100% acharam este documento útil (1 voto)
686 visualizações334 páginas

Ramon Stergmann Volume 2 PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1/ 334

Peças Teatrais de

Ramon Stergmann
Peças Teatrais de
Ramon Stergmann
Coleção Teatro do Norte Brasileiro
Volume 2

Organizadores
BENE MARTINS & MAILSON SOARES

Programa de Pós-Graduação em Artes
PPGARTES-UFPA

Belém, 2021
Peças Teatrais de Ramon Stergmann
Coleção Teatro do Norte Brasileiro. Volume 2.
Organizadores Bene Martins & Mailson Soares

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho


Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva
Diretora Geral do ICA: Adriana Valente Azulay
Diretor Adjunto: Joel Cardoso da Silva
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES): Valzeli Sampaio
Vice-Coordenador: Orlando Maneschy
Coordenador do Mestrado Profissional em Artes: Áureo de Freitas

Comissão Editorial: Valzeli Figueira Sampaio, OrlandoFranco Maneschy, Giselle Guilhon


Antunes Camargo, Liliam Cristina Barros Cohen, José Afonso Medeiros Souza e Áureo
Déo de Freitas Júnior

COMITÊ CIENTÍFICO DESTA EDIÇÃO:


Presidente da Comissão: Bene Martins (UFPA), Olinda Charone (UFPA), Wladilene de Sousa Lima
(UFPA), Marton Maués (UFPA), Lúcia Gouvêa Pimentel (UFMG), Fernando Antonio Mencarelli
(UFMG), Tácito Boralho (UFMA), Mirna Spritzer (URGS), Ananda Machado (UFRR), Maria João
Brilhante (Universidade de Lisboa-PT), Berta Teixeira (Universidade de Coimbra)

Revisão textual: Bene Martins & Mailson Soares


Projeto Gráfico: Capa, diagramação e editoração eletrônica: Lúcia Lopes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD


Biblioteca do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA

S838p Stergmann, Ramon.


Peças Teatrais de Ramon Stergmann [recurso eletrônico] / Ramon
Stergmann; Organizadores Bene Martins & Mailson Soares. — Belém:
Programa de Pós-Graduação em Artes/UFPA, 2021. — (Coleção Teatro do
Norte Brasileiro ; v. 2)

Inclui bibliografias.
Modo de acesso: http://ppgartes.propesp.ufpa.br/index.php/br/

ISBN 978-65-88455-17-3

1. Literatura brasileira - teatro. 2. Teatro brasileiro. 3. Arte e pesquisa. I.


Martins, Bene, org. II. Soares, Mailson, org. III. Título.

CDD 23. ed. – 869.92


Elaborado por Larissa Lima da Silva – CRB-2/1585
Agradecimentos
Primeiro, agradecemos e dedicamos a obra à memória de Raman Stergmann, procura-
mos atender ao pedido do artista “Não deixem minha obra morrer”.

Agradecemos ao Grupo Maromba que, na pessoa do professor Dinelson Serrão da Sil-


va – filho adotivo de Ramon Stergmann – generosamente, cedeu os originais das peças
de teatro para o acervo do Projeto de Pesquisa: Memórias da Dramaturgia Amazônida:
Construção de acervo dramatúrgico, o qual tem o compromisso de trazê-las a público.
Parte da obra reunida nesta publicação.

Ao rendermos méritos a quem nos ajuda em nossas caminhadas, declaramos ato amo-
roso e digno dos que buscam crescimento e bem comum. O agradecimento carrega em
si um marco de gratidão e faz tão bem, a quem agradece e a quem recebe o muito obri-
gado. Assim, nesses anos em que nos iniciamos nos caminhos da pesquisa acadêmica e
artística, reconhecemos presenças essenciais neste percurso. E de modo especial, para
a feitura deste e-book, uma amostra da obra do dramaturgo Ramon Stergmann, preci-
samos emanar gratidão:

Em primeiro lugar, ao próprio autor, in memoriam. Ramon, além de artista plástico, de-
dicou sua vida à arte teatral, nos legando a riqueza de seus textos. Ainda lembramos a
emoção de lê-los nos originais...

À Universidade Federal do Pará e ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPG ARTES-


-UFPA) pelo apoio ao projeto de pesquisa que possibilitou a edição deste e-book. Esta
instituição tem se destacado pelo comprometimento com ações voltadas à valorização
do patrimônio artístico-cultural amazônida.

Ao artista de tantas vertentes, jornalista; escritor; dramaturgo; ator; diretor de teatro;


músico, cantor, compositor, arranjador; arquiteto; cineasta, Walter Freitas, amigo e par-
ceiro de trabalho de Ramon Stergmann. Walter nos brinda com o posfácio desta obra.

Ao encenador, professor, pesquisador de teatro Paulo Santana, diretor do Grupo Palha.


Paulo, gentilmente, disponibilizou textos originais de Ramon Stergmann, que contam
em seu acervo particular, visto que o dramaturgo aqui publicado foi seu parceiro de tra-
balho. Nosso muito obrigado!

Por fim, agora Mailson falando, dedico meus agradecimentos à professora Bene Martins,
que desde 2009, na coordenação do projeto de pesquisa Memória de dramaturgia ama-
zônida: construção de acervo dramatúrgico-UFPA, tem priorizado a recolha, catalogação,
digitação e divulgação das obras dramatúrgicas produzidas na Amazônia. Pesquisadora
dedicada, diria até obstinada, Bene Martins, com quem trabalho desde 2007, é mestra,
amiga, profissional com quem aprendo continuamente. Obrigado pela alegria de orga-
nizarmos juntos esta obra!

Bene falando... Para interromper nossos agradecimentos conjuntos, fizemos questão de


particularizar nossas falas para enfatizar a importância da parceria Bene x Mailson. Con-
forme ele afirma, iniciada em 2007. Trabalhar com Mailson é sinônimo de cumplicidade
responsável, é acompanhá-lo em seu aprendizado de artista pesquisador incansável.
Além de pesquisador de letras e artes, especificamente teatro, ele é dramaturgo dos
bons. Nosso aprendizado é mútuo e gratificante. A organização desta obra, veio desde
a leitura, digitação, revisão das peças aqui reunidas. Agradeço nossa parceria, Mailson,
sabemos que ela será duradoura!
Dedicatória
Dedicamos esta publicação às duas primeiras colaboradoras do projeto de pesquisa
Memória da dramaturgia amazônida: construção de acervo dramatúrgico:
Olinda Charone e Zeffa Magalhães !
Sumário

Clique em cada item, Apresentação por Ramon Stergmann........................................ 09


ao lado e abaixo,
Prefácio por Bene Martins & Mailson Soares...........................10
e vá para a página
correspondente. Pósfácio por Paulo Roberto Santana Furtado.................... 315

PEÇAS
A vida escrachada de Madame Jordana e Gioconda Latifunda (2001).............................. 17

Ana Doida (2001).............................................................................................................................................. 37

Carona para Belém (2002).......................................................................................................................... 47

Com que tinta pintarei teu rosto? (2003)............................................................................................ 65

Conversa vai, conversa vem (2003)....................................................................................................... 82

Cretinas e divinas (2003).......................................................................................................................... 109

A cadeira vazia (2003)................................................................................................................................ 120

A perseguida (2003).................................................................................................................................... 137

A empregada e a patroa numa boa (2003)..................................................................................... 161

Vila da Barca (2003)..................................................................................................................................... 177

No jongo dos tambores da noite (2003)........................................................................................... 188

Cara ou coroa (2003).................................................................................................................................. 202

O bordel de Joana Homem (2004)...................................................................................................... 222

A gaiola de vidro (2004)............................................................................................................................. 232

Duas vidas em frangalhos (2004)......................................................................................................... 252

A morte de Pedro Maleiro (2004)......................................................................................................... 264

Bar do Parque (2004)................................................................................................................................. 269

O berro do silêncio (2006).......................................................................................................................304


-9-

Apresentação
Por Ramon Stergmann

Apesar da riqueza da produção cultual, literária e artística da Amazônia, há pouco


tempo atrás, o intercâmbio da região e dos artistas locais com o resto do país era
esporádico. Já, nos últimos anos, uma série de iniciativas e de eventos dos grupos e
companhias de teatro e de dança, através de temporadas ou de mostras e festivais
de artes vêm propiciando a todos nós, como autores e atores de teatro, incremento
das “trocas artísticas e culturais”, integrando o nosso Pará (dos paraenses de cora-
ção) ao circuito nacional, com certeza. Todos, como profissionais ou amadores, que
circulam pelo cenário artístico regional e nacional, com as mais diversas formas de
expressão da cultura paraense, como a cerâmica, a música, a dança, as artes plásti-
cas, os ritmos, enfim, merecem o nosso reconhecimento.

Antes disso, na década de 1960, até 1980, nascido em Belém e radicado na capital
carioca, onde divulgava a cultura do Pará, com o apoio da saudosa Eneida de Morais
e de outros escritores famosos, já de retorno às minhas origens e, no decorrer de mi-
nha carreira em Belém, sempre voltado às pesquisas de campo e às linguagens do
nosso povo tapuio, sinto-me feliz em montar uma aquarela amazônica retratando
a vida, as dificuldades, os causos, os fatos e casos envolvendo o caboclo ribeirinho.

O presente trabalho, reunindo várias peças teatrais, de característica regional, re-


sume-se numa coletânea diferenciada aos grupos e às companhias de teatro e de
dança para montagens posteriores. As modalidades cênicas oferecidas nesta co-
letânea, para adaptação teatral, são pesquisas realizadas junto aos habitantes de
vida ribeirinha e aos povos indígenas no Alto Xingu, Xinguara, Altamira, nas ilhas
de Breves, Barcarena, Moju, Bujaru, Cotijuba, Ponta de Pedras, Soures, Salvaterra,
Marudá, Alter do Chão, São Domingos do Capim, Vigia, enfim, tantas outras locali-
dades onde as lendas, os mitos, as visagens e assombrações habitam as matas e os
rios da Amazônia, além das histórias contadas com veemência e com tanta voraci-
dade que as pessoas parecem acreditar nelas. Histórias passadas de pai para filho,
depois repassadas para os netos, os mais jovens, que colocam a dúvida em tudo
que é fantasmobelo. Procurei, amazonicamente, embelezar e valorizar meu povão,
no contexto do Teatro Paraense.

Pará, 10/04/2002.
- 10 -

Prefácio
Por Bene Martins(1) & Mailson Soares(2)

Quem sabe de nós, os negros, afro-brasileiros, das cantigas africanas, dos


gemidos das guitarras, da quentura de nosso sangue derramado em suor e
dos lombos de ternura milenar, até nos tempos de hoje?
(Peça: Zumbi contra a Princesa Isabel, 1988).

Não deixem minha obra morrer. Ramon Stergmann.

No prefácio do volume 1 - Peças teatrais de Ramon Stergmann, afirmamos o quan-


to foi ato condoído, o de selecionarnos as peças que o comporiam, reafirmamos es-
sa angústia neste volume 2. Ao recebermos o montante das inúmeras peças, o pri-
meiro passo foi o minucioso trabalho de digitação, revisão para, em seguida, defi-
nir critérios para a seleção de quais peças seriam publicadas em cada volume. Pois
bem, reiteramos nossa opção pela ordem mais ou mesmo cronológica. O leitor ve-
rá que neste volume 2, apareceram peças mais antigas das contidas no volume 1.
Não foi proposital, aconteceu, mas seguimos neste, das mais antigas para as mais
recentes. Os dois volumes têm essa especificidade em comum. No primeiro, entra-
ram 19 peças. Neste, além da apresentação (3) escrita pelo autor, mais 18 peças. Ain-
da temos material para, a princípio, mais dois volumes.

