Organizacao Do Espaco No Fausto de Murnau Traducao

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A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO NO FAUST DE MURNAU

ÉRIC ROHMER

Tradução integral em Português de Gabriel Fernandes de Carvalho

A partir do texto da Union Générale d'Editions, 1ª edição, 1977

Original, em Francês:

https://drive.google.com/ le/d/1NlpgkTPPB1KuXsP6LbWS8iFVF4WiTy7D/view?
usp=sharing

1ª versão da tradução – Fevereiro de 2023



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ÍNDICE

EPÍGRAFE 3

INTRODUÇÃO: MAESTRIA DO ESPAÇO 4

CAPÍTULO I: O ESPAÇO PICTÓRICO 7

1. As iluminações 8

2. O desenho 11

3. As formas X

APÊNDICES

1. O Prólogo no céu X

2. As "formas" na sequência do parque de diversões X

3. A viagem aérea X

CAPÍTULO II: O ESPAÇO ARQUITETÔNICO X

1. Os cenários X

2. Os objetos X

3. Os gurinos X

CAPÍTULO III: O ESPAÇO FÍLMICO X

1. A decupagem e a montagem X

2. O "jogo" X

A. A natureza X

B. O ator X

C. As direções privilegiadas X

APÊNDICES X

1. Direções privilegiadas na sequência 3 X

2. Pontos de convergência e divergência na sequência 7 X

3. Esquemas motores da errância de Marguerite X

BIBLIOGRAFIA X

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Toda a infelicidade vem simplesmente do sentido


único da direção dada por Lúcifer. Faltava à sua criação
a melhor das metades: tudo aquilo que é obtido pela
concentração ela possuía, mas lhe faltava aquilo que
não pode ser produzido senão pela expansão.

Goethe (Poesia e Verdade, II, 8)1


1 Traduzido do Francês [N. do T.]


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A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO NO FAUST DE MURNAU2

MAESTRIA DO ESPAÇO

De todos os cineastas, F. W. Murnau é talvez aquele que soube organizar o espaço


de seus lmes da maneira mais rigorosa e a mais inventiva. A primeira impressão que
suas obras provocam é aquela de uma animação da superfície inteira da tela, em seus
menores detalhes, a cada instante da projeção. Impressão, portanto, de uma maestria
absoluta de todos os elementos que contribuem à expressão plástica, e de uma
imaginação apta a incessantemente criar e combinar novas formas.

O lme Faust – Eine deutsche Volkssage parece-nos se prestar particularmente a


um estudo sobre a organização de seu espaço. A força da expressão plástica toma
evidentemente a vantagem sobre o enredo, nesse drama conhecido por qualquer
espectador. Seus contemporâneos o haviam apreciado, e nós mesmos o apreciamos
como uma espécie de ópera visual, a mise en scène tomando o lugar da partitura.

Quaisquer que sejam, em efeito, a força e a profundidade do tema, tal como


herdamos do Volksbuch3 e do drama de Goethe – que, à parte o episódio da peste4, o
lme segue de perto –, os méritos que remetem ao "argumento" são muito
evidentemente menores aqui do que nas duas obras imediatamente anteriores de
Murnau, Der letzte Mann e Herr Tartü , dotados da marca de Karl Mayer, seu roteirista.
Que Murnau tenha prescindido desta vez precisamente da colaboração de Mayer deverá
nos permitir melhor assimilar, no estado puro, a arte da sua mise en scène. O roteiro de
Faust é obra do poeta Hans Kyser5. Murnau levou a cabo numerosas modi cações,
como testemunha um exemplar datilografado que traz nas margens suas anotações
manuscritas6.

Mas a questão não se encontra aí. Quaisquer que sejam as suas qualidades, este
texto, para efetuarmos a nossa comparação, não vale nem mais nem menos que um
libreto de ópera. Não pressupõe nada da música, e nos permite entregarmo-nos
inteiramente ao prazer dela, esquecendo-nos de Kyser – e de Goethe, como nos
esquecemos, ao escutá-los, de Berlioz, Gounod ou Schumann.

