalha se aproximou e lhe deu um endereço.
Infelizmente como Derrida só fala uma língua que não lhe pertence e
Maria Navalha só escreve em pretuguês, não entendeu o endereço.
Pensou na ginga daquela mulher. Avistou uma menina trajada como
mulher; outra que se portava como rainha; outra ainda que num raro
momento de ócio, lembrou dos filhos que deixara chorando. Pensou
novamente em Genet e decidiu seguir até que encontrasse a mulher
que procurava. (Borges-Rosário, 2020, pág. XX)

De tal modo surpreso pela dupla chegada dessa moça em um mesmo dia, parecia
não conseguir acompanhar a linda mesa que se seguia, as belas falas de Fabio e
Marcelo, o debate que encerrou o evento. Quem é essa mulher? Porque apareceu? O que
ela abre? Fabio, um filósofo que encruza Exu e Lutero e que entende bem desses
encantos, também estava impactado pela co-incidência de Navalha. Só sabíamos, eu e
os dois desenroladores, naquele momento que, de algum modo, por alguma razão, ela
veio.
Fomos todos a irmos ao BDP, o bar que, em minha época de graduação era
chamado de Bar das Putas (porque, de fato, ali, na Praça Tiradentes, era o local onde as
trabalhadoras ficavam), mas que depois da “recuperação” (isto é, higienização) da
região do Centro do Rio, passou a se chamar Bar da Praça (sic). Sentamos, pedimos
uma cerveja. E o primeiro gole foi dela.
Passei dias, meses, e confesso que ainda estou tentando – aqui, justamente nesse
texto – entender o alcance da entrada em cena dessa malandra, abrindo o semestre,
inaugurando o seminário, batizando meu laboratório e nos convocando a outras escritas
filosóficas. Dela, até então, só sabia que gostava de cerveja, que trazia “um sorriso no
rosto e uma arma na saia”. E seu nome, saravá, Dona Navalha!

Segundo golpe: discurso do método se faz é no bar

O Zé quando vem de Alagoas,


toma cuidado com o balanço da Canoa.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

(Ponto de Zé Pelintra)

Ao longo do semestre, comecei a rascunhar um texto inspirado na capa do livro


Coreografias do feminino, de minha amiga Carla Rodrigues, que, para mim, antevê
muito dos percursos que sua escrita tomaria para além daquele momento, através da
linda imagem de um corpo negro, de mulher, de rosto não visível e vestimenta
esvoaçante. A ideia do texto era, a princípio, passear pela figura do Esù, o orixá
africano, portador do Ogó, passando pela bengala de Tranca Rua, feita de madeira que
não dá cupim, até chegar à noção de padilhamento7, cunhada por Simas e Rufino em
Fogo no mato, para pensar a questão do feminino que via estampada na capa do livro de
Carla.
Quando fui convidado por Marco Antônio Casanova para participar em
novembro de uma mesa sobre gênero no XII Congresso Internacional “Questões
fundamentais da hermenêutica filosófica”: identidades, resistências e gêneros, já me
lancei então o desafio: falaria, então, sobre os gêneros das ruas, flutuando entre o
masculino e o feminino, de Esù aos exus e pombagiras da umbanda carioca 8. Contudo,
como sempre acontece quando o método não é o cartesiano (que parece saber onde vai
chegar antes mesmo de ir), mas o riobaldiano (em que se atravessa o rio a nado
querendo chegar numa banda, mas se chega num lugar bem diverso do que antes se
pensou), muitas coisas aconteceram ao longo dessa escrita. Aliás, não muitas coisas,
mas muitas pessoas – a malandragem se impôs. Três figuras foram chegando para tocar
o zaralho no meu texto e desconceituar minhas concepções: um José, um João e uma
Maria.
Era dia 5 de novembro de 2019, no Bar Madrid. O bar, no bairro da Tijuca,
estranhamente lotado em uma terça-feira à tarde, aguardava a fala de Luiz Antonio
Simas. A promessa: falar das pelintrações. A fala, magnânima, traçava os
contracaminhos, aparentemente opostos, de Zé Pelintra e Luiz Gonzaga. O primeiro,
catimbozeiro pernambucano, morador da rua da Amargura, troca suas roupas de

7
Sobre isso, remeto ao capítulo “Quem tem medo da pombagira??” de Fogo no mato: a ciência
encantada das macumbas, onde se lê o seguinte: “Torna-se emergencial rodas as saias a fim de incorporar
movimentos que credibilizem outros conhecimentos. Nessa encruza, a pombagira baixa para destravar os
nós do corpo e praticar um giro enunciativo que opere a favor do combate às injustiças cognitivas, sociais
e da disciplinarização dos corpos. (...) Os giros das saias rodadas nos indicam outras rotas, chamaremos
uma dessas perspectivas transgressivas de padilhamento dos corpos” (SIMAS e RUFINO, 2018, 96).
8
Como disse na apresentação do texto, só posso falar das experiências que me constituem, por isso a
ênfase nas macumbas cariocas. Minha filosofia popular brasileira tem sotaque carioca, fala desses
encontros que tive e tenho, mas precisa permanecer sempre aberta para outros encontros por vir.

13
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

juremeiro pelo traje do malandro carioca ao chegar por essas bandas daqui; o segundo,
também pernambucano, nascido em Exu, ganha suas vestimentas emblemáticas de
“nordestino” quando sai de sua terra. Segundo Simas, o que os dois teriam em comum
seria a pelintração, que nada tem a ver com resignação, mas sim com uma forma de
adaptação transgressora. Mais recentemente, o malandro Simas lançou em sua conta de
twitter um macumbaforismo de Seu Camisa Preta que traduz melhor do que qualquer
conceitualização o que é pelintração: “Malandro usa sapato para continuar andando
descalço”9.
Era isso de que precisava. Se há alguma metodologia possível para se falar das
ruas, esse método tem de ser a própria pelintração, aprender com o cuidado que o
malandro tem com o balanço da canoa, saber que na hora que a polícia chega, quem é
malandro não pode correr e que, se a academia é a grande sapataria do pensamento,
precisamos botar nossos sapatos bicolores para poder escrevermos descalços.

Terceiro golpe: Navalhada no gênero

Vocês estão vendo aquela casa pequenina,


lá no alto da colina, ele mandou fazer.
É lá que malandro mora, otário não tem moradia.
(Ponto de Malandro)

Dia 6 de novembro de 2019. Quarta-feira. O auditório da UERJ estava


relativamente cheio para a mesa de abertura, da qual eu faria parte. Minha fala, “Os
gêneros das ruas: notas de filosofia popular brasileira” 10 tinha tomado um rumo bem
diverso do que eu antes pensava. O que aconteceu nesse percurso que eu antes pensara,
que partia do ogó e chegava à saia, passando pela bengala, é que a ginga da
malandragem era necessária para operar a transição dos gêneros, e o objeto de corte
dessa operação é justamente a navalha.

9
Publicação de 22 de outubro da conta do Twitter de Luiz Antonio Simas.
10
A fala, apresentada primeiramente no XII Congresso Internacional “Questões fundamentais da
hermenêutica filosófica”: identidades, resistências e gêneros, na UERJ, em 6 de novembro de 2019, foi
publicada pela primeira vez em 4 de dezembro de 2019 na minha coluna “Filosofia Popular Brasileira”,
na HH Maganize (https://hhmagazine.com.br/os-generos-das-ruas/) e depois inserida no capítulo “Ensaios
de Filosofia Popular Brasileira” de meu Os fantasmas da colônia (HADDOCK-LOBO, 2020).

14
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Depois do discurso do método de Simas, cheguei em casa para terminar meu


texto e percebi que entre José e Maria havia um João. Olha só, logo ele que me
acompanha há anos, cuja biografia li ainda menino entre os livros do meu pai, cujo
túmulo visito quando vou a Ilha Grande, que já li, estudei e até dediquei um texto: João
Francisco dos Santos ou Madame Satã. A bicha preta quizumbeira, que enfrenta
qualquer macho com seu soco de caranguejo, como contam Marcelo Moraes e Adriano
Negris, só tem como peso no bolso a navalha11. Qual o poder dessa navalha nas mãos
da bicha que é malandro, que é mulata do balacochê, que é Jamacy? O caminho entre o
Bar Madrid e a minha casa (que não é nada longo) foi marcado pela ideia doida de não
saber como João Francisco baixaria num terreiro, malandro ou pombagira?12
Esse malandro dia-bólico me lembrou da entrada triunfante em minha sala de
aula no começo do semestre: aquele corpo que poderia ser de menino ou menina,
indistinto, e que só fazia ver que a distinção não importava nada, mas que portava seu
chapéu de malandro e sua saia, com seu corpo riscado a golpes de navalha. Sim, não
apenas a navalha, o objeto, como Navalha, a moça, reaparecia para me convocar a
escrever.
Depois da episteme pelíntrica, Zé parece ter me mostrado João, que, como não é
bobo, já trouxe Maria junto. Madame Satã me mostrava que entre o malandro e a
malandra a distância é apenas o fio de uma navalha, e que a navalhada é operação de
profunda transição: só há pelintração, só há adaptação transgressora se, no bolso ou por
debaixo da saia, houver uma navalha bem guardada e pronta a ser usada a qualquer
momento.
João, Maria e José, ou Satã, Navalha e Pelintra, me rodearam noite adentro,
transicionaram meu texto e me acompanharam até o auditório da universidade, me
dando de presente uma navalha, mais potente que o martelo de Nietzsche, que suas

11
Marcelo José Derzi Moraes e Adriano Negris, em seu potente texto “Escrituras da cidade: ordem e
desordem a partir de Derrida”, nos dizem: “O único peso é a navalha que carrega no bolso e a única
leveza é a da mão que entra nos bolsos alheios e traz o alimento do dia. (...) Um analfabeto que escreve.
Um marginal que é madame. Uma madame que é satânica. Um gay viril. Madame Satã não era nem seu
nome. Seu nome era: João Francisco dos Santos. Três nomes que fazem referência ao religioso, ao
sagrado. Nomes de santo num corpo de satã. Uma Madame Satã dos Santos. Um pecador com nome de
santo. Salve todos os santos, salve Madame Satã, hoje padroeiro da Lapa” (SOLIS e MORAES, 2016, 56-
64).
12
Essa ideia que me tomou na volta do bar acabou cumprindo parte fundamental no já citado “Os gêneros
das ruas”, mas também reaparece como golpe importante no capítulo “Quizumba”, do Arruaças, como
“Madame Satã e a rasteira em Espinosa” (SIMAS, RUFINO e HADDOCK-LOBO, 2020, 80-84),
ressaltando a estratégia de combate corporal e de ginga desconceitual que a filosofia popular brasileira
ensina.

15
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

esporas segundo Derrida, que as tesouras desse, segundo Preciado, que marca na carne
ou na cara dos otários o próprio pensamento.

Quarto golpe: De cara com a Navalha

Mulher de malandro tem nome e se conhece pela saia


Vara curta e onça brava, ela é Maria Navalha.
(Ponto de Maria Navalha)

Era a semana antes do carnaval. Sábado, 15 de fevereiro de 2020. Acabava de


completar 45 anos e ia festejar na gira de exu para firmeza do carnaval. Embora não
fosse nem pisar na rua ao longo das próximas semanas, com um livro a terminar, não ia
deixar de visitar meus amigos na rua Castro Lopes 310 no bairro de Inhaúma, subúrbio
carioca.
Sabia que encontraria meus amigos Exu Tiriri, Seu Zé Pelintra, que é quem faz a
festa na casa, Seu Sete Caveirinhas, minhas amigas Dona Figueira, Pombagira do Lodo
e Maria Padilha. O que eu não esperava é que Dona Padilha ficaria pouco tempo na
terra porque Maria Navalha queria me ver.
Arrepiei.
Todo prosa, e esquecendo que a língua da macumba é a do segredo, pensei: tudo
resolvido. Agora ela vai me contar tudo. Por que apareceu para mim, qual a razão de ela
estar na minha vida tão intensamente nos últimos tempos, tudo, tudinho.
Para quem queria resposta, dei de cara na porta. Olha aí a verdadeira aporia.
Linda, mais dura que Padilha e menos bruta que Mulambo, ela veio até mim
com seu pito na mão e uma cerveja na outra: “Oi moxo, queria dá um abraxo no sinhô”.
Ganhei meu abraço, agradeci muito e quis saber do tudo que ela tinha para me contar.
Sorriu, disse que trabalhava com Seu Sete Encruzilhadas, meu exu, que se chamava
Maria navalha da Lapa e me mandou botar uma navalha na porta da minha sala onde
trabalho (no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ). Se despediu, me deu
outro abraço, e foi oló.

Vai exu, exu vai passear. Vai exu, exu vai passear

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Numa estrada tão bonita, numa noite de luar


Numa estrada tão bonita, numa noite de luar.
(Ponto de subida de exu)

Fomos passeando, cada um em sua estrada bonita, na linda noite de luar: ela, não
sei para onde e vi que não saber era minha tarefa; eu, para casa, pensando muito,
entendendo nada, mas com a certeza de que, de fato, com a navalha na porta de minha
sala, a Maria que porta o nome do objeto cortante e que o guarda sob sua saia era não só
a madrinha do Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas como a guardiã daquele
espaço. Mas essa certeza era acompanhada de outra certeza ainda maior: que ainda tinha
muita coisa por vir.
Ainda no caminho para casa, encomendava ansioso a navalha que me tinha sido
pedida, e aproveitei e achei uma linda imagem de gesso, de 20 centímetros, que
encomendei e pedi urgência na entrega, pois a escrita que tinha à frente seria feita à luz
(de vela) de Dona Maria Navalha.

Quinto golpe: Arruaças carnavalescas

Ela é mulher, ela é bonita e formosa


mas não se engane, ela é muito perigosa.
(Ponto de Maria Navalha)

Era carnaval e nem imaginávamos que seriam as últimas semanas de respiro pré-
pandêmico. Minha navalha e a imagem da dona do objeto haviam chegado. Grande
parte dos textos que preparava para o Arruaças, livro que escrevia com Luiz Antonio
Simas e Luiz Rufino estavam ainda em forma de anotações dispersas e precisava dar
logo forma a eles e botar no papel. E queria começar justamente por ela, Dona Navalha,
nome que, apesar de martelar e martelar em minha cabeça há seis meses, ainda não
tinha me percebido do óbvio: Dona Navalha para além de pronome de tratamento
seguido de nome próprio diz algo bem mais simples, que ela é a dona da navalha.
Meu primeiro dia de carnaval foi, portanto, escrevendo a partir dessa ideia. Com
a vela acesa aos seus pés, sua taça cheia, me punha a escrever sobre os segredos dessa
que, apenas ela, guarda todos os segredos de um pensamento que se constrói a

17
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

navalhadas. Navalha iniciou a série de escritas para o livro, foi quem me deu o caminho
para a escrita arruaceira e, a cada dia, a cada texto que começava a trabalhar sobre, sua
vela era acesa junto a de alguém que ela trazia para a escrita, me ajudando a não mais
cunhar os conceitos, pois o processo de conceitualização é absolutamente outro do que
o da cunhagem tradicional, sendo mais próximo a um navalhamento dos conceitos, cujo
resultado são desconceitos.
Pois sim. Se Nietzsche defendia a filosofia a golpes de martelo, que pretende
destruir tudo que se quer solidificar; se Derrida disse que Nietzsche pensa com as
esporas, que dão o ritmo dos galopes; se Preciado disse que Derrida era o filósofo das
tesouras, que recortam, mudam de lugar, deslocam os poderes e muito mais – podemos
dizer então, graças à sua dona, que uma filosofia popular brasileira precisa ser escrita a
golpes de navalha.
Sendo de posse da mulher, a navalha pode ainda mais do que poderia se apenas
coubesse ao malandro. A mulher navalhadora é, também, é certo, a que carrega a arma
por debaixo de suas vestimentas – é bom lembrar que Maria Navalha pode usar tanto
saia quanto calça. Em suas mãos, a navalha é tanto a arma da luta que só é acionada em
última instância (pois a malandragem ensina a recuar o máximo que puder, deixar que o
inimigo venha pra cima de você, e nunca partir direto ao ataque), mas também é a
operadora do renascimento e feitora das curas que se escondem por detrás do efun, do
waji e do ossun.
Nos dois casos, vertedora do ejé, a navalha, para além do bem e do mal e para
aquém de vida e morte, marca a pele, deixa suas cicatrizes e mostra que o pensamento
tem que ser uma coisa de pele13. Esta arma encantadora, entregue ao malandro pela
mulher, como que o tornando Cavaleiro pelas mãos da Rainha da Lapa, seu valete das
encruzas, deve ser a mesma que ela, a Dona, nos lega ao batizar nossas canetas e ao
transformar nossas mãos um feixe de navalhas que, ao tocar as teclas do computador,
desconceitua, descaceta, despiroca tudo.
Assim, dia após dia, depois de finalizado o texto inaugural escrito em
homenagem àquela que parece ser madrinha dessas novas escritas que se me impõem14,
eu ia navalhando os outros rabiscos que tinha, à navalha de Dona Maria se somava à de
outro João, o da Gomeia, somavam-se índios, polacas, pretos velhos, exus e

13
Citação do recente e fundamental texto de Marcelo José Derzi Moraes “Por uma Filosofia dessa coisa
de pele: uma desconstrução da colonialidade” (NOYAMA, 2020).
14
Trata-se de “Filosofia a golpes de navalha”, (SIMAS, RUFINO e HADDOCK-LOBO, 2020, 25-29).

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

pombagiras, boiadeiros, filósofos e filósofas daqui e de lá, enquanto o samba corria


solto do lado de fora e do de dentro de minha casa e invadia a escrita. Porque não é isso,
também, o que exige a navalha: que a rua invada o texto, que o corpo se ponha à
disposição da rua, que a rua encante a filosofia?

Sexto golpe: navalha quebrada

Maria Navalha disse cuidado pra não errar


ela jurou, jurou, tornou jurar
Que mata sem tirar sangue, engole sem mastigar.
(Ponto de Maria Navalha)

Findado o livro, enviado à editora, parecia que as Arruaças com os compadres


Simas e Rufino tinham encerrado minha “obrigação” com Dona Navalha. Mas, é claro,
que quando se trata de exus e pombagiras, as coisas nunca se dão como e quando
queremos, eles sacaneiam qualquer anseio a subjetividade: não há subjetivação possível
nas e das ruas, se sujeito for entendido como quer o ocidente – racional, livre,
autodeterminado; se há algum processo de (des)identidade que a rua ensina é a
exubjetivação.
Nossa exubjetividade nada mais é que seguir o que acontece e estar disponível
ao acontecimento15. Não precedemos a nada, não existimos enquanto nós mesmos,
como seres presentes a si, autônomos e o caralho a quatro, a gente vem depois. O que a
gente chama de “eu” nada mais é que a chegada em uma gira que já começaram há
muito tempo!
Mas isso tudo pra mostrar que se alguém estiver fechado em seus objetivos, ou
achar que já chegou a algum lugar, não vai sair de onde estava, vai ficar achando apenas
o que já sabia que ia achar. A ginga que a escrita tem que seguir é também estar de com
um olho no gato e outro no peixe e preparado para as quizumbas que vão aparecer. Até

15
Revendo o vídeo do lançamento do Arruaças, observo a importância, em diversos momentos, da ideia
de disponibilidade (https://www.eventials.com/labpub/lancamento-do-livro-arruacas-uma-filosofia-
popular-
brasileira/?utm_campaign=reminder&utm_medium=email&utm_source=email&fbclid=IwAR3NKnseue
DaFgBQI6SrNHzDjcQ3a4tzzLJN_95CfqgHPbtezU6dR63CunU). Dispinibilidade é a palavra central para
que aconteça a exubjetivação.

19
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

porque, o que é a escrita navalhada, a que sangra e cura, senão uma resposta às
quizumbas das nossas vidas?
Cumpadre Rufino, filósofo jongueiro e capoeira, o triângulo fininho e preciso
que toca nossos xotes filosóficos16, me ensinou que pensar é estar preparado para o
tombo. Achava eu, com minha ignorância aliada ao corpo branco e gordo que
dificilmente consegue gingar, que otário era aquele que levava tombo. Rufino me
ensinou que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo cai, e o malandro é aquele que cai
bonito, porque sabe que vai cair. O otário, ao contrário, é o que cai feio, porque não
sabe cair e nem sabe que vai cair. Daí a lindeza filosófica das rasteiras, que é o golpe do
corpo navalhado, do devir navalha do corpo malandro.
Tal como as cadeiras de arruar que nos lembra a apresentação do Arruaças17,
onde as sinhás se acham protegidas dos corpos fundangueiros, quizumbeiros e
cafofentos. Essas, as sinhás em suas cadeiras, não preveem que esses corpos nas ruas
vão leva-las ao “tombo na subida” 18. “Subjetividade” é, portanto, outro desses conceitos
em cadeiras de arruar, que se quer protegido da zorra que come nas ruas e que, depois
de navalhado, se exuzilha19. É nesse sentido que o desconceito é o tombo que os
conceitos levam em seu caminho de subida e escorregam ladeira abaixo. E, notando
aparentemente que os conceitos querem sempre subir, nos entristecemos ao saber que,
para subirem, eles desceram, com a moral toda enterrada na lama, parafraseando Mauro
Bolacha20.

16
Ainda no lançamento do livro, Simas, ao pensar nossa trinca, lembra do trio que acompanhava Luiz
Gonzaga, cata milho, custo de vida e salário mínimo e, logo em seguida, afirmando que Luiz Rufino seria
o triângulo, fininho e capoeirista, sobrando para nós dois sermos a zabumba e a sanfona.
17
“Nos tempos da escravidão, as cadeiras de arruar eram liteiras carregadas por escravizados em que as
sinhás passeavam pelas ruas da cidade. Em geral, elas tinham portinholas que visavam proteger as sinhás
dos perigos representados pelos desordeiros que incendiavam as ruas com suas fundangas, promoviam
quizumbas nas encruzas e se entocavam em seus cafofos: os arruaceiros. Esse perigoso gentio, que
começava a anunciar a tarefa dos brasis contra o Brasil, era versado em muitas invenções, matutações e
feitiços, mestres em pembas e mandingas, doutores em queimações, trucos, mumunhas, desenfadados nas
mugingas e nas canjiras. Praticavam, como modo de vida, a arruaça, incorporando o cruzo e alargando o
tempo. Quando seu adversário tá fazendo um alarde danado, eles davam só aquela escorada, às vezes de
leve, que desequilibra o oponente e que gera o maior esculacho. Porque arruaça é jogo na aldeia”
(SIMAS, RUFINO e HADDOCK-LOBO, 2020, 11-12).
18
Título da apresentação do livro.
19
Exuzilhar, verbo neologizado por Cidinha da Silva em 2010, na tentativa de navalhar ainda mais o
verbo encruzilhar, aparece em diversas de suas obras e intitula seu recente livro (SILVA, 2018).
20
Ainda consigo ouvir Simas cantarolando, quando pensamos em botar o samba como epígrafe do livro:
“Pelo curto tempo que você sumiu / Nota-se aparentemente que você subiu / Mas o que eu soube a seu
respeito / Me entristeceu, ouvi dizer / Que pra subir você desceu / Você desceu. / Todo mundo quer subir
/ A concepção da vida admite / Ainda mais quando a subida / Tem o céu como limite / Por isso não
adianta estar / No mais alto degrau da fama / Com a moral toda enterrada na lama” (Lama, Mauro
“Bolacha” Duarte).

20
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Pois bem, depois desse desvio todo, desses salamaleques da escrita filosófica,
esse aforismo cumpre nesse texto o papel de contar que, um belo dia, a navalha
quebrou. Um dos pinos que prende a lâmina soltou e nunca mais achei. O engraçado é
que a navalha capenga antecipou a tomada de algumas decisões quanto à escrita final do
Arruaças, depois de revisões e revisões. Uma frase minha, justo a que fechava o texto
dedicado à navalha, estava destoando completamente da escrita do livro. Ao invés de
alterá-la, mudando alguns desconceitos que ali apareciam, preferi retirar a sentença
inteira. De início, não posso negar que tive um intenso conflito interno, mas, como
Simas me ensinou lá atrás, lembrando das ensinanças do Bar Madrid de meses atrás,
decidi vestir os sapatos no texto pra que a Navalha andasse descalça.
Porém, a navalha quebrada, em cima da minha mesa do escritório, que parecia se
recusar a ser despachada, parecia querer dizer que ainda tinha muito coro para comer.

Sétimo golpe: Navalhar os conceitos

Ela é malandra não precisa trabalhar


Maria Navalha bota tudo em seu lugar.
(Ponto de Maria Navalha)

Esse texto ganha sua forma final depois do lançamento de Arruaças, ou seja,
quando a filosofia a golpes de navalha já foi arriada cuidadosamente nas ruas. Talvez,
nesse sentido, esse texto seja uma longa nota de rodapé ao pequeno e cuidadoso texto
que escrevi para o livro em parceria com os pensadores que tanto admiro. Talvez aqui
tenha mais coisa, ou talvez menos, pois ali a navalhada é certeira, curta e grossa, indo na
cara daqueles que esperavam de mim qualquer escrita conceitual ou acadêmica.
Mas, então, o que me motiva a escrever estas páginas que não se encontra ali?
Em outros termos: o que a navalha ainda pode querer de mim?
Falo aqui da importância do lançamento do Arruaças – de modo algum para uma
autopromoção – pois houve algo naquele momento que me pareceu fundamental para
dar caminho a essa escrita: a forma. Como Simas explicou no lançamento do livro 21, o
livro é composto de um carteado de textos, no qual em cada capítulo um dá a primeira
21
Ver link supracitado.

21
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

carta e fecha a gira: assim, “Fundanga” abre com Simas, seguido por Rufino e por mim,
“Quizumba” é Rufino quem abre, seguido por mim e por Simas, e eu abro “Cafofo”,
seguido por Simas e Rufino. O bacana do lançamento é que a essa gira se somou a voz
de Moyseis Marques, trazendo a lama, o ritmo, e completando a sacanagem.
Sim, sacanagem. A fala de abertura de Simas compara o livro ao petisco de bar
em que cada um ia trepando uma coisinha sobre a outra, a salsicha, o queijo, a cenoura...
Porém, essa fala do Simas, ela quebra a expectativa de seriedade, de linguagem erudita,
de qualquer intelectualismo. E ela deu o tom. Daí em diante, era só cada um assumir sua
parte na sacanagem geral que é o livro.
Essa epistemologia da sacanagem é coisa séria demais. É papo de boteco, muito
mais potente do que a forma dialógica da filosofia, pois se assemelha muito mais à
abertura ao improviso do partideiro, é um jogo de bola que sempre nos pega de surpresa
e nos obriga a inventar. Ele ensina que a ginga do pensamento está em frustrar qualquer
expectativa que se tenha, sem se deixar prender em nenhuma cela epistemológica, como
bem nos ensinaram Pelintra, Satã e Navalha: quando a rádio patrulha (que na maioria
das vezes pode ser o discurso acadêmico, o purismo religioso, o burburinho decolonial),
é hora de dar no pé!
Mas ainda tem mais: quando Simas solta a sacanagem no ar, parece que dá para
imaginar a boa e velha filosofia enrubescendo de vergonha de ouvir tal palavra de baixo
calão; a senhora academia se retira do salão diante de tal linguajar impróprio e os
cidadãos de bem piram. Pois é isso que um desconceito como a sacanagem opera na
boca de Simas: ele navalha o coração da arquitetura e da moralidade do pensamento
erudito. Me lembrou um professor, o falecido Clauze Ronald de Abreu, no primeiro
período da graduação em filosofia: ele entra na sala cheio de meninos burgueses e
pseudo-padrecos (a filosofia da UFRJ na década de noventa era isso, e eu estava entre
os meninos burgueses), em sua aula de Psicologia 1, diz que em psicanálise se trata de
desejo. Então, ali não se falará de pênis, vagina nem anus, pois esses conceitos
pertencem à biologia, mas sim de caralho, buceta e cu. Imagina a situação da turma.
Mas que, como eu, fui educado na pedagogia de Seu Tranca Rua das Almas, que
quando baixava a primeira palavra que seguia sua gargalhada era “puta que pariu”,
entendi no momento que quando se trata das ruas (parafraseando aqui a palavra desejo,
que ainda acho carregada demais de eruditismo) tem coisa que só se expressa no
palavrão. “Hahaha, puta que pariu, boa noite, moxo!” dizia, para além do expresso na
significação das palavras, a felicidade do encontro. Que bom estar entre vocês, que bom

22
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

estar aqui para beber minha cachaça, fumar meu charuto, dar minhas risadas e encabular
quem não gosta de palavrão.
Alias, Seu Tranca Rua de meu pai merece um dia uma escrita só para ele, de
tanta sabedoria que me transmitiu, sempre regada de muito palavrão e muita sacanagem.
Mas o que Clauze, Tranca Rua e Simas fizeram foi me fazer retomar essas
anotações para pensar em uma possível conclusão a esse texto que nada mais é que um
relatório de campo de minhas experiências com Navalha e a malandragem. E o que a
navalha quebrada parece me pedir, para enfiar o pino que nunca encontrei no buraco
vazio, é a elaboração desconceitual de dois termos: embucetamento e descaralhamento.
Se Derrida, o magrebino velho, nos dizia que a desconstrução tem um duplo
movimento, que se complementam e se dão em um mesmo golpe (de navalha), a
inversão e o deslocamento22, podemos pensar que, da mesma maneira, embucetamento e
descaralhamento são movimentos complementares e só funcionam juntos na
navalhação.
Se despirocar é o ato de emascular a razão colonial e descacetar é tirar o cacete
ou baixar o cacete nos puliças dos saberes, descaralhar é tocar o maior zaralho e
bagunçar todo o coreto das caretices, dos calhordas, dos quiumbas do saber. Não há
maior potência de desconstrução do falocentrismo do que o descaralhamento.
Mas, para além das pirocas, dos cacetes e dos caralhos, que são destronados
nessa inversão do patriarcado colonial, em que a ereção cai e o sujeito branco ocidental
parece ficar frustrado com sua impotência, a frustração do sujeito broxa abre espaço
para a entrada de algo que só a mulher pode trazer para a cena do pensamento: o
embucetamento.
Se o padilhamento23, como nos mostram Simas e Rufino, é o imperativo
pindárico das macumbas, “o venha a ser a pomba-gira que tu és”, em que os corpos
ganham a leveza e giram e as saias se tornam as bocas de Enugbarijó24, quando essas
saias entram na gira com as navalhas escondidas sob suas sete camadas, mais do que
descaralhar, elas embucetam25.

22
Ver nota 4.
23
Ver nota 6.
24
Sobre isso, remeto ao importantíssimo capítulo “Tudo que a boca come: incorporações e mandingas”,
de Pedagogia das encruzilhadas de Luiz Rufino, onde lemos: “O domínio de Exu intitulado como
Enugbarijó, o senhor da boca coletiva, nos diz sobre (...) todas as dinâmicas de transformação,
reprodução, multiplicação, possibilidade, imprevisibilidade, criação, comunicação, mediação e tradução”
(RUFINO, 2019, 141).
2525
Uma linda demonstração desse embucetamento filosófico é o capítulo final do livro Querendo ou
podendo ser Lilith: a mulher um ser-outro, de Georgia Amitrano. Sua competente pesquisa sobre a

23
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Embucetar, que não é embocetar pois não tem nada a ver com guardar em uma
caixa, pelo contrário, pois o descaralhamento já arrancou fora todos os arcontes das
caixas e os guardas dos armários, é desconceito que aprendi desde cedo com minha mãe
e que sempre denotou em sua boca a pressa, a correria, mas com certa raiva ou
violência. “Aquele carro passou embucetado”, dizia ela. Tinha pressa, certamente, mas
uma pressa perigosa e que podia dar merda pra todo lado.
Contudo, tem algo que me parece ainda mais forte no embucetamento. Mais
pelíntrico do que o empoderamento, no qual o cajado, a bengala ou o ogó ainda parecem
ostentados, o embucetamento que se segue ao padilhamento recusa a ostentação fálica.
Seu poder, se é que esse termo ainda serve, já que o embucetamento é a
desconceitualização do poder, consiste justamente em esconder a arma em baixo da
saia. A malandragem nos abre a uma outra relação do poder, uma certa recusa, uma
certa passividade, contanto que a arma esteja lá, porque malandro não é otário.
E esse impoder, esse “prefiro não” como diria o malandro Bartleby, ao contrário
do que se pode pensar, não tem nada de fraco. A saia que roda é a saia que engole sem
mastigar, pois não precisa de dentes. Ela engole e cospe tal como o masculino, mas em
uma espécie de dança, de coreografia hipnótica em que o inimigo nem sabe que é
engolido. Embucetado, a pergunta de Espinoza “o que pode um corpo” parece nem mais
fazer sentido26, pois não se trata de poder, se trata de engolir, de cuspir e de criar novas
danças.
Sim. Talvez seja desse duplo movimento, desses dois golpes com uma só
navalha, que essa moça, minha madrinha sem ela nem mesmo saber, quisesse que eu
escrevesse para completar esse percurso que se segue há mais de um ano. Navalhar a
filosofia, escrever uma filosofia a golpes de navalha, desconceituar o que se pretende
ereto, é, ao mesmo tempo, navalhar as teorias do conhecimento, navalhar os gêneros,
navalhar os poderes. Com um só golpe.

ontologia do feminino ao longo da história do ocidente, sobretudo nas mitologias gregas e judaicas, ganha
uma potência ainda maior quando as figuras femininas embocetadas de brasilidade chegam e dão um
outro tom ao livro. Explica a autora: “Minha Lilith, ainda que esteja na base da Zohar e nos preceitos
judaicos que se mantêm no discurso dos ‘cristãos’, ultrapassa esse encosto europeu, excedendo o espectro
enorme e pesado que carrego. Minha Lilith roda, gira, faz as saias balançarem, anda pelos becos, bebe e
fuma, pode ser loura ou morena, polaca ou negra. Minha Lilith é o que sou, brasileira, miscigenada das
culturas, das etnias, uma ovelha Outra da família, uma Lilith que também pode e deve ser Pomba-gira.
Trazer essa minha Lilith aqui, todavia, implica dizer das Áfricas e das Europas, falar dos imaginários da
mulher africana e indígena, latino-americana e dos mitos que trouxeram para nós. A mitologia aqui se
mistura no ato miscigenado e autêntico de uma brasilidade. E é essa Lilith que eu pretendo aqui
apresentar, distorcer, profanar e, por fim, fazê-la numa gira pomba-lilithiar” (AMITRANO, 2020, 126).
26
Ver nota 11.

24
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

É assim que essa malandra que não precisa trabalhar faz, Maria navalha bota
tudo em seu lugar, tirando tudo de seu lugar que é previamente dado, fazendo todos
recuarem com sua navalha afiada.
E isso só é possível porque Maria Navalha chega embucetada para descaralhar a
porra toda.

Referências bibliográficas

AMITRANO, Georgia. Querendo ou Podendo ser Lilith: a mulher um ser-outro. Rio de


Janeiro: Ape’ku, 2020.

BORGES-ROSÁRIO, Fábio; MORAES, Marcelo José Derzi; HADDOCK-LOBO,


Rafael. Encruzilhadas Filosóficas. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.

DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

HADDOCK-LOBO, Rafael. Filosofia Popular Brasileira. HH Magazine, Humanidades


em Rede: https://hhmagazine.com.br/category/colunas/filosofia-popular-brasileira/

HADDOCK-LOBO, Rafael. Os Fantasmas da Colônia: notas de desconstrução e


filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.

MORAES, Marcelo José Derzi e NEGRIS, Adriano. “Escrituras da Cidade: ordem e


desordem a partir de Derrida”. In: SOLIS, Dirce Eleonora Nigro e MORAES, Marcelo
José Derzi. Políticas do Lugar (Coleção Querências de Derrida, moradas da arquitetura
e filosofia, vol. 4). Porto Alegre: UFRGS, 2016.

MORAES, Marcelo José Derzi. “Por uma Filosofia Dessa Coisa de Pele: uma
desconstrução da colonialidade”. In: N NOYAMA, Samon. Gingar, Filosofar, Resistir:
ensaios para transver o mundo. Curitiba: CRV, 2020.

RIO, Joao do. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.

SILVA, Cidinha da. Exuzilhar. São Paulo: Kuanza Produções, 2018.

SILVA, Wallace Lopes (org.). Sambo, Logo Penso: afroperspectivas filosóficas para
pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis, 2015.

SIMAS, Luiz Antonio, RUFINO, Luiz e HADDOCK-LOBO, Rafael. Arruaças: uma


filosofía popular brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

SIMAS, Luiz Antonio e RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

25
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

SIMAS, Luiz Antonio e RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Mórula,
2019.

SIMAS, Luiz Antonio. O Corpo Encantado das Ruas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2019.

SIMAS, Luiz Antonio. Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros.
Rio de Janeiro: Mórula, 2019.

VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância lgbtq. São
Paulo: n-1, 2019).

Recebido em: 01/10/2020


Aceito em: 16/12/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A EXPERIÊNCIA DO TEATRO NEGRO E A IDEIA DE


UM TEATRO DE NAÇÃO ATRAVÉS DO
BARAPERSPECTIVISMO

Rodrigo dos Santos1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.35002

Resumo
O baraperspectivismo é um conceito que provem do exame do simbolismo dos mitos de
Exu e se conjuga com o propósito de produzir uma reflexão sobre relações raciais em
termos artísticos, filosóficos e políticos, em que não se estabeleça uma hierarquia entre
impulsos criativos e impulsos cognitivos, partindo do pressuposto de que o pensamento
se produz através de uma relação entre impulsos e afetos. Assim, o presente trabalho faz
uma abordagem dos principais aspectos que caracterizam a concepção de teatro para o
baraperspectivismo, a partir de sua ligação com a experiência vivida na companhia de
teatro negro carioca Cia dos Comuns. A ideia de teatro para o baraperspectivismo
corresponde à concepção de um teatro de nação relacionada à criação de uma poética da
revolta, que procura pensar a teatralidade da violência e da agressividade como estratégia
de superação do complexo de inferioridade.

Palavras-chave: Teatro negro. Baraperspectivismo. Violência. Complexo de


inferioridade. Cia dos Comuns.

LA EXPERIENCIA DEL TEATRO NEGRO Y LA IDEA DE


TEATRO NACIONAL A TRAVÉS DEL
BARAPERSPECTIVISMO
Resumen
El baraperspectivismo es un concepto que surge de examinar el simbolismo de los mitos
de Exu y se conjuga con el propósito de producir una reflexión sobre las relaciones
raciales en términos artísticos, filosóficos y políticos, en el que no se establece una
jerarquía entre impulsos creativos y impulsos cognitivos, basado en el supuesto de que el
pensamiento se produce a través de una relación entre impulsos y afectos. Así, el presente
trabajo aborda los principales aspectos que caracterizan la concepción del teatro para el
baraperspectivismo, desde su conexión con la experiencia vivida en la compañía de teatro
negro de Rio de Janeiro Cia dos Comuns. La idea de teatro para el baraperspectivismo
corresponde a la concepción de un teatro nacional relacionado con la creación de una
poesía de revuelta, que busca pensar en la teatralidad de la violencia y la agresividad
como una estrategia para superar el complejo de inferioridad.

Palabras clave: Teatro negro. Baraperspectivismo. Violencia. Complejo de inferioridad.


Cia dos Comuns.

1
Ilè Omiojúàrò. E-mail: rodrigodossantos@hotmail.com.
27
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Uma das primeiras coisas que a gente deve saber é que o baraperspectivismo é
uma concepção filosófica que pode ser pensada a partir de uma comparação com a figura
do Iroko, esse pé de árvore monumental, orixá plantado nas terras do Alaketo, a Ile
Maroialaji, em Salvador, e nas da Ile Omiojuaro, na Baixada Fluminense. Assim como o
Iroko renova suas folhas, se regenera de uma poda e eleva seus galhos muito acima da
estatura das pessoas, enquanto também aprofunda simultaneamente suas raízes nos
subterrâneos da terra, o baraperspectivismo é uma ideia cujo significado é inapreensível
em termos absolutos. Um processo de contínua ressignificação, de rupturas e alianças, de
abandonos e de encontros, de extravios e descobertas, caracteriza o baraperspectivismo
como um conceito dinâmico. Nutrição e crescimento são dois aspectos importantes do
processo integrado na vida dinâmica do conceito. Considerando suas raízes, existe uma
forte influência do pensamento nietzschiano sobre o trágico, que permitiu, por um lado,
a produção do conceito a partir de uma reflexão sobre o teatro e, por outro, uma ênfase
na exploração de possibilidades para a construção de um antagonismo veemente à
supremacia da razão na modernidade. Além disso, a ligação do baraperspectivismo com
o teatro pode ser explicada de um modo mais fundamental a partir da concepção de “ritual
trágico yorùbá”, proposta por Wole Soyinka, segundo a qual, a reprodução ritual, em
terra, das façanhas dos orixás expressa e mobiliza propriedades metafísicas e morais que
permitem a manutenção da vida na sociedade humana pela contínua restauração de uma
harmonia com a ordem cósmica e cosmológica do mundo. O ritual trágico de Soyinka
pressupõe a existência de quatro compartimentos, “estágios”, ou, eu diria, a existência de
quatro camadas do real afins ao que ele entende como visão de mundo dominante na
sociedade tradicional yorùbá. A cada camada corresponde um mundo: o dos ancestrais, o
dos vivos, os quais o povo de santo da nação nagô designa como araiye, e o mundo dos
não nascidos. A quarta camada do real seria uma zona de transição, um estágio em que
todas as coisas encontram sua dissolução e regeneração, um compartimento em que se
assenta o mistério do nascimento e da morte. Inerente aos outros domínios que compõem
a totalidade do real, essa perspectiva configurada por uma noção de mudança, já que
instaura a dinâmica do surgir e do desaparecer na vida de todos os seres, é um dos
principais elementos com os quais se ocupa a concepção do ritual trágico de Soyinka.
Assim, uma das funções desse ritual seria preservar o vínculo da sociedade dos araiye
com seus fundamentos metafísicos pela apresentação da reprodução empírica do estágio
de transição. Talvez uma das ideias mais sugestivas relacionadas à concepção do ritual

28
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

trágico yorùbá seja a de que nem os orixás escapam das condições existenciais impostas
pelo estágio de transição. Ogum, então, figura como o “primeiro ator” no argumento de
Soyinka (SOYINKA, 1990, p.142). Nosso grande pai, caçador, soldado, metalúrgico e
agricultor, se destaca na narrativa de Soyinka, desempenhando fundamentalmente seu
papel de asiwajú, daquele que precede, abrindo os caminhos. Soyinka também descreve
o estágio de transição como um “abismo” e Ogum é o primeiro orixá a atravessá-lo,
enfrentando todos os riscos da dissolução e do aniquilamento. Só que, rs, do abismo, rs,
Ogum emerge renovado, mais poderoso ainda.
A ideia do estágio de transição determinando fundamentalmente a condição
existencial de todas as coisas é inerente à concepção do baraperspectivismo e, portanto,
está associada à maneira pela qual vamos pensar o teatro negro e esboçar os traços
principais do nosso teatro de nação. Aqui, entretanto, a gente se desvincula da figura do
abismo de Soyinka e passa a encarar o estágio de transição privilegiando pelo menos dois
aspectos reveladores de sua importância para nossa reflexão. Primeiro, a gente vê que o
estágio de transição é uma ideia que revela uma dinâmica que pode ser descrita com o
emprego de termos ontológicos. Pensar essa dinâmica, então, preservando, no nível da
experiência do pensamento, o poder sugestivo que a sensação do movimento, da
transformação e da mudança exerce na hora e no lugar da experiência empírica, implica
recorrer à fórmula designada pela figura conceitual do surgir e desaparecer. Segundo, o
mesmo estágio de transição também se mostra como a dinâmica que também pode ser
caracterizada com o emprego de termos propriamente fisiológicos, através da figura
conceitual da nutrição e crescimento, de acordo com o mesmo desejo de preservar
teoricamente, de um modo análogo, o poder sugestivo gerado pelas impressões sensoriais
em jogo no fluxo da experiência empírica. A ideia de empregar figuras conceituais nesse
exercício de reflexão é cara ao baraperspectivismo e faz parte de um trabalho, isto é, de
um esforço que busca evidenciar o aspecto sensível dos processos de compreensão,
eliminando uma suposta hierarquia cognitiva entre imaginação e entendimento, ao
mesmo tempo em que entende que o pensamento é uma relação entre impulsos e afetos.
Assim, operamos a substituição da figura de Ogum, privilegiada por Soyinka, pela de Exu
Elegbára. Trocamos a figura daquele que enfrenta o estágio de transição, pela figura
daquele que encarna em si mesmo o próprio estágio de transição. Como diria o poeta e
amigo Allan da Rosa, o baraperspectivismo também é um “elegbaraperspectivismo”, rs.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Se Exu Elegbára é aquele que encarna a própria noção do estágio de transição,


então ele também é a figura que determina fundamentalmente a condição existencial de
todas as coisas. Na real, a anterioridade de Exu perante todas as coisas é que deve ser
compreendida como a condição de possibilidade da criação do próprio conceito de estágio
de transição. O inexpugnável corpo dos Odu Ifá é um composto de saberes que resiste há
séculos à violência e à sanha de dominação e conquistas inerentes ao colonialismo e, se
por um lado, resguarda uma exuberância de valores pré-coloniais da sociedade tradicional
yorùbá; por outro, também se consolida como um arsenal de valores a serem empregados
na grande disputa do antagonismo ao racismo burgo-caucasiano dos sistemas sociais
hegemônicos em nossa era. E se o baraperspectivismo pretende articular um arsenal
filosófico e artístico, ético e político, na guerra contra os complexos de inferioridade que
assolam mentalidades e corpos de gente preta mundo afora, produzidos pelo narcisismo
dos sistemas de pensamento do mundo branco ocidental, cujo patriarca é o complexo do
racismo, então é no corpo dos Odu Ifá que ele vai encontrar suas armas mais importantes,
além dos fundamentos para a criação de suas táticas de defesa e de ataque. Assim como
Fela Kuti se torna o exemplo por excelência de um artista que utiliza a música como
“arma”, a concepção do teatro de nação se propõe a manejar os ìtàn hauridos no corpo de
Odu Ifá como instrumentos de combate na defesa e no fortalecimento das subjetividades
pretas oprimidas, como no ataque a toda e qualquer manifestação da ideologia racista, a
todo e qualquer sintoma da patologia do racismo. A importância do corpo de Odu Ifá
como berço de um discurso filosófico africano pré-colonial se evidencia pela sua
qualidade epistêmica e, por conseguinte, pela sua capacidade de desmontar
completamente o argumento racista da suposta “mentalidade primitiva”, atrasada, ou
retardada, dos povos de pele preta, que a modernidade branca celebrou com discursos de
ódio, irrisão e desdém; e com práticas de subjugação, exploração, aniquilamento, terror e
silenciamento. A propósito, Marcien Towa, apresentou uma fórmula desse argumento
racista, um “fundamento do imperialismo europeu”, criado pelos filósofos europeus, e
chamou de “silogismo do racismo” (TOWA, 2015, p.27): “o homem é um ser
essencialmente pensante, racional. Ora, o negro é incapaz de pensamento e raciocínio.
Ele não tem filosofia, ele tem uma mentalidade pré-lógica. Portanto, o negro não é
verdadeiramente um homem e pode ser, legitimamente, domesticado, tratado como um
animal”.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Quando Òrúnmìlà Ifá transmitiu ao discípulo que se tornaria seu primeiro


sacerdote o corpo de Odu, na ocasião em que, antes de aprender os fundamentos de Ifá,
ele ainda era um “chefe feiticeiro”, seu discípulo vinha de uma grave situação de perdas
e infortúnios, perdendo seu prestígio e a própria credibilidade como um homem de
conhecimento, à medida que seus próprios alunos sucumbiam mediante uma terrível
calamidade. Ele então partiu de sua terra em busca de soluções para sua lamentável
situação até que, enquanto vagava ao longo de uma estrada, depois de meses e meses
viajando sem descanso, encontrou um velho vestido de branco que, olhando-o por um
tempo, o convidou para segui-lo. Em sua casa, o velho, sendo o próprio orixá, cuidou do
corpo do “feiticeiro”, suprindo-lhe as necessidades de comida e de bebida, e apresentou-
lhe suas dezesseis esposas. Disse-lhe, então, que cada uma das esposas deu à luz dezesseis
filhos e que cada um desses dezesseis filhos, por sua vez, também possuía, cada um,
dezesseis filhos. Òrúnmìlà, então, narrou as histórias de cada um dos filhos e as histórias
de cada um dos filhos dos filhos, transmitindo, dessa forma, o corpo de Odu ao até então
desesperado “feiticeiro”. Assim, foi iniciado o primeiro sacerdote de Ifá, que retornou ao
seu povo com o conhecimento necessário e adequado à produção de soluções para os
problemas antigos e os que ainda viriam a emergir. Esse relato foi passado para Muniz
Sodré por Pai Agenor Miranda Rocha, oluô, sacerdote iniciado nos preceitos de Ifá, e
registrado pelo professor Muniz em livro (SODRÉ, 2014, p.27).
Ao lado dessa narrativa, é importante trazer o ìtàn que narra o nascimento de Exu
Elegbára figurando como o primeiro filho de Òrúnmìlà. O modo pelo qual pode-se dizer
que Exu Elegbára encarna o conceito de estágio de transição se explica pelo exame desse
ìtàn, mais especificamente observando dois aspectos do caráter de Exu, revelados pelo
ìtàn. Um deles está relacionado à figura conceitual do surgir e desaparecer; outro, à da
nutrição e crescimento. Sendo assim, no “começo dos tempos” (SANTOS, 2014, p.56),
Òrúnmìlà visitou Olódùmarè e Obatalá na época em que ambos preparavam a criação das
pessoas humanas. Já tinham criado Exu e o mandaram viver junto aos demais orixás. Exu
ficou morando na entrada da casa dos orixás. Ao vê-lo, Òrúnmìlà quis tê-lo como filho.
Pôs as mãos sobre Exu e, ao voltar para casa, ele e sua esposa, Yébìírú, fizeram sexo. Ela
engravidou e deu à luz um menino. Como Obatalá dissera que esse filho teria um poder
enorme, Òrúnmìlà chamou-lhe de Elegbára. No primeiro dia de vida, a criança, que já
nasceu falando, pediu para comer preás. A mãe, encantada, entoou uma cantiga e fez a
vontade do filho, que devorou todos os preás da cidade. Até o fim. Exu, então, chorou,

31
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

porque queria comer mais preá. E não tinha. No dia seguinte, pediu peixe. E a mãe,
cantando, fez a vontade do filho. Òrúnmìlà comprou todo o peixe que havia na cidade.
Elegbára como até o fim e o peixe acabou. No terceiro dia de vida, Exu pediu aves,
galinha, pombo, pato e galo e todo o tipo de bicho de penas que havia. Devorou todos.
Até o fim. No quarto dia de vida, Exu disse que queria carne. A mãe cantou e os pais
fizeram a vontade dele. Òrúnmìlà saiu para comprar a carne e só encontrou cachorro.
Mataram cachorro. Elegbára comeu até o fim e ficou pedindo mais carne. Mataram todos
os cachorros. Depois mataram todos os porcos. Continuaram matando todos os bodes,
carneiros, touros, cavalos e todo tipo de animal de quatro patas que tinha na cidade. Até
o extermínio. No quinto dia de vida, Elegbára quis devorar a mãe e ela, cantando,
consentiu. Ele, então, a tomou e a devorou. E assim o medo mandou no corpo de
Òrúnmìlà. E ele foi ao seu babalaô para saber o que deveria fazer para que a criança não
o matasse também e o devorasse. O babalaô disse que ele deveria usar uma espada, um
bode e catorze mil búzios no ebó. Òrúnmìlà fez o ebó. No sexto dia do nascimento de Exu
Elegbára, ele disse, “pai, êh, pai, eu quero comer você”. E Òrúnmìlà cantou a mesma
cantiga de Yébìírú:

Come, meu filho, come.


Come, criança, come.
Fio de contas de coral.
Minha pulseira de cobre.
Alegria que não se acaba.
E quando chegar nossa hora
o filho é quem fica aqui pra lembrar
e pra propagar nossa glória.

Quando a criança avançou para devorar o pai, Òrúnmìlà sacou a espada do ebó.
Apavorado, então, Elegbára fugiu. O pai foi atrás e, quando alcançou Elegbára, partiu o
filho em duzentos e um pedacinhos. Jogou cada parte num canto diferente do mundo e
cada pedaço de filho se transformou em Elegbára Exu novamente. Só que o último deles,
ao se transformar em Exu, fugiu do pai novamente. E antes de Òrúnmìlà alcançá-lo, ele
já estava inteiro e tinha ficado grande de novo. Mas, no segundo mundo do orun,
Òrúnmìlà o alcançou e cortou o filho de novo em duzentas e uma partes, atirando cada
pedaço de filho numa direção diferente do mundo. E cada parte cortada de Exu se
transformou de novo em Exu inteirinho. O Exu que se transformou por último também
correu do pai. E Òrúnmìlà foi atrás. Essa situação se repetiu igualzinha em todos os

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

mundos do orun. Que são nove. Depois que o pai perseguiu e picotou o filho por todos os
nove mundos do orun, com cada pedaço do filho partido se transformando de novo no
Exu Elegbára inteiro, o último dos últimos pedaços de filho, quando virou Elegbára de
novo, lá nos confins do orun, disse que Òrúnmìlà não precisava mais perseguí-lo. Ele
disse ao pai que poderia utilizar, para realizar o que quer que fosse necessário, como se
fosse o seu próprio filho, cada um dos Exu espalhados por todos os nove mundos do orun,
por todo esse espaço que a astronomia definiu como universo. Elegbára, então, devolveu
a mãe devorada. E se Òrúnmìlà desejasse recuperar os animais da terra, dos céus e das
águas, de pena, de pelo, ou de escama, de dois, ou de quatro pés, que ele tinha devorado
ao nascer, Exu iria ajudá-lo, recebendo cada um dos bichos diretamente da mão das
pessoas que fazem casa na terra. E entregando depois nas mãos de Òrúnmìlà e de todo o
povo do orun. Òrúnmìlà e Yébìírú, depois de Elegbára, ainda tiveram muitas filhas e
muitos filhos. Elegbára, então, se tornou o guardião da família, livrando-a principalmente
da guerra e ensinou ao pai, à mãe e a todos e todas as descendentes de sua mãe a louvá-
lo, para que ele pudesse realizar todo e qualquer trabalho que fosse necessário.
Tem um livro que é o Silenciando o passado, é de um antropólogo haitiano finado,
um ancestral bem lembrado já, que se chama Michel-Rolph Trouillot. Nesse livro, o
Trouillot apresenta uma interpretação inovadora, pelo menos para o público brasileiro
talvez, da Revolução da Ilha de São Domingos, que durou de 1791 até 1804 com a
declaração de independência e a fundação do Haiti (TROUILLOT, 2015, p.37). Foi a
única revolução bem sucedida no mundo, capitaneada por gente preta que havia sido
escravizada. Nesse caso, foi pelo sistema colonial francês. A importância da singularidade
analítica do Trouillot está em fazer um exame da produção da história a partir das relações
de poder. Ele destaca, assim, dois níveis da historicidade: o que aconteceu, por um lado;
e, o que dizem ter acontecido, por outro. Entre um e outro nível, existe uma rede complexa
de relações estabelecidas entre atores, agentes e sujeitos que viveram e presenciaram os
fatos constituintes dos acontecimentos; entre a produção de arquivos que compilam os
eventos derivados dos fatos; e entre os historiadores profissionais que lidam com esses
arquivos, além de outros tipos de “narradores” que interpretam os eventos, incorporando
registros extra bibliográficos, como museus, monumentos, ruínas e narrativas hauridas da
tradição oral. Assim, entre o que aconteceu e o que dizem ter acontecido, o poder opera
uma dinâmica de menções e de silêncios (TROUILLOT, 2015, p.48). As narrativas, em
geral, as oficiais, ocultam determinados fatos em função de uma relação de poder. Por

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

exemplo, o nome de Toussaint L’Ouverture sobrevive na bibliografia sobre a Revolução


do Haiti, com uma biografia escrita por Aimé Césaire, um livro que destaca sua
importância como o general que foi capaz de reunir as forças revolucionárias da ilha, Os
jacobinos negros (2010), e uma peça teatral intitulada com seu nome (2013), encenada
pela primeira vez em Londres em 1936, ambos de autoria de C.L.R. James. Jean-Jacques
Dessalines, outro general revolucionário, também é bastante mencionado na
historiografia oficial, além de ser cultuado como um loa, um ancestral no vodu, como
Ogou Dessalines. Dessalines foi quem declarou a independência do Haiti e seu primeiro
chefe de Estado. Henri Christophe, “Le Roi Henry”, também foi um importante general
revolucionário, amplamente mencionado, foi quem sucedeu Dessaines como Imperador,
governando a região norte da ilha, enquanto Alexandre Pétion era presidente no sul da
ilha. Na real, há uma peça de Aimé Césaire intitulada A tragédia do Rei Christophe, que
abre com uma briga de galos e uma discussão monumental entre Christophe e Pétion. A
gente ainda vai voltar a alguns aspectos importantes da Revolução do Haiti ao longo desse
texto, porque essa guerra é uma referência fundamental da nossa poética da revolta. Por
enquanto, trago os nomes desses heróis de pele escura, o único mulato mencionado aqui
é o Pétion, para mostrar um esboço da ideia de Trouillot sobre a menção e o silêncio na
produção da história. Para ele, há uma complexa relação de poder que faz com que os
nomes desses personagens, por exemplo, permaneçam na história em detrimento de
outros personagens tão importantes como aqueles. Por isso, ele faz um exame da figura
de um importante líder revolucionário, presente desde as primeiras insurreições de 1791
e que acaba assassinado pelo general Christophe em 1803. Era o general Jean-Baptiste
Sans Souci (TROUILLOT, 2015, p.40). Africano de nascimento, provavelmente nascido
no Congo e chefe de um exército de africanos também. A partir da figura de Sans Souci,
Trouillot aponta para um antagonismo existente no interior das próprias forças
revolucionárias, que opunha os pretos nascidos na colônia, os crioulos, aos pretos
africanos, os boçais. Esse antagonismo gerou uma “guerra dentro da guerra” em dois
momentos: primeiro, com o desembarque das tropas francesas comandadas pelo cunhado
de Napoleão Bonaparte, o general Charles Leclerc, em 1802, a capitulação e a prisão de
Toussaint e a deserção de Dessalines, Christophe e Pétion para o exército francês, as
tropas de africanos mantiveram seu antagonismo e eram caçadas, portanto, por seus
antigos companheiros de armas. Quando Dessalines, Christophe e Pétion, depois da
prisão e da deportação de Toussaint para a França, se colocaram com suas tropas

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

novamente ao lado da revolução, os africanos não teriam mais aceitado aqueles generais
como líderes. Sans Souci, de acordo com Trouillot, então, provavelmente, teria sido um
nome forte para encabeçar as fileiras da liderança. No entanto, muito pouco se sabe sobre
ele, que foi assassinado por Christophe em uma emboscada e de cujo corpo nunca se
soube o paradeiro. É provável que Sans Souci tenha desempenhado um papel muito
importante na Revolução do Haiti. Porém, sua história é feita muito mais de silêncios do
que de menções (TROUILLOT, 2015, p.54).
É importante ter em vista essa dinâmica entre a menção e o silêncio aqui. Tratamos
de ìtàn e não de uma historiografia compilada sistematicamente, que inventa padrões de
estabelecimento da história e da não história. Os textos do ìtàn sequer se concebem a
partir da mesma ordem cronológica em que se inserem os registros da historiografia
branca. E é nisso que consiste seu valor para o baraperspectivismo. Sua temporalidade
não fala absolutamente de uma época ultrapassada, nem pelo calendário, nem pelo
desenvolvimento tecnológico das grandes potências mundiais, nem pelas imposições
políticas e econômicas da situação colonial e nem pelos valores culturais da modernidade.
Quando supomos que o ìtàn fala a partir de uma época, essa época se refere a um momento
originário. Porém, trata-se de um momento que não pode ser computado em termos
cronológicos e que tenha deixado vestígios que possam ser medidos pelo carbono 14; e
também não se trata de um momento inserido no tempo compreendido como forma da
intuição a priori. Quando falamos que o ìtàn se refere a um momento originário, o que
permite essa afirmação é a qualidade da situação, ou do evento, de que trata o ìtàn. O ìtàn
é uma narrativa sobre um evento originário. A importância que o ìtàn confere ao momento
presente, ao estado de coisas atual que evoca seu poder de significação, está em sua
capacidade de revelar o sentido originário de qualquer problema concreto, de qualquer
problema que precisa de solução. O ìtàn é o estilo da narrativa que revela o sentido
originário da experiência humana. O ìtàn é a narrativa que preserva a lembrança de que a
natureza do esforço de todas as coisas pela manutenção da vida é o que nos implica nesse
caráter originário da existência. Agir conforme o poder de realização, conforme o axé, de
cada natureza, significa fazer da vida a cada momento uma experiência originária.
É dessa maneira que a narrativa veiculada pelo ìtàn se manifesta de um modo
necessariamente articulado com a pressão do presente, do momento em que ela vem à
luz, seja na mesa de jogo, seja no corpo do vodunsi, quando o orixá lhe pega a cabeça,
seja numa conversa, seja até mesmo através da escrita e da leitura, seja se manifestando

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

no próprio exercício do pensamento, isto é, da criação, ou do desejo. O ìtàn, como parte


do corpo de Odu Ifá, é um texto criado para gerar movimento, transformação, vida. Não
é um mero registro, peça de arquivo, matéria enciclopédica. É um texto destinado à ação,
não à acumulação. Combinado com o ebó que prescreve, o ìtàn é uma reserva de energia,
é força motriz. Além disso, minha proposta é fazer um exercício filosófico, é lidar
principalmente com ideias, figuras, conceitos, forças e afetos, apesar de recorrer também
a fatos e narrativas da história do colonialismo. Entretanto, podemos perguntar se o texto
do ìtàn em si mesmo se enquadraria no esquema de Trouillot da menção e do
silenciamento. A pergunta é válida, mas o que é mais importante declarar é que devemos
prestar atenção na maneira com que minha própria interpretação do ìtàn reproduz o
esquema da menção e do silenciamento e como a partir disso realizo um discurso sobre o
poder. Isto é, como é que meu olhar, a abordagem que proponho, reproduz o jogo da
menção e do silêncio e por quê.
Sugiro que possamos pensar a partir de uma aliança entre alguns elementos
importantes que se destacam no ìtàn do primeiro sacerdote de Ifá, por um lado, e no ìtàn
sobre o nascimento de Exu Elegbára, por outro. Obtendo uma noção dessa aliança, isto é,
desse jogo, poderemos acessar a singularidade do problema colocado pela experiência
vivida no contexto da Cia dos Comuns, que inaugura o longo processo de gestação do
conceito de teatro de nação. Ora, explicar o sentido dessa experiência inaugural
privilegiando o ìtàn como recurso para a organização de um “sistema de referência” é
assumir um posicionamento no jogo do poder que transparece na dialética da menção e
do silêncio. Desde que o pretenso discurso racional se estabeleceu como paradigma do
exercício da verdade, os estilos discursivos que ameaçavam a ordem lógica da razão
foram desclassificados, subalternizados e silenciados. Na real, o desejo de dominar a
verdade com as ferramentas da lógica na produção de conhecimento pressupõe uma
desordem narcísica. Contra a figura de Narciso, que não suporta qualquer coisa
dessemelhante e que não funcione de um modo que ele possa controlar, dominar e
compreender, vamos estabelecer Exu Elegbára que, ao ser estilhaçado, ou, estraçalhado,
se regenera e se multiplica.
A ideia de uma associação entre os ìtàn acima abordados, o do nascimento de Exu
Elegbára e o que narra a busca do primeiro sacerdote de Ifá pela solução dos problemas
de seu povo, tem o poder de produzir uma explicação artística e filosófica,
fundamentalmente afim ao baraperspectivismo, sobre a relação entre a experiência vivida

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

no contexto e no interior dos processos criativos da companhia teatral negra carioca, Cia
dos Comuns, e a concepção do teatro de nação. Sob a ótica dos ìtàn, examinaremos, por
um lado, alguns aspectos característicos de dois textos exemplares da noção de teatro
negro proveniente dessa experiência vivida na Comuns. Tentarei demonstrar como alguns
desses aspectos manifestam rupturas e continuidades entre aquela noção de teatro negro
e a concepção do teatro de nação. Assim, farei uma abordagem de A roda do mundo,
primeira peça da Comuns, e do Cabaré da rrrrrraça, do Bando de Teatro Olodum. Por
outro lado, examinaremos alguns aspectos de um texto de minha autoria, que ainda se
encontra em processo de criação, que considero importantes para elucidar a ideia do teatro
de nação, que surge do desenvolvimento e da dinâmica conceitual do baraperspectivismo.
Esse texto se chama Elegbára beat e pode ser apresentado em linhas gerais como um
comentário cênico sobre o poder. Embora em fase de conclusão, Elegbára beat já se
constitui de elementos fundamentais à concepção do teatro de nação, porque são
elementos que se articulam através de uma poética da revolta. E o baraperspectivismo
compreende o teatro de nação como uma expressão de revolta, de libertação, de
resistência cultural. O teatro de nação deve nascer como uma expressão da resistência
cultural negra.
Encaminhando nosso exame, podemos supor que o poder de Exu Elegbára
reverbera e também se personifica na figura do primeiro sacerdote de Ifá, na medida em
que ele adquire os saberes implicados nas narrativas dos Odu Ifá, transmitidos pelo
próprio Òrúnmìlà, concebido como o pai de Elegbára. Se, por um lado, essa associação
entre os ìtàn explica o processo de concepção da ideia de teatro de nação a partir de uma
experiência e de uma reflexão sobre uma determinada noção de teatro negro; por outro, a
narrativa sobre o primeiro sacerdote é mais adequada para explicar a experiência vivida
no teatro negro da Comuns, enquanto o ìtàn do nascimento de Exu Elegbára explica
melhor o momento da gênese do teatro de nação.
Assim, em primeiro lugar, vejamos dois movimentos que se evidenciam no ìtàn
do sacerdote. Há um movimento de busca pela solução dos problemas que assolam sua
comunidade e um movimento de retorno para a comunidade com a solução dos
problemas. A figura do primeiro sacerdote é apresentada inicialmente como um
“feiticeiro” desolado, incapaz de solucionar o problema da mortandade que se abate sobre
seus discípulos. “Feiticeiro” é uma designação estrangeira, colonial, que banaliza e
implica uma pretensa subalternidade, quando atribuída ao indivíduo capacitado a produzir

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

conhecimento e explicar os problemas que atingem a existência de uma determinada


sociedade. É um termo produzido pelo colonizador que também implica uma
hierarquização de saberes e sistemas de referências na situação colonial. É um termo
pejorativo para designar a experiência e a capacidade epistêmica de um indivíduo e de
um povo. É um termo exemplar do processo de menções, exaltações e silenciamentos
implicado nas relações de poder. É uma figura, portanto, que não pode ser vista como a
expressão de subalternidade, incapacidade e atraso. Porque nada disso explica o valor da
ideia de humanidade que ela evoca. Nela, o humano se traduz precisamente nos
movimentos da busca e do regresso para o seu povo, preparada para trabalhar pela solução
de problemas. Ora, acredito que minha chegada ao teatro negro se assemelha à busca de
várias e vários artistas negres. É por esse movimento da busca pela solução dos problemas
que nos atravessam que nos identificamos com a figura do sacerdote. Nossa “experiência
vivida”, de acordo com a fórmula de Fanon, também fala de um povo assolado por uma
calamidade. Na real, a situação colonial estabelece a calamidade como padrão de
dominação da vida de um povo colonizado.

No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração


de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma
atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno
do corpo reina uma atmosfera plena de incertezas. (...) O mundo branco,
o único honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se
uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou
pelo menos uma conduta de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo
amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que
encolhesse (FANON, 2008, pp. 104 – 107).