No volume 1, fomos agraciados com o posfácio, A poética de Ramon Stergmann,


escrito pelo artista-escritor Walter Freitas. Neste, o presente, a modo de posfácio,
Ramon Stergman: O fenômeno do teatro paraense e sua produção textual para os
grupos da cidade de Belém do Pará, escrito pelo artista-pesquisador, Paulo San-
tana. Paulo foi o diretor que mais montou peças do Ramon, e fez neste texto, cer-
to percurso pelo trabalho desenvolvido sobre as peças montadas e mencionadas

(1) Doutora em letras, pela UFMG; pós-doutorado em Estudos de Teatro, na Universidade de Lisboa-PT; pro-
fessora da Escola de Teatro e Dança (ETDUFPA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) da
Universidade Federal do Pará; coordenadora do projeto de pesquisa: Memória da dramaturgia amazônida:
construção de acervo dramatúrgico. (behne03@yahoo.com.br).
(2) Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Pará (UEPA); Licenciado em Letras pela Universida-
de Federal do Pará (UFPA); Ator e cenógrafo formado pela Escola de Teatro e Dança (UFPA); Diretor de tea-
tro e dramaturgo. Autor de Bem perto do Paraíso/2019, livro com quatro peças. (mailson17ator@gmail.com).
(3) O texto apresentação, escrito pelo Ramon Stergmann, será mantido em todos os volumes. Caso o leitor
leia um volume e outro não, ele conhecerá outro texto, que não peça teatral, além de que o texto apresenta
parte dos temas que ele trabalhou nas inúmeras peças escritas por ele.
- 11 -

por ele, de maneira que o leitor ficará mais familiarizado com a obra stergmaniana.
Além de conhecer algumas características da escrita de Ramon, Paulo teceu, neste
texto, comentários sobre as participações do Grupo Palha, em temporadas e festi-
vais no estado do Pará e outros estados. Este é mais um registro do quanto há pa-
ra se conhecer sobre as atuações dos grupos de teatro de Belém, pelo Brasil afora.
Ainda, ao explicar um pouco sobre os processos de criação dos espetáculos, forne-
ce ao leitor e iniciantes na direção teatral, indicações de por onde começar a desen-
volver uma proposta estética de montagem.

Aliás, em se tratando de indicações de como montar peças teatrais, Ramon é gene-


roso, de modo que os jovens aspirantes a trabalhadores do teatro, podem seguir as
rubricas e iniciar seu aprendizado. Destacamos uma das rubricas (4) da peça, Zumbi
contra princesa Isabel, publicada no volume 1, 2020) (5).

(Neste momento, rufam os tambores, os maracás e os atabaques que vão marcando uma
evolução coreográfica entre si, em plena arena. Toda cena trata-se de um ritual afro-bra-
sileiro, onde todos cantam e dançam demonstrando alegria e magia. Em meio à canto-
ria, cada personagem, vai jogando o texto de acordo com o que está acontecendo, atrás de
si, no cenário. A música é livre e o canto também o é).

De modo que, o autor detalha o material a ser utilizado e, nesta rubrica citada, ex-
plica ainda, o ritual que compõe a cena e o modo como a coreografia deve ser ela-
borada e os elementos necessários. Ramon foi um artista completo, já registramos
suas habilidades no prefácio do volume 1. Pois bem, e como tal, homem de teatro,
sensível, empático, preocupado sempre com as mazelas dos mais desvalidos. Não
por acaso, a epígrafe retirada da peça Zumbi contra a Princesa Isabel, chama aten-
ção para a problemática sobre o que os afro-brasileiros sentem. Esta chamada de-
nuncia o comportamento geral e preconceituoso que, ainda, é uma constante pa-
ra essas pessoas. Assim são todas as peças do Ramon, as personagens são velhos
abandonados, explorados; pessoas em frangalhos; crianças abusadas; jovens pra-
ticando abortos; descrença e desconfiança no ser humano; só para citar algumas
temáticas, no que se refere aos desmandos dos que detêm o poder e o sofrimento
dos ignorados pelo sistema. Ramon foi um humanista por excelência.

Na peça, O berro do silêncio, Ernestino nos fala de modo poeticamente triste, sobre
o homem que violentou a borboleta.

(4) Rubricas serão mantidas em itálico, como estão nas referidas peças.
(5) http://ppgartes.propesp.ufpa.br/index.php/br/pesquisa/producao-intelectual/416-2020
- 12 -

ERNESTINO: Eu não sei. Tenho medo do homem que violentou a bor-


boleta. Medo dos que praticam pedofilia destruindo com a pureza das
crianças. Medo do preconceito contra os negros, contra as pessoas defi-
cientes; contra os idosos. O medo dessa gente que mora em nossas casas,
atrás das portas, em nossos jardins, em nossa rua. E tenho medo de perder
esse meu próprio medo! Pois não fui eu que escrevi as Profecias nas pedras,
nem fui eu que extrai delas o leite, o mel... foi JESUS. Esse cara bonachão.
Esperto. Tem cada lance Dele que me amarro de montão. A gente curte
Ele, adoidado.

Naturalmente, nosso dramaturgo não escreveu só dramas e personagens tristes.


A poética stergmaniana contém leveza, senso de humor, beleza, diálogos ternos,
passagens humanizadas. Ou seja, o autor transita pela complexidade do ser huma-
no, este ora, sofre, ora goza. Assim como nós, em nossas vivências. Mas o compro-
misso em denunciar os maus tratos quanto ao zelo humano, é uma constante. As-
sim, ao retratar nuances do ser humano em seus escritos dramatúrgicos, a denún-
cia social está presente, subtendida ou em cenas explícitas. Na peça Vila da Barca,
um dos personagens, Lobato lamenta:

Oh, vidinha ingrata, gente. Olha que eu moro nessa Vila há anos e anos e
nunca soube de família ou de parente que fosse totalmente feliz, sem algum
problema, sem embarcar nesse drama das perdas por essas bandas daqui.
Aos poucos, a população vai se cansando disso aqui, enquanto o poder pú-
blico vai aterrando a área alagada, mais palafitas iam surgindo e avançan-
do sobre o rio, aí a natureza se revolta e toma tudo de volta, arrebata casa,
arrebata família e nossas crianças. Oh, meu Deus! (Soluçou). Por que Donato,
meu Donatinho?! O meu inocente, bem antes dele completar 10 aninhos!...

O trecho acima retrata bem, o modo como Ramon destece o rosário de dores que
acometem certa parcela da população. De modo não proposital, coletamos, para
este número, peças que trazem como pano de fundo, ou temática: a degradação
humana, a miséria, os conflitos advindos da ganância, da desigualdade social, da
ambição, falta de empatia, da própria crueldade do homem. Infelizmente, ele regis-
trou, à época, situações ainda em voga nos nossos dias, cada vez mais agravadas
nestes tempos pandêmicos.

Assim, saímos da periférica Vila da Barca, para uma realidade de classe média. Mu-
da o cenário, personagens, mas o conflito advindo das incoerências humanas per-
manece. A peça da vez é A patroa e a empregada numa boa, a questão agora não é
a falta de dinheiro que relega pessoas a situações degradantes, mas a briga de um
filho insensível, por conta de uma herança, estando a mãe ainda viva. A infâmia a
- 13 -

que são lançados os pobres da Vila da Barca, pela situação mísera que vivem, é re-
alocada, ao comportamento vil de um homem de situação remediada que, por am-
bição e ganância por dinheiro, é capaz de maltratar a própria mãe, ainda que pro-
tegida por sua fiel empregada doméstica. O diálogo abaixo explicita parte da cruel-
dade e frieza do filho com a mãe.
FILHO: (Com deboche). Calma, mãezona, calma. Uma pergunta de cada
vez. Só vim mesmo trazer uma procuração para ela renovar, já que a pri-
meira caducou, tem que assinar outra e também pra saber da minha queri-
da mãezinha, que história é essa de “casa funerária pés juntos” que alguém
ouviu da senhora nesse telefone.
MARIA: (Tentou interferir). Seu Antônio Luiz deixe a sua mãe em paz! Ela
não fez por mal. Só queria descansar a cabeça um pouco.
FILHO: (Empurrando-a). Cala essa boca, sua cretina. Vá procurar o que fazer.
Você é paga pra isso e não para se meter em assunto de família. Saia daqui!
MARIA: Não saio! Nem que a vaca tussa ou vá pro brejo! Sou paga tam-
bém para cuidar dela e se fizer algum mal a ela, pode escrever, saio daqui
sim, mas para ir denunciá-lo na delegacia das mulheres ouviu bem, seu es-
trupício? Bote a mão nela pra ver só uma coisa! Arranque um só fio dos
cabelos dela pra ver o quanto do que sou capaz. Experimente!

Se o leitor quiser saber o que acontece no final da peça, terá que lê-la! Contudo,
há que se reiterar outra caraterística de Ramon Stergmann, pois, se há melancolia,
certa desesperança, tristeza e dor, em muitos de seus textos, não há ausência de
humor, ironia, sarcasmos e boas gargalhadas. Um humor escrachado, debochado,
muitas vezes, reproduzindo o linguajar chulo das ruas. Talvez, isto, incomode ou
desagrade a alguns, e faça rir a outros. Humor que, em algumas obras é corrosivo,
ácido, de quem ri da própria desgraça, e assim faz rir o outro consigo. Ou seja, Ra-
mon, possivelmente, ao construir a comicidade em suas peças, arrancará de nós
boas gargalhadas, porém, nem todo riso será de alegria. As falas das irmãs Jorda-
na e Gioconda, duas escrachadas, demonstram o jeito debochado de viver e como
elas levam suas vidas de putas abandonadas, rindo da própria sorte.

JORDANA: (Atropelando-se com irmã). Nossa, Gioconda!!!


GIOCONDA: Haja Deus. (Tomou-lhe o buquê de flores). Deixe-me ver pra
quem de nós duas... Se é pra mim ou pra você, viu bem... (O rapaz mensagei-
ro empaca na porta aguardando a gorjeta).
JORDANA: O que tá esperando, meu bom rapaz?!
RAPAZ: A gorjeta. É de praxe.
- 14 -

GIOCONDA: Em troca da gorjeta, o moço aí não aceitaria outra coisa, não?


RAPAZ: O quê, por exemplo? (Sorriu). Um prato de sopa?
JORDANA: Não! Aqui nós só oferecemos pirarucu ao molho de pimenta e
ensopado com buceta. O que prefere, molhar o ganso ou dar uma escova-
dela na barata?...
RAPAZ: (Saiu). Prefiro morrer virgem como nasci, estão ouvindo, do que
enfiar meu pau no fiofó de duas putas velhas.
GIOCONDA: Mas divinas e cretinas, seu abestado! Esse com certeza é ve-
ado encubado! Nem trepa nem sai de cima. Prefere ficar por baixo e de todo
mundo, ó, soca no rabo, no rabo dele. Haja Deus.

Eis aí um trecho de uma cena da peça A vida escrachada de madame Jordana e


Gioconda Latifunda, a retratar bem um tipo de humor presente na dramaturgia
de Ramon Stergmann. Riso que se torna ingênuo, leve, gostoso, “sem vergonha”,
quando, por exemplo, retrata o cotidiano do caboclo amazônida em situações de
abandono. Da peça Cabeça de santo, destacamos o diálogo de Idalina e Luiz. Ela,
fogosa, ele, querendo descanso. Assim é a autenticidade das personagens. Não há
mascaramento algum.

IDALINA: Ah, Luiz! ... Axi! ... Assim não dá... Fico danada de raiva quan-
do você chega assim, com essa moleza, credo! ... Anda, Luiz, vamos pro
quarto... Vamos pra cama, anda! Vem, nego, preciso tanto de você esta noi-
te, anda, nego!
LUIZ: Pra fornicar? Não. Tô cansado, Idalina. Deixa primeiro ir embora
esse cansaço.
IDALINA: Que cansaço coisa nenhuma. Tá vendo? Até pra fornicar tu
tás assim, molongó... Quer um cafunezinho?
LUIZ: Hum! Isso é bom... Faz, nega, faz... (Nesse instante, Erondina faz pi-
garro com que anunciar sua presença, entra em cena, carregando a moringa na cabeça).

