Organizacao Do Espaco No Fausto de Murnau Traducao
Organizacao Do Espaco No Fausto de Murnau Traducao
Organizacao Do Espaco No Fausto de Murnau Traducao
ÉRIC ROHMER
Original, em Francês:
https://drive.google.com/ le/d/1NlpgkTPPB1KuXsP6LbWS8iFVF4WiTy7D/view?
usp=sharing
EPÍGRAFE 3
1. As iluminações 8
2. O desenho 11
3. As formas X
APÊNDICES
1. O Prólogo no céu X
3. A viagem aérea X
1. Os cenários X
2. Os objetos X
3. Os gurinos X
1. A decupagem e a montagem X
2. O "jogo" X
A. A natureza X
B. O ator X
C. As direções privilegiadas X
APÊNDICES X
BIBLIOGRAFIA X
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MAESTRIA DO ESPAÇO
Mas a questão não se encontra aí. Quaisquer que sejam as suas qualidades, este
texto, para efetuarmos a nossa comparação, não vale nem mais nem menos que um
libreto de ópera. Não pressupõe nada da música, e nos permite entregarmo-nos
inteiramente ao prazer dela, esquecendo-nos de Kyser – e de Goethe, como nos
esquecemos, ao escutá-los, de Berlioz, Gounod ou Schumann.
Mas, em Faust, ainda mais que nos outros lmes de Murnau, os diferentes
andamentos criadores se interpenetram a tal ponto que é frequentemente difícil dizer se
tal ideia é uma ideia de fotogra a, uma ideia de cenário, uma ideia de mise en scène, por
exemplo no famoso Prólogo no céu, que abre o lme. Não está nas nossas intenções,
aqui, pesquisar a parte que remete a tal ou tal técnico ou ao próprio realizador, e de
pesar seus respectivos méritos. Nós remetemos ao livro de Lotte H. Eisner e aos
testemunhos que ele contém7, e nos contentaremos em dar o nome destes
colaboradores, assinalando os principais lmes nos quais trabalharam antes e depois de
Faust.
a) Encontramos o nome de Karl Ho mann, diretor da fotogra a8, nos créditos de:
Der Knabe in Blau (1919), Sehnsucht (1920), Der Januskopf (1920), de Murnau,
Homunculus de Otto Rippert (1916), Die Nibelungen: Siegfried, Die Nibelungen:
Há uma legião de cineastas que provaram a invenção deste domínio, nos propondo
as suas formas, os seus tipos, a sua paginação, quase o seu traço, o seu toque. Citamos
por exemplo Hitchcock ou Fritz Lang e, por que não, o cinema americano no seu
conjunto: thriller, western, burlesco, musical, etc... Ou, na Europa, Antonioni, Fellini, mas
que zeram passar o motivo popular que os inspira por um tratamento de sublimação.
Ou até mesmo Jean Renoir, outro homem de cultura, mas que sabe abandonar o
impressionismo de Partie de Campagne pelas imagens de Épinal e o caleidoscópio de
Elena.
Ele, Murnau, não deve nada à arte naïf. Isso faz a grandeza e o perigo da sua
empresa, mas não parece que possamos taxá-lo por um único instante de pedantismo,
tanto que as in uências pelas quais ele passou foram intimamente assimiladas, tanto que
ele soube não tirar de seus modelos que não aquilo que ele poderia conformar ao espírito
do cinematógrafo.
Nada mais perigoso para o cineasta do que se achar o pintor que não pode ser.
Mas foi atribuída a um dos maiores essa graça de se elevar acima dos limites de seu
gênero, de combater o pintor no seu próprio terreno, de fazer obra de pintor. Tomemos
em Faust, ao acaso, um fotograma, uma "imagem". Ainda que uma abstração do
movimento que a anima, quer dizer amputada de um elemento essencial da fascinação
que ela exerce sobre nós, ainda que delegada ao papel, é inegável que ela "contém".
Não há nela um só ponto, uma só linha, uma única superfície, um único contraste de
sombra e luz que não pareça, longe dos acasos da reprodução mecânica, traçada com a
mesma liberdade, rigor ou fantasia que pela mão do homem.