A busca por soluções retratada no ìtàn também é uma busca pelo conhecimento,
na medida em que reflete essa atmosfera plena de incertezas produzida pelo mundo
branco em que vivemos. Simultâneos ao terror perpetrado pelo genocídio, a negação do
corpo preto e o silêncio que resulta da amputação do nosso entusiasmo correspondem a
uma moral da exploração naturalizada no patamar simbólico da vida da cultura branca
dominante. Sufocados diante das dificuldades de elaboração dos esquemas de
autoconhecimento, estamos constantemente em vias de perder o fôlego e apagar psíquica
e fisicamente, como George Floyd. E, ainda, do “progresso” técnico e industrial das
sociedades globalizadas emerge uma pandemia provocada por uma síndrome respiratória
que afeta a grande maioria da população preta mundial, demonstrando como os impasses
políticos e sociais gerados no bojo do colonialismo e da sociedade burguesa impactam

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

destrutivamente as populações historicamente exploradas pelo racismo e pelo capital. E,


por mais que possam variar os contextos históricos relativos à experiência de criação na
Comuns e ao momento atual que assiste ao nascimento do teatro de nação, a situação
colonial continua nos impondo problemas semelhantes, porque historicamente
negligenciados, obliterados e distorcidos por nações, governos, corporações e instituições
transnacionais responsáveis pela regulação e pelo desenvolvimento das relações políticas
e econômicas mundiais. Se nossos antepassados escravizados e explorados pelo
imperialismo foram, “da noite pro dia”, obrigados a se situarem em relação a dois
sistemas de referência (FANON, 2011, p.153), esse ainda é um problema elementar com
o qual precisamos lidar, por causa da complexidade que imprime em nossa era e do teor
das ambiguidades e ambivalências com as quais somos obrigados a nos envolver. Creio
que nos integramos ao teatro negro buscando soluções para os problemas decorrentes
dessa complexidade, dessas ambiguidades e ambivalências.
Além disso, da mesma forma que o sacerdote de Ifá retorna para o seu povo
munido de textos e preceitos que, ao serem interpretados e executados da forma correta,
isto é, em harmonia com a experiência da ancestralidade, têm o poder de restabelecer a
ordem e de reorganizar a capacidade de expansão processual da vida em termos psíquicos,
sociais e cosmológicos, concebemos nosso “público alvo” como um só povo conosco,
submetidos que estamos às mesmas condições culturais determinadas pelos emaranhados
da opressão racial. Devemos considerar também que a experiência da ancestralidade,
como o contexto desses ìtàn revela, se configura explicitamente em Exu Elegbára. Ele é
o primogênito de Òrúnmìlà que assume o papel do guardião das descendentes e dos
descendentes de seus pais. Buscamos o teatro negro, ansiando um corpo de narrativas que
também veiculem o poder das nossas histórias e, de certo modo, o poder também de nossa
ancestralidade, da eficácia de nossas concepções políticas, sociais e metafísicas.
Narrativas que, de algum modo, promovam como resultado a cura da condição
fantasmática que nos assola: a de condenados da terra.
Nesse sentido, A roda do mundo e Cabaré da rrrrrraça são narrativas que
desmistificam as condições que tornaram possíveis os estigmas da subalternidade e que
transmitem o poder adequado à implosão dos complexos de inferioridade inventados pelo
supremacismo branco. Como antecedentes do teatro de nação, esses textos guardam os
germes da poética que sustenta o poder criativo do teatro de nação. Há uma declaração
de Fanon tão precisa no sentido de elucidar qual é o elemento de ligação entre A roda, o

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Cabaré e Elegbára beat, cujo cultivo e cuja exploração consistem no cerne da pesquisa
de elaboração da poética da revolta, que é necessário observá-la.

Ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Ela desembaraça o


colonizado de seu complexo de inferioridade, de suas atitudes
contemplativas ou desesperadas. Ela o torna intrépido, o reabilita aos
seus próprios olhos (FANON, 2011, p.496).

A roda do mundo encenou a violência por meio de coreografias que reproduziam


lutas encarniçadas entre bandos, configuradas deliberadamente com saltos e pernadas de
capoeira, que irresistivelmente evocavam a memória das velhas maltas de capoeiras
cariocas da segunda metade do século XIX. Relatos da época registrados em livros de
história de autores como Luiz Sérgio Dias (2001), Carlos Eduardo Moreira de Araújo
(2006) e Carlos Eugênio Líbano Soares (1994) nos falam de duas grandes nações, duas
grandes organizações de maltas de capoeiras que se distribuíam pelo centro da cidade do
Rio de Janeiro e seus arredores. Cada freguesia, ou bairro, possuía sua malta, que
acompanhava procissões, comícios e festas religiosas. As grandes nações que agrupavam
e organizavam as maltas de cada freguesia eram a Nagoa, onde a presença de africanos
era maciça, e a Goiamum, em que predominavam os crioulos. A imprensa da época fazia
menções recorrentes à violência das lutas entre as maltas. E se ainda hoje identificamos
a capoeira como exercício de intrepidez e reabilitação, de acordo com Fanon sobre o
poder de emancipação que a violência concede ao colonizado, é muito provável que no
século XIX ela fomentasse também o exercício da valentia e o cultivo de uma espécie de
sabedoria muscular que reabilitasse o membro de uma nação da sua condição de
subalternidade perante os membros de outra nação e perante os representantes das classes
dominantes. A propósito, a ideia de nação que caracteriza a concepção do teatro de nação
provem, por um lado, das narrativas sobre as maltas de capoeiras e sua capacidade de
organização naquelas duas grandes nações. Na real, é a capoeira angola que pode
conceder ao elenco do teatro de nação, na minha concepção, o poder da intrepidez, da
resistência física, da reabilitação e da implosão do complexo de inferioridade, pelo treino
e pelo cultivo da ideia de sabedoria muscular. A capoeira angola impele necessariamente
à ação, desembaraçando o praticante das atitudes meramente contemplativas ou
desesperadas. Embora examinemos apenas a importância dos ìtàn na produção do teatro
de nação, sem nos aprofundarmos na importância da capoeira angola, é preciso dizer que
a capoeira angola é o despertar da sabedoria muscular. Na real, a importância desses
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

elementos na produção do teatro de nação está em que a sabedoria muscular, desperta,


intrépida, pulsante e expansiva, nasce da relação entre o ìtàn e a capoeira angola; a poética
da revolta nasce da relação entre o estudo das rebeliões, revoltas e revoluções negras e a
memória viva da experiência vivida na Cia dos Comuns. O teatro de nação, então, é a
composição da sabedoria muscular com uma poética da revolta.
A ideia da capoeira como fundamento de uma estética negra é um legado da
experiência vivida na Comuns desde a montagem da nossa primeira peça, A roda do
mundo. Porém, o texto também contém o germe de uma pesquisa sobre as rebeliões,
revoltas e revoluções negras. É neste sentido que se dá sua ligação com Elegbára beat,
que celebra a experiência da revolta e, em especial, a Revolução do Haiti, com seus heróis
anônimos e oficiais. A roda, por sua vez, apresenta seu poder de fogo desintoxicante
contra as atitudes contemplativas, o desespero e o complexo de inferioridade, por um
lado; e, por outro, contra o supremacismo branco, o racismo e o complexo branco de
superioridade, no seguinte comentário sobre os “atentados” de 11 de setembro de 2001,
ao World Trade Center em Nova Iorque.

Hoje o terror emite seu discurso político-religioso


detonando vidas inocentes com aviões-bomba
e buchas humanas suicidas
furiosas
contra a intransigência civilizatória ocidental
sobre outros povos
num espetáculo estarrecedor
amplificado pela mídia
e manipulado pelos órgãos de informação
a serviço da opressão do Ocidente sobre outros povos e culturas
a história dessa opressão é muito mais
sangrenta do que se conta e reconta
gerações após gerações
somos e fomos homens e
mulheres que sangramos e suamos
pra construir o Brasil
hoje somos trinta milhões
de brasileiros vivendo abaixo
da linha da pobreza
linha da pobreza coisa nenhuma
miséria mesmo
MISÉRIA
e não esqueçam que a maioria
desses trinta milhões de miseráveis
é de negros e são tratados
como merda humana
falta terra para você

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

falta terra pra você


nunca tivemos direito à terra
enquanto existir miséria favelada nesse país
não me fale em democracia racial
enquanto existir racismo nesse país
não me exija brasileiro
para a elite branca racista
desse país
antes de brasileiros somos negros
seres inferiores
desconfiemos sempre do Ocidente
desconfiemos dessas organizações
internacionais que atuam no Brasil
como podemos confiar em instituições
beneficentes que atendem
pelos nomes de Ford de Rockfeller
para onde vão os relatórios
dessas organizações?
são organizações
desse tipo que sufocam
nossos gritos impossibilitam nossas revoltas
nossas lutas nossos bastas
“crianças e adultos desse país
e do mundo que viram
atônitos as imagens chocantes do atentado
os quilombolas
revoltosos malês
gritam aqui pela voz dos COMUNS
neste espetáculo
respondemos desde sempre
com a rebeldia dos revoltados
com o ódio que a opressão
e a intolerância são capazes
de gerar nos homens e mulheres de coragem”
Hoje
o horror agachado como um animal imundo
lançou pelos ares
milhares de corpos indefesos
numa das mensagens mais
contundentes e absurdas
de como a intransigência pode
ser respondida com ódio e igual intransigência
por parte dos humilhados
e o capitalismo reivindica
em escala mundial
a reparação tendo no entanto
comandado
um dos processos mais violentos
de exclusão entre os povos
sua nação mais poderosa
com possibilidades de destruir e matar
infinitas exige a reparação
transformando em acusados
suas vítimas

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

os bilhões de habitantes do mundo pobre


e subdesenvolvido
com seus incríveis problemas econômico sociais
suas dívidas impagáveis
suas fomes e misérias
suas epidemias de AIDS e malária
o contraste colossal da
força e beleza de sua alteridade civilizatória
mas dos povos que tiveram que
aprender com a escassez e a fome
talvez parta a saída
se um outro discurso for ouvido antes
para se criar formas
diferentes do discurso do terror
de se combater a supremacia ocidental
a opressão as desigualdades
portanto respeitem nossos valores
respeitem nossa dignidade
é chegada a hora de repartirem
conosco aquilo de que sozinhos
alguns poucos se apropriaram
antes que tudo seja só revolta
Já se passaram os cinco minutos desta cena.
Amanhã eu volto e torno a falar tudo de novo (MEIRELLES, 2001,
pp.24 – 27).2

O texto durava exatamente cinco minutos e era executado pelo ator, produtor,
diretor e fundador da Comuns, meu amor, Hilton Cobra, um dos grandes responsáveis
pelo poder político e criativo da Comuns e interlocutor fundamental na criação da poética
da revolta. Se foi possível criar o baraperspectivismo e estabelecer a gênese do teatro de
nação, Cobrinha, como é conhecido, foi o principal colaborador no cultivo dos impulsos
criativos que proporcionaram a elaboração de ambas concepções. Esse texto é um
verdadeiro discurso sobre o colonialismo e diz, com outros termos, o que Césaire exprime
em seu próprio Discurso, “colonização = coisificação” (CÉSAIRE, 2004, p.23). Uma
análise minuciosa desse discurso da Roda precisa ser efetuada em alguma ocasião, porque
é um discurso integrado com diversos temas cruciais, relacionados ao estudo das relações
raciais, políticas, culturais e econômicas, como racismo, colonialismo, cultura de massa,
capitalismo e subdesenvolvimento, violência, militarização, necropolítica e revolta. Para
além da lembrança do tom da voz e da veemência com que Cobrinha o gritava em cena,
é evidente que ele transcorre com a agressividade típica de um povo oprimido que decide
dar um basta aos abusos, ao terror e à violência dos poderes que o dominam. O teatro de

2
A partir de um texto de Sandra Almada, escrito especialmente para a peça, improvisação de Hilton
Cobra e citação de Milton Santos.
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

nação deve explorar essa agressividade, não no sentido de purgá-la, de produzir um efeito
catártico, como Aristóteles chegou a entender a função da catarse na tragédia dos gregos
com relação ao medo e à compaixão, mas no sentido de afirmá-la, absorvendo as
expressões de ódio do povo preto e produzindo uma elaboração estética desse ódio, que
deve ser devolvida ao povo preto; ou seja, restituindo ao povo preto suas próprias
expressões de ódio e de revolta através de uma teatralidade, de maneira que, enquanto
povo, ele possa decidir o que deve ser feito, por si e para si, a partir do reflexo e da
experiência teatralizada do ódio e da revolta, em nome de um futuro em que o mundo
reconheça verdadeiramente o peso da nossa dignidade negra.
Já no Cabaré da rrrrrraça, o elenco do Bando de Teatro Olodum exprimiu o poder
dessa agressividade nos momentos finais da peça. Assisti a três versões do Cabaré no Rio
e em Salvador e sempre me identifiquei com a revolta do elenco provocada pela alusão
que o texto faz a piadas racistas. Enquanto público, me identificava com a revolta e me
encantava com a combinação entre a beleza dos corpos das atrizes e atores, a elegância
de seus cabelos, maquiagens e figurinos, a altivez de suas atitudes e a agressividade de
suas falas. Enquanto criador, percebo que essa mescla de revolta e encantamento,
agressividade e beleza, não leva necessariamente ao desejo de derramamento de sangue,
mas à eliminação do complexo de inferioridade e ao desejo de organização política.

KARINE:
Negro quando não suja na entrada, suja na saída.
TODOS:
É o caralho!
JAQUE:
Branco correndo é atleta, negro correndo é ladrão.
TODOS:
É o caralho!
WENSLEY:
O que é um negro cagando? Clonagem.
TODOS:
É o caralho!
DRA. JANAÍNA:
Não existe flor negra, porque negro não é flor que se cheire.
TODOS:
É o caralho!
MARILDA:
Negro que não é besta é doido. Quando é sabido demais, dá pra roubar.
TODOS:
É o caralho!
EDILEUSA:
Nego devia ter nascido com dois dentes: um pra doer a noite inteira, o
outro pra roer osso.

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TODOS:
É o caralho!
M.C. :
Negro bom é negro morto.
TODOS:
É o caralho!
TAÍDE:
A semelhança entre um carro com o pneu furado e uma negra grávida é
que ambos estão esperando macaco.
TODOS:
É o caralho!
ABARÁ:
Deus fez o mundo redondo para o negro não cagar nos cantos.
TODOS:
É o caralho!
ROSE MARIE:
A diferença entre o negro e o câncer é que o câncer evolui.
TODOS:
É o caralho!
NEGAÇA:
Nego não morre afogado porque bosta não afunda.
TODOS:
É o caralho!
GEREBA:
O Brasil só gosta de dois pretos: asfalto e Pelé.
TODOS:
É o caralho!
DANDARA:
Negro só sobe quando o barraco explode.
TODOS:
É o caralho (MEIRELLES, 2005, pp.27 – 29)!

A agressividade de cada resposta para cada piada racista enunciada por uma atriz
ou por um ator se expressa como a fala de um coro, TODOS respondem, “É o caralho”!
É a fala de uma coletividade e soa como a resposta de um povo. As piadas, no geral,
evocam expressivamente todo o conjunto de estigmas imputados à gente preta desde os
primórdios das relações coloniais, quando navegantes, aventureiros, missionários e
colonizadores brancos produziram suas narrativas sobre os povos de pele preta habitantes
do vastíssimo e exuberante território que desde o imperialismo romano tem sido chamado
de África. Narrativas implicadas de complexas relações de poder que produziram
mistificações e ideias pré-concebidas com base na escolha entre menções e
silenciamentos. Estigmas que evocam a bestialização, a selvageria, a coisificação, a
irracionalidade, a animalidade, a descartabilidade e o atraso mental. Em suma, todos os
famigerados fantasmas que foram produzidos como atributos da pretensa inferioridade da
gente preta. Devido ao poder pandêmico e devastador que tais fantasmas exercem sobre

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as subjetividades pretas, sua destruição deve ser programada e implementada por toda
organização político-pedagógica que visa a busca e a produção de soluções para os
problemas enfrentados há séculos pelas populações pretas espalhadas pelo mundo. Por
isso, pensar essas soluções como a resposta de um povo deve consistir no esforço comum
e fundamental de artistas, ativistas, intelectuais, autoridades políticas, lideranças
comunitárias e tradicionais verdadeiramente comprometidas com a produção de um
futuro em que a dignidade negra tenha sobrepujado os estigmas depreciativos do racismo.
Finalmente, se partimos dos movimentos de busca pela solução dos problemas do
povo e de retorno para a comunidade com a solução desses problemas, conforme o exame
do ìtàn sobre o primeiro sacerdote de Ifá, para analisar a experiência inaugural de entrada
no mundo do teatro negro, vivida junto à Cia dos Comuns, agora em segundo lugar,
veremos como os movimentos relativos à dinâmica de surgir e desaparecer, por um lado,
e à dinâmica da nutrição e do crescimento, por outro, que identificamos no ìtàn sobre o
nascimento de Exu Elegbára, revelam algumas características dessa passagem que nos
traz até um esboço da concepção do teatro de nação. Na real, vou ressaltar um aspecto
que fala da continuidade e um aspecto que fala de uma diferença entre as duas noções de
teatro negro. A primeira noção, produzida no bojo da experiência com a Comuns, talvez
possa ser descrita como uma ideia mais primordial de teatro negro. Plena de significados
e trabalhando numa frente ampla de organização política, com atividades artísticas e
político-pedagógicas dentro e fora do palco, tais como espetáculos, seminários, oficinas
e a realização do Fórum Nacional de Performance Negra, em parceira com o Bando de
Teatro Olodum, e a busca de parcerias com associações de moradores de comunidades,
cursos de pré-vestibular comunitários e Ong’s, esse conceito de teatro negro se consolida
a partir da influência exercida diretamente pela criação do Teatro Experimental do Negro,
em 1944, por Abdias Nascimento, que via o teatro como uma forma de produção do
protagonismo negro na vida política, social e cultural da sociedade brasileira. Abdias
produziu um teatro em que a população negra marcada social, política e culturalmente
pela subalternidade pode se integrar de uma forma organizada com o propósito de superar
propriamente esse lugar da subalternidade. E, de um modo semelhante com o qual Abdias
pela primeira vez se indignou diante de um ator branco pintado de preto, performando
como um personagem preto no teatro, de passagem por Buenos Aires, e decidiu fundar o
Teatro Experimental do Negro, Cobrinha, perplexo com a ausência de atrizes e atores
negros nos espetáculos teatrais cariocas, na década de 1990, decidiu fundar uma

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companhia composta apenas de atores e atrizes pretas e pretos, cuja estética e dramaturgia
tinham que evocar antes de tudo o protagonismo das gentes e das culturas pretas. Se
chamo essa noção de primordial, é principalmente porque ela se dá a partir de uma estrita
continuidade com as propostas do Teatro Experimental do Negro. Já o teatro de nação é
uma noção incipiente, em gestação, que ainda não chegou a dar seus primeiros passos na
cena negra brasileira. Sua única e exclusiva especificidade em relação à noção primordial,
sua diferença, é que aqui o ìtàn ocupa um lugar privilegiado nos processos criativos. Na
real, a Comuns em seus espetáculos já concedia ao ìtàn um lugar privilegiado em suas
criações. Principalmente em Candaces – a reconstrução do fogo, em que Nanã, Oxum,
Iemanjá e Oya, com seus ìtàn, seus ritmos, seus orin e seus modos de dançar, nos
inspiraram na criação de um espetáculo sobre um “mergulho no universo feminino das
mulheres negras”, como Cobrinha sempre falava. Aliás, quem sugeriu ao Cobrinha a
figura das Candaces, rainhas pretas africanas do Reino de Kush e Méroe, que reinaram
por séculos, chegando a resistir continuamente ao imperialismo romano, como tema para
a montagem de uma peça negra, foi nossa bem lembrada Lélia Gonzáles. Assim, esse
processo de constituição do teatro de nação precisa mesmo ser expresso pelas dinâmicas
de um poder que se expande, que vigora em contínua expansão, isto é, pelas dinâmicas
implicadas na figura de Exu Elegbára. Talvez eu possa enunciar também a especificidade
do teatro de nação em relação à experiência junto à Comuns, dizendo que na Comuns há
uma perspectiva histórica orientando os processos de criação e organização político-
pedagógica, enquanto o teatro de nação se concebe eminentemente de uma perspectiva
que se consolida pelos saberes do ìtàn. Afinal, é o baraperspectivismo que permite a
produção dos traços fundamentais do teatro de nação, em que não existe espaço para a
crença em verdades absolutas e onde a imagem deve pesar tanto ou mais que o conceito
e a experiência do pensamento se concebe como relação entre impulsos e afetos. O poder
dos impulsos criativos é tão importante na produção de arte e conhecimento quanto os
impulsos cognitivos. Tanto o baraperspectivismo como o teatro de nação nascem, isto é,
surgem, da convicção de que a correlação entre arte e conhecimento define a
especificidade da experiência humana no mundo e na sociedade. E essa convicção
provém de um estudo sobre a metafísica de artista formulada pelo jovem Nietzsche. Na
real, a ideia do teatro de nação vem de um estudo sobre o teatro negro, desenvolvido com
a Comuns, que encontra suas raízes mais remotas no desejo de estabelecer uma relação
entre uma reflexão filosófica sobre o trágico e o treino da capoeira angola.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

O movimento ao qual nos levam essas afirmações pode ser compreendido a partir
dos termos do surgir e desaparecer, da integração e da desintegração. Pensá-lo em suas
implicações com o ìtàn sobre o nascimento de Elegbára, evoca ainda os termos da
regeneração e da multiplicação. E desde que o baraperspectivismo é um conceito
dinâmico, cuja vida se expressa nas dinâmicas da integração e da desintegração, a
concepção do teatro de nação é a forma em que a convicção sobre a importância da
correlação entre arte e conhecimento encontra agora sua expressão enquanto
renascimento e regeneração. Além disso, é sob a forma da concepção do teatro de nação
que a correlação entre arte e conhecimento encontra a expressividade do seu poder de
multiplicação, isto é, de seu potencial pedagógico, de um modo mais adequado ao
baraperspectivismo.
De um modo semelhante, quando pensamos nos termos da nutrição e do
crescimento a partir desse ìtàn, somos levados a pensar também num terceiro termo, o da
restituição. A compreensão do aspecto político-pedagógico do teatro de nação se
consolida, quando percebemos que essa ideia de restituição é fundamental, porque da
mesma forma que Exu se alimenta de todos os seres da natureza, ele também é quem os
devolve, promovendo o intercâmbio entre as instâncias da existência. Essa devolução é
fundamental à manutenção da harmonia entre as ordens sociais, metafísicas e
cosmológicas. Além disso, Exu figura ainda em outro ìtàn, ingerindo quantidades imensas
de comidas secas e fumo, oferecidos por Olówu, o generoso senhor de Ówu. Após a
excessiva ingestão de fumo preparado por Olówu e os demais habitantes da cidade, Exu
vomita infindáveis itens valiosos que estavam guardados em seu estômago, tornando a
cidade de Ówu rica e próspera (SANTOS, 2014, p.116). Assim, o aspecto político-
pedagógico do teatro de nação consiste em produzir arte e conhecimento como objetos de
restituição ao povo preto, a partir de todo o material absorvido no bojo de um processo
de crescimento e expansão de uma consciência negra que começa com a experiência na
Comuns e se intensifica a partir da elaboração do baraperspectivismo.
No sentido de concluir essa reflexão, vamos ver como vem se formulando na
escrita de Elegbára beat a expressão da agressividade já destacada no contexto da Roda
do mundo e do Cabaré da rrrrrraça. O texto é um comentário cênico sobre relações de
poder e explora as conexões entre o ìtàn sobre o nascimento de Exu Elegbára e alguns
eventos recentes, relevantes para o amadurecimento do debate sobre relações raciais no
mundo contemporâneo. Uma das características principais de Elegbára beat é justamente

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

a composição de uma correlação entre a relevância contemporânea da questão racial e a


concepção ancestral, oriunda do corpo de Odu Ifá, de um poder em expansão pelo
universo, que se encontra a serviço tanto dos seres humanos como dos orixás, sempre que
for necessária a restauração da harmonia universal. Exu Elegbára é aquele que manipula
o poder em expansão, conforme a solicitação de um orixá ou de um araiye. Apenas ele é
capaz de entregar o alimento que as pessoas oferecem aos orixás, porque foi o único capaz
de devorar, de absorver, todos os bichos da natureza. Ele também é o único que transmite
o poder dos orixás para as pessoas em troca do alimento ofertado. Elegbára é sinônimo
do poder de absorção e de restituição, do poder de transmissão e comunicação. Mas, ele
também é sinônimo do poder de regenerar-se a si mesmo; e é neste sentido que ele
concede ao oprimido o poder da resiliência. A figura de Elegbára, para o oprimido, é o
símbolo da resistência e da reinvenção. Esse é o principal aspecto do ìtàn que se irradia
pelo texto.
Elegbára beat faz um recorte temporal que vai das eleições de 2018 até a atual
pandemia de Covid-19. Em sua abordagem, faz alusão ao assassinato do mestre de
capoeira angola Moa do Katendê, em 8 de outubro de 2018, em Salvador, Bahia; passa
pelo assassinato do segurança George Floyd, em 25 de maio de 2020, cometido por um
policial de Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos; e também apresenta uma discussão
sobre o caso do menino Miguel Otávio, que morreu aos 5 anos de idade, no dia 2 de junho
de 2020, depois de cair do 9º andar de um prédio de luxo no Recife. A expressão de
agressividade contra a dominação racial branca melhor definida até agora pelo texto se
reflete na cena sobre a repercussão da morte de George Floyd na mídia. A cena é
ambientada num programa jornalístico de TV. Heraldo, repórter negro e âncora do jornal,
espanca o diretor branco e racista que defende a democracia racial, que “não quer vender
a imagem de que o Brasil trata mal crioulo” e que pretende lucrar com as reportagens
sobre a morte de George Floyd.
HERALDO:
Eu espanquei o chefe. Eu me responsabilizo. A situação estava
insustentável. Agora eu sinto um alívio imenso. Uma alegria. Esse é o
prazer da transformação. O racista deve pensar duas vezes antes de
oprimir alguém, antes de abusar de alguém e exercer seu preconceito,
seu narcisismo, sua doença, sobre qualquer pessoa humana. O racista
precisa entender de uma vez por todas que a gente não é mercadoria.

EDNA:
Eu sempre me senti humilhada. Nunca soube me colocar. Que fraqueza
nas pernas.

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ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
Era como se eu não tivesse meu nome. Me chamar só de “moçoila” era
como querer me convencer de uma inferioridade que não existe. Que
não é real.

EDNA:
Mas eu não concordo em reagir com violência. Por mais que tenha sido
tão humilhada.

ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
A violência desintoxica, Edna. Cura a gente da humilhação, do
complexo de inferioridade.

HERALDO:
Você que sempre cuidou da minha imagem, Edna, minha irmã. Que era
obrigada a me embranquecer, conforme a conveniência da direção.
Hoje, teve que me deixar mais preto pra valorizar o produto que eles
queriam vender no mercado. A morte de um irmão chamado George
Floyd. Mas, a gente não é mercadoria. E essa indústria vive de
aparências. De ideias pré-concebidas, distantes da realidade. Enquanto
não desaparecer o último racista, precisamos lutar. Destruir
preconceitos, padrões e modelos de pensamento e de comportamento
que se acham superiores, melhores do que os outros. Destruir e criar. E
isso pode ser muito bom. Criar. Pode ser muito gostoso.

ASSISTENTE DE DIREÇÃO:
Edna, levanta, que você é uma mulher poderosa. Dá uma olhada no
espelho que eu trouxe pra você. Enxerga além das aparências. Aí tem
uma fonte de um poder divino (SANTOS, 2020, p.33).

Todos os personagens são pretos. Edna é a maquiadora tratada pelo diretor como
uma peça descartável. A assistente de direção, uma mulher cujo nome desconhecemos,
figura como uma pessoa que sequer possui uma identidade além da sua função de
empregada da emissora. Além delas, figuram um cameraman e um microfonista que
aderem à revolta de Heraldo, levando o diretor a acusá-los, de um modo pretensioso e
arrogante, de uma “revolta na senzala”. Embora não figure na citação extraída da peça, o
diretor é caracterizado de um modo extremamente hostil, soberbo e autoritário, mas se
revela um covarde, quando Heraldo parte para espancá-lo. Seu senso perverso de
oportunismo transparece na exigência imposta à maquiadora Edna de escurecer mais
ainda a pele de Heraldo, por tratar-se de uma reportagem sobre a morte de um homem
negro, quando o texto da peça nos leva a supor que usualmente ele obriga Edna a clarear
a pele de Heraldo. Edna, incapaz de reagir com violência à humilhação, sente as pernas
enfraquecerem, como se estivesse prestes a desmontar, a sucumbir ao espetáculo da
violência, mas a assistente de direção vem lembrá-la de que ela ainda abriga um poder
divino e que deve se levantar, no sentido de exercer sua capacidade de resiliência, da
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

mesma forma que a figura de Elegbára também fala de regeneração. Há um elogio da


agressividade e da violência como formas de silenciar e imobilizar o avanço da atitude
racista, com uma referência explícita à declaração de Fanon que examinamos acima,
segundo a qual, a “violência desintoxica”. Essa agressividade contra o racismo também
se investe de legitimidade, se a examinarmos pela figura de Exu Elegbára, concebido
então como o guardião dos descendentes de Òrúnmìlà e Yébìírú. De acordo com o ìtàn, a
primeira vez que Òrúnmìlà solicita o auxílio de Elegbára, é para resgatá-lo de uma guerra.
Exu expulsa os guerreiros da cidade e diz que a qualquer momento que estourasse a
guerra, a família poderia enviá-lo para realizar o trabalho que fosse necessário. Além
disso, o estado de espírito de Heraldo que se expressa após a surra encontra outra
referência na figura de Exu Elegbára, que “caminha altivamente, balançando-se à direita
e à esquerda”, como quem ginga, pode-se dizer, talvez; todos os agressores se afastam,
“quando Exu caminha altivo”.

Referências bibliográficas

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espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006.

CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme. Paris: Présence Africaine, 2004.

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FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira,


Salvador: EDUFBA, 2008.

FANON, Frantz. Oeuvres. Paris, La Découverte, 2011.

JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São


Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2010.

JAMES, C.L.R. Toussaint Louverture: the story of the only successful slave revolt in
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MEIRELLES, Marcio. [com a colaboração de Débora de Almeida, Gustavo Mello e Cia


dos Comuns] A roda do mundo. Rio de Janeiro: mimeo, 2001.

MEIRELLES, Marcio. [com a colaboração dos atores do Bando de Teatro Olodum do


elenco original do espetáculo: Agnaldo Buiu (Brogojô), Auristela Sá (Flávia Karine),
Cássia Vale (Marilda Refly), Cristóvão da Silva (Patrocinado), Fernando Araújo (Nego
John), Gerimias Mendes (Seu Gereba), Jorge Washington (Taíde), Lázaro Machado
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

(Edmilson/Edileuza), Lázaro Ramos (Wensley de Jesus), Leno Sacramento (Abará),


Merry Batista (Doutora Janaina), Nildes Vieira (M. C. Patrícia), Rejane Maia (Rose
Marie), Tânia Toko (Dandara) e Valdinéia Soriano (Jaqueline) e dos atores que
participam ou participaram do Bando e fizeram substituições, ao longo dos oito anos em
que o espetáculo está em cartaz: Arleth Dias (Dandara), Elane Nascimento (Dandara),
Érico Brás (Wensley e depois Patrocinado), Gustavo Melo (Wensley), S. L. Laurentino
(Abará e depois Wensley) e Vinício Nascimento (Abará e depois Wensley)] Cabaré da
rrrrrraça. Salvador: mimeo, 2005.

SANTOS, Juana Elbein dos. [Deoscoredes Maximiliano dos Santos (Mestre Didi Axipá)]
Èsù. Salvador: Corrupio, 2014.

SANTOS, Rodrigo dos. Elegbára beat: um comentário cênico sobre o poder. São Paulo:
em processo de criação, 2020.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras no Rio de


Janeiro 1850 – 1890. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, DGDI, Divisão de
Editoração, 1994.

SODRÉ, Muniz. [e Luís Filipe de Lima] Um vento sagrado Um Vento Sagrado: história
de vida de um adivinho da tradição nagô-kêtu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.
5. ed., 2014.

TOWA, Marcien. A ideia de uma filosofia negro-africana. Tradução de Roberto Jardim


da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: NEAB-UFPR, 2015.
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the past: power and the production of history.
Boston: Beacon Press Books, 2015.

Recebido em: 04/11/2020


Aceito em: 04/11/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

ACONTECIMENTO- ÈṢÙ: A CIRCULARIDADE COMO


TRÂNSITO CONTRA COLONIALISTA

Luís Thiago Freire Dantas1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34752

Resumo
Este ensaio, em diálogo com a filosofia nagô, propõe a circularidade como um trânsito
contra colonialista, fundamentado em Èṣù Ẹnugbárijọ – a boca que tudo come. Tal
fundamento articula-se com o paradigma da pluriversalidade, com a diáspora e com a
ancestralidade africana para orientar os princípios de um acontecimento dinâmico de
vitalidade: o acontecimento-Èṣù. Um acontecimento que interage com as diversas formas
de vidas produzindo uma encruzilhada filosófica.

Palavras-Chave: Contra colonialismo. Filosofia nagô. Èṣù. encruzilhada.

EVENTO - ÈṢÙ: CIRCULARIDAD COMO TRÁNSITO


CONTRA COLONIALISTA
Resumen
Este ensayo, en un diálogo con la filosofía nago, propone la circularidad como un tránsito
contra colonialista, basado en Èṣù Ẹnugbárijọ – la boca que se lo come todo. Esta
fundación se articula con el paradigma de la pluriversalidad, con la diáspora y con la
ancestralidad africana para guiar los principios de un evento dinámico de vitalidad: el
evento- Èṣù. Un evento que interactúa con las diversas formas de vidas produciendo una
encrucijada filosófica.

Palabras clave: Contra el colonialismo. Filosofía de Nagô. Èṣù. encrucijada.

Abre o caminho, deixe o Exu passar


(Baco Exu do Blues)

Este ensaio fundamenta-se na compreensão da temporalidade exúnica (DANTAS,


2018) que produz uma circulação de perspectivas e uma subversão das noções de
presente, passado e futuro. Tal produção defronta-se com a divisão causal dos fatos e
propicia um entendimento do tempo como aquilo que prepara e nos posiciona no mundo.

1
Possui graduação em filosofia pela Universidade Federal de Sergipe (2009), graduação em Pedagogia -
Claretiano Centro Universitário (2018), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2013)
e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2018). Atualmente é professor adjunto de
Filosofia da Educação no Departamento de Estudos da Subjetividade e Formação Humana da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa nos seguintes temas: filosofia africana, estudos pós-
coloniais e decoloniais, ensino de filosofia, educação e formação humana.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Preparação e posição ilustrada no oriki, canto de louvação, “Èṣù matou um pássaro ontem
com uma pedra que jogou hoje”, pois simboliza tanto uma retomada do passado quanto
uma proposta de futuro. Essa dupla junção mostra também que “[...] não está no horizonte
determinado, mas é temporalizante, funda o tempo, o que implica já trazer o seu poente e
o seu nascente” (SODRÉ, 2017, p. 187-188); ou ainda podemos dizer que “a pedra ‘está
no meio’ da ação de forma que expõe o presente no passado, já o pássaro ‘torna possível’
o acontecimento que atua nele mesmo” (DANTAS, 2018, 128). Assim, entre a permissão
e a exposição, interpretamos aquilo que acontece atuando em si mesmo, como
acontecimento-Èṣù.
Um acontecimento dinâmico de vitalidade produzindo eṣistência, ou seja,
deslocando os centros e marginalizando as essências. Com um circuito centrípeto, as
energias corporais são orientadas por uma circularidade que condiciona as nossas
possibilidades. Tal condição entende os principais orientadores epistêmicos atuando nos
campos visíveis e invisíveis, assentando a razão somente como um dos meios para
perceber o mundo. Uma percepção cosmopolítica perante o “campo político tal como
atualmente o reconhecemos”, um campo caracterizado não apenas “pela distinção entre
amigos e inimigos entre os humanos, mas também pela separação antitética da
‘Humanidade’ e da ‘Natureza’” (DE LA CADENA, 2019, p. 14). Uma distinção
movimentada, conforme Marisol de la Cadena, pela extinção da antítese humanidade-
natureza em prol da organização homogênea entre humanos e os mundos passíveis de
existência: “A relação entre mundos era de um antagonismo silencioso, com o mundo
ocidental definindo para a história (e com a ‘História’) seu papel soberbamente
hegemônico como civilizacional e, como consequência, acumulando poder para organizar
a vida homogênea que ele se esforçou por expandir” (DE LA CADENA, 2019, p. 14).
Contra isso, os princípios do acontecimento-Èṣù partem de uma perspectiva contra
colonialistas (BISPO, 2015) para construir uma filosofia a toque de atabaques (SODRÉ,
2017) e tornar a diáspora africana uma heurística (BRAH, 2011) alimentada pela noção
de “encontro” fundado no paradigma da pluriversalidade (RAMOSE, 2011). Vale dizer
ainda que o acontecimento-Èṣù possibilita esse caldeirão epistêmico através do Èṣù
Ẹnugbárijọ – a boca que tudo come – que, a partir disso, ratifica a circularidade como um
trânsito contra colonialista.

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O trânsito da biointeração

A atuação histórica do colonialismo fundamentou-se no entendimento de que os


territórios alheios eram habitados por seres estranhos, que tinham uma aparência ambígua
entre humano-animal divergindo do olhar colonial enviesado por uma estética branca-
europeia. Estética conjugada por valores, organizações sociais e religiosas, como também
pela produção de conhecimento e cultura. Com o olhar colonial encontrando dificuldades
em determinar categorias comuns a certos corpos, rapidamente foi cunhado o epíteto de
exótico – aquilo que está fora do nosso olhar. Essa alcunha também serviu como
justificativa colonial para controlar corpos, invadir territórios fundamentada pela missão
de civilizar e evangelizar o “Outro”. Ainda mais pelo colonialismo que enxergava “uma
espécie de humanidade de vida inconstante e que, confundindo devir-humano e devir-
animal, tem de si mesma uma consciência, afinal, ‘sem universalidade’” (MBEMBE,
2018, p. 30).
Desse modo, o colonialismo agiu eficientemente através da modificação dos
nomes de territórios e de grupos humanos para confortar uma visão de mundo que nega
as especificidades locais: Abya yala passou a ser América; incas, maias, astecas e guaranis
passaram a ser índios; zulus, achantis e daomés passaram a ser negros. Uma ação com
fim de designar um ideal de humano que identifica os “outros” como repletos de ausência
e necessitados de desenvolvimento. Nesse cenário, a escravidão torna-se uma via para
angariar benefícios ao colonizador transformando grupos humanos em propriedades
vivas, mercadorias, através de um mecanismo de captura, esvaziamento e objetificação
que ao “sabor das circunstâncias, os escravizados são simultaneamente mercadorias,
objetos de luxo ou de utilidade que podem ser comprados e revendidos a outros”
(MBEMBE, 2018, p. 94). Contudo, nos interstícios da história colonial, mesmo com o
apagamento de outras narrativas, a resistência diante da subjugação permaneceu como
manutenção de sua vivência no mundo.
Resistência encampada por várias frentes como espiritual, cultural e epistêmica.
Nesta seção enfatizaremos a espiritual, pois nela há uma vinculação pressuposta pela
inserção social e existencial do indivíduo em uma comunidade que se fundamenta em
uma série de valores e de práticas de conduta. Valores e práticas orientados pelo transe
em que “os princípios cosmológicos e ancestrais, origem e morte reencontram-se
simbolicamente na experiência de deslocamento ritualísticos dos corpos num espaço”

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(SODRÉ, 2017, p. 121). Nesse sentido, o transe guia os possíveis caminhos, individuais
e coletivos, para compor uma “filosofia a toque de atabaques”, já que “ [...] pode ser lido
como um ‘conceito’ suprarracional [...] em que o ato é o seu próprio efeito” (SODRÉ,
2017, p. 126). Com isso, há uma atribuição em série de signos que fornece à corporeidade
a própria constituição de linguagem expressada pelas vestes, pelas danças, pelas pinturas
corporais que podem, ou não, ser lidas ou traduzidas conforme a percepção daquelas
pessoas que estão presentes.
Percepção vinculada ao trânsito entre as dimensões do visível e do invisível,
reproduzida através da mente comunitária na “voz do comum” que ressoa as ações
ritualísticas engajadas por um coletivo: “no sentido de uma exigência radical de partilha
da existência com o Outro” (SODRÉ, 2017, p. 125). Sobretudo há uma dramaticidade do
ritual que faz o invisível não se equivaler “à ideia ocidental de ‘inconsciente’” (SODRÉ,
2017, p. 128), pois no cerne das comunidades de origem não há o recalque, a subtração.
De fato, o ritual constrói “o lugar próprio à plena expressão e expansão do corpo.
Diferentemente da teologia cristã ou da meditação oriental, ele não racionaliza os seus
conteúdos, mas constitui, em última análise, o modo de ser reflexivo da comunidade como
uma forma somática de pensar” (SODRÉ, 2017, p. 129, grifos do autor). Nesse corpo-
pensamento anuncia o mundo não como algo a ser des-coberto, e sim como o contínuo
da pessoa que se encontra na comunidade composta pelos vivos, pelos antepassados e
pelos vindouros. Com tal encontro, o intuito de atingir a “plenitude de uma experiência
existencial” para alcançar o fim ou o abá exibe, conforme Sodré (2017, p. 129), uma
dinâmica de forças, áṣẹ, entre pessoas, animais, plantas e toda a espécie viva e atuante
junto a humanidade:

No conjunto ritualizado de procedimentos cosmogônicos, o corpo encontra


totalidade, resolvendo a dicotomia entre singular e plural, entre sujeito e objeto
ao se integrar no simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, direções
do olhar, mas também de signos e inflexões microcorporais que apontam
outras formas perceptivas. Ao mesmo tempo, a corporeidade enseja tipo de
percepção sensorial, que pode de fato ser concebida como ‘ecológica’, na
medida em que vincula o sujeito à natureza íntima do ecossistema circundante
e abrangente (SODRÉ, 2017, p. 129).

Em cima dessa vinculação entre sujeito e natureza, pensamos a circularidade como


movimento e dinâmica de forças que prevalece aquilo que Antônio Bispo dos Santos
nomeou como biointeração. Nela há a confluência, uma convivência regulatória com os
elementos da natureza que tende a ensinar que “nem tudo que se ajunta se mistura, ou

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seja, nada é igual” (SANTOS, 2015, p. 89) e rege o pensamento plurista dos povos
politeístas. Divergindo da transfluência que ensina “nem tudo que se mistura se ajunta”
(SANTOS, 2015, p. 89) e rege o pensamento monista dos povos monoteístas. Com essa
diferença, os debates de realidade e aparência, ou como comenta Bispo dos Santos (2015,
p. 89) “entre o que é sintético e o que é orgânico” expõem e exigem uma posição no
mundo que percebe cada vida, não como algo abstrato, mas como concretização daquilo
que compõe a humanidade. Sendo assim, é preciso compreender que a

estreita relação dos povos de lógica cosmovisiva politeísta com os


elementos da natureza, a sua relação respeitosa, orgânica e biointerativa
com todos os elementos vitais, [trata-se de] uma das principais chaves
para compreensão de questões que interessam a todas e a todos
(SANTOS, 2015, p. 90).

Com isso, as divergências entre o pensamento colonialista e o contra colonialista


transparece naquilo que destacamos como dimensão espiritual, pois nas cosmovisões
cristãs monoteístas há uma religação com o sagrado. Uma religação que trata o mundo
como um “vale de lamentações” e o ser humano precisa ascender ao paraíso para se
reconstituir em sua reconexão com a divindade. Já as espiritualidades politeístas tem a
comunicação com as divindades no próprio mundo e interagindo com diversas formas de
vida. Essa divergência marca as seguintes disputas: “pensamento monista
desterritorializado x pensamento plurista territorializado; elaboração e estruturação
vertical x elaboração e estruturação circular; colonização x contra colonização;
desenvolvimento x biointeração” (SANTOS, 2015, p. 91).
Essas disputas exibem como a guerra colonial trata-se antes de mais nada de uma
guerra territorial, já que o território marca as organizações comunitárias, valorativas e
formativas do ser humano, e não é apenas uma ocupação de espaços.

Nesse contexto, nós, povos contra colonizadores, temos demonstrado


em muitos momentos da história a nossa capacidade de compreender e
até de conviver com a complexidade das questões que esses processos
tem nos apresentados (SANTOS, 2015, p. 97).

Com efeito, a colonização atua em processos de ressignificação daquilo que o


colonizado pode se identificar, principalmente negando a sua própria constituição por
efeito da fragmentação de territórios que acabam por descaracterizar a própria linguagem
para consolidar um semiocídio: “[...] para o qual o corpo exótico era destituído de espírito,
ao modo de um receptáculo vazio que poderia ser preenchido pelas inscrições

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representativas do verbo cristão” (SODRÉ, 2017, p. 102). Não gratuitamente, conforme


Sodré, os evangelizadores perpetuam um semiocídio ontológico justificando o genocídio
físico.
Contra tal extermínio, a circularidade passa a ser uma condição de resistência e
dinâmica de forças dos povos politeístas dos terreiros, já que as pessoas da comunidade
tendo o círculo como eixo de movimento faz com que aqueles presentes ao local sejam
equidistantes um ao outro e em relação às divindades. Ainda acrescentando que a lógica
dessa sabedoria organiza-se pela vitalidade ancestral e com a própria natureza, em síntese,
“[...] as manifestações culturais dos povos afro-pindorâmicos pagãos politeístas são
organizadas geralmente em estruturas circulares com participantes de ambos os sexos, de
diversas faixas etárias e número ilimitado de participantes” (SANTOS, 2015, p. 41).
Nesse processo rege uma filosofia comunitária que, conforme Vanda Machado
(2013), expõe um em-sino orientado para uma formação da pessoa conforme a “[...]
colocar o outro dentro do seu odu, dentro da sua própria sina, do seu caminho, do seu
jeito de ser no mundo do jeito como ele é” (MACHADO, 2013, p. 41). Para tanto, a
condução feita por mestras e mestres permitem um envolvimento integrado do individual
no coletivo, rejeitando segmentações, pois se assim ocorresse as forças não transitariam
circularmente em cada integrante da roda. Para Bispo dos Santos, outro aspecto da
diferenciação se dá no fato de que se para o povo eurocristão monoteísta, um Deus “único,
inatingível, desterritorializado, acima de tudo e de todos, tende a se organizar de maneira
exclusivista vertical e/ou linear” (SANTOS, 2015, p. 39); já para os povos politeístas
várias deusas e deuses são pressentidas atuando em seus corpos ou nos elementos da
naturezas terreirizando sua pluripotência, pluriciência e pluripresença, “porque
conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas as direções” (SANTOS, 2015, p.
39).
Porém, essa diferenciação provoca no povo monoteísta uma sensação de temor ao
cosmo, por causa da organização da espiritualidade em relação à materialidade,
principalmente por entenderem a presença contínua de um espectro rondando a mente
que “infecta a alma com o pecado”. Assim se formula um terror psicológico, denominado
por Bispo dos Santos (2015, p. 31) de cosmofobia, caracterizada pelo “[...] amaldiçoar a
terra e determinar uma relação fatigante entre o seu povo e a terra, classificando os frutos
da terra como espinhos e ervas daninhas e impondo aos condenados que não comam de
tais frutos”. Por isso, a terra passa a ser algo sem sentido, um lugar de expropriação, uso
e abuso, pois os monoteístas enxergam uma única direção – o paraíso – regida por Deus,

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masculino, que “como não pode ser visto materialmente, se apegam muito em monismos
objetivos e abstratos” (SANTOS, 2015, p. 39).
E movimentado pela cosmofobia, rapidamente houve justificativas de “invadir,
perseguir, capturar, derrotar e submeter todos os sarracenos e quaisquer pagãos e outros
inimigos de Cristo onde quer que estejam seus reinos” (BULA ROMANUS PONTIFEX,
1455 apud. BISPO, 2015, p. 28), desse modo os proprietários de Cristo tentaram colonizar
a circularidade para impor uma linearidade. No entanto, permeadas pelo fogo e pelo
nascimento as comunidades contra colonialistas atentos ao acontecimento-Èṣù perduram
na eṣistência: “porque mesmo que queimem a escrita/ Não queimarão a oralidade/ Mesmo
que queimem os símbolos/ Não queimarão os significados/ Mesmo queimando o nosso
povo/ Não queimarão a ancestralidade” (SANTOS, 2015, p. 45).

Jornada cósmica

No primeiro momento explicitou-se o movimento contra colonialista como


acontecimento-Èṣù. Nesse movimento há um transe no sentido de uma dinâmica circular
de forças, isto é, quem participa do círculo ajunta-se num emaranhado de forças que se
comunicam entre si. Seguindo as palavras de Bispo dos Santos (2015), esse transe se
diferencia da linearidade monoteísta que busca religar o ser humano com o divino, já que
a percepção politeísta interage com as diversas formas de vida em que a espiritualidade
se expressa em cada elemento.
Nesse segundo momento, interpretaremos a diáspora e a ancestralidade africana
como uma articulação biocósmica, no sentido de uma “complementaridade radical entre
o sagrado-ancestral, o muntu-pessoa e o universo-natureza” (MALOMALLO, 2018, p.
571), re-criando uma cultura e re-territorilizando África. Essa interpretação também serve
de preparatória ao ìtan de Èṣù Enugbarijó como princípio de pluriversalidade. Com isso,
a espiritualidade ganha um sentido mais amplo em que pessoas, divindades, seres vivos
e não-vivos compõem um Todo que potencializa as particularidades. Desse modo, para
pensarmos a dimensão cósmica como característica do acontecimento-Èṣù é importante
elucidar o sentido de diáspora e de ancestralidade aqui tratado.
A condição etimológica de diáspora possui o significado de uma “dispersão
através de um lugar” (BRAH, 2011). No caso dos povos africanos durante o período
moderno, esse lugar tratou-se, em grande parte, do oceano Atlântico que se converteu

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para alguns africanos em uma concentração de violência e morte, a grande Kalunga, o


cemitério. Já para aqueles/as que sobreviveram tiveram suas etnias com complexidades
linguística, cultural e política reduzidas ao termo “negro”. Uma redução que, em
consequência, tendeu a produzir “corpos fora de lugar”, pois conforme Grada Kilomba
(2019, p. 56, grifos da autora): “No racismo, corpos negros são construídos como corpos
impróprios, como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não
podem pertencer”. Para reverter essa situação, a cartografia feita por Avtar Brah (2011)
ajuda-nos compreender como a diáspora formula uma imagem de jornada em que um
indivíduo ou um coletivo estabelece raízes em “outro lugar”. Uma jornada repleta de
histórias e geografias que, ao fim, propõe epistemologicamente à diáspora um
“dispositivo heurístico”:

Sugiro que o conceito de diáspora represente as especificidades


econômicas, políticas e culturais que unem entre si esses componentes.
Isso significa que essas múltiplas jornadas podem configurar-se apenas
através de uma confluência de narrativas à medida que são vividas,
revividas, produzidas, reproduzidas e transformadas através da
memória individual e coletiva e da re-memoração (BRAH, 2011, p.
214).

Com o privilégio às narrativas resultantes de vivências e de memórias refuta-se


também a noção de “entre-lugar”, pois nela há uma determinação do “outro” a partir do
olhar de um “eu”, constituindo uma “utopia da diferença”. Tal utopia trata-se, conforme
Stuart Hall (2009), de projetar o “outro” como relativo ao tempo e ao espaço, sem
pertencimento fixo a um grupo, privilegiando a mobilidade e enfatizando vários locais.
Contudo, a construção do “outro” ainda depende do exterior, uma dependência
relacionada sempre com aquele/a que aparece à percepção de alguém privilegiado no
discurso e justamente “[...] nos fala ou nos convoca para que assumamos nossos lugares
como os sujeitos sociais de discursos particulares” (HALL, 2009, p. 111). Se quisermos
direcionar para a situação brasileira, podemos dizer que se no discurso de formação do
“ser brasileiro” corresponde à junção de povos, principalmente daqueles pertencentes à
Europa, à África ou à América, a afirmação da africanidade, indigineidade ou europeidade
não se restringe à pessoa mas se adequa ao como ela aparece a “alguém”. Por conseguinte,
o pertencimento do indivíduo depende do outro olhar que pode anunciar-se por meio de
discursos hierarquizantes:

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A questão é que existem vários outros incluídos dentro e através de


dualidades, embora um ou mais possam ter precedência dentro da
formação discursiva concreta. Por exemplo, um discurso pode lidar
principalmente com gênero e, como tal, pode se concentrar nas
dualidades de gênero (embora, é claro, a construção binária nem sempre
seja inevitável). Mas esse discurso não é isolado dos outros, como
aqueles que significam classe, raça, religião ou geração. A
especificidade de cada um é enquadrada dentro e através de campos de
representação do outro (BRAH, 2011, p. 216).

Tais campos possuem complexificações relativas às perdas de conexão com a


terra e à reinvenção do território para ativar a junção corporal-espiritual na diáspora.
Mesmo assim é possível perceber a vitalidade ancestral materializada nos corpos
presentes. Principalmente pelos/as “mestres da palavra”, pois como comenta Débora
Araujo (2019, p. 109): “As cantigas, as histórias de outras terras e, sobretudo, a
corporeidade marcada das avós e dos avôs foram e ainda são, para a população negra no
Brasil, grandes patrimônios histórico-culturais”. A complexidade aumenta no corpo
espiritual politeísta, já que quanto mais velho a responsabilidade de transmissão dos
conteúdos aumenta. Vale ressaltar que isso não implica uma supressão de voz dos mais
novos, mas pela perspectiva de vida, o mais velho marcado pelas experiências corpóreas
consegue perceber algo ainda não visível para o mais novo. Por isso, a comunicação entre
os membros da comunidade conserva e potencializa a força interior de cada vivente, pois
“as mensagens são enviadas quando os velhos e velhas, juntamente com todo o vilarejo,
se reúnem, demonstrando a força da comunidade” (ARAUJO, 2019, p. 117).
Contudo, mesmo ciente dessa singularidade dos “mais velhos”, com a intenção
de ampliar e provocar a nossa percepção, a ancestralidade será discutida a partir dos “mais
novos”, das crianças. No tratamento da questão tendo a criança como motor móvel
ancestral, as formas de sentir o mundo se intensificam em suas diversas dimensões e
prepara o terreno para o acontecimento-Èṣù. Acontecimento, como escrito no início deste
ensaio, caracterizado pela “permissão-exposição” e pela subversão do conceito ocidental
de tempo. E com o acontecimento pensado por meio da figura da criança, anuncia-se uma
compreensão de infância como a soma entre o enigma e o ritual. As partes dessa soma,
respectivamente, podem ser ilustradas nas seguintes palavras de Sobonfú Somé (2007):
“[...] até os cinco ou seis anos as crianças lembram-se de tudo perfeitamente, mas, depois
disso, algo começa a acontecer no corpo, que as faz esquecer” (p. 69); “A presença das
crianças gera os rituais mais simples e vibrantes. Quando estão presentes, o que quer que
se faça de errado torna-se certo” (p. 61).

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O enigma e o ritual das crianças são perspectivas que nos põem, adultos/as, em
um espaço além das normas de saber e de poder. Como também recusam as dicotomias
generificantes que reduzem a espiritualidade materna, feminina, à emoção e à
subserviência e já a paterna, masculina, produtora da disciplina e exercício da
racionalidade.
Por isso, ao destacar a criança como enigma e ritual evidencia-se a ancestralidade
como similar a um animal grandioso e forte, pois “ela, ao mesmo tempo, é enigma-
mistério e revelação-profecia. Indica e esconde caminhos. A ancestralidade é um modo
de interpretar e produzir a realidade” (OLIVEIRA, 2007, p. 257). Inclusive, com o escrito
até o momento podemos anunciar que a criança ancestral (algo que habita em nós e nos
acompanha em nossa vida terrena) busca nos incluir, unir, ligar e encantar em nossa
percepção de mundo. Uma busca fundamentada na ligação ancestral das crianças que é,
como nos explica Araujo, um recurso para evidenciar a conexão infantil com as
dimensões visíveis e invisíveis. Uma conexão possível já que “ser criança [...] significa
existir e coexistir desde sempre, sobretudo porque se entende que o protagonismo das
escolhas e o conhecimento dos mistérios espirituais não são menores quando se é
pequeno” (ARAUJO, 2019, p. 124).
Esse mistério se volta na vertente biocósmica do acontecimento-Èṣù na junção
ancestralidade e diáspora africana que justamente dinamiza a vitalidade dos corpos
negros. Com essa preparação do terreno podemos enfim interpretar o ìtan de Èṣù
Ẹnugbárijọ como princípio da pluriversalidade.

A boca pluriversal

As perspectivas do acontecimento-Èṣù apresentadas neste ensaio dividiu-se em


dois momentos: a interação entre humanos, seres vivos e não vivos formando uma
espiritualidade em comunicação com as dimensões visíveis e invisíveis; a articulação
biocósmica dos africanos em diáspora com sua ancestralidade através da dinamicidade
vital que reconstitui histórias e geografias encarnadas no corpo. Tais momentos
fundamentam-se na circularidade contra colonialista e se reverbera nas fontes espirituais
e culturais, que agora pensaremos encruzadas com eixos do pensamento filosófico. Essa
encruza propõe pensar o mundo como reunião daquilo que afeta o corpo, isto é, uma
estética.

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Essa proposta vincula-se ao pensamento nagô (SODRÉ, 2017) construído a partir


da cultura da região africana conhecida como iorubalândia (Benin, Togo, Nigéria) e
estendida para a cultura diaspórica presente no Brasil que agencia “tanto a síntese de
modulações identitárias (ijexá, ketu, egbá e outros) quanto o sincretismo com traços de
outras formações étnicas (fon, mali e outros), aqui conhecidas pelo nome genérico de
‘jeje’” (SODRÉ, 2015, p. 191). Assim, esse pensamento produz uma filosofia alicerçada
em enunciações provenientes do próprio sistema simbólico que, para Sodré (2017, p.
177), “transcende o campo semântico (território dos signos) por implicar a estruturação
originária”. Originária por se basear na oralidade que, por conseguinte, mesmo havendo
em si diferenças, dependendo da voz narradora, o sentido interpretativo continua comum.
Inclusive, pela fala forma-se uma “série de símbolos” orientadores das ações humanas
adequadas àquilo que pertence ao plano imaginário.
Por isso, narrativas como as dos ìtans não se limitam em prerrogativas morais,
mas funciona como compreensão das condições humanas (com suas variadas maneiras
de agir e de pensar) e das complexas vivências ancestrais. Para tanto, podemos dizer que
essa compreensão se movimenta no sentido circular e cada ponto estático consolida um
acontecimento que revela uma semântica, uma rede de identificações “cuja decifração
jamais os esgota, a exemplo das camadas descascadas de uma cebola, que redundam em
zero” (SODRÉ, 2017, p. 178). Tal acontecimento refere-se à Èṣù, pois Ele sendo o próprio
dinamismo proporciona àquilo que é vivo a sua eṣistência, sua mobilidade. Isso se torna
mais visível ao lermos um dos ìtans que trata de uma das faces eṣusíacas: a de Ẹnugbárijọ.
O ìtan inicia-se com Ọ̀ rúnmìlà2 desejoso em ter um filho e para isso encontrou-se
com Òriṣàlá3 que tinha começado a criar os seres humanos. Na porta do palácio, sentado
à esquerda, encontrava-se Èṣù Yangí (o primordial), Ọ̀ rúnmìlà vendo-o pergunta à
Òriṣàlá se este era o seu filho, mas recebeu a seguinte resposta: “Ainda não é tempo da
chegada de um filho”. Depois de muita insistência, mesmo com a advertências de que
aquele não era o filho ideal, Ọ̀ rúnmìlà obteve a graça de Òriṣàlá e tempo depois nasceu
Ẹlẹgbára (o dono do corpo). Nasceu já falando e comendo tudo que lhe vinha pela frente
– animais, aves, farofas, inhames, garrafas de aguardente, de vinho – não tinha nada que
saciava a sua fome. Uma vontade que a mãe em busca de saciá-la a qualquer custo lhe

2
Ọ̀ rúnmìlà é quem guarda a sabedoria do Ifá (sistema de consultas) e por isso é representado com o seu
opelê ifá.
3
Òriṣàlá, ou Oxalá, é parte masculina da criação dos seres humanos. Na forma jovem é chamado de
Oxaguiã com um idá (espada), um pilão de metal branco e um escudo. Na forma idosa é Oxalufã carregando
um cajado de metal chamado opaxoró.

63
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dava aquilo que pedia, até o momento em que Ẹlẹgbára devorou a própria mãe, Yébìírú4.
E quando foi ao encontro do pai,

Orunmilá pegou a espada e avançou sobre o filho para mata-lo. Exu


fugiu, sendo sempre perseguido pelo pai. A perseguição ia de Orum em
Orum. A cada espaço do Céu, Orunmilá alcançava o filho, cortando-o
em duzentos e um pedaços.
Cada pedaço transformou-se num Yangí, um pedaço de laterite, a cada
encontro o decentésimo primeiro pedaço transformava-se novamente
em Exu. Correndo de um espaço sagrado a outro, terminaram por
alcançar o último Orum. Como não tinham saída, resolveram entrar em
acordo, Elegbara devolveu tudo o que havia devorado, inclusive a mãe.
Cada Yangí poderia ser usado por Orunmilá como sendo o verdadeiro
Exu. E Yangí trabalharia para Orunmilá, levando oferendas e
mensagens enviadas pelos homens. Em troca, em qualquer ritual,
Elegbara seria saudado sempre antes dos demais. E sempre que um
orixá recebesse um sacrifício, Elegbara teria o direito de comer primeiro
(PRANDI, 2001, p. 74-75).

A narrativa possui vários elementos interpretativos que podem nos direcionar para
diferentes caminhos, mas para dialogar com a proposta deste ensaio é importante observar
a característica de devorar e regurgitar. Principalmente porque é a partir dela que marca o
Ẹnugbárijọ como a boca coletiva que “transforma o pensamento em palavra e os seus
cursos no alinhave da comunicação” (RUFFINO, 2019, p. 31). Desse modo, constrói-se
uma ponte entre o ọ̀run (supraterreno) e o àiyê (terreno) que se atrela à Èṣù e seu percorrer
em todos espaços do ọ̀run. Outro detalhe desse ìtan é a presença de outras faces: Yangí e
Ẹlẹgbára. Luiz Rufino (2019) explica que o Yangí é aquele que está no primeiro e também
no último, tal como os pontos do caracol (Òkòtó) que “nos possibilita pensar o presente
de forma alargada, que nos permite também transgredir com a linearidade histórica que
achata o presente (potência do ser e suas invenções em interação com o espírito do tempo)
entre passado e futuro” (RUFINO, 2019, p. 25). O Ẹlẹgbára é o dono do corpo, que para
Sodré atua assegurando a circulação das vias internas, animando o corpo e filtrando as
impurezas num processo de “dejeção”: “passível ser etimologicamente lida no próprio
nome – Exu – uma aglutinação do prefixo è com a raiz verbal xu e semioticamente afim
ao primeiro significado grego de Arkhé, que é ‘ânus’, ou seja, a boca ‘última’ do corpo”
(SODRÉ, 2017, p. 179).
Tais presenças nas narrativas compõem a multiplicidade eṣusíacas que são
envolvidas em várias faces. Mas como retirar dessa narrativa a interpretação de

4
Yébìírú é o ventre-continente da humanidade que dá nascimento as todos os tipos de filhos.

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pluriversalidade? Inicialmente, devemos compreender alguns de seus momentos,


primeiro quando a Yébìírú é ingerida a partir dali Èṣù antecede a própria origem; depois,
a perseguição de Ọ̀ rúnmìlà em cada espaço do ọ̀run, simboliza o desejo de reparação ao
ato. Ao Èṣù ser cortado em duzentos e um pedaços, não o finda e sim multiplica a
vitalidade que fica concentrada em pedaços de laterite. O ato de regurgitar “tudo o que
havia devorado, inclusive a mãe”, advém do acordo entre Ọ̀ rúnmìlà e Èṣù que se
traduzirmos para uma linguagem filosófica corresponde a razão humana tentando decifrar
a vida. Com isso, a regurgitação da mãe – da origem, da Arkhé – expõe que a origem
deixa de ser “una” e transformar-se em múltipla conforme o número de espaços do ọ̀run
mediados com o aiyê.
Com tais observações é importante destacar que não há universalidade,
delimitadora de uma univocidade do sentido em Èṣù, e sim há singularidades confluindo
várias perspectivas. Por isso, associamos esta narrativa àquilo que Mogobe Ramose
(2011, p. 11) nomeia como paradigma da pluriversalidade:

Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da


diversidade dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente.
Para que essa condição existencial dos entes faça sentido, eles são
identificados e determinados a partir de particularidades específicas.
Assim, a particularidade assume uma posição primária a partir da qual
o ser é concebido. Essa assunção da primazia da particularidade como
modo de entender o ser é frequentemente mal colocada como a
condição ontológica originária do ser. O mal-entendido se torna a
substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser.

Nessa passagem Ramose expõe a pluriversalidade como a manifestação múltipla


do Ser naquilo que percebemos no mundo visível e invisível. Diante disso, retiramos ao
menos três sentidos para o acontecimento-Èṣù: i) aquilo que existe determina-se pela
particularidade que o compõe; ii) a particularidade torna-se a principal forma de
compreensão de um modo ser; iii) o pensamento sobre a particularidade é inadequado
quando não permite o entendimento em seu todo. Tais sentidos são ocultados pelo
pensamento hegemônico por salvaguardar um padrão de categorias que impede a
formulação de uma epistemologia pluriversal. Esse impedimento sinaliza, conforme
argumenta Ramose (2011, p. 11), um “esforço em suprimir e mesmo eliminar a
pluralidade do ser”.
Esse esforço manifesta-se na nossa sociedade de maneira abrangente. Ao
seguirmos o argumento de Ramose, percebemos que, por exemplo, se a filosofia existe

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para certo grupo humano e é negada a outros grupos, então a ideia de filosofia “universal”,
sem cultura, sexo, religião ou cor, afirma uma particularidade que não permite o
entendimento em seu todo. Com isso, não se adequa ao terceiro sentido do acontecimento-
Èṣù. Além disso, se trocarmos a palavra filosofia por cultura, ciência, espiritualidade ou
quaisquer outras, logo percebemos que a “universalidade” é uma acomodação da ideia de
humanidade como repetição do “mesmo”, pois “[a] ênfase na mesmidade (sameness) sob
a égide do ‘universal’, diz respeito à aparente intenção de estabelecer totalidade e
hegemonia” (RAMOSE, 2011, p. 10). Em decorrência, o “outro” é um alien, um
estranho, ao mundo que habita o meu “eu” e, doravante, necessita se adequar às
prerrogativas das minhas condições de existência. Porém, como o acontecimento-Èṣù nos
permite objetar essa concepção particular de “universal”? Aquilo que foi escrito até o
momento fornece uma saída dessa concepção ao enfocarmos na circularidade como um
trânsito contra colonialista. Uma ênfase que, ainda seguindo as palavras de Ramose
(2011, p. 12), afirmamos: “Ao falar da particularidade, temos em mente aquilo que está
incrustado na natureza e na cultura, revelando as características específicas, mas inter-
relacionadas, que constituem a sua identidade”.
Essa constituição da identidade é uma via importante para adentrarmos nas
implicações do acontecimento-Èṣù frente a “universalidade” ocidental. Uma
“universalidade”, retomando alguns pontos deste ensaio, que corrobora uma linearidade
monoteísta e uma formação de sujeitos dependentes do “olhar” ocidental. Em grande
parte, uma das implicações direciona-se para a noção de identidade vinculada à
característica de Èṣù como substância-fundamento àquilo que existe, dinâmica entre-
mundos e sempre escapável às categorizações racionais. Além disso, vale discutir a
questão da encruzilhada, pois sendo o lugar de Èṣù então o que acontece quando nos
encontramos nela? A própria noção de encontro entra no jogo, já que outros signos e
significados são destacados e a alteridade vincula-se a uma formação atravessada de
humanidades. Ainda mais como afirma Rufino (2019, p. 5): “A encruzilhada é a boca do
mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e
poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos”.
A encruzilhada comporta a circularidade da força vital, ou em termos iorubás: o
áṣẹ. A própria dinâmica que engendra e faz interagir os diversos caminhos, pois na
encruzilhada todos os caminhos nos levam a Èṣù. Nessa perspectiva, concordamos com
Wanderson Flor do Nascimento (2016, p. 30) que Èṣù “não é apenas a figura da
encruzilhada, mas também o movimento que se faz diante da multiplicidade de caminhos

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

que a encruzilhada faz ver, nos possibilitando um deslocamento que pode nos encaminhar
para vários lugares e um movimentar que nos faz ser de outros modos”.
Outros modos que envolvem o próprio senso de comunidade e destaca como a
ancestralidade é uma dinâmica vital enigmática e ritualística que potencializa os “mais
novos” e atualiza “os mais velhos”. Criando um jogo, que desfaz a encruzilhada como
um local de assombro, de medo, bloqueando o áṣẹ, para abrir os caminhos e enviar
mensagens entre as dimensões visíveis e invisíveis. Portanto,

Exu necessita da comunidade funcionando para que as mensagens


circulem, para que a pluralidade de caminhos visível nas encruzilhadas
faça sentido. Exu encontra – e faz aparecer – nas encruzilhadas, essa
confluência de caminhos, uma multiplicidade de possibilidades abertas
para o caminhar: nem todas elas harmônicas ou pacíficas, deixando a
decisão sobre a circulação do axé nesses gestos do caminhar sob a
responsabilidade dos caminhantes, que podem potencializar ou
despotencializar o axé (FLOR DO NASCIMENTO, 2016, p. 37).