Como se vê, não há censura, não há falas implícitas, Ramon coloca em cena, o vo-
cabulário próprio dos personagens, caso contrário, as falas e comportamento não
seriam verossímeis. O autor leva, assim, adiante seus dramas, comédias, sátiras,
tragicomédias carrega-nos consigo, para ambientes desafortunados, como a ca-
sa de duas velhas prostitutas; ou nos leva ao interior da Amazônia, onde nos faz rir
entre compadres e comadres; ou ainda, nos joga na “selva de pedra”, cidade gran-
de em meio a meninos de rua. A sensibilidade de Ramon desconhece fronteiras,
muitas vezes, vai da crueza da violência das ruas a um lirismo contagiante, como,
quando nos embala com mitos da região, a exemplo deste trecho poético, da peça
- 15 -

Tatu da terra: lenda ou erosão?.

NORATO
A vida começa lá pro fim do dia
Sob a benção da noite na imensidão do rio
Desse rio de água suja aberto ao curso de navios
Sou Norato, sou Boiúna dessas águas que manejo
Sob a luz da lua cheia, ai canoa, ai canoeiro.
Conheço as vidas desse rio
Ontem fluindo em risos hoje esfolhando em mágoas
Às vezes eu penso que o destino desse rio
É destino dessa gente sem seu destino fazer
Sob a luz da lua cheia, sou Norato, sou Noratinho
Dessas lendas desse povo, ai tempo, ai desafio
Vou me esquecer no rio de novo!

Poeta da cena, assim nos conduz o dramaturgo, em meio a dores, questionamen-


tos, alegrias, dissabores, encantamentos, pondo em vida, o que a vida tem: a rea-
lidade que nos cerca; os dilemas que nos compõem; a natureza que nos comporta
em fauna e flora. Cena no palco alimentada da matéria humana que somos e da re-
lação com o mundo que nos rodeia. Ao ler Ramon Stergmann, parece que viajamos
para dentro de nós mesmos, para histórias conhecidas, situações das quais todos
já ouvimos falar, mas não desejamos comentar ou das quais já rimos bastante, ou
sonhamos ou desejamos viver. Assim, mergulhamos no corriqueiro cotidiano que,
transposto para o palco, parece até mentira.

Desse modo, do trágico ao cômico, da crueza da vida ao onírico, segue o autor, bem
ao modo das musas do teatro, Tália, Comédia, ora fazendo rir, Melpômene, Tragé-
dia, ora fazendo chorar, ou misturando no mesmo semblante o riso e a lágrima, si-
multaneamente, numa demonstração das complexas expressões das similitudes
ou estranhezas humanas. Ou ainda, em meio às emoções cênicas, o dramaturgo,
nos faz adormecer acordados, como, deitando-nos nos braços de Morpheus ou nos
deixando cair nas graças da Iara, e desse modo, mergulhamos num mundo de sor-

Ouçam o murmurinho Nos seus cavalos de plumas


O silêncio e os tambores da noite Esse corpo teu corpo meu
A noite cavalga a galope Viaja um rio navegando

(6) Peças Teatrais de Ramon Stergmann. Volume 1.


- 16 -

tilégios e sonhos, a ouvir murmurinhos dos silêncios e dos tambores, da peça Ao


toque do berrante (6).

Há muito ainda a se debulhar dos grãos poéticos dramatúrgicos plantados em solo


nortista por Ramon Stergmann. Contudo, ficamos por aqui, desejando que a leitura
desta obra produzida com tanto carinho, permita aos leitores um mergulho no uni-
verso ficcional do autor. E, na busca por palavras para findar este prefácio, logramos
do dramaturgo aqui celebrado, uma rubrica da peça Palhaço de Cristo para fechar
esta cena, enquanto outra se prepara para abrir.

(Aqui ocorre um blecaute no palco. Em segundos, ouve-se um grito no escuro feito um eco.
É quando chove estrelas caindo no mar).

Viva Ramon! Viva o teatro! Evoé!

NOTA:

No prefácio do volume 1, destacamos uma das características de Ramon, a de escre-


ver e reescrever a mesma peça, com sutis alterações, às vezes, a pedido de quem as
montaria, chamamos atenção para estes “procedimentos stergmanianos”. Ao leitor
atento, não passará despercebido elementos que se repetirão em diversas peças, al-
go pertinente ao universo ficcional do autor: os menos favorecidos.

Prostitutas envelhecidas, idosos maltratados, moradores da periferia sem perspecti-


va de vida, filhos pródigos, viciados, em suma, figuras marginais são os personagens
que habitam as histórias a seguir. Salvo a peça No jongo dos tambores da noite, as
demais têm como protagonistas figuras excluídas socialmente, em dramas que mes-
clam às situações trágicas humor cáustico ou escrachado, a partir de uma linguagem
coloquial, em que as personagens encerram suas desventuras com finais trágicos, fe-
lizes ou inusitados.
A VIDA
ESCRACHADA
DE MADAME
JORDANA E
GIOCONDA
LAT IFUNDA
- 18 -

A vida escrachada de Madame


Jordana e Gioconda Latifunda
Sátira/Comédia - 2001

PERSONAGENS
Jordana
Gioconda
Alfredo
Candinho

CENÁRIO
Palco italiano. Mostrando altos e baixos de uma casa popular de massagem, dita e
havida como puteiro ou palácio dos anjos, comandado por duas mulheres, ambas
cafetinas.

TEXTO
Narra a história de duas irmãs (ex-prostituta e ex-cafetina), que foram empresá-
rias em Belém na década de 70, quando proprietárias de um antigo bordel que,
por sua vez, tinha uma fachada de “casa de massagem” e consequentemente era
alcunhado de puteiro no centro da capital onde frequentavam o pessoal militar
(jovens marujos), estivadores, bancários, funcionários, enfim, pessoas ilustres de
várias categorias profissionais. Ambas, em decadência física, moral, material e so-
cial abriram falência de luxuoso bordel. Hoje, só resta lembranças, recordações do
passado, porém, guarnecidas pela presença única e inusitada do guarda-noturno
que comparece em cena para compartilhar do esquema sexual das duas mulheres
solteironas, levando a vida pro escracho de tudo que é passado passarinho passa-
rá. Onde existir uma Gioconda na vida e uma Jordana a surgir nos becos ou nas es-
quinas debaixo de poste de luz.
O Autor
- 19 -

CENA 1

(Duas mulheres. Ambas socialmente decadentes e solitárias. Contudo, sempre aguardando ansiosas
por algum visitante no seu ex-motel “Palácio dos anjos” ou simplesmente “casa de massagem”).

JORDANA
(Usando ventarola por cima e por baixo). Nossa mãe. Que calor horrível. Parece que
o meu corpo tá pegando fogo. Nem parece que choveu ainda há pouco.

GIOCONDA
É possível. Talvez seja problema de menopausa. Tá tomando remédio direito?

JORDANA
Não tá resolvendo nada. Gioconda, se você pudesse acrescentar no seu
passeio desta noite um macho de verdade, um cara que tivesse uma res-
ponsabilidade daquelas sobre mim e me obrigasse a ceder várias vezes por
dia, de segunda à sexta, acho que acabaria com esse meu fogo.

GIOCONDA
A Jordana acha, é?

JORDANA
Plenamente. Menos sábado e domingo, porque colocarei a minha xereca de
molho. Pra mim, é dia de higiene, de relaxamento. Nem por um e gordo
michê deixaria de curtir um pouco de paz e de sossego.

GIOCONDA
Mas isso talvez seja pedir demais a uma ex-cafetina ou a uma ex-prostitu-
ta, que já foi a Rainha da Noite, cantada em versos e prosa nos boleros de
Adelino Moreira e tantos outros da década de 60, hoje só restam lembran-
ças, recordações de um passado que não voltará jamais.

JORDANA
Isto é verdade. Naqueles tempos, os homens viviam mais porque abdica-
vam da mulherzinha deles e vinham nos atacar de forma selvagem, não só
em busca de carinho, afeto, sexo, mas de soluções práticas e imediatas que
nós tínhamos para lhes oferecer, mas de maneira responsável, inteligente,
- 20 -

visando o seu bem-estar social. Coisa que a esposa não tinha, e muito me-
nos sabia trepar, a não ser naquela base de “papai-mamãe” e depois cobria
a cara de vergonha enquanto ele lavava a cabeça do pinto.

GIOCONDA
Bons tempos aqueles!

JORDANA
Bons dias, eu diria, viu minha Gioconda, onde o fim do mês não era tam-
bém o fim da picada. E toma rola no rabo! Enquanto dinheiro não faltava.
Nem no bolso do civil, nem dos marujos, nem dos estivadores da Gaspar
Viana. E toma no rabo, pela frente e por traz, por baixo e por cima, onde a
pica desse e coubesse inteira, nem que a gente tivesse que gemer de dor...
que nem aquela musiquinha famosa... (Cantarolou).

CENA 2

(Enquanto Gioconda se prepara diante do espelho vai jogando a fala, sendo observada pela ir-
mã mais velha).

GIOCONDA
Que ironia. Parece que foi ontem. Quando aconteceu um rapa na vida do
nosso “Puleiro dos Anjos”.

JORDANA
Dívidas e mais dívidas, impostos e mais impostos fiscais, enfim, todos de-
sencavados pela Justiça dos homens.

GIOCONDA
Uma baita sacanagem que fizeram contra nós duas. Os mesmos homens
que nos ajudaram a construir e a promover nossa casa de massagem, aca-
baram cuspindo no prato que comeram sem fazer cara feia. Era cu e buceta
de todo tipo de todo tamanho.

JORDANA
Porcos! Imundos! Pior do que nós duas, na sarjeta e na solidão de amargu-
rar tais lembranças, são eles buscando sempre consolo que não acham no
colo de uma puta por não sentir nada por eles, apenas compaixão e prazer
de pegar na grana. Só isso.
- 21 -

GIOCONDA
Ah, meu Deus. Para de lembrar-se dessas coisas. Assim vou acabar borran-
do a minha maquiagem. A culpada é você Jordana, que fica aí remoendo o
passado.

JORDANA
Pobre Gioconda! Que ficou a ver navios quando seu marujo americano foi
embora com a rola na mão! Sem lhe deixar um dólar sequer pro café do dia
seguinte. Nem esperança de voltar um dia.

GIOCONDA
Você tá coberta de razão, Jordana. E pensar que esta casa já foi muito bem
frequentada por gente grã-fina. Gente elegante, chic, chiquérrima. Pessoas
ilustres, pessoas famosas. Juízes, advogados, políticos, empresários, poe-
tas, artistas, cafetinos, prostitutas, devassos, todos vinham dar de mamar
na casa de massagem “Palácio dos Anjos” – que era, no fundo, só fachada.

JORDANA
E lhe digo mais: Se não fosse a putaria ou o procedimento escuso daque-
la raça de cretino haveria um certo glamour bem mais sofisticado. Porém,
uma coisa era certa: a gente tinha respaldo político e social pra manter nos-
sa vagina ocupada durante 24 horas!

GIOCONDA
A minha “Josefina” aqui ficava até fuló. Larga que nem boca de jacaré. Fu-
didona. Arrasada. Ultrajada na sua beleza titubiana.

JORDANA
Vai sair?

GIOCONDA
Vou dar uma volta.

JORDANA
Bem aonde?

GIOCONDA
Aqui perto no bar da esquina. Quero conversar com alguém muito só. Quer
vim comigo?
- 22 -

JORDANA
Pena que não posso. Tô esperando alguém que vem ceiar comigo esta noite.

GIOCONDA
É mesmo? Como se deu isso?

JORDANA
Por telefonema. Aí topei. Marquei com ele aqui.

GIOCONDA
Ah, sua danadinha. Que espertinha você é, como sempre, né Jordana! Mas
o que vai usar na cama?