Neste lme, en m, Murnau, no auge da sua carreira, soube e pôde incorporar na


obra todos os meios capazes de lhe garantir aquela maestria total do espaço de que

2 Esta tese de doutoramento de 3º ciclo foi defendida perante a Universidade de Paris I em


1972.
3 A tradição popular da lenda do Dr. Fausto.
4 E que ainda é sugerido por uma passagem da peça (Vv. 1026-1055). Voltaremos a isso no
nosso capítulo II, p. 57. Por outro lado, não encontramos nenhuma referência ao Fausto de
Marlowe, apesar de citado nos créditos.
5 Que é por sua vez inspirado numa decupagem de Ludwig Berger: Das Verlorene Paradies.
Cf. Eisner p. 56.
6 Cf. Eisner p. 56 et sqq.
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falamos. Todas as formas, tanto as dos rostos, dos corpos, dos objetos como as das
paisagens ou dos elementos naturais – a neve, a luz, o fogo, as nuvens – são modeladas
ou remodeladas à sua vontade com uma ciência consumada do efeito. Jamais uma obra
cinematográ ca especulou tão pouco sobre o acaso.

O termo espaço, no cinema, pode designar três noções diferentes:

1) O espaço pictórico. A imagem cinematográ ca, projetada sobre o retângulo da


tela, – por mais fugaz ou móvel que seja – é percebida e apreciada como a representação
mais ou menos el, mais ou menos bela de tal ou tal parte do mundo exterior.

2) O espaço arquitetônico. Essas próprias partes do mundo, naturais ou fabricadas,


tais como a projeção sobre a tela as nos represente, com mais ou menos delidade, são
dotadas de uma existência objetiva, podendo também ela ser, enquanto tal, o objeto de
um julgamento estético. É com essa realidade que o cineasta se mede no momento da
rodagem, que ele a restitui ou a trai.

3) O espaço fílmico. Na verdade, não é do espaço lmado de que o espectador tem


a ilusão, mas de um espaço virtual reconstituído no seu espírito, com a ajuda dos
elementos fragmentários que o lme lhe fornece.

Esses três espaços correspondem a três modos de apercepção pelo espectador da


matéria fílmica. Eles resultam também de três andamentos, geralmente distintos, do
pensamento do cineasta e de três etapas de seu trabalho, onde ele utiliza, a cada vez,
técnicas diferentes. A da fotogra a no primeira caso, a da cenogra a no segundo, e da
mise en scène propriamente dita e da montagem no terceiro. Para cada uma destas
operações, ele convoca colaboradores especializados cujas sensibilidades cabem a ele
pôr em acordo, a m de que sua obra forme um todo coerente. Inútil sublinhar que a um
enorme número de lmes falta esta unidade e que, por exemplo, as ambições da
fotogra a lhes traem o espírito no qual foram construídos os cenários, quando não
simplesmente frustram os elãs da mise en scène.

Mas, em Faust, ainda mais que nos outros lmes de Murnau, os diferentes
andamentos criadores se interpenetram a tal ponto que é frequentemente difícil dizer se
tal ideia é uma ideia de fotogra a, uma ideia de cenário, uma ideia de mise en scène, por
exemplo no famoso Prólogo no céu, que abre o lme. Não está nas nossas intenções,
aqui, pesquisar a parte que remete a tal ou tal técnico ou ao próprio realizador, e de
pesar seus respectivos méritos. Nós remetemos ao livro de Lotte H. Eisner e aos
testemunhos que ele contém7, e nos contentaremos em dar o nome destes
colaboradores, assinalando os principais lmes nos quais trabalharam antes e depois de
Faust.

a) Encontramos o nome de Karl Ho mann, diretor da fotogra a8, nos créditos de:
Der Knabe in Blau (1919), Sehnsucht (1920), Der Januskopf (1920), de Murnau,
Homunculus de Otto Rippert (1916), Die Nibelungen: Siegfried, Die Nibelungen:

7 Principalmente aquele de Robert Herlth, p. 65 et sqq.


8 Apelidado, a partir de R. Herlth, "O Mágico": "Mit Recht hat man ihn den Zauberer
genannt" (Homenagem do Deutsches Institut für Film und Fernsehen, Munique, 1965).
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Kriemhilds Rache, de Fritz Lang (1923-4), em colaboração com Günther Rittau,
Ungarische Rhapsodie, de H. Schwarz (1929), Der Kongress tanzt, de Erik Charell (1931).

b) Os cenários, os gurinos e os panos de fundo são obra de Robert Herlth e Walter


Röhrig. O segundo trabalhou no Caligari de Robert Wiene, em colaboração com Hermann
Warm, a partir das maquetes de Walter Reimann. Encontramos os nomes de ambos
Herlth e Röhrig em associação em Der müde Tod de Fritz Lang (1921), Der Schatz, de
G.W. Pabst (1923), Der letzte Mann, de Murnau (1924), Zur Chronik von Grieshuus de
Arthur von Gerlach (1925), Herr Tartü , de Murnau (1925).