Uma responsabilidade que responde à circularidade e guarda o poder da


transformação, adquirindo formas concordantes com o caminho traçado se ele
potencializa ou não o áṣẹ. Nesse processo, a face de Yangí torna-se importante, pois em
“cada pedaço picotado do seu corpo, se reconstruiu como um novo ser e se colocou a
caminhar e a inventar a vida enquanto possibilidade. Essa é a face de Yangí, o caráter
primordial de Exu” (RUFINO, 2019, p. 24). Um caráter marcado pela potência eṣusíaca
no corpo, transgredindo as fronteiras da razão e ampliando cada existência para um
horizonte “que nos possibilita travar um debate acerca da problemática ontológica, da
invenção e do devir do ser negro-africano no mundo” (RUFINO, 2019, p. 24). Além disso,
como Rufino (2019, p. 25) explica, “praticando outros caminhos, estes encarnados pelas
potências de Exú, percebemos que os regimes de verdade acerca do mundo e suas
soluções assentam na escassez, pois a suas saídas não miram a diversidade de cacos”.
Outro aspecto relevante de Yangí é o nascimento dos elementos cósmicos.
Retomando ao itán lemos que Ele está à esquerda do portão quando Ọ̀ rúnmìlà havia
chegado. O lado esquerdo na cultura nagô remete ao princípio feminino, da geração, desse
modo há uma pré-visão do acontecimento, pois “Èṣù é aquele que nasceu antes da mãe”.
Como também, na interpretação de Sodré, há uma relação com o número “um” e ao
mesmo tempo com o “três”, pois se o “um” é quem propicia multiplicidade dos pares, o
“três” “[...] não é o primeiro e sim o primordial: a dinâmica de reunião do terceiro
constitui um e dois [...] É o número três, portanto, que abre a possibilidade do infinito

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

diverso.” (SODRÉ, 2017, p. 178). Um infinito concretizado pela linguagem que


justamente comunica as ações de entidades transcendentes com os seres humanos: “uma
vez que cada som verbal aparece como um terceiro elemento, resultante da interação de
dois elementos” (SODRÉ, 2017, p. 178). Ou seja, a potência do áṣẹ em Yangí circula uma
condição ontológica e epistemológica.
Na face Ẹlẹgbára articula-se a questão do corpo que subverte a reflexão ocidental
sobre a sexualidade centrado no aspecto reprodutivo. Porquanto, como ressalta Sodré,
“Exu revela algo muito mais amplo, algo inerente à condição humana [...], que é a ligação
visceral entre o sagrado e o erótico” (SODRÉ, 2017, p. 179). A ligação com o erótico
amplia a noção de religião como uma perspectiva de perceber a sexualidade como
expressão autônoma da vida, ao invés de evocar o sacro como pertencente a uma
interioridade e permeada pela proibição. O corpo é afetado e afeta o outro ser humano e
o mundo em toda a sua complexidade, produzindo um modo coletivo e não se fixando na
separação entre interioridade ou exterioridade. Na verdade, há uma peregrinação erótica
em que “o espírito foge à subordinação imposta pela realidade do corpo mortal, perdendo,
como os deuses ou os espíritos míticos, o substrato da realidade e penetrando assim no
sagrado” (SODRÉ, 2017, p. 180). Por isso, o erótico refere-se muito mais na busca
contínua entre ancestralidade e descendência em que se orientando por Èṣù comunica a
encarnação no mundo em seus múltiplos caminhos:

Nessa mesma direção, a Arkhé africana reserva ao erótico uma


dimensão de ambivalências – profundidade e mistério – mais ampla do
que a implicada na simples reprodução sexual por conotar a totalidade
– ao mesmo tempo biológica e simbólica, contínua e descontínua – do
processo que garante continuidade entre ancestralidade e descendência,
mas com todos os matizes do segredo que perpassa a relação entre a
interioridade e a exterioridade. Para assegurar essa garantia, Exu é tanto
ancestral quando descendente – a protoforma da progenitura por
excelência (SODRÉ, 2017, p. 180).

Sendo assim, temos na potência do áṣẹ em Ẹlẹgbára a circularidade ética e


política. Nesse entreleçamento, percebemos que Ẹnugbárijọ cruza com Yangí e Ẹlẹgbára
uma circularidade que podemos ilustrar da seguinte maneira:

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

ẸLẸGBÁRA YANGÍ

ẸNUGBÁRIJỌ

YANGÍ ẸLẸGBÁRA

A circularidade Èṣù Ẹnugbárijọ


Fonte: organização do autor

Essa circularidade traduzida filosoficamente, seguindo ao já explorado neste


ensaio, mostra como Èṣú acontece no mundo visível e no invisível produzindo uma
estética e enquanto tal envolve caminhos encruzados com a ética e a política de Ẹlẹgbára
e com a epistemologia e a ontologia de Yangí:

ONTOLOGIA
ÉTICA

ESTÉTICA

EPISTEMOLOGIA
POLÍTICA

Figura 2: A circularidade estética


Fonte: organização do autor

Nessa vinculação, as vielas da filosofia nagô estão expostas como contraponto


àquilo que o monoteísmo estabelece como linearidade decifradora dos limites humanos e
sua separação da divindade. Com isso, o pensamento filosófico atua em uma encruzilhada
e como tal envolve caminhos diversos para a solução dos problemas, pois o desejo por
“um” provocou a multiplicidade do “três”.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Uma provocação atrelada aos diferentes modos de Èṣù e, principalmente, pelo seu
acontecimento. Nesse caminho, em outro ìtan em que Ele usa um chapéu de um lado
vermelho e do outro preto simboliza também a contrariedade do acontecimento-Èṣù
diante da verdade universal. Pois ao passar no meio dos dois amigos, cada um vê apenas
um lado de chapéu e toma como todo (universal) e a partir daí cria-se a discórdia pela
defesa da sua perspectiva acerca da “única” verdade. Assim, se exemplifica como a razão
ocidental preocupada em decifrar o enigma não atenta para o acontecimento, pois “um
momento pode se apresentar de uma forma ou de outra conforme os pontos de vista de
quem os observam e, nessa observação, revela mais a característica do observador ao
invés do próprio Èṣù” (OLIVEIRA, 2007, p. 128). O problema é que para saber quem é
Èṣù necessita-se dar uma volta em torno Dele e “dar uma volta é, de fato, um movimento
curvo e não retilíneo, que dependendo da velocidade que se cumpra a tarefa, pode levar à
vertigem o espectador. Exu é o mestre da vertigem!” (OLIVEIRA, 2007, p. 129) seja
impulsionando o inconformismo, seja contra colonizando o pensamento humano.

Últimas palavras

As linhas costuradas neste ensaio propuseram uma forma de entender Èṣù como
acontecimento e, para isso, a intepretação do ìtán de Ẹnugbárijọ aproximou-O do
paradigma da pluriversalidade. Tal paradigma expôs filosoficamente como tratar de
certos eixos através de uma circularidade que cruza dois ou mais caminhos. Com isso,
nós ilustramos a estética como referência dialógica entre a epistemologia, a ética, a
política e a ontologia. Tal ilustração tratou-se de uma percepção de como o
acontecimento-Èṣù propicia uma circularidade contra colonialista e, portanto, opõe-se ao
colonialismo que pretende regular a própria vida e suas expressões na humanidade.
Para tanto, apresentamos alicerçados no conceito de “biointeração” como a
espiritualidade, diferente do discurso religioso, trata-se de uma vinculação entre
aquele/aquilo que está no campo visível ou no invisível. Tal vínculo amplia a noção de
vida e expõe como o “outro” adequa-se a uma singularidade marcada por um coletivo.
Com isso, a diáspora e a ancestralidade africana tornam-se elementos que articulam um
dinamismo cósmico exibindo o caráter enigmático e ritualístico dos corpos negros. Nesse
conjunto a intenção foi subverter o discurso colonialista da razão ocidental.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Um discurso reprodutor da imagem de humanidade repletas de categorias nas


quais podem ser inseridas, retiradas ou remodeladas conforme um desejo ideal de
humano. Fundamentados nesse desejo, o colonizador observou os povos por meio de um
maquinário de controle a partir de uma submissão e divisão racial. Nesse bojo, grupos de
pensadores ampliaram o alcance de tal controle até justificando a legalidade de tráfico e
a transformação de humanos em mercadoria:

Os europeus escravizam os negros e os vendem nas Américas. Embora


isso seja ruim, a situação dos negros em suas próprias terras é ainda
pior, porque lá existe uma escravidão absoluta; o princípio essencial da
escravidão, o fato do homem ainda não ter obtido consciência de sua
liberdade e, consequentemente, afunda-se até tornar-se uma mera Coisa
– um objeto sem valor (HEGEL, 1857, p. 100).

Como provocação, trazemos algumas palavras de Rufino (2019, p. 32), até mesmo
para ilustrar a dinâmica do acontecimento-Èṣù não percebido pelo discurso colonizador:
“[Hegel] firmaste um verso sobre as populações negras como sendo contrações imóveis,
rastejo e espasmo. Eu, cismado que sou, refaço a pergunta: Ora tu não viste um moleque
de pau duro que passou do teu lado? Não viu? Acabou de tirar um sarro de ti!” (RUFINO,
2019, p. 32).
Com o sarro desse “moleque de pau duro” encaminho a finalização deste ensaio
com o seguinte firmamento: o acontecimento-Èṣù faz com que aquilo que está vivo tenha
eṣistência.

Referências

BRAH, Avtar. Cartografías de la Diáspora. Identidades em cuéstion. Madrid:


Traficantes de Sueños, 2011.

BLUES, Baco Exu do. Èṣù. São Paulo: 999, 2017.

DANTAS, Luís Thiago Freire. A filosofia nagô e a temporalidade da vertigem. Odeere:


Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade –
UESB. Vol. 3, n. 6, Julho – Dezembro de 2018, pp. 120-132.

FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. Olojá: Entre encontros - Exu, o senhor do


mercado. Das Questões, n.4, ago/set 2016, pp. 28- 39.

HALL, Stuart. Quem precisa da Identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e
Diferença. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

HEGEL, Friederich. Lectures on the Philosophy of History. London: York Street, 1857.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de


Janeiro: Editora Cobogó, 2017.

MALOMALLO, Bas’ilelle. Epistemologia Do Ntu: Ubuntu, Bisoidade, Macumba,


Batuque E “X” Africana. In: SOUZA, Elio Ferreira de; et. al (Orgs.). História e cultura
afrodescendente. Teresina: FUESPI, 2018, pp. 561-574.

MACHADO, Vanda. Pele da cor da noite. Salvador: UFBA, 2013.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2019.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

OLIVEIRA, Eduardo David. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da


educação. Curitiba: 2007.

RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o estudo de filosofia africana. Ensaios


Filosóficos. Volume IV, outubro, p. 6-25.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Ed. Mórula, 2019.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significação. Brasília:
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa
– INCTI, 2015.

SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 2015, p. 191.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2017.

SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre


relacionamentos. São Paulo: Odysseus Editora, 2007.

Recebido em: 03/11/2020


Aceito em: 03/11/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

AS GRIÔS NO BRASIL: SABERES E FAZERES DE


MULHERES NEGRAS ATRAVÉS DA CATEGORIA TIA

Angélica Ferrarez de Almeida1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34965

Resumo
Através da preservação da memória genealógica, traduzida em saberes e fazeres que
constituem as chamadas Tias, vamos refletir como se deu a construção desta categoria
política e como a aproximação com o ofício dos griôs da África Ocidental nos
proporciona uma linha de entendimento da importância da trajetória destas mulheres
negras, por ora, inviabilizadas na história. Logo, a reflexão dos regimes de visibilidade,
protagonismo e emancipação, desenvolvida por mulheres negras na dimensão política,
cultural e de organização dos espaços da memória em países de reminiscências
coloniais, como é o caso do Brasil, nos possibilita inscrever a categoria Tia como um
ofício na história social das mulheres. Refletindo assim sua intervenção no mundo a
partir do trabalho protagonizado às margens, acionando assim a potência das histórias
múltiplas na partilha do comum. Deste modo, vamos nos servir de uma costura
bibliográfica enquanto elaboramos e pesquisamos nossas próprias fontes, já que o
registro de tais memórias se encontra soterrado nas amarras do pacto colonial. Dito isto,
este é um trabalho por regimes de visibilidade e ajuste de memórias.

Palavras-chave: Tias. Griôs. Memórias. Saberes. Visibilidades.

GRIOTS EN BRASIL: CONOCIMIENTO Y HACER DE


MUJERES NEGRAS A TRAVÉS DE LA CATEGORÍA TIA
Resumen
A través de la preservación de la memoria genealógica, traducida en saberes y prácticas
que constituyen las llamadas Tias, reflexionaremos sobre cómo se dio la construcción
de esta categoría política y cómo la aproximación con la arte de griots de África
Occidental, nos proporciona una línea de comprensión de la importancia de la
trayectoria de estas mujeres negras, por ahora, inviabilizada en la historia. Por tanto, el
reflejo de los regímenes de visibilidad, protagonismo y emancipación, desarrollados por
las mujeres negras en la dimensión política, cultural y organizativa de los espacios de
memoria en países con reminiscencias coloniales, como es el caso de Brasil, permite
inscribir la categoría de Tia como un oficio en la historia social de las mujeres.
Reflejando así, su intervención en el mundo desde el trabajo realizado en los márgenes,
activando así el poder de las múltiples historias en compartir lo común. De esta manera,
utilizaremos una costura bibliográfica mientras elaboramos e investigamos nuestras
1
Doutoranda em História pela UERJ com projeto Mulheres Negras no Pós Abolição: memória, linguagem e
poder no ofício da porta bandeira tia Dodô da Portela. Possui mestrado em História Social da Cultura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro com tema As tias pretas do samba: por uma questão de
memória, espaço e patrimônio. Email: angelferrarez@gmail.com

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

propias fuentes, ya que el registro de tales memorias está enterrado en los lazos del
pacto colonial. Dicho esto, este es un trabajo para regímenes de visibilidad y ajuste de
memorias.

Palabras clave: Tias. Griots. Memorias. Conocimiento. Visibilidades.

No rastro dos griôs


Eu sou um “griot”, antes de qualquer coisa, e o “griot” é
a memória do continente africano. Da parte da África do
Oeste é a biblioteca e é, também, o guardião das tradições
e dos costumes, encarregado da organização de todas as
cerimônias. Ninguém se torna “griot”. Nasce-se “griot”.
É de pai para filho. Mas há também as “griotes”, as
mulheres. São muito poderosas. Quando elas estão, os
homens se calam2.

Sotigui Kuyaté3

O termo francês “griot” apareceu pela primeira vez em francês na obra de Alexis
de Saint Lô: Voyage au Sénégal de 1637. Sendo uma das instituições mais antigas da
África Ocidental, há relatos de viajantes árabes datados de 1350 sobre a corte do Mali
nos quais se descrevem a presença de músicos intérpretes com características bem
semelhantes aos “griots”, mas que eram conhecidos entre si pelo termo jeli. (BARRY,
2000).
Sendo um estrangeirismo francês, a utilização da palavra “griot”, ao mesmo
tempo que foi fruto do olhar europeu sobre um ofício mais antigo na África Ocidental, é
também uma apropriação por parte dos africanos de uma terminologia que eles
souberam bem incorporar enquanto categoria política de existência e (re) existência no
mundo. Como não há correspondência no português para esta expressão, vamos adotar a
forma aportuguesada griô, como há grafado na Epopeia Mandinga de Sundjata de 1982,
romance publicado em diversas versões por Niane Djibril Tamsir, no qual retrata a
formação da identidade griô sendo cunhada nas fronteiras, no contato com o olhar
classificatório do colonizador, transitando entre o processo de assimilação engendrado
pelo europeu e a apropriação por parte do próprio grupo africano.

2
Livre transcrição do documentário: “Sotigui Kouyaté: um griot no Brasil”, produzido pelo grupo SESC
TV em dezembro de 2006.
3
Sotigui Kuyaté nasceu no Mali em 1936 e faleceu em Paris em 2010, sendo considerado um dos griôs da
contemporaneidade. Seu reconhecimento internacional se deu por conta de seu trabalho no cinema e no
teatro, tendo atuado em diversas produções francesas, inclusive com Bernardo Bertolucci e Peter Brook.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A casta dos griôs é uma reminiscência da África Ocidental anterior às formas de


comunicação tidas como modernas. É uma casta de contadores de história que, calcados
na oralidade e na memória coletiva e genealógica de seu grupo, bem como de seu papel
social, são os cronistas sociais e políticos de seu povo, enquanto transmissores de
saberes, mantenedores de segredos específicos e produtor semântico responsável por
uma espécie de literatura oral calcada no poder da narrativa.
Países como Senegal, Mali, Burkina Faso, Mauritânia, Norte da Costa do
Marfim e partes da Nigéria tiveram os griôs na constituição oficial destes países.
Ocupando ofício de memorialistas, eles eram os velhos narradores que se serviam das
estruturas narrativas a fim de fazer lembrar àquilo que não se deve esquecer. Há uma
relação de causa e efeito entre os griôs e a memória e como a causa não é um antes
primordial, ela é apenas um dos elementos da dupla (TODOROV, 1970), a memória
está para os griôs, assim como estes a edificam. Sua influência, articulada aos domínios
da política, foi basilar para o processo de emancipação de várias ex-colônias africanas.
A partir destas reflexões nossa atenção se volta para este lugar da memória, da palavra,
da narrativa, do dito e o não dito; como um campo epistemológico de saberes e fazeres
que atravessaram o oceano e foram fundamentais para a constituição da cultura negra na
diáspora. E, neste movimento, a atuação das mulheres foi singular a partir das chamadas
Tias do samba, como veremos mais adiante.
Abrindo o diálogo com Hall (2013), o autor aponta três argumentos para o
entendimento do que seria essa cultura negra na perspectiva diaspórica. Primeiro, o
estilo de manifestações de matriz negra, que os críticos acreditam ser uma casca, um
invólucro, acabou por se tornar a matéria do próprio acontecimento, sendo assim a
forma dominante da cultura global. Ao mesmo tempo em que é o espaço da experiência
dos negros, é o espaço em que o controle de narrativas e representações é deslocado das
mãos dos produtores para burocracias culturais estabelecidas. Segundo, com
deslocamento do mundo logocêntrico, o domínio da escrita passa para a crítica da
escrita e em seguida para seu processo mesmo de desconstrução, movimento que vem
acompanhado pelas formas de entendimento a partir de outras bases epistemológicas e
nisto a estrutura profunda da vida cultural se abre para a música. E por fim, a abertura
para a dimensão do corpo como em telas de representação, como se ele fosse o único
capital dos sujeitos negros:

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Considerando a importância atribuída à música no habitus dos negros


da diáspora, é irônico que nenhum dos polos neste tenso diálogo leve
a música muito a sério. O narcisismo que une ambos os pontos de
vista é revelado pelo modo com que ambos abandonam a discussão da
música e da dramaturgia, a performance, o ritual e os gestos que a
acompanham em favor de um fascínio obsessivo com os corpos dos
próprios artistas. (GILROY, 2012, p. 207)

Chamando atenção para o apelo que a produção cultural da diferença fez a partir
dos corpos dos sujeitos negros, Gilroy aponta o estilo, a música e a performance dos
corpos como repertórios da cultura negra ou espaços performativos mais latentes para as
estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica. Se
refletirmos a dimensão do som no pós-Abolição, vemos que a música, que encontra seu
nascedouro nas dimensões das sociabilidades negras, teve um alcance muito maior que
os corpos negros. Aliás, a música dos sujeitos negros adentra espaços em que seus
corpos são interditados. Os sons produzidos pelas comunidades negras constituem a
paisagem sonora e por isto foram responsáveis pela organização das cidades, do
trabalho, da vida rural, das associações negras, dos próprios territórios musicais, vide as
escolas de samba no Rio de Janeiro, por exemplo. A partir do reflexo da agência negra
nas políticas de emancipação e luta de mulheres, temos no território do samba um
campo privilegiado de análise que aponta para a construção da categoria Tia.
São esses dispositivos culturais de origem negra no desenvolvimento de novas
epistemologias que junto ao fim de um império cognitivo - parafraseando Souza Santos
(2010) ao assinalar o desmonte epistemológico e político do pensamento ocidental -
auxiliam na audição das insurgentes vozes femininas na atualidade. Não basta apenas a
constatação da crise de paradigmas do pensamento hegemônico, há que se ouvir nos
espaços de dialogia as diferentes vozes dos sujeitos sociais. Como estamos olhando
sobre os ombros de mulheres negras, suas vozes emergem à força da ação política das
Tias, as nossas griôs do samba.

Enunciados do (In) visível: nas frestas de uma categoria de análise

Minha avó foi uma dessas mulheres baianas que


mudaram a forma de pensar e de agir do povo escravo
que veio para o Brasil em navios negreiros e, após a Lei
do Ventre Livre e a própria Lei Áurea, manteve suas
tradições, seus deuses e seus costumes em nosso país.
(SILVA, 2009, p. 17).

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Com estas palavras Yara da Silva abre seu livro: Tia Carmem: negra tradição da
Praça Onze sobre sua avó Tia Carmem do Xibuca. Sendo um dos poucos registros
escritos sobre as Tias, a autora faz deste uma singela homenagem e exercício afetivo de
resgate de uma determinada memória. Carmem Teixeira da Conceição proveniente de
Amaralina, Salvador, Bahia, nasceu em 1878 e foi para o Rio de Janeiro em 1893 indo
morar na rua Senador Pompeu, Zona Portuária. Recebeu o apelido do marido, Xibuca,
após casar-se com Manoel Teixeira com quem teve 22 filhos. Filha do Orixá feminino
Oxum ela era rezadeira, quituteira, vendia seus doces no tabuleiro na Lapa, Campo de
Santana e Praça Tiradentes. Relatam-na como uma mulher muito festeira que saía em
vários ranchos carnavalescos e frequentava os quintais das casas das amigas, Tia Ciata e
Tia Bebiana.
As Tias, que serão grafadas aqui em maiúsculo para não perdermos na dimensão
desta categoria de análise, a perspectiva do ofício, são, em sua maioria, mulheres mais
velhas, detentoras de um saber fazer que remonta uma memória genealógica de herança
africana na cidade do Rio de Janeiro. Existe no ser Tia algo de poder e de político, que
faz com que elas sejam legítimas ao ponto de: “mudar a forma de pensar e de agir do
povo escravo que veio para o Brasil em navios negreiros...”, como nos aponta Silva
acima. Progenitoras, líderes, rezadeiras, cozinheiras, sambistas, quituteiras,
quitandeiras, organizadas, conscientizadas, mães de santo; estas Tias manipulam tantos
códigos que chegam a concorrer com outras formas de organização das famílias, da
cidade e da cultura. Responsáveis pela primeira geração de sambistas, já que foram as
mães destes, elas eram as chefas de famílias extensas e muitas frentes familiares se
formavam a partir do crivo de uma Tia e da existência de seu quintal.
A dimensão histórica dos quintais cumpre papel importante para a compreensão,
pois território e cultura se articulam de maneiras diversas e geram representações e
valores em tempos históricos diferentes. Praças, terreiros, quintais foram centros
culturais, sinalizando uma dimensão do espaço que serviu às manifestações da cultura
negra. Logo, podemos vislumbrar o quintal das casas das tias e a reunião destes quintais
culminando numa cartografia negra das cidades.
Com relação à família, não se pode pensá-la como um fato universal e natural,
mas como sistema organizador de ideias, valores e aspirações. Na ordem colonial
burguesa, por exemplo, costuma-se fazer uma certa distinção entre família,
propriamente dita, e, parentesco. Os termos não significam exatamente a mesma coisa, e
assim predomina a visão institucional que delimita a família nuclear e a família mais

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

extensa em função dos laços consanguíneos. Entretanto, saindo do epicentro colonial


ocidental, vemos que as sociabilidades entre negros na diáspora nos ofertou uma outra
dimensão de família baseada em estratégias de solidariedade étnica e religiosa
(SLENES, 1999; REIS, 1987). Daí a defesa de que estas Tias são responsáveis pela
manutenção de grandes famílias extensas, que se reúnem em seus quintais, tanto para a
manifestação da música, quanto para a dimensão do sagrado.
Fazendo algumas considerações acerca de Tia Ciata através da obra Macunaíma
de Mário de Andrade, este nos chama atenção para o capítulo intitulado: “Macumba”.
Conta a história de quando Macunaíma, a fim de se vingar de Venceslau Pietro Pietra,
recorre ao poder dos feitiços dos negros pedindo auxílio ao Orixá Exu. Mesmo sendo
uma obra de ficção, é interessante observar o poder desta Tia através do cenário
montado por Andrade:

Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá


no Mangue, no zungu de Tia Ciata, feiticeira como não tinha outra,
mãe de santo famanada e cantadeira ao violão. Ás vinte horas
Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de
pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre,
advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas
essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e
as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera
de vespa tatucaba e raiz seca de açacu. Entrou na sala cheia e
afastando a mosquitada foi de quatro saudar a camdomblezeira imóvel
sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha
com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira
branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém
mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já
sonolente pendendo pro chão da terra. (ANDRADE, 2008, pp.75/76).

Hilária Batista de Almeida, ou simplesmente Tia Ciata, era filha do Orixá Oxum,
mãe pequena no terreiro do famoso pai de santo João Alabá4, o mesmo frequentado por
tia Carmem e outras tias. Nasceu em 1854, em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo
Baiano, mudando-se para o Rio de janeiro em 1876 com 22 anos. Do relato acima
podemos depreender algumas características interessantes: “candomblezeira”,
“feiticeira”, “mãe de santo”, “cantadeira ao violão”, “negra velha”, “cabeleira branca”,
mas a que salta aos olhos é a rede de pessoas em torno dela, que precisam de suas rezas,
feitiços ou “macumba”. Uma rede heterogênea “... gente direita, gente pobre,

4
Fundado em 1886, este é considerado um dos primeiros terreiros de candomblé na cidade do rio de
Janeiro, no bairro da Saúde na Zona Portuária.

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advogados, garçons, pedreiros, meias colheres, deputados, gatunos, todas essas


gentes...”. Importante a imagem da Tia como centralizadora das relações, onde as
diferenças eram minimizadas em prol de uma imagem quase sacralizada pelos
assistidos, a ponto do próprio Macunaíma ir “de quatro saudar a camdomblezeira
imóvel sentada na tripeça, não falando um isto”.
A casa de Tia Ciata, na Praça Onze no Rio de Janeiro, foi um polo irradiador da
cultura negra carioca com suas primeiras reuniões de samba. As festas ali aconteciam no
quintal onde se faziam também os rituais dos orixás, seguida da cerimônia religiosa,
frequentemente antecedida pela missa cristã, assistida na igreja (SILVA, 2009).
Interessante essa noção da missa antes das celebrações nos quintais das Tias, a própria
Tia Carmem, antes de armar a festa no quintal de casa, assistia missa na Igreja de São
Jorge. Este lado festivo das Tias é narrado em vários tipos de literatura e suas festas
tinham este ar sincretizado. Festas que começam na igreja e terminam com as rodas de
pagode e batuques.
É importante observar a interface com a dimensão da festa, pois diferente das
correntes que pensam a festa enquanto distração das massas, estratégia das classes
dominantes a fim de manipular o povo, antagônica ao trabalho, sendo basilar para a
construção dicotômica da razão instrumental X ritual, bem como da razão produtiva X
capitalista; a festa aqui é política.

Queremos chamar atenção para o fato de que o domínio sobre as


grandes festas populares como o Carnaval, parece ter sido tão
premente e importante para o controle e desenvolvimento da cidade
quanto o era a adoção de ferrovias, planos urbanísticos, posturas
municipais, medidas de higiene e etc., o que nos leva a concluir que,
como sempre, desde o princípio, as transformações urbanas não se
resumem à sua materialidade mas também às suas dimensões
imateriais e do imaginário. (FERNANDES, 2001, p. 15)

Assim, a festa protagonizada por negros se impõe restituindo-os poder,


cidadania e humanidades roubadas. É claro que as festas, em geral, têm o poder de
transcendência, introduzem outra dimensão de tempo e lugar, têm capacidade de
revolver o ser humano e, neste sentido, não queremos perder a dimensão lúdica da festa,
mas sim chamar atenção para a festa como lugar, por excelência, da crítica social e que
coloca o princípio do “panis et circense”, o famoso pão e circo em cheque. As festas do
quintal das Tias foram momentos onde sujeitas e sujeitos negros se viram
protagonizando e performando a cultura urbana de herança diaspórica.

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Diz Tia Carmem do Xibuca: “A nossa casa era o ponto de encontro de todo
mundo que gostava de um pagode. O João da Baiana, por exemplo, só queria sambar e
tocar pandeiro (...), não sei como o João foi parar no rádio” (SILVA, 2009, p. 111).
Interessante a afirmativa acima porque demonstra que a familiaridade com estes
primeiros sambistas chegou ao ponto de não perceberem a projeção dos mesmos fora do
reduto dos quintais. E continua Silva: “Os sambistas também se reuniam na casa da
vovó, mas na época, ela dizia, que não havia o chamado tratamento de sambista: eram
apenas pessoas que cumpriam os rituais africanos e a coisa terminava em samba” (Ibid,
p. 80).
Segundo Michel Mafesoli é no imbricamento entre indivíduo, cultura e território
que deve ser buscado o fundamento para o apego afetivo, ou “enraizamento dinâmico”
(MAFESOLI, 1984, p. 13). As Tias acabam por formar uma rede familiar em torno
delas, no espaço da casa, nos usos festivo e religioso do quintal, no domínio sobre a
alimentação, nas recordações que eram ali ouvidas, afinal, ir ao encontro destas Tias,
que estavam impulsionando a cultura urbana e criando espaço para o desenvolvimento
do que seria uma cultura negra, é ir ao encontro das lembranças que animam este
universo.
O espaço privilegiado para as festas das Tias era o quintal, geralmente, nos
fundos da casa. Pensando nos discursos de subalternização, vemos que coube ao quintal
a tarefa de abrigar os eventos tidos como mais subalternos para a ascendente sociedade
burguesa e não à toa que este ficava nos fundos, diferente dos quintais da família
burguesa que ficavam na frente de casa. Lembrando que dentro da estrutura da casa, o
quintal, muitas vezes, tem que ser camuflado para que seus eventos não sejam
interrompidos pela repressão. Ao mesmo tempo, seu chão de “terra batida”, uma
imagem que remete ao elemento terra tendo o terreiro enquanto continuação possível de
valores ancestrais, não sem mais que é no quintal de “terra batida” que ficavam
“ritualmente dispostas às coisas do culto” de matriz africana. Essa religiosidade,
camuflada para que viva, foi estrategicamente pensada pelas Tias (ALMEIDA, 2013).
Celeiro de grandes encontros era também o quintal de Tia Amélia do Aragão,
que ganhou o Aragão no nome porque morava na rua do Aragão. Cantadora de modinha
e mãe do cantor e compositor Donga. Havia as rezadeiras, Tia Bebiana e Tia Perciliana,
esta última mãe do sambista João da Baiana que, unidas a Tia Ciata, Tia Carmem e
outras, pertenciam todas ao terreiro de candomblé de João Alabá. Havia a grande

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quituteira Tia Veridiana, e, também Tia Sadata da Pedra do Sal, que foi fundadora do
rancho carnavalesco Rei de Ouro.
Interessante que as Tias mencionadas até agora eram todas baianas e moradoras
da Zona Portuária de finais do século XIX. Contudo, não vamos repetir, sem
problematizar, a ideia de uma centralidade baiana. Aliás, a incipiente bibliografia sobre
elas cunhou no imaginário social a ideia de uma diáspora baiana que carece de estudos
mais aprofundados, interesse que vem se desdobrando em futuras pesquisas sobre a
Bahia oitocentista, mas, por ora, vamos tentar descobrir o que este mito encobre ao
descentralizar a influência baiana, a fim de ampliar os espaços políticos e territoriais da
“pequena África”.

Nem tão baianas assim: sobre trânsitos e deslocamentos

Proponho que a espacialidade das Tias não seja lida entre baías - Baía de Todos
os Santos e Baía da Guanabara – representando Salvador e Rio de Janeiro
respectivamente, e, para tanto compartilho com o historiador Tiago de Melo Gomes
(2003) ao apontar a importância dos deslocamentos de mineiros e fluminenses para a
cidade do Rio de finais do século XIX. Em vez de colaborar com uma historiografia do
isolacionismo, pensando em grupos separados, queremos ampliar o debate, refletindo o
trânsito e experiência das Tias para além da centralidade baiana e da Zona Portuária.

[...] entre 1872 e 1890 a Bahia perdeu apenas sete mil habitantes através da
migração interprovincial. Na última década do século XIX, o mesmo estado
teve um saldo positivo de 40 mil pessoas no quadro nacional das migrações,
tornando-se um fornecedor de migrantes internos apenas a partir de 1900 e
nos vinte anos seguintes, quando perde por esta via 116 mil habitantes. Não
se pode, contudo, postular que a maioria destes migrantes tenha se dirigido à
Capital, pois esta recebeu apenas 55 mil novos migrantes internos no mesmo
período (menos que Pará e Pernambuco e pouco mais que o Rio Grande do
Sul). Por certo, uma parte significativa destes novos habitantes da Capital era
composta por mineiros, já que o estado de Minas Gerais cedeu 220 mil
pessoas a outras unidades da federação no mesmo período. (GOMES, 2003,
p. 7)

Tia Eulália, por exemplo, era mineira, chegando ao Rio de Janeiro foi para a
comunidade da Serrinha em Madureira por volta da década de 30. Outra que chega à
mesma época é Vó Maria do Jongo, proveniente do interior do Estado do Rio. Reduto

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do jongo5, a região de Madureira entrou fortemente no circuito das artes negras da


cidade, vindo abrigar as escolas de samba Império Serrano, de 1947, e a Portela de
19236, ambas fundadas por Tias não baianas, além de Mano Décio, Mano Elói, Seu
Alfredo e Mestre Fuleiro, sendo o primeiro o único baiano da turma do Império. Além
de Paulo da Portela, Antônio Rufino e Antônio Caetano, o triunvirato carioca da Portela.
Transitando pela cidade e chegando ao Morro do Salgueiro, a grande referência
era a Tia Neném, nascida ali mesmo em 1921. A Tia Zezé, nascida em Três Rios em
1923, foi componente importante da Unidos da Tijuca e tantas outras Tias provenientes
de vários lugares e contribuindo com a descentralização do mito de uma diáspora
baiana. Óbvio que as Tias provenientes da Bahia foram marcantes sim na cultura urbana
carioca, introduzindo modos de vestir, de saberes e pensar, mas em sua maioria
migraram durante meados do século XIX, provavelmente como escravizadas,
acompanhando as famílias para as quais trabalhavam e muitas colocadas ao ganho 7.
Olívia Cunha assim nos diz:

Responsáveis pela mediação dos ambientes domésticos e públicos, as


mulheres livres e escravas dominavam o mercado de trabalho, por
transpor com mais permissividade as fronteiras da intimidade da
família patriarcal, ganhando as ruas. Ao contrário dos homens, as
criadas eram vistas como mais afeitas à aparente leveza das tarefas do
lar e supostamente mais inofensivas aos segredos familiares. ...
Mesmo considerando a precária estrutura das habitações da Corte na
segunda metade do século XIX, o que contribuía para que os serviços
realizados dentro de cassa fossem tão ou mais pesados do que aqueles
realizados fora, as construções da domesticidade atreladas a certa
concepção do trabalho feminino foram culturalmente dominantes.
(Cunha, 2007, p. 380).

5
Dança afrobrasileira de caráter mítico religioso, originária talvez da região de Benguela, atual Angola,
que se desenvolveu na região sudeste do país e tem no Rio as baluartes Vó Maria do jongo e a própria tia
Eulália, ambas da Serrinha.
6
O Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, ou simplesmente Portela, é uma escola de samba
fundada em Madureira no ano de 1923. Inicialmente ela foi fundada numa dissidência entre dois blocos
carnavalescos, o “Baianinhas de Oswaldo Cruz”, cujos diretores eram Paulo da Portela, Heitor dos
Prazeres, Antônio Caetano, Manuel Bam Bam Bam, Natalino José do Nascimento, o famoso Seu Natal,
dentre outros, e o “Quem fala de nós come mosca” cuja origem remete ao famoso quintal de Tia Esther.
Dessa dissidência Paulo da Portela liderou o grupo que formou o “Conjunto Oswaldo Cruz”, que foi
renomeado para: “Quem nos faz é o capricho”, e depois: “Vai Como Pode”, nome que a escola teve até
1935, ano de seu primeiro título quando assume o nome Portela.
7
Faceta da escravidão urbana em que escravizadas e escravizados eram liberados do trabalho doméstico
para comerciar nas ruas da cidade, entretanto, sem, contudo, perderem o vínculo de servidão com seus
donos, os quais recebiam uma boa quantia deste ganho, cláusula.

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Deste modo, vemos que há uma associação culturalmente construída entre


domesticidade, família e feminilidade, onde as mulheres sempre foram tidas como
melhores para os serviços domésticos, entretanto questões de ordem econômica faz com
que muitos senhores e senhoras coloquem seus escravos ao ganho, constituindo nisto
mais uma forma de negócio da empresa escravista. Contudo, estar nas ruas é que
garantiu mais mobilidade, formação de redes e de canais de comunicação. Como diz o
cronista João do Rio: “Sem o consentimento das ruas não passam os sábios...” (2010, p.
52). No que emendamos: e nem se forma a cartografia dos quintais, movimento mais
peculiar no pós-Abolição; portanto, os trânsitos e deslocamentos de mulheres negras
ficam mais acirrados durante a primeira metade do século XX, e neste momento as
migrações, por exemplo, do Vale do Café8 para o Rio de Janeiro, são muito mais intensas
(COSTA, 2015). É deste período a mudança da futura porta-bandeira da Portela, Tia
Dodô, de Barra Mansa para o centro do Rio, assim como fez a família da cantora
Clementina de Jesus anos antes, só que saindo de Valença e se estabelecendo na pacata
e ainda região rural Freguesia de Jacarepaguá.
Em Memórias do Cativeiro, Rios (2005), analisando os deslocamentos a partir
do Vale do Café, indicou em suas pesquisas que não foi logo após a abolição que as
migrações para a capital ocorreram. A relação com a terra ainda era pulsante e existiam
certos traços estáveis quando, por exemplo, os proprietários da terra conseguiam manter
a mão de obra negra de ex-escravos e libertos através de vínculos de trabalho livre, e
não estáveis, quando esse trabalhador vagava entre as fazendas na busca por trabalho
temporário. Aliás, a relação com a terra foi um vetor de atração para os espaços ainda
rurais das cidades, daí a ocupação dos subúrbios e da Baixada Fluminense no Rio.
Primeiro, a relação com a terra foi catalisadora dos processos migratórios
atraindo pessoas para os subúrbios cariocas e à Baixada Fluminense da cidade, onde
havia uma nascente economia em torno da laranja e seu mercado agroexportador
(ABREU, 1988; PEREIRA, 1977). Segundo, e totalmente correlacionado, a
familiaridade com o meio rural encontrada nos subúrbios cariocas acabou atraindo esta
mão de obra. Terceiro, com o desenvolvimento das linhas férreas de carga, os produtos
saídos da decadente região cafeeira passavam antes em regiões da Baixada Fluminense,
antes de descarregar as encomendas no centro da cidade. Quarto, por mais que haja

8
O Vale do Paraíba ou Vale do Café, como é popularmente conhecido, é uma região cortada pelo rio
Paraíba do Sul, que abrange quinze municípios do Estado do Rio, e, que teve seu auge na economia
cafeeira, bem como na empresa escravocrata, na segunda metade do século XIX.

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possibilidade de moradia nos centros urbanos, principalmente através do acionamento


de vínculos familiares com pessoas que tinham chegado em levas migrantes anteriores,
a possibilidade de obtenção de terras era maior no subúrbio rural do que no centro, onde
o trabalho estava concentrado no porto. E, por fim, a mobilidade que a comunidade
negra experimentou no pós-Abolição com a instabilidade do período combinada às
formas de violência e opressão de suas culturas, impulsionando assim a escolha por
espaços nos quais o poder público não dava prioridade de assistência, propiciando,
dessa forma, mais brechas para os processos de criação, isto é, espaços para
manifestações festivas de cunho cultural e religioso.
Daí vemos florescer a experiência do jongo no subúrbio de Madureira,
deslocado das festas e dos batuques dos negros da região cafeeira. A simbologia das
rodas e as experiências negro-africanas de origem bantu, já que era desta nação a
maioria dos ex-escravizados encontrados na empresa cafeeira que migraram para a
cidade na primeira metade do século XX. A partir disso outras centralidades são
produzidas onde discursos, imagens e narrativas são deslocados para formar novos
lugares de pertença, novos imaginários simbólicos dos sujeitos negros, novas
concepções do tempo e da memória e práticas de cotidiano:

Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em


que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de
todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas,
sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns
morando mais longe, em Inhaúma, em Cachambi, em Jacarepaguá,
perdem amor e alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às
estações. (BARRETO, 2009, p. 88)

Os casos de Madureira e Osvaldo Cruz são interessantes para pensar a crescente


participação do poder público a partir de desenvolvimento local impulsionado pela
agência da cultura urbana negra. Estes bairros que pertenciam à Freguesia do Irajá
crescem de formas variadas. Madureira se desenvolve com a intensificação do
comércio, abrigando, inclusive, o maior mercado de distribuição de produtos para os
subúrbios, mercado que surgia como uma feira de rua em 1914 e vai se complexificando
e modernizando com o tempo, sendo portugueses, italianos e até alguns brasileiros os
donos dos primeiros estabelecimentos (MARTINS, 2009). Já Osvaldo Cruz ganha
características mais residenciais, com suas vilas, herança do desmembramento das
grandes chácaras de outrora, e, mais tarde, com os conjuntos residenciais.

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A espacialidade desta cidade com suas fronteiras, além de não ser bem definida,
estava longe de representar algo homogêneo. À mistura de libertos, os ex-escravizados,
com os nascidos livres e os migrantes vindos da Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo,
além do interior do Rio, se juntaram os imigrantes europeus, eram italianos, espanhóis,
portugueses, franceses, ingleses e árabes compondo a paisagem desta cidade. Para além
de descentralizar a ideia de uma “diáspora baiana”, gostaríamos também de ampliar os
limites espaciais e políticos da “pequena África”. Expressão cunhada a partir da ideia do
sambista Heitor dos Prazeres que, ao observar o fluxo maior de negros nas ruas da
cidade, disse estar em “uma África em miniatura”, se referindo, sobretudo, à Zona
Portuária. Entretanto, quero pensar aqui os símbolos que justificam a defesa da
“pequena África” enquanto mito fundacional da vontade de uma civilização africana
entre nós para assim ampliar suas fronteiras a fim de costurar a cidade negra.
Imaginemos que chegar à região portuária era como se estivéssemos entrando
numa empresa escravocrata, com repartições, hierarquias que obedeciam a postos de
trabalho, divisão racional e instrumental, usos diferenciados dos espaços, enfim, tinha-
se desde o Cais do Valongo9, os espaços dos trapiches e pelourinhos, até a Pedra do Sal,
o Largo do Depósito, o Cemitério dos Pretos Novos, enfim, todo um complexo que
servia à empresa escravocrata. Com o pós-Abolição, essa memória, por vezes,
literalmente soterrada, encoberta em relações de poder e violência, emergiu pela agência
dos grupos negros quando resgataram a ideia de uma “pequena África”, nascida no solo
de muito trabalho e sofrimento, mas apoiada nos espaços de vivência e circulação dos
negros e na perspectiva de uma consciência histórica. Portanto, é como construção
política e vetor de reivindicação de existência e humanidades negadas que ampliamos a
ideia da “pequena África” a fim de pensar esta cidade.
A apropriação da “pequena África” enquanto um isolado idílico onde as
manifestações negras são tidas como coesas e homogêneas, e a de uma diáspora baiana,
como catalizadora para a produção da cultura urbana, foram imagens reproduzidas e
muito pouco problematizadas na historiografia (MOURA, 1995). Por isto, a ideia da
“pequena África” enquanto construção política de determinados herdeiros é mais
interessante e reflexiva. A partir da ideia da herança, Hall (2013) diz que herdeiro é

9
No ano de 2013, o Conselho Científico Internacional da Unesco, através do projeto “Rota do Escravo:
resistência, liberdade e herança”, fixou uma placa no Cais apontado como lugar de memória da Diáspora
Africana nas Américas. No ano seguinte, houve a candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo
a patrimônio da humanidade e em 2017, finalmente, houve a declaração do Cais como patrimônio do
mundo pela Unesco.

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aquele que usa e dissipa a herança a partir de uma ação do presente, ou seja, a relação
com o passado se desenrola a partir dos significados e das relações de poder que fizeram
com que as coisas viessem à tona. É o acionamento no presente que ativa esse passado
no acionamento das disputas.
Os usos comuns desta herança pela comunidade negra fizeram desenvolver, nos
espaços desta cidade, várias “pequenas Áfricas” para além da já consagrada região
portuária, e foram as Tias do samba e os sambistas transitando pela cidade, a cultura que
se desenvolve na relação com as ruas, ou a que estava sendo cultivada nos subúrbios
mais rurais ou ainda nos grandes ajuntamentos; todo esse movimento que produz a
cultura da cidade edificada no calçamento da herança escravocrata. Neste sentido, a
autoridade discursiva das mulheres se faz notória, seja na organização dos espaços da
cidade, no plano familiar, na gestão de pequenos negócios, na produção de seus
quintais, enfim, uma autoridade que se consolida através das lutas por emancipação e
protagonismo da comunidade negra. Pois o que está em jogo na atuação política da Tia
é sempre a emancipação de uma comunidade, de uma família, e, portanto, de outras
mulheres.

À guisa de conclusão

O argumento da memória genealógica, associado a uma herança imaterial,


calcada em saberes e fazeres e seu processo de transmissão, através das estruturas
narrativas, fez com que aproximássemos o ofício das Tias do samba àquele das griôs da
África Ocidental. Fragmentos de um caminho que fizeram uma longa travessia e foram
remontados diasporicamente. Um movimento de transmissão no espaço tempo, onde
signos e símbolos foram ressignificados e muitos códigos estratégicos de sobrevivência
sobreviveram à margem do projeto colonial.
Lendo as margens aqui na perspectiva de Bell Hooks (1989), que a representa
não apenas como sinônimo de periferia, mas um espaço mais complexo que por ser
tanto um local de repressão quanto de resistência, se apresenta como um “espaço de
abertura radical” (Hooks, 1989, p. 149) de possibilidades e criatividade. Lembrando que
há uma cilada a ser evitada, o ler a margem como lugar de criatividade que é,
justamente, o perigo de romantizar a opressão (KILOMBA, 2019). Logo, este não é um

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exercício romântico, mas o reconhecimento da margem como uma posição complexa na


medida em que tangencia mais de um local.
Outro perigo que devemos evitar é o de polarizar a discussão dividida em dois
atores coletivos, os poderosos brancos e os fracos negros, cada qual tentando tirar as
vantagens possíveis a partir de um racionalismo supostamente universal. Neste sentido,
a história que estamos apresentando passa a ter um duplo alcance, já que é a história de
vida de mulheres negras e das situações que as levaram a ter uma intervenção no
mundo. O que permite que recordemos e atualizemos experiências que envolvem
práticas de luta para tornar visível o trabalho que mulheres empreenderam na
organização da cidade. Aqui a quebra visceral está no deslocamento da ideia de “um
sujeito universal” e na (re) fundação de experiências “universais”, a partir de atores
sociais historicamente marginalizados. E aqui o saber das Tias deve ser valorizado,
sendo, inclusive, moeda de troca e abertura de diálogo com as instâncias do Estado.
O que está em jogo são projetos de descentralização do poder, na medida em que
trajetórias insurgentes de mulheres negras, antes invisibilizadas, se atualizam nestas
páginas. É o acionamento da potência das histórias múltiplas na partilha do comum que
nos interessa, sobretudo. Através da trajetória das Tias podemos perceber como elas
acionaram e acionam “modos de saber e fazer” que formam a contrapartida de um
sistema que as exclui, ofertando assim possibilidades. As regras do poder são travadas
não só pelas partes envolvidas, mas por outros atores que podem aparecer menos ou
mais segundo as circunstâncias e, neste jogo, dominadores e dominados não são uma
sentença, mas um papel móvel.
Atualmente, vivemos a falência de um modelo ocidental em que, parafraseando
Krenak (2019), estamos buscando ideias para adiar o fim do mundo. A emergência de
antídotos alternativos está implodindo o campo dos saberes e da prática política. Está
decretada a implosão do suposto “centro” e estamos buscando nas margens, nas bordas
formas de vida que nos possibilite respirar. Estamos no rastro das memórias que foram
interditadas na história, trazendo à consciência as verdades desagradáveis que, ora,
foram jogadas para o nível da inconsciência. Neste movimento, os grupos
invisibilizados estão elaborando regimes de visibilidade e, talvez, os saberes e fazeres
das Tias cumpram um papel importante neste reposicionamento.

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Recebido em: 01/11/2020


Aceito em: 01/11/2020

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IYÁS E ABEBÉS: EXISTÊNCIAS, RESISTÊNCIAS E


LUTAS MATRIARCAIS AFRODIASPÓRICAS

Mauricio dos Santos1


Anaxsuell Fernando da Silva2
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34579

Resumo
Com a Diáspora Negra, aportaram no Brasil as Iyás – mães e Iyabás, que são as
divindades matrigestoras afro-brasileiras, vindas do outro lado do Oceano Atlântico.
Assim, neste artigo se propõe discutir algumas ideias a respeito de como a divindade
afro-brasileira Oxum e o seu espelho de mão, o abebé, são efetivamente belicosos;
buscamos também evidenciar alguns elementos das vidas de Makota Valdina, Maria
Neném, Doné Runhó, Tia Ciata, Mãe Aninha, Chica Xavier, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe
Menininha, Olga do Alaketu, Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Gilda de Ogun e Giselle
Omindarewá, aqui nomeadas como Iyás: Mães de Santo, Matrigeradoras e Matrigestoras
afro-brasileiras. A partir de uma pesquisa bibliográfica, identificamos que as lutas
antirracistas e feministas são comuns nas vidas dessas Iyás, pois verificamos que em
diferentes períodos e em diferentes terreiros essas lutas se repetiram de distintas formas,
e compreendemos que as lutas contra o racismo e machismo são constitutivas e/ou uma
característica das Iyás afro-brasileiras. Concebemos Oxum como insígnia das Iyás e
Iyábás e, entretanto, consideramos que ainda as mulheres de terreiro permanecem
invisibilizadas.

Palavras-chave: Mães de Santo. Mulheres de Terreiro. Oxum. Abebé. Espelho.

IYÁS Y ABEBÉS: EXISTENCIAS, RESISTENCIAS Y


LUCHA MATRARAL AFRODIASPÓRICAS
Resumen
Con la diáspora negra, Iyás, que son las madres y Iyabás, las deidades madres afro-
brasileñas venidas desde África, al otro lado del Océano Atlántico, llegaron en Brasil.
En este artículo se propone discutir algunas ideas sobre cómo la deidad afrobrasileña
Oxum y su espejo de mano, el abebé, son efectivamente belicosos; también desejamos
enfatizar algunos elementos de la vida de Makota Valdina, Maria Neném, Doné Runhó,
Tia Ciata, Madre Aninha, Chica Xavier, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Menininha, Olga do
Alaketu, Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Gilda de Ogun y Giselle Omindarewá, aquí
nominadas como Iyá/Iyás, Mães de Santo, matrigeneradoras e matrigestoras
afrobrasileñas. A partir de una investigación bibliográfica, identificamos que las luchas
antirracistas y feministas son comunes en la vida de estas Iyás: verificamos que en
diferentes períodos y en terreiros estas luchas se repitieron de diferentes maneras, y
entendemos que las luchas contra el racismo y el machismo son constitutivas y/o una
característica de las Iyás afrobrasileñas. Concebimos Oxum como una insignia de las

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Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
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Iyás e Iyábás y, sin embargos, consideramos que todavía aun les faltan mucha
visibilidad.

Palabras clave: Madres de Santo. Mujeres de Terreiro. Oxum. Abebé. Espejo.

Eu agora vou cantar para todas as moças,


Eu agora vou bater para todas as moças,
Eu agora vou dançar para todas as moças,
Para todas Ayabás, para todas elas.
(Gilberto Gil, “As Ayabás”)

Não é nenhuma novidade que o processo de colonização da América Latina


compreendia a ocupação/exploração dos territórios e a sujeição tanto dos povos
originários que habitavam a região, quanto dos povos que foram trazidos de longe para
atuar como força de trabalho para estas regiões, neste último caso majoritariamente os
africanos escravizados. Este marco histórico introduziu a experiência da diáspora nos
lugares nos quais estas pessoas foram inseridas.
Hoje, no âmbito das Antropologias contemporâneas, não entendemos a
diáspora apenas em seu sentido estrito e literal. Isto é, como mero deslocamento físico,
em sentido geográfico. Tampouco consideramos somente como uma metáfora para
deslocamentos e/ou desterritorializações – o que significou uma ampliação da própria
noção de afastamento geográfico. Nos últimos anos, a noção de diáspora passou
também a caracterizar um tipo de consciência, de experiência, de produção cultural que
põe em xeque modelos fixos de identidade cultural (HALL, 1996).
A superação da compreensão do território como algo reduzível a um substrato
fixo, localizável em uma porção qualquer da superfície terrestre, implicou a admissão de
um enquadramento do vínculo entre sujeito e sua territorialidade mais subjetivo, mais
complexo, simbólico. Tratou-se de concebê-la como um espaço no qual o sujeito
inaugura um laço afetivo, constrói sua história e efetiva suas relações e artefatos sociais.
Neste sentido, a diáspora pressupõe uma experiência de extraterritorialidade e, portanto,
expressa a ideia de uma vida fora do território “terra mãe”.
No contexto latino-americano e caribenho, tomamos a diáspora africana como
perspectiva para pensar o movimento cultural e religioso de pessoas afrodescendentes,
para compreender o fluxo e a dinâmica das crenças e saberes ancestrais que
atravessaram o grande atlântico (HALL, 1996), que se constituíram como espaços de
memória ou de acolhimento subjetivo e arregimentaram experiências e práticas
religiosas em diferentes espaços do nosso continente.

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Assim, movidos pelo cântico de Gilberto Gil, trabalharemos neste artigo como a
cosmologia em torno da Iyábá Oxum e seu Abebé, as quais tiveram suas representações
distorcidas pela colonialidade do saber/poder.
Colonialidade foi um conceito que foi introduzido pelo sociólogo peruano
Anibal Quijano, no início dos anos 1990 e foi reelaborado por outros autores e autoras –
entre os quais destacamos, neste momento, Walter Mignolo (2003) e suas reflexões no
conhecido trabalho Histórias Locais/ Projetos Globais - Colonialidade, Saberes
Subalternos. Enquanto colonialismo se refere ao processo e aos aparatos de domínio
político e militar que se desenvolvem para garantir a exploração do trabalho e as
riquezas das colônias em benefício do colonizador (GROSFOGUEL, 2008); a noção de
"colonialidade" se configura como um fenômeno histórico muito mais complexo e se
estende até nosso presente, referindo-se a um padrão de poder que opera por meio da
naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a
reprodução de relações de dominação. Dito de outro modo, nesta compreensão, o
colonialismo não acabou com as guerras da independência, mas continuou o processo
de dominação na América Latina de diversas maneiras até os dias atuais (QUIJANO,
1997).
É exatamente por isso que é fundamental trazer para o debate acadêmico alguns
elementos biográficos das vidas de Iyás de comunidades religiosas afro-brasileiras, pois
acreditamos que essa temática pode, em alguma maneira, mesmo que minimamente,
contribuir aos/as leitores/as interessados/as em discutir que Oxum não pode ser
referenciada e/ou interpretada pela colonialidade do saber/poder (QUIJANO, 1997;
OYĚWÙMÍ, 2017) ou colonialidade da religião (SILVA; PROCÓPIO, 2019) e que as
Iyás são exemplos de lutas pelas causas antirracistas e anti-machistas. Considerando que
mães de santo e/ou mulheres de terreiro possuem “sabedorias vindas da África e
cruzadas nas travessias do oceano, [...] sabedorias essas que cotidianamente insistem em
dobrar a morte pela via do não esquecimento” (SIMAS; RUFINO, 2019, p.84).
Este debate que apresentamos aqui é construído considerando-se essencialmente
materiais escritos e alguns audiovisuais a propósito da crítica à colonialidade
(QUIJANO, 1997); as potências de Iyás e da Iyábá Oxum (OYĚWÙMÍ, 2017; FLOR
DO NASCIMENTO, 2019; RIBEIRO, 2020; AKOTIRENE, 2019), e suas narrativas
mitológicas (SIMAS; RUFINO, 2019; PRANDI, 2020). O objetivo desse texto é
mostrar como Oxum e seu Abebé são belicosos e não-eurocêntricos, e exemplificar
com notas biográficas de Iyás significativas para as religiões afro-brasileiras, por suas

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matripotências e matrigestões (RIBEIRO, 2020). A ligação entre Iyás, aqui traduzidas


como Mães, e de Iyábás, traduzidas como as divindades afro-brasileiras mães, é a
própria divindade Oxum, como patrona das mães de santo e das mulheres de terreiro
(OYĚWÙMÍ, 2017).

Iyás e Abebés

Oxum tem sido apresentada pela colonialidade como feminilidade


ocidentalizada, e retumbantemente narcisística. Lembremo-nos de que Narciso – ou O
Auto Admirador – foi um herói na mitologia grega, considerado muito bonito e que
atraía olhares de todos/as, e aqueles/as que foram menosprezados/as por ele pediram
aos/as deuses/as gregos/as para vingá-los/as. Assim, Némesis-Afrodite condenou
Narciso a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco, essa que era uma ninfa
que havia se apaixonado pelo rapaz. Obcecado com sua boniteza, Narciso mergulhou na
lagoa de Eco e definhou, olhando-se e se embelezando. Após a morte de Narciso, as
deusas o transformaram numa flor, que depois receberia seu nome.
E como bem diz a música de Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é
espelho”. Assim igualmente é a colonialidade, que extermina o que lhe for
dessemelhante. Assim, a partir do pensamento de Carla Akotirene (2019), indagamos
que Oxum não poder ser representada, de forma alguma, por Narciso, ou como
narcisista, visto que ele próprio é uma representação da colonialidade, da cultura grego-
romana e europeia, insígnias de mesquinharia e infertilidade. Enquanto Oxum, o
contrário, é uma representação de pelejas antirracistas e anti-machistas, da cultura afro-
brasileira, insígnia de generosidade e de fertilidade3.
Além das referências das religiões afro-brasileiras, são fundamentais as úmidas
perspectivas de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2017) e de Wanderson Flor do Nascimento
(2019). Considerando a elocução de que “o ventre de Oxum pare poder”, os/as
autores/as nos explicam que matrigeradoras e matrigestoras seriam as potencialidades
de gestação e de gestão de potencialidades, por exemplo, das comunidades tradicionais
afro-brasileiras, observando que: I) isso não está relacionado exclusivamente à
perspectiva biológica; II) não está relacionado à paridade de prole e III) mas está

3
AKOTIRENE, Carla. Oxum. Postagem no Instagram. https://www.instagram.com/p/B-ws3Anlkop/ em
09 de abr. de 2020.

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relacionado à ancestralidade (AKOTIRENE, 2019; OYĚWÙMÍ, 2017;


NASCIMENTO, 2019; RIBEIRO, 2020).
Carla Akotirene tem insistido que “Oxum usa seu Abebê para enxergar o mundo
às suas costas” (2019). Oxum, além de uma estratégia bélica, usa seu Abebé como
Sankofa, que é um elemento de um conjunto de ideogramas chamados Adinkra,
representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda. O símbolo é traduzido por
“retornar ao passado para resinificar o presente e construir o futuro” (NASCIMENTO;
GÁ, 2009). Conceição Evaristo, em Olhos D´Água, igualmente escreveu sobre espelhos:
“os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra” (EVARISTO, 2016, p.16). E
acreditamos que podemos relacionar essas elocuções com as perspectivas do seguinte
Itan4, coletado por Reginaldo Prandi, em pesquisa de campo em São Paulo em 1997.
Nas religiões afro-brasileiras Oxum Apará usa roupas cor-de-rosa, com ferramentas
feitas de latão, que são atributos de Oyá:

Vivia Oxum no palácio de Ijimu. Passava os dias no seu quarto


olhando seus espelhos. Eram conchas polidas onde apreciava sua
imagem bela. Um dia saiu Oxum quarto e deixou a porta aberta. Sua
irmã Oyá entrou no aposento, extasiou-se com aquele mundo de
espelhos, viu-se neles. As concas fizeram espantosa revelação a Oyá.
Ela era linda! A mais bela! A mais bonita de todas as mulheres! Oyá
descobriu sua beleza nos espelhos de Oxum. Oyá se encantou, mas
também se assustou: era ela mais bonita que Oxum, a Bela. Tão feliz
ficou que contou do seu achado a todo mundo. E Oxum Apará remoeu
amarga inveja, já não era a mais bonita das mulheres. Vingou-se. Um
dia foi à casa de Egungun e lhe roubou o espelho, o espelho que só
mostra a morte, a imagem horrível de tudo o que é feio. Pôs o espelho
do Espectro no quarto de Oyá e esperou. Oyá entrou no quarto, deu-se
conta do objeto. Oxum trancou Oyá pelo lado de fora. Oyá olhou no
espelho e se desesperou. Tentou fugir, impossível. Estava presa com
sua terrível imagem [...] Obatalá, que a tudo assistia, repreendeu
Apará e transformou Oyá em orixá. Decidiu que a imagem de Oyá
nunca seria esquecida por Oxum. Obatalá, condenou Apará a se vestir
para sempre com as cores usadas por Oyá levando nas jóias e nas
armas de guerreira o mesmo metal empregado pela irmã (PRANDI,
2020, p.323).

Além das características descritas no Itan por Reginaldo Prandi, Oxum Opará,
como igualmente é conhecida, adorna-se nas religiões afro-brasileiras com dois
espelhos, um que mostra apenas as coisas boas e outro que mostra apenas as ruins. Para
qual estamos olhando? Aníbal Quijano ponderou que ainda estamos olhando para o
“espelho das coisas ruins”, o “espelho eurocêntrico” (QUIJANO, 2005, p.139).

4
Mito afro-brasileiro.

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Considerando que Franz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, indagou que “os
negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco” (2008, p.15).
Quijano, em Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina, ponderou a respeito
do espelho eurocêntrico:

Aplicada de maneira específica à experiência histórica latino-


americana, a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como
um espelho que distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que
encontramos nesse espelho não é de todo quimérica, já que possuímos
tantos e tão importantes traços históricos europeus em tantos
aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos
tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos nosso espelho
eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e
distorcida. Aqui a tragédia é que todos fomos conduzidos, sabendo ou
não, querendo ou não, a ver e aceitar aquela imagem como nossa e
como pertencente unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo o
que não somos. E como resultado não podemos nunca identificar
nossos verdadeiros problemas, muito menos resolvê-los, a não ser de
uma maneira parcial e distorcida (QUIJANO, 2005, pp.129-130).

Sugerimos que empregar o “espelho afro-brasileiro” de Oxum, o Abebé, como


potência matrigeradora e matrigestora, apropriado para dar subsídio às empreitadas
decoloniais 5 (LANDER, 2005), especialmente as antirracistas e anti-machistas.
Ponderamos acerca das reflexões de Wanderson Flor do Nascimento a respeito da
Ikupolítica (2020) – e de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, com a noção de
desencanto (2019), teses e contribuições que têm nos servido como espelhos contra-
eurocêntricos. Aníbal Quijano, ainda refletindo sobre os espelhos, tem salientado que é
tempo de “aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é
sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não
somos” (QUIJANO, 2005, p.139).
José Saramago, na ficção Ensaio sobre a Cegueira (1995), retrata uma doença
chamada cegueira branca, que se alastra por uma localidade e atinge um enorme
número de sujeitos, causando padecimento humanitário. Igualmente ao Itan anterior
mencionado, gostaríamos de relacioná-los ao mito coletado por Sérgio Ferretti, durante
pesquisa de campo em São Luís no Maranhão em 1997, narrado por Pai Jorge Itaci,

5
Luciana Ballestrin explica que “descolonial” ou decolonial não deve ser confundida como mera
descolonização. “Em termos históricos e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo;
por seu turno, a ideia de decolonialidade ou descolonialidade procura transcender a colonialidade, a face
obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de
poder” (BALLESTRIN, Luciana. Para transcender a colonialidade. Revista IHU on-line, v. 431, p. 40-41,
2013).

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chefe do terreiro Mina de Iemanjá. Navezuarina, ou Navê, Dantã e Queviossô são


voduns6 cultuados no Tambor de Mina:

Um dia houve uma grande guerra entre as tribos. Nessa guerra os


soldados aprisionaram diversas moças. Uma delas era uma virgem
chamada Navezuarina. Quando os raptores levavam as moças
aprisionadas, Navezuarina invocou uma força mágica, e fez surgir um
intensíssimo clarão. O clarão cegou os guerreiros que levavam as
prisioneiras. Os soldados ficaram perambulando no mato, sem
direção. Como eles já nada enxergavam, elas pensaram em fugir e
voltar para sua aldeia. Navezuarina, que é outro nome de Oxum,
pegou e preparou uma poção com ervas. Ela passou a mistura nos
olhos dos guerreiros e eles recobraram a visão. Agradecidos, soltaram
todas as prisioneiras. Elas voltaram ao seu lar no país dos nagôs.
Navezuarina voltou para casa com as amigas, voltou em companhia
de Dantã e outras. Todas voltaram para sua aldeia, onde são
sacerdotisas da casa de Queviossô. E elas andam juntas até hoje,
usando sempre roupas cor-de-rosa (PRANDI, 2020, p.326).

A cegueira branca (SARAMAGO, 1995) podemos comparar com a


colonialidade (LANDER, 2005), ou seja, com uma patologia da humanidade que
muitas vezes vigora pelo fato dos sujeitos não quererem enxergar, alienando-se com
relação a si próprios. Mas, na maior parte das vezes, a cegueira – ou a colonialidade – é
consequência de um processo projetado de colonialismo que continuamente pretere os
seres e os saberes subalternizados (LANDER, 2005).
Talvez essa seja uma maneira possível para interpretarmos o Itan: lembremo-
nos de que Oxum teria cegado com um clarão guerreiros que mantinham ela e outras
prisioneiras, mas, posteriormente, por meio de encantamentos ela mesma teria
recomposto a visão dos sujeitos. Como metáfora e/ou metonímia, acreditamos que
Oxum pode contribuir para arrancar a cegueira dos/as subalternizados/as, cegueira que
corrobora com a colonialidade consciente e inconscientemente; mas, assim como fez
com os guerreiros usando seus encantamentos, a deusa alerta para o fato de que
precisamos nos valer dessas potências ancestrais das religiões afro-brasileiras para nos
libertar da colonialidade – cegueira branca – junto aos/as nossos/as assemelhados/as.
Afinal, como diz a canção de Ordep Serra gravada na voz de Maria Bethânia, “Oxum é
água que aparta a morte”. Podemos usar o abebé de Oxum como perspectiva para
mirarmos alternativas decoloniais: com o espelho de Oxum podemos olhar para trás e
para frente ao mesmo tempo, vislumbrando um futurismo ancestralizado.

6
Divindades afro-brasileiras oriundas das culturas Nagô e Ewe-Fon.

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Como insígnias de Iyás que se valeram das potências e ancestralidades afro-


brasileiras, seja de Oxum ou de outras divindades, a seguir dispomos breves notas
biográficas de mães de santo e mulheres de terreiro, matrigestoras e matrigeradoras,
que usaram as ferramentas sagradas dos orixás – isto é, os aladás de Ogum, os ofás de
Oxóssi, os xaxarás de Obaluaiê e Omolu, os ibiris de Nanã, os eruexins de Oyá, os
abebés de Oxum e Iemanjá, os oxés de Xangô e os atoris e opaxorôs de Oxalá – nas
lutas antirracistas e feministas. E, se os 12 Ojú Obá (os cargos de conselheiros ilustres,
Ministros de Xangô consagrados por Mãe Aninha do Ilê Axé Opó Afonjá em 1936)
homenageiam os espectros masculinos afro-brasileiros, as 12 Iyás aqui memoradas
homenageiam as Iyábás, divindades femininas afro-diaspóricas.