JORDANA
O trivial de sempre. Isto é, se o sujeito for merecedor. Senão, taco o dedo no
cu dele pra gozar mais rápido, mais rapidola.

GIOCONDA
Bom! Faça um bom proveito. Tenha um bom apetite. E por falar nisso, me
empreste aquele seu Luiz XV, pois o meu já quebrou o salto... Posso?
(A outra fez que “sim” com a cabeça e Gioconda sai de cena por uns segundos).

JORDANA
Essa tá mais fudida do que eu. Nem sapato decente tem pra usar numa
ocasião dessa. Toda piva que se preza tem um sapato e uma roupa pro ba-
talho, tem que ter um visual legal, uma postura fina, que é pro cara exibir
a rola pra ela.

GIOCONDA
(Dando voltas em torno de si). Que tal estou?

JORDANA
Está linda! Vai arrasar. Não vai ter caralho pra botar defeito.

GIOCONDA
Deixe-me dar uma olhada! (Correu ao espelho novamente). Espelho, espelho meu,
será que existe alguém mais pelancuda do que eu?
- 23 -

CENA 3

(Aqui, como uma paródia qualquer de cinema, o espelho se quebrou neste momento deixando
a ver sua contestação infeliz contra sua decadência física).

JORDANA
Haja Deus. Mal abriu a boca e o desgraçado...pimba! Espatifou-se.

GIOCONDA
Tá vendo, Jordana? Isto significa que o espelho tá certo e que minha irmã
mentiu para mim, como nos velhos tempos da nossa mocidade. Lembra-se?
Foi a Jordana que teve ideia de me usar para abrir um bordel, iniciar um
puteiro.

JORDANA
Lembro-me sim! Foi depois da morte de nossos pais num acidente rodoviário.

GIOCONDA
Eu tinha 14 e você 16 anos. Aí nós duas vimos pra Belém numa carona de ca-
minhão, de pau-de-arara mesmo, em troca de sexo anal e bucal. Que horror!

JORDANA
Como se não bastasse fomos parar numa casa de prostituição, “vendidas”
pelo caminhoneiro. A negra cafetina, antes de morrer, nos passou todos
os macetes da putaria e da sacanagem. Entretanto, quando abrimos a per-
na no puteiro, esquecemos de uma coisa primordial: os estudos em colé-
gio. Erámos burras e famosas, muito competentes na prática, mas na teoria
qualquer rola fudia a gente.

GIOCONDA
Nossa. Bota rola nisso! A gente era muito novinha, sabe como é, qualquer
gravação valia um disco long-play naquela época, hoje vale um CD, coisa
pequena. Coisa miúda. Nem custa tanto prazer.

(Alguém toca a campainha e ambas correm ao mesmo tempo para atender como se disputasse
uma corrida de automóvel. Era o mensageiro trazendo flores vermelhas).

JORDANA
(Atropelando-se com irmã). Nossa, Gioconda!
- 24 -

GIOCONDA
Haja Deus. (Tomou-lhe o bouquê de flores). Deixe-me ver pra quem de nós duas...
se é pra mim ou pra você, viu bem... (O rapaz mensageiro empaca na porta aguar-
dando a gorjeta etc).

JORDANA
O que tá esperando, meu bom rapaz?!...

RAPAZ
A gorjeta. É de praxe.

GIOCONDA
Em troca da gorjeta, o moço aí não aceitaria outra coisa, não?

RAPAZ
O quê, por exemplo? (Sorriu). Um prato de sopa?

JORDANA
Não! Aqui nós só oferecemos pirarucú ao molho de pimenta e ensopado com
buceta. O que prefere molhar o ganso ou dar uma escovadela na barata?...

RAPAZ
(Saiu). Prefiro morrer virgem como nasci, estão ouvindo, do que enfiar meu
pau no fiofó de duas putas velhas.

GIOCONDA
Mas divinas e cretinas, seu abestado!! Esse com certeza é viado encubado!
Nem trepa nem sai de cima. Prefere ficar por baixo e todo mundo, ó, soca
no rabo no rabo dele. Haja Deus.

JORDANA
O que diz o bilhete? Quem escreveu? Me dê o cartão aqui!

GIOCONDA
Calma, Jordana. O que é da mulher-dama ou da piva escrota nem o bicho
come. Agindo assim você tá parecendo aquele nosso amigo Júnior que es-
folava a pica e não resolvia nada, nem botava na xereca em breve tempo,
só lambia a beira da bichinha. (Entregou-lhe as flores e o cartão). Toma! Mata a tua
curiosidade. Tudo é pra você.
- 25 -

JORDANA
Pra mim? (Alegrou-se). Quem será?

GIOCONDA
Das duas uma: ou será um casca-grossa, analfabeto de pai e mãe, ou é um
pica grossa pra gastar com essas flores vermelhas. Tem homem que gosta
de bancar o otário.

JORDANA
Ouça aqui, Gioconda, o que diz o bilhete: “Minha querida Jordana, dona
da vagina mais funda, tô louco pra lhe rever de novo e me deitar na tua te-
ta esta noite de natal. Me aguarde. Assinado: teu chupador apaixonado”.
Ai, que lindo! O que você acha? Topo ou não topo?

GIOCONDA
Claro que topa! Não é todo dia ou toda noite que tem alguém disposto a
comer uma buceta velha, minha santinha. Vai fundo! Pega o camarada e
faz dele gato e sapato. Aproveita da moleza dele. Explora esse filho duma
puta. Desforra!

JORDANA
A Gioconda tem razão. Eu tenho mais é que me divertir esta noite, mas...

CENA 4

(De repente sentiu-se importunada pela gordura e estrias do corpo e foi ao novo espelho).

GIOCONDA
O que foi? Tá se sentindo uma fofa, uma melancia? Algum boneco de Olinda?

JORDANA
Ah, Gioconda! Ele não vai me querer assim, gorda, peituda, bunduda, ca-
deiruda, desse jeito, com estrias por tudo quanto é canto. Que homem vai
me querer?

GIOCONDA
Mas, minha Jordana de buraco fundo, hoje em dia tem gosto pra tudo sa-
bia? Há homens que gostam das magras, há outros que adoram mulher re-
cheada de gordura feiro peru de roda, com pneus de torno da barriga, com
- 26 -

varizes nas coxas e nas pernas. Tem deles que adoram até mulher sebosa,
com fedor no suvaco e tudo. Ai, que horror! Era preferível morrer.

JORDANA
Despeitada. No fundo, a Gioconda sempre morria de inveja de mim já que
os estivadores preferiam a mim por causa da fundura da minha xereca. En-
tretanto, reconheço que você era a que mais faturava no puteiro, arreava
qualquer cacete.

GIOCONDA
Também não exagera. Que a “Josefina” aqui já foi boa de cama é verdade,
mas hoje anda caidaça. (A outra se retitou da sala). A onde pensa que vai?

JORDANA
Vou tirar a água do joelho. Posso?

GIOCONDA
Sabe que eu gostaria para a virada do ano hoje à meia-noite? Um cara ma-
cho, musculoso, pimpudo, detonando pra cima de mim. Comprei alguns
champanhes pra gente bebemorar, pra desejar a todos ótimas entradas no
ânus, enfim, que tenham um ano novo pra lá de pai d’égua.

(Neste momento, alguém chama na campainha e o telefone toca ao mesmo tempo e ambas as mu-
lheres se cruzam no meio da sala sem saber a quem atende. A cena é super patética e engraçada).

GIOCONDA
(Na porta). São flores pra você, Jordana. O bilhete é do (Assoletrando). Murilo
Sampaio. Aquele estilista fracassado. Viadão ele!

JORDANA
É pra você... o telefonema. Atenda!

GIOCONDA
Quem é? Disse o nome? (E foi ao telefone).

JORDANA
Adorei! Obrigada, Murilo Sampaio! Ele é um amor de pessoa. Está sempre
homenageando a gente. Sempre trazendo uma rapaziada nova pra curtir
aqui no puteiro.
- 27 -

GIOCONDA
Alô. Oi, amado, é você? Como? Tá! Tá tudo bem, sim. Não saiu não, ela...
mas não é menino, ela anda num aflição que vou te contar. Hein? Ah! Isso
é mania dela de me arranjar, vez por outra, um michêzinho pra nossa des-
pesa básica! O que? Olha... na verdade, aqui entre nós, a Jordana não tem
mais condições de abrir as pernas, a não ser pra mijar e defecar. Ah, você
acha graça, é?? Tadinha dela. Escancarou tanto naquela época que hoje tá
assim fuló, arreado, fudida e mal paga. Vivendo de artesanato na rua.

JORDANA
(De supetão). A Jordana é que paga o pato em tudo, né Gioconda? Você não
perde a chance de expelir seu veneno contra mim.

GIOCONDA
Jordana!

JORDANA
Como pode falar uma sandice dessa a meu respeito? Magina! Só não tre-
po em açaizeiro, mas trepo em qualquer pau que me dê na telha, ora essa!

GIOCONDA
Desculpe. Eu retiro o que disse. Tome o telefone... o Lulu quer falar contigo.

JORDANA
Comigo? Ele disse o que era. Qual o assunto.

GIOCONDA
Poxa, Jordana, custa falar com o cara. Custa?

JORDANA
Tá bom. Mas se for empréstimo que ele deseja não tem como atender. Esse
papo de pago hoje, pago amanhã, qualquer débito mixuruca, nem pensar.
Eu faço questão de dizer NÃO, não e não, do tamanho do caralho.

GIOCONDA
Fala com ele, criatura. Atrás duma dívida pode existir uma verdade opos-
ta sobre aquilo que você tá pensando. Ora, com tantos arrotos que você já
deu na cara do rapaz, um a mais ou um a menos, agora um pouco nunca
- 28 -

será demais. Tenho certeza que o Lulu vai adorar ouvir sua voz de novo. O
resto fica por conta da sua imaginação, tá, querida... (Entregou-lhe o aparelho).

JORDANA
Alô! Que deseja? Fala Lulu! Como vai teu cú depois do estupro? Já sarou,
é mesmo? Com que?... Com salsa do mato e erva de jaboti? Que coisa, me-
nino! E quando voltas a trepa... no mês que vem? Tá ótimo. Aqui no pulei-
ro todo mundo sente tua falta no show Cuceta Gay. Se tem elemento novo?
Claro que tem! É uma rapaziada jovem que curte legal todo mundo numa
boa. Aparece, viu Lulu, só depois que tu cicatrizar bem esse teu cú. O quê?
À estas alturas do campeonato, me diz, como correr atrás do prejuízo? Me-
nino, a maioria dos safados que frequentavam o Palácio dos Anjos já se es-
cafedeu, já morreram de enfarto, ou coisa parecida, senão a gente já tinha
dado um susto neles. E a xereca onde fica? Fica aqui entre as pernas aguar-
dando teu calor humano. Claro, né meu bem. Foi da buceta que a puta te
pariu numa digamos assim noite de luar, eis porque tens o bumbum volta-
do pra lua. Escuta, Lulu, tu vens ceiar conosco? (Desligou). O cretino desligou
na minha cara. Nem deu tempo de desejar um feliz natal!

GIOCONDA
Não esquente a cabeça. Fica fria. De repente, de uma hora pra outra, al-
guém pode pintar no pedaço e aí nos oferecer um coquetel e nos levar pra
cama a fazer uma surubada. Toparias mana?

JORDANA
Olha! Quem anda matando cachorro a grito, ou pegando em onça pensan-
do ser um gato doméstico... O programa aí é convidativo, na pior das hipó-
teses, não tenho outra alternativa.

GIOCONDA
Por conta do risco que vamos passar e só pra não ficarmos tão sozinhas, a
bem olhar uma pra cara da outra, vamos agir com a imaginação. Primei-
ro, vamos preparar a mesa dando-lhe um aspecto clássico, segundo vamos
nos fantasiar de quituteiras de frutas regionais. Topas?