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I

O ESPAÇO PICTÓRICO

Murnau, em seus lmes, e em Faust particularmente, manifesta uma real e profunda


cultura pictórica. Ele é um dos raros cineastas – com Eisenstein e Dreyer – cuja
concepção fotográ ca deve mais à pintura dos museus que à imagética popular. Não
tomamos, aliás, esse termo como negativo. Ao mirar alto demais, o cinema arrisca
quebrar as costas, e não evita os que desejam as armadilhas do pompierismo. Os
inspiradores dos primeiros lmes de cção foram, como se sabe, cartunistas. Antes de
ser lmado por Lumière, L'Arroseur arrosé era uma "história sem palavras" desenhada
por Herman Vogel e por Christophe. Nascido das histórias em quadrinhos e, por sua vez,
inspirando elas mesmas, o cinema toma então naturalmente seu lugar no interior dessa
"imagética" que os pintores e os teóricos de hoje não tomam como um ramo acessório e
menor das Belas-Artes.

Há uma legião de cineastas que provaram a invenção deste domínio, nos propondo
as suas formas, os seus tipos, a sua paginação, quase o seu traço, o seu toque. Citamos
por exemplo Hitchcock ou Fritz Lang e, por que não, o cinema americano no seu
conjunto: thriller, western, burlesco, musical, etc... Ou, na Europa, Antonioni, Fellini, mas
que zeram passar o motivo popular que os inspira por um tratamento de sublimação.
Ou até mesmo Jean Renoir, outro homem de cultura, mas que sabe abandonar o
impressionismo de Partie de Campagne pelas imagens de Épinal e o caleidoscópio de
Elena.

Ele, Murnau, não deve nada à arte naïf. Isso faz a grandeza e o perigo da sua
empresa, mas não parece que possamos taxá-lo por um único instante de pedantismo,
tanto que as in uências pelas quais ele passou foram intimamente assimiladas, tanto que
ele soube não tirar de seus modelos que não aquilo que ele poderia conformar ao espírito
do cinematógrafo.

Nada mais perigoso para o cineasta do que se achar o pintor que não pode ser.
Mas foi atribuída a um dos maiores essa graça de se elevar acima dos limites de seu
gênero, de combater o pintor no seu próprio terreno, de fazer obra de pintor. Tomemos
em Faust, ao acaso, um fotograma, uma "imagem". Ainda que uma abstração do
movimento que a anima, quer dizer amputada de um elemento essencial da fascinação
que ela exerce sobre nós, ainda que delegada ao papel, é inegável que ela "contém".
Não há nela um só ponto, uma só linha, uma única superfície, um único contraste de
sombra e luz que não pareça, longe dos acasos da reprodução mecânica, traçada com a
mesma liberdade, rigor ou fantasia que pela mão do homem.

Qual é o segredo de Murnau? Não é apenas que ele teve todo o lazer, no estúdio,
de organizar previamente sua matéria visual, composta de elementos dos quais, no geral,
apenas os rostos – maquiados e modelados pelas luzes, porém – guardavam a sua
con guração natural. Porque outros já trabalharam nas mesmas condições e não foram
mais do que plagiadores e pedantes. O que o distingue deles é que, da sua parte, ele não
se ocupa de nos fazer admirar a sua habilidade em dar a ilusão da pintura, como um
quadro ilusionista dá a da realidade. Ele sabe ngir conservar o poder investigativo bruto,
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fotográ co, da câmera para nos fazer adentrar totalmente um universo de essência
pictórica. Melhor, ele nos revela que o universo, nosso mundo cotidiano, é pictórico na
sua natureza profunda. Ele veri ca e corrobora a visão do mundo que nos foi liberada
pelas sucessivas etapas da pintura9.

Seu sucesso é devido, em grande parte, à sua escolha – diremos tudo de uma vez,
voltaremos a isso – de subordinar a forma à luz. Se Faust é o mais pictórico dos seus
lmes, é porque o combate da sombra e da luz constitui o seu tema. (Em Der letzte Mann
e Herr Tartü , a forma arquitetônica concebida por Karl Mayer, no estágio do roteiro, pesa
mais sobre a encenação.) A utilização da iluminação dá ao cineasta um outro controle
mais preciso da sua matéria fílmica do que a inserção desta em determinado esquema
arquitetônico. É a luz quem modela a forma, quem a esculpe, e o cineasta – sem romper
com a sua humildade de princípio – parece não estar lá senão para registrar este ato de
criação, para nos permitir participar da gênese de um mundo verdadeiro e belo como a
pintura, já que é pela pintura que a verdade e a beleza do mundo visível nos foram, no
correr das eras, reveladas.