Notas biográficas

Mães de santo e/ou mulheres de terreiro possuem centralidade na construção


cultural no Brasil e, por isto, consideramos fundamental rememorá-las. Recontar suas
trajetórias, recompor seus itinerários sócio-religiosos e partilhar suas experiências. A
despeito do processo de invisibilização social, identificamos que as lutas antirracistas e
feministas são comuns nas vidas dessas Iyás, verificamos que em diferentes períodos e
em diferentes terreiros essas lutas se repetiram de distintas formas e compreendemos que
as lutas contra o racismo e o machismo são constitutivas – ou ao menos se apresentam
como características centrais – das Iyás afro-brasileiras.
Valdina de Oliveira Pinto ficou conhecida como Makota Valdina, ou Makota
Zimewaanga, seu nome iniciático. Em 1975 foi iniciada no candomblé de raiz Angola,
no Terreiro Tanuri Junsara, como Makota, o mesmo cargo que Ekedi ou Ajoie, que é a
autoridade religiosa que auxilia outros/as religiosos/as e as divindades afro-brasileiras,
permanecendo acordadas, sem entrar em transe. Nasceu em Salvador, em 1943, foi
educadora, líder comunitária e ativista dos Direitos Humanos e atuou essencialmente nas
causas antirracistas e feministas. Recebeu as honras do Troféu Clementina de Jesus, da
União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO), do Troféu Ujaama, do grupo Cultural
Olodum, da Medalha Maria Quitéria, da Câmara Municipal de Salvador e de Mestra
Popular do Saber, pelo Ministério da Cultura do Brasil. Protagonizou o documentário
Makota Valdina — Um jeito Negro de Ser e Viver, que recebeu o Prêmio Palmares de
Comunicação, da Fundação Cultural Palmares. Faleceu em 2019, em Salvador, Bahia.

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Makota Valdina dizia que “não sou descendente de escravos; eu descendo de seres
humanos que foram escravizados” (2012). Integrou o Conselho Estadual de Cultura da
Bahia.
Maria Genoveva do Bonfim ficou conhecida como Maria Neném ou Mam'etu
Tuenda Dia Nzambi, e foi consagrada ao nkisi Kavungo, uma divindade banta retentora
da terra. Nasceu em 1865 no Rio Grande do Sul e faleceu em 1945, em Salvador, Bahia.
Filha de santo de Roberto Barros Reis, conhecido como Tata Kimbanda Kinunga,
africano que foi escravizado no Brasil, e dele herdou o Nzo Tumbensi, afamado terreiro
de liturgia Angola mais antigo da Bahia. Maria Neném foi a matriarca de muitos
religiosos que originaram outras grandes comunidades afro-brasileiras, como o Terreiro
Tumba Junsara e o Terreiro do Bate-Folha (ambos tombados pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o Terreiro Tanuri Junsara e muitos outros no
Brasil (ADOLFO, 2009).
Maria Valentina dos Anjos Costa ficou conhecida como Doné Runhó, ou Mãe
Ruinhó, e foi consagrada ao vodun Sogbô, divindade Jeje-Mahi das trovoadas e dos
raios. É descendente de africanos procedentes do antigo Daomé que confluíram a
Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, um levante significativo no Brasil
protagonizado por pessoas escravizadas que lutavam contra a situação em que viviam,
muitos de origem islâmica. Doné Runhó foi a quarta mãe de santo do Terreiro do Bogun,
ou Zoogodô Bogun Malê Rundó em Salvador, Bahia. O nome da praça do Engenho
Velho da Federação, na capital bahiana, é uma homenagem à memória de Doné Runhó
(PARÉS, 2018).
Hilária Batista de Almeida ficou conhecida como Tia Ciata e nasceu em Santo
Amaro, na Bahia, em 1854. Filha de Oxum, divindade que reina sobre as águas doces,
aos 22 anos mudou-se para o Rio de Janeiro. Tia Ciata foi mãe carnal de quinze filhos e
mãe de santo de muitos outros. Era doceira e vendia seus quitutes em um tabuleiro,
vestida com a indumentária tradicional de baiana, com saia, pano de cabeça e pano da
costa. Numa época em que a libertação dos escravizados ainda era recente e que as
religiões afro-brasileiras e a capoeira eram indesejadas e malquistas, Tia Ciata acolhia
em sua casa – na “Pequena África”, como era conhecido seu bairro no Rio de Janeiro -
africanos e seus descendentes e, da mesma forma, imigrantes europeus paupérrimos
recém-chegados ao Brasil. Em 1916, os tambores afro-brasileiros juntaram-se aos
violões italianos e aos cavaquinhos portugueses na casa de Tia Ciata para a produção de
Pelo Telefone, considerado o primeiro samba a ser gravado no Brasil, de autoria de

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Donga e Mauro Almeida. Entre 1920 e 1930 era significativo que as escolas de samba
passassem pela Praça Onze e pela casa de Tia Ciata para homenageá-la. A famosa Ala
das Baianas nas Escolas de Samba é uma referência à Tia Ciata e a outras senhoras
consideradas mães do samba (SIMAS, 2018).
Eugênia Anna Santos ficou conhecida como Mãe Aninha e nasceu em Salvador,
na Bahia, em 13 de julho de 1869, filha de Xangô, divindade da justiça, dos raios, do
trovão e do fogo. Foi iniciada na Casa Branca do Engenho Velho, o Ilê Axé Iyá Nassô
Oká, tombado em 1984 como patrimônio nacional. Em 1869 fundou o Ilê Axé Opô
Afonjá em Salvador, tombado patrimônio em 2000, e em 1895 fundou o Ilê Axé Opô
Afonjá no Rio de Janeiro. Em 1934, Mãe Aninha conversou com Getúlio Vargas — o
Chefe do Governo Provisório — sobre a coibição que as religiões afro-brasileiras
sofriam e, consequentemente, essas religiões foram descriminalizadas. Em 1936, Mãe
Aninha instituiu o Corpo dos Obás de Xangô, os chamados Ministros do Rei, títulos
honoríficos e diplomáticos afro-brasileiros com funções diplomáticas e políticas dentre
os quais já ocuparam funções Dorival Caymmi, Carybé, Jorge Amado, Vivaldo da Costa
Lima, Muniz Sodré e Gilberto Gil. Eles são os Ojú Obá, os olhos do rei, no Ilê Axé Opô
Afonjá. Além destas contribuições, Mãe Aninha participou do II Congresso Afro-
Brasileiro em 1937, falando sobre alimentação nas religiões afro-brasileiras (SANTOS,
2007).
Francisca Xavier Queiroz de Jesus é conhecida como Chica Xavier e nasceu em
22 de janeiro de 1936, em Salvador, Bahia. É atriz, dedicada ao teatro, cinema e
televisão. Filha de Iansã, divindade dos ventos e do fogo, é também mãe de santo da
Jurema, uma expressão religiosa afro-ameríndia brasileira, em seu terreiro Irmandade do
Cercado do Boiadeiro, no Rio de Janeiro. É casada com o ator Clementino Kelé desde
1956 e foi precursora e insígnia de gerações de atores e atrizes negros. Estreou em 1956
no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com Orfeu da Conceição, que marcou o início da
parceria de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, com cenários de Oscar Niemeyer. Na Rede
Globo de Televisão interpretou mais de cinquenta personagens e entre seus trabalhos
estão, por exemplo, as novelas A cabana do Pai Tomás (1969); Tenda dos Milagres
(1985); Dancin Days (1978); Sinhá Moça (1986); Força de um Desejo (1999) e A Lua
me Disse (2005). Em 1999 escreveu o livro Chica Xavier canta sua prosa, que reuniu
cantigas e preces para santos católicos e das religiões afro-brasileiras. Em 2011, foi
homenageada com o Centro Cultural Atriz Chica Xavier, em Ramos, no Rio de Janeiro,
e, em 2013, Teresa Monteiro escreveu sua biografia, Chica Xavier: Mãe do Brasil. A

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importância da atuação de Chica Xavier para o povo de axé se dá, entre outros motivos,
pela representatividade negra, de uma mãe de santo, na televisão e no teatro
(MONTERO, 2013).
Conhecida como Odé Kayodé, o caçador que traz alegrias, Maria Stella de
Azevedo Santos, conhecida como Mãe Stella de Oxóssi era filha do orixá-caçador da
fauna e da fartura e nasceu em 02 de maio de 1925, em Santo Antônio de Jesus, na
Bahia. Foi a quinta sacerdotisa do Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador, que liderou entre
1976 e 2018, como sucessora de Mãe Ondina, que permaneceu no posto entre 1969 e
1975, após os reinados de Mãe Aninha, a grande fundadora; de Mãe Badá, entre 1939 e
1941 e de Mãe Senhora, entre 1942 e 1967. Mãe Stella era Doutora Honoris Causa pela
Universidade do Estado da Bahia e Membra da Academia de Letras da Bahia. Instituiu a
Escola Municipal Eugênia Anna Santos e o Museu Ilê Ohun Lailai. Mãe Stella divulgou
as religiões afro-brasileiras por meio de seus livros, participou de espaços de discussão e
decisão como liderança religiosa e como intelectual. Odé Kayodé foi uma Agbá, isto é,
insígnia da ancestralidade afro-brasileira (SANTOS, 1993).
Maria Escolástica da Conceição Nazaré, que tem esse nome em homenagem à
Nossa Senhora Escolástica, é conhecida no Brasil como Mãe Menininha do Gantois.
Nasceu em Salvador em 1894 e era filha de Oxum, divindade da beleza, do amor, da
fertilidade e da maternidade. Entre 1922 e 1986 foi a Iyálorixá do Ilê Iyá Omi Asé
Iyamassê, o Terreiro do Gantois, tombado patrimônio em 2002, fundado e instituído por
sua antepassada, Maria Júlia da Conceição Nazaré. Entre 1930 e 1940, período em que
as religiões afro-brasileiras padeciam com perseguição e violência policial na Bahia,
Mãe Menininha consentiu que intelectuais, artistas, políticos e religiosos de outras
denominações frequentassem o Terreiro do Gantois, contribuindo para a popularização
das religiões afro-brasileiras. Gal Costa, Caetano Veloso e Maria Bethânia são alguns
dos famosos filhos de santo de Mãe Menininha, apelidada de Mão da Doçura. Recebeu
muitas homenagens, como a de Dorival Caymmi, que compôs, em 1972, Oração de Mãe
Menininha: “e a Oxum mais bonita, hein? / Tá no Gantois […] Ai, Minha Mãe / Minha
Mãe Menininha […]”. Igualmente, a famosa canção É D´Oxum, composta por Gerônimo
e Vevé Calazans em 1992, teve Mãe Menininha do Gantois como homenageada em seus
versos: “nessa cidade todo mundo é d´Oxum / Homem, menino / Menina, mulher”. Jorge
Amado, no livro Bahia de Todos os Santos (1945), escreveu que Mãe Menininha era a
mãe do povo da Bahia e a mãe do povo do Brasil (NÓBREGA; ECHEVERRIA, 2006).

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Olga Francisca Régis é conhecida como Olga do Alaketu, e seu nome religioso
no candomblé é Oyá Funmi. Nasceu em 09 de setembro de 1925, em Salvador, e era
descendente da família real Arô, do antigo reino de Ketu, no atual Benin, na África. Era
filha de Iansã, divindade do vento, do fogo e das tempestades, e por 57 anos foi a mãe de
santo do terreiro do Alaketu, o Ilê MarOyá Láji em Salvador, tombado em 2005. Contam
os velhos que duas princesas gêmeas, ainda crianças, foram enclausuradas e depois
escravizadas na Bahia durante a diáspora negra-africana. Uma dessas meninas era Iyá
Gogorisá e a outra era Iyá Otampê Ojarô, que passou a se chamar Maria do Rosário
Francisca Régis, e que após sua alforria teria voltado para África e se casado com Babá
Láji, com quem voltou para Salvador e fundou o Terreiro do Alaketu, o Ilê MarOyá Láji.
A princesa africana Otampê Ojarô, ou Maria do Rosário Francisca Régis, era a tia-avó de
Olga do Alaketu. Em 1997, Mãe Olga recebeu pelo então Presidente do Brasil, Fernando
Henrique Cardoso, a Ordem do Mérito Cultural, uma condecoração outorgada pelo
Ministério da Cultura a pessoas, grupos artísticos, iniciativas ou instituições a título de
reconhecimento por suas contribuições à cultura brasileira (CASTILLO, 2011).
Beatriz Moreira Costa é conhecida como Mãe Beata de Iemanjá e nasceu em 20
de janeiro de 1931, em Cachoeira, na Bahia. Era filha de Iemanjá, divindade das águas e
mãe dos peixes, e de Exu, mensageiro e dono das encruzilhadas. Foi filha de santo de
Mãe Olga do Alaketu no Ilê MarOyá Láji. Em 1969, separou-se de seu companheiro,
saiu de Cachoeira e foi para o Rio de Janeiro, cidade na qual trabalhou como atriz e
figurinista em novelas da Rede Globo de televisão até a sua aposentadoria. Em 20 de
abril de 1985, Mãe Olga do Alaketu consagrou Mãe Beata de Iemanjá como mãe de
santo do Ilê Omiojuarô, no Rio de Janeiro. Foi ativista pelos Direitos Humanos, em
especial os direitos das mulheres negras, e escreveu os livros Caroço de Dendê,
Sabedoria dos Terreiros (1997) e As histórias que minha avó contava (2005). Em 2006,
Glória Cecília de Souza Filho escreveu a tese de doutorado em Educação na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro Os Fios de Contos de Mãe Beata de Iemanjá:
Mitologia Afro-brasileira e Educação. Mãe Beata também foi conselheira da Rede
Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Recebeu a Medalha de Mérito Cívico
Afro-Brasileiro, conferida pela Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares de São
Paulo. Em 2007, recebeu o Prêmio Bertha Lutz, que foi instituído pelo Senado Federal
do Brasil para agraciar mulheres que tenham oferecido relevante contribuição na defesa
dos direitos sexuais e reprodutivos. Em 2017, receberia a Medalha Tiradentes da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que é uma honraria concedida e destinada a

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

premiar pessoas que prestaram relevantes serviços pela causa pública do Estado do Rio
de Janeiro. Mãe Beata faleceu em 27 de maio de 2017, e a homenagem foi mantida e
recebida por seus filhos (COSTA, 2002; 2004).
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído em 2007,
homenageia Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, que foi a fundadora do
Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, na Bahia. Mãe Gilda teve sua imagem usada numa
edição de 1999 da Folha Universal, uma publicação da Igreja Universal do Reino de
Deus, ao lado da manchete Macumbeiros Charlatões Lesam a Bolsa e a Vida dos
Clientes — O Mercado da Enganação Cresce no Brasil, mas o Procon Está de Olho.
Esse fato, somado a invasão de seu terreiro por membros da Igreja Deus é Amor que
tentaram exorcizá-la, levou a mãe de santo a decidir por mover uma ação judicial contra
seus agressores e difamadores. Mãe Gilda faleceu em seguida, aos 65 anos, de um infarto
fulminante em consequência desses acontecimentos, que conforme sua família a
abalaram profundamente. Em 2004, a IURD e sua gráfica foram condenadas a indenizar
a família de Mãe Gilda em R$1,372 milhão pelo uso indevido de sua imagem, sendo um
real por cada exemplar do jornal publicado com a matéria difamatória. O caráter
emblemático deste caso levou nesse mesmo ano a Câmara de Vereadores de Salvador a
transformar a data de falecimento da mãe de santo, 21/01/2000, em Dia Municipal de
Combate Intolerância Religiosa. Seu legado e sua luta têm continuidade com Mãe
Jaciara, que atualmente organiza ebós coletivos em protestos contra o racismo religioso
(SILVA, 2007).
Giselle Cossard Binon é conhecida como Omindarewa e nasceu em 31 de maio
de 1923, em Tanger, no Marrocos. Viveu por muitos anos na França, como alude sua
biografia Omindarewa: Uma Francesa no Candomblé, escrita por Michel Dion, em
2002. Em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial, Giselle viu seu pai ser preso pelo
exército de Adolf Hitler e, no fim da guerra, em 1945, teria sido espiã em Paris,
fornecendo informações aos militares franceses sobre a localização de militares alemães.
Em 1945 seu pai voltou da prisão e Giselle casou-se com Jean Binon, com quem passou
oito anos na África. Em 1956, voltaram para França e Jean Binon foi nomeado
Embaixador da França no Brasil. Omindarewa, assim como seus filhos, encantaram-se
com o Rio de Janeiro e com o país. Mas, contrariamente e conflituosamente, Jean Binon
detestava o Brasil e os brasileiros. Em 5 de dezembro de 1959, Giselle Cossard Binon
visitou o terreiro de Joãozinho da Goméia, no Rio de Janeiro, onde bolou no santo, isto é,
recebeu em transe pela primeira vez sua divindade, Iemanjá, que é mãe das águas e dos

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peixes. Após passar pelas cerimônias de iniciação afro-brasileiras, recebeu seu nome
religioso de Omindarewa, que podemos traduzir como “água límpida”. Jean Binon em
1963 pediu divórcio a Giselle, e no mesmo ano Omindarewa voltou para França, para
apresentar sua tese Contribution à l'Étude des Candomblés du Brésil: Le Rite Angola em
Paris, e lá tornou-se docente universitária. Conheceu o fotógrafo e etnólogo Pierre
Verger, do qual se tornou amiga. Em 1972, voltou para o Brasil e, em 1973, sofreu um
acidente de carro e foi diagnosticada sem esperança de vida. Pierre Verger levou
Omindarewa até Pai Balbino Daniel de Paula, Balbino de Xangô Obaraí, iniciado no
Terreiro do Opô Afonjá, que ajudou a filha de Joãozinho. Pai Obaraí tornou-se o
segundo pai de santo de Omindarewa, passando a cuidar de suas obrigações religiosas.
Ao receber seus direitos de sacerdotisa, fundou o Ilê Axé Atará Magba, em Duque de
Caxias, no Rio de Janeiro. Em 2005, participou do documentário A cidade das mulheres,
e, em 2009, do documentário Gisele Omindarewa que trata sobre sua biografia. Faleceu
em 2016 (DION, 2002; COSSARD, 2008).

Considerações finais

O filósofo martiniquense Frantz Fanon, em um texto de intervenção para o


Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, que ocorreria em Paris, em 1956,
argumentou como o sofrimento, as relações de poder e a violência racial são estetizadas
e se tornam obras de arte que depois têm grande apelo de público, constituindo-se,
inclusive, em gênero artístico. Ele se referia especificamente ao blues e ao jazz que de
alguma maneira falam do sofrimento dos negros, mas é possível também pensar nos
filmes que tratam da escravidão, que mobilizam emocionalmente seus espectadores,
causam reações de indignação e provocam debates a respeito da vida social. Nesta
direção é fundamental recuperar trajetórias exemplares, vidas vividas de maneira
autopoética, que possam inspirar intinerários biográficos escritos em nosso cotidiano.
Isso se faz necessário porque as pessoas se moldam, se constituem enquanto
sujeitos, posicionando-se a partir de uma cultura racista e não apesar dela. A vida destas
mulheres nos ensina que o rechaço, o medo, a conduta discriminatória já não são do
sujeito particular, mas uma certa forma de existir, típica da nossa sociedade. Existir e
resistir tornam-se sinônimos, neste cenário. A resistência é um grito de vida nesse
processo de espoliação.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Ansiamos que, ao mencionar aqui elementos das vidas dessas mães de santo e
mulheres de terreiro, tenha ficado compreensível que essas Iyás são exemplares das
potências matrigeradoras e matrigestoras afro-brasileiras, em que entendemos Iyábá
Oxum como sua insígnia conspícua. Esperamos ter refletido que, assim como Oxum e
seu abebé são efetivamente belicosos, e que apesar de suas representações serem
erroneamente distorcidas pela colonialidade, há de se lembrar do que elucida o
provérbio africano citado por Wanderson Flor do Nascimento (2020): ”o ventre de
Oxum pare poder”. Ademais, também é mister lembrar como canta o Ijexá: a Ekó a e
Egué e Iyálode Iyá Awo Orô, Orun o Yeye o, Iyá Monlé Odo, Oxum Ilê Opô, traduzido
como “nós lhe oferecemos ekó, pois ela pode tornar-se uma perigosa armadilha, ela é a
primeira Iyá, Iyábá do rio, Oxum é o pilar que sustenta a nossa casa”.

Glossário

Abebé: Espelho de mão de Oxum e de Iemanjá.


Adinkra: São símbolos africanos desenvolvidos pelos Akan (povos localizados
em Gana, Costa do Marfim e no Togo, países da África do Oeste), que se
destacam pela utilização de símbolos para transmitir ideias.
Agogô: Instrumento musical de metal, que possui sinos, percutido com metal ou
madeira.
Aladá de Ogum: Facão, ferramenta de Ogum, divindade afro-brasileira
guerreira.
Atori e Paxorôs de Oxalá: Cetros, ferramentas de Oxalá, divindade afro-
brasileira anciã.
Calunga Grande: Oceano.
Eruexin de Oyá: Cetro, ferramenta de Oyá, divindade afro-brasileira dos
ventos.
Ibiri de Nanã: Cetro, ferramenta de Nanã, divindade afro-brasileira do barro.
Ijexá: Ritmo musical religioso afro-brasileiro consagrado a Oxum e outros/as
divindades.
Itan: Mito.
Iyá/Iyás: Mãe, Mães.
Iyábás/Ayabás: Divindades afro-brasileiras mães.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Ofá de Oxóssi: Arco e flecha, ferramenta de Oxóssi, divindade afro-brasileira


caçadora.
Opará/Apará: Epíteto de Oxum.
Oxé de Xangô: Machado, ferramenta de Xangô, divindade afro-brasileira da
justiça.
Oxum: Divindade afro-brasileira das águas doces.
Oyá: Divindade afro-brasileira dos ventos.
Sankofa: Elemento de um conjunto de ideogramas chamados Adinkra,
representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda. O símbolo é traduzido
por retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro.
Xaxará de Obaluaiê e Omolu: Cetro, ferramenta de Obaluaiê e Omolu,
divindades afro-brasileiras da terra.

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Recebido em: 04/10/2020


Aceito em: 16/12/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

PENSAR-VIVER-ÁGUA EM OXUM PARA


(RE)ENCANTAR O MUNDO

João Augusto dos Reis Neto1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34344

Resumo
Oxum, na tradição afro-brasileira, é a senhora da fertilidade e a potência criadora da
vida. Oxum é quem nos permite enxergar, pensar, sentir-sonhar e esperançar a vida
mesmo diante da morte, a bonança mesmo diante da escassez. Nesse sentido, neste
texto, me dedico a refletir (em/com) Oxum, centrado na ideia do “pensar-viver-água” e
em toda a sua potência de encantamento, como uma forma de resistir aos tempos de
escassez e desencanto que temos atravessado, especialmente no Brasil. Teço essa
reflexão a partir dos mitos afro-brasileiros e da oralidade sagrada presente no terreiro.
Com isso, reivindico um outro “entendimento-mundo”, outra cosmopercepção de
mundo, engendrada fora dos limites da racionalidade colonial, gerada no útero ancestral
das comunidades-terreiro e inscrita nos modos de ser-viver do povo de santo. Em/Com
Oxum, a partir das “com-vivências” nos cotidianos do axé, aprendemos que é pela vida,
em todas as suas formas e em sua plenitude, que é a nossa peleja no ayê.

Palavras-chave: Epistemologias de terreiro. Oxum. Pensar-viver-água. Políticas do


encantamento.

PENSAR-VIVIR-AGUA EN OXUM PARA


(RE)ENCANTAR EL MUNDO
Resumen
Oxum, en la tradición afrobrasileña, es la dama de la fertilidad y el poder creativo de la
vida. Oxum es quien nos permite ver, pensar, sentir-soñar y esperar la vida incluso
frente a la muerte, la bonanza incluso frente a la escasez. En ese sentido, en este texto
me dedico a reflexionar (en/con) Oxum, centrado en la idea de “pensar-vivir-agua” y en
todo su poder de encantamiento, como una forma de resistir los tiempos de escasez y
desencanto que tenemos cruzado, especialmente en Brasil. Tejo esta reflexión desde los
mitos afrobrasileños y la oralidad sagrada presente en el terreiro. Con esto pretendo
anunciar otro “mundo-entendimiento”, otra cosmopercepción del mundo, generado
fuera de los límites de la racionalidad colonial, generado en el vientre ancestral de las
comunidades terreiro e inscrito en las formas de ser-vivir del pueblo-de-santo. En/Con
Oxum, de las vivencias diarias de axé, aprendemos que es a través de la vida, en todas
sus formas y en su plenitud, que es nuestra batalla en ayê.

1
Mestre em Educação pela Universidade Federal de São João del Rei (PPEDU - UFSJ), licenciado em
Biologia pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Integrante do Grupo de pesquisa "Laroyê:
Culturas Infantis e Pedagogias Descolonizadoras" (UFLA) e da Rede Latino-americana em Educação,
Cinema e audiovisual - Rede Kino (MG). Email: joaoaugusto.reis@gmail.com

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Palabras-clave: Epistemologías del terreiro. Oxum. Pensar-vivir-água. Políticas de


encantamiento.

Omi tutu: tudo começa com a água...


Omi tutu
Omi tutu Èşú
Omi tutu Onilé
Omi tutu Egungun
Omi tutu Onã
Omi tutu Mo Jùbá o!

Água que acalma


Água que acalma Exu
Água que acalma a Terra
Água que acalma os Ancestrais
Água que acalma os caminhos
Água que acalma, eu te saúdo!

Nós que somos de orixá aprendemos que tudo deve ser devidamente aberto e
fechado, que nada é por acaso e tudo no Santo (como chamamos as religiosidades afro-
brasileiras) tem seu significado. Aprendemos que é pela água que tudo se principia, que
a água é cura, é apaziguadora. Acalmamos a Terra com água fresca, louvamos os
ancestrais com a água, abrimos e acalmamos os caminhos com a água. De acordo com o
costume e a tradição dos orixás, ao lançarmos água fresca nas portas de nossos ilês
(casas/terreiros), estamos pedindo à Terra, a Exu e aos ancestrais que os nossos
caminhos sejam apaziguados, que tenhamos êxito em nossa caminhada, que tenhamos
paz, equilíbrio e tranquilidade em nossos dias. Pedimos que não nos deparemos com a
desarmonia e que os perigos não nos encontrem.
Ao fazermos isso estamos, além de um ritual, praticando a “ciência encantada
das macumbas” (SIMAS & RUFINO, 2019). Ao deitar água fresca na terra estamos
rasurando a racionalidade colonial2 que subalterniza todas as outras formas de ser-viver
“fora da norma” colonial (cristã e monológica). Com a água estamos anunciando que a
colonialidade3 não nos venceu e que a peleja é um valor do povo negro, do povo
brasileiro.

2
Por racionalidade colonial estamos nos referindo a uma cosmovisão baseada no pensamento cartesiano,
na lógica abissal e na hierarquização do conhecimento, conforme aponta Santos (2007) e Quijano (1997).
Nesse sentido, o ocidente (notadamente a Europa) compreende que há uma universalidade no seu discurso
e conhecimento, o que apaga a diversidade dos sujeitos e do próprio conhecimento.
3
A colonialidade, de acordo com Qujano (1998; 2014) é dos componentes do padrão/regime capitalista
de poder que procede do colonialismo europeu edificado sobre a exploração dos povos originários da

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Há na sabedoria afro-brasileira, no cotidiano dos terreiros, um aforismo que diz


que “somente a água fresca apazigua o calor da Terra” e, é por isso que, nessas linhas,
desejamos pensar a água como potência de apaziguamento e cura. A água, em Oxum,
nos dá a possibilidade de uma compreensão viva, não-dogmática, de uma outra forma
de ser-viver no ayê (no mercado-terra). Por isso mesmo é que começo esse texto
lançando, simbolicamente, água fresca ao chão para refrescar e abrir nossos caminhos.
Rogo a Exu, que favoreça nossos diálogos, para que ele seja, sempre, cura. Cura dos
nossos pensamentos, dos nossos hemisférios epistemológicos colonizados e cura para os
nossos okan (corações). Omi tutu!
Tenciono, com este texto, refletir sobre as potências de Oxum como uma prática
de saber-viver inscrita nos modos de vida do povo de Santo (NASCIMENTO, 2016),
como parte de um ethos afro-diaspórico que permite trazer de volta a vida e o encanto
para as nossas existências colonizadas, que nos ajuda a pensar em formas de resistência
à escassez que assola nosso tempo. Com/Em Oxum aprendemos que toda terra seca
pode voltar à vida e brotar, que a escassez é temporária.
Para isso, navego pelas minhas memórias, rememorando o colo e os abraços de
Oxum e as narrativas orais das com-vivências4 de axé, pelos ensinamentos da oralidade
sagrada do terreiro e pelos mitos de Oxum. Na primeira parte do texto discorro sobre a
cosmopercepção5 afro-brasileira, a partir da tradição dos orixás do complexo cultural
iorubá, em relação à natureza e à água. Em seguida, na segunda parte do texto, conto
sobre Oxum, seus atributos, seu lugar nas tradições afro-brasileiras e sua potência
epistemológica, que foi a inspiração para esse texto.
Na terceira parte do texto desenho, em termos conceituais, o que venho
construindo, a partir das epistemologias de terreiro, com/em Oxum, como um “pensar-
viver-água”. Uma construção ética e filosófica que inspira e anuncia um outro modo

“América”, tendo por base a ideia de hierarquização das “raças”, e que estrutura as relações sociais,
econômicas e de produção do conhecimento nos países outrora colonizados (QUIJANO, 1998; 2014).
Nesse sentido, a colonialidade é, em certa medida, um dos modos com que o Norte (eurocêntrico) peleja
pela manutenção de sua hegemonia sobre o conhecimento, a cultura, as epistemologias, bem como sobre
as relações sociais, se (auto)proclamando como padrão universal de humanidade.
4
Ao longo do texto utilizarei a expressão “com-vivência” ao invés de convivência, por compreender,
desde uma perspectiva nagô, que o cotidiano é sagrado e é nele que partilhamos as nossas existências e
fazemos nossas trocas de axé. Portanto, com-vivência potencializa a ideia da vida enquanto troca,
partilha.
5
O termo “cosmovisão”, que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta
o privilégio ocidental do visual. É eurocêntrico usá-lo para descrever culturas que podem privilegiar
outros sentidos. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de
mundo por diferentes grupos culturais (OYĚWÙMÍ, 2002, p. 03). Por isso o utilizaremos em detrimento
da ideia de cosmovisão.

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ser-viver-pensar fundamentado nas potências criadoras de Oxum e uma forma de


resistência à escassez e desencantamento do mundo. Por fim, recorrendo à Oxum como
um projeto ético-político para (re)encantar o mundo, insisto na afirmação da vida em
todas as suas formas e plenitude e reafirmo o compromisso com a sua defesa
indiscriminadamente.
Entendemos que esse movimento, de inscrição das gramáticas do terreiro, dos
modos de ser-saber ancestral negro nos espaços de saber/poder é, sem dúvida, uma
forma de lutar contra o racismo, contra a necropolítica (MBEMBE, 2018) e contra toda
sorte de males causados pela colonialidade. Contar de nossas epistemologias, buscar em
nossas comunidades outros modos de conceber/compreender o mundo, ter em nossa
ancestralidade fundamentos epistemológicos é enfrentar o epistemicídio (CARNEIRO,
2005) e produzir outras formas de aprender-ensinar-aprender o mundo e a experiência
da vida. É pelejar pelo encantamento do mundo.

1 - Água que faz crescer as crianças


Todos os povos, ao longo da História, possuem uma relação estreita com a água.
A água para diferentes povos e culturas, seja pela sua abundância ou escassez, foi objeto
de culto e tida como indispensável à existência. Para os povos e culturas da África essa
relação não é diferente. Os povos africanos atribuem à água um sentido sagrado, lhe
creditando a própria existência dos humanos (MANDARINO & GOMBERG, 2009). A
relação desses povos com a água é uma marca profunda das culturas não-ocidentais no
que diz respeito à natureza.
É sabido que os diferentes povos africanos possuem uma cosmopercepção de
mundo distinta da ocidental, sobretudo no que diz respeito à relação homem-natureza.
Para as diversas e complexas culturas africanas os humanos não estão separados da
natureza; essencialmente são feitos da mesma “matéria primordial”. Diferente do
ocidente, antropocêntrico, as culturas africanas possuem uma relação de
interdependência com todos os elementos da natureza. Essa perspectiva fica bastante
evidente na poética narrativa bambara, da tradição Komo, da criação do universo e do
próprio ser humano (KING & RIBEIRO, 2015, p. 40-41).
Para os bambara, nessa narrativa, Maa-Ngala (Deus) cria o universo, a partir de
si mesmo, de um ovo primordial (Fan) que continha os nove estados fundamentais da
existência. Do ovo primordial chocado nasceram vinte seres fabulosos que constituíram

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todas as formas de conhecimento possível e todas as formas do universo. Contudo,


nenhum desses seres se mostrou apto para ser o interlocutor de Maa-Ngala. Então, Maa-
Ngala tomou uma parte de cada um desses seres e as misturou. Insuflou nessa mistura
seu hálito ígneo e criou um novo ser: o homem, a quem chamou de Maa, seu próprio
nome. Esse novo ser, pelo seu próprio nome e pela centelha divina nele introduzida,
continha algo próprio de Maa-Ngala. O homem tinha parte de Deus e de todo o universo
em si. Essa origem dos humanos determina um vínculo profundo do homem com todos
os seres tanto do plano material quanto cósmico.
No complexo cultural nagô-iorubá, no mito do nascimento de Exu Elegbara
(PRANDI, 2001), também encontramos uma perspectiva semelhante. No mito, Elegbara
era filho de Orunmilá, que muito queria um filho, mas o menino, ao nascer, tinha uma
fome sem fim. Gente de todas as partes da terra levou alimentos para o menino. Inhame,
bichos de pena, de quatro pés, mas a fome do menino nunca era saciada. Elegbara,
então, comeu todas as coisas existentes, os bichos de quatro pés, inhames, as árvores, os
rios, as folhas e a própria mãe, Iemanjá. Mesmo tendo comido tudo que existia no
universo Elegbara não ficou satisfeito e tentou comer o pai, Orunmilá, que em um golpe
de espada o partiu em duzentos pedaços e cada golpe de Orunmilá gerava mais duzentos
outros Exus, chamado de Yangí. Elegbara então fugiu de Orunmilá percorrendo os nove
Orum (espaços sagrados do plano cósmico ancestral). Foi assim pelos nove Orum até
que Orunimlá, já cansado, no último Orum, percebeu que não venceria aquele que de
tudo já comeu e provou. Então, ele propôs um trato ao menino: se Elegbara devolvesse
tudo o que havia comido, inclusive sua mãe, ele sempre seria o primeiro a comer, o
primeiro a ser saudado em todos os ritos sagrados. O menino Elegbara, então, aceitou a
oferta de Orunmilá e vomitou tudo o que havia comido, inclusive sua mãe. Desde então
ele é sempre o primeiro a ser servido e tudo que existe tem uma parte dele dentro de si,
incluindo os humanos. Tudo que existe compartilha essa essência.
Ambas as narrativas nos contam da profunda ligação dos humanos com todo o
universo, com a natureza. A tudo e a cada coisa o homem se relaciona, está ligado numa
grande rede de participação (BÂ, 2010). “Todos os reinos da vida (mineral, vegetal e
animal) encontram-se nele (...)” (BÂ, 2010, p. 184). Sob esse ponto de vista, conforme
King e Ribeiro (2015, p. 41), “ganha sentido a preocupação com a ecologia e com o
bem-estar de outras pessoas. Somos interconectados”. Nessa perspectiva, o homem está
assimilado à natureza, faz parte da grande teia da existência, cada parte ligada ao todo
(ERNY, 1968 apud KING & RIBEIRO, 2015).

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Dessa cosmopercepção, para os iorubás, de acordo com Mandarino e Gomberg


(2009), emerge uma profunda ligação dos homens com a natureza, que em sua essência
é divina, especialmente com a água. A natureza é, nessa perspectiva, de certa forma,
“representada” pelos orixás que, por sua vez, estão associados aos elementos fogo, terra,
ar e água; a estrutura básica de toda a natureza. “Nos orixás a natureza não se apresenta
como exterioridade, já eles que trazem em si o comportamento dos elementos da
natureza” (RANGEL & GOMBERG, 2016, p. 04).
Na diáspora negra, durante o período colonial, essa cosmopercepção foi para cá
trazida e recriada no complexo cultural dos candomblés brasileiros (NASCIMENTO,
2016). Nesse texto, me atenho, especialmente, às tradições do complexo nagô-iorubá
(BASTIDE, 1961), daquelas vindas da chamada iorubalândia, atualmente Nigéria e
Benim. Sobre este aspecto, é preciso pontuar que não desejo aqui falar de um ponto de
vista “universal” do candomblé, já que cada “nação” (Ketu, Angola, Jeje, Nagô) possui
um complexo sistema cultural, mítico e filosófico distinto. O que, entretanto, une as
diferentes tradições mítico-religiosas é a relação interdependente entre homem-natureza.
Dos cultos que mais fortemente sobreviveram nas bandas de cá, sem dúvida, os
das “grandes Mães” (as Yabás), Oxum e Iemanjá, são os mais conhecidos e praticados.
De norte a Sul no Brasil essas divindades são reverenciadas. Também em outros países
da “América Negra”, como em Cuba e Haiti, os dois orixás são cultuados de forma
exuberante (CABRERA, 2004). Seus ritos e cultos estão essencialmente ligados às
águas, tanto doces quanto salgadas, no caso de Iemanjá, a senhora do mar. Na tradição
afro-brasileira nagô, essas duas Yabás estão relacionadas à fecundidade, à fertilidade, à
prosperidade, pois “encarnam a possibilidade de existência e ancestralidade
concentradas exatamente em seu ventre fecundo” (MANDARINO & GOMBERG,
2009, p. 148). Ambas, por estarem ligadas às águas, são vistas como senhoras de toda a
existência. Dessa maneira, água e vida, ancestralidade e descendência se encontram e
misturam-se em um contínuo vai e vem de possibilidades, cujo simbolismo está nas
águas límpidas dos rios e córregos (MANDARINO & GOMBERG, 2009). A água,
nesse contexto, é o símbolo da própria vida, da fertilidade e que garante aos humanos,
no ayê, a existência.
As águas doces, como domínio de Oxum, garantem aos humanos a própria vida,
daí a sua grande importância e centralidade nos cultos e ritos afro-brasileiros. Como nos
contam as mais velhas, “é preciso agradar sempre Oxum para não experimentarmos a
escassez e a seca”. Recordo-me, no meu período de recolhimento para iniciação em

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Oxum, de ouvir sempre das minhas mais velhas que ser de Oxum é ter a
responsabilidade de cuidar da vida, defender a vida. Essa sabedoria em forma de ofó
(encantamento pela palavra) remonta à própria essência de Oxum na tradição nagô.
Oxum, nesse contexto, é concebida como a divindade responsável pela saúde, pela
fartura, pela fecundidade, pela maternidade e, em síntese, pela própria vida.
No itan “Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens”, contado por
Prandi (2001), podemos ver como as águas de Oxum são vitais para a existência
humana:

Logo que o mundo foi criado, todos os orixás vieram para a Terra e
começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles, em
conciliábulos nos quais somente os homens podiam participar. Oxum
não se conformava com essa situação. Ressentida pela exclusão, ela
vingou-se dos orixás masculinos. Condenou todas as mulheres à
esterilidade, de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido da
fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar
Olodumare. Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem
filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses, sem
novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras e sem
descendentes para não deixar morrer suas memórias. Olodumare
soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os
orixás a convidá-la, e às outras mulheres, pois sem Oxum e seu poder
sobre a fecundidade nada poderia ir adiante. Os orixás seguiram os
sábios conselhos de Olodumare e assim suas iniciativas voltaram a ter
sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na Terra
prosperou (PRANDI, 2001, p. 345).

Se Oxum se recusa a dar suas águas para a manutenção da vida na terra, nós
perecemos. Sem as águas não podemos nos alimentar, não podemos existir. O ayê não
vive sem Oxum. Por isso, em nossos terreiros, é muito comum observarmos nos
presentes de Oxum, nas oferendas e cultos a ela pedidos de prosperidade, bonança,
fartura e fertilidade que são provas da potência criadora desse orixá. Conta-nos as mais
velhas que, em África, as mulheres que não podem ter filhos, ao tomar a água da
nascente do Rio Oxum, no outro ano retornam com seus filhos e filhas nos braços,
tamanho o poder dessa Yabá.
O verso de Ordep Serra e Roberto Mendes, imortalizados na voz de Maria
Bethânia em Louvação à Oxum, que dá título a essa parte do texto, reafirma a potência
criadora de Oxum e de suas águas. A “água que faz crescer as crianças” remonta à
essência das águas fecundas de Oxum. A água, na tradição dos orixás, está relacionada
com toda a nossa experiência de vida, já que desde o útero de nossas mães vivemos a

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água. Desde a concepção a água está em nós, no líquido seminal do pai que fecunda a
mãe e no útero, encruzilhada sagrada da vida que também pertence a Oxum, no interior
de nossas mães, somos envolvidas pelas águas sagradas. Ali, na cabaça-útero, é que nós
crescemos. A água é a nossa primeira morada. É Oxum que sustenta as nossas
existências até a hora de deixar a cabaça-útero para nossa experiência no ayê.
No candomblé a água está presente em todos os ritos e cultos (RANGEL;
GOMBERG, 2016). Ao longo de toda a vida do indivíduo e em todos os ritos, sejam
eles iniciáticos ou propiciatórios, na religião dos orixás, do ìkmọjàde (rito semelhante a
um “batismo”) ao axexê (rito fúnebre dos nagôs) a água está presente. Nas iniciações,
por exemplo, os múltiplos banhos estão relacionados com a potencialização do axé do
neófito, chamado iaô. Cada banho tem sua função no processo, bem como cada ewé
(folha) utilizada.
No axexê,

deve-se possibilitar a libertação do emi (sopro divino) após a


constatação da morte do corpo, e o elemento água será aquele que
deverá ser o principal agente desta cerimônia, atuando ao mesmo
tempo como libertador e propiciador de limpeza, purificação e
abulação, tanto paro o indivíduo quanto para o grupo (VERGER,
2002, p. 97 apud MANDARINO; GOMBERG, 2009, p. 03).

Além desses ritos, a água também aparece em outras cerimônias e rituais


importantes do candomblé brasileiro, como nas Águas de Oxalá.

A narrativa do mito das “Águas de Oxalá” inicia-se com Oxalá


decidindo fazer uma visita a Xangô, a divindade dos raios e dos
trovões, sendo seu elemento o fogo, identificado pela cor vermelha e
pela cor branca, decorrente da sua ligação com Òsàlá. Ele é idealizado
como um guerreiro violento e audacioso. Como era de costume na
terra dos orixás, Oxalá consultou um Bàbálawo para saber como seria
a viagem. Este recomendou que a viagem não se realizasse, mas Oxalá
já havia decidido deslocar-se para Òyó, então lhe foi aconselhado que
levasse três mudas de roupa, limo e sabão da costa, não devendo pedir
ou se recusar a dar nada que lhe fosse pedido, tendo também, que
fazer voto de silêncio durante toda a viagem. Com estas precauções o
orixá pôs-se a caminhar com seu cajado em direção a Òyó. No
caminho encontrou Exu por três vezes, e por três vezes foi vítima de
brincadeiras de mau-gosto de Exu sujando Oxalá com azeite-de-
dendê, àdin e carvão. Ao aproximar-se de Òyó, avistou o cavalo
branco que havia dado de presente a Xangô. Oxalá fora mal
interpretado pelos soldados de Xangô que o julgaram ladrão do animal
e o agrediram violentamente deixando seus braços e pernas quebrados.
Oxalá foi levado à prisão do palácio e lá esquecido por sete anos.
Durante este tempo, o reino de Xangô é assolado por pestes e

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infortúnios. Durante este tempo, o reino de Xangô entra em


decadência, sofrendo a pior seca que compromete, então, toda a
colheita. Epidemias, doenças e mortes se sucederam com frequência,
fazendo com que o povo se revolte com Xangô. Sem outra solução,
ele vai procurar um Bàbálawo da região, que faz o jogo e lhe diz: “Um
homem que usa roupa branca foi preso injustamente. O que está
acontecendo é uma revolta natural pela injustiça cometida”. Segundo a
narrativa, os soldados de Xangô receberam a devida punição pelos
feitos acometidos contra Oxalá, pois “(...) o que seria da justiça se os
maus juízes não fossem punidos de alguma forma? A paz não é a
ausência da terra, e sim a presença da justiça”. Depois do mal
entendido desfeito, a chuva chegou, as culturas de alimentos
prosperaram e as enfermidades cessaram, enfim, todas as coisas do
reino de Xangô voltaram à normalidade. A cerimônia das “Águas de
Oxalá” rememora este episódio mítico com uma procissão
representando a viagem de Oxalá. Trata-se de um cerimonial
complexo que se estende por 17 dias e constitui um marco nas práticas
e nos rituais que se sucedem no decorrer do ano litúrgico do
candomblé (ALVES; PELEGRINI, 2010, p. 6-7).

O que podemos aprender tanto com as narrativas míticas quanto pelas com-
vivências e tradição oral do axé, nos terreiros, é que a água é a parte fundamental da
existência, assim como é também da nossa mãe-Terra. Sem a água não se pode fazer
nada. Assim, ela assume uma centralidade tanto na crença quanto na ritualística do povo
de santo; é vista como elemento fundamental para a vida (RANGEL; GOMBERG,
2016) e espiritualidade. Oxum, nesse contexto, assume, junto a Iemanjá, o lugar de mãe
de toda a existência, a potência criadora da vida, cujo elemento fundamental é a água, e
é isso que, nesse texto, nos interessa.

2 - Oxum que eu bendigo na boca do dia


Antes de começar a falar sobre Oxum é preciso destacar que não pretendo aqui
fazer uma descrição etnográfica, uma abordagem antropológica ou prescrever formas
absolutas de compreender/conceber Oxum. Pretendo, de certo modo, fugir do lugar
comum de falar de Oxum sendo a deusa do amor e da beleza, o que reduziria toda a sua
potência. O que apresento aqui é produto das reflexões que têm povoado meus
interesses de pesquisa/estudo, bem como o partilhar de minhas com-vivências e trocas
de axé. Como um filho de Oxum, tenho me inspirado na água que tem a sua potência e
força na fluidez, portanto, não tenho pretensão de “definir” Oxum aqui. O que faço é um
movimento de reflexão sobre a potência dessa divindade.
Oxum é, sem dúvida, um dos orixás mais conhecidos da tradição afro-brasileira.
Mesmo aqueles e aquelas que não são “de Santo” acabam por conhecer essa divindade

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que é muito popular também no campo das artes, da música popular brasileira e no
carnaval. Como nos ensina o Babalorixá Rodney William6, o verso “Ora ye ye ô,
mamãe Oxum” é um dos versos mais famosos dos sambas enredos de carnaval e que se
popularizaram muito a partir da década de 1980. Não é, então, uma ousadia dizer que
Oxum ama a alegria, o brilho e o carnaval.
Oxum ficou muito famosa também a partir da música popular brasileira quando
nomes como Dorival Caymmi, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gerônimo
Santana e outros/as artistas passam a cantar Oxum. Um exemplo disso é a canção
“Oração de Mãe Menininha” de Dorival Caymmi (1972), imortalizada também na voz
de Gal Costa e Maria Bethânia na década de 1980. A canção é uma homenagem àquela
que é considerada a maior Ialorixá de todos os tempos do candomblé brasileiro, Mãe
Menininha do Gantois, uma filha dileta de Oxum.
O verso “A Oxum mais bonita tá no Gantois” é um louvor à grandiosidade de
Mãe Menininha, filha de Oxum. A Ialorixá, sem dúvida, contribuiu para a
“popularização” de Oxum. Mãe Menininha foi chamada de a “Oxum entre nós”, aquela
que o colo e as mãos geraram centenas de filhos. O matriarcado de Mãe Menininha é
um patrimônio histórico e cultural do povo negro, do povo brasileiro. Seu legado se
confunde com a história do próprio candomblé. Menininha era, de fato, Oxum no ayê, a
grande Yalodê.
Outro fator, aliás, controverso, que contribuiu para a popularização desse orixá
no Brasil também foi a associação da Yabá com Nossa Senhora Aparecida (da
Conceição), no processo de sincretismo, na maior parte das regiões do Brasil,
especialmente nas umbandas. As semelhanças em relação à maternidade, ao cuidado às
crianças e a relação com as águas foram elementos que consumaram o sincretismo. O
azul do manto da santa católica, por exemplo, em muitas tradições de umbanda está
associado a Oxum, chamada de “mãe do Brasil”. Na Bahia, especificamente, Oxum foi
sincretizada com Santa Luzia.
Sobre este aspecto, como também apontado por Oro e Anjos (2009), ao tratar do
sincretismo, ainda que controverso, é preciso pontuar que ele tece importante papel em
algumas religiões de matriz africana, como é o caso das umbandas e batuques. Nesse
sentido, os autores demonstram, em uma percepção desde dentro em diálogo com os
praticantes dessas tradições, que aquilo que poderia sugerir uma certa “colonização” do

6
O ensinamento oral de Babá Rodney William está registrado em uma live e disponível em
https://youtu.be/AAMU4wfop7c.

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sagrado negro com o sincretismo é, na verdade, uma outra perspectiva de conexão com
a ancestralidade negro-africana nessas religiões.
Escolhi começar falar de Oxum tomando esse caminho, entretanto, para que se
possa compreender que Oxum faz parte de nosso imaginário coletivo, mesmo fora das
tradições afro-religiosas. Oxum, como nos ensina as minhas mais velhas e os meus mais
velhos, nunca passa despercebida. “Onde Oxum está tem brilho, riso e alegria” dizia
minha mãe de santo.
No candomblé, e demais tradições afro-brasileiras de origem nagô, Oxum é a
Yabá ligada à fecundidade e à fertilidade, sobretudo feminina.

Um texto citado por Elbein dos Santos (1986) refere-se a Oxum da


seguinte maneira: No tempo da criação, quando Oxum estava vindo
das profundezas do orun, Olodumare confiou-lhe o poder de zelar por
cada uma das crianças criadas por Orixá, que nasceriam na terra.
Oxum seria a provedora de crianças. Ela deveria fazer com que as
crianças permanecessem no ventre de suas mães, assegurando-lhes
medicamentos e tratamentos apropriados para evitar abortos e
contratempos antes do nascimento. Não deveria encolerizar-se com
ninguém a fim de não recusar crianças a inimigos e conceder gravidez
a amigos. Foi a primeira Iya-mi encarregada de ser Olutoju awom omo
- aquela que vela por todas as crianças e Alawoye omo - a que cura
crianças (RIBEIRO, 1996, p. 77).

Oxum é por excelência a senhora da vida. É ela que faz crescer as crianças e que,
junto a Iemanjá, é considerada senhora da maternidade (CABRERA, 2004). Sobre isso a
autora ainda nos conta que não se pode falar de Oxum sem falar de Iemanjá tamanha a
ligação de ambas. As duas Yabás ora são contadas na mitologia como irmãs, ora como
mãe e filha, sendo Oxum a filha mais nova de Iemanjá. O que isso revela, em suma,
independentemente da versão mitológica, é a essência criadora e a ligação dessas duas
Yabás que se revela no caráter gerador de vida de ambas.
Oxum é a senhora das águas doces e tem como seus domínios as cachoeiras, as
quedas d’água, as nascentes, os rios, as lagoas e demais domínios aquíferos (RANGEL;
GOMBERG, 2016). Ela é a senhora da vida, da criação, do parir, do amamentar e da
maternidade e encarna todo o signo da matripotência revelado na figura da Iyá
(OYĚWÙMÍ, 2016).
É importante dizer, desde já, que a leitura que faço de Oxum é uma operação
feita fora do ideário colonial eurocêntrico que tentou aprisionar Oxum na figura da
mulher sensual, hipersexualizada, infiel, manhosa, chorona ou da mãe imaculada, frágil,
submissa, recatada. Essa leitura etnocêntrica e patriarcal não cabe em Oxum. Em

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realidade, todo o complexo cultural, mítico e religioso dos africanos, nesse caso iorubá,
não cabe na visão cristã, binária, patriarcal e etnocêntrica do ocidente. Oxum, como
dona da abundância, transborda esses sentidos reducionistas da lente judaico-cristã.
Os afro-sentidos que trago para pensar Oxum neste texto estão centrados na
perspectiva iorubá, tratados brilhantemente pela filósofa nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí
(2016) e nas palavras de axé de minhas mais velhas. Oxum, nesse sentido, pensando
também nas palavras de Akotirene (2019), é muito além da figura da “vênus negra” ou
da “virgem imaculada” (ROSÁRIO, 2008). Oxum é a matripotência inscrita no social,
na religião e na política e que não cabe na fôrma de “bela, recatada e do lar”.
As palavras de Ribeiro (1996), ao contar sobre o culto de Oxum, inclusive em
África, remete a essa potência, quando nos informa que nos “assentamentos” de Oxum
(ou seja, em suas sacro-representações materiais) há sempre três elementos básicos: um
pote de água, o seu axé, que representa, sobretudo a vida, o abebé (leque de forma
circular adornado, que pode conter ou não um espelho ao centro) e uma espada de metal
(normalmente dourado). Além desses elementos encontramos em seus assentamentos
também búzios, metais e moedas. Esses elementos, de certa maneira, representam a
natureza de Oxum: doce, vaidosa, maternal, ao mesmo tempo em que é uma guerreira,
uma soberana.
Oxum, de acordo com Oyěwùmí (2016) é aquela que gerou em si toda a potência
da criação do mundo, presente inclusive nos mitos de fundação do mundo – a Iyá
primordial. Nas palavras da autora, a partir de um excerto de Oseetura (mito fundador
do complexo de Ifá):

Afìmọ̀ f’obìnrin, Iye wa táa pé nímọ̀,


Afìmọ̀ jẹ t’Ọṣun o, Iye wa táa pé nímọ̀.

Damos o conhecimento para a fêmea, nossa Ìyá que encarna o


conhecimento,
Nós chamamos o conhecimento de Oxum, nossa Ìyá que encarna o
conhecimento (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 01).

A matripotência de Oxum é revelada no caráter sócio-espiritual da instituição


Iyá que, para a autora, evoca todos os sentidos (éticos, políticos, religiosos e culturais)
da maternidade. Maternidade essa, em uma leitura feita desde dentro, que não é
generificada. A maternidade, nessa perspectiva, não é uma categoria submetida ao
gênero, portanto, não é submissa ao “macho”. Isso significa dizer que a maternidade, na

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figura da Iyá, não deriva de uma esposa, subordinada, submissa e socialmente


marginalizada, mas nasce da sacralidade do útero.
Vale lembrar que Oxum é a rainha da nação Ijexá e que, no sentido
sociocultural, encarna a figura política de Ọba, a líder de um povo e que por ele é. Essa
perspectiva desfaz a interpretação patriarcal-colonial de que o posto de Ọba (de
monarca) era somente masculino, portanto, o monarca só podia ser um rei. Há, de
acordo com Oyěwùmí (2016), uma vasta descrição de Ọba femininos em território
iorubá, em África. A feminilidade em Oxum, portanto, não está reduzida à beleza,
delicadeza, apreço por adornos e joias.
A feminilidade em Oxum se refere ao caráter sagrado da matripotência. A
figura-categoria da Iyá se refere, então, a essa potência da maternidade como criação,
constituindo uma categoria sócio-política do sistema cultural e política na
cosmopercepção iorubá, já que o par civilizatório, dessas culturas, é a Iyá e sua prole.
Toda humanidade nasce de uma Iyá, portanto é ela a matriz da nossa existência
(OYĚWÙMÍ, 2016). A força ancestral da criação, o ventre do mundo é Oxum. É sob
essa perspectiva que se assenta minha compreensão de Oxum.
Há que se fazer um exercício de descolonização quando tratamos de olhar para
as deidades africanas, e nesse caso Oxum, procurando nos desvencilhar de uma leitura
sexista, patriarcal e cristã. O abebê, para além de um adorno, é a representação do
poder, também político, de Oxum e conta de sua posição social, aquela que toma parte e
decide a vida com sua comunidade. A relação de Oxum com a beleza, nessa
perspectiva, não está ligada à futilidade ou efemeridade, ao contrário, revela a beleza
como um aspecto da sacralidade e do poder feminino. O gosto de Oxum por joias, por
pedras e metais preciosos, pelo ouro, não é calcado na perspectiva da acumulação
ocidental, mas representa a abundância, a prosperidade, a riqueza e o poder de Oxum.

Osun vive na oralidade e na escrita dispostas a traduzirem a beleza das


mulheres negras, a sabedoria, a inteligência, a habilidade na
administração das riquezas e dentro das ciências sociais; uma deidade
maior que os equívocos linguísticos e conceituais sobre corpo,
maternidade e destino biológico (AKOTIRENE, 2019, s. p.).

Iyá Oxum é também a senhora das artes. É Oxum que preside os processos
criativos, da inventividade e criatividade artística.

O ímpeto para as artes visuais e verbais é uma e a mesma coisa: essas


belas criações representam adornos para o orixá e anunciam a

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celebração de seu maior presente para os seres humanos – as crianças.


Como as Ìyá são centrais no processo de criação e procriação, não
surpreende que seu talento flua daí. Porque todas e cada uma das
pessoas são nascidas de Ìyá, ninguém, anamacho ou anafêmea, é
excluído de participar ou desfrutar da herança de Ìyá, incluindo sua
arte (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 15).

Outro aspecto ligado a Oxum é a magia, a feitiçaria. Ela é considerada a senhora


da adivinhação, aquela que, além de Exu, conhece o jogo de búzios. É considerada a
dona do oculto, dos feitiços e está intimamente ligada às chamadas Grandes-Mães, as
Ìyàmi. Oxum é considerada a senhora maior de todas as Ìyàmi e, em termos espirituais,
é ela quem preside esse grupo de deidades (OYĚWÙMÍ, 2016). Essas divindades são
também chamadas de àjẹ́, que foi erroneamente traduzida, no ocidente, como “bruxa”,
contudo

Nas tradições iorubás contidas em Oseetura, àjẹ́ é sinônimo de Ìyá. A


narrativa frequentemente citada continua, “todas as mulheres são àjẹ́”
(ibid.), que é um ser espiritualmente poderoso e abençoado. Mas a
palavra foi traduzida para o inglês como “bruxa”, e em muitas partes
da sociedade iorubá atual, a categoria foi demonizada: ser chamada de
àjẹ́ é um prelúdio para a perseguição em uma sociedade saturada de
noções cristãs, ocidentais e islâmicas de religião e espiritualidade
apropriadas. As más tradução e compreensão àjẹ́ como “bruxa”
resultou em dicotomias de gênero que colocaram anafêmeas em geral,
e Ìyá em particular, na categoria de demônio (OYĚWÙMÍ, 2016, p.
35).

Mas àjẹ́, desde a cosmopercepção iorubá, descontaminada da visão cristã, não se


refere às bruxas, no sentido eurocêntrico da palavra.

Como sabemos de Osetura, Oxum, Iyanla, a Ìyá primordial, é a


icónica àjẹ́: ela é cultuada por seus poderes àjẹ́, para dar crias a quem
lhe devota, e para fornecer os recursos para alimentá-las. Oxum é a
divina àjẹ́. (...) Durante o festival de Oxum em Oxogbô, um grupo de
mulheres canta canções que revelam que Oxum é uma bruxa e que a
maioria das mulheres, se não todas elas, que são suas devotas, também
são bruxas. Há devotas de Oxum que cantam no grand finale de seu
festival. Uma de suas canções diz: ... “o grupo das bruxas de Oxum é
o dono das crianças. Siga Oxum para que você seja abençoada com
crianças para dançar”. O ponto de ênfase deste grupo de mulheres é
que Oxum é uma bruxa que usa seu poder para abençoar as pessoas
com crianças e riquezas (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 45).

Oxum, sendo uma àjẹ́, é aquela que conhecendo os segredos da magia está
sempre em favor dos seus filhos e filhas, daqueles que procuram sua força e amparo,

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

porém não gosta de ser insultada, desrespeitada ou escarnecida. A

representação iorubá de Ìyá como àjẹ́, como discutimos no caso do


orixá Oxum, permanece ressonante e fala da compreensão da
procriação e dos poderes espirituais que dela decorrem. Poder procriar
é considerado um presente, um dom espiritual (OYĚWÙMÍ, 2016, p.
47).

Oxum em toda a sua (matri)potência não pode ser fixada em um imaginário


colonial patriarcal que a reduz às figuras estigmatizadas da donzela virgem, da mãe
imaculada ou da “vênus negra”, hipersexualizada. Todas essas representações diminuem
a potência do feminino sagrado de Oxum e tentam submetê-la a fetiches coloniais. O
que bendizemos em Oxum, nesse texto e em nossas práticas sagradas, é a potência
criadora da vida, em todos os sentidos. Criação de vida com afeto, com amor, no
cuidado, na partilha do cotidiano, na ampliação dos laços familiares, tendo em nossas
Ialorixás, sejam elas de que santo for, a matripotência de Oxum. Dessa forma, Oxum
extrapola um imaginário colonizado e nos inspira a pensar uma outra ética do ser-viver,
assentada na comunidade, na partilha, na comunhão e, sobretudo, na produção da vida.

3 - Pensar-viver-água para (re)encantar o mundo com Oxum

Quando Oxum pisou a terra,


A vida tocou o mundo:
foi água que preencheu de amor.
Quando Oxum pisou a terra
Foi que se alcançou a beleza de tudo.
E a beleza, então, desaguou felicidade nos corações.
Quando Oxum pisou a terra,
E a vida se deu nas árvores, nos animais e nas crianças
Um mundo lavado de Axé conheceu
Onde tudo nasce, a bênção da criação.
(Paola Odónilè de Mori em “Òpárá de Òsùn: quando
tudo nasce”)

Os versos que abrem essa parte do texto contam da potência de vida em Oxum,
de dar vida àquilo que aparentemente está morto. É ela quem traz a fecundidade à terra
seca e nos mostra que a escassez não é para sempre. Os versos remetem às sabedorias
de terreiro que nos ensinam que Oxum é muito mais do que a deusa do amor e da
beleza. Não se pode pensar na vida, em toda a sua potência e diversidade, sem pensar
em Oxum.

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Vivemos um tempo de escassez, sobretudo no Brasil. Atravessamos um período


de escassez que parece eterno. Um tempo de desencantamento, nas palavras de Simas e
Rufino (2020). Um tempo de escassez que, operando sob a ordem do projeto colonial 7
do capitalismo selvagem, produz em nós, muitas vezes, a desesperança.

A grande peleja que se trava nesse momento veste a pele dos


“homens de bem” preparados para dar o bote contra os
pluralismos, reconexões e sabedorias táticas operadas nas frestas
onde o encantamento irriga o ser de possibilidades de liberdade
(SIMAS & RUFINO, 2019, s. p).

A nossa peleja é contra um projeto político, cultural e ideológico genocida,


epistemicida, machista, racista, homofóbico e que odeia a diversidade, que odeia o
“outro”. O projeto necropolítico que assaltou o Brasil em 2014, e que se aprofundou em
2018, está a serviço da aniquilação do “outro”, da aniquilação simbólica e material dos
sujeitos fora da norma (TEIXEIRA, 2019), um projeto alterocida calcado nas políticas
de inimizade tal qual nomeou Mbembe (2017).
No momento em que escrevo essas linhas, o Brasil conta mais de cento e
sessenta mil mortes pela pandemia da Covid-19, causada pelo novo coronavírus, e isso é
mais do que simbólico para dar uma “cara” para esse projeto necropolítico. Um projeto
que odeia a vida e que trabalha incessantemente para sua “despotencialização”. As
crianças negras são assassinadas pelo Estado brasileiro dentro de suas casas, como foi
com o menino João Pedro Mattos e tantos outros e outras anônimos/as. O assassinato de
Marielle Franco passa de dois anos sem nenhuma resposta. Tudo isso é parte do mesmo
projeto genocida e “necrofílico” de desencantamento do mundo.
A noção de desencantamento e encantamento de Simas e Rufino (2020) é cara
para nós e, nesse texto, de certo modo, serve de farol para pensar essa reflexão em/com
Oxum. Para os autores, desencantamento é tudo aquilo que nos separa e desconecta da
vida, em sua plenitude e múltiplas formas, que envenena historicamente as nossas
subjetividades, nossos modos de vida e produz a morte, simbólica e/ou material. O
encantamento, nesse sentido, então, é visto como um ato de desobediência,

7
Ao falarmos em “projeto colonial” estamos nos referindo, apoiados em Mbembe (2018) e Rufino
(2019), na permanência, no signo da colonialidade, de um projeto de dominação do Norte fundamentado
no racismo, na exploração, no sexismo, no apagamento da diversidade, no epistemicídio que tem suas
raízes na colonização. Esse projeto segue na forma, contemporânea, da necropolítica, no estado de sítio e
na produção e fortalecimento das políticas de inimizade, como bem aponta Mbembe (2018).

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transgressão, invenção e reconexão. “Afirmação da vida, em suma” (SIMAS &


RUFINO, 2020, s. p).

A noção de encantamento traz para nós o princípio da integração entre


todos as formas que habitam a biosfera, a integração entre o visível e o
invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão e relação
responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempos
(ancestralidade) (SIMAS & RUFINO, 2020, s. p.).

É sob esse fundamento que tratamos de Oxum, na construção do signo-conceito


pensar-viver-água como potência para o encantamento do mundo e de criação de vida.
Em suma, o encantamento é uma maneira de resistir à mentalidade colonial, de resistir
ao desejo de morte desse projeto (que agora se vincula ao Estado brasileiro), ao mesmo
tempo em que produz a vida. O projeto de encantamento do mundo, com/em Oxum,
ama a vida em todas as possibilidades, é afeito à diversidade, à alegria, às cores, às
diferenças e ao amor.
O amor aqui está fundamentalmente ligado à noção de prática afetiva e política
que envolve cuidado, confiança, reconhecimento, afeto, respeito, responsabilidade e
comunicação franca (SILVA & NASCIMENTO, 2019), o que, certamente, extrapola a
compreensão ocidental reduzida do amor. O amor, como nos ensina o Babalorixá
Rodney William, é a forma mais profunda de axé. O amor é entendido aqui, à luz do
pensamento de bell hooks, na trilha de Silva e Nascimento (2019), como uma
experiência potente para o encantamento de mundo. Uma “experiência que possibilite
outros modos de viver menos mortificadores, que possa construir e nutrir laços afetivos”
(SILVA & NASCIMENTO, 2019, p. 169). Laços não só entre visíveis, gentes, mas
entre todas as formas de vida da/na natureza, inclusive com os/as ancestrais.
Nessa perspectiva, o amor, enquanto prática política nos/dos terreiros acolhe a
diversidade, as diferenças, amplia a noção de família e constrói um território de troca,
de acolhimento, de cuidado e de produção de vida. O terreiro, como nos conta Mãe
Carmem8, Ialorixá do terreiro do Gantois, é um grande útero onde todos são iguais, são
acolhidos e cuidados independente dos títulos, da classe social. Como imagem de um
grande útero, inspirado em Oxum, o terreiro é um território-antídoto para as “políticas
de inimizade” (MBEMBE, 2017), é um espaço capaz de gerar vida, de produzir vida, de
inspiração e criação de um outro modo de vida.