JORDANA
Já topei! Mais a mais será tudo emocionante!
- 29 -

GIOCONDA
Mãos à obra! Não há tempo a perder. Não espalha: mas o pastor da igreja...

GIOCONDA
Que tem o pastor da igreja?!

JORDANA
Me convidou pra eu dar uma com ele.

GIOCONDA
Quanto o michê?

JORDANA
Comprei 100 paus. Com toalha e sabonete Rexona. Estranhíssimo o santo
padre exigir que a trepada fosse em cima da escrivaninha dele.

GIOCONDA
Por falta de espaço naturalmente.

JORDANA
Pior que não. É ele que não é chegado a uma cama, mas a coisa dura, a ma-
deira me dá em doido. É a sua fantasia que fala mais alto. De qualquer ma-
neira, conforme for tal situação, levo o “consolo” comigo e taco no rabo dele!

GIOCONDA
Pronto. A mesa está arrumadinha. Está chic. Chiquérrima.

CENA 5

(Neste momento, toca a campainha com insistência. Ambas ficam nervosas e na expectativa
de ser alguém de sua estima. Trocam palavras rapidinho e uma delas resolve atendê-lo na por-
ta com elegância. Com glamour e brilho. Lá fora, o pipocar de fogos a fazer as pessoas felizes
nessa noite).

JORDANA
Santo Cristo. Quem será que vem pra ceiar com a gente?
- 30 -

GIOCONDA
Sei lá. Haja Deus. A questão é: seja lá quem for, será bem-vindo. Comigo, o
buraco é mais em baixo, não tenho essa de preconceito. Topo tudo.

JORDANA
(Vai abrir a porta, quando). Seu Pinduca! (Decepcionou-se).

GIOCONDA
O que houve? Algum problema?

JORDANA
Tem encrenca na portaria? (Disfarçou o constrangimento diante dele).

PINDUCA
Não, senhora. Não houve nada disso. É que de acordo com a tradição estou
a lhes desejar boas entradas de ano novo!

GIOCONDA
(Voltando-se para a irmã). É, pode ser. Por que não, né Jordana? Temos que ter
sacos também para aturar certos abelhudos e linguarudos daqui do prédio.

PINDUCA
O que disse?!

GIOCONDA
Nada não. Pensei em voz alta. Pra começar a gente tá saindo pra casa da Nil.

PINDUCA
(Surpreso). Pra casa da Nil?

JORDANA
O senhor a conhece?!

PINDUCA
Não, não a conheço.

GIOCONDA
(Quase enxotando-o). Então nos dê licença... licencinha... que a gente tem que
rodar, temos que ir à casa da ninfeta, por favor!
- 31 -

PINDUCA
(De pé na porta). Ora, ora, quem diria: pra quem conhece a vida escrachada de
vocês duas aí sabe perfeitamente que existe por traz desta desculpa algu-
ma sacanagem nesse extinto bordel, pois não?

JORDANA
Gostaríamos. Mas não existe.

PINDUCA
Descola outra desculpa, cara... antes que o meu pau endureça! (Saiu).

GIOCONDA
Porra. Haja saco pra aguentar esse corno manso – ó – a gente com ele só ia
tomar no... deixa pra lá.

JORDANA
Ruim com ele, pior sem ele. (Neste instante, toca a campainha). Tomara que seja
ele!! Ele me dá dó, coitado, querendo uma trepadinha com a gente.

GIOCONDA
Já posso imaginar. Agora, se é pra dá de graça, nem vou falar da exploração
desse cara-de-pau. (E foi atender na porta). Alfredo!

JORDANA
Alfredo Campos Vasconcelos do Espírito Santo, que prazer em revê-lo aqui
em nosso puteiro! Quanto tempo! O que o trouxe aqui?

ALFREDO
Saudade. Apenas saudade. Das duas aí. Também falta de amizades por aí é
que me trouxeram até vocês. Telefonei várias vezes, mas o telefone só vivia
ocupado, desligado, sei lá.

GIOCONDA
Esqueça tudo. E nos faça companhia em nossa ceia!

ALFREDO
Como nos velhos tempos naturalmente.
- 32 -

JORDANA
Não. Além de cobrar comissões estamos fazendo uma promoção em nosso
espaço fudedor pelo macho que pintar primeiro. O sortudo hoje foi você.

ALFREDO
Já entendi. Tenho que pagar alguma prenda?

GIOCONDA
E que prenda! Duas piranhas numa noite de natal, eu e ela aí. Que acha?

ALFREDO
Eu, eu... sei lá... Nem sei se devo...

JORDANA
(Esfregando-se nele). É pegar ou largar.

GIOCONDA
Ou trepa ou sai de cima.

GIOCONDA
Ou fica em baixo tomando no rabo. Tá vendo isto aqui? (Mostrou o “consolo”).

ALFREDO
(Encabulado). É, né, pode ser. Ora, quem conhece o mau procedimento das
duas, numa baita sacanagem, não tem como recuar diante de tão excelen-
te chantagem.

GIOCONDA
Então nesse caso, prefere o quê?

ALFREDO
Você sabe. Claro que, de acordo com o meu instinto, né Gioconda, no fun-
do, no fundo, eu prefiro um grande “consolo”. (Desmunhecou-se graciosamente).

AMBAS
(Entreolharam-se). Não!
- 33 -

JORDANA
Veja só como é a natureza. Lá onde arrea o pau a bunda se levanta e caga
na pica. Puta merda. Bem que eu desconfiava.

GIOCONDA
A praia dele é outra, Jordana. Nem podia imaginar que ele gostasse de cur-
tir uma senhora vara.

ALFREDO
E qual é o problema, amor?! Tem gente que não gosta, nem adota em falar
dessas coisas, tal o excesso da exploração sexual no Brasil a que a popu-
lação de jovens foi submetida, com o consequente esvaziamento de afeto.
Entende-se isso como algo decadente. Afinal, confunde-se putaria com rá-
pida trepada por que reduz o tempo de prazer, principalmente pra quem
tá em baixo recebendo rola no rabo.

AMBAS
(O aplaudiram, com entusiasmo). Explêndido! Maravilhoso! Formidável! Cativante!

GIOCONDA
Mas não se esqueçam de usar a camisinha. Só bacu-baitola é que não usa, é por
que isso que se fode na vida, fica ferrado, morre por burrice. Vira presunto.

JORDANA
Venha comigo. Vou lhe dar uma injeçãozinha de ânimo no seu fiofó. Venha!
(E sumiu com ele no interior da casa).

GIOCONDA
Enquanto isso... ficarei chupando o que? (Toucou a campainha várias vezes). Já vai!
Já estou indo! Quem será o desgraçado à esta altura querendo colocar a
porra da porta à baixo??

CENA FINAL
(Ao abrir a porta, Gioconda teve uma grata surpresa com a presença do guarda noturno em
trajes sumários: usando cueca zorba, boné de napa e bota preta e com correntes trançadas pelo
corpo etc.).

GIOCONDA
Seu Candinho!
- 34 -

CANDINHO
Posso entrar?

GIOCONDA
Entre, entre! Vá entrando! Antes que alguém veja o senhor vestido desse
jeito entrando na minha casa à estas horas da noite.

CANDINHO
Desculpe, madame. Mas vim mesmo desejar boas entradas de ano novo
pra vocês! Onde está a madame Jordana? Saiu?

GIOCONDA
Não é da sua conta se ela saiu ou deixou de sair. Meta a sua língua sabe on-
de? No CU! (Reparando nele seminu). Mas que diabo é isso, seu Candinho? Que
aberração é essa? O senhor como guarda-noturno devia saber que isso não
são trajes de comparecer a estas horas da noite na casa de duas mulheres
solteiras e que são suspeitas de serem da vida. Já pensou se a sua mulher
souber disso? Vai ser o maior bafafá pra cima do senhor.

CANDINHO
Eu sei, madame. Eis porque estou aqui atrás de um pretexto para me des-
quitar dela, e me juntar com a madame.

GIOCONDA
O quê? Se juntar comigo? Nem morta! Eu nunca fui mulher e nem serei
mulher prum homem só, quero uma porrada deles em cima de mim, que
faça de mim gato e sapato. Sabe o que eu acho? Vá cuidar da sua ronda no-
turna. Vá! (Empurrou-o).

CANDINHO
Vou não. Esta noite é minha folga.

GIOCONDA
E essa roupa sumária escandalosa significa o quê?

CANDINHO
A madame gostou?
- 35 -

GIOCONDA
Adorei! Só assim o senhor mostrava suas pernas e seu volume entre elas!

CANDINHO
É ralado dizer, mas foi pra lhe agradar, mostrando meu charme, minhas
qualidades físicas.

GIOCONDA
A intenção é pai d’égua, porreta mesmo, e eu tenho mais é que aplaudir,
de pé, inclusive. Seu Candinho – ó – eu adorei!! Pela primeira vez estou lhe
vendo desse jeito, seminu, sem aquela farda horrosa de guarda-noturno,
sem aquele cacetete ridículo que não dá nem pra enfiar em rabo de mula.
Agora, metido nessa cueca, exibindo essa trouxa volumosa tão sensual, me
diga, qual a mulher por mais pacata que seja poderá resistir uma pomba-
da? A puta então... vai logo botando a boca, grava logo um CD. O seu Can-
dinho há de convir que eu sou uma mulher e não um...

CANDINHO
Me poupe de suas belas desculpas, madame... minha rainha, e peço-lhe
que não invente distância alguma entre nós agora, já que estamos tão pró-
ximos um do outro. Também não me trate por “senhor” porque ficarei aca-
nhado e me sentindo mais velho, toda via, mais vigilante estarei para pro-
tegê-la no caminho ou de algum assaltante aqui na vila.

GIOCONDA
Obrigada! Porra fico feliz pra porra ouvindo isso! Agora, uma perguntinha
besta e safada: Como é mesmo o nome do seu caralho?

CANDINHO
(Sem titubear). “Asdrúbal”. Às suas ordens.

GIOCONDA
Gracinha. Agora vamos...

CANDINHO
Quer experimentar?
- 36 -

GIOCONDA
Agora não! Não vá com muita sede ao pote. Primeiro vamos bebemorar es-
se encontro inusitado, não acha?

CANDINHO
Acho que sim! Você merece, minha rainda. Um brinde a nós dois!

GIOCONDA
Claro! Toda piva que se preze tem no macho a rola que merece. Feliz Ano
Novo, seu ou melhor, Candinho!!!

CANDINHO
Pra você também, Gioconda! Muita paz, muita trepada, muita fudelância,
muito tudo na sua vida!

GIOCONDA
E muita putaria nesta noite! (Ao ouvir a algazarra, entram Jordana e Alfredo na cena fi-
nal da comemoração).

JORDANA
Êpa! Também entro nessa festa! Mas seu Candinho, quem diria hein, bo-
tando as asas pra voar, soltando as frangas! (Ele só fez sorrir e dançar).

ALFREDO
Tô nessa contigo e não abro! A vida só é curtição. Vamos curtir! (Pulou carna-
val com ambos, brincou de trenzinho, depois de par em par etc.).

FIM DO ESPETÁCULO
ANA
DOIDA
- 38 -

Ana Doida
Drama psicológico - 2001

PERSONAGENS
Ana Doida
Enfermeiro

CENÁRIO
Uma esquina de rua abandonada, um beco mal iluminado e um barranco de lona
velha, clandestino, no meio do matagal.

TEXTO
Narra a história real de uma senhora que viveu em depressão durante algum tempo
a envolver-se com as coisas do passado não muito distante, trazendo-lhe de volta a
vivência e as lembranças da família que lhe abandonara, atirando-lhe na rua onde
passou a viver como se fosse uma mendiga. O resgate de sua saúde deu-se com o
aparecimento de uma ação social e filantrópica que buscam curar esse tipo de pes-
soas. “Ana Doida” – como era chamada na roda – é um caso típico e consequente da
falta de amor e de afeto dos seus familiares e que acabou caindo no esquecimento.
Não fosse o interesse pela cura através do abrigo da terceira idade que a acolheu, a
nossa heroína não regressaria ao lar e não teria a posse de seus filhos.
O Autor

CENA 1

(Como num faz de conta: Ana com a criança no colo e temperando o mingau ao mesmo tempo).