1. AS ILUMINAÇÕES

O primeiro pintor em qual Faust nos faz pensar é o pintor do chiaroscuro,


Rembrandt. Mostrando Fausto no seu escritório, Murnau não poderia não pensar na
célebre gravura que supõe-se representar o mago de Nuremberg10. Ela foi reproduzida
por Johann Heinrich Lips, para servir de frontispício, em 1790, à edição do drama de
Goethe. Mas – uma grande diferença com o lme – a luz, celeste, em Rembrandt, cai da
janela elevada, enquanto que em Murnau ela emana de um globo brilhante (10)11, ou do
fogo que consome os livros (85 et sqq.), e, vindo de baixo, trai a sua origem infernal.

9 Da mesma forma, a fotogra a veri ca certas pré-concepções pictóricas não apenas da


perspectiva, mas da repartição das massas de sombra e luz. Um papel de contraste
su cientemente forte faz surgirem linhas que poderíamos acreditar serem o fruto do arbítrio do
artista e que então se revelam serem partes constitutivas do mundo natural ou, ao menos,
elementos objetivos de toda representação.
10 O título real é O Mago, sem que Fausto seja designado por nome (cf. Wolfgang Werner,
Die Faustdarstellung. Amsterdã, 1962). Notamos que o personagem não tem barba.
11 Os números entre parênteses remetem a uma decupagem que havíamos anexado à nossa
tese, mas que infelizmente não pudemos inserir neste volume, pois dobraria o número de
páginas. De toda forma, conservamos a nossa numeração, não mais à título de referência, mas
como um marcador indispensável para a conveniência da exposição.

Acrescente-se que Faust não se apresenta como uma obra única, mas sob a forma, ao
nosso conhecimento, de três versões, tiradas de ao menos dois negativos diferentes, isto é, não
possuindo as mesmas tomadas, coisa corrente numa época em que os contratipos fotográ cos
ainda não existiam: a versão bilíngue (inglesa-alemã) do Deutsches Institut für Filmkunde,
Wiesbaden; a versão dinamarquesa da Cinémathèque Française; e a versão alemã da DEFA
(Berlim oriental), recentemente tirada de um negativo redescoberto. No estado atual das nossas
pesquisas, nenhuma delas pode ser dita mais "autêntica" que as outras. É a primeira (a em
Weisbaden) a que seguimos na decupagem (com exceção à sequência da peste), e as guras
foram tiradas da segunda (a em Paris), traçadas sobre a tela do visor.
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Mais próximas do holandês são as cenas da peste onde, além dos vastos baluartes
de sombra em primeiro plano, a ação não mobiliza mais que uma frágil ilhota de luz,
ameaçada, em todas as frentes, pelas ondas de uma escuridão devoradora (136, 157,
163, etc...). Mas o espírito rembranesco paira ainda mais sobre a nave da catedral
mergulhada num sfumato que bloqueia obliquamente os raios do Sol que descem dos
vitrais (300), ou sobre esses outros raios dourados a lados, que brotam do ostensório em
forma de cruz e que parecem atirar seus prolongamentos até os quatro cantos do quadro
(312).

Que Rembrandt seja o modelo, declarado ou não, de Murnau, isto é mais do que
provável. Mas modelo inigualável, cuja arte nos leva muito longe da representação
fotográ ca das coisas. Ele está, se podemos assim dizer, mais além – já resolutamente
moderno – dos artistas da Renascença, e inclusive os venezianos, do ponto de vista da
"iluminação"12, que nos ocupa neste momento, estão ainda um pouco aquém. Grosso
modo, porque a evolução é longe de ser linear, o século XVI aspira a um realismo
fotográ co13 e, não podendo atingi-lo, estiliza, se podemos assim dizer, pelo defeito. O
século XVII o alcança e encontra um estilo no excesso da sua técnica de reprodução, se
entregando à experiências que se tornarão, duzentos anos mais tarde, os lugares-
comuns da fotogra a. O século XVIII ou recai no maneirismo ou, nos maiores (Watteau,
Chardin, Fragonard), começa a a rmar uma vontade de estilo que volta as costas,
precisamente, aos ensinamentos da camera obscura. Ele, Rembrandt, utiliza plenamente
as conquistas de seu século e as faz servirem à sua própria destruição, inventando,
graças à sua ciência das leis da luz, um universo onde o claro e o escuro rumam a outras
leis, de uma ordem superior, que põem em cheque o artifício, mesmo o mais inteligente,
dos ateliês.