8
A fala da Ialorixá está disponível no documentário “O cuidar no terreiro” de Neto Borges (2013).

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Um jeito outro de ser-viver, fundamentado na partilha, na comunidade, um


modo de vida avesso à concepção de desencantamento da sociedade em que estamos
inseridos. Os calundus do presente, como os terreiros, nos inspiram uma outra
cosmopercepção de mundo capaz de deslocar os sentidos coloniais eurocêntricos de
indivíduo e de comunidade. Tendo Oxum como referência maior de acolhimento e
maternidade, a Iyá, sob a figura do grande útero, o terreiro torna-se um território de
produção de vida e encantamento do mundo.
Oxum, sendo a senhora da vida e da criação, é a referência maior desse projeto
ético-político e filosófico que busca a luta pela vida, em todas as suas formas e em sua
plenitude. Da cosmopercepção de mundo com/em Oxum emerge alguns
elementos/signos que trago para dar forma a esse projeto, no sentido conceitual da
expressão; são eles: a água como elemento potenciador de uma vida plena, o ẹja (peixe)
como símbolo de equilíbrio, tranquilidade e o abebê (popularmente tido como espelho
de Oxum), que nos inspira e convoca à alteridade e à reflexão.
A água, como já tratamos no início do texto, é o elemento fundamental da vida.
Sem água não há vida. Essa condição revela a centralidade de Oxum para/em nossas
vidas. Nesse momento, porém, desejo refletir sobre a água como o elemento fluido que
está em tudo que é vivo e, portanto, integra toda a existência. Isso significa, em um
sentido ampliado, que partilhamos Oxum com tudo aquilo que é vivo. Significa que
somos e estamos ligados. Essa percepção nos leva a compreender que ser-pensar-viver-
água implica, primariamente, na revisão de posturas colonizadas individualizantes,
egocêntricas que secundarizam a coletividade e que não veem a comunhão na partilha.
Exige de nós um descolonizar de nossos sentidos, afetos, corpos e mentes.
A comunidade, no sentido mais amplo que essa palavra possa ter, é condição do
pensar-viver-água. A comunidade aqui não se refere apenas ao coletivo de pessoas com
as quais convivemos no axé; extrapolando essa noção, trato da comunidade como
território-espaço-tempo-corpo coletivo capaz de gerar em nós o sentimento de cuidado,
responsabilidade coletiva e que produza a dimensão da com-vivência, partilha da vida.
Somos em/com as nossas comunidades. Ser em/com a nossa comunidade, tal qual
Oxum, exige de nós a peleja pelo bem estar coletivo e pela vida de cada um dos
nossos/as.
Essa concepção vale também para nossas comunidades de pensamento, nossas
referências epistêmicas e ativismo intelectual. O que quero dizer com isso é que, como
intelectuais engajados e de dupla pertença (à academia e ao terreiro), precisamos nos

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atentar para a presença de nossas comunidades em nossa prática intelectual. É preciso


estar atento a isso e fazer transbordar as nossas epistemologias para além dos nossos
terreiros; como a água, invadir as universidades, os espaços de poder na companhia dos
nossos ancestrais, simbólica e materialmente. As epistemologias, como nos lembra
Akotirene (2019), acontecem na cultura, nesse sentido, são forjadas também em nossos
cotidianos de axé, nos terreiros, portanto são comunitárias. Oxum, a senhora das artes,
das educações, nos ensina que a água é quem dá vida, mas nunca sozinha, por isso,
nossos rios epistemológicos, que brotam também dos terreiros e das com-vivências de
axé, devem carregar todo esse saber ancestral. Esse é o nosso legado ancestral.
Um último aspecto da água que gostaria de destacar para o pensar-viver-água é a
sua forma fluida, sua capacidade de sobrepor-se acima dos obstáculos. Oxum é a
senhora das águas e rios que fluem e, portanto, não pode ser impedida. Suas águas
sempre oportunizam e potencializam a vida. Com isso, a partir do caráter fluido de suas
águas, Oxum nos ensina que é preciso aprender a contornar aquilo que nos impede de
acessar a vida em sua plenitude. Inspira-nos, então, a pensar em estratégias de
resistências a esses tempos de escassez ao mesmo tempo em que anuncia, mais uma vez,
uma perspectiva política da comunidade, do exercício do amor, do cuidado e do esforço
coletivo. Toda potente corredeira, toda imponente cachoeira nasce de um olho d’água.
Nasce calma, pequena, miúda e vai, ao logo do seu caminho, ganhando corpo até se
tornar um rio gordo. Com essa imagem quero dizer que é sempre junto aos nossos, em
comunidade, que aprendemos a resistir e a contornar as interdições da vida.
Um regato tranquilo pode se transformar em águas violentas e revoltas de um rio
bravo, ou seja, juntos somos mais fortes. Resistir em comunidade é mais leve, não
menos intenso ou difícil, mas menos pesado. Isso vale para as coisas mais banais do
cotidiano, mas também se refere a uma perspectiva macro, inclusive do ponto de vista
político. Oxum, na figura da Yalodê, sem que isso reduza sua matripotência, também
habita a política e nos ensina que é pela vida e pela sua comunidade a sua peleja e luta.
O caminho de Oxum, como sendo o caminho da própria água, é sempre cheio de vida.
Das epistemologias de Oxum emerge também a figura do peixe que representa a
tranquilidade e o equilíbrio. Razão pela qual eles estão presentes nos rituais de Borí (de
cuidado do orí, da cabeça). O peixe é oferecido em ocasiões que se precisa de paz e
equilíbrio. Esse caráter tranquilo e equilibrado dos peixes nos inspira a resistência que
busca, mesmo diante da turbulência, se manter em paz e equilíbrio. Aprendi com as
minhas mais velhas e mais velhos que somente um orí em harmonia é capaz de fazer

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boas escolhas e traçar bons caminhos. Com isso, aprendemos que ser-viver-água exige
de nós a busca pelo equilíbrio, não no sentido neoliberal que essa busca pode ter. Ou
seja, o equilíbrio aqui está deslocado da ideia da ausência de problemas, ou da fuga das
resistências cotidianas, mas centra-se numa perspectiva inflexiva. Estar em equilíbrio,
nessa perspectiva, significa compreender que as tensões e as pelejas cotidianas não
podem retirar de nós a paz. Isso é promoção de saúde e vida, é encanto.
Os peixes, em seus cardumes, nos ensinam que resistir coletivamente é sempre o
caminho do equilíbrio. Novamente percebemos que a comunidade é fundamento desse
ser-viver outro, pensado desde as potências de Oxum. Além disso, a natureza aquática
dos peixes nos informa sobre a potência da água de gerar vida, há vida dentro d’água.
Assim, o peixe representa a fecundidade, aquilo que, pelo seu axé, proporciona a vida.
Outro elemento que tenho pensado na construção do ser-viver-água é o abebê. O
abebê, tradicionalmente, não é necessariamente um espelho. Em África o abebê é uma
espécie de leque, abano de forma circular de metal, madeira ou outros materiais e está
relacionado com as Yabás (orixás femininos). Assim, não é tão comum ver um espelho
aderido ao abebê em territórios africanos. O abebê faz parte da indumentária das Yabás
e no trânsito transatlântico, na diáspora, essa característica se manteve. Contudo, no
Brasil, isso ficou mais marcado nas paramentas de Oxum e Iemanjá. Há, entretanto,
uma variação em relação ao abebê tradicional africano.
Nas bandas de cá do Atlântico o abebê foi “ressignificado” em espelho, servindo
quase que como uma tradução dessa palavra de origem iorubá. Não é incomum nas
festas públicas, nos assentamentos desses dois orixás notar a presença do espelho. O
espelho ganhou um espaço central na construção mítica e estética dessas duas Yabás. E
é nesse sentido que eu desenvolverei minha reflexão, tomando, portanto, o abebê de
Oxum como um espelho. De acordo com Lima (2012),

a principal insígnia de Oxum é o leque, chamado na língua nagô de


abebé e confeccionado em latão dourado [...] O abebé de Oxum quase
sempre traz um pequeno espelho em seu centro, com o qual ela se olha
e admira sua própria beleza. Mas não apenas isso. Para além de objeto
de toucador, o espelho de seu leque é também poderosa arma de
guerra: foi com ele, contam, que a santa derrotou inimigos em muitas
batalhas, desviando a luz para os olhos deles (p.49).

É sabido que o espelho de Oxum não se limita à função de refletir sua bela
imagem, como muitos preconizam. Oxum não é narcísica, sobretudo porque essa é uma
percepção ocidental. Ela já se sabe bela e o espelho, nesse sentido, não é um objetivo de

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auto-veneração. Nas mãos de Oxum, o espelho é também uma arma, como dizem os
mais velhos, mais velhas. Contudo, quero me ater aos aspectos da alteridade, da
identidade que o espelho evoca e à ideia de “reflexão”.
Oxum, comumente, utiliza seu espelho virado para o outro e com isso acaba por
refletir a imagem do outro. Simbolicamente, tal fato representa a necessidade que temos
do outro para a construção de nossas identidades. A alteridade evocada pelo abebê de
Oxum traduz uma perspectiva de mundo na qual o outro é uma dimensão fundamental.
A perspectiva de encantamento, tal qual em Simas e Rufino (2020), não exclui o outro,
mas tem no diferente a presença possível de diálogo.

Por primar pela coexistência, pela alteridade e por entender que


a vida é radical ecológico, a lógica do encante não exclui
experiências ocidentais como contribuições para a
potencialização da vivacidade (SIMAS & RUFINO, 2020).

O abebê também mobiliza uma noção de reflexão no sentido de pensar sobre si,
sobre sua história, memória e nessa operação enxergar as possibilidades de reinvenção
de si e das resistências cotidianas. Mirar nossas imagens no espelho de Oxum nos
permite enxergar nela nossa humanidade, somos parte dela. Oxum, sobretudo aos
negros e negras, é a imagem resgatada de uma memória ancestral manchada pela
escravização. Mirar-se no espelho de Oxum significa ver em nossos olhos todos os
nossos ancestrais, todos e todas que vieram antes de nós. A memória coletiva presente
no rito que revive o mito é o veículo pelo qual fluem as epistemologias ancestrais do
povo de Santo e do povo negro. Além disso, a memória é, na lógica da circularidade
nagô, a possibilidade de reinvenção do presente e do futuro. Portanto, Oxum nos
permite pensar, nessa perspectiva, no reflexo como um processo de autocura e
autoconhecimento e de criação. Seu axé potencializador da vida, como senhora das
sabedorias, mobiliza em nós a reinvenção de nossas histórias e trajetórias tendo na água
inspiração para criar, encantar de novo.
Esses elementos-signos, de modo geral, são partes daquilo que tenho nomeado
de pensar-viver-água e que anunciam um outro modo de ser-viver, um outro
entendimento-mundo. Uma inspiração para uma vida que peleje em favor da vida e que
se inscreva na potencialização dela. Uma vida criada e realizada fora da gramática e da
lógica colonial individualista, antidiversidade e anti-amor. Uma vida voltada para o
(re)encantamento.

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Os versos que abrem essa parte do texto sintetizam a perspectiva de


(re)encantamento de mundo com Oxum, na perspectiva do pensar-viver-água. O axé de
Oxum é aquele que, mesmo diante da escassez, afirma e potencializa a vida. Oxum é
aquela que faz brotar a vida mesmo diante da sequidão. Estamos, hoje, atravessando
tempos de escassez, no meio de uma crise sanitária, global, humanitária, econômica,
ambiental e, mais que isso, vivemos uma crise do amor (SILVA & NASCIMENTO,
2019). “Nossa crise coletiva é uma crise tanto emocional quanto material. Não pode ser
solucionada simplesmente com dinheiro” (hooks, 2001, p. 07). Uma das consequências
dessas crises é a desvalorização da vida (SILVA & NASCIMENTO, 2019) e a
banalização da morte, sobretudo das pessoas negras. Em uma sociedade racista, como a
nossa, as mortes das pessoas negras são “menos choráveis”, o que revela o quanto
estamos ainda distantes de uma sociedade que se afirma plenamente no direito à vida.
Diante disso, Oxum é a nossa opção para superação dessa crise. Oxum como
fundamento maior do amor, no sentido mais amplo da palavra, peleja pela vida, e vida
com dignidade. Oxum, que é a própria água, por onde flui serve vida; serve
fecundidade. Portanto, é ela a nossa opção para um projeto de (re)encantamento do
mundo, para a construção de uma outra gramática anticolonial, um outro modo de ser-
viver em meio a escassez.

4 - Eu saúdo quem rompe na guerra (ou algumas considerações)


Ao longo dessa reflexão tratei de pensar Oxum desde uma perspectiva
afrocêntrica, descolada da norma colonial e nesse percurso encontramos uma potência
única para pensarmos um outro projeto de existência e de mundo. Uma experiência
fundada na lógica do encantamento. Vimos que Oxum está longe de ser apenas a deusa
do amor, da bondade, da doçura e beleza. Oxum, além disso tudo, é a guerreira
obstinada que peleja pelo seu povo, pela sua comunidade e, em última instância, pela
vida. Por isso, “falamos do encantamento enquanto astúcia de batalha e mandinga em
um mundo assombrado pelo terror” (SIMAS & RUFINO, 2020, s. p.) na figura dessa
Yabá.
A natureza matripotente de Oxum, encarnada na figura de Iyá, revela sentidos
outros sobre o mundo e sobre o modo de construirmos nossas existências, nossas com-
vivências em tempos de escassez. Oxum, como senhora da fecundidade, é aquela que
nos inscreve na peleja pela vida, na abundância e nos inspira um outro modo de ser-

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viver, por isso, como nos ensina Ordep Serra, “eu saúdo quem rompe na guerra”. Daí a
afirmação de Oxum como essência, fundamento do pensar-viver-água. Um projeto
ético-político, fundado na comunidade, nos afro-sentidos que resistiram ao tempo, ao
racismo e à colonização e que se apresentam como um caminho fértil para o
encantamento do mundo, para colorir (de novo) as nossas existências aqui no ayê.
Oxum, portanto, representa a potência da fertilidade, da criação da vida, aquela
que pode nos oferecer um outro olhar sobre os nossos modos de vida desgastados pela
colonialidade, judiados pelo capitalismo selvagem e fundados no indivíduo. Com seu
abebê dourado, Oxum evoca a alteridade como fundamento de nossas existências e nos
convida a pensar-viver como a água, uma outra ética construída como um contra projeto
à individualização obsessiva forjada no capitalismo moderno. Uma ética que se constrói
na comunidade, no coletivo e na partilha. Iyá Oxum é a senhora de sua comunidade, por
ela vive e luta, e, assim, nos ensina os valores do ser-em-comunidade para refundar
nossas existências.

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CEBRAP, [S.l], n. 79, p. 71 -94, nov. 2007.
SILVA, Vinícius Rodrigues Costa da; NASCIMENTO, Wanderson Flor do. “Políticas
do amor e sociedades do amanhã”. Voluntas, v. 10, p. 168-182, set. 2019.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Rio de
Janeiro: Editora Mórula, 2020. (Versão E-book).
SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo No Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Editora Mórula, 2019. (Versão E-book).
TEIXEIRA, Thiago. Inflexões Éticas. Belo Horizonte: Editora Senso, 2019.
VERGER. Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo.
Salvador: Editora Corrupio, 2002.

Recebido em: 27/09/2020


Aceito em: 07/10/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

DAS ÁGUAS ÌYÁ OXUM: SABERES ANCESTRAIS


FEMININOS EM POESIAS NEGRAS DIASPÓRICAS

Cristian Sales1
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34575

Resumo
Neste artigo, investimos numa discussão acerca dos saberes ancestrais femininos
articulados em poesias negras diaspóricas. Dessa maneira, ao apresentar um estudo
crítico dos poemas de Lívia Natália e Paula Melissa (Mel Adún), observamos como os
arquétipos de Ìyá Oxum são incorporados como tessituras e fundamentos epistêmicos.
A partir de contribuições teóricas formuladas na filosofia africana, o texto explora como
o orixá feminino Oxum se torna uma “categoria sócio-espiritual” (Oyěwùmí, 2016) de
abertura para uma transformação epistemológica para ver, sentir e compreender o
mundo, em contraposição ao pensamento ocidental.

Palavras-chave: Poesia negra feminina. Oxum. Saberes ancestrais. Assentamentos de


resistência. Epistemologia negra.

DE LAS ÁGUAS ÌYÁ OXUM: CONOCIMIENTO


ANCESTRAL FEMENINO EN POESÍA NEGRA
DIASPORIANA

Resumen
En este artículo, invertimos en una discusión sobre el conocimiento ancestral femenino
articulados en la poesía de la diáspora negra. De esta forma, al presentar un estudio
crítico de los poemas de Lívia Natália y Paula Melissa (Mel Adún), observamos cómo
los arquetipos de Ìyá Oxum se incorporan como fabricaciones y fundamentos
epistémicos. A partir de aportes teóricos formulados en la filosofía africana, el texto
explora cómo la orisha Oxum se convierte en una “categoría socioespiritual”
(Oyěwùmí, 2016) de apertura a una transformación epistemológica para ver, sentir y
comprender el mundo a través de otras fuerzas y lentes en contraposición al
pensamiento occidental.

Palabras clave: Poesía femenina negra. Oxum. Conocimiento ancestral. Asentamientos


de resistencia. Epistemología negra.

1
Possui graduação em Letras Vernáculas com Espanhol pelo Centro Universitário Jorge Amado (2003).
Graduação em Letras com Inglês pelo Centro Universitário Jorge Amado (2005). Especialização em
Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia (2006). É Mestra pelo Programa de
Pós-Graduação em Estudo de Linguagens-PPGEL/UNEB (2011). É Doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Cultura, na linha de pesquisa Estudos de Teorias e Representações Literárias e
Culturais, da Universidade Federal Da Bahia (UFBA). Email: crissaliessouza@gmail.com

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Rituais iniciáticos: saudar o Ori

Ori

Um rio não caminha só.


ele atravessa
rasga pedras e fere o chão com sua correnteza
translúcida.

A água eu cabe apaziguada no copo.


dança macia nos corpos
e escapa sinuosa das maõs
está sempre caminhando.
Dentro do rio cabe um mais além das margens
[...]
Dentro desta água doce cabe a violência das torrentes.
Dentro da água há um espaço sempre preenchido
onde dança uma mulher castanha e bela.
No fundo, mais que limo e pedra,
Há pulseiras vivas e perfumes feitos de puro mistério.
Quando a água para
-aquietada na carne lívida das lagoas-
dentro dela há muita vida.
Uma luz dourada emana de seus limites
como de um ventre,
enquanto os peixes bebem de seu encanto silencioso.
(SOUZA, 2011, p.29)

Segundo a pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2016, pp.3-4), “Orí


significa literalmente cabeça”. Orí é elaborado como a sede do destino ou sina
individual. “Portanto, destino e sina são dois sinônimos para orí-inú”: (cabeça interna) e
orí-òde (cabeça externa). Na cosmologia iorubá, “a tarefa mais importante que humanos
enfrentam em sua forma pré-terrena é escolher um orí no Orum (outra dimensão do
mundo), antes de fazer a viagem para a Terra”.
Para Oyěwùmí, talvez o conceito mais importante “na articulação da
cosmopercepção ioruba” seja orí. Em face disso, afirma que “[...] Orí é, assim, uma
divindade pessoal”. É o portador da individualidade de cada ser humano. O Orí atua
como um “mediador entre o indivíduo e outros orixás (divindades)”. Orí “é uma
divindade de pleno direito” em toda a sua força e grandeza que rege nossas existências
no Aiyê (OYĚWÙMÍ, 2016, pp. 4-5, grifos da autora). Todavia, para o que aqui
interessa, Orí é o único orixá que acompanha seu/sua filho(a) desde o nascimento até a
morte.
Em outra compreensão, o pensador nigeriano Wande Abimbola (2011, p. 10,)
confirma que Orí está ligado às nossas “aspirações individuais”. Orí é a essência da

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

personalidade humana. O Orí é o elemento que “representa o destino humano”. Orí é


Odu! Nesse aspecto, o Orí [cabeça] é um “deus individual e pessoal” relacionado à
prosperidade e destino. Ademais, na visão de mundo dos povos iorubás, o Orí [cabeça]
é reconhecido também “como um Òrìsà, tendo seu próprio culto individual”
(ABIMBOLA, 2011, p. 10).
Em outro desdobramento filosófico, Muniz Sodré (2017, p. 107, grifos do autor)
enfatiza que Orí é reconhecido como “uma divindade pessoal com culto próprio”. “À
cabeça física (ori) corresponde no plano do orun à cabeça-destino” portadora de axé.
Isso significa que Orí oferece a cada indivíduo a possibilidade de “escolha de um
destino”, de caminho (SODRÉ, 2017, p. 109). “O destino é a escrita da travessia
imaginária traçada do orun e aiyê”2. O destino aqui é revelado pela adivinhação de Ífá,
onde a ancestralidade se assenta e define os Odus3. “Um rio não caminha só!” (SOUZA,
2011, p.29).
Para Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, “o conceito de axé é igualmente central para a
espiritualidade iorubá e tem sido analisado de diversas maneiras por quem estuda a
cultura iorubá”. Desse modo, segundo a pensadora africana, o “Axé se traduz como
poder, autoridade, comando”. No axé estão os recursos místicos, poéticos e os saberes
ancestrais femininos (OYĚWÙMÍ, 2016, p.10). Ressaltar os vínculos entre o axé e
Oxum é fundamental para uma transformação epistemológica para ver, sentir e
compreender o mundo em contraposição ao pensamento ocidental. O axé, enquanto
elemento que substancia a vida em diáspora. O axé que circula e se assenta nas escritas
negras diaspóricas.
Ao mesmo tempo, divindade única e individualizada, devemos saudar,
reverenciar, alimentar e cultuar o nosso Orí (cabeça) (OYĚWÙMÍ, 2016, pp. 4-5).
Nesse sentido, tal constatação se torna de suma importância, porque a saudação inicial é
uma invocação ao Orí da Ìyá Oxum. Dessa forma, saudamos a Ìyá Oxum através da

2
Vou utilizar a perspectiva filosófica de Wande Abimbola para explicar a relação entre Orun e Aiyê. Orun
e Aiyê não se limitam a céu e terra. Na visão iorubana, no Aiyê, que é também algumas vezes conhecido
por ìsálayé, é o domínio da existência humana, das bruxas, dos animais, pássaros, insetos, rios,
montanhas, etc. (ABIMBOLA, 2011, p. 2, grifos do autor). Ainda segundo Abimbola, no Òrun, que é
“outras vezes conhecido como ìsálórun, é o lugar de Olódùmarè (O Deus Todo Poderoso), que é também
conhecido como Òlórun significando literalmente o proprietário dos céus”. Logo, “o òrun é também o
domínio dos Òrìsà (divindades), que são reconhecidas como representantes de Olódùmarè; e dos
ancestrais” (ABIMBOLA, 2011, p. 2).
3
Em outra explicação importante assentada na/pela cosmovisão iorubá, “Òrìsànlá (deus da criação) era
responsável pela modelagem dos seres humanos, enquanto que Òrúnmilà, também conhecido como Ifá
(deus da divinação), foi encarregado com o uso da sabedoria para a interpretação do passado, presente e
futuro, assim como também para a “organização geral da terra” (ABIMBOLA, 2011, p.3).

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

poesia-oferenda a Orí. Ritual de poesia-oferenda à cabeça que traz o equilíbrio


necessário aos caminhos (Odu). “[...] Quando a água para /-aquietada na carne lívida
das lagoas/-dentro dela há muita vida” (SOUZA, 2011, p. 29).
Da natureza de Orí, neste trabalho, estabelecemos os fundamentos de uma crítica
literária em diálogo com aspectos da religiosidade afro-brasileira, evidenciamos como
os “saberes ancestrais femininos” estão assentados nos arquétipos de Ìyá Oxum
(MACHADO, 2020, p. 27). A par disso, da palavra grafada aos sentidos das águas com
seus elementos significantes (rio, mar, cachoeira, peixe, ventre etc.), a Ìyá Oxum se
torna uma “categoria sócio-espiritual” que aciono para ler e interpretar as poesias de
Mel Adún e Lívia Natália (OYĚWÙMÍ, 2016, p.2). Cabe dizer que o significado de Ìyá
está muito ligado “ao poder metafísico inerente que Ìyá” personificado por Oxum
(OYĚWÙMÍ, 2016, p. 29).
De acordo com Adilbênia Freire Machado (2020, p. 30), das águas de Ìyá Oxum
nascem e se fertilizam os “saberes ancestrais femininos”. Saberes ancestrais de Abébé
Omin que assim são tecidos e in(corpo)rados por “mulheres negras que bordam
experiências coletivas, irmanadas, ancestrais e encantadas desde com-partilhas de seus
dons, suas vivências, experiências”. Mulheres negras que, por meio da palavra-ritual,
assentam saberes ancestrais, saberes de terreiro e outros saberes historicamente
silenciados4.
Diante disso, a filósofa afro-brasileira afirma que “as mulheres negras carregam
em si o encantamento das sabedorias ancestrais”. Das águas ancestrais! (MACHADO,
2020, p. 30). O encantamento de Ìyá Oxum: “[...] onde dança uma mulher castanha e
bela/ uma luz dourada emana de seus limites/como de um ventre/ enquanto os peixes
bebem de seu encanto silencioso” (SOUZA, 2011, p.29). Da mesma maneira que nada
se faz sem a autorização de Orí, são as nossas mais velhas que nos ensinam a abrir os
caminhos louvando o Orí (cabeça). Aportando-se à definição, em uma dimensão
ritualística, Ori é potência da vida! Força ancestral que irradia e extravasa. É poder do
transe litúrgico em palavra5. Àgò! Osun Ora yèyé Ó!

4
Penso que esses saberes ancestrais e saberes de terreiro circulam e se assentam na crítica, teoria e ficção:
poesias, romances, ensaios, contos.
5
Como tomo a palavra? Por que palavra-transe? “No rito-nagô, a palavra é, assim, mais performativa do
que semântico-referencial”. Ou seja, “a palavra aqui não é puro signo linguístico com um significado”.
Numa dinâmica regida de axé e ancestralidade, “a palavra em nagô implica a unicidade corporal de uma
presença indissociável de seus gestos, dons e tons” com suas forças visíveis e invisíveis. É incorporada de
sentido. Como “o axé se transmite através do contato, da comunicação, do hálito, da fala e da interação
ritual”. O axé está inscrito na palavra. A ancestralidade negro-africana está assentada na palavra/na poesia
de mulheres negras. O axé se assenta na palavra. Palavra-transe. (SODRÉ, 2017, pp. 138-139).

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De Abébé Omin: saberes ancestrais femininos

“O leito do rio, quase seco, sussurra que já foi


correnteza”.
(Mel Adún, 2014, p. 149)

Primeiramente, é preciso apresentar por que é tão importante entender a questão


da ancestralidade ? Revela-se assim a importância dos itans, no Candomblé e na
resistência diaspórica negra, uma resistência na transmissão oral. De acordo com
Eduardo Oliveira (2007, p. 128), a ancestralidade era uma categoria explicativa ligada
ao fazer/ existir do povo de santo, “considerada o princípio fundamental de organização
dos cultos de candomblé”. Em seguida, torna-se “um termo em disputa [...] nos
movimentos negros organizados, nas religiões de matriz africana, na academia e até
mesmo nas políticas de governo” (OLIVEIRA, 2007, p. 141). Nesse sentido, “a
ancestralidade é um território sobre o qual se dão as trocas de experiências: signicas,
materiais, linguísticas” (OLIVEIRA, 2007, p. 141).
A partir desses pressupostos, Oliveira orienta que a ancestralidade nos permite
compreender a experiência e resistência negro-africana no Brasil. A ancestralidade se
converte em uma referência e fundamento da resistência de nossos antepassados. Em
linhas gerais, “a ancestralidade torna-se o signo da resistência afrodescendente” nas
escritas de mulheres negras diaspóricas (OLIVEIRA, 2007, p.3). É a palavra numa
“dinâmica regida pelo axé” em uma apreensão rítmica em “variadas modulações da
existência” (SODRÉ, 2017, p. 140, grifos do autor).
Diante disso, para falar de resistência, é necessário pensar em cosmovisões,
formas de ser e estar no mundo, marcas, memórias, as quais são assentadas nas poesias
de Lívia Natália e Mel Adún. No assentamento de uma percepção do prolongamento da
existência, dos ritos, dos valores, dos princípios, das práticas mítico-religiosas trazidas e
reinventadas na diáspora6. A potência de realização em que consiste o axé de Ìyá Oxum
(SODRÉ, 2017, p. 151, grifos do autor).
Por essa ótica, a ancestralidade negro-africana nos possibilita reconectar à
memória do corpo que, embora eivada de uma saudade da origem, torna-se território de

6
Em minha tese de doutorado intitulada Assentamentos de resistência: intelectuais negras do Brasil e
Caribe em insurgências epistêmicas (2020), busco tornar operatório o conceito de assentamento para ler,
interpretar e traduzir a produção epistêmica e de conhecimento de mulheres negras em diáspora. Os
assentamentos de resistência estão fortemente ligados à ancestralidade negro-africana e às histórias e aos
legados de resistência de las ancestras. Dessa forma, manifestam-se através dos saberes de ancestrais,
saberes de terreiros e saberes ancestrais femininos através das poesias, romances, contos e ensaios críticos
de autoria negra.

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tanto de ressemantização quanto de continuidade dessa lembrança que tem no passado a


garantia de sua continuidade. Desse modo, é necessário se perceber dentro do próprio
fluxo de continuidade dessa linhagem negra e que a “[...] travessia nos ‘negreiros’ nunca
foi uma viagem solitária” (OLIVEIRA, 2007, p. 103, grifos do autor).
Por outro lado, “a ancestralidade é uma categoria de relação, ligação, inclusão,
diversidade, unidade e encantamento” (OLIVEIRA, 2007, p. 145). Nesse caso, o
filósofo enfatiza que encantamento é uma das funções da ancestralidade. “O
encantamento é uma palavra “mágica e potente”. Encantar é a finalidade da
ancestralidade” (OLIVEIRA, 2007, p. 146). Encantar e “reencantar” tornam-se
caminhos de poesia para Ìyá Oxum (GARUBA, 2002). Caminhos trilhados por
mulheres negras em diáspora.
Desta maneira, podemos perceber como as referências e definições, em Oliveira
e Sodré, ajudam-nos a sentir a potência de Ìyá Oxum nas palavras de Paula Melissa
(Mel Adún): [...] “o leito do rio, quase seco, sussurra que já foi correnteza”. Nestas
liturgias rituais, enquanto segue com seus mistérios, as palavras de encantamento e
reencantamento são dirigidas a orixá das águas doces (OLIVEIRA, 2007, p. 146).
Sendo espaço de expressão do sagrado, sobre a escrita, Machado nos orienta que
os textos de Mel Adún e Lívia Natália são saberes tecidos, fundamentalmente, “por
mulheres negras que bordam suas experiências coletivas, irmanadas, ancestrais e
encantadas” (MACHADO, 2020, p.30). Nesse caso, suas escritas poéticas se
transformam nas tessituras ancestrais que assentam saberes trazidos/herdados por nossas
mais velhas. Saberes ancestrais e saberes de terreiro que podemos chamar de
assentamentos de resistência.
Ainda em menção ao texto de Oliveira, o olhar encantado da poeta negra
diaspórica constrói “um mundo encantado” (OLIVEIRA, 2007a, p. 146). “No território
do encantamento cabe tudo: o visível, o invisível”, o que sussurra e, ao mesmo tempo,
torna-se correnteza. Sem dúvida, nesse encantar e reencantar o mundo através da
palavra-sussurro, Mel Adún faz referência ao orixá feminino Oxum. Nesse caminho,
entre transe e muitos trânsitos, a ancestralidade negro-africana, por assim dizer,
manifesta-se através do espírito de intimidade com a natureza (OLIVEIRA, 2007, p.
149).
Para além da racionalidade ocidental, que privilegia o sentido da visão como
símbolo da inteligência, compreendendo como apartado de corpo e materialidade dos
sentidos, ao escutar a episteme mesmo se revela com o som de águas dos rios, revela-se,

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então, essa ligação com a natureza e ao que os orixás nos convidam a sentir o mundo, o
cosmos, em outra dimensão:

[...] É preciso sentir. É preciso aprender a lidar com o mundo de uma


outra maneira que não aquela que nos circunda habitualmente. É
preciso re-ver o mundo de ponta cabeça. Precisa-se desconstruir o
corpo que se tem e o corpo das representações que carregamos. É
preciso re-ver a cultura que lhe tece a pele; necessário mergulhar
naquilo que lhe é mais seu e despojar-se disso como uma serpente que
troca de pele, ou como a ave que troca de penas. Doravante viver sem
pele ou plumas. Ou melhor, viver com muitas. (OLIVEIRA, 2007, p.
103).

Nota-se, também, que a questão abordada, partindo das poesias de Mel Adún e
Lívia Natália, tem uma forma de escrita para reverenciar Oxum, a presença da
ancestralidade que carrega muitos orís (cabeças). São poesias que brotam da terra,
avançam o céu, penetram nas profundezas dos rios, cachoeiras e marés. Inauguram um
ciclo de palavras úmidas e únicas.

[...]
a minha alma escuta
lá longe,
do solo ancestral
um ijexá
(ADÚN, 2011, p. 153)

Ao toque do ijexá, os “retratos conceituais” se tecem e são encomendados como


epistemologias (OYĚWÙMÍ, 2016, p.6). São saberes “carregados de histórias, de
filosofias e sentidos”. Logo, os versos colaboram para o “fortalecimento da nossa
existência, que permite a resistência, a re-existência” e se assenta como uma práxis
negra (MACHADO, 2020, p. 32). A arte fornece “a metáfora visual” que carrega uma
mensagem ancestral de nossas mais velhas. Em todo o caso, é importante ressaltar que
os processos poéticos e criativos se banham e se fortalecem nos rios, lagos e em fontes
de águas doces:

Omin

Sou enchente
Das águas profundas,
Escuras
Poço sem fundo
Fatal para os desavisados
Farta para os que com cuidado

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Se agacham para pedir: “sua benção, minha mãe!”


Ora rio Yê yê o, rio Ora yê yê ô, yalodê
Sou por vezes maré vazante
Com vontade de tirar tudo de dentro.
Os desatentos pensam que vou secar...
Mas é só o sol descer
Que volto a encher
Enchente, profunda, escura
Fatal e farta
Sou água.
(ADÚN, 2008, p. 91, grifos meus).

Oxum Oyê

“Oxum é a Ìyá, a Fonte da vida” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.22). Por esse motivo, a
Ìyá fundamenta um dos saberes ancestrais femininos que “têm um axé [àṣẹ] especial
(poder da palavra)” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.10, grifos da autora). De forma singular,
Oxum é uma “categoria sócio-espiritual” de abertura para “uma mudança
epistemológica de uma cosmopercepção” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.2). Na produção de
conhecimento, mobilizamos os poderes e os valores espirituais da Ìyá Oxum.
Ao apontar a centralidade em Oxum, Oyěwùmí chama atenção para todos os
esforços espirituais dessa Ìyá. Oxum é a “Ìyá primordial” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.23)7.
Oxum é a nossa “Ìyá soberana” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.29). Com o título de Ialodê,
“ocupa a única posição aberta para fêmeas no sistema político de Ibadan”8
(OYĚWÙMÍ, 2016, p.32). Oxum domina os espaços públicos, sendo uma grande
referência ao povo, aglomerações, espaços coletivos, como multidões etc. Ela é a “Ìyá
do povo, Ìyá da humanidade” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.33).
Vale ressaltar que Oxum, a Ìyá primordial, é reconhecida como tendo três
profissões: divinadora, cabeleireira e vendedora de alimentos (OYĚWÙMÍ, 2016, p.24).
De acordo com Oyěwùmí, as Ìyá iorubás “valorizam sua autonomia e acreditam que é o
cúmulo do insulto para uma fêmea adulta ter que pedir a alguém dinheiro para comprar
coisas como sal e variedades; seria um desrespeito” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.24).
Dito de outra maneira, Oxum é uma divindade iorubana que representa a beleza,
a feminilidade, a fertilidade, o amor, a maternidade, a insubmissão feminina, dentre

7
De acordo com Ìyá Oyěwùmí (2016, pp.-23-24), os iorubás são conhecides por sua produção e trabalho
em prol de sua progenitura. A base do seu engajamento ocupacional é prover seus filhos. “[...] As Ìyá
iorubás valorizam sua autonomia e acreditam no seu poder fêmea. A preocupação de Ìyá era defender sua
prole” (Oyěwùmí, 2016, p.26).
8
Em Ibadan do século XIX, a criação de um título de chefia apenas de mulheres assinalou a emergente
consciência de gênero em um estado militarista.

140
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outros atributos o poder feminino em suma. Sua casa são as águas, como mostra Oxum
que “habita as águas doces, condição indispensável para a fertilidade da terra e
produção de seus frutos, donde decorre sua profunda ligação”, por exemplo, com “a
gestação” (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 23).
Oxum significando o poder feminino, também rende homenagem à cor amarela
que espelha riqueza, como Oxum que “é o amarelo-ouro, e gosta de adornos dourados.
Quando dança, espalha o ouro e espelha-se no seu abébé”, sendo seus movimentos
muito exultantes (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 24, grifos das autoras). Desse modo,
trazendo o culto dos orixás para o contexto brasileiro do Candomblé, Sueli Carneiro e
Cristiane Cury (2008, p. 102) afirmam que o Candomblé “nasce como um campo
possível de resistência e sobrevivência cultural”.
No Brasil, o Candomblé se constituiu originalmente numa comunidade
eminentemente feminina. “O passado de luta, a determinação e a resistência da mulher
negra marcam profundamente o povo de santo” (CARNEIRO & CURY, 2008, p.123).
As yalorixás “são as grandes depositárias e transmissoras dos conhecimentos ancestrais
herdados: seus mistérios e segredos, de sua magia”. (CARNEIRO & CURY, 2008,
p.124).
Carla Akotirene (2019, fonte eletrônica) aprofunda na resistência ao
epistemicidio que se vive no Brasil, ao afirmar que Oxum “faz parte da resistência dos
escravizados trazidos pelas águas, das conexões religiosas e da espiritualidade
cumpridoras da missão de fazermo-nos viver belas, autônomas”. Nessa perspectiva, a
pensadora negra defende que somos “[...] fortes suficientemente para carregar o ouro
não somente por causa do brilho”. Por isso, estamos longe das “estereotipias da
dondoca, frágil, superficial” 9.
Mais significativamente, Akotirene assevera que “a construção de poder
materno, por exemplo, remete a Osun” 10. “Osun vive na oralidade e na escrita dispostas
a traduzirem a beleza das mulheres negras, a sabedoria, a inteligência, a habilidade na
administração das riquezas e dentro das ciências sociais”. Oxum está distante “da
imagem da mãe chorona, parideira, contrária aos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres” (AKOTIRENE, 2019, fonte eletrônica).

9
Disponível em https://www.cartacapital.com.br/opiniao/osun-e-fundamento-epistemologico-um-
dialogo-com-oyeronke-oyewumi/acesso em 03 de outubro de 2020.
10
A grafia aqui se modifica de Oxum para Osun, porque respeita o pensamento de Carla Akotirene. Mas,
em todo o trabalho, preferimos grafar Oxum como aparece no texto traduzido de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí
(2016).

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Nas palavras de Eduardo Oliveira (2007, p. 60), “a história dos ancestrais


africanos permanece inscrita” e escrita nos “corpos dos afrodescendentes”. Por isso, é
preciso ler o texto do corpo e no corpo do texto para vislumbrar “a cosmovisão que dá
sentido à história dos africanos e afrodescendentes espalhados no planeta”. Segundo o
autor, a “ancestralidade é um modo de interpretar, produzir a realidade” (OLIVEIRA,
2007, p. 145).
Nesse universo mítico-simbólico, os textos de Lívia Natália e Paula Melissa
(Mel Adún) se convertem num território de assentamento de saberes ancestrais
femininos que circulam desde os terreiros de candomblé 11. Por outras lentes, Carla
Akoritene (2019) reflete que esses conhecimentos são utilizados como referência e
fundamento epistêmico na elaboração de tessituras poéticas: de “[...] dentro da água há
um espaço sempre preenchido / onde dança uma mulher castanha e bela” (SOUZA,
2011, p.29).
Ao enfocar nas poesias negras diaspóricas, o assentamento, portanto, relaciona-
se intimamente com a ancestralidade negro-africana e os saberes ancestrais femininos.
Assentar tem relação com a nossa resistência diaspórica. Os assentamentos são canais
diretos com os orixás e os ancestrais. É energia que circula e, ao mesmo tempo,
simultaneamente, força que pode ser fixada através da palavra-ritual para reverenciar
Oxum. Ao estabelecer os primeiros rituais e fundamentos epistêmicos, os poemas de
Lívia Natália e Paula Melissa (Mel Adún) assentam a possibilidade de uma leitura de
mundo a partir da matriz africana. Em larga medida, as vozes poéticas encadeiam e
desencadeiam uma rede de significações que nos conecta a uma memória ancestral em
diáspora12.

Agó, Omi mimọ!

“Escrever é, ao mesmo tempo, abébé e agadá”. (ADÚN,


2014, p. 167)

11
O assentamento possui uma relevância importante, uma vez que está ligado ao assentamento de orixá.
“O orixá individual é fixado numa pedra – o otá – que é guardada ao interior de um pote ou vasilha (ibá),
de louça ou barro, a depender do orixá” (RABELO, 2011, p. 23).
12
Diáspora se baseia na etimologia muito citada do termo do grego dia que significa “através” e speirein
que significa “semear” ou “Dispersão”. O termo é encontrado no livro do Deuteronômio 28: 25. Em outra
perspectiva, os primeiros usos do conceito diáspora africana e atlântica estão ligados aos chamados
Estudos Africanos surgidos também na década de 1960. Para além do sentido religioso, representa êxodo,
expatriação, deslocamentos e migração não voluntária Já, nos termos de Stuart Hall (2003), o termo
diáspora tem designado a dispersão forçada do povo africano pelo mundo atlântico.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Na mitologia yorubá, Oxum é um orixá feminino que “habita as águas doces,


condição indispensável para a fertilidade da terra e produção de seus frutos, donde
decorre sua profunda ligação”, por exemplo, com “a gestação”13 (CARNEIRO e CURY,
1993, p. 23). Entre os símbolos rituais dessa divindade feminina está o abébé que
simboliza a sua relação com a beleza, a faceirice, qualidade que são próprias das filhas
de Oxum.
Tal fato é particularmente interessante em outro ìtàn, produzido por uma cultura
oral que canta e dança com o corpo, experimenta o transe e da sua multiplicidade no
recontar. Perante isso, vemos, pois, que Oxum morava perto da lagoa, perto de ossá.
Todos os dias, Oxum se dirigia à lagoa e se banhava 14. Lá, ela polia suas pulseiras, seus
indés.
Cotidianamente, Oxum, muito vaidosa e cuidadosa com a sua beleza, caminhava
junto às margens, sobre as pedras brutas para alisar seus pés. Oxum ia à lagoa “brunir os
seus indés, e, na lagoa, lavava seu punhal, seu idá”15. Banhava o corpo arredondado,
lavava seus cabelos, lixava seus pés nas rochas ásperas de ossá. “Dentro da lagoa,
Oxum dançava suas danças e cuidava de suas ferramentas. [...] Quando as águas
estavam altas na lagoa, Oxum, o peixe, nadava para as bordas da ossá” (PRANDI, 2011,
p. 317).
Abébé é uma expressão yorubá que significa espelho de água. É um espelho-
leque de forma circular que simboliza Oxum (quando de latão e tendo uma estrela no
centro, batida ou vazada). O Abébé Omin integra um vasto campo lexical fecundado na
aquosa negrura de arquetípicos, orikis e saudações que desaguam um rio de palavras
para a mãe das águas doces. “No espelho-leque, vejo refletido um ato de comunicação
que adquire valor político-artístico, estético-político e conduz às nossas práticas sociais
no interior das comunidades onde, nós, mulheres negras estamos inseridas” (SALES,
2018, p. 34).
É interessante notar que Oxum, “a Ìyá primordial, como nos diz o odu Oseetura,
é honrada pelas pessoas que lhe são devotas não apenas porque ela lhes dá a prole, mas
também porque a divindade as provê” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.23). Esses sentimentos são
13
Extraídos do livro Mulher Negra, edição comemorativa, organizada pelo Geledés Instituto da Mulher
Negra, publicado originalmente em 1993. A série Cadernos Geledés consiste em um conjunto de
publicações resultado da ação política do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Nele, refiro-me ao artigo
intitulado O Poder Feminino no Culto aos Orixás.
14
A palavra itan (nome singular e plural) é o termo de origem iorubá utilizado para representar um
conjunto de todos os mitos, canções, histórias e outros. Os itan são transmitidos oralmente de geração a
geração.
15
Ver em Prandi, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 318-345.

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repetidos continuamente nos orikis de Oxum e nas canções dedicadas à divindade. Em


termos espirituais, a divindade Oxum preside o grupo de Ìyàmi ou àwọn Ìyá, uma
“sociedade secreta de mulheres poderosas cujo poder, pensa-se, deriva do papel
procriador” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.34).
Assim, podemos considerar que Oxum é o símbolo da Matripotência em que se
assentam “os poderes, espiritual e material, derivados do papel procriador de Ìyá”.
Oxum é o “ethos matripotente expressa o sistema de senioridade em que Ìyá é a sênior
venerada em relação a suas crias”. Nesse caso, como filhas de Oxum, Lívia e Mel Adún
cumprem esse ritual. Segundo Oyěwùmí, como todos os humanos têm uma Ìyá, todos
nascemos de uma Ìyá, ninguém é maior, mais antigo ou mais velho que Ìyá
(OYĚWÙMÍ, 2016, p.3).
Em outro itan, após desafiar o Rei Orixalá, denunciando as injustiças contra
todas as mulheres, “os brados de Osun com as suas maldições causaram um grande
alarido, uma confusa tamanha”. “Foi vencendo essas demandas que Oxum se tornou a
dona de todo ouro e de toda riqueza” (EVARISTO, 2013, fonte eletrônica). Deste modo,
Oxum protege todas as mulheres negras insubmissas e insurgentes. Águas doces
bem(dizem) nossas poesias e saberes.

Abebé Omin

Dança bruta e verdadeira no chão de minha alma,


prepara meu corpo para ser sua morada:
vomito quizilas e fico de novo límpida e casta.
Lava meus pés com seus cabelos de água,
lava meu ventre,
minhas mãos...
Se põe inteira ante mim
na proporção exata e necessária,
preenchendo tudo com seu castanho cristalino.
A mim tudo deu e tudo dará,
e entrego dourada e rubra minha cabeça a teus pés,
para que aqui caminhe,
habite,
deite
e viva,
agora e sempre,
dentro desta lagoa funda e branda,
neste rio que corre de mim a mim.
(SOUZA, 2011, p. 35)

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Sobre as autoras

Lívia Natália
Nascida em 25 de dezembro de 1979, baiana de Salvador, Lívia Natália ou Lívia
Natália Maria de Souza Santos, Omo òrìsà de Òsun e de Odé16, de fundamento Ketu,
além de ser poeta, possui mestrado (2005) e doutorado (2008) em Teorias e Crítica da
Literatura e da Cultura, pela Universidade Federal da Bahia, onde também é professora
adjunta de teoria literária (2010).
Para as mulheres negras, a relação com os orixás e os ancestrais está inscrita no
Odu (destino). Refiro-me à espiritualidade nosso ser e existir. Lívia Natália narra que
suas conexões com os Orixás eram profundas, pois, “desde a mais tenra idade”,
incorpora de Oxum. Mas, somente aos trinta anos, a escritora, finalmente, foi
consagrada ao Orixá, transformando suas percepções: “eixo do meu mundo se alterou
por completo” (SOUZA, 2018, p. 195). Esse evento permitiu re-existir e renascer.

Carrego comigo uma Djina, um Orunkò, um nome que me plantou


dentro de mim e este nome me diz que sou parte da coroa que adorna
e empodera a bela cabeça de Osun, minha Mãe. (SOUZA, 2018, p.
195). E este mesmo nome me promete a alegria. Como sabemos, o
nome do nosso Orixá é um segredo de vida, portanto, revelo apenas o
que este orunkò significa: “coroação da alegria” (SOUZA, 2018, p.
195, grifos da autora).

Nas antologias Água Negra e Correntezas e outros estudos marinhos, os versos


são feitos com muita doçura, elegância na proporção exata e necessária: [...] “Sou a
Água eternamente translúcida. Precipício denso de onde estes peixes bebem... um
silêncio delicado”, afirma a voz literária (SOUZA, 2015, p.31). Poemas feitos em
transe...! “Dança violenta e bela na crista de minha alma. Uma voz de água doce
sussurra” (SOUZA, 2011, p. 35).

Asé
Sou uma árvore de tronco grosso.
Minha raiz é forte,
nodosa,
originária,
betumosa como a noite.
[...]

16
Lívia Natália é uma das Egbomes do Ilê Axé Opô Aganjú, já tendo feito a sua obrigação de sete anos
(odu ejé). Segundo Mãe Stella de Oxossi, egbon “é o mais velho, mais maduro” (SANTOS, 2010, p. 172).
Ver o livro Meu tempo é agora.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Minha fé é negra,
e minha alma enegrece a terra
no ilá
que minha boca escapa.
(Lívia Natália, 2011, p.33. grifos meus)

Lívia Natália com sua poesia traz uma fala, que aqui estrategicamente
posicionada reafirma que as poesias negras diaspóricas se tornam territórios de
assentamento da produção epistêmica negra, como quando ela afirma (2018, p. 198):
“para nós, representar Orixás e outros seres encantados constitui uma política de
representação, não um artifício literário que constitui um universo representacional
fantástico”.

Mel Adún
Filha de Oxum, jornalista, fotógrafa, tradutora, contista e poeta, Mel Adún é o
pseudônimo da intelectual negra diaspórica Paula Melissa Alves. Nascida em
Washington D.C, nos Estados Unidos, em 1978, em razão do exílio dos pais que fugiam
da ditadura militar, veio para o Brasil ainda criança em 1984. Em 1998, já adulta,
regressa aos EUA para estudar, retornando ao Brasil em 2001, quando se naturaliza
brasileira, fixando residência em Salvador (BA).
Percorrendo outros meandros de sua trajetória, Mel Adún participou de várias
edições dos Cadernos Negros e faz parte do Coletivo Literário Ogum´s Toques Negros.
É idealizadora do web TV Tobossis Virando a Mesa, um programa que aborda questões
relacionadas ao gênero e à raça. Foi uma das diretoras do Didá Associação Cultural
Educativa de Mulheres fundada sem fins lucrativos em 1993. Ativista do Movimento
Negro e feminista negra, “acredita que a militância como uma forma de ser, visível na
postura, na escrita, no jeito de vestir, de agir e de discursar” (ADÚN, 2016, p. 69).
Quanto à tematização dos saberes ancestrais, revelando os muitos mistérios que
nos envolvem, Mel Adún compartilha: “[...] venho de uma família de Candomblé da
Bahia e eu não teria como me desvincular disso ou me separar do meu ativismo mesmo
se quiser” (ADÚN, 2016, p. 70). Nesse sentido, a escritora negra reconhece que não
teve escolha. A ancestralidade nos ensina e nos prepara aberturas. É questão de caminho
(Odu)!
De abébé nas mãos, Mel Adún (2011, p. 10) acredita que “toda vez uma mulher
negra fala por si mesma em uma obra” é um gesto de empoderamento de outras
mulheres. É uma escrita negra feminina que traz consigo e compartilha a experiência da

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

coletividade feita na comunhão de nossos afetos, crenças, memórias e histórias


individuais, assim de nossas “dores dolorosas” que cicatrizam no molhado. Essa escrita
que dá “voz a milhares de outras mulheres, negras ou não”. Nos versos, o eu poético
funde-se e confunde-se:

Aguada

Minhas dores dolorosas morrem comigo.


Sou das águas e a cicatrização no molhado é mais difícil.
Por isso vide bula.
Nesse caso é melhor não agitar antes de usar.
(ADÚN, 2011, p.151)

Guiada pelas águas de seu Ori, Mel Adún costuma afirmar que “a sua escrita é
negra porque vem de uma realidade negra” (ADÚN, 2016, p. 69). “Eu escrevo poesia
que tem muito a ver com a realidade da mulher negra” (ADÚN, 2016, p. 72). Por isso, a
intelectual negra transfigura poeticamente suas experiências enquanto mulher negra em
diáspora. A escrita abébé “das águas profundas e escuras” que pede a benção e faz a
saudação a Omin: “[...] Ora rio Yê yê o, rio Ora yê yê ô, yalodê” (ADÚN, 2008, p. 91).
Dessa maneira, as águas se tornam um significante ancestral que integra as
poesias de Mel Adún. “É a espiritualidade entranhada em nosso viver/ser”
(MACHADO, 2020, p. 33). As águas como símbolos do feminino, da vida, da
maternidade e da fertilidade, reencenam na poesia Irê!: “[...] Nas águas de Oxum / sou
peixe de barriga cheia/ atingida pela flecha certeira/ Trago no ventre o poder de gerar,
explodirei água explodirei /sorte Ominirê” (ADÚN, 2012, fonte eletrônica). “O poder
procriar é considerado um presente, um dom espiritual” (OYĚWÙMÍ, 2016, p.47).
Sob outra forma, a filosofia africana, portanto, territorializa a expressão sensível
na poesia de Mel Adún que anuncia outros significantes importantes de revelação nos
saberes femininos diaspóricos, presentes em Oxum e no Candomblé, assentados
também na resistência da poesia negra. Os princípios cosmológicos, ancestrais e a
dinâmica ritualística. “O transe mítico” (SODRÉ, 2017, pp. 122-123). Podemos dar
alguns exemplos como o prolongamento entre o que é visível e o que é invisível, as
simbologias no plano de uma espiritualidade, como também fundamentos epistêmicos
que são princípios coletivos de bem viver juntos, ou seja, princípios de uma ética, de um
caráter.
Estes fundamentos epistêmicos podem ser reconhecidos na conexão mítico-
religiosa e ancestral que se estabelece através da identificação com os arquétipos do

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

orixá feminino Oxum: o peixe símbolo da vida, da fecundidade, sedutora, fatal e


acolhedora. “Enchente, profunda, escura /Fatal e farta / Sou água” (ADÚN, 2008, p.
91). Na escrita feminina negra diaspórica “vigora a atmosfera da ancestralidade”
(SODRÉ, 2017, p. 115).
Ao tomar “águas de Oxum” como símbolo da vida, maternidade e fertilidade,
através da voz poética, Mel assenta “nossos saberes, nossos valores, nossos sentidos”
(MACHADO, 2020, p. 31). Saberes epistêmicos, princípios, sentidos tecidos pela
ancestralidade negro-africana que permitem o “fortalecimento da nossa existência”
(MACHADO, 2020, p.32). Sem ser exaustivo, de acordo com Machado, a “força das
mulheres africanas, das mulheres negras, perpassa o tempo e o espaço, uma força
presente no cotidiano, no nosso falar, dançar, cantar, ouvir, fazer, em nosso paladar, nas
religiões de matriz africana, no nosso modo de acolher, de ser” (MACHADO, 2020,
p.42).
Segundo Machado, “a natureza é a ancestralidade em nós, o feminino criando,
possibilitando a vida” (MACHADO, 2020, p. 40). Oxum representa a natureza e os
saberes ancestrais femininos. Oxum é, portanto, a nossa “yalodê” (mais importante das
mulheres, em iorubá) que controla as marés, os refluxos e influxos dos rios do mundo,
mas, especialmente, no estado de Oshogbo:

Vou-me embora pra Oshogbo


Lá sou filha de rainha
Me deitarei só com quem eu quiser
Só se for vontade minha
Vou-me embora pra Oshogbo
Vou-me embora pra Oshogbo
lá vou ser feliz
não terei que me relacionar
com homens de qualquer lugar
espanha, estados unidos, paris
Só se for vontade minha
[...]
(ADÙN, 2014, p. 154, grifos meus)

Oshogbo é a capital do estado de Òşún da Nigéria e localiza-se entre Ibòkun,


Ikirun, Ede e Akodá. Em Oshogbo, acontece, anualmente, um Festival de Oxum
(Festival sagrado de Oxum) onde são feitas oferendas para reverenciar essa Rainha 17.
Como representa a beleza e a riqueza, as celebrações são sempre com danças, presentes,

17
Mel Adún dialoga de maneira intertextual com a poesia Vou-me Embora pra Pasárgada do poeta
modernista Manuel Bandeira.

148
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

joias e flores etc. No Brasil, em ritmo de ijexá, as festas para Oxum também se
destacam pela devoção e rituais.
De forma amorosa, é um momento de renovação e fortalecimento com os laços
ancestrais através da reconexão com a divindade das águas doces. Segundo Carla
Akoritene, em Osogbo e nas demais cidades, “Osun encontra-se cultuada como
guerreira diplomática”. Desse modo, instala-se “a soberania iyalódè alimenta com água
o mundo nos seus fluxos de conhecimentos” (AKOTIRENE, 2019, fonte eletrônica).
Associado a isso, a voz poética lembra que Oxum é uma orixá que defende
distintas pautas relacionadas ao feminino. Em Vou-me embora pra Oshogbo, o sujeito
lírico explora questões afetivas, relações de gênero, emancipação e empoderamento
coletivo. Lembrando muitos orikis e itan que aprendi, a poeta negra diaspórica enfatiza
que Oxum se torna uma das porta-vozes contra o patriarcado, o sexismo e a dominação
masculina etc.
Lá sou filha de rainha
Me deitarei só com quem eu quiser
Só se for vontade minha
[...]
lá vou ser feliz
não terei que me relacionar
com homens de qualquer lugar
espanha, estados unidos, paris
Só se for vontade minha
(ADÙN, 2014, p. 154, grifos meus)

Em Vou-me embora pra Oshogbo, o sujeito poético celebra a sua liberdade de


escolha para sentir e amar. Oxum representa o poder feminino através do arquétipo das
mulheres insubmissas e corajosas: donas de seu corpo, de seu desejo, de suas vontades.
Das terras de Ijexá, Oxum transborda suas forças espirituais. Águas de um Rio que se
expandem e tomam muitos contornos, que se transformam, confundem-se e ampliam-se,
desaguando em insurgências negras epistêmicas. As águas aparentemente calmas que se
levantam sinuosas: um dia em passos miúdos, outros insubmissos.
Em represália aos homens, logo que o mundo foi criado, Oxum vingou-se dos
orixás masculinos, obrigando-os a buscar ajuda com Olodumare. Quando Olodumare
soube que Oxum havia sido excluída das reuniões, da divisão dos cargos e da tomada de
decisões, aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres. Como Oxum não se
conforma com a situação, condenou todas as mulheres à esterilidade. Dessa forma,
assim que pode participar do processo decisório e ser ouvida, Oxum com seu poder de
fecundidade permitiu que as mulheres voltassem a gerar filhos.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Para Machado, “o feminino está em tudo, em todos os lugares, ele é a


possibilidade de criar, de nascer, é escuta, sensibilidade, motor da existência, inclusive,
do próprio mundo” regido por Oxum. “O feminino é a energia do encantamento” em
Oshogbo e na diáspora. O feminino negro das Águas Ìyá Oxum “é o que dá vida,
permite a vida...”. “Implicação, resistência, cuidado, encanto” (MACHADO, 2020, p.
44).
De maneira mais significativa, esses sentimentos e sentidos são repetidos
continuamente nos orikis, itan de Oxum. Regida por essa força mítico-ritual, com
passos miúdos e certeiros, o feminino negro dourado que dança e marca graciosamente
o significado de cada verso ao ritmo do ijexá, pois sabe o que espera evocar em sua
poesia:

ORISA DIDÊ

Arranca as percatas de seu cavalo


e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto
e,
repetido,
saúda a terra com a majestade de sua presença.

Dança sem a calma das horas,


pois seus braços se erguem para fora do tempo.

Caminha com sua carne de mito


e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério. (SOUZA, 2015, p. 41)

Na escrita negra diaspórica, Oxum é poder e autoridade das fêmeas. Nelas, as


águas de Ìyá Oxum serão sempre abundantes. A poesia Orisá Didé faz referência ao
momento em que, no Candomblé, a divindade das águas se manifesta e o orísá toma
posse de seu “cavalo”, do corpo da filha Omo-orisá de Oxum. O orí de Ìyá de Oxum.
Assim, menciona a Ialodê, “Ìyá da humanidade”, de mulheres poderosas, odu de Oxum,
a Ìyá espiritual que nutre a vida. “Ìyá suprema em suas canções, orações, rituais”, itan e
orikis (OYĚWÙMÍ, 2016, p.45).

Epistemologias negras das Águas Ìyá Oxum

Minha fé é negra
e minha alma enegrece a terra
no ilá
que de minha boca escapa.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Sou uma árvore negra de raiz nodosa.


Sou um rio de profundidade limosa e calma.
Sou a seta e seu alcance antes do grito.
E mais o fogo, o sal das águas, a tempestade
e o ferro das armas.
E ainda luto em horas de sol obtuso
nas encruzilhadas
(SOUZA, 2011, p. 33, grifos meus)

É relevante notar, finalmente, que o gerar vida depende da gestão/gestação da


força de potência, em Yoruba, Axé. No poema-devoção, Abébé omin é o elemento
religioso que alimenta a fé e axé nos orixás e, especial, na Orísá Osun18. Nele, cultuam-
se outras formas de viver em sociedade, distanciadas dos padrões hegemônicos
orientados por uma cultura ocidental judaico-cristã.
Por outro lado, situam-se na perspectiva da cosmovisão africana de valores e
crenças outras, conforme propõe Eduardo Oliveira (2003). “Encantamento Ancestral!”
(MACHADO, 2020, p.35). Nos versos, “o encantamento por nossa ancestralidade
africana nos leva a seguirmos numa luta engajada por nosso direito à vida, à existência
em sua totalidade” (MACHADO, 2020, p.36). A relação entre ancestralidade e
espiritualidade é de corpo inteiro.
Não obstante, no poema Abebé Omin, o verbo dançar simboliza ação dos versos
feitos em transe. Imortalizam o momento da chegada do orísá e o transe da filha de
Oxum que desce no corpo fictício da voz poética: “prepara meu corpo para ser sua
morada” e entrega “dourada e rubra minha cabeça a teus pés”. Movimento de entrega
total à energia ancestral: “[...] para que aqui caminhe, habite, deite e viva, agora e
sempre” (SOUZA, 2011, p. 35).
Dança e movimento que se faz também com o leque ritual dourado nas mãos. A
dança de Osun lembra “o comportamento de uma mulher vaidosa e sedutora que vai ao
rio se banhar, enfeita-se com colares, agita os braços para fazer tilintar seus braceletes,
abana-se graciosamente e contempla-se com satisfação” em um abébé (VERGER, 1997,
p. 70). Com seus encantos, Oxum é capaz de gerar a vida ou secar tudo, da terra ao
ventre. Ela é a grande feiticeira. Ser feiticeira também embute uma relação de poder que
desperta, ao mesmo tempo, prazer e medo, pois confunde, seduz e encanta os homens.

18
Deusa do amor, terceira esposa de Xangô, quando vivia na terra, dizem ter sido sua preferida. Muito
vaidosa e de temperamento voluptuoso, Oxum usou de todas as artimanhas para prendê-lo, tanto que, por
meio de sutilezas, fez a sua rival, Obá, cortar a orelha e cozinhá-la, dizendo-lhe que com isso o agradaria.
Sua cor é o amarelo-ouro, e gosta de adornos dourados.

151
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Por outro lado, a ira de Oxum “pode provocar o desencadeamento de contrários a suas
qualidades” (CARNEIRO e CURY, 1993, p. 23).

Oriki para Osun


O rio se cala,
mas há quem não saiba
que é ele fundo.
(SOUZA, 2011, p.73)

Dados os poderes místicos que lhe estão associados, os versos de Lívia Natália
possuem uma potência de múltiplos afetos que se espraiam no aquoso e liquefeito
terreno/território de emoções, sensações e devoções a orísá Oxum. É extraordinária a
qualidade de sua linguagem que desce às profundidades abissais dos rios, mares e
cachoeiras, traz à superfície a densidade de seus segredos sempre férteis em
significados. “Oxum, a Ìyá primordial, como nos diz o odu Oseetura” (OYĚWÙMÍ,
2016, p.3). Assim, gota a gota... Eu bebo e encanto-me com as palavras-feiticeiras. No
movimento de vidas-moléculas, vidas-correntezas, ao mesmo tempo... Neles, o eu lírico
é mulher e menina, deusa-rainha, mãe e filha, donas de todos os dengos, segurando o
abébé.
Ainda nesse sentido, cabe dizer que Oxum é vida pulsante nas poesias de
escritoras negras brasileiras. Poesia negra como ilá (grito) de orixá. Poesia negra feita
de abébé nas mãos. Nos versos de Mel Adún e Lívia Natália, os rios de águas doces,
negras, lodosas e profundas nunca se calam (SALES, 2018, p. 48). Águas de variadas
temperaturas que reviram tudo: passado, presente e futuro numa dimensão de tempo não
linear: ora são águas calmas e pacientes... Ora são correntes oceânicas insurgentes,
assim como são as mulheres negras que escrevem. Rios que também escondem
correntezas perigosas e segredos milenares. “[...] E mais o fogo, o sal das águas, a
tempestade” (SOUZA, 2011, p. 33).
Através do espelho-leque, reexistimos belas, sedutoras, vaidosas, bem como
produzimos conhecimento de outro lugar. No leque dourado de Oxum que o eu-lírico
segura com devoção, podemos exaltar os saberes femininos ancestrais, reverenciar as
nossas antepassadas, professar a nossa fé nos orixás e compartilhar as nuances de nossa
condição humana e espiritual enquanto mulheres negras. Ademais, aos rituais em
devoção a essa divindade das águas doces, intentamos, assim, assentar outras formas de
pensamento.

152
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Por meio de diferentes dinâmicas, são territórios de conhecimento assentados


por saberes ancestrais femininos do orixá feminino dos rios, e, particularmente, do rio
Oxum em Osogbo. Com Oxum, celebramos as Ìyá com seus poderes extraordinários. O
axé que é transmitido, potencializado, compartilhado e multiplicado através das Ìyá. Em
Oseetura, odu de Oxum, os rios não se calam, “mas há quem não saiba que ele é fundo”
(SOUZA, 2011, p. 73).
Como um ilá (grito/choro) de Ìyá Oxum, as poesias negras femininas de Mel e
Lívia se tornam um território simbólico de assentamento do sagrado, dos saberes
ancestrais femininos, de itan, orikis e louvações ao Ori (cabeça). Das nossas feitiçarias e
“assentamentos de resistência banhados nas/pelas águas Ìyá Oxum” (SALES, 2020). De
águas criando correntezas nas fendas das rochas do pensamento ocidental e
racionalizante. De expressão dessa fé negra que sobreviveu ao cativeiro colonial e se
ressignificou na diáspora africana.

Referências

ABIMBOLA, Wande. A concepção iorubá da personalidade humana. Centre National


de La Recherche Scientifique, Paris, Tradução Luiz L. Marin: 2011 [1981].

ADÚN, Guellwaar; ADÚN, Mel; RATTS, Alex (Org.). Ogum’s toques negros:
coletânea poética. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2014.

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negra. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2011.

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ADÚN, Mel. Cadernos Negros, volume 37: poemas afro-brasileiros/organizadores


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Recebido em: 04/10/2020


Aceito em: 07/10/2020

155
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

ASPECTOS BÁSICOS SOBRE O SUJEITO INDIVIDUAL E


A COLETIVIDADE NAS RELIGIÕES DE MATRIZES
AFRICANAS

Joelcio Jackson Lima Silva1


Thayná da Silva Felix2
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.31306

Resumo
Este trabalho apresenta os resultados da síntese entre as vivências e a pesquisa
bibliográfica desenvolvida durante o processo de ensino-aprendizagem proporcionado
pela disciplina Antropologia, que consta no Projeto Pedagógico (2007) do Curso de
Serviço Social, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). O objetivo deste artigo
descritivo é situar de forma generalizada os aspectos básicos e a configuração do sujeito
individual e da coletividade comumente observados nas religiões de matrizes africanas,
em específico as que se organizam de acordo com a ancestralidade do Povo Nagô/Iorubá.
Para isso, foi necessário sistematizá-lo em dois itens: 1) situando quem é o Povo Nagô e
os seus princípios na formação das religiões de matrizes africanas; 2) situando, de fato,
os aspectos básicos e necessários para entender os princípios de indivíduo e de
coletividade herdados por religiões de matrizes africanas.

Palavras-chave: Religiões de Matrizes Africanas. Individualidade. Coletividade.


Nagô/Iorubá.

ASPECTOS BÁSICOS SOBRE EL SUJETO INDIVIDUAL


Y LA COLECTIVIDAD EN LAS RELIGIONES DE
MATRICES AFRICANAS

Resumen
Este trabajo presenta los resultados de la síntesis entre las experiencias y la investigación
bibliográfica desarrollada durante el proceso de enseñanza-aprendizaje brindado por la
disciplina Antropología, la cual forma parte del Proyecto Pedagógico (2007) del Curso
de Servicio Social, en la Universidad Federal de Alagoas (Ufal). El objetivo de este
artículo descriptivo es generalizar los aspectos básicos y la configuración del sujeto
individual y de la colectividad comúnmente observada en las religiones de matrices
africanas, específicamente aquellas que se organizan según la ascendencia del Pueblo
Nago/Yoruba. Para eso, fue necesario sistematizarlo en dos ítems: 1) ubicar quien es el
Pueblo Nago y sus principios en la formación de religiones de base africana; 2) situar, de
hecho, los aspectos básicos y necesarios para comprender los principios de individual y
colectividad heredados por las religiones de origen africano.

Palabras clave: Religiones de matriz africana. Individualidad; Colectividad


Nago/Yoruba.
1
Universidade Federal de Alagoas. Email: joelcio.silva@fsso.ufal.br
2
Universidade Federal de Alagoas. Email: thayfxx@gmail.com

156
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Introdução

As religiões de matrizes africanas são as diversas formas de cultos e celebrações


que ocorrem no Brasil decorrentes dos processos a que foram submetidos os/as
africanos/as escravizados/as sequestrados/as para a América Portuguesa e dos múltiplos
encontros entre povos e etnias distintos que se deram nesse contexto e nessas condições
(VASCONCELOS, 2010). Destacamos, então, que, em conformidade com esse processo
de desumanização, as religiões de matrizes africanas foram e continuam sendo alvo do
ódio e do preconceito enraizado na sociedade com o processo de alienação de si e para
com o coletivo, o que anteriormente fez com que os rituais fossem possíveis apenas de
maneira secreta e travestida de catolicismo.
Essas religiões sofreram alterações no decorrer da história, sendo uma das mais
preocupantes a introdução dos mecanismos mercadológicos3 advindos dos colonizadores,
que tornaram essa religiosidade um produto exótico a ser comercializado, caminhando,
dessa maneira, para um processo de perda da sua própria essência. Porém, é no processo
contínuo de tentar manter essas religiões norteadas pelos princípios éticos africanos, e
contra a lógica mercadológica da sociedade moderna, que elas vêm se constituindo como
uma forma de resistência, conceito aqui entendido segundo a definição de Bosi (1996, p.
11), para quem

resistência é um conceito originariamente ético e não estético. O seu


sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra
força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia.