Qual é o segredo de Murnau? Não é apenas que ele teve todo o lazer, no estúdio,
de organizar previamente sua matéria visual, composta de elementos dos quais, no geral,
apenas os rostos – maquiados e modelados pelas luzes, porém – guardavam a sua
con guração natural. Porque outros já trabalharam nas mesmas condições e não foram
mais do que plagiadores e pedantes. O que o distingue deles é que, da sua parte, ele não
se ocupa de nos fazer admirar a sua habilidade em dar a ilusão da pintura, como um
quadro ilusionista dá a da realidade. Ele sabe ngir conservar o poder investigativo bruto,
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fotográ co, da câmera para nos fazer adentrar totalmente um universo de essência
pictórica. Melhor, ele nos revela que o universo, nosso mundo cotidiano, é pictórico na
sua natureza profunda. Ele veri ca e corrobora a visão do mundo que nos foi liberada
pelas sucessivas etapas da pintura9.
Seu sucesso é devido, em grande parte, à sua escolha – diremos tudo de uma vez,
voltaremos a isso – de subordinar a forma à luz. Se Faust é o mais pictórico dos seus
lmes, é porque o combate da sombra e da luz constitui o seu tema. (Em Der letzte Mann
e Herr Tartü , a forma arquitetônica concebida por Karl Mayer, no estágio do roteiro, pesa
mais sobre a encenação.) A utilização da iluminação dá ao cineasta um outro controle
mais preciso da sua matéria fílmica do que a inserção desta em determinado esquema
arquitetônico. É a luz quem modela a forma, quem a esculpe, e o cineasta – sem romper
com a sua humildade de princípio – parece não estar lá senão para registrar este ato de
criação, para nos permitir participar da gênese de um mundo verdadeiro e belo como a
pintura, já que é pela pintura que a verdade e a beleza do mundo visível nos foram, no
correr das eras, reveladas.
1. AS ILUMINAÇÕES
Acrescente-se que Faust não se apresenta como uma obra única, mas sob a forma, ao
nosso conhecimento, de três versões, tiradas de ao menos dois negativos diferentes, isto é, não
possuindo as mesmas tomadas, coisa corrente numa época em que os contratipos fotográ cos
ainda não existiam: a versão bilíngue (inglesa-alemã) do Deutsches Institut für Filmkunde,
Wiesbaden; a versão dinamarquesa da Cinémathèque Française; e a versão alemã da DEFA
(Berlim oriental), recentemente tirada de um negativo redescoberto. No estado atual das nossas
pesquisas, nenhuma delas pode ser dita mais "autêntica" que as outras. É a primeira (a em
Weisbaden) a que seguimos na decupagem (com exceção à sequência da peste), e as guras
foram tiradas da segunda (a em Paris), traçadas sobre a tela do visor.
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Mais próximas do holandês são as cenas da peste onde, além dos vastos baluartes
de sombra em primeiro plano, a ação não mobiliza mais que uma frágil ilhota de luz,
ameaçada, em todas as frentes, pelas ondas de uma escuridão devoradora (136, 157,
163, etc...). Mas o espírito rembranesco paira ainda mais sobre a nave da catedral
mergulhada num sfumato que bloqueia obliquamente os raios do Sol que descem dos
vitrais (300), ou sobre esses outros raios dourados a lados, que brotam do ostensório em
forma de cruz e que parecem atirar seus prolongamentos até os quatro cantos do quadro
(312).