Ainda assim, Rembrandt é talvez uma pista falsa. E, se devemos destacar um nome,
pronunciemos antes o de Caravaggio, que nos viria logo aos lábios, não fosse o respeito
devido à célebre gura. Sua obra representa o ponto de correspondência o mais exato
entre a visão fotográ ca e a pictórica. Essa constatação não é, de nossa parte, uma
crítica, porque esse estado extremo de tecnicidade não apenas representa para a pintura
uma etapa necessária da sua história, mas a lhe revela espécies de belezas que, tendo se
deixado anexar mais tarde pela fotogra a, não são menos pictóricas. Da mesma forma
Murnau, ao se apropriar de certa qualidade pictórica, não é menos cineasta. Ele é pintor,
como Caravaggio é fotógrafo, e o caso do segundo pode ajudar a melhor compreender o
do primeiro.

O que o caravagismo e a fotogra a têm em comum não é tanto o seu realismo


ordinário como o irrealismo mesmo de alguns de seus efeitos. A transposição dos
volumes na superfície, a seleção dos valores nos dão frequentemente, aqui como lá, o
espetáculo de um vero que não é nunca verossímil, e que choca muita mais o nosso olho

12 No campo da perspectiva, parece que o encontro se deu mais cedo, diríamos, no meio da
carreira de Ticiano. Na Madona de Pesaro (Veneza, Santa Maria dei Frari) a transcrição de
volumes sobre a superfície plana é de espírito fotográ co.
13 No seu Tratado da Pintura, Leonardo da Vinci aconselha o uso da camera obscura, ou do
decalque sobre vidro.
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que o esquematismo dos Primitivos ou as deformações dos maneiristas. São chocantes,
em A Ceia em Emaús14, esses escorços que creríamos serem obtidos por uma objetiva
de distância focal muito curta. Igualmente chocantes, pelo seu contraste violento, as
grandes placas de sombra opaca depositadas por uma luz crua sob as sobrancelhas e
sob os queixos dos personagens (A Deposição de Cristo15). Chocante essa modelagem
que sacri ca, como com frequência na fotogra a, a realidade anatômica em prol da
verdade única da iluminação (São Jerônimo que Escreve16). Dois outros "realistas" do
século XVII, na linha de Caravaggio, mas possuindo com Murnau menos a nidade de
espírito e de temperamento, oferecem, com o cinematógrafo em geral, e o lme Faust em
particular, pontos precisos de convergência. Do primeiro, Georges de La Tour, Murnau,
ainda que muito distante de seu misticismo, possui o gosto do despojamento nos
cenários e gurinos, aqui virgens (exceto no episódio na corte de Parma) de todo
ornamento ou ouropel. Como ele, Murnau ama colocar em campo fontes luminosas e,
excedendo os poderes da placa sensível, fazer às vezes, com um excesso de luz,
"estourar" um rosto, exatamente como o pintor faz com aquele do menino Jesus,
achatado, queimado, em São José carpinteiro17, pelo irradiar próximo da chama.

No segundo, Vermeer, a luz é igualmente, ainda que de maneira menos espetacular,


a organizadora absoluta do espaço. É ela quem modela as formas e distribui as grandes
áreas chapadas de amarelo e de azul18. Voltando também ele as costas ao senso
comum, Vermeer chega mesmo, nos "borrões" de A Rendeira19, a especular sobre uma
de ciência do olho humano que este último deixará de herança para a câmera: e,
tomando dela uma consciência mais clara, ela saberá às vezes invertê-la para a sua
vantagem. As cenas diurnas, na casa de Gretchen, são iluminadas um pouco à maneira
do mestre de Delft, sobretudo aquelas no quarto da mãe, com o dia nascendo, à
esquerda, pela janela de vitral (290). Reencontramos, neste cenário, o espírito da Mulher
com um colar de pérolas20, da qual a cena do cofre (354 et sqq.) não retém mais que a
posição ereta, de per l, de frente ao móvel, mas propõe uma iluminação toda diferente,
um contra-luz pela janela ao fundo.