ANA DOIDA
Chora não, Fafy. Mamãe vai fazer teu mingau. Oh, filha, para de chorar,
amorzinho de mamãe. Mamãe tá ocupada. Será possível que tu não teje
vendo isso? Anda, colabora (Faz uma pausa no choro). Do choro ao riso, né meu
- 39 -

amorzinho? Tadinha. Droga! E essa pinoia de fogão que não quer acender!
Justo agora! (Reparou na menina que se calou pouco antes). E tu menina, o que é que tu
tem, pra ficar calada? Ah! Logo vi, olhem só pra isso! ... Fazendo porcaria na
rede e amassando! ... Pra quê que tu fizesse isso, hein Fafy?! Já não basta as
coisas que eu tenho pra cuidar nesta casa e ainda por cima vem tu com essa
imundice! Anda, vem cá... Vou te dar um banho agora... (A menina voltou a cho-
rar e berrar). Agora, sim, senhora! Pode chorar, pode até berrar, sua sebosa, sua
fedorenta. (Apoquentando a menina). A Fafy tá fedorenta... A Fafy tá fedorenta...

(Corte na cena / foco em:)

CENA 2

(Ana trocando as fraldas da criança e resmungando por sentir náuseas de coisa fedida).

ANA DOIDA
Ai, que horror. Credo. Adoro criança! Mas não suporto criança e nem lim-
par cocô de criança. Ai, que nojo! Chega me dá náusea. Pronto, a mamãe
não fala mais de você, sua cagona. Basta com esse chororô besta! Vai ver
que a coitadinha tá com fome. Acho que tá na hora da mamadeira. Deixa
eu primeiro enxugar tuas virilhas, tuas partes. Pronto. (Vestiu a menina e esta se
calou por alguns segundos). Agora ela tá pensando que vai pra rua, vai passear
na praça, coitada. Acontece que a mamãe, por pouco, não foi atropelada es-
ta madrugada na rua. Já pensou! A mamãe aqui nunca mais ia lhe ver. Ó,
procura não mijar muito, só tinha essa roupinha seca no varal, tem outras,
mas é no quaradouro, tá custando a secar, quando secar mamãe passa à fer-
ro. Teve pouco sol. Muita chuva.

CENA 3
(Ana atando outra rede para dar de comer a criança que continua aos berros).

ANA DOIDA
Mas que coisa! Que berreiro é esse! Fafy, a mamãe tá atando uma rede lim-
pa a fim de balançar você até dormir, para de escândalo, menina. Pronto.
Vem com a mamãe, anda vem, mamãe vai cantar aquela musiquinha que
tu gostas, e que te faz dormir. Quer ouvir? Então ouve, escuta o meu can-
to: “quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela,
pra chorar no enterro dela”... Não, menina! Essa música não fala de ti, fala
daquele cachorrão do teu pai que me deixou na rua da amargura. Calma,
- 40 -

filha!! Mamãe não canta mais. Pronto. Vamos logo! Toma logo a porcaria
desse mingau feito com pedrinha de rua, misturado com maizena (a menina
se calou e dormiu). Oh, minha senhora! Agora vou cuidar do resto das tarefas!

CENA 4

(Ana lavando roupas e estendendo no varal, uma a uma, e recolhendo outras no quintal).

ANA DOIDA
A gente não tem um descanso! Um montante de cueiros por falar, outros
para recolher no varal. Ainda tenho duas lavagens de roupas pra fora. Pior
que aquele cachorrão do seu Agripino tá me devendo um mês! Disse que
ia me pagar esta semana, mas ainda não pagou. Miserável. Quem não pode
com o pote não pega na rodilha. Se ele não podia pagar uma lavadeira, por
que mandou lavar? Amanhã, quando eu entregar essa pra ele, vou dar um
basta! Vai que numa ocasião o padre Jacinto foi tomar um cafezinho na ca-
sa dele e o padre me contou que o infeliz tava falando mal da minha lava-
gem, dizendo que tava encardida, que tinha mancha de quiboa nas calças.
O reverendo na base da amizade, e a meu favor, disse praquele nó cego que
devia pagar aquilo que... (Esbarrou-se num embrulho de jornal). Mas o que é esse
embrulho de jornal? (Abriu e ficou surpresa). Meu Deus! Achei um montante de
dinheiro! Será que tem validade tudo isso? Olhem só pra isto!!! Vou tirar
minha barriga da miséria. Vou deixar de ser pobretona.

CENA 5

(Ana e o dinheiro antigo e as crianças sentadas na mesa).

ANA DOIDA
Ah, já voltaram da escola? (Reparou no relógio). Foi a “tia” que liberou vocês
cedo hoje porque está doente! Mas doente de que? De conjuntivite? Ah,
isso é doença que tem cura. Doença do nosso clima tropical. Mas diga lá
pra “tia” tirar uns dias de folga pra não contaminar os alunos. Vê se po-
de uma professora ficar exibindo uma “coisa vaginosa” nos olhos... muito
pior que o tal do dor do olho! (A menina se acorda e chora). Rafael! Levanta daí e
vai acalentar a tua irmã, enquanto preparo uma comida pra vocês engana-
rem o estômago. Vai menino! Te mexe! Ainda bem que a mamãe escreveu
vocês no programa Fome Zero, senão, tava eu fumada, vendo meus maca-
quinhos passando privações. Vai que o dinheiro que achei no meio do lixo
- 41 -

no quintal era velho, grana antiga, sem valor. Pelo menos, foi o que disse
aquele gerente de banco. E se ele tiver mentindo? Mas que burra fui! (Bateu
a cabeça). Fui logo entregando a grana praqueles caras!! Fafy, para de chorar
sua égua! Vai lá na rede, Clarice, embala tua irmã e manda o Rafael encher
o barril de água a fim de banhar vocês antes do almoço. Oh, raça preguiço-
sa! (Aos gritos). Rafa! Oh, Rafael! Va puxar a orelha do teu irmão Samuel, que
tá na rua, empinando papagaio. Anda! Vai logo, seu merda! ...Vai que eu
morra solteirona, muito boa, virtuosa e encalhada senhora, e esses diabi-
nhos vão ficar aí no mundo sem ninguém pra cuidar deles!... (Vai e volta com
a menina no colo, cantarolando).

CENA 6

(Ana e a santa ceia das crianças desnutridas).

ANA DOIDA
Vou explicar uma coisa pra vocês, viu crianças? Mamãe só fez sopa hoje.
O pão dormido guardei pra amanhã quando vocês forem pra escola e di-
gam, viu Rafael, lá pra “tia” que a coisa tá pegando aqui em casa. Merenda
e chocolate que é bom, a escola tem que dá pros alunos, pra isso, o governo
paga, manda distribuir nas escolas, nas creches, não é pra funcionário levar
pra casa, abafar, camuflar na sacola, a tiracolo. Claro que a maioria passa
fome, passa necessidade, mas peraí a gente não precisa perder a dignidade
e ficar roubando por aí.

Pior é que a miséria que existe neste país não deixa a gente esquecer que é
pobre e que as coisas feias que aprendemos na vida como esse negócio de
roubar, de mexer nas coisas dos outros, assaltar, saquear... São coisas que
Deus condena. É por isso que Deus nos castiga, e por falar em castigo, olha
só pra isto Clarice, tá sujando todo teu vestido! Vais já apanhar, vou te dar
uns puxões de orelha! Tem termo, pequena. E olha só pra este outro zinho
aqui, suja de porcaria que ele anda se lambuzando na... rua. Anda, levanta
daí, vem tomar teu banho, seu porcalhão! (A menina chora sem parar). Chora não,
Fafy, a mamãe não tá contigo no colo? Então. Dor de barriga não é, nem fo-
me, tu comeu bastante, nem tá com febre, vigie... (Reparou nela, a menina se acal-
ma). Quedo mamãe, quedo, tá cheia de mimo. Mamãe cantará pra ti dor-
mir... “Murucututu que tá em cima do telhado, leva essa menina, que tá de
fundo mijado”... (Trocou a fralda da menina, depois deitou-a na rede e a embalou até ela
dormir, durante sua cantoria de ninar). Pronto. Dormiu. Seu mal era sono. Tadinha.
- 42 -

CENA 7

(Os fantasmas que rondam sua mente no retorno ao Abrigo).

ANA DOIDA
Olhem... eu tenho uma perguntinha besta pra fazer a vocês e quem sou-
ber responde e quem não souber não ganha prêmio, tá certo?... Quem res-
ponder certo na hora, vai ganhar isto aqui, um saquinho de bombom que
a mamãe tirou de lá do supermercado. Qualé a diferença que existe entre o
Deus e o Diabo? Nenhuma! Deixa de burrice, Samuel. É que Deus depois
da criação do mundo, já com tudo e todos alojados no seu devido lugar, o
outro, o Satanás, que não é besta, nem nada, passou agora ocupar um lu-
gar de destaque ao comandar guerras e guerrilhas no mundo, explodindo
bomba, matando gente inocente por aí... é isso que vocês têm que saber na
escola a diferenciar as coisas, uma das outras... Vixe!

Alguém tá batendo na porta! Deixe-me ver quem é. Vem comigo, Rafa!


Vem, Clarice... vem, Samuca! Se for o guarda lá do Abrigo de onde fugi,
vou escrotear, vou dizer que não volto mais pra lá sem levar vocês comi-
go!! Além de escrotear, também vou jogar merda no ventilador dele, desse
sacana do guarda que queria me estuprar (Ao abrir a porta, teve uma surpresa). Vi-
xe! Não era ninguém! Nossa mãe. Chega tou toda arrepiada, Virgem Santa,
Mãe de Deus, me valei, me protegei das almas penadas que andam por aí
no mundo assustando, judiando da gente. Mas eu me lembro que ouvi ba-
ter na porta, sim, era um toc, toc, toc três vezes, sim, senhora. Ah, deixa pra
lá... vou agora é tomar um banhinho de cheiro cheiroso pra matar o catin-
goso... pra lavar a minha perseguida, a minha “Maria Bonita”.

CENA 8

(Ela carrega água e coloca numa tina d’água, depois apanha uns matos cheirosos e tempera a
água).

ANA DOIDA
Quando eu acabar desse banho afrodisíaco, a mamãe vai se deitar pra nun-
ca mais se acordar, tão ouvindo? Não me acordem por nada, nem pra nada.
Tô muito cansada. Preciso dormir. Um bom sono agora quebra um jejum
de cinco meses perambulando pela rua, até que achei esse barraco velho na
beira da estrada, no meio do mato, onde ninguém me azucrina com remé-
- 43 -

dio de dar em doido, remédio cujas doses é pra cavalo, só cavalo é que to-
ma aquilo. Agora misturo na água essas ervas cheirosas, manjericão, arru-
da, catinga de multa, óleo de pau rosa, pau de Angola, e patchuli. Pronto.
Agora virem-se para lá, fiquem de costas, mamãe vai tirar a roupa, vai ficar
nua e crua como nasci... (Atirou fora as roupas velhas e tomou seu banho delicioso, ina-
lando perfumes no palco com essência de ervas). Meu banho de paixão pra ascender
em mim o desejo de me dar em amor... mas eu nunca consegui, nem consi-
go medir o quanto o amor é e será sempre apreciado pelo bando, pelas tri-
bos... Nesse caso, aconteceu uma vez só e eu fiquei muito feliz. (Ri baixinho).
Mas o cara fedia que só vendo! (Alguém bateu na porta novamente). Entra! Vai en-
trando! A porta só tá escorada.