A justificativa para a utilização do termo “religiões de matrizes africanas”, no


plural, advém da existência de múltiplas identidades coletivas ou metaétnicas que foram
atribuídas aos/às negros/as africanos/as escravizados/as de acordo com interesses
coloniais escravagistas, que substituíram as reais identificações étnicas dos grupos por
identidades baseadas nas semelhanças geralmente territoriais, linguísticas ou políticas.
Essas identidades perpassam a organização das religiões de matrizes africanas ou afro-
brasileiras4, dando origem a um conceito chamado “nação”, que, embora tenha sido criado

3
Essas introduções dos mecanismos mercadológicos também entram em consonância com um processo de
folclorização das diversas culturas africanas.
4
Termo utilizado para não deixarmos velado que este foi um processo cultural e histórico, que não garantiu
a preservação de todos os elementos étnicos originários do continente africano, aculturando-se, inclusive,
a religiosidade dos/as nativos/as e dos colonizadores.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

pelos colonizadores como uma forma cruel de apagamento das diversas identidades
étnicas, é atualmente uma questão que possibilita a análise das diferentes configurações
de cultos afro-brasileiros. A utilização do termo também tem o intuito de entendermos a
África como o tão grandioso continente que se constitui, e não cairmos no erro que Braga
(1988) bem aponta:

De maneira geral, fala-se do continente africano com tanta falta de


cerimônia, pelo menos com pouco cuidado epistemológico, usando de
uma estranha lógica que considera uma parte, um pedaço, às vezes
minúsculo, representativo de um mundo ainda não de todo conhecido e
pouco estudado. Em alguns textos e em alguns raciocínios, a África
mais parece uma espécie de viela, uma rua estreita, um beco sem saída.
Esta deformação, que às vezes, alcança os umbrais acadêmicos e neles
faz morada, ocorre quase sempre em razão das digressões
interpretativas desatentas que deixam de considerar, pela necessidade
de síntese, a dimensão continental africana, território do talvez mais
fantástico caldeirão cultural em todo o mundo (BRAGA, 1988, p. 49).

Então, é partindo dessa atribuição identitária que este artigo descritivo se propõe
a situar de forma generalizada os aspectos básicos e a configuração do sujeito individual
e da coletividade comumente observados nas religiões de matrizes africanas, em
específico as que se organizam de acordo com a ancestralidade do Povo Nagô/Iorubá 5,
proveniente das regiões falantes do Iorubá, “que hoje compõem a Nigéria, o Benin e Togo
(iorubalândia)” (ARAÚJO, 2013, p. 6). Porém, isso não significa que tais aspectos
estejam limitados aos cultos de matriz Nagô, podendo, inclusive, estar ausentes desses
cultos, pois as religiões de matrizes africanas, na sua constituição e resistência, vêm
aglutinando diversos saberes, apresentando, na atualidade, uma vasta pluralidade.
Este artigo apresenta os resultados da síntese entre as vivências e a pesquisa
bibliográfica desenvolvida durante o processo de ensino-aprendizagem proporcionado
pela disciplina de Antropologia, que consta no Projeto Pedagógico (2007) do Curso de
Serviço Social, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). A partir da exposição em aula
do documentário 1912: Quebra de Xangô6, produzido pelo Prof. Dr. Siloé Soares de

5
A escolha por realizar esta análise a partir do grupo Nagô/Iorubá não tem o intuito de seguir o que foi
nomeado de “purismo Nagô”, mas tem, sim, o intuito de entender as características específicas de um grupo
específico, que se manifesta de forma heterogênea nas configurações atuais das religiões de matrizes
africanas. Seguimos, assim, o princípio de que essas religiões não são apenas parte da cultura negra, mas
são constituídas por culturas diversas (inclusive, dentro de uma diversidade africana), que passaram por um
processo de sincretismo e transculturação.
6
O documentário apresenta a história dos ataques e perseguições sofridas pelos/as adeptos/as das religiões
de matrizes africanas, legalmente iniciadas no dia 2 de fevereiro de 1912, em Maceió-AL, como resultado
da intolerância religiosa desenvolvida pela política do Estado, episódio histórico conhecido como Quebra
de Xangô.

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Amorim, docente da referida disciplina, planejou-se como atividade avaliativa


desenvolver um artigo com base em pesquisa bibliográfica sobre uma temática de
interesse comum às duplas de discentes. Dessa forma, esta temática foi escolhida por se
tratar de um assunto referente às religiões das quais os autores são adeptos. Para isso,
sistematizou-se metodologicamente este artigo em dois itens: 1) situando quem é o Povo
Nagô e os seus princípios na formação das religiões de matrizes africanas; 2) situando, de
fato, os aspectos básicos e necessários para entender os princípios de indivíduo e de
coletividade herdados pelas religiões de matrizes africanas.

1 Povo Nagô e a sua Contribuição Cultural

Foram designados pelos colonizadores como Nagô, ou Anagô, os/as negros/as


africanos/as escravizados/as que tinham em comum o idioma Iorubá (datado como
existente há pelo menos 6 mil anos), em sua maioria, originários do sudoeste da Nigéria.
Sendo assim, Nagô é uma identidade etnolinguística designada pelo tráfico negreiro,
considerando o idioma como fator de identificação de um povo, independente de seus
costumes e segmentos diferenciados. O tráfico do Povo Nagô foi registrado durante todo
o período de tráfico transatlântico para a América, principalmente durante o século XVI
e o início do XIX. No Brasil, o Povo Nagô foi o último a se estabelecer e ficou centrado,
em sua maioria, em Salvador (BA) e Recife (PE).
Segundo Santos (2008), os grupos da iorubalândia (sul e centro do Daomé e
sudoeste da Nigéria) são conhecidos no Brasil pelo nome Nagô, aplicado coletivamente
aos grupos falantes do Iorubá, que têm territórios próximos e que, por regionalização,
consideram cultural e mitologicamente Oduduwa de Ilé Ifé7 como seu progenitor. Ainda
segundo a autora:

Os Ketu, Sabe, Oyo, Egbá, Egbado, Ijesa, Ijebu [que são grupos étnicos
Nagô/Iorubá] importaram para o Brasil seus costumes, suas estruturas
hierárquicas, seus conceitos filosóficos e estéticos, sua língua, sua
música, sua literatura oral e mitológica. E, sobretudo, trouxeram para o
Brasil sua Religião (SANTOS, 2008, p. 29).

7
A cidade de Ilê-Ifé (Ilé-Ifè) é considerada pelos yorùbá o lugar de origem de seus primeiros grupos. lfé é
o berço de toda religião tradicional yorùbá (a religião dos Òrìsà, o Candomblé do Brasil), um lugar sagrado,
onde os deuses ali chegaram, criaram e povoaram o mundo e depois ensinaram aos mortais como os
cultuarem, nos primórdios da civilização. Ilê-Ifé é o ‘Berço da Terra’” (BARRETTI FILHO, 1984).

159
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A religiosidade como uma das influências do Povo Nagô, que hoje é organizada e
agrupada em religiões de matrizes africanas ou religiões afro-brasileiras, é facilmente
identificada por características comuns que vão além da sua configuração litúrgica/ritual,
ultrapassando principalmente o âmbito filosófico. Dado o processo histórico,

[c]om a abolição da escravatura, em 1888, houve uma proliferação de


terreiros em Salvador e em cidades do Recôncavo Baiano [...]. Mesmo
libertos, os negros ainda não podiam exercer uma cidadania real.
Continuavam às margens da sociedade. Nesse contexto, os terreiros de
candomblé passaram a se constituírem [sic] em espaços de construção
de identidade cultural negra, que se afirmava remetendo ao passado
africano. Os rituais, naquela época, já eram realizados por descendentes
de africanos que passaram a ter a África como um ideal. Era ao antigo
continente que eles recorreriam para a constituição da africanidade,
assim como para reforçar e dar autenticidade a seus conhecimentos
rituais. Nesse processo, os terreiros de tradição nagô ganharam uma
posição privilegiada, se comparados aos terreiros de tradição jeje e
angola. Talvez esse privilégio se devesse a uma ideia de África
relacionada à crescente visibilidade da identidade nagô (MORAIS,
2010, p. 29).

As religiões de matriz africana Nagô geralmente se consideram religiões


monoteístas substanciais8, em que existe um deus criador, identificado como Olodumarè
ou Olorum9 (senhor ou senhora10 do Orum, mundo espiritual ou mundo das energias),
também existindo os orixás, que são energias da natureza divinizadas e com
características do antropoformismo 11, que, na mitologia, são criadas por Olorum e às
quais os/as adeptos/as prestam cultos como uma forma de conexão com sua partícula
energética ancestral e divina; outro ponto em comum é o culto aos ancestrais, sendo eles
consanguíneos, energéticos (o próprio culto aos orixás) ou sociais.
Para algumas pessoas, os orixás são considerados antepassados que viveram na
Terra e foram divinizados. O culto aos orixás na África Iorubana é dividido por cidades
que cultuam apenas um orixá ou um pequeno grupo de orixás, de quem a comunidade
considera-se descendente, o que se configura de forma diferente no Brasil devido ao

8
Devido à vasta quantidade de relatos e discussões nas quais adeptos afirmaram o entendimento da criação
do mundo e dos orixás a partir de Olorum, identificou-se que, em sua maioria, as religiões de matriz africana
Nagô se consideram como monoteísta substancial, que seria a crença em inúmeros deuses diferentes,
provenientes de uma substância subjacente.
9
Olorum é utilizado principalmente quando utilizamos a comunicação oral, pois ao falar o nome Olodumarè
os adeptos das religiões devem fazer reverência a este.
10
É mais comum a identificação de Olodumarè como uma divindade masculina, porém, existem afirmações
advindas das religiões, que afirmam não ter ao certo um gênero a ser tratado.
11
O antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a
animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral.

160
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processo de desumanização e também à constituição da tradição fundamentada na


oralidade e na hereditariedade, surgindo a necessidade da transculturação dos cultos para
que eles continuassem existindo, o que foi consolidado em diversas religiões afro-
brasileiras, por exemplo, o candomblé. Outras formas mais conhecidas de culto aos
ancestrais, que também são herança do Povo Nagô, são o Lese-Égún, ou culto a égun, que
caracteriza, de fato, o culto aos ancestrais consanguíneos, e o culto às sociedades de
Gèlèdé e Eleekó, que simbolizam aspectos coletivos do poder ancestral feminino
(SANTOS, 2008).
Para as religiões de matrizes africanas com a influência Nagô, o “terreiro” —
expressão que designa o espaço sagrado dos orixás, o espaço das festividades, cozinha e
demais cômodos — é comumente entendido como o espaço onde vive, transitória ou
fixamente, uma comunidade e suas representações materiais e simbólicas do sagrado no
Ayê12 (plano material), que se liga ao Orum (plano espiritual e divino), através do orixá
Exu, que é o responsável pela comunicação entre os dois planos. O terreiro também é o
espaço onde são desenvolvidas as diversas atividades, como canto, dança, arte, cozinha,
ensinamentos orais dos valores, das histórias e demais instruções, e é por meio desse
sistema que a comunidade cria vínculos socioculturais que ultrapassam a religiosidade,
estabelecendo uma reconexão com a ancestralidade africana.

1.2 Hierarquia e Tempo Dentro dos Terreiros

No vasto leque de contribuições culturais do Povo Nagô, mesmo que sob as


condições em que se deu esse processo, destaca-se, em específico nas religiões afro-
brasileiras, a concepção de hierarquia e tempo, que foi de certa forma incorporada ao dia
a dia das comunidades de terreiros e à individualidade de seus membros.
A hierarquia dentro do terreiro fundamenta-se no processo de aprendizagem e
reconexão do indivíduo e do coletivo, ou seja, desenvolvem-se funções dentro do terreiro
baseadas nos princípios da religião que enriquecerá seu individual e espiritual,
contribuindo para o fortalecimento da comunidade religiosa e para o repasse do
ensinamento obtido. Dessa forma, todos os postos/cargos ocupados dentro dos terreiros
são importantes para o bem-estar da comunidade e do indivíduo, por isso, cada processo

12
Em relação à grafia das palavras em Iorubá: não estamos certos de que a grafia está correta e
correspondente ao Iorubá, mas utilizamos a grafia que é comumente utilizada por comunidades de terreiros
e pesquisadores do assunto.

161
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

deve ser respeitado e apreendido ao máximo, prezando pelo ensinamento adquirido em


cada ciclo. Para as religiões de matrizes africanas, “as noções de tempo, saber,
aprendizagem e autoridade, que são as bases do poder sacerdotal no candomblé, de caráter
iniciático, podem ser lidas em uma mesma chave” (PRANDI, 2001b, p.44).
Nas religiões afro-brasileiras com a herança Nagô, é comum que a noção de tempo
tenha uma definição diferente, sendo definido pelo orixá e pela comunidade que, sob
consulta aos oráculos, define o tempo ideal para os atos religiosos. O mesmo acontece
com o cargo sacerdotal, que é apontado por vezes até antes do nascimento, quando o
indivíduo vem ao mundo e o tem como seu “destino”. A reconexão com a ancestralidade
também se dá em função do respeito e comprometimento relativo ao tempo, ao orixá, ao
terreiro/comunidade e às hierarquias dentro da religião, conforme afirma Prandi (2001b):

Num terreiro de candomblé, praticamente todos os membros da casa


participam dos preparativos, sendo que muitos desempenham tarefas
específicas de seus postos sacerdotais. Todos comem no terreiro, ali se
banham e se vestem. Às vezes, dorme-se nos terreiros noites seguidas,
muitas mulheres fazendo-se acompanhar de filhos pequenos. É uma
enormidade de coisas a fazer e de gente as fazendo. Há uma pauta a ser
cumprida e horários mais ou menos previstos para cada atividade, como
“ao nascer do sol”, “depois do almoço”, “de tarde”, “quando o sol
esfriar”, “de tardinha”, “de noite” (PRANDI, 2001b, p. 45).

Dessa forma, são definidas diversas funções dentro dos terreiros. Dentre elas,
destacam-se as funções de alguns cargos comumente encontrados nas religiões afro-
brasileiras, porém, devido ao processo histórico brasileiro, nem todas têm sua
correspondência no continente africano, tendo sido criadas aqui mesmo no Brasil, diante
das necessidades apresentadas ao longo da história. Os cargos mais comuns são: 1)
Iyalorixá ou Babalorixá, que se encontra no posto mais elevado dentro do terreiro, é
popularmente conhecido como Mãe ou Pai de Santo; 2) Ogan, cargo masculino que
desempenha várias tarefas espirituais e não entra em transe; 3) Iyaegbé ou Babaegbé,
responsável por manter a ordem, tradição e hierarquia, considerada a segunda pessoa na
hierarquia do terreiro; 4) Iyalaxé, quem zela pela distribuição da energia fundante e cuida
do ritual; 5) Iyakekerê, mãe pequena da casa, segunda sacerdotisa que está à disposição
para ajudar e ensinar as pessoas iniciadas; 6) Babakekerê, pai pequeno da casa, segundo
sacerdote, também está à disposição para ajudar e ensinar; 7) Ojubonã ou Agibonã, quem
supervisiona e auxilia na iniciação, é a “mãe criadeira”; 8) Axogun, cargo masculino que
é responsável pelo sacrifício dos animais; 9) Iyabassê, cargo feminino responsável pelo

162
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preparo dos alimentos sagrados, comida de santo; 10) Egbômi, toda pessoa iniciada que
entra em transe e que já cumpriu os ritos de sete anos de iniciação; 11) Ekedi, cargo
feminino 13 semelhante ao de Ogan, que é responsável por cuidar dos sujeitos iniciados
quando eles estão em transe; 12) Iyawô, filho de santo iniciado que entra em transe com
o orixá; e 13) Abian, neófito/a que ainda não foi apontado/a como Ogan ou Ekedi, nem
foi iniciado/a como Iyawô (PRANDI, 2001a)14.

2 Individualidade, Coletividade e suas Conexões

As religiões afro-brasileiras que de alguma forma absorveram elementos da


cultura Nagô expressam-se em um sistema indivíduo-coletivo baseado na concepção de
mundo Ayê-Orum15 (ou mundo físico–mundo espiritual), envoltos e conectados pelo axé,
que é o elemento fundamental, energia viva ou componente dinâmico presente na
natureza e em diversos atos realizados pelos/as adeptos/as dessas religiões, no sentido de
despertá-lo para redistribui-lo entre a comunidade, entrando, assim, em comunhão com o
coletivo ancestral, seja ele divino (orixás) ou familiar e social (culto a Eguns e outras
comunidades) (SANTOS, 2008). Partindo desse conceito macro, explica-se em seguida,
a partir das vivências e observações dos autores16, os itens: 1) Egbé: a maior representação
da coletividade Nagô; 2) Ori, Ará e o sujeito individual; e 3) Exu e Axé: dois elementos
fundamentais para as religiões afro-brasileiras e seus/suas adeptos/as.

2.1 Egbé: a maior representação da coletividade Nagô

Anteriormente, foi situado o terreiro (egbé ayê, comunidade física) enquanto um


espaço além do material. Destrinchando isso, primeiramente, é necessário entender que o
terreiro é um espaço coletivo ou a maior representação de uma egbé (comunidade), pois,
“na diáspora, o espaço geográfico da África genitora e seus conteúdos culturais foram

13
Verifica-se também que os cargos têm um forte recorte de gênero, apontando uma boa temática para
discussão.
14
Os cargos citados são mais comuns no candomblé.
15
Vale ressaltar que não podemos fazer uma leitura de Orum como o Paraíso cristão. Na verdade, o Orum
constitui um plano coexistente e horizontal ao Ayê. Segundo Santos (2008), em Iorubá, as palavras que
designam literalmente Céu–Terra são Ilè–Sánmò.
16
É importante ressaltar que, por ser uma descrição feita a partir de vivências e pesquisa bibliográfica, pode
haver discordâncias em relação às formas de manifestações e sentidos dos elementos abordados, tanto no
Brasil como na iorubalândia. Ressalta-se essa questão dando ênfase à existência da pluralidade.

163
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transferidos e restituídos no ‘terreiro’” (SANTOS, 2008, p. 33). Porém, além do espaço


geográfico e dos conteúdos culturais não materiais, os terreiros também são os espaços
onde estão localizados os objetos dos cultos, em específico, pode-se destacar os igbás ou
assentamentos, que eram apenas coletivos em forma de ájobo (assentamento coletivo), os
quais, com o processo histórico, além de ter seus elementos fundamentais modificados,
passam a ser constituídos também individualmente para cada sujeito iniciado da
comunidade, expressando um elemento da coletividade e da individualidade dentro do
próprio terreiro. Segundo Santos (2008):

O vínculo que se estabelece entre os membros da comunidade não está


em função de que eles habitem num espaço preciso: os limites da
sociedade egbé não coincidem com os limites físicos do ‘terreiro’. O
‘terreiro’ ultrapassa os limites materiais (por assim dizer pólo de
irradiação) para se projetar e permear a sociedade global. Os membros
do egbé circulam, deslocam-se, trabalham, têm vínculos com a
sociedade global, mas constituem uma comunidade “flutuante”, que
concentra e expressa sua própria estrutura nos “terreiros” (SANTOS,
2008, p. 33).

Além das egbés ayê, também existem as egbé orum (comunidades do plano
espiritual/energético), as quais já foram citadas anteriormente e que também representam
uma coletividade ancestral que tem conexão com os terreiros através do axé dos rituais
de iniciação, rituais de passagens e rituais de morte, assim como dos objetos, atos, crenças
e cultos.

2.2 Ori, Ará e o Sujeito Individual

Ori é traduzido literalmente como “cabeça”, porém, existe toda uma crença
envolta nesse elemento, visto que, sobretudo, este também é uma divindade. Ori é a
partícula divina individual de cada ser. Para o Povo Nagô, cada pessoa, antes de vir ao
ayê, tem o seu destino modelado junto ao seu ori-orum (duplo do Ori no mundo espiritual)
pelo orixá Àjàlà, enquanto tem o seu ori-ará (cabeça física) e ori-inú17 (interior da cabeça)
desenvolvidos no ventre de sua mãe. No momento do nascimento, os pulmões recebem o
elèèmi (sopro divino ou ar-massa), que faz com que desperte o iponrí (energia espiritual
individual carregada de axé), responsável pela ligação desse Ori indivíduo com seu duplo
espiritual. O Ori, símbolo da individualidade de cada ser, também é o meio de conexão

17
Alguns estudiosos e estudiosas falam sobre a sua correspondência com as glândulas hipófise e pineal.

164
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

com o élèdà (senhor ou senhora dos seres viventes), orixá que rege tal Ori, conectando-
se assim a uma coletividade energética natural. Sobre as culturas africanas e a simbologia
da cabeça, Braga (1988) aponta que:

Diferentes culturas africanas associam a cabeça à ideia de poder, de


comando, de superioridade. Pesquisas têm sido realizadas com
propósito bem definido de compreensão da preeminência da cabeça em
relação às outras partes componentes do corpo humano enquanto
geradora de cultura ou comportamento cultural. Análises dessa natureza
são capazes de detectar as razões profundas que definem a ação corporal
como um todo, seu significado profundo e delineador da projeção do
homem no seu universo cultural. Compreende-se, então, a importância,
primazia hierática da cabeça. Tais afirmativas são particularmente
verdadeiras para o conjunto das etnias africanas comprometidas com o
processo civilizatório, de onde flui todo um ideário explicativo do
sentido sagrado da cabeça, veiculado, no Brasil, pelas diferentes formas
de organizações religiosas de que os candomblés servem de exemplo
mais típico (BRAGA, 1988, p. 63).

Ará é o corpo físico, regido pelo orixá Exu Bará, senhor da comunicação e do
início, senhor do corpo. Ará junto a Ori formam as duas representações do sujeito
individual, pois cada um tem um corpo e um Bará ao qual prestam culto. Ori e Bará são
as duas divindades que formam o ser em seus aspectos espiritual e individual,
representado principalmente pelo corpo propriamente dito, que, para os Nagô, é algo
sagrado, pois é o que possibilita a comunicação com as divindades, entidades e energias,
e, consequentemente, com a egbé.

2.3 Exu e Axé: dois elementos fundamentais

Como já citado anteriormente, o axé é a energia dinâmica e o principal


fundamento e princípio vital para as religiões afro-brasileiras Nagô, assim como, para as
religiões tradicionais africanas, o axé é algo plantado e transmitido através das relações
sociais e com a natureza. Santos (2008) afirma que o axé

[é] a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer


e o devir. Sem àse, a existência estaria paralisada, desprovida de toda
possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o processo
vital. Como toda força, o àse é transmissível; é conduzido por meios
materiais e simbólicos e acumulável. É uma força que só pode ser
adquirida pela introjeção ou por contato. Pode ser transmitida a objetos
ou seres humanos (SANTOS, 2008, p. 39).

165
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Em todo esse processo de conexão e troca de energia há a presença do orixá Exu,


pois esse é o sentido de sua própria existência enquanto energia: conectar, ligar,
transportar, comunicar. Exu tem suas múltiplas formas de se manifestar, mas o importante
nesse processo é entender que todos precisam de Exu, pois ele é quem transporta o axé
coletivo, assim como é responsável pelo axé individual, o iponrí e o ará em seu aspecto
Bará (senhor do corpo).
Por meio de todo esse sistema, identifica-se que, para o Povo Nagô, o indivíduo e
a coletividade estão em constante conexão, mesmo dentro de suas definições diferentes,
o que leva a pensar as religiões afro-brasileiras como resistência também contra a lógica
da individualidade egoísta e a alienação para com o coletivo, tendo como parâmetro um
outro sistema de moral e ética.

Considerações Finais

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise inicial a partir da


reflexão de como costuma se configurar as relações individuais e coletivas dos/as
adeptos/as das religiões de matrizes africanas com a influência do Povo Nagô, que
constitui um dos povos negros escravizados, diante dos aparatos religiosos e da relação
entre representatividade e reciprocidade no culto e nas crenças. Este estudo despertou
ainda o interesse sobre a influência do Povo Nagô na concepção brasileira de comunidade,
para além da comunidade de terreiro, a comunidade das favelas e dos sujeitos
historicamente marginalizados.
A construção e reconexão da identidade a partir da ancestralidade do Povo Nagô
contribuem para manter viva a diáspora africana dentro do Brasil, apesar dos diversos
ataques sofridos por estes desde a escravidão até os tempos atuais. A construção dessa
identidade, dentro do país com a maior população negra fora da África, nos faz questionar
como os/as negros/as no Brasil ainda sofrem diferentes formas de racismo, entre elas, a
intolerância religiosa. Nesse contexto, as religiões afro-brasileiras e os seus terreiros
podem se tornar um ambiente de reconexão com os seus; lugar que possibilita a sensação
de liberdade perante o racismo fora dos muros dos terreiros; lugar que fortalece a
identidade da população negra; lugar este que o racismo tentou e tenta apagar
cotidianamente.

166
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Assim, no que se refere às comunidades de terreiros, percebe-se como marca


essencial a forte resistência, seja pelas diferentes formas de preservação do culto ou
através da tentativa constante de ruptura com a visão exótica criada pela sociedade
moderna, que transpassa o terreiro e atinge também seus/suas adeptos/as. Dessa forma, é
extenso o contraste entre a construção das relações na sociedade brasileira e como se dão
as relações nos terreiros, ora pelo estereótipo racista criado sobre o que é ser negro/a,
desmistificado dentro do terreiro, visto que os orixás são tidos como guerreiros e
guerreiras negros/as que possuem diferentes características; ora pela dinâmica de vivência
distinta, em que o tempo é enriquecedor e possui uma interpretação diferente daquela
vivenciada na sociedade capitalista.
Essas relações no interior dos terreiros trazem outra perspectiva do que é
hierarquia. Indo além da subordinação, o poder obtido assume o papel de orientação,
passagem do conhecimento, com o objetivo de transmitir ao indivíduo adepto da religião
toda a sua história ancestral, saberes espirituais e naturais, relativos às propriedades das
plantas e à energia vital que influencia o ser. Por isso, o tempo é um fator determinante,
pois é ele que irá fomentar no indivíduo o saber, a reconexão espiritual que irá aproximar
esses sujeitos da ancestralidade e da comunidade, sendo este um processo indefinido.
Nesse sentido, a busca da conexão com a ancestralidade através das religiões afro-
brasileiras contribui para o fortalecimento desses corpos e mentes, bem como para a
ligação com as comunidades dos terreiros, suas crenças, e para a resistência a fim de
manter viva a diáspora. A união com o coletivo e o ancestral é imensuravelmente
enriquecedora, tendo em vista que esse é um processo recíproco em que o indivíduo
sustenta o coletivo e o coletivo sustenta o indivíduo.

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Governo de Alagoas; Staff Vídeo Produções, 2006. 1 vídeo (53 min.). Disponível em:
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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

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BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. Itinerários – Revista de Literatura, n. 10, 1996.


Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/ 2577/2207.
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BRAGA, Julio. Fuxico de Candomblé: estudos afro-brasileiros. Feira de Santana, BA:


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MORAIS, Mariana Ramos de. Nas Teias do Sagrado: registros da religiosidade afro-
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PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia de Letras, 2001a.

PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade


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Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Campinas,
2010.

Recebido em: 02/05/2020


Aceito em: 07/10/2020

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RITUALIDADES DO MISTÉRIO PESSOAL: O SEGREDO


DE ORIXÁ NO BATUQUE AFRO-SUL

Marcus Vinicius de Souza Nunes1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.31960

Resumo
Nesta pesquisa, apresentamos algumas características teológicas e rituais próprias do
Batuque, uma religião afro-brasileira típica do sul do Brasil, motivo pelo qual também é
referido como Batuque afro-sul. Colocamos esta tradição em perspectiva, olhando-a no
contraste com outras tradições religiosas afro-brasileiras, bem como introduzimos a sua
característica teológica mais própria, chamada segredo de Orixá, dando seu conceito,
sua finalidade ritual e as possíveis origens desta tradição peculiar ao Batuque.

Palavras-chave: Batuque. Orixá. Ritual. Pessoa.

RITUALIDADES DEL MISTERIO PERSONAL:


EL “SECRETO DE ORIXÁ” EN EL BATUQUE AFRO-SUR
Resumen
En esta pesquisa presentamos algunas características teológicas y rituales propias de
Batuque, una religión afrobrasileña, típica del sur de Brasil, por lo cual también es
llamada como Batuque afro-sur. Esta tradición la ponemos en perspectiva, mirándola en
contraste con otras tradiciones religiosas afrobrasileñas, bien como introducimos su
característica teológica más propia, llamada secreto de Orixá. Presentamos su concepto,
su finalidad ritual y posibles orígenes de esta tradición peculiar de Batuque.

Palabras-clave: Batuque. Orixá. Ritual. Persona.

1. Introdução

Nossa pesquisa pretende apresentar a tradição religiosa afro-brasileira chamada


Batuque no contexto das demais tradições presentes no Brasil. Nosso fim último,
todavia, não se restringe a um apanhado geral do estado dessa tradição no Brasil. Aqui
nos limitaremos a análise de uma de suas dimensões litúrgicas e rituais mais
desconcertantes, conhecida como segredo de Orixá. Apresentaremos o seu conceito, a
sua importância dentro do ritual, bem como possíveis causas para sua origem.
Nosso método remonta à leitura de bibliografia especializada, também à
experiência junto a casas de religião afro no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.

1
Universidade Federal de Santa Catarina. Email: mvinicius.snunes@gmail.com

169
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Não se trata, contudo, de uma análise de dados etnográficos. Partimos dos dados
desenvolvidos nas ciências sociais, que são indispensáveis em direção a uma reflexão
que lê existencialmente o fenômeno afrorreligioso e que deságua no campo de uma
possível teologia afrorreligiosa, ou ainda, afroteologia, buscando compreender seu
sentido e seus contributos para uma reflexão mais ampla para as ciências da religião.
Em primeiro lugar, trataremos de apresentar um amplo escopo das religiões afro-
brasileiras. De que modo podem ser agrupadas, quais são as características mínimas
comuns que nos permitem classificá-las de tal ou qual modo e seus traços teológicos
fundamentais, em especial a noção de possessão.
Em seguida apresentamos o Batuque. Suas principais nações, seus traços
litúrgicos e teológicos peculiares. Em especial trataremos do segredo de Orixá, fato
litúrgico e teológico que, segundo nossas pesquisas, é exclusivo dessa tradição
afrorreligiosa. Aventaremos possíveis causas para tal peculiaridade, tanto de ordem
material – econômica, social, política – quanto de ordem teológica intrínseca.

2. As religiões afro-brasileiras

O campo das religiões afro-brasileiras é complexo e diversificado. Mesmo o


termo religiões afro-brasileiras é passível de questionamento. Haveria diferença entre
estas e um conceito mais genérico, de religiões de matriz africana. O que faz uma
religião ser afro-brasileira ou de matriz africana?
Alguns julgam possível fazer uma ampla distinção entre religiões de matriz
africana aculturadas e não aculturadas. Esta classificação aparece em importantes
textos da etnologia (SANTOS, 2012), e inclusive é a divisão adotada pelo IBGE na
realização. Nós a adotamos em parte. Questionamos a possibilidade de falarmos em
religiões não aculturadas. Circula fortemente entre os afro-religiosos o mito da pureza
teológica e litúrgica. Alguns cultos teriam guardado, quase que intacta, a pureza das
tradições africanas enquanto outros, no extremo oposto, teriam a tal ponto se afastado
de tais tradições que mesmo o termo afro não lhes poderia ser facilmente aplicado.
Contudo, ceder a esta divisão tão clara seria, a nosso ver, ceder às reelaborações
identitárias próprias, sem dúvida válidas, feitas em contexto cultual, que expressam uma
legítima construção teológica própria de determinados grupos religiosos, mas que
dentro de nossas perspectivas conceituais não corresponde plenamente aos fatos

170
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

culturais que aqui apresentamos. Por isso apresentamos nesta introdução uma
classificação das religiões afro 2 em dois grandes grupos, um menos aculturado e outro
mais aculturado, pois levamos em conta que no primeiro também há evidentes traços de
aculturação e no outro também evidente busca de tradições e matrizes culturais
tradicionais.
Dentro do grande grupo das religiões afro menos aculturadas situam-se o sem
número de Candomblés, Batuques, Xangôs, que genericamente são chamados Nações.
Três grandes grupos étnicos estão na origem dessas nações, o jeje, proveniente da região
do atual Benin, o nagô ou yorubá, vindos da atual Nigéria e parte do Benin e o bantu,
da costa ocidental sul da África, principalmente da Angola e Congo. A cada um desses
grupos étnicos corresponde uma língua, ainda usada liturgicamente: O fon para os jejes,
o yorubá para os nagôs e o kimbundo para os bantus. A conservação da língua litúrgica é
uma das marcas dessas religiões menos aculturadas. Ademais, cultuam prioritariamente,
se bem que nem sempre exclusivamente, as divindades dos panteões de seus lugares de
origem: Vodun, para os jejes, Orixás, para os nagôs, Inkices para os bantus. Quando
dizemos, por exemplo, candomblé, sob esta rubrica abrigam-se uma variedade
gigantesca de tradições teológicas, litúrgicas, filosóficas, linguísticas. Por exemplo,
mesmo um candomblé de origem nagô pode ser Candomblé Ketu, Candomblé Ijexá,
pode ser ainda um culto de nação Nagô-Egbá, ou mesmo mesclada com o culto jeje,
como Nagô-Efon.
No grande grupo das religiões mais aculturadas se encontram as umbandas,
juremas, quimbandas, que mesclam muitos elementos da cultura popular, do
cristianismo, da cultura indígena com elementos afros, especialmente nagôs e bantus.
Sua língua litúrgica é o português e seu panteão inclui o culto de arquétipos da cultura
popular, como o preto-velho, o indígena, o marinheiro, a criança. São ritualmente
menos complexas, apesar de gozarem de patrimônio litúrgico e teológico próprio.
Entretanto, a separação entre esses dois grandes grupos não é tão rígida quanto à
primeira vista pode nos parecer. Há muitos trânsitos simbólicos que ocorrem em
diversas áreas, seja em divindades que se incorporam de um lado para outro, na língua,
nas roupas, na compreensão teológica. Ao fim, talvez pudéssemos falar de um único
grande grupo que varia em uma grande escala de aculturação.

2
Seguindo a nossa classificação, uma possível disjunção entre religiões afro-brasileiras e religiões de
matriz africana não se justifica. Assim, muitas vezes usamos apenas a expressão religiões afro para
amplamente conter o maior número possível de nuances de sentido.

171
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O nosso trabalho se restringe a uma específica tradição dentro do grande grupo


menos aculturado, a saber, do Batuque afro-sul. Dentro do grande escopo de pesquisas e
estudos, desde tantas perspectivas teóricas, o grupo nagô tal como mantém suas
tradições, especialmente na Bahia e no sudeste, se tornou o grande padrão normativo, o
cânon da pesquisa e também do culto. Outras tradições, como o Batuque, acabam por
serem menos consideradas. Aqui trataremos da tradição religiosa afro-sul a partir de
determinados pontos de divergência em relação a outros grupos contemplados em tantas
pesquisas feitas no Brasil e no exterior.

2.1 Religião de possessão

É, até certo ponto, lugar-comum dizer que as religiões afro-brasileiras são


religiões de possessão. Mas o que significa isto de fato? O substantivo parece sugerir-
nos que algo, ou alguém, possui, toma posse de outro algo ou alguém. Assim entendido,
a maioria das pessoas é levada a crer que um espírito toma posse do corpo dos seus
“médiuns”.
Até certo ponto esta opinião não está equivocada. Mas é preciso distinguir ao
menos dois contextos teológicos diversos. No contexto umbandista o termo
incorporação de fato se aplica com mais precisão. Influenciada por elementos da
doutrina espírita, a Umbanda crê que nos seus rituais um espírito de alguém
desencarnado volta. Esta volta tem dois motivos. O primeiro é ajudar as pessoas que
buscam seu auxílio, com curas espirituais, aconselhamentos, energizações. O segundo
motivo é que através desse trabalho espiritual o espírito desencarnado alcança méritos
para sua evolução.

O fato é que as entidades que incorporam não são deuses como no


Candomblé africano, mas espíritos organizados em legiões ou
grupamentos colocados sob os auspícios dos Orixás. Na concepção
cósmica, os Orixás correspondem aos reinos da natureza. Temos,
então, legiões do mar (Iemanjá), do vento (Iansã), das matas (Oxóssi),
etc. Além dessa correspondência cósmica, as entidades pertencem a
grupos que encontram sua ressonância na sociedade e na formação do
povo brasileiro: os índios (Caboclos), os negros (Preto-Velhos), as
prostitutas (Pombagiras), os malandros (Exús), crianças, orientais,
ciganos, marinheiros, boiadeiros, baianos, cangaceiros, juremeiros,
turcos, etc. (DRAVET, 2016, p. 297)

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Deste modo, a complexa hierarquia espiritual da Umbanda reflete um quadro de


evolução espiritual no plano cósmico, justificando que a pessoa desencarnada “volte
como” uma pombagira, um preto-velho, um caboclo. Pode ainda voltar como um
capangueiro de Orixá, um espírito que se apresenta com um nome de Orixá, como Ogun,
ou Oxóssi, Yemanjá, porque seu trabalho se dá na vibração desse Orixá.
As coisas se dão de modo diferente nos grupos menos aculturados. Pelo menor
ou nulo sincretismo com o espiritismo europeu, seus cultos não são, em sua grande
maioria, culto de espíritos desencarnados 3. Parte da teologia dos Orixás expressa a ideia
de que os Orixás são antepassados não meramente desencarnados, mas divinizados. São
chamados írunmalè 4 . Mas a teologia nagô, por exemplo, também fala dos òrìsà em
sentido estrito, criados diretamente por Ólórun como dinamizadores do seu àse.
(SANTOS, 2012).
Bastide (2001) ciente dessa diferença usa indistintamente os termos possessão e
transe para o fenômeno que ocorre nos cultos de Orixá, mas não incorporação. No
transe fica evidenciado o fenômeno litúrgico e social, uma espécie de “ópera mítica”
(BASTIDE, 2001) que de forma alguma pode ser tratada como um fenômeno individual.
O canto e a dança, o som dos atabaques e as orações não têm por finalidade apenas
invocar a divindade, mas representam um ciclo cósmico, uma ìtan, isto é, uma história
específica de uma divindade. Enquanto na Umbanda uma mesma pessoa pode
incorporar várias entidades diferentes, às vezes durante o tempo de um mesmo culto,
nas tradições menos aculturadas apenas o Orixá da pessoa se manifesta. Os religiosos de
Candomblé, por tal, preferem a expressão virar ou bolar no Orixá.
Com esses termos fica indicado, mas não explicitado, uma outra dimensão do
transe de Orixá. Trata-se da manifestação de uma dimensão da personalidade, ou ao
menos como uma “metamorfose da personalidade” (BASTIDE, 2001). A seguir
apresentaremos o Batuque e a sua compreensão de transe de Orixá. Parece-nos possível
ver no transe a possibilidade de uma compreensão existencial de si como mistério, que
tem na manifestação litúrgica do Orixá o seu ponto mais alto.

3
Exceção deve ser feita ao culto de egun ou egungun, o culto dos antepassados da comunidade. Este,
todavia, não é praticado em muitas casas, sendo realizado apenas por sacerdotes inteiramente consagrados
a ele. No Batuque, especialmente em algumas de suas nações, o culto de antepassados é mais difundido,
sendo o seu sacerdote o mesmo do culto dos Orixás. O que é mais importante ressaltar é que em nenhum
momento se confundem culto de antepassados e de Orixás, como acontecem nas tradições mais
aculturadas, como a Umbanda
4
A língua dos cultos afro de origem nagô é o yorubá. Na medida do possível usamos os termos já
aculturados, aportuguesados. Quando mantivemos o termo em yorubá, citamos em itálico e conforme a
ortografia do yorubá moderno.

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3. O Batuque afro-sul

Aqui não apresentamos uma introdução pormenorizada da teologia do Batuque.


Antes, nos restringimos a algumas características da manifestação litúrgica de Orixás na
tradição de matriz africana chamada Batuque, típica do Rio Grande do Sul. A
centralidade dos ritos de origem yorubá (entre o território da Nigéria e Benin) se
encontra no culto ao Orixá, que na pluralidade de suas teologias é apresentado ora como
antepassado divinizado, ora como força da natureza, ou mesmo como uma espécie de
arquétipo da personalidade.
Ainda que não precisemos de justificativas estatísticas para deduzir a relevância
das particularidades litúrgicas de alguma religião particular, como é o caso do Batuque
afro-gaúcho (ou batuque afro-sul), vale a pena conhecermos alguns dados apresentados
pelo IBGE (2000; 2010).
No censo de 2000, o Rio Grande do Sul aparece com 1,62% da população que se
declarava adepto de religião de matriz afro, contra 1,31% no Rio de Janeiro, que
ocupava o segundo lugar nacional e contra apenas 0,08% da Bahia. O censo de 2010,
apesar de referir um decréscimo percentual, ainda confirma essa liderança.
Estima-se a existência no estado de mais de 30.000 templos religiosos afro
(tradicionalmente chamados “terreiras”), com grande concentração na região
metropolitana de Porto Alegre. Com todos esses dados, hoje o Rio Grande do Sul
sozinho concentra 23% do total de adeptos de religiões afro de todo o Brasil (ORO,
2012). Sem falarmos ainda na expansão do batuque para outras regiões do Cone Sul,
como a Argentina e o Uruguai (ORO, 2009).
O nome Batuque (assim como o nome “umbanda” ou “candomblé”) inclui
grande número de tradições heterogêneas. As nações ou “lados” do Batuque são o nagô
(de menor expressão e mais próximo às expressões dos candomblés das regiões
nordeste e sudeste do país), o Oyó (Igbomina e Bangan), a Kambina (ou Cabinda), o
Jeje e o Ijexá. É muito difícil definir, com precisão, as especificidades de cada nação,
suas origens e desenvolvimento. Há uma mescla histórica e explícita dos “lados” onde
se formam nações “híbridas” como a nação Jeje-Ijexá, caso mais tradicional de hibridez.
Em menor medida, mas igualmente expressivas, se fala em nação Oyó-Ijexá, ou mesmo
Jeje-Kambina. O elemento predominante em todas essas nações é o yorubá, seja na

174
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

língua litúrgica, seja nas divindades cultuadas, seja na elaboração teológica e filosófica
(SILVEIRA, 2014). A presença do elemento Jeje se verifica pelo culto a algumas
divindades, ou que ao menos são mencionadas em algumas cantigas (Legba, Sogbô);
por similaridades com o culto de Vodun que podem ser observadas (ABIOU, 2016); seja
pela presença do príncipe Osuanlele Erupé, de origem jeje, no Rio Grande do Sul, que
influenciou em boa medida a organização dos cultos de nação (SILVEIRA, 2014;
SILVA, 1999). Entretanto, a extensão real da influência do Jeje é passível de discussão.
Por exemplo, sua língua litúrgica, o Fon, não é utilizada no Batuque5.
Quanto à presença da religião bantu nos encontramos em terreno ainda mais
difícil de averiguar. Uns pretendem ligar a nação Cabinda a uma origem bantu
(SILVEIRA 2014). Reconhecem no patrono desta nação, Kamuká, associado ao culto de
Xangô, um nome bantu, assim como seria bantu a importância que se dá ao culto dos
antepassados, que nesta nação, ordinariamente, precede na ordem litúrgica o culto aos
Orixás. Ainda poder-se-ia reconhecer no fundador mítico dessa nação no Rio Grande do
Sul, certo africano chamado Gululu, um nome bantu. Entretanto, sua liturgia é yorubá,
sua língua de culto é yorubá (inclusive as dedicadas ao seu patrono Kamuká), e mesmo
seu nome seria mais corretamente lido Kambina em referência ao antepassado mítico de
Xangô Okambi, e não Cabinda, nome de uma província da moderna Angola. Fora as já
mencionadas e algumas outras poucas especificidades próprias suas, é no mais em tudo
similar às outras nações do Batuque afro-sul.

4. Segredo de Orixá

Uma marca, entretanto, perpassa todas as nações do Batuque (com exceção,


talvez, da chamada nagô, apesar de todas serem nagôs, que conforma um todo
teológico-ritual bem diverso). Nelas o transe constitui um tabu, em geral chamado
segredo de Orixá. Constitui, segundo nossa pesquisa, característica exclusiva de tais
nações. Consiste na proibição expressa tanto ao cavalo-de-Santo (elegun) quanto aos
membros de sua família religiosa, como a qualquer assistente dos rituais de falar
qualquer coisa sobre a manifestação ocorrida.

5
Talvez não tenham ido para o Rio Grande do Sul jejes “verdadeiramente” fon, mas habitantes do antigo
Daomé de origem yorubá, que os jeje chamavam ànàgónu. Não passa, todavia, de uma hipótese de difícil
comprovação.

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O transe recebe na tradição do Batuque o nome de ocupar-se do Orixá. Um


cavalo-de-santo não vira no santo, não bola, não manifesta, muito menos incorpora, mas
“se ocupa do seu Orixá”. Este fato, contudo, jamais poderá ser-lhe dito diretamente. Isto
feito, o culpado de “descobrir o segredo” de outrem recebe pesadas sanções rituais,
como o pagamento de multas com animais e objetos litúrgicos para os sacrifícios
necessários para “cobrir” de novo o segredo. Em praticamente todas as casas corre a
tradição de quem “descobre que se ocupa” pode sofrer vários males espirituais,
emocionais e físicos, inclusive a loucura.
A nossa pesquisa se interessa em pensar algumas indicações que possam lançar
luz sobre essa peculiaridade do Batuque afro-sul. Quais seriam suas origens? A
finalidade é meramente ritual? Mas, o que seria nesse caso meramente ritual? Haveria aí
uma história de proteção de vínculos sociais através da proteção dos vínculos litúrgicos?
Em nossa presença junto a muitas casas de Batuque percebemos que, em algumas delas,
mais em umas nações e menos em outras, esse tabu é um pouco mais relaxado. Em
algumas, por evidente influência de outras tradições afros, como o Candomblé. Outras,
pelo regime litúrgico próprio da mesma nação, menos rígido em tal questão. Em outros
casos, percebemos uma rígida observância de tal preceito.

4.1 Origens do segredo

A origem dessa tradição é muito difícil de avaliar. Certo que no Rio Grande do
Sul, apesar da presença de uma corte africana (a de Osuanlele Okizi Erupé) e as boas
relações políticas que esta mantinha com o poder político local, não se pode dizer que o
Batuque tenha encontrado um ambiente favorável ao seu desenvolvimento. As
condições econômicas eram bem diversas daquelas encontradas no nordeste brasileiro
de então (final do século XIX e início do XX). Os rituais se tornaram muito mais
econômicos, barateados. Pouco a pouco os tempos de iniciação foram se reduzindo.
Rituais mais dispendiosos foram sendo abandonados. A terreira, como é chamado
tradicionalmente no Batuque o conjunto dos espaços sagrados dedicado ao culto dos
Orixás, equivalia à casa do babaláo e da babalôa6. O quarto-de-santo, onde ficam os

6
Tradicionalmente o pai e a mãe de santo eram chamados na tradição batuqueira, respectivamente, de
babaláo e babalôa, provavelmente corruptelas de bàbálawo, pai-do-segredo, sacerdote iniciado no culto
de Ifá, divindade da advinhação. Do início da década de 1990, pelo contato com outras tradições de
matriz africana e pelo despertar da pesquisa sobre as origens, começou a aparecer o uso dos termos
babalorixá e yalorixá, com o quase total desaparecimento dos usos anteriores. Também a expressão

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objetos litúrgicos dos orixás, muitas vezes não passava de uma prateleira coberta com
cortinas na sala da casa do babaláo, sala que funcionava como salão para as danças dos
orixás. Os assentamentos externos, altares (os peji, ajubo e ojubo) dão lugar a mínimas
credências, armários ou casinhas no exterior da casa onde se abrigam os assentamentos
de Bará Lodê, Bará Lanã, Ogun Avagan, Oyá Dirã e Oyá Timboá, assim como outros
Orixás menos cultuados, próprios de apenas uma ou outra entre as várias tradições,
como Legba, Zina, Gama.
Às condições econômicas muito limitadas se deve somar a pouca aceitabilidade
social do batuque. Apesar do dado de 23% da população brasileira adepta de religiões
de matriz africana, mais ou menos aculturadas, se encontrar no Rio Grande do Sul, isto
garantiu pouca visibilidade identitária de grande expressão até finais do século XX,
onde se reconhece uma organização mais consistente em busca de direitos. A nossa
grande pergunta é se é possível vincular o segredo de Orixá à repressão exercida sobre
as casas de Batuque. Não haveria aí uma saída litúrgica para uma sanção sociológica
que seria miticamente mediada? Poderia haver maior sanção que a loucura, isto é, a
exclusão total da comunidade de fala? A necessidade de proteção da comunidade
poderia ter gerado essa artimanha.
Contudo, parece-nos difícil explicar tal acontecimento apenas pela via
sociológica extrínseca. É preciso buscar as raízes dos próprios ritos dentro da própria
religião yorubá. Parece indiscutível que os rituais do Batuque têm parte de suas raízes
no culto de Xangô realizado na cidade de Oyó. Primeiro, reconhecemos uma nação do
Batuque homônima da cidade onde o Orixá Xangô é rei e onde é cultuado. Segundo,
percebe-se o papel de patrono principal de Xangô nas nações Oyó (Igbomina e Bangan)
e na Kambina, onde é cultuado como Xangô Kamuká. E o mais importante, o papel que
o culto de Xangô tem em todo o batuque.
A principal dança do Batuque só é executada nas festas grandes, ou batuques de
quatro-pés. Para serem realizadas, tais festas são antecedidas pelo sacrifício de vários
animais, em especial quadrúpedes, como cabritos, porcos, ovelhas, donde seu nome. É
também nessas festas que os babalorixás e yalorixás são feitos, isto é, consagrados como
babalorixás. Para confirmar que os Orixás receberam os sacrifícios se realiza essa dança
dedicada a Xangô chamada balança de Xangô, ou kasun. Nesta participam apenas os

terreira tem cedido espaço para ile, ile àse, terreiro. Mas ao contrário do caso anterior, a expressão
terreira parece fazer parte mais constante do vocabulário diário das casas de religião, como também são
chamadas.

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prontos, isto é, que já deram obrigações maiores aos seus Orixás, que já são babalorixás
e yalorixás. Dão-se as mãos, voltados para o centro da roda que se encontra vazio, numa
dança que começa em marcha bem lenta e vai acelerando. É nesta dança que se
manifestam os Orixás ditos secos, a saber: Bará, Ogun, Oyá, Xangô, Odé, Obá, Ossanha
e Xapanã.
A balança não pode ser rompida, isto é, os que dela participam não podem de
maneira alguma soltar suas mãos antes do momento ritual prescrito, quando ocorre uma
mudança no toque da dança. As penas para o rompimento são as mesmas para a
revelação do segredo de Orixá. Desfeita a balança, os Orixás manifestados dançam
alegremente, em frente aos tambores, os Alujás de Xangô e Oyá e o jeje de Xangô. É
um ritual de máxima importância, realizado com máxima solenidade, que não pode ser
de forma alguma fotografado ou filmado. É a mais sagrada das danças no Batuque,
apesar de serem conhecidas outras balanças, como a de Xapanã ou a de Obá, menos
solenes e menos rígidas em suas sanções. Ou danças como a do Alá, realizada para
Oxalá, que são tratadas com uma reverência especial.
Segundo Verger (1997), nos rituais para Xangô realizados em Oyó, na Nigéria, a
manifestação do Orixá acontece com violentas convulsões. Após isso, o corpo do elegun
relaxa e Xangô mantém-se durante o ritual, manifestado no elegun, de forma serena e
cerimonial. Entretanto, o fim da manifestação não é tão brusco quanto o seu início. O
elegun passa do estágio de manifestação do Orixá a um segundo estágio onde “O se bi
asiwère” (literalmente, age como um louco) com comportamento infantil, tresloucado.
Após ainda esse estágio, passa para um outro de sonolência e fraqueza onde não se
lembra do que aconteceu. Ora, nesta palavra asiwère reconhecemos uma possível
origem do termo axero, muito usado no Batuque. Nas nações do Batuque, o Orixá,
ordinariamente, não abandona seu cavalo-de-santo repentinamente. Quando termina a
manifestação, o filho-de-santo permanece num estágio chamado intermediário entre o
Orixá e a consciência plena, que é o axero. Comporta-se também infantilmente, usa uma
gramática própria e incompreensível para quem não conhece o ritual. Quando o filho sai
do estado de axero não se recorda de nada do que lhe aconteceu. Parece possível
reconhecer aí elementos do culto realizado em Oyó tal como de descrito por Verger,
embora não possamos fechar a questão.

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4.2 A rigidez da norma

Já que a manifestação do Orixá no Batuque é envolta em todo esse segredo,


pode-se imaginar o que representa a primeira vez em que se manifesta em seu filho, ou
como se diz em linguagem batuqueira, quando nasce o Orixá. Não se pode provocar a
manifestação de forma que o iniciado a perceba. Tampouco o filho de santo no Batuque
dá sinais de sentir vibrações, energias (ou mesmo “dar ekê”, expressão que funciona às
vezes pejorativamente) como é comum em outras tradições afro, como no Candomblé.
A primeira manifestação em geral é repentina e violenta, dentro de rituais de iniciação
não públicos, ou em momentos públicos importantes, como em uma festa grande,
durante alguma dança. As manifestações seguintes também seguem o mesmo padrão:
sem apresentar sinais visíveis o Orixá manifesta-se abruptamente, às vezes de maneira
mais violenta, com movimentos bruscos do corpo, em silêncio (sem gritar ou falar, o
que só lhe será permitido em ritual posterior), ou mesmo alguns gritando. Isto depende
do Orixá, da casa, da nação.
O que pudemos perceber é que em algumas casas o segredo de Orixá não é
tratado tão rigidamente. Segundo nosso parecer podemos atribuir essa variação a três
causas distintas. Algumas nações observam mais estritamente o segredo, outras menos,
como característica litúrgica própria. Pudemos perceber, em geral, uma observância
mais rigorosa em casas de Jeje-Ijexá, casas de Kambina que vão da rigidez a uma
conduta bem frouxa, e casas de Oyó que parecem nem o observar. A independência das
nações entre si e das casas dentro de uma mesma nação deriva nessa relativa liberdade
frente à tradição que impede a existência de normas gerais e absolutas para todos.
A segunda causa cremos poder atribuir ao fato de haver algumas yalorixás e
alguns babalorixás que fizeram a passagem por outros rituais antes do Batuque, como o
Candomblé. Para esses, a questão do segredo lhes parece de menor importância ou, ao
menos, encarada de forma menos rígida, sem preocupações com as sanções ou com a
possível loucura impingida pelos Orixás a quem tem seu segredo descoberto.
Em terceiro lugar, não podemos deixar de ressaltar o fato que muitos babalorixás
e yalorixás têm se aprofundado em estudos, têm se aproximado de outras tradições, têm
feito verdadeiras experiências teológicas e litúrgicas, mais difíceis em outras épocas,
que lhes têm levado a relativizar tal aspecto de suas próprias tradições. São novas

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formas de apropriação da própria tradição e novas maneiras de transmissão que levam a


reflexão sobre as origens históricas de sua ritualidade e teologia.
Não obstante todas essas transformações, a maior parte dos batuqueiros
considera o segredo de Orixá parte essencial do ritual e por conseguinte não
negligenciável ou passível de ser relativizada. Algumas narrativas são elaboradas sobre
essa essencialidade: uma maneira de preservar os sacerdotes do orgulho e da soberba
por terem um contato tão íntimo com o Orixá, uma maneira de manter uma respeitosa
diferença e distância em relação à divindade, o que ajudaria a impedir o uso do transe
para a promoção própria.
Talvez devêssemos simplesmente tomar o segredo de Orixá como um dogma do
Batuque. A expressão pode não parecer boa, mas é capaz de explicar
antropologicamente esse aspecto de sua tradição. De fato, do ponto de vista da história
da religião, é comum encontrarmos proibições que não se justificam prima facie, isto é,
que não são tão evidentes como outras sanções, por exemplo, como as de tipo moral que
proíbem matar um membro do grupo sem justa causa, ou que imponha o cuidado dos
membros mais frágeis da comunidade. Os ritos religiosos de um grupo, com suas
proibições e recomendações, suas normas mais ou menos estritas, apresenta
performativamente as relações que se entravam a partir de uma visão de mundo, de uma
compreensão do todo, da própria realidade, da própria história.
O segredo de Orixá pode propor-nos uma maneira de ver a vida humana que
ainda não tenhamos acolhido: de respeitar o mistério da pessoa em sua essência divina.
O divino no humano é intocável, inalienável, e o inalienável no humano, o que constitui
a dignidade humana é algo em si divino. Mas isso já é extrapolar os limites desta
pesquisa.

5. Conclusão

O nosso trabalho apresentou a similaridade do Batuque com as outras religiões


afro-brasileiras do campo menos aculturado. Guarda com essas muitas semelhanças
teológicas rituais. Todavia, a sua peculiaridade constituinte, o segredo do Orixá, nos
coloca muitas questões.
Aventamos muitas possíveis causas. Mas não há como assegurar-nos que um ou
outro fator determinante tenha originado essa tradição exclusiva do Batuque. Duas teses

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conjugadas podem apresentar uma resposta interessante. Parece provável que as causas
sociológicas acima apresentadas, as condições econômicas, a perseguição policial,
tenham contribuído para que se realizasse um culto mais econômico, não apenas quanto
ao espaço sagrado reduzido ou ao uso de certos materiais. O culto do Orixá se tornou
ritual e teologicamente mais econômico. A possível reminiscência simbólica do culto
realizado em Oyó, que envolvia um estado de consciência alterado mais longo,
provocando esquecimentos e letargias depois do transe, pode ter sido recuperada ainda
que inconscientemente nessa prática litúrgica.
Ir além da descrição do fato e perguntar-se por suas origens pode ser, relativo à
matéria por nós tratada, um pesado fardo sem resultados práticos. Entretanto, no
horizonte simbólico das religiões afro-brasileiras, o segredo de Orixá do Batuque abre
uma possibilidade inaudita. Encara-se a relação com a divindade como um mistério em
que a própria integridade da personalidade é posta em jogo.
O transe é um acontecimento de tal maneira precioso a ponto da lembrança da
fusão extática com o eu divino ser objeto de um cuidado extremo. Ninguém se pode
valer da manifestação do Orixá. Nem o próprio elegun. Se por um lado o Orixá se
apresenta como uma dimensão do eu da qual o elegun se ocupa, também é uma
dimensão transcendente que não pode ser aprisionada por nada, por nenhuma
discursividade, não pode ser dita.

Referências

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religiosas entre os Vodunsi do litoral sudeste do Benin, na África subsaariana, e o
Batuque do Rio Grande do Sul, no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, p. 202, 2016.

BASTIDE, Roger. Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.

CORRÊA, Norton Figueiredo. O Batuque do Rio Grande do Sul: antropologia de uma


religião afro-rio-grandense. Porto Alegre: Cultura & Arte, 2006.

DEMOGRÁFICO, IBGE Censo. Disponível em: http://www. ibge. gov. br. Acesso em
12.06.2018, v. 3, 2010.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

DRAVET, Florence. “O imaginário ou a comunicação entre corpo e linguagem.


Problematização do fenômeno da incorporação no Brasil”. In: Conexão – Comunicação
e Cultura. Caxias do Sul. Vol. 15, n. 30 (jul/dez 2016), p. 287-306, 2016.

ORO, Ari Pedro. “O atual campo afro-religioso gaúcho”. Civitas: revista de ciências
sociais. Porto Alegre, RS. Vol. 12, n. 3 (set./dez. 2012), p. 556-565, 2012.

ORO, Ari Pedro. “Transnacionalização religiosa no Cone-Sul: uma comparação entre


pentecostais e afro-religiosos”. Debates do NER. Porto Alegre. Vol. 10, n. 16 (jul./dez.
2009), p. 225-245, 2009.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

SILVA, Maria Helena Nunes da. O Príncipe Custódio e a Religião Afro-Gaúcha.


Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Pernambuco, p. 226, 1999.

SILVEIRA, Hendrix Alessandro Anzorena et al. Não Somos Filhos Sem Pais: história e
teologia do batuque do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Teologia) –
Programa de Pós-Graduação em Teologia, Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
p.136, 2014.

VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e Novo Mundo. Salvador: Corrupio,
1997.

Recebido em: 07/06/2020


Aceito em: 07/10/2020

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VOLTANDO PARA A “ORIGEM”? CONSIDERAÇÕES


SOBRE O CAMPO ENTRE PARENTES E OS “SEGREDOS
DE FAMÍLIA”

Ana Clara Sousa Damásio dos Santos1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34576

Resumo
O presente artigo busca refletir, através da pesquisa realizada para a elaboração da
dissertação do mestrado, os impactos de voltar para a origem e como essa volta é
respaldada, resguardada e constituída por eventos que nos precedem. Entretanto, como o
campo ocorreu entre minhas parentes-interlocutoras, a mudança subjetiva não aconteceu
apenas na parente-pesquisadora, mas também em todo grupo de parentesco e ajudou a
construir e reconstruir novas paisagens narrativas sobre nossa origem.

Palavras-chave: Etnografia. Parentes. Antropologia. Migração.

¿VOLVER A "ORIGEN"? CONSIDERACIONES SOBRE


EL CAMPO ENTRE LOS FAMILIARES Y LOS
"SECRETOS FAMILIARES"

Resumen
Este artículo busca reflejar, a través de la investigación realizada para la elaboración de
la tesis de maestría, los impactos del regreso al origen y cómo este regreso es
sustentado, protegido y constituido por hechos que nos preceden. Sin embargo, como el
campo se dio entre mis parientes-interlocutores, el cambio subjetivo ocurrió no solo en
el investigador-pariente, sino también en todo el grupo de parentesco y ayudó a
construir y reconstruir nuevos paisajes narrativos sobre nuestro origen.

Palabras Clave: Etnografía. Familiares. Antropología. Migración.

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era


uma história muito grande! Uma história viva que nascia
das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele
texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um
pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia?
Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito,

1
Graduada em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB). É
Mestranda em Antropologia pelo PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) da
Universidade Federal de Goiás (UFG). Membra do Ser-Tão / Núcleo de Ensino, Extensão e Pesquisa em
Gênero e Sexualidade – Faculdade de Ciências Sociais (FCS/UFG). E-mail para contato:
anaclarasousadamasio@gmail.com

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cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua


mente. (EVARISTO, 2006, p. 138)

A posição

Pensei em diferentes formas de começar esse artigo. Nenhuma cabia ou parecia


certa para o que eu queria contar. Eram coisas que se mesclavam, se atravessavam,
precisaram ser amadurecidas, precisavam de tempo e experiências para que pudessem
ganhar corpo e virar o presente artigo. Nem sei ainda se tive todo esse tempo ou toda
essa experiência, mas alguma vez terei? Por que digo isso? Porque considero que falo
aqui a partir, inicialmente, de não-lugar, ou melhor, a partir de um lugar de trânsitos,
relacionais e contextuais.
Meu corpo é “território contextual”, no sentido de que é pensado e apropriado
por diferentes pessoas de acordo com o local em que estiver e de como estiver. E não
há, nesse sentido, um controle que eu possa exercer para que ele seja lido de uma
determinada forma e não de outra. As reflexões aqui presentes surgiram em conjunto
com o campo etnográfico que resvalou na minha dissertação de mestrado intitulada:
“Fazer-Família e Fazer-Antropologia: Uma etnografia sobre ‘cair pra idade’, ‘tomar de
conta’ e posicionalidades em Canto do Buriti-PI” (DAMÁSIO, 2020).
O campo foi realizado em 2019 durante três meses no município de Canto do
Buriti-PI. Esse último é local de origem2 da minha família materna. A região onde está
localizada a área que é compreendida como Canto do Buriti surgiu com a ascensão e
exploração da borracha. Após a chegada de algumas famílias oriundas de São João do
Piauí, o local virou o intitulado Povoado de Guaribas. Apenas em 1915 o povoado
ganhou status de município e foi nominado como Vila Canto do Buriti. Com o declínio
da produção da borracha o município perdeu autonomia e voltou a ser território de São
João do Piauí. 3
Apenas em 1938 a região conquistou autonomia e foi elevada novamente ao
status de município, com o nome de Canto do Buriti, e assim permaneceu. Atualmente a
economia gira em torno da agricultura de cana-de-açúcar, milho, melão, manga,
apicultura e comércios locais. Canto do Buriti fica localizada no sudeste piauiense e tem
como bioma a caatinga. De acordo com o último censo, a cidade tinha 20.020

2
Todas as palavras em itálico são categorias êmicas.
3
Dados acessados na página do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatística). Acesso à página no
dia 19/07/2020. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pi/canto-do-buriti/historico

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habitantes, sendo que apenas 8,8 % da população possuía alguma ocupação formal (um
total de 1.854 pessoas)4.
Ao ir para o campo, acabei levando minha avó Anita para sua casa, que estava
fechada em Canto do Buriti. Minha avó Anita foi para o mundo, pois depois que caiu
pra idade precisou que suas filhas-mulher tomassem de conta. O mundo é tudo aquilo
que não é a origem (Canto do Buriti), mas é categoria êmica atrelada principalmente a
São Paulo e Brasília. Tomar de conta é um fenômeno que envolve múltiplas questões,
como disputa de poder. Ao mesmo tempo o fenômeno trabalha para a construção e
manutenção da hierarquia entre os sujeitos envolvidos nesse processo. De um lado, um
sujeito que toma de conta e, do outro, o sujeito que é tomado de conta. Nisso, quem
toma de conta passa a ser encarregado de policiar, cuidar, tomar decisões, em suma, ele
impacta na agência do sujeito de quem toma de conta (DAMÁSIO, 2020).
Entretanto, no desenho inicial da pesquisa de campo eu não tomava minhas
parentes como interlocutoras. Minha avó e minhas tias, tios, primas e primos que
estavam em Canto do Buriti seriam apenas minha entrada em campo, me apresentariam
para outras famílias e não seriam o local em que eu permaneceria com o intuito
investigativo. Mas eis que, durante o campo, acabei ficando restrita ao ambiente
doméstico. Isso ocorreu justamente porque tive que tomar de conta da minha avó. Esse
processo de tomar de conta acabou fazendo com que eu passasse a perceber que minhas
parentes eram também interlocutoras, ou melhor, como passei a chamar, parentes-
interlocutoras.
Minha vó, que teve oito filhos, acabou mandando todos muito mininos para o
mundo (São Paulo). A migração para o sul e sudeste é atrelada à possibilidade de
realizar alguma acumulação que auxilie nos processos de troca para com toda a família
que ficou no contexto rural e crie novas oportunidades de melhoria de vida (GARCIA,
1989). A decisão de migrar pode ser tomada por indivíduos que tentam escapar de
situações extremas, mas geralmente é uma decisão tomada em conjunto com o grupo de
parentesco. É a rede de relações que decide quem pode migrar, quem deve migrar, para
onde, sob qual circunstância e tempo. A migração pode ser apresentada então como um
projeto familiar ordenado pelo parentesco, gênero e geração (ASSIS, 2007).
Com minha mãe indo muito minina para o mundo, acabei nascendo na periferia
de São Paulo. Quando eu estava com dois anos de idade, meus pais acabaram migrando

4
Dados do Censo 2010. Acesso à página dia 10/07/2020. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pi/canto-do-
buriti/panorama

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para o interior em busca de melhores oportunidades de vida. Quando eu estava com 12


anos, fomos para o Distrito Federal - DF. Essa migração foi feita com intuito de me
oferecer melhores condições de estudo. Apenas aos 24 anos voltei para Canto do Buriti
com o intuito de fazer uma pesquisa etnográfica, mas eu havia visitado a cidade
anteriormente com minha mãe para passar férias enquanto minha avó ainda morava na
cidade. Esses episódios ocorreram em 1998 e 2012.
A ida para Canto do Buriti para realizar a pesquisa foi decidida principalmente
por eu viver em um contexto de incerteza acerca do corte das bolsas de pós-graduação.
Era como um fantasma que rondava a cabeça de todos os estudantes que precisavam
daquela bolsa para fazer, dar continuidade ou iniciar uma pesquisa. Assim, um contexto
onde eu já tivesse onde morar diminuiria os custos do campo e não me prejudicaria
tanto, caso eu perdesse a bolsa que eu tinha. Minha família nuclear ficou muito tempo
no mundo e nele fui socializada. O que a origem poderia oferecer, além de um campo,
uma dissertação, uma pesquisa, artigos, desenhos e fotografias?