Que Rembrandt seja o modelo, declarado ou não, de Murnau, isto é mais do que
provável. Mas modelo inigualável, cuja arte nos leva muito longe da representação
fotográ ca das coisas. Ele está, se podemos assim dizer, mais além – já resolutamente
moderno – dos artistas da Renascença, e inclusive os venezianos, do ponto de vista da
"iluminação"12, que nos ocupa neste momento, estão ainda um pouco aquém. Grosso
modo, porque a evolução é longe de ser linear, o século XVI aspira a um realismo
fotográ co13 e, não podendo atingi-lo, estiliza, se podemos assim dizer, pelo defeito. O
século XVII o alcança e encontra um estilo no excesso da sua técnica de reprodução, se
entregando à experiências que se tornarão, duzentos anos mais tarde, os lugares-
comuns da fotogra a. O século XVIII ou recai no maneirismo ou, nos maiores (Watteau,
Chardin, Fragonard), começa a a rmar uma vontade de estilo que volta as costas,
precisamente, aos ensinamentos da camera obscura. Ele, Rembrandt, utiliza plenamente
as conquistas de seu século e as faz servirem à sua própria destruição, inventando,
graças à sua ciência das leis da luz, um universo onde o claro e o escuro rumam a outras
leis, de uma ordem superior, que põem em cheque o artifício, mesmo o mais inteligente,
dos ateliês.
Ainda assim, Rembrandt é talvez uma pista falsa. E, se devemos destacar um nome,
pronunciemos antes o de Caravaggio, que nos viria logo aos lábios, não fosse o respeito
devido à célebre gura. Sua obra representa o ponto de correspondência o mais exato
entre a visão fotográ ca e a pictórica. Essa constatação não é, de nossa parte, uma
crítica, porque esse estado extremo de tecnicidade não apenas representa para a pintura
uma etapa necessária da sua história, mas a lhe revela espécies de belezas que, tendo se
deixado anexar mais tarde pela fotogra a, não são menos pictóricas. Da mesma forma
Murnau, ao se apropriar de certa qualidade pictórica, não é menos cineasta. Ele é pintor,
como Caravaggio é fotógrafo, e o caso do segundo pode ajudar a melhor compreender o
do primeiro.
12 No campo da perspectiva, parece que o encontro se deu mais cedo, diríamos, no meio da
carreira de Ticiano. Na Madona de Pesaro (Veneza, Santa Maria dei Frari) a transcrição de
volumes sobre a superfície plana é de espírito fotográ co.
13 No seu Tratado da Pintura, Leonardo da Vinci aconselha o uso da camera obscura, ou do
decalque sobre vidro.
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que o esquematismo dos Primitivos ou as deformações dos maneiristas. São chocantes,
em A Ceia em Emaús14, esses escorços que creríamos serem obtidos por uma objetiva
de distância focal muito curta. Igualmente chocantes, pelo seu contraste violento, as
grandes placas de sombra opaca depositadas por uma luz crua sob as sobrancelhas e
sob os queixos dos personagens (A Deposição de Cristo15). Chocante essa modelagem
que sacri ca, como com frequência na fotogra a, a realidade anatômica em prol da
verdade única da iluminação (São Jerônimo que Escreve16). Dois outros "realistas" do
século XVII, na linha de Caravaggio, mas possuindo com Murnau menos a nidade de
espírito e de temperamento, oferecem, com o cinematógrafo em geral, e o lme Faust em
particular, pontos precisos de convergência. Do primeiro, Georges de La Tour, Murnau,
ainda que muito distante de seu misticismo, possui o gosto do despojamento nos
cenários e gurinos, aqui virgens (exceto no episódio na corte de Parma) de todo
ornamento ou ouropel. Como ele, Murnau ama colocar em campo fontes luminosas e,
excedendo os poderes da placa sensível, fazer às vezes, com um excesso de luz,
"estourar" um rosto, exatamente como o pintor faz com aquele do menino Jesus,
achatado, queimado, em São José carpinteiro17, pelo irradiar próximo da chama.
2. O DESENHO
Tentemos deixar a nossa ideia mais precisa, considerando não mais a luz, mas o
"desenho". Pode parecer paradoxal falar de desenho a propósito de um cineasta, isto é,
de um fotógrafo: é, de todas, a coisa que lhe escapa, pela própria natureza da sua
técnica de reprodução de formas. Por mais que lhe seja fácil dominar suas iluminações e
a rmar a sua personalidade pela dosagem de sombra e luz, ele parece impotente para
imprimir no lme a marca da sua mão. E porém...