CENA 9

(Ana dentro da tina com água e o enfermeiro que veio busca-la de volta pro Abrigo de onde
fugiu).

ENFERMEIRO
Vejam aonde esta mulherzinha se meteu!

ANA DOIDA
Mas não espere de mim qualquer recompensazinha porque não vou dar a
esse desfrute com um sujeito que nem você!

ENFERMEIRO
Ótimo. Pra mim tanto faz, como tanto fez. Mas não há como negar a ideia
e o cansaço de procurá-la por toda parte da cidade, pra no fim, encontrá-la
aqui no meio do mato, na beira da estrada. Não é novidade.

ANA DOIDA
Então vire-se para lá que eu quero trocar de roupa!

ENFERMEIRO
Como se isso não bastasse para justificar a sua trama de fugir de lá e vim
parar aqui nesse caminho, deixando a gente doido a bem procurar pela
Ana Doida. Olha o tempo que eu tava lhe procurando, mulher.
- 44 -

ANA DOIDA
Ah, não enche, tá! Vai atentar o cão com reza. Chega de lari, lari, pra cima
de mim. Tou cheia de vocês. Quantas vezes eu tiver chance de fugir eu fujo
e pronto! É só me dá na telha.

ENFERMEIRO
Posso virar? Tô cansado de estar nessa posição!

ANA DOIDA
Ainda não, seu chato.

ENFERMEIRO
A gente tenta também curá-la com afeto, mas vocês parecem não entender
isso, vivem realmente no “mundo da lua”. Voando!

ANA DOIDA
Vou acabar contigo agora, seu cretino! (Tentou ameaçá-lo em vão com uma faca de
brinquedo, sendo dominada pelo enfermeiro).

ENFERMEIRO
Viu? Como fui mais rápido que a senhora! E eu nem estava olhando a sua
sombra na parede.

ANA DOIDA
E nem eu estava pensando em lhe matar tampouco! Pois quem mata não
morre quando quer morrer e salva quem pode morrer.

ENFERMEIRO
Mas quem quer morrer aqui? Eu não quero! Quero é mais cuidar da senho-
ra. Venha comigo! Anda, venha comigo!

ANA DOIDA
Sem meus filhos? Sem levar eles comigo?

ENFERMEIRO
Não há como levá-los, dona Ana! Eles estão sujos. Estão imundos. Não dá
pra mantê-los num ambiente de higiene. Melhor deixá-los.
- 45 -

ANA DOIDA
Nesse ponto, melhor dizer adeus.

ENFERMEIRO
Lá no Abrigo tem roupa limpa, conforto, carinho, tratamento diário, aqui na
rua é muito perigoso, alguém pode matá-la. Ninguém gosta de mendigo.

ANA DOIDA
Olhe só para eles... com a cara de quem vai chorar daqui a pouco... com seu
jeitinho de me dizer adeus: “Adeus Ana Doida”, minha mãe, nosso tudo.
(E chorou muito diante dos bonecos com os quais brincava de casinha, assimilando algo que lhe
acontecera na infância). Mamãe já vai, viu?... um dia eu volto...

ENFERMEIRO
Calma. Vista essa capa aqui. Tá fazendo frio. A noite tá caindo. Vamos em-
bora!... Venha! Não tenha medo!

ANA DOIDA
Adeus, filhinhos da mamãe, adeus...

ENFERMEIRO
Adeus não, diga até breve. Porque adeus se diz pra quem morre.

ANA DOIDA
E por acaso eu não morri?! Quando perdi tudo, até a minha família no meio
daquele incêndio? Agora só me resta eles aqui!

ENFERMEIRO
(Ouve-se a buzina do carro chamando). Graças a Deus! O carro já chegou! Vamos in-
do, ele tá na beira da estrada.

ANA DOIDA
Eu sei. Mas me deixa levar elas, vai! Me deixa, cara! Pra onde tá me levan-
do? Pro Abrigo é?... (Não obteve resposta e agarrou-se abraçada à Fafy sua boneca pre-
dileta). Me deixa cuidar da Fafy, ela chora muito, tem dor de barriga, urina
toda hora, precisa dos meus cuidados... Mas será que lá estarei melhor do
que na rua?...
- 46 -

ENFERMEIRO
Com certeza. Quando a senhora sair de lá curada, vai ser melhor, vai ser
feliz.

ANA DOIDA
Tás ouvindo, Fafy? Quedo mamãe, quedo, quedo, te esconjuro, quedo e
cruz, Virgem Maria, quer de noite, quer de dia, não entro nessa fria.

(Sumiram).

FIM DO ESPETÁCULO
CARONA
PARA
BELÉM
- 48 -

Carona para Belém


2002

PERSONAGENS
Velho
Rosinete
Velha

CENA 1

(Movimento do casal de velhos preparando-se para irem embora de Castanhal para Belém).

VELHA
Sim, meu velho? Fale!

VELHO
A gente tá deixando Castanhal pra mode ir morar em Belém, tá certo. E Ro-
sinete? A gente leva com nós?

VELHA
Vontade eu tenho que ela vá morar lá com nós dois. Mas nós não semo o
dono da pequena. Ela tem mãe, tem pais vivos. Eles é que podiam consen-
tir a menina ficar com nós, pra mode cuidar dela.

VELHO
Tadinha. Passou tanto tempo vivendo com nós, ajudando nós nessa casa
velha, pra no fim, a menina ficar por aí choramigando de saudade!

VELHA
Mas isso também passa. Assim como passou nossa vidinha neste lugar. Is-
to aqui já foi muito bom, mas agora não presta mais, tornou-se um inferno
depois que o progresso e a bandidagem tomou conta de Castanhal. Mas se
- 49 -

avexe, meu velho, ande logo com isso! Já colocou a ferramenta na sacola?
Vê se não esquece nada daquilo que vamos precisar durante a nossa via-
gem pra Belém.

VELHO
Tá tudinho aí. Até o penico da minha velha vai aí dentro embrulhado com
jornal. Como vou esquecer? Esqueço nada! Levo martelo, prego, serrote....

VELHA
Cícero?

VELHO
Diga minha velha. Que cara é essa agora? Fala!

VELHA
Cícero, meu velho, eu tava pensando com os meus botões. Já faz um tem-
pão, que ninguém da família escreve pra nós. Agora com essa invenção do
celular, então, a comunicação ficou mais rápida, aí ninguém quer mais es-
crever cartas ou bilhetes. Logo, tenho receio de que a minha família não es-
teja mais morando em Belém, lá em São Brás, no antigo Beco do Mijo.

VELHO
Ih! Minha velha! Não começa com essas tuas cismas bestas agora! Justo
agora que perdemos tudo e estamos voltando pra lá? Não acredito que os
nossos filhos tenham feito isso com nós. Não acredito! Ainda no mês de ou-
tubro estivemos lá, no Dia do Círio, pagando promessas que eles fizeram
pra mode curar a enfermidade da minha velha. Tu não te lembra, Sofia?!

VELHA
Isto foi há quatro anos atrás! Depois quem garante que a gente vai se acos-
tumar em Belém, naquele aperreio, naquele sufoco de cidade grande, onde
quem não trabalha também não come?! A gente vai é dá trabalho pros nos-
sos familiares, sabe-se lá Deus durante quanto tempo!

VELHO
Ah! Pouco tempo, minha velha! Até eu achar uma oportunidade de traba-
lho, no centro da cidade ou na periferia. Posso trabalhar com qualquer coisa.
- 50 -

VELHA
Na tua idade, meu velho?

VELHO
O que é que tem? Tô morto não! Eu ainda posso pegar duma enxada, ca-
var uma vala, fazer capina, vender bugigangas pelas ruas, vender coisas
na feira, virar marreteiro, camelô, sei lá, eu me viro, eu do meu jeito!! E tu?

VELHA
Vou fazer flor de papel pra vender. Posso engembrar um tacacá, umas ta-
piocas, uns cuscuz, aí posso vender na vizinhança. De fome a gente não
morre, nem vai morrer meu velho, enquanto tivermos forças nos braços e
nas pernas. Nem tu, nem eu, estamos tão caquéticos assim que não pode-
remos viver às nossas custas!

VELHO
Mas corremos o risco deles colocarem a gente num asilo da cidade!

VELHA
Num asilo, meu velho?

VELHO
É sim, minha velha!

VELHA
A modo do quê? E pra quê?

VELHO
A maioria não quer ter “trabalho” com seus idosos em casa, considerando
os velhos uns “trambolhos” da família... Aí, acabam internando eles nos
asilos, nos abrigos, até morrerem à míngua no confinamento.

VELHA
Virgem Santa! Agora vê se pode existir uma maldade desse tamanho! Olha,
Cícero, se isso ocorrer com nós dois, mas antes uma boa morte do que a má
sorte.
- 51 -

VELHO
(Preocupado). Será, minha velha, que tudo isso que está acontecendo com a
gente é uma aprovação de Deus?! Justamente no finalzinho da nossa vida!

VELHA
Tenha paciência. Não esquente sua cabeça. Temos que estar calmos. Cons-
cientes do que estamos fazendo. Foi uma decisão lógica. Só nossa. É por is-
so que não podemos incluir ninguém nos nossos planos daqui pra frente.
Será uma nova vida. Um novo destino.

VELHO
Claro. Foi assim em Oriximiná, depois na zona urbana do Maranhão, ago-
ra aqui nos cafundós de Castanhal. Depois de tentar a sorte em vários mu-
nicípios do Pará, foi aqui que achamos uma terra boa pro plantio de arroz,
feijão, milho, mandioca, e que nos remediava a precisão. Tínhamos fartura.

VELHA
Até que envelhecemos e ficamos sem nada, depois que os filhos e os paren-
tes venderam tudo, acabaram com tudo por causa da ganância, por causa
de dinheiro.

VELHO
Do nosso dinheiro, né Sofia!

VELHA
Dinheiro que nós dois custamos a ganhar, durante anos de labuta na roça
e que, numa fração de segundos, negociaram tudo. Tomaram de nós dois!

VELHO
Foi isso mesmo, minha velha! Depois que levaram todo de nós, só restou
Rosinete com 14 anos, que não é neta, não é parente da gente, mas que se
preocupa em dizer: por que não vão embora pra Belém? Por que não vão
morar em Belém com seus netos?

VELHA
É porque ela pensa que é fácil tomar uma decisão qualquer na vida! Por is-
so é que ela fala assim.
- 52 -

VELHO
Néra, minha velha, tinha tempo que a gente vendia muito, mas o que nós
ganhava quase não dava pra nada, do mesmo jeitinho a gente gastava. Já
houve tempo que nesse cafundó faltava muita água, a gente só vivia pu-
xando água daqui pracolá. Só faltava secar o poço do vizinho Mendonça.

VELHA
Bom! Só sei dizer que passar fome, a bem dizer, nós não passa, nem nunca
passou e nem vai passar enquanto a velha aqui tiver forças nos braços pra
varrer uma casa, pra lavar uma roupa pra fora, pra cozinhar na casa dos
outros por aí. O importante, meu velho, é a gente não se esmorecer diante
dos obstáculos que poderão surgir. O resto nos tira de letra.

VELHO
Claro, claro! E eu com minhas ferramentas de carpinteiro só tenho a ga-
nhar: voltarei a construir meus banquinhos com pedaços de madeira que
encontrar pelos caminhos, ou num monturo de lixo, aí vendo nas feiras de
Belém. Lá, a venda é muito boa, dá pro gasto, também vai dá pra alugar
um quartinho qualquer, algum barraco pra nós morar e pronto.

VELHA
(Sorridente). Mas, meu velho, ainda nem chegou lá e já tá sonhando com a mo-
radia! Tô gostando de ver seu otimismo! Meus parabéns, viu Cícero.

VELHO
Só há poucos anos, isso aqui passou a melhorar, antes, era uma derrota, um
matagal só, agora, como agora, com água encanada e luz, ajudou a mudar
a vida e a cara da comunidade.