Um lugar do Não-Lugar

Marc Augé (1994) afirma que contemporaneamente precisamos de novas


categorias analíticas que possam dar conta das complexidades espaciais que vivemos.
Nesse sentido, segundo o autor, um lugar antropológico congrega (embora possa
concretizá-lo em graus diferentes) as seguintes características: ele é identitário,
relacional e histórico. O não- lugar (Ibidem) não cumpre as características do lugar
antropológico e, portanto, não é identitário, relacional ou histórico 5. Se eu me considero
um não-lugar, quer dizer que leio meu corpo como território de passagem e transição.
Como levanta Angela Davis (2019) na sua autobiografia, que escreveu ainda aos
28 anos, depois de passar pelo sistema prisional americano, a nossa escrita só faz
sentido se coletivizada, pois nossas histórias são coletivas, elas não são apenas nossas.
Essas histórias só fazem sentido quando contadas não apenas pelo prisma de uma
experiência individual. Pois nossas histórias, como nossos corpos, não são individuais.
E a partir de onde eu falo? Falo a partir de tantas outras que estão nesse não-lugar, ou
que ficaram no meio, na passagem, em um não-lugar do processo de político, histórico e
colonial de embranquecimento.

5
Exemplos de não-lugares dados pelo autor: aeroportos, autoestradas, lugares de passagem.

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Falo como uma mulher? Falo como periférica? Falo como pertencente de classe
trabalhadora? Falo como a “Clara”? Como apontei, algumas coisas demoram a fazer
sentido e ganhar corpo efetivamente. Angela Davis (Ibidem) conta que:

Quando famílias negras tinham se mudado para o alto da colina em


número suficiente para que eu tivesse um grupo de amigos e amigas,
nós desenvolvemos meios próprios de defesa do nosso ego. Nossa
arma era a palavra. Nós nos reuníamos no gramado em frente de casa,
esperávamos que um carro com pessoas brancas passasse e gritávamos
os piores xingamentos que conhecíamos para elas: jeca, caipira!
Então, ríamos de modo histérico diante da sua expressão de espanto.
Eu escondia esse passatempo da minha mãe e meu pai, que podiam
não entender o quanto era importante para nós, que tínhamos acabado
de descobrir o racismo, encontrar maneiras de manter nossa dignidade
(DAVIS, 2019, p.91).

Angela Davis mostrava que, ao longo da nossa vida, vamos descobrindo


maneiras de manter nossa dignidade, criamos estratégias para sobreviver ao racismo,
machismo, capitalismo, enfim, ao mundo. No momento de escrever sobre minhas
parentes em campo questões emergiriam ao tentar contar a histórias dessas mulheres,
majoritariamente negras e analfabetas. O que eu, a “Clara” da família poderia falar?
Como eu poderia falar? A partir de onde? Para quem? Bom, foi com Conceição Evaristo
(2006) que aprendi que minha “escrevivência” era a união de tudo que me compunha
como pessoa, filha, neta, bisneta, antropóloga e filha de santo. Todos esses processos
eram separados. Eram papéis que se sobrepunham e criavam o processo de estar-em-
processo-de-vida. Esses papéis e múltiplos atravessamentos dele através do meu corpo
inevitavelmente comporiam minha forma de escrever, mas também de ver o mundo.
Perguntei-me por muito tempo por que eu tinha tanto ódio ao escrever. Descobri
que, ao falar com minhas parentes, tanto ao longo da dissertação, como a partir de tudo
que eu escreveria a partir do campo com elas, nossas palavras eram de muita dor, ódio e
fraturas de tudo que estruturavam nossas vidas no mundo. Com isso, descobri com elas
que nossas palavras não precisavam ser contidas ao serem transpostas para uma
dissertação ou um artigo. Elas deveriam existir, mesmo que nos lugares mais inóspitos e
frios e brancos.
Vivendo no mundo e dentro da classe popular e periférica, sempre fui a “Clara!”.
Essa foi minha posição até os 17 anos. Para os meus, eu era a “Clarinha”. Isso queria
dizer o mesmo que ser branca? Ao entrar na Universidade de Brasília aos 17 anos
descobri que, para muitas pessoas, eu não era a “Clara!”, no sentido de ser uma pessoa

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“Branca”. Entretanto, as pessoas realmente presentes nesse novo contexto e que eram
“Brancas”, não me viam como “Branca”, me viam como “Clara”. Era um longo e
doloroso processo de entender o que consistia ser a “Clara”. Ou como era viver em uma
posição de “mestiza” para o mundo (ANZALDUÁ, 2005), assumindo meu lugar de
alguém que está entre-mundos, entre passagens, em territórios sem nome.
Sueli Carneiro (2004) narra o registro da sua filha, pelo seu então companheiro,
um homem branco. No momento do registro, o escrivão colocou que a criança era
“branca”, mas o pai corrigiu o escrivão. Esse último mudou a nominação para “parda”.
O pai corrigiu mais vez e afirmou que a criança era “negra”. Bem, para ele, enquanto
um homem branco, era óbvio que sua filha era negra, mas os processos de
embranquecimento são ainda operantes e eficazes e geram propositalmente múltiplos
desencontros. Como a autora coloca, por que a branquitude é encarada como plural e
complexa (loiros, ruivos, descendentes de espanhóis, italianos, portugueses, entre
outros)? Por que há uma complexidade de fenótipos na branquitude, mas a negritude
entra em todas as ordens dos desencontros? E onde estou no meio disso?

Demorei muito tempo para me ver como uma mulher negra de pele “Clara”.
Esse é um espaço difícil de ocupar, pois é como se eu tivesse ficado no meio do
caminho de um processo de embranquecimento. Escutei durante minha infância que eu
era muito bonita, que eu tinha uma pele de “porcelana”, mas que eu ficaria mais bonita
ainda se ao crescer fizesse uma “cirurgia para corrigir seu nariz”. Essa última frase,
escutei do meu pai. Afinal, qual o problema do meu nariz? O que mais eu teria que
corrigir em mim para chegar lá? Quais os privilégios da minha pele? Escutei a infância
toda que meu cabelo era de “Bombril” e isso gerou uma ojeriza minha para com ele.
Foram anos de alisamento e clareamento.

Na III RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul, que foi realizada entre os


dias 22 a 25/07/2019 na UFRGS, em Porto Alegre – RS, um homem branco me
interpelou e pediu para tirar uma foto minha pois, segundo ele, “você tem nariz de preto,
cabelo de preto, mas tem a pele clara”. Mais uma vez o lugar do exótico, do meio do
caminho. Entretanto, nesse mesmo evento, mais especificamente no dia 25/07/2019, em
que eu me encontrava entre outras antropólogas, uma pesquisadora negra chegou em
meio a suas conhecidas distribuindo felicitações pelo dia Dia da Mulher Negra, Latina e
Caribenha. Ela veio até mim, também me felicitou e me deu um abraço. Naquele dia ela

188
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me deu um lugar. Como Munanga (2008) aponta, as dificuldades na lida em relação à


raça estão conectadas

[...] nos fundamentos da ideologia racial elaborada a partir do fim do


século XIX e meados do século XX pela elite brasileira. Essa
ideologia, caracterizada, entre outros pelo ideário do branqueamento,
roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’ ao
dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de
ambos (MUNANGA, 2008, p. 15).

Os “segredos de família”

Quando entrei na Universidade de Brasília em 2012 para cursar Ciências


Sociais, meus encontros e desencontros com a realidade que encontrei ali eram
múltiplos. Dividia a sala com filhos de diplomatas, empresários, governadores. O dia de
fazer minha inscrição foi também a primeira vez que pisei em uma universidade. Eu
estava indo para algum lugar. Foi lá também que tive com tato com minha atual mais-
velha. Essa ingressou no mesmo semestre e curso que eu. Foi com ela, uma mulher
nascida e criada em um terreiro de candomblé (DAMÁSIO; AHUALLI, 2018), que tive
meu primeiro contato com o mesmo. O candomblé era algo até então alienígena a mim.
Em 2013, fui à minha primeira festa de candomblé em sua casa (hoje também minha
casa), Ilê Axé Ida Wura, localizado em Sobradinho II – DF.
Minha primeira reação ao ver uma festa de candomblé foi de completo
assombro. Tudo ali escapava à minha compreensão. Entretanto, desde aquele dia passei
a ir a outras festas. Tudo isso escondido da minha família e grupo de parentesco. Eles
não entenderiam. Eis que, sem mais delongas, essa trajetória culminou na minha
iniciação em 2018. Esse também foi meu primeiro ano no mestrado. Se por um lado
meu pai disse, “Não aceito! A gente tenta tirar o pé da senzala, mas olha você voltando
pra ela. Você sabe que as pessoas vão falar, né”; minha mãe que afirmou, “Não entendo
porque você tá fazendo isso, mas respeito”. Com isso, começou minha trajetória como a
primeira candomblecista da família.
Em 2019 eis que chegou o momento de voltar para a origem, como já elucidei
no início desse artigo. Entretanto, a casa da minha avó tinha sido assaltada pouco tempo
antes de irmos para lá. Por isso eu cultivava certa insegurança e receio quanto a voltar
apenas nós duas para morar naquela casa. Resolvi pedir para minha Iyalaxé Mãe Lídia

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de Oxum jogar búzios para mim antes de ir ao campo e assim fomos para a mesa de
jogo. No momento do jogo ela disse que tudo ocorreria bem e isso me acalentou.
Entretanto ela comentou: “Você vai achar o que está procurando indo para lá”. No
momento em que Mãe Lídia disse isso, a frase não fez sentido nenhum para mim e
prossegui com outras questões. Afinal, o que eu estaria procurando ao voltar? Eu estava
procurando algo? Estava. Eu queria compreender os processos de periodização da vida e
do curso de vida em uma cidade pequena. Foi apenas a decisão quanto ao medo do corte
de bolsas que me arrastou para minha origem? O que mais haveria ali?
Eu estava a vida toda no mundo e ao voltar foi um momento de compreender
que, de múltiplas formas, eu era composta por um grupo de parentesco, por
ancestralidade, por uma família. Entretanto, ao resolver tomar minhas parentes como
interlocutoras, comecei a revolver o lago dos “segredos de família”. Era também um
processo de recuperar a história da minha família materna, mas eu não percebia, num
primeiro momento, que eu me recuperava por conseguinte.
Em um desses dias em campo uma prima minha veio visitar minha avó e a mim.
No final da conversa resolvi acompanhar a mesma até a esquina. Nessa conversa,
resolvemos comentar sobre meu falecido avô Luis. Ela havia acompanhado o mesmo no
seu leito de morte. Disse que após o falecimento dele minha avó chorava muito e um dia
ela (minha prima) encontrou a mesma (minha avó) perambulando pela cidade à noite.
Ela então levou minha avó para casa e perguntou o que havia ocorrido. Minha avó
afirmou que meu avô havia ido visitá-la e pedido para que ela não chorasse mais
daquele jeito, pois ele estava inquieto e precisava ir embora. Eu, mobilizada, perguntei o
que ela achava dessa história, ela apontou que: “Ah, é comum né. Rebinha tocava
Terecô, tambor, essas coisas, né”. Ela logo se despediu e seguiu caminho. Como assim
minha bisavó Rebinha tocava Terecô6? Por que ninguém havia me contado isso?
Em uma conversa de varanda com tia Itamar, filha da minha bisa Rebinha e irmã
da minha avó, resolvi perguntar sobre esse comentário que minha prima havia feito. Tia
Itamar então disse: “É verdade! Rebinha tinha salão. Fechou porque nenhum filho quis
continuar e ela ficou véia. Aí parou de mexer com essas coisas”. Por que passei tanto
tempo achando que era a primeira pessoa atrelada a uma religião de matriz afro-
ameríndia? Ou melhor, por que isso estava sendo enterrado e colocado na zona dos

6
“Terecô é a denominação dada à religião afro-brasileira tradicional de Codó [...]. É também conhecido
por Encantaria de Barba Soêra (ou Santa Barbara Soeira), por Tambor da Mata, ou simplesmente Mata
(possivelmente em alusão à sua origem rural)” (FERRETTI, 2012, p.296). Ver também SARAIVA
(2017).

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“segredos da família” e do que não vai sendo mais narrado (BENJAMIN, 1994) e
consequentemente a ser esquecido? Como Quijano (2005) coloca:

[...] a colonialidade do poder faz da América Latina um cenário de


des/encontros entre nossa experiência, nosso conhecimento e nossa
memória histórica. Não é surpreendente, por isso, que nossa história
não tenha podido ter um movimento autônomo e coerente, e mais
exatamente tenha se configurado como um longo e tortuoso labirinto
em que nossos problemas não resolvidos nos habitam como fantasmas
históricos. E não se poderia reconhecer e entender esse labirinto, ou
seja, debater nossa história e identificar nossos problemas, se não se
conseguisse primeiro identificar nossos fantasmas, convocá-los e
contender com eles (p.15).

A colonialidade atravessada pelo capitalismo e racismo nos afasta das nossas


origens em muitos sentidos e faz com que fiquemos em um labirinto nos
desencontrando de nós mesmos. Por eu estar no mundo, não conseguia vislumbrar o que
me compunha como ancestralidade e isso me colocava no constante não-lugar apontado
no início desse artigo. Era preciso levantar que esses processos de apagamentos
narrativos acabavam trabalhando para o apagamento de uma familiar atrelada à
experiência de povos negros e escravizados e tudo isso desaguava, em última instância
(ou primeira), no meu desconhecimento da história da minha família de origem.
Entretanto, percebi que não era apenas eu que passava por esse processo de
desencontros.
Após o campo, perguntei para minha mãe qual era o nome da bisavó dela. Ela
me confessou não saber. Perguntei as minhas outras tias e elas não sabiam também.
Descobri, com tia Itamar, minha tia-avó, que o nome da avó dela era Regina. E de onde
havia vindo a Regina? Ninguém sabia. Perguntei para minha bisavó Rebinha, que estava
à época da pesquisa com 94 anos, de onde a mãe dela havia vindo. Ela não sabia dizer.
Perguntei então onde elas moravam quando e minha bisa me disse apenas que “no
mato”.
Nossa história começava e terminava na minha tataravó Regina. Tudo que eu
sabia (e que a família passou a saber) era que ela era uma mulher negra e que teve cinco
filhos. Todo o restante é nublado, impreciso, incerto, desencontrado, não acabado. Tudo
começava e terminava em uma mulher que morava “no mato”. Não era por acaso, por
exemplo, que minha tia Regina (irmã da minha mãe) tinha esse nome. Eram histórias
que minhas tias maternas não sabiam e que “descobri” ao voltar e perguntar com o

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intuito de realizar uma pesquisa e se desbobraram em reconfigurar a paisagem narrativa


de toda minha família.
Nesse sentido, eu acabei de muitas formas mudando as narrativas de origem e
reconfigando a narrativa de outras pessoas que compunham o nosso grupo de
parentesco. Minhas parentes-interlocutoras não eram apenas dados de uma pesquisa.
Eram delas também essas histórias que emergiam com a pesquisa. De várias maneiras,
estávamos envolvidas e constituídas pelas mesmas malhas de parentesco e isso produzia
uma relação específica entre os jogos de objetividade/subjetividade na minha relação
com minhas parentes em campo. A minha etnografia e o campo estavam em algum
nível reconfigurando a minha família, reconstruindo nossas perspectivas históricas, me
reconfigurando e me reposicionando no mundo. Nesse sentido, trabalhar com o plano
objetividade/subjetividade não fazia mais tanto sentido assim após o campo, pois eu
estava imersa no universo da vida em família que extrapolava em muitos níveis essa
dicotomia e gerava um imbróglio que me mobilizava para além dos entendimentos
acadêmicos desses mesmos fenômenos.
Por conseguinte, eu fui “aproximada” da minha ancestralidade com a
etnografia? Penso agora que a etnografia foi um meio não para “descobrir” o que
sempre esteve lá, mas como um mecanismo que foi decisivo para que eu fosse
“aproximada” do que sempre me pertenceu? Não há como me expropriar do que eu
nunca perdi. E nesse sentido, objetividade/subjetividade não eram balanças analíticas
suficientes para trabalhar um mundo povoado para além de pessoas e coisas.
Esses “segredos de família” viriam à tona sem minha pesquisa? É uma pergunta
boba de se fazer, pois apenas conjecturas podem ser feitas e nenhuma resposta fechada
pode ser dada. O fato é que eu realmente escontrei as respostas que eu nem sabia que
estava indo buscar e que não eram relacionadas apenas à pesquisa, mas que tinham
relação íntima com a constitução da minha ancestralidade e de toda minha família.
Como bem colocou a antropóloga Kelly Silva (2007, p. 252) a atuação do campo não
ocorre apenas sobre “nossos conhecimentos antropológicos, mas também sobre nossa
própria subjetividade”.

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Notas nunca conclusivas

A prática migratória em contextos nordestinos pode ser vista entre as famílias


camponesas enquanto migração pré-matrimonial do filho, a do chefe de família e a
migração definitiva (WOORTMANN, 1990), onde os homens surgem como os
protagonistas migrantes. Entretanto, as narrativas de Canto do Buriti contam de um
fluxo migratório onde as mulheres foram as primeiras a migrar e só posteriormente
levaram os homens. Esses diferentes arranjos migratórios incorriam em uma carreira
migratória por parte dos indivíduos que organizam a família, a divisão do trabalho e o
núcleo doméstico em torno da migração.
E é justamente a migração como um processo de saber-fazer (FOUCAULT,
1972) que acabou introduzindo inovações para a minha família através de quem
participava dessa migração ao mesmo tempo em que balançou os moldes tradicionais de
saber-fazer. Por meio dessa experiência do ser migrante é que inovações foram
introduzidas ao grupo de parentesco e paralelamente reforçou tradições locais (da
origem) que também foram levadas para o contexto urbano e lá tencionadas. Ao mesmo
tempo em que poderia fazer com que a origem de certa forma fosse esquecida e que
alguns familiares ficassem soltos no mundo.
Pergunto-me se, caso eu não houvesse voltado para realizar uma pesquisa, esse
seria o meu destino, ser alguém solto no mundo, como diria minha avó Anita. Como
Certeau (1994) salienta, os indivíduos modificam um lugar através das suas
experiências prévias, histórias, mas é entre sua relação sujeito e mundo que acabam
fazendo de um lugar um "lugar praticado". Perguntaram-me se minha origem estava lá o
tempo todo ou se apenas a partir do momento que a tomei como origem foi que ela
assim fez sentido para mim. Minha resposta é que volto para a mesa de jogo com minha
Mãe Lídia. O caminho estava dado antes mesmo de eu saber qual era. O que eu estava
indo buscar era o meu lugar, antes mesmo de saber qual era. O que eu estava indo
buscar eram minhas parentes, era minha origem, era não virar alguém sem origem.
Como Igor Kopytoff, (2012) afirma, “O mundo é um lugar perigoso para se
viver, quando a pessoa não está ligada a um grupo de parentesco” (p. 236) e o mundo
tinha sido o meu espaço por muito tempo. De certa forma, duas coisas me deram
novamente uma origem. A primeira foi minha casa de santo e minha iniciação. A
segunda minha volta para Canto do Buriti. Esses dois processos não estão, assim,

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separados. Quando comentei com minha mãe a intenção de escrever esse texto, ela me
perguntou se eu sabia o nome inteiro da minha bisa Rebinha e eu disse que não. Ela
disse: “Nome de Rebinha é Maria da Conceição. Só isso. Não tem outra coisa depois.
Vi esses dias que Conceição é como chamam, como é o nome mesmo? Oxum, né!”.

Passamos a dar novos direcionamentos para a vida, a pesquisa, para nossa


família, para nossa origem, para nossa estadia no mundo. Assim como pensei em
diversas maneiras de começar esse artigo, pensei em inúmeras alternativas para terminá-
lo. Nada seria assertivo ou conclusivo, pois meu campo entre minhas parentes não se
encerrava, ele é um campo em-processo-de-vida. E de que vidas estamos falando aqui?
Estou falando de todo meu grupo de parentesco, que foi mobilizado e transformado pela
pesquisa, mas ao falar dele, falo de histórias de desencontros que nos antecedem em
muito. Por mais que não saibamos o que vem antes da tataravó Regina, sabemos muito
mais do que sabíamos antes da pesquisa ocorrer. E tudo foi por acaso? Bom, não
acredito em acasos ou desencontros para com esse processo de fazer-campo e fazer-
família e, nisso, fazer-ancestralidade. Para mim não são processos mais desconectados.
Eles se retroalimentam e me ajudam (e ajudam minhas parentes) a compor um novo
caminho.
Se alguns tentam criar fronteiras artificiais para dividir o mundo de forma
cartesiana e assim buscar compreender suas existências, essa forma de organizar a vida
não contemplou minha pesquisa com parentes. Era preciso me aproximar de muitas
formas para compreender. Era preciso me aproximar como filha de santo; como
antropóloga; como mulher negra de pele “Clara”; como tataraneta de uma mulher de
quem sei apenas o primeiro nome; de um avô que morreu tão cedo abrindo estradas no
Nordeste e do qual não lembro nem mesmo a voz; de uma bisavó ainda viva que eu não
conhecia; da minha casa de santo; da universidade. Era preciso, enfim, voltar-ir para
muitos lugares. Era preciso considerar que viver, fazer, escrever, pesquisar e recuperar
minhas origens não eram processos separados, muito pelo contrário.
Se na perspectiva de Ingold (2018) a antropologia é capaz de comparar e colocar
sob perspectiva crítica as formas de viver, isso resvala em levar as pessoas a sério. Não
pesquisamos apenas as pessoas, mas pesquisamos com as pessoas. Isso não quer dizer
apenas colocar o pesquisador na condição de aprendiz em campo, mas fazer com o que
o que ele aprende em campo também modifique sua compreensão filosófica sobre o
mundo. A antropologia pode ser colocada então como disciplina que abre margem para

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pensar a condição de aprender e ensinar em grandes escalas. Nesse sentido, afirmo que
eu não pesquisava e escrevia apenas as minhas parentes-interlocutoras, mas também
com minhas parentes-interlocutoras e nossas ancestralidades. Era preciso que esse
processo reanimasse o meu mundo e minha forma de fazer antropologia. Como coloca
Ailton Krenak (2019)

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em


sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma
intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de
experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio
de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança,
canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo
convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida.
Então, pregam o fim do mundo como possibilidade de fazer a gente
desistir dos nossos próprios sonhos. (p.27)

E é justamente a partir dessas ausências criadas pelo nosso tempo que busquei
tratar e considerar que negociações e apagamentos fazemos de nós mesmos dentro dos
textos e teorias que construímos para entrar no “clube da humanidade” (Ibidem), dos
processos civilizatórios e englobantes de uma grande humanidade homogênea e sem
rosto (ou melhor, com o rosto de um “Ocidente” branco e masculino).
Penso isso, pois essas discussões em relação à família e à minha recuperação
como uma pessoa composta por ancestralidades não foi tão bem trabalho na dissertação.
Esses incômodos não pareciam caber naquele formato e tampouco tenho certeza de que
cabe nesse. Talvez ele não caiba num texto. Talvez ele extrapole, inclusive, minha
carne. É importante, entretanto, que não deixemos de falar desses processos que por
vezes nem nós compreendemos ou trazemos com sentido pronto. Às vezes, é preciso ter
mais dúvida, do que certeza. É preciso ter mais ancestralidade, do que cientificidade. É
preciso deixar que essas dúvidas corroam, adentrem, façam casa e ganhem corpo (ou
texto).

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Recebido em: 04/10/2020


Aceito em: 07/10/2020

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200 ANOS NÃO SÃO 200 DIAS: HISTÓRIA,


PROTAGONISMO E ESTRATÉGIA DE MULHERES
NEGRAS NA IRMANDADE DA BOA MORTE (1820 – 2020)

Mariana Fernandes Rodrigues Barreto Regis 1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34574

Resumo
A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira – BA, completou 200 anos
no ano de 2020 e sua trajetória é essencial para a preservação das tradições provenientes
da diáspora africana. A Irmandade é um símbolo de resistência e exemplo de estratégias
para a criação e a manutenção de práticas sociais e culturais que combateram a ordem
colonial na Bahia e no Brasil. Além sua importância para as religiões de matriz africana
e para a luta antiescravista, a influência da Irmandade se disseminou em diversos
símbolos sociais e culturais da população negra, porém muitos nuances dessa história
ainda são desconhecidos ou ignorados pela historiografia tradicional devido a um
problema de “falta de fontes”. Esses e outros “problemas” de estudos das tradições afro-
brasileiras devem ser questionados para que possamos compreender até que ponto
interferem em trabalhos sobre tais organizações e qual a importância da oralidade na
transmissão, perpetuação e estudos destas tradições.

Palavras-chave: Irmandade da Boa Morte. Mulheres da Boa Morte. História Oral.


Oralidade. Religiões de Matriz Africana. Candomblé.

200 AÑOS NO SON 200 DÍAS: HISTORIA,


PROTAGONISMO Y ESTRATEGIA DE LAS MUJERES
NEGRAS EM LA IRMANDADE DA BOA MORTE (1820 –
2020)

Resumen
La Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira (Bahia) cumplió 200 años
en 2020 y su trayectoria es fundamental para la preservación de las tradiciones de la
diáspora africana. La Irmandade es símbolo de resistencia y ejemplo de estrategias para
la creación y mantenimiento de prácticas sociales y culturales que combatieron el orden
colonial en Bahía y Brasil. Además de su importancia para las religiones de base africana
y para la lucha contra la esclavitud, la influencia de la Irmandade se ha extendido a varios
símbolos sociales y culturales de la población negra, sin embargo muchos matices de esta
historia aún son desconocidos o ignorados por la historiografía tradicional debido a un
problema de “ausencia de fuentes”. Estos y otros “problemas” de los estudios de las
tradiciones afrobrasileñas deben ser cuestionados para que podamos entender hasta qué

1
Possui mestrado em História pela Universidade de Brasília (2016), na linha de pesquisa: História Social e
suas múltiplas formas. Trabalha com Irmandades Negras na América Portuguesa e Metodologia da História.
Graduação em História pela Universidade de Brasília (2013). Pesquisadora Associada do Observatório da
Saúde da População Negra NESP/CEAM/UnB. Email: marianaregis@gmail.com

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punto interfieren en el trabajo de tales organizaciones y la importancia de la oralidad en


la transmisión, perpetuación y estudios de estas tradiciones.

Palabras clave: Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte. Mujeres de la Boa Morte.
Historia oral. Oralidad. Religiones matriciales africanas. Candomblé.

200 anos não são 200 dias

“Nossos antepassados, as nossas irmãs eram intituladas


“as mulheres do partido alto”, então elas trabalhavam em
prol dos próprios irmãos... de liberdade, trabalharam para
conseguir as cartas de alforria ou as vezes até fuga para os
irmãos que eram necessitados e precisavam de ajuda.
Então, elas fizeram um movimento feminino pra poder
ajudar as irmãs... as outras irmãs a ter sua liberdade,
porque nem só a carta de alforria dava liberdade como até
hoje: Eles dizem que nós somos libertos mas a gente
continua embaixo do poder aquisitivo, sempre temos que
pagar tudo, tem que pedir licença pra tudo, então a
escravidão continua “por debaixo dos panos”, mas a gente
continua ainda naquele regime escravocrata ali. Então elas
faziam esse movimento pra fazer essa ajuda pros nossos
irmãos serem libertados, terem mais seus direitos, porque
a liberdade mesmo dos irmãos escravos é estar com deus
quando morrer. A liberdade da alma, do corpo é estar com
mamãe lá em cima quando a gente partir desse pra outro
mundo.” - Dona Nilza Prado de Carvalho – Irmã da Boa
Morte. (TVE Bahia, 2019)

No meio do Recôncavo baiano, entre muito samba de roda, maniçoba e a bela


vista do rio Paraguaçu, se encontra a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte,
localizada na rua Treze de maio, coração de Cachoeira. Inevitavelmente essas duas
histórias, a da cidade de Cachoeira e a da Boa Morte estão entrelaçadas e contam muito
sobre a trajetória de mulheres pretas no Brasil.
O legado da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira é
incontestável, mesmo que seu valor e sua história sejam, em alguns momentos,
negligenciadas pela historiografia tradicional e não sejam o foco de interesse de
pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Através de seus 200 anos, recém
completados e comemorados no ano de 2020, a Irmandade da Boa Morte atravessou
vários dos períodos históricos brasileiros, trazendo para os afrodescendentes da diáspora,
um marco referencial e representando uma instituição social, religiosa e política poderosa,
capaz de sobreviver ao sistema colonial escravista e seu período subsequente. Além de
lutarem contra a escravidão, comprarem alforrias e possibilitarem um novo horizonte para

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cativos, não podemos esquecer de um ponto crucial na constituição da Irmandade: ela era
e ainda é constituída exclusivamente por mulheres negras.
Paralelamente, na contramão das instituições tradicionais portuguesas, a
Irmandade da Boa Morte transmitiu seus ensinamentos e perpetuou suas tradições e sua
organização de maneira exclusivamente oral, possibilitando desta maneira, a perpetuação
das tradições espirituais experienciadas em África, possibilitando a criação do
Candomblé e de outras religiões de matriz africana. A Boa Morte, além de tudo, representa
mais profundamente: estratégia e existência de mulheres negras.

O que são as irmandades negras?

A história do Brasil é atravessada pela história da escravização de africanos.


Levando em consideração que a maior parcela da população brasileira é afrodescendente
declarada, (IBGE, 2010) assim sendo, a contribuição da população negra para a
constituição do que conhecemos hoje como Brasil foi e é essencial desde o período
colonial. O legado afro-brasileiro se faz presente em todos os âmbitos da vida social
brasileira, nas manifestações culturais, intelectuais, musicais, religiosas, culinárias,
econômicas, sociais entre outras. Neste sentido, alguns temas ou objetos, manifestações
e formas de expressões negras são essenciais para a compreensão e valorização da cultura
e da população negra brasileira. As histórias das organizações negras ao longo da
formação do Brasil são extremamente importantes para a continuidade da construção de
narrativas antirracistas, contribuindo para a compreensão da importância desses objetos
na nossa formação cultural e da nossa sociedade. Mesmo que pessoas negras sejam as
maiores vítimas dos problemas advindos da questão racial nos dias de hoje, compreender
a colaboração e o legado do povo preto no Brasil é uma necessidade importante para toda
a sociedade.
As Irmandades Negras representaram no Brasil escravista, uma das instituições
responsáveis pela transformação e sobrevivência das tradições religiosas e espirituais
africanas ao passo que foram essenciais para a criação destas novas práticas afro-
brasileiras. Assim sendo, a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, fundada
aproximadamente no ano de 1810 em Salvador - Bahia e transferida para a cidade de
Cachoeira – Bahia, no ano de 1820 e em funcionamento até os dias atuais, representa de
maneira emblemática esse passado de transformação vivida pelos africanos e africanas da

200
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

diáspora, além de recriar em terras brasileiras, suas práticas culturais tão importantes para
a sobrevivência dos povos africanos na diáspora e seus descendentes.
No campo religioso, o sistema colonial fez com que as concepções de mundo
africanas trazidas pela diáspora (HALL, 2006, p.28) fossem recriminadas, pois além da
catequização de índios e de africanos escravizados como estratégia de um projeto de
dominação e exploração, também era conveniente para tal projeto, combater os rituais e
práticas espirituais que não fossem cristãs nos moldes eurocêntricos.
Dentro deste contexto, as religiosidades africanas se perpetuaram no Brasil por
meio da resistência, transformação e adaptação do que existia em diversas etnias em
África e se reorganizaram na América Portuguesa sofrendo influência da cultura europeia
e indígena. Faz-se necessário ressaltar que os termos étnicos que diferenciavam estes
africanos se criaram com a diáspora compulsória e com o trabalho escravo, pois quando
se volta o olhar para a população cativa é possível perceber que ali se encontravam
pessoas de diversas etnias colocadas em categorias identitárias impostas pelo poder
colonial. (REIS, 1996, p.5)
As práticas espirituais vieram como herança dos africanos escravizados e aqui se
transformaram em religiões brasileiras de matrizes africanas, onde os rituais foram
trazidos através da memória e foram transmitidos majoritariamente de maneira oral para
seus descendentes. Ao longo das décadas e séculos, com as transformações do Brasil,
estas representações foram sendo transformadas ao mesmo tempo em que sofriam
intervenções culturais do ambiente no qual se construíram.
No contexto colonial, estes africanos foram arrancados de suas raízes e
submetidos a situações perversas, embarcados na travessia para as terras da América para
a submissão ao trabalho compulsório e para que este empreendimento colonial fosse
possível, era necessário tentar controlar várias experiências de vida dos africanos. REIS
(1996, p.4), atenta para o importante fato de que senhores e escravos conviviam em um
espaço de negociação e para que fosse possível a perpetuação do sistema escravocrata,
era necessário que os senhores “negociassem” com seus escravos, segundo suas palavras,
entre os extremos da “coerção e persuasão”. Ao mesmo tempo que o sistema vigente
tentava minguar as possibilidades de revoltas ou rebeliões, escravizados e seus descentes
se utilizavam de dispositivos internos, como as Irmandades Negras para criar um espaço
de sobrevivência e criação de identidades. Neste sentido, esse espaço de negociação
viabilizou o nascimento destas novas práticas sociais, culturais e políticas dos negros da
diáspora.

201
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

No sistema colonial, as raízes culturais deveriam ser “esquecidas” pelos africanos,


ou pelo menos deixadas de lado. No campo religioso, um dos meios encontrados para se
realizar a dominação destes povos africanos, era tentar fazer com que estes vivessem o
mais harmonicamente possível, para isso os colonizadores forçavam os escravizados a
substituírem seus cultos ancestrais tradicionais pela religião cristã do homem branco, e
assim, foi feita a tentativa de esquecimento da cultura religiosa de origem. Tal
empreendimento resultou em manifestações que conseguiram se reinventar e mesclar o
culto ancestral com as religiosidades do “novo mundo”.
Em “A África e os Africanos no Novo mundo”, John Thornton (2004, p. 253,254)
explica que múltiplas culturas independentes foram trazidas para a América na diáspora,
pois os africanos não compartilhavam de valores culturais homogêneos, sendo assim, o
mecanismo do comércio de escravos separava estes indivíduos de seus pares,
diferentemente dos processos migratórios dos europeus, onde no novo lar, os indivíduos
se colocavam em comunidades que partilham de valores em comum. No caso dos
africanos, milhares de indivíduos de diferentes culturas e etnias começaram uma interação
forçada, iniciando assim, a criação de uma nova cultura nas Américas desde a travessia
dentro dos navios negreiros. Para a criação desta nova cultura, a referência utilizada foi o
que as diversas culturas africanas possuíam de semelhante ou comum, usando como ponto
de ligação a cultura europeia. Ao dizer que estes escravizados priorizaram um
denominador comum na hora de construir uma nova cultura, é preciso atentar para o fato
de que segundo Thornton, estas diferentes culturas tinham sim práticas em comum que
existiam entre espaços muito distantes devido a trocas culturais, sociais e mercantis.
(THORNTON, 2004, p.347)
Ao serem lançados nos navios negreiros para a América, africanos de diversas
regiões do continente e de diversos povos foram obrigados a encontrar suas semelhanças
nos seus modos de viver para que pudessem conviver entre si. Nesse sentido, o culto aos
santos católicos, em alguma medida, auxiliou os africanos provenientes de diferentes
origens e tradições, a unir seus próprios referenciais com as diferentes “revelações”
trazidas por meio dos santos católicos. (THORNTON, 2004, p.347-351)
Com a necessidade de construção e sobrevivência dos escravizados nas terras da
América, entre várias instituições que serviram como mecanismos importantes para
viabilizar uma organização social, as irmandades católicas representaram um espaço
importante para a criação de novos modos de viver.
As irmandades católicas possibilitaram a construção de espaços de devoção e fé,

202
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organização política e social por toda a América Lusa. No caso das irmandades compostas
por africanos e seus descendentes, chamadas de “Irmandades Negras”, além destas
funções, elas representam um dos espaços onde se possibilitou a reconstrução cultural
destes povos nas terras americanas. Dentro de uma irmandade, o irmão associado a ela,
além de participar de atividades religiosas ligadas ao culto do santo ou da santa de
devoção, também podia desfrutar dos privilégios e auxílios promovidos por esta
instituição. Entre as funções de um irmão ou irmã devoto filiado a uma irmandade, estão
as contribuições financeiras, obrigações nas funções da igreja e as regras de conduta
colocadas pela igreja da qual é filiado. (REGIS, 2016, p.100-101)

A irmandade representava um espaço de relativa autonomia negra, no


qual seus membros – em torno das festas, assembleias, eleições,
funerais, missas e da assistência mútua – construíam identidades sociais
significativas, no interior de um mundo às vezes sufocante e sempre
incerto. A irmandade era uma espécie de família ritual, em que africanos
desenraizados de suas terras viviam e morriam solidariamente.
Idealizadas pelos brancos como um mecanismo de domesticação do
espírito africano, através da africanização da religião dos senhores, elas
vieram a constituir um instrumento de identidade e solidariedade
coletivas. (REIS,1996, p.4)

Os integrantes de uma irmandade participavam de atividades relacionadas à


devoção e gozavam de privilégios e auxílios. Como obrigação, era necessária a
colaboração em vários sentidos, inclusive financeiramente, assumindo obrigações com a
igreja e suas atividades. Esse ambiente de autonomia dentro da imposição escravista
funcionava como um respiro onde era possível o nascimento de um novo espaço, de
criação e reconstrução de seus elos ancestrais e de construção de identidade, enquanto
que para os brancos e senhores de escravos, as irmandades negras eram um ambiente de
dominação e domesticação, visto que a associação a uma irmandade representava o
sucesso na tentativa de conversão a fé católica. Paralelamente, os escravizados encaravam
este mesmo ambiente como um local de construção de identidade e solidariedade
coletivas.

A riqueza maior do estudo das irmandades talvez seja no profundo


significado histórico que elas apresentam. Foram e são instituições
que se espelham e retratam os diversos momentos e contextos
históricos nos quais se inserem. Com elas, o catolicismo e a Igreja
Católica amoldam-se à realidade na qual se propagam. Nada de
anacronismos históricos. As irmandades caracterizam sempre o seu
momento e o seu ambiente, dando origem à diversidade de formas,

203
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

por um lado, e à fluidez e imprecisão de suas denominações por


outro (BOSCHI, 1986, p.12).

As irmandades católicas negras foram substanciais para a formação cultural,


política e social do Brasil, representando um espaço de autonomia dentro da lógica
do sistema colonial, porém, é importante lembrar que essas organizações eram
submetidas aos dispositivos de controle da coroa portuguesa. Na maioria das vezes
necessitava de uma série de dispositivos para ter a seu funcionamento autorizado,
como o compromisso, que se assemelhava a um regimento interno e documento de
fundação, com o nome e a função dos membros e suas obrigações.
Estas entidades fizeram com que os africanos e seus descendentes pudessem
se inserir na religiosidade católica trazida do continente europeu pelos colonizadores,
por isso, ordens religiosas representaram um papel importante na disseminação das
devoções adotadas e transformadas pela população negra. (REGINALDO, 2011,
p.134). Na extensão de grande parte do território brasileiro, as irmandades negras se
instalaram e desenvolveram diferentes tipos de tradições culturais negras.
Historiadores se debruçaram sobre o estudo do desenvolvimento destas irmandades
em diversas cidades para assim compreender, como elas influenciaram o
desenvolvimento social da região e quais foram suas influências na religiosidade
negra. Sendo assim, alguns trabalhos são pontos chave para a compreensão do papel
dessas irmandades no Brasil.
Mariza de Carvalho Soares (2000), analisa a região urbana do Rio de Janeiro
e afirma que o número de irmandades cresceu muito na segunda metade do século
XVIII, com procissões cada vez mais cheias de adeptos. Na sua dinâmica interna, as
irmandades cariocas passavam por conflitos que ocorriam com o poder eclesiástico
ou originavam-se de disputas internas. Na organização destas irmandades, a sua
origem e a hierarquia a ser respeitada eram dois princípios essenciais, tanto
internamente, entre os membros das irmandades, quanto externamente, quando eram
comparadas a outras irmandades e com as organizações eclesiásticas.
Em Minas Gerais, Caio Boschi (1986) explica que as irmandades foram um
dos fatores responsáveis pela criação de laços sociais ou por manter laços já
preexistentes, proporcionando o elo de identidade entre os seus membros, mesmo que
estes fossem provenientes de diferentes regiões do continente africano ou nascidos
na colônia. Essas confrarias também proporcionaram um processo de construção

204
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identitária, fazendo perdurar a resistência das tradições africanas e serviram como


um espaço de compartilhamento e consolo das experiências vividas pela população
cativa. Este representava um dos poucos espaços de sociabilização dos negros ao
longo do período colonial.
No contexto baiano, Lucilene Reginaldo (2011), em seu trabalho “O Rosário
dos Angolas”, explica que haviam irmandades na Bahia com irmãos pretos e pardos,
devotos de Nossa Senhora do Rosário, desde o início do século XVII. Em nome desse
culto, ergueram-se a capela das Portas do Carmo, juntamente com a Irmandade do
Rosário dos Pretos da Freguesia de São Pedro. Posteriormente, outras irmandades
foram criadas na Bahia. Com a assimilação dos santos negros, estes assumiram o
lugar simbólico de ancestrais poderosos para os africanos e seus descendentes,
fenômeno que a autora denominou como “santo parente”. Essa apropriação negra dos
santos católicos foi essencial para a aceitação e disseminação destas devoções e fé.
(REGINALDO , 2011, p.140). Essa apropriação foi extremamente importante tanto
para a assimilação das devoções católicas quanto para a associação dos santos
católicos aos ancestrais africanos, chamados Orixás pela tradição Iorubá.
A configuração das irmandades negras na Bahia possibilitou uma organização
de poder paralela à organização eclesiástica e o surgimento de mecanismos
burocráticos informais. Assim, as irmandades proporcionaram a reunião e resistência
destas pessoas, o que possibilitou uma série de ações como a articulação de levantes
armados e encobrir a fundação de um dos primeiros candomblés da Bahia, assim
como fez a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios da Igreja da Barroquinha,
(SILVEIRA, 2006, p.150) ou as irmandades de pretos do Rosário, que representavam
uma instituição de grande força política e auxílio entre os irmãos, além da função
religiosa. (REIS, 1996, p.7)
A participação feminina dentro das irmandades negras foi variável de acordo com
o contexto local e com cada organização especificamente, o que torna o caso da Boa
Morte muito especial, afinal, a grande maioria das Irmandades erguidas nos séculos XVIII
e XIX, a quantidade de mulheres nestas organizações era sempre menor do que a
quantidade de homens. (SOUZA, 2007, 41).
Como já citado anteriormente, as irmandades católicas de negros tinham como
função, além do culto católico, a manutenção de auxílios financeiros para seus irmãos, a
disponibilização de funerais, entre outros tipos de ajuda. (REGINALDO , 2009, p.27).
Nesse sentido, é importante destacar a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, que

205
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

além destas funções, exerceu e exerce até os dias de hoje um grande papel de símbolo de
resistência para o povo negro. Tal atribuição se dá devido ao fato da Irmandade da Boa
Morte ter realizado ativamente um papel abolicionista ao longo do século XIX, seja
através de compra de alforrias ou de esconderijo para cativos, cumprindo assim o seu
importante papel político para a população negra. Paralelamente, a Irmandade também
possibilitou a fundação de terreiros de candomblé de diferentes tradições mantendo vivas
as tradições africanas amalgamadas pela diáspora.
A Irmandade da Boa Morte é um importante exemplo de preservação de tradições
culturais e religiosas, seja desde rituais sagrados de portas fechadas, restrito apenas a
integrantes da confraria, até ações cotidianas de exaltação e valorização da cultura afro-
brasileira até os dias atuais.

O histórico de cidade de Cachoeira e a Irmandade da Boa Morte

A história da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte não pode ser


desassociada do crescimento da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira,
localizada no Recôncavo baiano e elevada à categoria de cidade no ano de 1837.
Na segunda metade do século XVIII, Cachoeira se encontrava em ascensão
comercial devido a produção e exportação de fumo. O rio Paraguaçu, que corta a cidade,
fazia ser possível tanto o transporte de mercadorias para a baía de Todos-os-Santos
escoando a mercadoria, quanto o caminho inverso com produtos para o sertão baiano.
(REGINALDO, 2011, p.67)
Assim como outras cidades de interior localizadas em pontos estratégicos para o
escoamento de mercadorias, trocas comerciais, produção fumagueira e cultivo de cana de
açúcar durante o período colonial, Cachoeira cresceu bastante em termos populacionais e
em meados do século XIX, teve o início de sua decadência comercial.

Do povoado primitivo sobre uma colina, a cidade se expandiu ao longo


do Paraguaçu com seus sobrados. Para geri-lá, era preciso organizar sua
infraestrutura, com a pavimentação de ruas, construção de chafariz
público, pontas e cais. A partir do crescimento da cidade instalada num
vale e cercada por morros, foi necessário aterrar parte do rio, na segunda
metade do século XIX. No período colonial, era frequente medir a
colonização a partir da ocupação territorial e não do crescimento
populacional, conforme se expandiam engenhos e igrejas, e com estas
irmandades e devoção aos santos, elemento marcante da religiosidade
local elaborada entre igrejas e terreiros de candomblés (IPAC, 2011. p.

206
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26).

Após esse período de ascensão, Cachoeira teve o seu declínio comercial devido à
queda da produção econômica, por conta do pouco escoamento da produção de açúcar
proveniente da ascensão da produção de açúcar extraído da beterraba no continente
europeu e a proibição do tráfico de escravos, culminando na abolição, no final do século
XIX.
Cachoeira até os dias de hoje é reconhecida como uma cidade importante tanto
pelo seu passado quanto para o que representa nos dias de hoje, sendo atrativa
turisticamente pelos seus casarões e seu conjunto arquitetônico, suas festividades, seus
candomblés e a grande festa da Nossa Senhora da Boa Morte todos os anos no mês de
agosto.
O autor Renato da Silveira (2006) nos explica que a Irmandade da Nossa Senhora
da Boa Morte de Cachoeira foi fundada em um momento de grandes mudanças e feitos
para as tradições religiosas africanas no Brasil, como a fundação do culto aos eguns da
Ilha de Itaparica e a grande reestruturação do Candomblé da Barroquinha. A Irmandade
da Boa Morte cumpriu e cumpre até os dias de hoje, uma importante missão para os cultos
afro-brasileiros:
Assim como a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios era a
fachada legal que abrigava o Candomblé da Barroquinha e a associação
política dos nagôs-iorubás, a Devoção da Boa Morte abrigava a
Sociedade Geledé, ou pelo menos sua direção era integrada pelas
mesmas pessoas. Os dados disponíveis apontam para uma irmandade
mais aberta, com a participação de crioulos e malês, enquanto que a
devoção parece ter sido mais fechada, exclusiva de mulheres nagôs-
iorubás, exceção feita às suas descendentes crioulas e eventuais aliadas
de outras etnias africanas (SILVEIRA, 2006, p.454).

Como explica Renato da Silveira, a Irmandade da Boa Morte realizava ritos


mortuários ligados a seus ancestrais africanos relacionados a fertilidade e morte, e possui
uma estrutura administrativa bastante rígida em relação as membras associadas e a quem
é considerado próximo a Irmandade.
Em sua obra recém lançada “Povoamento e formação social de Cachoeira” o
historiador Luiz Cláudio Nascimento traz informações muito importantes para as
comunidades de matriz africana a respeito da Irmandade da Boa Morte. Ao contextualizar
o surgimento da irmandade, o autor explica que, no início do século XIX, um grupo de
mulheres, ligadas a fundação do Ilê Iyá Nassô Oká, um dos primeiros candomblés
baianos, se filiaram formalmente a devoção de Nossa Senhora da Boa Morte na

207
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Barroquinha, onde realizavam o culto africano das deusas-mães iorubanas, a Sociedade


Geledé2 e também formaram uma junta de alforria para libertar sacerdotisas importantes
do cativeiro.
Desde de sua transferência para Cachoeira, a Irmandade mantém sua estrutura
social e administrativa diferente das demais irmandades. A Irmandade da Boa Morte
nunca teve um compromisso 3, o que as coloca como devotas de Nossa Senhora da Boa
Morte, porém sem estarem legalmente inseridas na estrutura da Igreja Católica,
(NASCIMENTO, 2020, p.109) sendo denominadas assim como uma irmandade leiga,
status comum entre as Irmandades negras do situadas nos séculos XVIII e XIX. É
interessante o fato de que mesmo não estando inserida institucionalmente na igreja, a Boa
Morte manteve uma série de normas e preceitos semelhantes a outras organizações, como
a festa anual da santa de devoção, a eleição de uma mesa diretora e até mesmo a
organização de uma irmandade, porém com o fato de ser constituída estritamente por
mulheres negras. De acordo com o Título LX do Livro Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, as Confrarias que forem erigidas sem a autorização do arcebispado
devem ser visitadas por seus oficiais, afim de regularizar sua situação, onde o
compromisso deveria ser analisado para que abusos e obrigações fossem corrigidos pelas
autoridades em questão. (VIDE, 1853, 336)
Tais características trazem duas reflexões: a de sua fé e devoção em Nossa Senhora
e sua adesão a toda a estrutura para o seu culto. Ao mesmo tempo, tal esforço para o
cumprimento de todos os preceitos e normas de acordo com as outras irmandades do
período, podem ser uma maneira encontrada pelas mulheres da Boa Morte de passarem
desapercebidas, e não chamarem a atenção das autoridades para possíveis adequações
requeridas.

Podemos assim pensar que originalmente a Boa Morte não era uma
irmandade no modelo que concebemos todas as outras que existiram
em todo o Brasil, e sim um grupo de mulheres economicamente
emancipadas e idosas, que se organizava num grupo feminino de
representação de status, que se reunia anualmente para celebrar seus
ancestrais, mascarada sob o culto de assunção e morte de Maria.
(NASCIMENTO, 1999, p. 109)

2
Corporação político-religiosa feminina, de origem Ketu, que celebrava forças cósmicas e seus poderes,
seus cultos tinham ligação com as divindades associadas a fertilidade e a terra.
3
Compromisso era o documento que regulamentava o funcionamento das Irmandades em todo o território
da colônia, perante a Igreja Católica, segundo as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” do
ano de 1707. O compromisso funcionava como um regimento da organização, onde era exposto qual a
função detalhada de seus irmãos e quais eram suas atividades.

208
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Em outra obra, Nascimento demonstra que a irmandade passou por várias


mudanças na sua organização, desde seu período de fundação até 1999, e explica que a
Irmandade nunca foi uma instituição pertencente a Igreja, mesmo com sua forte devoção
à Nossa senhora.
A importante lição que tiramos desse debate é que ainda estamos longe
de entender o papel político que o negro engendrou nas suas estratégias
de resistência cultural e de manutenção do ethos africanos no Brasil.
Neste sentido, torna-se imprescindível definir o que de fato
representaram as irmandades religiosas negras, que tipo de catolicismo
praticava na Igreja, o conceito de crença entre os católicos negros,
praticantes, ao mesmo tempo, do candomblé (NASCIMENTO, 1999,
p.46,47).

Além da organização administrativa da irmandade, existe ponto importante e


essencial em relação as Irmãs, a maioria delas representam um ponto fora da curva em
relação a maioria das experiências de comunidades de africanos escravizados pela
diáspora, onde as famílias eram dissolvidas e separadas propositalmente pelos senhores,
como uma forma de enfraquecimento dos laços afetivos 4. Elas insistentemente
perpetuaram sua descendência desde sua criação, por volta de 1810 a 1820, ainda na
Igreja da Barroquinha em Salvador:

Embora obviamente fossem descendentes de africanas, elas pertenciam


a uma linhagem familiar construída na escravidão ou vinda e
permanecida na Bahia; esse dado é importante porque houve casos, em
Cachoeira e São Félix, em que parte de famílias africanas chegaram
juntos em situação de escravização. Ou seja, a Irmandade da Boa Morte
é uma corporação religiosa formada por famílias, em que uma filha
substitui a mãe, que é substituída pela neta, e assim sucessivamente
(NASCIMENTO, 2020, p.129).

A organização interna é bastante rígida hierarquicamente e administrativamente,


nesse sentido, os cargos são crescentes. Quando uma irmã é escolhida para ser uma
espécie de noviça da irmandade ela exerce uma função específica de Irmã de Bolsa,
responsável por recolher doações em dinheiro para que a festa aconteça. Sucessivamente,
de acordo com a idade de cada irmã, os cargos vão sendo designados no início do mês de

4
As comunidades e organizações negras foram constituídas em meio a desagregação familiar que é
resultado do tráfico de escravizados e as dificuldades vividas por essas pessoas. As tentativas de construção
de um vínculo familiar eram frequentemente destruídas por vendas de escravizados, sendo assim, os valores
culturais e os laços criados foram fundamentais para a recriação social e cultural afro-brasileira.
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO; 2006)

209
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

agosto5 antes da festa, para se definir a organização da festa do ano seguinte. Os cargos
assim como os das irmandades convencionais são Escrivã, Tesoureira, Procuradora Geral,
Provedora e Juíza Perpétua, cargo ocupado pela irmã mais velha da irmandade.
Desta maneira, a Devoção da Boa Morte se mostra uma instituição essencial na
construção e permanência de identidades afro-brasileiras nas terras da América,
preservando ao longo de sua existência, a memória de mulheres negras do período
colonial até os dias de hoje.
O autor Marcos CARVALHO (2006, p.15), que escreveu sobre a trajetória de
Gaiaku Luiza, afirma em relação a Boa Morte, que:

Provavelmente no final do século XVIII, várias africanas libertas e


endinheiradas, de maioria nagô, originárias do reino de Ketu, no antigo
Daomé, passam a assumir este culto, depois transferido para a Igreja da
Barroquinha, que pertencia, desde 1764, à Irmandade de Nosso Senhor
dos Martírios, formada por negros libertos jejes. Ali, essas negras kétu,
“enérgicas e voluntariosas” (verger), se uniram ao ramo feminino da
Irmandade dos Martírios, constituindo por africanas jejes, esposas e
parentes dos negros jejes formadores dessa Irmandade, localizada no
bairro negro da Barroquinha, para cultuarem exclusivamente, Nossa
Senhora da Boa Morte. A irmandade não era igual a tantas outras
existentes em Salvador. As negras que a formavam, jejes e ketu em sua
maioria, camuflavam o culto aos Orisá com o culto católico à morte e
assunção de Virgem Maria (CARVALHO, 2006, p.15).

Neste contexto, a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira chama


atenção devido ao fato de ser uma das mais antigas confrarias e trazer em sua ritualística,
tradições culturais católicas e ser comandada por mulheres do Candomblé. A Irmandade
é composta apenas por mulheres, que conseguiram fundar a instituição no século XIX,
em um contexto totalmente desfavorável e perpetuaram seus cultos e tradições até os dias
de hoje. A organização é conhecida mundialmente, principalmente por sua festa anual,
que acontece no mês de agosto.

O fato é que durante os três primeiros anos da década de 20, do século


XIX, a população baiana se viu fortemente envolvida nos conflitos pela
independência, compondo conforme assinala Barcelar apud Falcon
(s/d), In: (www.geocities.com/Wellesley/4328/historia.htm) um foco de
resistência ao domínio Lusitano. Nesse contexto, boa parte da
população, inclusive escravos, se vê engajada nesse movimento que até
então consolida uma ‘unidade’ momentânea de luta pela independência,
sendo que esse movimento por ora estendido ao Recôncavo, contribui

5
A festa da Nossa Senhora da Boa Morte acontece dos dias 13 a 17 de agosto, na sede da Irmandade e
uma semana antes, as irmãs decidem a comissão da festa do ano seguinte.

210
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

de certo modo para os constantes deslocamentos dos negros às cidades


do Recôncavo, resultando dessa conjuntura, “inúmeras iniciativas
religiosas e civis dos escravos, entre as quais, quem sabe, a própria
Irmandade da Boa Morte".
Há ainda outras opiniões acerca da mudança da Irmandade da
Boa Morte para a cidade de Cachoeira, opiniões que são partilhadas
pelas próprias adeptas dessa ordem religiosa, que na figura de Valmir
Pereira dos Santos, secretário da Irmandade da Boa Morte, narra que
esta teria sido expulsa da Igreja da Barroquinha. Tal fato teria ocorrido
uma vez que o culto singular dessa ordem congrega não somente
aspectos de cunho católico, mas também uma forte tendência a rituais
profanos característicos do candomblé (CIDREIRA e RIBEIRO,
2008.).

CONCEIÇÃO (2017, p.64,65.) define a Irmandade da Boa Morte como:

uma organização formada por mulheres negras, cujos princípios


religiosos orientadores são o catolicismo e o candomblé. O objetivo é
render homenagem às irmãs falecidas através dos rituais mortuários de
matriz africana, que se misturam aos rituais católicos; porém, o estilo
que verdadeiramente orienta suas vidas parece ser mais o africano,
ainda que os rituais estejam reelaborados e ressignificados. Eles
preservam marcas trazidas pelas primeiras mulheres que aqui chegaram
forçadamente. Tem-se, assim, a união de duas diferentes formas de
conceber a morte e a vida – a ocidental e a africana -, o que aqui chamo
de dupla pertença.6

Com tais transformações tão marcantes e essenciais para a Irmandade e sua


manutenção ao longo de quase dois séculos de existência, supõe-se que as estratégias
traçadas pelas irmãs passaram por modificações no fazer político, na relação social entre
as irmãs e as outras pessoas externas à organização, na sua festa e principalmente no culto
religioso, que coloco como prioridade nas atividades da Irmandade. Tanto o sincretismo
interno, quanto o sincretismo estratégico 7, certamente foram grandes aliados no sentido
de perpetuar as tradições da Boa Morte e fazê-las permanecer existindo através do mais
diferentes contextos e transformações, além de terem possibilitado o nascimento e a

6
Sobre a dupla pertença religiosa, (SANTOS, 2018, 135) nos explica que a inserção em uma irmandade de
culto católico concomitantemente com o fato de ser filha de santo, possibilitou a preservação de tradições
e a criação de novos cultos. Permitindo tanto a devoção aos santos católicos quando aos seus orixás de
maneira coexistente.
7
Em seu texto, “Olhares sobre os candomblés na encruzilhada: Sincretismo, pureza e fortalecimento da
identidade”, (FLOR DO NASCIMENTO, 2017) denomina de sincretismo interno, aquele que se deve a
história de nascimento dos cultos que agruparam divindades no Brasil, quando tais divindades eram
cultuadas separadamente no continente africano. Tal fenômeno não envolveu elementos religiosos que não
fossem provenientes das práticas africanas, elemento essencial para o nascimento dos candomblés. O
sincretismo estratégico se caracteriza por ser uma tática de sobrevivência das crenças africanas,
estabelecendo uma ligação com um santo cristão, sem que essa relação afetasse negativamente nos cultos
tradicionais.

211
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

disseminação do Candomblé. Se faz importante apontar que o sincretismo estratégico


amplamente citado e colocado como resultado pacífico da fusão de culturas existentes no
Brasil, foi uma narrativa construída sob a diminuição e o desprezo das culturas e
espiritualidades africanas, trazendo, na maioria das vezes, exemplos que exaltam a
contribuição cristã e diminuem as contribuições de origem africana. (NASCIMENTO,
1978, p.108-111).
A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte é um símbolo de resistência, de
exaltação da cultura e da religiosidade negra, de luta contra o racismo. A importância da
Irmandade é reconhecida nacionalmente e internacionalmente pela sua luta antiescravista
e pelo trabalho que fazem até os dias de hoje. Sendo assim, se faz necessário compreender
como a Boa Morte se organizou e fortaleceu durante o século XIX, para construir as
estruturas que as mantem vivas até os dias de hoje. Torna-se importante saber quem foram
estas mulheres que se articularam de maneira que permitiram a construção da Irmandade
enquanto instituição política com um legado muito importante para a luta antiescravista
e viabilizaram o nascimento dos candomblés.
O nascimento ou renascimento da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira e sua
permanência ao longo destes 200 anos, traz uma lição valiosa a respeito da produção de
conhecimento e nos explica muito sobre o que pode ser mais valioso ainda: as estratégias
de sobrevivência dos cultos negros no Brasil. A congregação é um patrimônio afro-
brasileiro vivo, que deve ser cultivado e exaltado, e deve servir de referência para as
experiências afrodiaspóricas no mundo todo.
Mesmo que o campo da História e a produção acadêmica tradicional não volte seu
olhar para algumas organizações que se comportam como a Irmandade da Boa Morte e,
em alguns momentos e, consequentemente, não as valorize o quanto deveriam, devemos
continuar produzindo um conhecimento que consiga representar estas organizações com
maior abrangência.
Ainda existem enormes lacunas a respeito da História da Irmandade, porém,
sempre respeitando os desejos e preceitos religiosos das próprias irmãs, devemos procurar
sempre saber mais a respeito de sua história, porém, também devemos atentar para um
ponto crucial para o entendimento da organização: a sua agência e intencionalidade no
intuito de não deixar explícito algumas nuances dessa trajetória.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

As detentoras do Awo

Em uma breve análise, podemos compreender a complexidade dessas nuances


históricas: Suas hierarquias, organização financeira, perpetuação da espiritualidade
africana, o refinados pré-requisitos e a seleção minuciosa para entrada na irmandade, a
sua influência política, o seu capital financeiro do passado, o cuidado e a reverencia as
irmãs ancestrais, o senso de comunidade e os costumes alimentares. Com tanta riqueza
de detalhes, porque que ainda é “difícil” traçar uma trajetória nítida sobre elas?
Em pesquisas sobre bibliografia, documentação (ou a falta de documentação), e
diferentes versões sobre sua data de fundação, pude perceber que essas ditas
“contradições” de narrativas foram e são essenciais para que a irmandade resista por tanto
tempo e elas não devem ser encaradas como um problema, mas sim aceitas como parte
desta trajetória, como ponto essencial na manutenção de suas tradições e necessárias para
que se cultivem o awo8 e suas tradições, assim como também suas transformações, que
desta maneira, são realizadas pelas próprias irmãs, e não por desejos e necessidades
externos a congregação.

O “problema” da metodologia

Já se sabe que a validade ou a confiabilidade dos relatos orais são colocadas em


cheque, quando comparadas aos relatos escritos tão amplamente estudados e tidos pela
historiografia como “tradicionais". Porém, mesmo em uma situação de desconfiança, tais
visões simplistas podem de certa maneira, auxiliar a pesquisa histórica baseada na
oralidade, no sentido de que estas constantes críticas fazem com que profissionais que se
debruçam em relatos orais estejam sempre atentos ao seu método e seu fazer
historiográfico (FERREIRA, 2002, p.327). Assim como explica a professora Marieta de
Moraes no trabalho “História, tempo presente e história oral”, a história oral como método
historiográfico possui tanto rigor científico quanto outro método de análise de maneira
que, tal método não representa menos segurança para historiadores que estão preocupados
com o os usos da oralidade para servir a interesses políticos e ideológicos. (FERREIRA,
2002, p.329).
Seja por ingenuidade ou por qualquer outro motivo, é de conhecimento de todos

8
Awo em Iorubá, significa ‘segredo’ elemento essencial presente nas religiões de matriz africana.

213
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

que se dedicam ao estudo da História, que não existem trabalhos de pesquisa que não
possuam suas escolhas políticas. Por consequência, é sabido o porquê de temas que
envolvem candomblés, macumbas, calundus, batuques e outros cultos e tradições de
pretas e pretos, assim como este aqui trabalhado, não são abordados por alguns cientistas
e quando são, trazem uma visão completamente estereotipada e distorcida das realidades
vivenciadas, a serviço de reforço de estereótipos racistas e imaginários.
O relato oral sobre as memórias individuais diz muito, não apenas sobre o que está
sendo contado, diz também bastante sobre quem está contando tal relato e quais são suas
concepções e visões, devido ao fato de que estas memórias são construídas através do que
foi representativo sobre o passado para quem está trazendo um depoimento. Além disso,
é importante salientar que existem conexões entre as memórias pessoais e as memórias
coletivas, enquanto que, relatos pessoais, quando colocados em conjunto, apontam para
relatos construídos por uma memória coletiva, agregando valor a estes sinais que não
variam. (POLLAK, 1992).
Nas comunidades provenientes da diáspora africana, a memória é preservada e
transmitida através da oralidade, diferentemente da tradição eurocêntrica, que prioriza a
escrita em favor da palavra falada. Segundo HAMPATÉ BÂ (1982, p.180), as tradições
africanas prezam pela oralidade como canal de transmissão de conhecimento, poder e
representam sabedoria e autoridade. O autor explica que a importância dada a cada uma
das maneiras de transmissão de conhecimento, se dá de acordo com o valor que a própria
sociedade em questão atribui a tal forma de transmissão:

... não é esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho,


seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale
o que vale o homem. […] […] Nada prova a priori que a escrita resulta
em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral
transmitido de geração a geração (HAMPATÉ BÂ, 1982, p.181,182).

A tradição oral é importante para as comunidades africanas e não pode ser


colocada em patamares abaixo da tradição escrita, assim como foi realizado por costume
no mundo ocidental, afinal de contas um documento escrito pode servir a interesses
específicos, escondendo ou desvelando detalhes, tanto quanto um relato falado. Neste
sentido, um testemunho se torna bastante importante ao se tratar do passado pois além de
elucidar sobre fatos acontecidos, também traz a importância e o sentido que aquele fato
possui na perspectiva de quem o está narrando. Nas sociedades que prezam o
conhecimento oral, a palavra tem um valor maior do que nas sociedades em que se

214
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apegaram a escrita e uma grande valorização das representações criadas pela memória.
(HAMPATÉ BÂ, 1982, p.180)
No contexto das Irmandades Negras, a oralidade se faz essencial para
compreensão de vivências dos indivíduos ou de entidades inteiras, no sentido que trazem
à tona dimensões acerca do passar do tempo e revelam diferentes percepções tanto com
o que é falado, quanto o que não é falado, trazendo novas possibilidades para o estudo da
organização. (SANTANA, 2013, p. 38–40)
Além do validade e importância da palavra dita e do cuidado com a transmissão
do conhecimento através da fala trazido como herança da travessia de África, existe o
fato de que o sistema escravagista dificultou bastaste as possibilidades de letramento de
escravizados, especialmente após 1835, quando foi proibido que escravizados
frequentassem escolas (PERES, 2020, p.162), tornando assim, a oralidade como meio de
comunicação mais eficaz e de maior entendimento para a população preta.
Assim como a Boa Morte, outras organizações também não possuem acervo
documental escrito que possam servir como fontes comprobatórias escritas de sua
fundação, funcionamento, porém isso não pode ser um impeditivo para seu estudo e para
seu devido reconhecimento.
A aclamada autora Nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie, em seu discurso,
posteriormente publicado como o livro: “O perigo da História Única” fala de maneira
simples e certeira sobre o ponto:

As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram


usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para
empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um
povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada; [...]Eu
gostaria de terminar com esta ideia: quando rejeitamos a história única,
quando percebemos que nunca existe uma história única sobre lugar
nenhum, reavemos uma espécie de paraíso (Adichie, C. N. (2009).

A importância das diferentes narrativas é essencial para trazer uma história


representativa a respeito de fatos e trajetórias. Assim sendo, se faz essencial, ao se tratar
de populações pretas, escutá-las, através de diferentes meios, e não apenas com livros e
documentos escritos, possibilitando assim, decifrar explicações para questões travadas
por tradições impostas à população diaspórica preta, trazendo à tona suas agências,
estratégias e protagonismo.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Conclusão

É essencial, como já dito aqui anteriormente, a importância e o legado construído


pela Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte e igualmente essencial, a conscientização
a respeito dessa organização e do que ela representa enquanto instituição de mulheres
negras anciãs, detentoras de conhecimento, dos segredos e espelho para tantas outras
mulheres negras. Sua história, quando colocada em um olhar mais atento, traz uma série
de pontos chaves primordiais para se compreender a nossa construção cultural e social.
Ainda há muito o que ser reverenciado, estudado e reconhecido, como o
nascimento do samba, que é um dos símbolos importantes de identidade nacional, ou a
possibilidade de organização dos candomblés da Bahia. Estes e outros assuntos não
citados e explorados nesse trabalho possuem uma forte ligação completamente
entrelaçada com a Irmandade da Boa Morte. Deve-se muito a estas mulheres e também
temos muito o que aprender com elas.
Em tempos tão inseguros e inconstantes em relação a retirada progressiva de
direitos da população preta, devemos olhar para trás e aprender com essas mulheres, para
que no futuro possamos também dizer que também conseguimos e que existimos. Se ao
longo da História do Brasil, a tentativa de destruição através de um projeto de apagamento
da população preta foi constante e dura, tenhamos a certeza que existem projetos de
existência e perpetuação muito maiores e bem sucedidos, vencedores... Sim, vencedores,
porque (re)existências pretas existem e continuarão existindo. 200 anos não são 200 dias.
Viva a Irmandade da Boa Morte! Viva Nossa Senhora da Glória! Axé!