Poderíamos quase dizer que a visão de Vermeer é mais fotográ ca que a de


Murnau, que tenta, em toda essa parte do lme, eliminar a modelagem e valorizar o puro

14 Londres, National Gallery.


15 Roma, Pinacoteca Vaticana.
16 Roma, Galleria Borghese.
17 Paris, Museu do Louvre.
18 Perturbador: essa paleta, com seus amarelos, seus azuis-da-Prússia (ciano), seus
castanhos rosados (magenta), é, de todas, a mais próxima da atual tricromia Kodak. De forma
que não é impossível, com cuidado, reconstituir fotogra camente uma de suas telas a partir de
cenários e personagens vivos. Apesar disso, pensemos no gracejo de Dalí: "Vermeer é o pintor
que, em aparência, mais se aproxima da fotogra a, mas que no fundo mais se afasta dela."
19 Museu do Louvre. Um fotógrafo diria que o foco está não no sujeito, mas no primeiro
plano.
20 Museu de Berlim.
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desenho, mas, também aí, igualmente pela magia da luz quanto pela arquitetura própria
das formas.

Façamo-nos entender. Não se trata aqui de uma tentativa vã de "reconciliação". Se


podemos dizer que Murnau é o mais "pintor" dos cineastas, não é porque alguns de seus
planos apresentam analogias fortuitas ou intencionais com tal quadro famoso. É que, de
uma maneira mais geral, as belezas que ele nos propõe são próximas, em espírito,
daquelas que a pintura, na sua história, nos oferece em admiração, e que a fotogra a não
faz mais que retomar dela. Mas aquelas que a câmera soube inventar por si mesma e das
quais a pintura não tivera o pressentimento o tentam muito pouco, mesmo se é verdade
que elas tenham seduzido seus mais ilustres contemporâneos, os Lang, os Stroheim, os
Sternberg, entre outros. Estes gostam de fazer com que se sinta a origem elétrica de
suas iluminações. Seus truques são apresentados como tais. Respiramos neles a
atmosfera do estúdio e nos intoxicamos da embriaguez particular que ela fornece. O
emprego de certos procedimentos, como a difusão, nos revela belezas insuspeitas pela
pintura e que o cinema pode adicionar na conta das suas mais inegáveis conquistas. As
belezas de Fausto possuem com as dos museus um ar de familiaridade. Se elas jamais
se apresentam completamente sob a forma de "quadros", elas carregam em si o
fermento de um quadro possível. Como dizíamos acima, elas nos forçam a ver o mundo
como pintores.

2. O DESENHO

Tentemos deixar a nossa ideia mais precisa, considerando não mais a luz, mas o
"desenho". Pode parecer paradoxal falar de desenho a propósito de um cineasta, isto é,
de um fotógrafo: é, de todas, a coisa que lhe escapa, pela própria natureza da sua
técnica de reprodução de formas. Por mais que lhe seja fácil dominar suas iluminações e
a rmar a sua personalidade pela dosagem de sombra e luz, ele parece impotente para
imprimir no lme a marca da sua mão. E porém...

A impressão imediata dada por um fotograma de um lme de Murnau é a de uma


certa amplitude, de uma plenitude do traço que não pertence a ninguém que não ele, e o
torna facilmente identi cável. Os personagens, os objetos, os cenários de outros lmes
parecem, em comparação, escassos, até mesmo restringidos. Isso vem em primeiro
lugar da franqueza das tomadas que desdenham da facilidade dos extremos, seja o do
close-up (que, fazendo do rosto uma paisagem, paradoxalmente afasta aquilo que
deveria aproximar), ou o do gigantismo dos cenários e das multidões, caros ao Lang de
Niebelungen e de Metropolis. Notamos, pelo contrário, em toda a obra de Murnau, uma
predileção pelo plano-próximo (PP), mostrando o busto do ator e a rmando assim a sua
presença tanto plástica quanto dramática. Não apenas as proporções relativas do
"sujeito" em relação ao seu ambiente se encontram engrandecidas, mas os sujeitos
escolhidos pelo realizador são eles mesmos dotados frequentemente de proporções
além do ordinário. Todos os acessórios de Faust não são tão gigantescos como os
imensos candelabros de Tartu , ou a cafeteria de City Girl [12], mas eles são, parece, de
"bom-feitio" – livros, cruzes, cofres, colares, jarros, etc... – e de uma simplicidade de
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formas que marcam nosso primeiro olhar, sem que haja necessidade de isolá-las num
close-up extremo. A mesma coisa poderíamos dizer dos personagens. Eles não são

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