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Recebido em: 04/10/2020


Aceito em: 07/10/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

ORIXÁ OU DIABO: A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DE


EXU NO BRASIL

Rychelmy Imbiriba Veiga1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.35815

Fiz meu ensino fundamental em uma escola evangélica e ali compreendi que a
religião que eu praticava não era igual a de meus colegas da Escola Batista que
frequentava, pois eles seguiam os fundamentos de um livro “sagrado”, a Bíblia. Era ao
redor deste livro que nos reuníamos nas aulas de religião e nas celebrações das diversas
datas comemorativas. Os professores usavam todas suas capacidades pedagógicas para
explaná-lo. Foi com essa sede de descobrimento do mundo, em um sistema letrado, que
me vi ávido por livros que falassem sobre o candomblé.
Assim, no começo de minha adolescência, na casa de uma mãe de santo de
Xangô, descubro um volume de um livro de Pierre Verger: Orixás: deuses iorubás na
África e no Novo Mundo (1981). Aquele livro me foi mostrado como algo importante,
que continha segredos, e me foi permitido folheá-lo enquanto meus pais realizavam as
cerimonias rotineiras do terreiro. Além de um texto muito atrativo, o que me chamou
muito a atenção foram as inúmeras fotos que esse autor fizera tanto na África quanto no
Brasil, mostrando as semelhanças ritualisticas entre esses dois territórios.
Foi a primeira vez que pensei em nossa religião para fora do terreiro,
atravessando fronteiras e tradições longínquas. Para os adeptos do candomblé, um
trabalho como o de Verger nas mãos de um número cada vez maior de adeptos
escolarizados acabou por transformar a realidade dos cultos afro-brasileiros, criando no
imaginário das religiões de matriz africana no Brasil, a busca pela África. A
Antropologia, neste sentido, foi decisiva na configuração do candomblé atual e os
trabalhos nascentes das experiências dos antropólogos em torno das casas eleitas como
tradicionais, contribuíram para a primazia das casas de nação Nagô.

1
Mestre em Estudos Étnicos e Africanos/ CEAO/UFBA. E- mail: rychelmy@hotmail.com.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A partir de 1930, a antropologia reconhece o candomblé como um


campo possível de pesquisa. Estudiosos brasileiros e estrangeiros
como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Ruth Landes,
Donald Pierson, entre outros, fazem o resgate histórico e
antropológico dessa religiosidade. Outras gerações de pesquisadores,
que tiveram como base estes, acima citados, tanto no sentido de
continuar suas investigações quanto de questionar certos paradigmas
em que se basearam, resgatam valores africanos desse orixá,
rompendo com uma visão estigmatizada do candomblé e,
especialmente, de Exu. (VEIGA, 2018, p. 22)

Essa antropologia (hoje adjetivada como antropologia afro-brasileira) continuou


crescendo nas gerações seguintes de pesquisadores, dentre os quais podemos citar uma
nova geração de clássicos, tais como:

Pierre Verger, Vivaldo da Costa Lima, Juana Elbein dos Santos e


Deoscoredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, entre outros que,
inclusive, parte de uma relação como candomblé diferente dos
anteriores, alguns com um pertencimento intenso. Com base nessas
pesquisas que eram consumidas pelo de santo, em espacial, os
integrantes do movimento negro, principalmente na década de 1970,
Exu deixa de ser o diabo e resgata aspectos originais da tradição
africana (VEIGA, 2018, p. 23).

No campo das visualidades, temos a antropologia visual, que utiliza da imagem


(fotografia ou vídeos) de forma não apenas auxiliar, mas como forma de engendrar
discurso como um documento. Entretanto, em especial sobre a fotografia – que
representa uma imagem congelada é pertinente considerar que:

O significado de uma fotografia está sempre inevitavelmente sujeito a


uma moldura cultural, envolto num discurso fotográfico, que limita as
suas possíveis funções, os seus significados e mesmo as nossas
expectativas e leituras em relação a esta, e como tal deve ser encarado
criticamente (CALDEIRA, 2017, p. 176).

Essa capacidade de ter um olhar crítico sobre as fotografias é o objetivo deste


ensaio. Alheio à grande contribuição de Verger para a legitimação e reconhecimento do
Candomblé – sendo ele também religioso, uma vez que a comparação entre os cultos
dos dois lados do oceano mostravam semelhanças irrefutáveis – as imagens, em especial
as fotos de Verger, serviram para legitimar as religiões afro-brasileiras.
As imagens desempenham um papel crucial na criação da experiência com o
sagrado, expressando e formando as diferentes visões do sobrenatural, assumidas em
diferentes culturas e épocas. As histórias das imagens no candomblé também

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

apresentam seus percalços, como a perseguição sofrida pelas casas de culto pela polícia,
que constituiu como crime a prática ritual, logo, a relação imagética deveria ser evitada,
para não virar prova irrefutável de contravenção penal. A proibição que se deu para que
as pessoas não fossem fotografadas nas casas de culto, ou mesmo em estados de transe,
foi então atribuída a uma suposta aversão das divindades; porém, desde a década de
1940, os registros de pessoas e de cerimonias feitos nas fotos de Verger, por exemplo,
vêm desencadeando questões e debates em torno do tema. A antropologia, de alguma
forma, conseguiu fazer registros que se tornaram históricos.
Para nosso melhor diálogo, analisarei como a imagem do orixá Exu, que
carregou o estigma da demonização como herança do sincretismo religioso, vem sendo
transformada no decorrer dos últimos anos. Exu é o Orixá mais humano entre todos,
nem completamente bom, nem completamente mau.
Desde o contato da cultura europeia com o continente africano, o choque
cultural esteve presente e o imaginário eurocêntrico atribuiu ao orixá uma carga
negativa, seja devido ao seu caráter humano, à sua sexualidade aguçada, ou à forma
antropomórfica, principalmente fálica, de seus objetos de culto, levando vários
missionários a criarem a partir deste orixá o diabo cristão. Logo, no processo de
cristianização, Exu torna-se a fonte de todos os males, a personificação do mau. A
identificação desse orixá com o diabo se consolidou nos dicionários e nos escritos de
diversos estudiosos desde o começo da colonização até os dias atuais, como em
Crowther (1852), Maupoil (1938) e Abraham (1958); e foi essa mentalidade propagada
pelo colonizador que encontrou eco no Brasil colonial.
Na construção do candomblé, na busca pela legitimidade de um culto aceitável
pela sociedade, o culto a Exu deveria ser escondido aos olhos dos não iniciados. Isso
influenciou o modo como o xirê, a roda constitutiva das cerimonias públicas, foi
instituído. Exu deveria ser agradado a portas fechadas antes das festividades públicas,
para não aparecer ao público em geral e para não atrapalhar a festa. A fim de fazer a
comunicação entre os humanos e as divindades, mediador entre estes dois mundos, foi
impossível anular o culto ao Orixá, mas seu ritual se tornou interno e secreto. Até hoje,
nas casas tradicionais da Bahia, as cantigas aos orixás no xirê começam pela saudação a
Ogum.
Na liturgia iorubá, para além das ideias colonialistas, Exu é um orixá muito
complexo. Ligado ao começo da vida na terra, ele é o equivalente ao Adão cristão, a
massa primordial que ganha vida com o sopro divino de Olodumare, tendo nessa forma

221
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

primordial a forma de Yangi, a pedra vermelha de laterita, a lama em estado bruto,


destino reconstituinte de todos os seres humanos após sua vida na terra. Ele está ligado
à multiplicidade, ao crescimento, e é o mensageiro, responsável pelo movimento e pelas
sensações do corpo, como frio, o calor e a fome — sensações relacionadas com o bará,
o Exu do corpo constituinte de todos os seres vivos.
Exu é o responsável pela sexualidade humana e é representado sempre pela
forma fálica, como podemos ver nesta descrição do século XIX:

O culto do falo é exibido com despudor. Vê-se por toda a parte o


horrível instrumento que Liber inventou para servir às abomináveis
manobras de sua paixão: nas casas, nas ruas, nas praças públicas. É
encontrado isolado; os falóforos, às vezes, carregam-no com grande
pompa; em certas procissões, agitam-no com ostentação e apontam-
no para as jovens, no meio das danças e dos risos de uma população
sem pudor. Os negros são bem inspirados quando fazem desse
instrumento o atributo a Elegbara, personificação do demônio
(BOUCHE, 1885, p. 121).

Embora a figura fálica seja um dos mais importantes atributos em seus objetos
de culto, esta nem sempre está representada de forma óbvia, sendo comum que o orixá
seja representado por um chapéu que cai por suas costas, numa cauda fálica, ou por
vezes em esculturas com penteados fálicos. A sexualidade pode ser também
representada pelo prazer oral, em várias esculturas, como no ato de chupar o próprio
dedo, assobiar ou tocar flauta. À Exu são atribuídos ainda os sonhos eróticos, o
adultério e toda relação sexual ilícita. Para entender esse processo, devemos levar em
consideração também os valores sociais vigentes nas sociedades africanas, a relação
com o corpo e a necessidade da fertilização, de ter famílias grandes, para o sucesso
social e financeiro das mesmas.
Exu, no Brasil, mantém alguns de seus atributos, porém, com a socialização dos
negros africanos e a construção de novas formas de culto, como a umbanda e a
quimbanda – religiosidades construídas no sincretismo – as associações ao diabo cristão
começam a moldar o imaginário popular de maneira diferente da Africana. Dessa
associação, nasce a representatividade do tridente, arma de Netuno na mitologia
romana, ou seu equivalente Poseidon na mitologia grega, bem como de demônios
inferiores que passam a fazer parte do imaginário religioso coletivo. A imagem da
mulher, em sua associação com Exu, associa-se à figura da Pombagira, considerada uma
mulher lasciva, promíscua e de caráter ambíguo. Essa associação ao diabo se torna

222
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

evidente também nas diversas imagens vendidas pelas lojas especializadas em cultos
afro-brasileiros, quando é representado por uma tez de cor vermelha e com chifres. No
Brasil, principalmente na umbanda, Exu está associado a espíritos “menos evoluídos”:

Os exus são, pois, os escravos que não aceitam seu destino, que se
revoltam contra os senhores, que os matam com o veneno e a
feitiçaria. Nos cosmos umbandistas, são depreciados, situados fora do
mundo dos espíritos evoluídos, nas trevas da ignorância, mas, ao
mesmo tempo, valorizados em razão do poder que essa posição
marginal lhes dá. São poderosos por serem impuros (CAPONE, 2009,
p. 102).

O sincretismo acabou promovendo uma modalidade de culto misto, em casas de


candomblé que cultuam tanto a divindade Exu, quanto casas que adotam o culto a essas
entidades, denominadas “catiços” ou “escravos”. Nessas casas, é comum assentar um
casal de entidades, o Exu e a Pombagira.
Devido ao forte sincretismo, as iniciações a esse orixá no Brasil tornaram-se
motivo de contradições, e, embora nosso interesse nesta pesquisa seja entender a
influência das imagens de Exu captadas pela ótica de Verger, é impossível não se deter
sobre os estereótipos atrelados a esta divindade. As casas de culto mais ortodoxas da
tradição iorubá no Brasil, ditas Ketu, pelo menos aquelas consideradas casas matrizes,
oficialmente não iniciam pessoas para Exu. Não se nega que existam filhos deste orixá,
porém quando isso acontece, se inicia a pessoa pra Ogum, seu irmão mítico e orixá
muito próximo. Muitas vezes essa prática gera discussões acirradas, como mostra
Verger:

Uma delas [das filhas de Exu] faleceu recentemente na Bahia. Foi


iniciada por volta de 1936 e, com o sincretismo de Exu com o Diabo
não deixa de dar-lhe um aspecto desagradável; murmurava-se que
haviam pregado uma peça nela. Foi assentado Esú e não Ogum, o
verdadeiro senhor de sua cabeça, ou, mais exatamente, um Esú
servidor de Ogum, que o acompanhava, é quem teria sido assentado,
fazendo-se as obrigações para Esú com as folhas que lhe são
consagradas. Isso teve como consequência o afastamento de Ogum,
que desde essa época queixava-se de ter sido negligenciado e acabou
matando aquela a quem reivindicava para ele (VERGER, 1999, p.
132).

O processo de africanização do candomblé (VALLADO, 1999; MELLO, 2008)


transformou também a relação das casas de santo com o orixá Exu. Embora as casas

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

matrizes não o iniciem, é cada vez mais comum que as casas que descendem delas o
façam. Nos últimos anos, podemos ver casas tradicionais iniciando homens pra Exu,
como o Pilão de Prata, o Terreiro do Cobre e o Opô Aganju.
Nas casas onde se inicia Exu, existe o cuidado de delimitar quais as fronteiras
entre o que é cristalizado na africanidade e os modelos de culto organizados a princípio
no Brasil. Até mesmo em casas matrizes é usual, por exemplo, o uso de assentamentos
rituais com tridentes, atribuição, como já foi colocado, do culto a Exu no novo mundo.
É sempre um dilema em muitas casas a feitura ou não deste orixá, pois, por um lado, se
busca a legitimação de uma raiz nobre, quanto mais esteja ligada a uma casa matriz,
pela fidelidade à sua tradição — portanto, quanto mais “pura”, mais difícil se torna
realizar a iniciação. Por outro lado, uma pessoa que se propõe a cultuar este orixá
demonstra ser um sacerdote ou uma sacerdotisa com um conhecimento do culto muito
grande, uma vez que é capaz de manipular o axé de um orixá tão poderoso e raro.
Os escritos e registros imagéticos de Verger sobre Exu (1999), tanto na África
quanto no Brasil, buscam legitimar as imagens do culto africano. Em nenhum momento,
em suas obras, ele fala sobre como o orixá é representado usualmente, tampouco
fotografa imagens ou assentamentos ao modo brasileiro tão comum em casas
tradicionais, até mesmo nas casas onde realizou suas pesquisas e era ligado às liturgias.
Ele deu ênfase a poucos assentamentos que mantinham uma ligação mais estreita,
porém menos comum, com a África. No capítulo em que o autor fala sobre Exu no
Brasil, há certa contradição, pois, segundo os informantes aos quais ele recorre para a
pesquisa, existiriam 21 qualidades de Exu, as quais descreve com nomes africanos,
como Alaketu, Lonan, Jelu, Jigidi, dentre outros. Nos dois parágrafos seguintes, ele
descreve a casa de uma iniciada para Exu, onde encontra diversos assentamentos do
orixá. Porém, com nomes característicos da umbanda, como: Sete Facadas,
Mulambinho, Vira, dentre outros, e, de certa forma, faz vista grossa para esses deslizes
etnográficos.
É interessante que em um retrato feito por Verger na década de 1940 há um
registro da incorporação de uma Iaô de Exu, de um modo que não seria provável,
devido ao entendimento que se tinha deste orixá na época. O capacete pontiagudo, que
no mito africano esconde uma faca na cabeça de Exu, os símbolos fálicos em sua
cintura, as cabaças, as fileiras de búzios e o colar de chifre de boi, bem como o ogó,
bastão em forma de falo, são elementos do culto iorubá resgatados nos últimos anos,
principalmente devido ao contato com africanos e o crescimento do culto a Ifá.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Questiono-me se essa construção fotográfica não teria forte influência de Verger, visto
que se sabe que ele fazia a ponte cultural e litúrgica entre África e Bahia no vai-e-vem
de suas pesquisas.
Outro dado que corroboraria para essa “montagem” realizada por Verger é o fato
de que, como é sabido até mesmo pela tradição oral, a iaô fotografada, Sofia de
Mavambo, não era da tradição ketu, tendo sido iniciada pelo Tata Ciríaco do Tumba
Junsara, casa tradicional da nação angola.
Podemos observar, nas três fotos de Sofia disponíveis na Fundação Pierre
Verger, que o orixá não está dentro de uma roda de candomblé, como todas as outras
fotos do transe sagrado de outros orixás — está paramentado sozinho, do lado de fora
da casa. Questiono-me se essa construção fotográfica não teria forte influência de
Verger, visto que ele fazia a ponte cultural e litúrgica entre Áfricas e Bahia no vai e vem
de suas pesquisas.
O que posso afirmar é que havia, sem sombra de dúvidas, um grande
intercâmbio entre intelectuais e artistas da época. É notável que há, por exemplo, uma
grande semelhança entre o Exu fotografado por Verger e o idealizado nos desenhos de
Carybé: a mesma roupa, os mesmos instrumentos, paramentos e a mesma postura
corporal, mostrando que essa construção imagética atravessa os meios acadêmicos,
artísticos e culturais. Na prancha esculpida em madeira que se encontra no Museu Afro
da Universidade Federal da Bahia, localizado na histórica Escola de Medicina, que fica
no Pelourinho, nota-se que Carybé continua idealizando, como Verger, um Exu nos
moldes da tradição africana, não esquecendo, porém, mesmo que discretamente, de
expor um tridente.

Figura 1.Exu de Verger Figura 2: Exu de Carybé

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

A roupa, os instrumentos, as paramentas e a postura corporal são os mesmos,


demonstrando que tanto o meio acadêmico quanto o meio cultural comungavam das
mesmas construções. Em sua Prancha esculpida em madeira, que se encontra no Museu
Afro da Bahia, Carybé continua idealizando como Verger um Exu africano, não
esquecendo, porém, mesmo que discretamente, de expor um tridente.
A busca pela legitimidade de uma matriz africana, idealizada por pesquisadores
das religões afro-brasileiras, influenciou a liturgia das comunidades de culto no Brasil,
transformando a relação existente entre as diversas casas. As obras de autores como
Pierre Verger (1999) e Juana Elbein dos Santos (2012) foram um marco neste sentido,
sendo seguidas por diversos outros autores contemporâneos, estudiosos e religiosos. A
internet e a interação através dos diversos meios de comunicação facilitaram e
encorajaram posturas de alcance mais amplo e global.

As redes sociais constituem um grande aliado ao povo do candomblé.


É uso comum nos candomblecistas a internet como ponto de pesquisa
e comunicação entre Sacerdotes e iniciados. A proliferação de grupos
nas redes sociais e a inclusão doa adeptos do Candomblé em diversos
grupos, ao mesmo tempo, cria uma rede ampla de informações que
circulam muito rapidamente. (OLIVEIRA JUNIOR, 2018, p.14)

O culto a Exu, como orixá africano, é uma realidade, sendo, hoje, a resistência à
sua iniciação uma prática de pouquíssimas casas, que carregam a alcunha de
tradicionais e procuram se manter fiéis às suas ideologias iniciais. A foto de Verger,
assim como a arte de Carybé, cristalizou uma forma característica de ser desse orixá que
foi replicada por algumas casas de santo, sem maiores problematizações. Entretanto,
enquanto um babalorixá e pesquisador que sou, sinto na pele uma parte da natureza
dinâmica e inexplicável desta divindade. Também tenho feito da parte explicável, uma
bandeira de luta tanto para o entendimento deste Orixá na sociedade, quanto com a
finalidade de colocar na gira epistemológica saberes e fazeres oriundos destas matizes.
Para tanto, o trabalho de reflexão e descolonização de sua imagética, bem como de
elaboração de novas imagens, desponta como possibilidade da construção de novas
narrativas a partir de olhares negros.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Referências
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MAUPOIL, Bernard. La géomanci à l’anciene Côte des Esclaves. Paris: Institut
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Rio Grande do Norte no início do século XXI: intolerância contínua versus resistência
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VALLADO, Armando. Os Percalços da Africanização. Trabalho apresentado no


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Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

_______________. Orixás: deuses iorubas da África e do Novo Mundo. Salvador:


Corrupio, 1981.

Recebido em: 16/12/2020


Aceito em: 16/12/2020

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AO BARRO VOLTARÁS: REFLEXÕES SOBRE A


NASCENÇA

Ana Carolina de Souza Silva1


DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34981

Começo
Mbanda Nzila

Eles queimam a escrita,


mas não queimam a oralidade.
Eles queimam os símbolos,
mas não queimam os significados.
Eles queimam os corpos,
mas não queimam a ancestralidade.
Salve!
(SANTOS, 2019, p. 35)

O trecho do poema de Mestre Nêgo Bispo acima é provocador. Ele me faz


pensar nos diversos processos que vivi/vivo direta e indiretamente devido às práticas da
colonialidade. Há o que posso explicar e o que sequer posso imaginar. Costumo dizer
que essa impossibilidade de comunicar ocorre devido às limitações decorrentes da
linguagem; trata-se de golpe de “mestres” impor uma língua a fim de exterminar uma
cultura e, em seguida, determiná-la como “a língua”, ou seja, uma língua única. O que
quero dizer é que há aquilo que sequer sou capaz de dizer, pois me falta...
Permito-me me apresentar. Sou ndumbe da casa Manzo Kalla Muisu, terreiro de
candomblé de angola localizado no setor rural Sobradinho dos Melos, pertencente a
região administrativa Paranoá-DF. Meu pai de santo é Tatetu Kanamburá, um homem
de Kasuté Lembá muito sábio e responsável. Ele, assim como toda a família, me
acolheu naquela casa há alguns meses e, desde então, tenho aprendido com as
con’vivências.
Digo de antemão que minha intenção não é a de detalhar a tradição do
candomblé angolano, tampouco venho teorizá-la. Venho com um propósito de
apresentar minha perspectiva de criança ainda não iniciada nessa doutrina que,

1
Universidade de Brasília. Email: css.ana@hotmail.com

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conforme Tata nos diz, não se aprende nos livros. Portanto, malembe aos mais velhos
caso o que eu diga aqui esteja indevido.
Assim, sendo uma ndumbe recém chegada, reconheço que pode haver diversos
equívocos aqui, por isso ensaio essa reflexão. No entanto, me recordo de um recém
muzenza, um amigo, que dizia: “você, criança, hierarquicamente não tem muita
importância, mas tua fala pode nos trazer/lembrar algo importante, justamente por
perceber tudo pela primeira vez”. À vista disso, meu desejo é de transgredir. Por
associação, teço uma rede que propõe minhas vivências e aquilo que mestres e mestras
como Bispo dos Santos, Ailton Krenak, Beatriz Nascimento, minha avó e outras e
outros mais velhos já discorriam.

Meio
Pois bem, era dia 12 de outubro no calendário gregoriano. Nesse dia, aqui no
Brasil, temos o feriado em comemoração ao dia de Nossa Senhora, e também ao dia das
crianças. Os nossos referenciais, como sempre, são capitalistas, uma vez que dia das
crianças é o dia de comprar brinquedos e gastar dinheiro em parques e ambientes de
recreação. Nossa sociedade modernizada não é capaz de celebrar as crianças como
possibilidades de cura para o futuro; pelo contrário: a data é um reforço das práticas de
consumo exacerbado. Próximo a data há um grande investimento em publicidade a fim
de alcançar o interesse dos pequenos com parafernálias de plástico – tudo isso me faz
rememorar a crônica e a bola de Veríssimo.
Ademais, o dia de Nossa Senhora é um feriado católico. Lembremos que o país é
laico, mas sabemos que, entre outras coisas, essa é só mais uma formalização; a nossa
burocracia, cheia de seus rococós, serve, na verdade, para manter o estado de coisas. O
Estado junto à modernidade e suas ordens políticas e econômicas não prioriza a
verdade, mas a conveniência. É por isso que descaradamente o país permanece sob
grande influência euro-cristã.
Pois bem, estamos no terreiro e, nesse momento, Pai Lua Branca começa os
rituais. Ele é um caboclo encantado, o que significa que, conforme ele mesmo diz,
esteve em terra e um dia não pisou nela mais. Encantado é esse ser que nem vive, nem
morre, mas se encanta e faz história nas histórias dos outros a partir de suas próprias
histórias.

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Relembro bem! Ele sabe e compartilha o conhecimento de que nada nos impede
de sermos devotos de Maria Padilha e de uma santa; um boiadeiro e Santo Antônio;
tudo ao mesmo tempo. Sua fala vai de encontro a uma das maiores referências
intelectuais vivas que acredito termos no Brasil. Não o chamarei de intelectual negro,
pois ele mesmo não admitiria isso. Ele é um ancião, alguém que veio antes, alguém que
teceu e desteceu muitas redes e, por isso, hoje tem muito a ensinar. O Mestre Antônio
Bispo dos Santos, quilombola e morador da comunidade Saco do Curtume, no Piauí,
evoca sobre a potência do contracolonialismo, essa força que nos permite ir além das
nossas próprias cosmossensações. A epistemóloga Oyěwùmí (1997) retrata bem o termo
ao cunhá-lo, definindo enquanto “um modo inclusivo de descrever a concepção do
mundo por diferentes grupos” (p. 2-3).
Isso porque somos capazes de ter conhecimento do mundo para além da
racionalidade advinda da modernidade. Enxergamos para além da visão positivista,
ouvimos para além de nosso aparelho auditivo, dizemos muito mais com nossos corpos
que com nosso aparelho fonador. Há algo além que permanece tradicionalmente em
nossa memória e, por isso, cosmossentimos. O próprio Mestre Bispo nos lembra de
como tivemos a capacidade de ter adicionado em nossa percepção cósmica a crença do
colonialista. Isso só foi possível, pois somos povos plurais. O colonialista é monoteísta,
nós não.
Pois bem! Esse encantado, Pai Lua Branca, transcende os limites do que se
imagina de um terreiro. Isso porque, curiosamente ou não, é extremamente católico e
devoto de Nossa Senhora Aparecida, de modo que, em todo 12 de outubro, um terço é
rezado em homenagem à santa. É Mestre Bispo dos Santos que lança crítica aos saberes
lineares e monoteístas em oposição a nós, politeístas, ao dizer que:

Esses saberes são diferentes, por quê? São saberes de cosmologias


diferentes. O euro-cristão-colonialista-monoteísta, por ser monoteísta,
pensa de forma linear. Ele só tem um deus. Só olha na direção daquele
deus, em uma direção: é mono. É vertical, é linear, não tem curva. Ele
pensa e age assim. O povo dito contracolonialista – aqui nos
autonomeamos e os nomeamos também – tem vários deuses e várias
deusas. E eles ainda doaram o deus deles para nós: vivem insistindo
para dar seu deus para nós. Mas qual é o deus que eles querem dar?
Um deus colonizado (SANTOS, 2019, p.26).

O filósofo Luís Saraiva, ao retratar os Encantados do Tambor de Mina, relata


que um Caboclo “participa de dois mundos e pode até ser cristão” (SARAIVA, 2020,

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

p.22); depois complementa que “é aqui que mais uma vez a nossa Linguagem precisa
gingar para entender o que está se fazendo presente” (idem). Em consonância, Mestre
Bispo conclui: o que demonstra se um povo está dominado/colonizado ou não é a forma
como se porta. Logo, se o Caboclo é católico ou não, torna-se o menor dos “problemas”
em nosso terreiro.
Mais uma vez me recordo dos relatos de Saraiva (2020) e o Tambor de Mina nas
festas de São Pedro e São Marçal presentes na pesquisa do intelectual. Segundo Saraiva
o código que é detectado nas festas é euro-cristão, mas a essência das celebrações é
afro-pindorâmica-pagã-politeísta. Tudo isso só é possível quando reconhecemos a
pluralidade dos saberes orgânicos (SANTOS, 2019) presentes nos calundus, nos
quilombos, na capoeira, no samba e em tudo que gira. Tudo isso só é possível quando o
mais novo permite olhar para o mais velho e encontrar nele uma sabedoria viva. Assim,

Eu não preciso de Karl Marx e de outros acadêmicos: preciso de


minha geração avó, aquela que veio antes de mim e que me move.
Essa lógica é organizada em começo, meio e começo. Minha geração
avó é começo, minha geração filha é meio e minha geração neta é
começo de novo (SANTOS, 2019, p.27).

Saraiva estende essa sabedoria ao Caboclo, ao tratar “aquilo que o colonialismo


e suas estratégias de submissão do Ser-poli buscou reduzir em conceitos mono as
multiplicidades que compõem o ser-supravivente”. O genocídio só se torna tão presente
devido à fragilidade do colonizador.

***

A ideia da transfluência a qual se propôs Mestre Bispo dos Santos não é muito
diferente do que falou Ailton Krenak em A vida não é útil (2020). Krenak é uma
liderança, um mestre, um disseminador de saberes da contemporaneidade; ele sabe que
é possível ouvir a voz do rio, das montanhas, da floresta. Fico honestamente encantada
em como suas palavras parecem ser aquilo mesmo que Mestre Bispo nos fala, ou seja,
ideias que transfluem. Tudo isso me leva a crer que, de fato, estamos em um momento
de nossa contemporaneidade que, se continuarmos levando adiante ideias arcaicas e a
caminho da falência como as de Platão e Kant, continuaremos regredindo. Os saberes
reais e relevantes não estão em livros clássicos, mas no conhecimento passado por
gerações de nossos ancestrais da terra e nossos ancestrais africanos.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Mestre Bispo dos Santos nos diz que “nosso olhar está voltado para a beleza [...]
Assim como a água transflui, por baixo da terra ou pelo ar, nós transfluímos pela
cosmologia e pela cultura” (SANTOS, 2019, 24). Foi transfluindo com nossos
ancestrais da terra que sobrevivemos diante da extorsão colonialista. Quando volto ao
terreiro, volto a aprender a base. Agradeço aos meus antigos.
Sendo uma profissional da linguagem, aprendo a ensinar que a linguagem é a
habilidade que se restringe aos seres humanos de comunicarem-se por meio de uma
língua. Língua será um sistema constituído de signos vocais (com exceção das línguas
de sinais) utilizados em dada comunidade linguística (MARTELOTTA, 2016). Desde
Saussure, o pai da Linguística, é dito que a linguagem é uma habilidade exclusivamente
humana, mas tenho uma forte tendência em desacreditar nesse princípio básico dessa
ciência.
Lembro de Altaci Rubim, mulher indígena do povo Kokama. Ainda na época do
mestrado, estava eu atuando enquanto sua estagiária na disciplina “Introdução à
Linguística” na Universidade de Brasília. Diante problematizações que permeiam as
diversas correntes linguísticas, a Professora Altaci nos diz: “Gente, eu ensino isso que é
programado, mas honestamente não consigo acreditar. A Linguística diz que a
linguagem é exclusivamente humana, mas quando o pássaro pia, eu sei o que diz. Eu
converso com o pássaro”. Não posso deixar de revelar o meu estado de choque no
momento. Altaci declaradamente foi de frente com o princípio básico da Linguística e,
honestamente, foi ótimo ouvir algo tão real.
Tiradas todas as barreiras do positivismo que ainda pairam nas ciências
firmemente, Altaci conseguiu simplificar para mim o conhecimento de algo que tem
feito cada vez mais sentido na vivência do terreiro. Quando entro no terreiro e peço
licença a Pambu Njila, eu me comunico com o guardião que, desde a “minha decisão”
de ir ao terreiro, autorizou que eu estivesse lá. Quando, de pés descalços, lavo meu
corpo e meu mutuê com kijauá, me comunico com as ervas que preparam meu corpo e
tiram qualquer carrego que possa obstruir o ngunzo que receberei. A bênção que peço
de meu Pai ao mais novo é mais do que uma bênção concedida por aquele ser
materializado, pois tenho a cosmossensação que toda uma herança de seres está presente
no ato. O tambor que toca se comunica com a entidade; a entidade autoriza que as mãos
de toque dos Tatas toquem para ela. Quando eu rodo no terreiro, minha dança é a
comunicação sagrada. A galinha comunica-se com todos nós; ela tem o propósito de
uma obrigação, de uma missão divina; ela sabe para que veio; ela é sagrada por

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alimentar uma energia sagrada, portanto, não sou melhor que ela, uma vez que “os
outros seres são junto conosco” (KRENAK, 2020, p. 71).
Aliás, é a partir do alimento que me comunico com minhas entidades. Recordo-
me do dia que fui até minha casa a fim de realizar um fundamento direcionado a
Ndanda Lunda, Nkise que representa as águas doces, a fertilidade e outras coisas mais
que só saberei vivendo o terreiro. Eu estava gestante, na época, e esse fundamento foi
solicitado por uma entidade. Bem, se a comunicação com Nkise se dá pelo alimento, é
por isso que o alimento é tão sagrado para nós. Tatetu Kanamburá disse ao final “é de
Ndanda Lunda, essa menina tua; ela vai mamar muito, você terá muito leite”. E assim
foi. E assim é. Oferto alimento, recebo alimento, dou alimento, e tudo circula. Segundo
Saraiva, “nossos mortos sentem fome. Iku também come” (SARAIVA, 2020, p. 20). A
isso, o autor chamou de “Filosofia da Fome” ao dar-se conta do “alimentar e do fazer-
alimentar” presente nas festas negras (idem).
Toda a resistência de nossas tradições me faz pensar no que chamarei de
metafísica do quilombismo que atravessa os espaços pretos. Pareceu e ainda parece um
atrevimento o que Abdias Nascimento dizia desde a década de 70, mas seus saberes
transfluem na sabedoria de Mestre Bispo. O quilombismo é a força motriz do
contracolonialismo. Em síntese, se o quilombismo se apresenta nas formas associativas
que desempenham “um papel relevante na sustentação da continuidade africana”, temos,
por excelência, uma prática contracolonial, uma vez que não permite que o colonialismo
adentre os espaços de resistência.
“Quem deve desmanchar o colonialismo é quem tentou colonizar”, já dizia
Mestre Bispo (2019, p. 24), “então devemos contracolonizar: impedi-los de fazer”
(SANTOS, 2019, p. 25). Vejamos: essas associações formaram e ainda formam “uma
unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma
prática de libertação e assumindo o comando da própria história” (NASCIMENTO,
2019, p. 281). É como Beatriz Nascimento, grande historiadora brasileira, já dizia, que
“os homens e seus grupamentos, que formaram no passado o que se convencionou
chamar ‘quilombos’, ainda podem e procuram fazê-los”. O quilombo passa a ser, nesse
sentido, a práxis contracolonial.
Mestre Bispo dos Santos reconhece essa práxis nas favelas. Para ele, a favela
não é a margem do centro, mas uma centralização em si mesma. Para ser margem,
pressupõe-se que faça farte, mesmo que minorizada, de um centro; mas o que
percebemos nas comunidades faveladas é que, não fosse a força comunitária, não

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

haveria existência. O centro centralizador e dominante não passa de uma parte opressora
do qual procuramos nos esquivar para não morrer (de fome, de bala, de depressão que
seja). “Comunidade é feita de pessoas e essa sociedade é feita de posses” (SANTOS,
2019, p. 31). Enquanto mulher negra que não está no centro de dominação, me sinto em
comunidade em minha favela, em meu terreiro, em meus quilombos.
Nesses espaços, sinto que eu e minhas famílias “andamos em constelação”
(KRENAK, 2020, p. 39). Especificadamente no terreiro, tenho meu Pai e irmãos, mais
velhos e mais novos. Tenho outros Pais, e muitas Mães que, como Mestre Bispo disse,
carregam “um saber ancestral que nos ensina” (SANTOS, 2019, p. 32). As makotas
sempre sabem o que fazer com as crianças. Eu sou uma criança. E minhas crianças estão
no terreiro. E sempre há remédio para tudo. Para o menino que não tem obedecido,
benzimento e água de canjica no mutuê. O peito empedrou? Repolho. Umbigo estufado?
Cueiro e botão! Dor de cabeça? Tome esse chá e cubra esse mutuê. E todos,
absolutamente todos, cuidam de minhas crianças, cuidam de mim, que sou uma criança.
E assim vamos rodando.
Se sou criança, há ainda mais segredo. “Não olhe para o quartinho que você não
tem idade para isso”. “Não fique aqui dentro”. “Use sua cinta”. “Não pode deixar
comida no prato”. “Não pode roer osso”. “Mulher não pode fazer isso”. “Homem não
pode fazer aquilo”. E por quê? Só saberei vivendo, porque a tradição é viva e orgânica.
Francamente, não há feminismo europeu que me faça crer que é um desprestígio
estar na cozinha quando estou no terreiro. Dar e receber o ngunzo que o alimento
sagrado me proporciona é uma sensação de fazer parte do todo. Aliás, ainda sobre o
quilombismo no terreiro, esse espaço contracolonial, penso sobre os hábitos
alimentares. Ao contrário do que dizem os radicais veganos, nosso consumo de carne é
sagrado. Diferente dos moldes de produção desenfreados, a alimentação é um ato de
sacralização. Dispensar a carne do bicho ofertado ao Sagrado é, no mínimo, uma
afronta. Me lembro de uma experiência de Mestre Bispo dos Santos:

Outro dia um homem me perguntou, em uma fala que fiz em Belo


Horizonte, o que eu achava sobre a alimentação dos terreiros no que
diz respeito ao sacrifício dos animais. Quando fui responder, disse a
ele uma coisa que eu nunca tinha feito, mas que podia poderia fazer.
Eu disse a ele: “Estou em Minas Gerais. Aqui vocês adoram um
chouriço. E terça-feira irei no terreiro de Pai Ricardo e beberei sangue
e cachaça com Exu. O animal que vai ofertar o sangue para bebermos
morreu, mas o animal do chouriço também morreu. Portanto, a
diferença não está em sacrificar o animal, mas no paladar. A gente

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gosta de sangue com cachaça como vocês gostam de chouriço!”. Isso


é o que eu chamo de pedagogia do impacto, que aprendi com o Mãe
Joana (SANTOS, 2019, p. 32).

***

Seguimos rodando. De acordo com Mestre Bispo,

o deus deles é do milagre. Os nossos, do feitiço. Eles deram o deus


deles para nós. Nós ‘aceitamos’. E ajeitamos agora. Temos os nossos e
o deles. E assim, ou ajeitamos as coisas pelo milagre ou pelo feitiço
(SANTOS, 2019, p.28).

Ao contrário dos saberes coloniais, com princípios individualizados e


singularizados, acreditamos na continuidade, no compartilhamento, na multiplicação. O
colonizador pensa de forma tão una a ponto de acreditar que, para ser feliz, precisa não
ter filhos.
Por sua vez, atravessados por uma cosmossensação afro-pindorâmica,
verificamos que ter filhos é uma bênção, é próspero. Mas não posso deixar de
mencionar que, embora, às muitas vezes, nos deparamos felizes com o nascimento de
um/a muzenza, em contraposição, parir no mundo civil parece sinônimo de uma vida
que se acabou. Permito-me problematizar a alegorização que se faz de nossos saberes. É
preciso viver o terreiro para além do terreiro ou acabaremos por colonizar esse espaço
contracolonial.
Outro processo alegorizante que percebo está na prática de respeito aos mais
velhos: ela também deve estar para além dos terreiros. Aquela preta velha, seja ela sua
vizinha ou sua avó, ela que muitas vezes se senta quieta, observadora, calada, tranquila;
ela que se inquieta e anda para todos os lados, cuidando de todos, mesmo já andando
curvado; ela que simplesmente está; ela também é minha mais velha. O terreiro não é
lugar de fetichização, mas de retorno, de aprendizado. O que faz com que a
ancestralidade seja ovacionada se o respeito à avó, à mãe é negligenciado? Me
pergunto: tua ancestral mais próxima é Kayaya? Que sociedade é essa que, enquanto
falamos em ancestralidade, não somos capazes de enxergar nossos velhos?
Antes de me questionar sobre tudo isso, ali, em meados dos anos 2017 eu
escrevia um poema. O trânsito das palavras em transe-lembrança se materializara nos
versos abaixo:

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Dizem por aí que todos têm


um preto dentro de si...
Ah! Patéticos!
Vocês conseguem ouvir a voz
de minhas avós e das avós delas gritarem:
“Parem de tirar nosso lugar ao sol!!!”
Se essa voz −negra− não reside em você...
Se esse clamor de resistência
pela existência
Não baila em seu coração...
Então, não!
Nós não somos iguais
(SOUZA, 2018, p. 23-24)

Essas avós são várias; são mulheres comunicadoras que me ensinam mesmo
quando estão caladas. Eu as observo com a destreza das mãos que falam tanto. São
receitas, costuras, rezas, manias, garrafadas, plantações; são matanças de galinha,
feituras do sabão; é o bate-bate do pilão, a técnica de enrolar folha de bananeira; são os
diversos espaços de resistência nessa terra em diáspora. Como diz meu irmão de santo,
“o conhecimento só é válido quando é passado para frente”. Por isso estamos sempre
ganhando, pois “a colonização não é um fato histórico, é um processo histórico”, logo,
não perdemos ainda (SANTOS, 2019, p. 24). Nossos saberes estão vivos nas mãos de
nossas mais velhas e mais velhos, basta observar com respeito.

***

Abre-te campo formoso


Abre-te campo formoso
Cheio de tanta alegria
Ô cheio de tanta alegria
(Canção de Caboclo)

Com essa canção de caboclo vou encaminhando mais algumas reflexões antes de
ir ao começo de novo. Sim, aquele ciclo que Mestre Bispo já dizia.
Bem, eu amo dançar. É um poder natural. Acontece um verdadeiro estado
transeunte em que vou sem ir. Estou sem estar. A dança me liberta dos carregos
também. A mão de toque bate na pele do bicho no tambor e abre caminhos. Nossa
música é a louv’ação de chamamento ao encantamento. Dança, gira, ginga, vira, desvira
e poeira sobre à medida que os pés pelados batem na terra seca do barracão. No meio de
tanto suor, poeira, cura e alegria evoco Saraiva ao questionar “Será se aqui todo mundo
é caboclo?” (SARAIVA, 2020, p.19). Capaz. E eu não me canso. As mãos que tocam

236
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

tampouco. Todos em transe. Tanta alegria! Cantamos. Hampatê Bá ilustra bem as


cosmossensações do que, com licença poética, chamarei de dança en’cantada ao dizer
que

Nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto, a


materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de
agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos,
movimentos que geram forças, forças que agem sobre os espíritos que
são, por sua vez, as potências da ação (HAMPATÊ Bá, 1997, p. 173).

O terreiro é o lugar que busco uma memória a partir das vivencias. É a terra boa
para o banzo, é o retorno. É o caminhar para trás; é a tentativa de achar uma luz que
desobstrua o esquecimento, a pressão alta, a loucura que o colonialismo me empurra.
Busco entrelaçar meu corpo à memória e identidade fragmentados em mim. Busco
referenciar e reverenciar uma verdade. Eu morro em quase tudo que estive para
finalmente encontrar espaço em ser. O lugar para o princípio é a iniciação. Busco nesse
quilombo o nascimento. Esse nascimento pode ser o que Beatriz Nascimento chamou de
Orí, no momento que o compreende enquanto “a identidade individual, coletiva,
política, histórica” (NASCIMENTO, 1989 apud RATTS, 2006, p. 65). Dessa maneira,

toda dinâmica desse nome mítico, oculto, que é o Ori, se projeta a


partir das diferenças, do rompimento numa outra unidade. Na unidade
primordial que é a cabeça, o núcleo. O rito de iniciação é um rito de
passagem, de uma idade para outra, de um momento pra outro, de um
saber pra outro, de um poder atuar para outro poder atuar
(NASCIMENTO, 1989 apud RATTS, 2006, p. 63).

Evoluir dói. Sair da ignorância dói. Entender dói. Não entender dói. Sozinha dói.
Junto, mais ainda. Morrer dói. Nascer, também. E a dor evolui. Eu quero voltar. Para a
base. Para o barro. Eu quero nascer de novo.

Começo de novo
Como Mestre Bispo falou, o colonialista nos denomina a fim de nos enfraquecer
com palavras vazias. Porém, em nossa atuação contracolonial de resistência, sabemos
ser necessário não alegorizá-la e compreendê-la para além das rodas de samba, rodas de
capoeira e terreiros. Sabemos que essas giras se estendem aos quintais, cortiços,
aglomerados, batalhas de rap, slams, feiras livres e outros potenciais quilombos os quais
falavam Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento e que, atualmente, também trata

237
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Mestre Bispo dos Santos ao falar de contracolonialidade. Os atos contracoloniais de


resistência estão em cada família ancestral remanescente de uma prática afro-
pindorâmica. É a metafísica do quilombismo.
Tratando de meu lugar enquanto pensadora, verificamos que as terminologias,
de fato, são lugares políticos de dominação. O que o colonialista faz logo ao chegar em
terras invadidas? Impõe sua língua e cultura a partir da força bruta. Assim sendo, é uma
guerra desleal, seja pelas forças, seja pela intenção. Mas nossa capacidade de expansão,
de transgressão, de transfluência é tamanha que continuamos diante disso. Ou seja, de
que vale satisfazer o ouvido do colonialista dizendo que cultuo Jesus se, no âmago, vivo
Lembá. Ouço, nessa reflexão, a voz de Bethânia: “Quanto nome tem a rainha do mar /
Ndanda Lunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá / Inaê, Sereia, Mucunã, Maria,
Dona Iemanjá”. Eu cultuo as águas do mar, sendo, por hora, essa imensidão marítima.
Nossas palavras são vivas, pois “somos integrados com a vida” (SANTOS,
2019, p. 25). Por mais que sejamos obrigados a cultuar o deus monoteísta e reconhecer
em Lembá um Jesus Cristo, “chega um tempo que essa palavra nos serve, porque ela
cria força, porque ela nos move, anda com a gente. Nossa ancestralidade entra nessa
palavra e a movimenta a nosso favor” (idem).
Por fim, acredito que seja o que Hampaté Bâ já dizia:

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições


africanas postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível
é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de
um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo
movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga,
tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo
e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e
a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito
precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões
(HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 173).

Pois bem, era dia 12 de outubro no calendário gregoriano. Nesse dia, aqui no
Brasil, temos o feriado em comemoração ao dia de Nossa Senhora, e também ao dia das
crianças. Nesse dia, Pai Lua Branca batizou minha mais nova. Ela tinha 45 dias em
terra, apenas. Embora nunca tivesse presenciado um batizado antes, sei que aquele ritual
ocorrera aos moldes católicos. Um encantado incorporado em Tata Kanamburá dentro
de um terreiro angola batizando, aos moldes católicos, a minha criança... Beleza que
transflui e nada mais. Apesar de tudo, continuamos rodando.
Nzambi Wa Kuatensá

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Referências
HAMPATÉ Bâ, Amadou. A Tradição Viva. In: Ki-Zerbo, Joseph. História geral da
África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167- 2012.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MARTELOTTA, Mario Eduardo. Manual de Linguística / organizador Mario Eduardo


Martelotta. São Paulo: Contexto, 2016.

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-


africanista. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.

NASCIMENTO, Maria Beatriz, 1942-1995. Beatriz Nascimento, Quilombola e


Intelectual: Possibilidades nos dias de destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da
África, 2018.

OYEWÚMÍ, Oyèrónké. The invention of women: making an African sense of western


gender discourses. University of Minnesota, 1997.

RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2006.

SANTOS, Antônio Bispo. As fronteiras entre o saber orgânico e o saber sintético. In:
Organização OLIVA, Anderson Ribeiro...[et al]. Tecendo redes antirracistas: Áfricas,
Brasis, Portugal. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p.23-35.

SARAIVA, Luís Augusto F. Ubuntu e a Metafísica Vodum: o pensar filosófico a toques


de tambor de mina. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2020.

SOUZA, Carolina. Lembranças Ancestrais. In.: Lembranças Ancestrais / Ana Carolina


de Souza Silva. Brasília: AUA Editorial, 2018.

Recebido em: 02/11/2020


Aceito em: 16/12/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

TUPINAMBÁ BALANCEIA MAIS NÃO CAI:


IDENTIDADE E ESPIRITUALIDADE NA SERRA DO
PADEIRO/BA

Cláudia Mirella Pereira Ramos1


Aldemir Inácio de Azevedo 2
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.34537

A Serra do Padeiro está localizada na cidade de Buerarema/BA e é a morada de


indígenas da etnia Tupinambá. O uso do nome Tupinambá como autodesignação pelos
indígenas representa uma identificação social, cultural e histórica com as populações tupi
que viveram nessa região. Esse texto busca proceder um relato de experiência com olhar
etnográfico sobre o culto aos encantados/caboclos cuja a expressão central ocorre
anualmente na festa de São Sebastião em 19 de janeiro.

Alguns dados demográficos da etnia Tupinambá


A Serra do Padeiro está situada ao sul do Estado da Bahia, na região classificada
como o nordeste brasileiro, tem uma distância de 18 km do centro de Buerarema e 457
km da Capital do Estado, Salvador. Este local faz parte do território indígena Tupinambá,
que abrange também a aldeia de Olivença, na área litorânea, a oeste da cidade de Ilhéus,
compondo um conjunto expressivo de núcleos, denominados “comunidades”, que ficam
adjacentes, mas, em áreas interiores (CARVALHO; CARVALHO, 2011, p. 20).
Essa área constitui um total de 47.376 hectares (BRASIL- D.O., 2009, p. 52).
Conforme as informações do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI
2014) a população Tupinambá está em torno de 4.669 (quatro mil e seiscentos e sessenta
e nove). Esses dados são da costa marítima com início na vila de Olivença passando pela
Serra das Trempes e finalizando na Serra do Padeiro. Segundo informações da Sra.
Glicéria3, conhecida como Célia Tupinambá na aldeia Serra do Padeiro tem

1
Professora na Unesulbahia-UniFtc/BA. Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia-UFBA. E-mail. cmirella93@gmail.com.
2
Professor do ensino básico, técnico, tecnológico e da educação superior no Instituto Federal da Bahia.
Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. E-mail.
aldemirfms@yahoo.com.br.
3
A Sra. Glicéria é filha do Pajé Sr. Lírio (Rosemiro Ferreira da Silva) e irmã do Cacique Babau. Ela que
auxilia o Pajé nos trabalhos espirituais e também puxa o toré nas festas religiosas.

240
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

aproximadamente 218 famílias e as atividades produtivas está relacionada a agricultura


familiar.

A festa de São Sebastião: uma tradição na Serra do Padeiro/BA


No dia 18 de janeiro de 2019 fui visitar a aldeia indígena Tupinambá na Serra do
Padeiro juntamente com 5 colegas, sendo dois ativistas do Movimento de Luta pela Terra,
uma ativista da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida e um
Professor/pesquisador com o propósito de acompanhar os preparativos para a famosa
festa de São Sebastião realizada anualmente nesse local. O meu interesse em participar
era além de questões profissionais, tenho muita afinidade e sensibilidade com a temática,
devido a minha essência e ancestralidade.
Ao chegarmos na aldeia fomos recebidos pela Sra. Célia irmã do Cacique Babau.
Ela nos relatou que tínhamos perdido a matança do boi e a chegada da entidade
“Boiadeiro”. Disse que naquele momento os “Martim” estavam na terra. Em seguida
chegaram três mulheres incorporadas dos “Martins 4” para nos cumprimentar. Elas
estavam fumando um charuto, a fala estava meio embolada aparentemente mais grossa,
cuspiam no chão e falavam palavras consideradas “baixas” conforme a moral e bons
costumes colocados pela sociedade. Uma das pessoas que estavam nos acompanhando
começou a passar mal, sentindo muita tontura e foi levada para casa de santo para realizar
uma limpeza espiritual. Essa limpeza foi realizada pelo “Martim” com folhas e fumo.
Por conseguinte, o Martim brincou e conversou com as pessoas que estavam
próximas a casa de santo: contava piadas e circulava o recinto, oferecendo goles de vinho,
num copo pequeno, para cada pessoa, no salão. Pouco tempo depois, despediu-se. No
resto do dia, as mulheres prepararam as comidas, principalmente, galinhas e o boi que
haviam matado. Os homens continuaram destrinchando o boi, dividindo e pesando a
carne, que seria distribuída entre várias famílias da aldeia. Durante todo o dia a aldeia se
movimentava com os preparativos da alvorada de São Sebastião que iria começar às 04:00
da madrugada do dia 19 de janeiro de 2019 e do Caruru de Cosme e Damião, a ser ofertado
pela Dona Maria da Glória (esposa do Pajé e mãe de Rosivaldo Ferreira da Silva,
conhecido como Cacique Babau) no mesmo dia às 15:30 horas. Os preparativos

4
As Entidade com nome de Martim são também chamadas de Marinheiro trabalham na Linha de Iemanjá
e também de Oxum, que compõem o chamado “Povo da Água”. Observou-se que os indígenas também
cultuam alguns orixás como oxum, iemanjá, obaluayê e Oxóssi. Os demais não foram citados e/ou não se
manifestaram durante a festa de São Sebastião.

241
Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

envolviam comidas diversas (doces e salgadas), decoração no salão de santo, banhos de


limpeza e cheiro para os convidados. Ao entrar na casa de santo, observei um altar muito
bonito, com imagens de santo católico (São Sebastião), imagens da umbanda como
caboclo (a), preto velho e em outra sala que antecede o salão de santo tinha a orixá
(Iemanjá), Cosme e Damião e o marinheiro Martim. Sendo essas últimas cultuadas no
candomblé e umbanda. Nos informaram que eles ficavam separados devido à falta de
espaço no altar central.
Ficamos hospedadas na casa onde ficam os professores que ministram aulas na
escola indígena da aldeia. A movimentação foi constante para receber e acomodar os
convidados. Vieram docentes e pesquisadores da Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, Universidade Federal da Bahia – UFBA, Universidade Federal do Sul
da Bahia – UFSB e Universidade de Brasília – UNB. Contamos ainda, com a presença de
ativistas, simpatizantes e indígenas de outras aldeias. Ao anoitecer no dia 18 de janeiro
de 2019 toda a aldeia já aguardava o jantar que seria servido às 19:00 horas. Parte da
matança ocorrida pela manhã foi utilizada para alimentar as pessoas. Após o jantar
algumas pessoas ficavam conversando em volta da fogueira, mas, a maioria se recolheu,
pois, as festividades iriam começar na madrugada e continuar durante todo o dia.

A alvorada de São Sebastião


Na madrugada do dia 19 de janeiro de 2019 às 04:00 da manhã teve uma alvorada
de fogos. As pessoas pulavam das camas e rapidamente iam em direção ao salão de santo.
Ao chegar no salão o Pajé Sr. Lírio estava incorporado com São Sebastião que estava na
terra para abrir a festa em sua saudação e informar para toda a aldeia como será o ano de
2019. O mesmo falou sobre as conquistas e dificuldades relacionadas com a terra, os
parentes/família, os direitos e deveres dos Tupinambás. Por conseguinte, Célia
Tupinambá iniciou o xirê, os indígenas começaram a dançar em círculo portando maracás
e aos poucos os “encantados” começaram a chegar.
Nessa sessão se manifestaram os seguintes guias: cabocla Jurema, Sultão das
Matas e posteriormente Martim pescador. Os encantados são considerados os guias dos
Tupinambás, seres de força e luz guiados pelos domínios da natureza como: as matas, as
águas do rio e mar, a terra, a serra entre outros. Segundo relatos, os encantados possuem
poderes para guiar os Tupinambás nas labutas, problemas diários e questões relacionadas
a saúde.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

Por volta das 08:00 da manhã todos os presentes foram levados para tomar o café
da manhã. Aos que quiseram contribuir na organização, foram orientados a ajudar na
confecção do almoço que seria servido às 12:00 horas e nos preparativos do caruru a ser
ofertado por Dona Maria às 15:30. Durante esse intervalo não tivemos programação
religiosa. Às 15:30 o salão de santo foi preparado para o caruru de Cosme e Damião 5. A
mesa foi montada com um pano branco no centro do salão. Em cima tinha a imagem de
Cosme, Damião e Doum, velas coloridas, flores, balas, doces, mel, vinho, pipoca, 3 bolos,
xinxim de galinha, vatapá e caruru feito com folhas de taioba. Por conseguinte, colocaram
as crianças mais novas em círculo para comerem e as cantigas começam: “São Cosme
mandou fazer duas camisinhas azul; no dia da festa dele São Cosme quer caruru”. Muitas
músicas foram cantadas e alguns indígenas começaram a incorporar, segundo relatos,
eram Cosme e Damião.
Após distribuírem as comidas, deu-se um intervalo e por volta das 19:30 serviu-
se o jantar para todos na aldeia. Haviam chegado mais pessoas, inclusive um ônibus com
as pessoas da redondeza. Muitos levaram barracas de camping, pois, as casas estavam
muito cheias. Após o jantar que se encerrou às 21:00 horas os festejos em homenagem a
São Sebastião continuaram. Deram início ao toré com cantigas parecidas ao do período
matutino como: “quebra a cabaça e espalha a semente; corta a língua de quem fala mal
da gente; E de quem fala mal da gente corta e arranca os dentes”. Aos poucos os
“encantados” foram se manifestando nos indígenas presentes e as cantigas e danças
continuavam initerruptamente. Os convidados foram chamados para entrar no toré
formando uma belíssima roda energética e espiritual. Outros optaram em ficar ao redor
da fogueira que fica em frente ao salão de santo. A festa em louvor a São Sebastião foi
até o dia amanhecer. Segundo relatos de Dona Maria toda a comida, bebida, flores e velas
que sobraram da festa são colocadas embaixo do altar na casa de santo e na primeira
quarta feira após a festa são ofertados aos encantados na natureza.

Considerações Finais
Terminamos esse relato com a certeza que voltaremos na aldeia indígena
Tupinambá da Serra do Padeiro. Foram muitos aprendizados com essa população de luta
e resistência, sobretudo, no que se refere a luta pela demarcação de terra, reconhecimento

5
Nas religiões de Matriz Africana como o Candomblé e Umbanda essas divindades são referenciadas como
Ibêjes.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

e respeito pelas suas questões culturais, religiosas, sociais e políticas. Quanto ao


acolhimento e receptividade não tenho palavras para agradecer. Fomos tratados com
muito cuidado e carinho por todos na aldeia. Agradeço em especial a Sra. Dona Maria e
Célia.
Ressalto que fomos privilegiados em ter tido a oportunidade de conviver esses três
dias com os Tupinambás da Serra do Padeiro e vivenciar um pouco da sua religiosidade
e espiritualidade. Partindo de um olhar etnográfico percebeu-se um sincretismo entre as
seguintes religiões: católica, umbanda, candomblé e encante.6 Observou-se esse
sincretismo nas imagens, nas cantigas e presentes/ofertados aos encantados. Com relação
as músicas, haviam em sua composição nomes de alguns orixás como Iemanjá, Oxum,
Oxóssi, Obaluayê, Caboclos, Boiadeiros, Pretos Velhos, Martins ou Marujos.
Outra questão que nos chamou atenção foi a utilização da expressão “encablocado,
fulano está encaboclado.” Os Tupinambás da Serra do Padeiro utilizam esse termo para
se referir aos indígenas que estão “incorporados com os encantados.” As crianças também
utilizam essa expressão, ficam “brincando de encaboclar”. Portanto, essa expressão
possui especificidade cultural na identidade dos Tupinambás e transcorre o imaginário
social das crianças, jovens, adultos e idosos na aldeia. Em resumo observamos que para
os Tupinambás dessa aldeia o culto aos encantados confere força e orientações para os
indígenas trilharem as adversidades, questões sociais, políticas e culturais, sobretudo, no
que se refere ao acesso e direito a terra. Assim, os guias espirituais encantados
representam o direcionamento sagrado para trilhar as pedras que aparecerem no caminho
de todos os tupinambás na aldeia Serra do Padeiro.

Referências
ALARCON. Daniela Fernandes. O RETORNO DA TERRA: as retomadas na aldeia
Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. Dissertação de mestrado em Estudos
Comparados sobre as Américas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Brasília, 2013.

BRASIL. Resumo do Relatório Circunstanciado de Delimitação da Terra Indígena


Tupinambá de Olivença. Diário oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder
Executivo. Brasília, DF, 20 abr. 2009. Seção 1. P. 52-57.

6
É considerado o processo espiritual vivenciado pelos Tupinambás da aldeia Serra do Padeiro. As sessões
de “encante” passa por iniciação, obrigações, abertura e fechamento dos trabalhos espirituais. É considerado
o culto dos Tupinambás da aldeia Serra do Padeiro.

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

CARVALHO, Maria Rosário de; CARVALHO, Ana Magda. Índios e Caboclos: a


história recontada. Salvador: EDUFBA, 2011.

COUTO, Patrícia Navarro de Almeida. Morada dos Encantados: Identidade e


religiosidade entre os Tupinambá da Serra do Padeiro – Buerarema, BA. Dissertação de
mestrado em antropologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, 2008.

Recebido em: 16/10/2020


Aceito em: 16/10/2020

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

ESCRITA ÌYÁLODÈ
Yuri Macedo1
DOI 10.26512/revistacalundu.v4i2.29647

ARA WA R`ÓMI WÀ
ARA WA R`ÓMI WÀ
YÈYÉ OSUN
OMI OLOWO
(Canta Gilberto Gil e Marisa Monte)

O presente texto, com características de ensaio acadêmico, objetiva construir a


noção de Escrita Ìyálodè, bem como o seu processo de produção, como ela acontece e por
quem é produzida no Brasil. A escrita debruça-se e assume importância na explicitação
dos poderes de atuação e negociação das mulheres negras no campo da ciência brasileira.
Assim, é necessário compreender os vários sentidos que nos ajudam em sua significação,
capacitando-o a afastar-se das esferas patriarcais e sexistas que produziram falhas na
historiografia.
A palavra escrita, é o ato de expressão de ideias humanas por meio de sinais, e a
palavra Yalodê, Ìyálodè, ìalodê ou Yalodé, uma palavra de origem iorubana que tem como
significado: aquela que lidera as mulheres na cidade e/ou a dona do grande poder
feminino.
Mas, porque é necessário pensar nessa Escrita Ìyálodè? Essas escritas são parte de
um movimento ancestral que tende a ser conduzido por mulheres, especialmente as
mulheres negras dentro dos espaços acadêmicos e na ciência, que são silenciadas e
violentadas antes, durante e após sua trajetória na produção de saberes e conhecimentos.
Historicamente, a ciência foi vista como uma atividade realizada somente por
homens-brancos, e foi a partir do século XIX que a mulher começou a aparecer nesse
cenário da comunidade científica mundial, saliento que esse espaço foi conquistado
também por mulheres-brancas. É necessário ressaltar que, antes desse século marco, a
participação feminina não era permitida nas intensas e calorosas discussões que
aconteciam nas sociedades e academias científicas pelo mundo.
Caminhando junto à história da ciência sobre o cerceamento da mulher, outro fator
é levado em conta no século XVI, o racismo, fenômeno da sociedade europeia que ao

1
Universidade Federal do Sul da Bahia. Email: yurimacedo@id.uff.br

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Revista Calundu –Vol.4, N.2, Jul-Dez 2020

realizar suas invasões colonizadoras em diversos continentes, ao ver o outro, não refletia
uma imagem conhecida. Por meio de estereótipos (pré)definidos, as sociedades não
brancas e não cristãs estavam sujeitas a serem postas em questionamentos quanto às suas
capacidades.
Saliento ainda, acerca da Igreja, principalmente a Católica até o século XVIII, que
era a responsável por determinar quem era considerado humano ou não, tornando-se um
dos maiores processos excludentes de toda a humanidade, que até hoje estão enraizados
pelos processos racistas e intolerantes nas sociedades. Sob esse olhar da igreja, “pensava-
se na humanidade como um gradiente – que iria do mais perfeito (mais próximo do Éden)
ao menos perfeito (mediante a degeneração) –, sem supor, num primeiro momento, a
noção única de evolução” (SCHWARCZ, 1993, p.48).
Mbembe (2018) nos diz que a soberania é a capacidade de definir quem importa
e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é. A partir de Mbembe, e pelos
inúmeros silenciamentos que ocorreram nos processos escravagistas no Brasil,
principalmente daqueles que foram trazidos de África, se faz necessário trazer à tona todo
o conhecimento da “mulher-negra-não cristã”, enraizado de ancestralidade.
Sobre trazer à tona, as religiões afro-brasileiras como o Candomblé, Umbanda,
Catimbó, Jurema, Macumba, Tambor de Mina, Xangô, Jarê, Quimbanda, entre outras,
evidenciam que a mulher exerceu e exerce um papel importantíssimo e fundamental para
manutenção dessas religiões, pois, representam a força e importância do matriarcado
africano e afro-brasileiro, que nasce no contexto religioso, e que dele perpassa para o
movimento de resistência sociocultural dos “ex-escravizados”2.
Silva Simoni (2019), nos apresenta e afirma que, “se tratando de mulheres negras
e de religião, as perseguições são maiores, já que elas agregam os elementos motivadores
desta postura”. Evidenciamos que a religiosidade é também uma forma de conservar a
identidade, principalmente em um contexto de opressão, e as mulheres negras são um
exemplo desta afirmação.
A Escrita Ìyálodè, assim como a Pedagogia da Ancestralidade, descrita por
Kiusam de Oliveira em (2008),

A Pedagogia da Ancestralidade, no campo da educação, se opõe à


hegemonia epistemológica eurocentrada, propondo uma forma de ser-
pesquisar-conhecer-pensar-juntar-articular-agir que reconheça o

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“Utilizaremos a palavra ex-escravizado, ao invés de escravo, mais uma vez por acreditar na força política
das palavras” (Passos, 2019)

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continente africano como o Berço da Humanidade; nessa relação, a


Europa, os europeus e suas produções intelectuais são recentes e, desta
forma, talvez seja por tal consciência que a luta tem sido feroz daqueles
que detém a hegemonia epistemológica, para impor formas de
pensamentos. (OLIVEIRA, 2018, p.80)

A Escrita Ìyálodè, vai por esse caminho da Pedagogia da Ancestralidade, caminho


esse que leva o empoderamento da mulher negra, por meio de transgressões, é repensar
que seus corpos podem estar em qualquer lugar por meio dos seus pensamentos, escritos
e oralidade. Por meio do reconhecimento, as mulheres, a partir da pergunta: “quem sou
eu?”, volvem na necessidade de entender a estrutura psíquica da pessoa que vive seu
corpo negro e apresenta rupturas ou suturas no convívio em sociedade.
Assim como Oliveira (2008) nos apresentou a Pedagogia da Ancestralidade, a
Escrita Ìyálodè, é Corporeidade, Imaginário, Subjetividade, Oralidade, Identidades,
Memória, Processos Educativos e Ancestralidade. E ao pensar onde se dá esse tipo de
escrita, podemos imaginar inúmeros espaços onde a mulher se encontra, como: favelas,
universidades, escolas, construções, ruas, em todo lugar.
Ao caminhar para essa escrita, pensa-se nos espaços onde essas mulheres negras
passaram por experiencias de exclusão devido ao racismo existente no Brasil, e mediante
sua história e trajetória, escrevem por meio da sua energia vital (o asè3), para que as
pessoas que leiam ou vivencie suas escritas lutem contra o racismo e, principalmente,
contra o Epistemicídio4 dos saberes africanos e afro-brasileiros. Ou seja, a Escrita Ìyálodè
significa expressão de ideias da mulher negra que emana liderança e poder nas práticas
escritas, orais e vividas.
Por fim, é necessário saber onde a Escrita Ìyálodè, se faz presente, e temos por
exemplo as seguintes mulheres brasileiras negras: Nilma Lino Gomes, Sonia Guimarães,
Kiusam de Oliveira, Sueli Carneiro, Anita Canavarro, Katemari Rosa, Conceição
Evaristo, Petronilha Beatriz, Carolina de Jesus, Escolástica da Conceição de Nazaré,
Marielle Franco, Pamella Passos, Patrícia Rufino, entre outras...

Oní Sáà wúre (Senhor do Tempo (Existência)


Sáà wúr àse (Rogamos bênçãos e axé)

3
Força vital que promove o dinamismo do ser humano. É uma energia que existe nos seres e precisa ser
mobilizada e veiculada pelas relações, isto é, dada e retribuída. SÀLÁMÌ e RIBEIRO (2011)
4
Carneiro, S. (2005) define: “pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio
da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana
ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do
fracasso e evasão escolar”.

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Oní Sáà wúre o bé rí o mó (Senhor do Tempo assim novamente)


Oní Sáà wúre (Senhor do Tempo)
Sáà wúr àse Bàbá (Rogamos bênçãos ao Pai)
Oní Sáà wúre o bé rí o mó (Senhor do Tempo assim novamente).

Referências
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não ser como fundamento
do ser. Tese (doutorado) em Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

OLIVEIRA, Kiusam Regina de. Candomblé de Ketu e educação: estratégias para o


empoderamento da mulher negra. 2008. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

PASSOS, Ana Helena Ithamar. Um estudo sobre branquitude no contexto de


reconfiguração das relações raciais no Brasil, 2003-2013. 1.ed. Porto Seguro: Editora
Oyá, 2019, 180 p.

SÀLÁMÌ, Sikiru (King); RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Exu e a Ordem do Universo. São
Paulo: Editora Oduduwa, 2011.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. SP, Companhia das Letras,2004.

SILVA SIMONI, Rosinalda Côrrea da. Ancestralidade Feminina: da Essência do


Sagrado aos Movimentos Feministas, Mulheres Negras e Representatividade.
Fragmentos de Cultura (Goiânia), v. 29, p. 293-300, 2019.

Recebido em: 18/02/2020


Aceito em: 22/04/2020

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