VELHA
Pronto. Tá tudo arrumado. Tudo arrumadinho. Conforme Deus quer.

VELHO
Só falta nós saber se o caminhão do compadre Antunes vai levar nós.

VELHA
Isso quem vai nos dizer é Rosinete quando voltar. (Vai até a janela pra espiar). E
Rosinete que não chega pra avisar se vai ou se ele não vai! Já tou é agonia-
da com tanta demora. Vôte.
- 53 -

VELHO
Olhe velha! Se desta última vez, com essa demora, a situação começar a
mudar o rumo das coisas, se nós colocar os pés na estrada, nem que seja de
madrugada, pra ninguém ver, então garanto que nunca mais quero me ar-
redar daqui!

VELHA
Garra de asneira! Se não for no caminhão do compadre Antunes, será naque-
le ônibus feio do Luiz. Agora estamos vivendo num novo tempo, meu velho.

VELHO
Sim, sei! Sempre acreditei no campo, o que faltava era o incentivo e isso
agora nós temos.

VELHA
Mas não temos mais idade pra isso! Não se esqueça. A gente tem que viver
de acordo com as nossas possibilidades. Nada que ultrapasse os nossos li-
mites, as nossas energias.

VELHO
Tá certo. Faz de contas que não ouvi a sua esculhambação.

VELHA
E tem mais: se nós quiser arredar os pés daqui dessa pinoia, temos que ir
andando até a boca da estrada pra pegar o ônibus do Luiz. Pelas horas que
são (olhou no relógio). Faltam só 15 minutinhos pra seis horas da tarde. E nes-
sa pequena da Rosinete que não chega! Meu Deus! Até parece uma aporri-
nhação na vida de gente!

VELHO
Se tens tanta pressa, então, vam’bora, minha velha, antes que anoiteça! Aí,
vai ser pior. Alguém pode nos assaltar na beira da estrada, no breu na noi-
te. Vam’bora, Sofia!

VELHA
Sem me despedir de Rosinete? Vou não! Vou mais custa! Vou esperar ela
aqui, nem que seja a tarde todinha. O caminho é longo por demais. Tenha
um pouco de paciência. Se Deus quiser, o Luiz vai levar nós até Belém.
- 54 -

VELHO
Ah, minha velha, já tá me dando cansaço nessa longa espera! Não sei se
vou aguentar. Tou por assim dizer caindo de sono. (Bocejou). Arre.

VELHA
Tenha paciência, já disse! Que coisa! O Cícero tá parecendo uma criança tei-
mosa quando quer as coisas. Eu hein! (Serviu-lhe um café do bule). Toma um pou-
co de café pra se espertar!... Tem biscoitinhos de coco. Quer?

VELHO
Quero não. Basta o cafezinho.

VELHA
Pois eu quero! A viagem é muito longa. Tenho que estar com a barriga for-
rada ate lá. Também tem farofa de torresmo, é bom com café, é uma delí-
cia! Já provou?

VELHO
Já. Da última vez, me deu uma diarreia braba, quase morri, quase botei as
tripas cagaiteiras pra fora. Nossa. Era bala de feijão saindo pra todos os la-
dos. Nunca me espremi tanto em minha vida!
(A Velha conteve-se para não dá risada durante sua fala).

CENA 2

(Ambos acabam cochilando ao lado um do outro, sentados numa cadeira de vime de embalo).

ROSINETE
(Vestindo-se num quarto de bordel). E foi assim que vim parar aqui em Belém.
Numa carona. Na carona dos velhos que eram meus padrinhos de crisma,
mas que me tinha como neta deles. Coitados. Naquela tarde, eles dormi-
ram muito. Cansaram de esperar o ônibus do Luiz. Mal eles sabiam que
eu andava me chamegando com o cretino do Luiz que me jogou nessa vi-
da! Nessa vida de puta. De garota de programa. Fora da safra, o ônibus era
alugado pra prefeitura de Castanhal, para transporte escolar (Diante ao espe-
lho fazendo a maquiagem). Luiz sabia o que fazia, o que tava fazendo, do mes-
mo jeitinho que tirou o meu cabaço. Não sei agora, mas naquela época, ele
possuía uma cadeia produtiva de mandioca completa, do cultivo às co-
mercialização de produtos industrializados, como a farinha, o tucupi e a
- 55 -

goma produzidos em 52 fábricas e casas de farinha. Já pensou! Aí, caí nes-


sa ilusão, achando que o Luiz sentia alguma coisa por mim. Quebrei a ca-
ra, como as outras que se deitaram com ele. Pena que aquele safado não
quis mais nada comigo. O cretino me usou e abusou como se usa e joga fo-
ra um papel higiênico! Depois, fugi pra Belém pra evitar falatórios na vizi-
nhança, entretanto, fui parar num bordel de uma negra cafetina. E por ser
a mais nova, a mais jovem, a mais bonita da casa, provocava ciúmes nas
outras e faturava mais do que elas, mas acabei, ganhando isso... (Repuxou os
cabelos e mostrou). Uma cicatriz atrás da orelha. Com isso e com esse canive-
te aprendi a me defender também, com ele, rasgo a cara de qualquer uma
atrevida na rua. A princípio, durante quatro anos, já trabalhando em casas
de família, como doméstica ou como babá, sempre acabava dando pro pa-
trão na ausência da mulher dele, coitada, e de graça! Sem ganhar um ex-
tra, um michê qualquer. Ora! Então resolvi virar piva, cair na vida, ser ga-
rota de programa. Aqui, pelo menos, a gente cobra e fatura legal. Pra mim,
que não tinha profissão, nenhum estudo qualquer, nem pra ser doméstica
eu prestava, porque as mulheres dos caras acabavam descobrindo e me jo-
gando no olho da rua, era mais fácil gambelar os carinhas. (Encarando alguém
na plateia). Sabe cara? Confesso que enfrentei o medo, a fome, a falta de afe-
to paternal, a saudade e toda sorte de dificuldade! Depois chamam isso de
“vida fácil” pensando que é moleza madrugar e andar pelas calçadas, fazer
“ponto” nas esquinas e nos becos da cidade. Vida fácil uma merda! (Caindo
em si). Pobres velhos! Aquele tratamento familiar que me davam era tudo
que eu queria, significava muito em minha vida, quando aconteceu um de-
sencontro entre nós. Nunca eu soube deles pra ajudá-los. Daí nunca mais
fui a mesma. (Tocou o telefone, ela correu pra atender). Alô! Pousada dos anjos, bom
dia! Diga senhor... quer falar com quem? Pois não, senhor, Rosinete Cani-
vete, sou eu! Como?... Sim, sei! Posso, sim, atendê-lo a domicílio. Tá bom.
Combinado, então. Vou de táxi pra depois o senhor pagar na porta, é isso?
Tá legal. Combinado assim. Daqui a dez minutos estarei aí divina e mara-
vilhosa, meu dengo! (Colocou o canivete na bolsa a tiracolo e saiu toda faceira, rebolando
sensualmente feminina e sedutora).

(Corte: na cena, foco em).

CENA 3

(Mostra ao velho Cícero com tabuleiro na rua e dona Sofia que vem vindo ao seu encontro).
- 56 -

VELHO
(Cantando o pregão). Olhaaaa a paçoca inda quentinha!...Olhaaa o amendoim!
...Olha a castanha do Pará, a castanha do caju... Olha a jujuba! Quem vai
querer, freguês! Compra duas e pague uma, é promoção!
(Repetiu várias vezes, todo mundo passando e comprando etc.).

VELHA
(Afobada, nervosa). Cícero...Cícero... Meu velho!

VELHO
Mas que diacho que a Sofia faz aqui no meio da rua? Me diz. Ainda não
apurei nada, não, nem a metade que desse pra comprar um quilo de feijão,
arroz e jabá.

VELHA
Não é nada disso, não, homem!

VELHO
Não? E o que é então?

VELHA
Meu velho, nós estamos fuzilados. O padre Adalberto quebrou o acordo
que ele fez com a gente e mandou avisar que ele vai querer de volta o bar-
raco, onde estamos morando à custa dele.

VELHO
“À custa dele”, uma vírgula! Às nossas custas, isto sim! Em troca do alu-
guel daquele barraco, a gente se tornou zelador do jardim e da igreja dele,
portanto. Nada até agora foi nos dado de graça. Ele sabe disso. E aquelas
papa-hóstia, também.

VELHA
Mas, nós dois, ultimamente, falhamos nas nossas obrigações, nunca mais
demos as caras na paróquia, nem sequer avisamos a eles, nem nada, aí...
aquele padreco sovina, mão de vaca, mandou o sacristão lá em casa, com
uma ação de despejo por conta disso.

VELHO
Mas despejo, Sofia?!
- 57 -

VELHA
É, meu velho! Isto quer dizer que nós estamos no “olho da rua” sem dó,
sem piedade.

VELHO
E os cinco anos que trabalhamos pra ele, quase de graça, não constam, não?

VELHA
É isso aí! Mas de hora em hora a vida melhora, meu velho! O jeito mesmo
é colocar, novamente, o moleque Benedito na rua pra lhe ajudar na venda e
nas economias da casa, como antes. Venha comigo, venha? Vamos pra casa!

VELHO
Falta pouco pra acabar isso aqui. Vá na frente, minha velha, que eu vou lo-
go atrás. Não me demoro.

VELHA
Vou cuspir no chão.

VELHO
Vá na frente pra mode arrumar novamente as malas.

VELHA
Quando chegar, tem pirarucu no coco pro almoço, do jeitinho que meu ve-
lho gosta, bem temperado, com molho de pimenta malagueta e pirão escal-
dado com farinha.

VELHO
Hummm! Deve de tá uma belezura. Chego a lamber os beiço! Mas vá logo,
criatura, que daqui um pouco tô em casa.

VELHA
Pois sim! (Sumiu). Garra dessa porcaria e vem logo embora é que é.

(Corte na cena / Foco em).


- 58 -

CENA 4

(Depoimento do padre e do Sacristão diante do delegando de polícia, representado pela plateia).

PADRE
(Num foco individual). Doutor... Quando esse casal chegou à Belém, há muitos
anos atrás, com uma mão atrás, outra na frente, abandonados pela famí-
lia, que mudou de endereço antes deles chegarem à capital e passando di-
ficuldades, privações, carregando na bagagem apenas quinquilharias, sem
muita importância para vida moderna dessa grande cidade, resolvi dar ao
casal um barraco de madeira pra morar e como eles não tinham nada, co-
mo até hoje não têm, como pagar seu aluguel, em troca lhes ofereci os ser-
viços de zeladores da igreja. Nada mais justo e natural, doutor. Não vejo
mal algum nisso. Fora as cestas básicas, roupas e calçados que eu oferecia
a eles. E ainda me chamam de sovina, mão de vaca e o escambau a quatro?
Eu duvido que alguém possa fazer alguma coisa por eles.

(Corte na cena / Foco em).

SACRISTÃO
(Idem, Idem). Sabe doutor? Nas horas vagas, numa folgazinha qualquer, quan-
do os jovens da comunidade fazia o mutirão da limpeza, o “seu” Cícero ia
pra rua ou pra porta de colégio vender guloseimas e dona Sofia, coitada,
dava um jeito de fazer flor de papel, flor de tecido, de bordar esse negócio
de cortina, toalha de mesa, guardanapo, mas depois...

(Corte na cena / Foco em).

PADRE
Depois, as coisas se inverteram totalmente. O casal tornou-se irresponsá-
vel, não quis mais saber de trabalhar na igreja e passou a encher a cara por
aí, não sei porque cargas d’água. Uns dizem que eles pedem esmolas na
cidade pra comprar alimentos, outros falam que é pra comprar cachaça. E
quando ficam porre, passam a falar mal da nossa Santa Igreja, a igreja de
Deus, doutor!...

(Corte na cena / Foco em).


- 59 -

SACRISTÃO
Eu sou testemunha do quanto o santo padre fez pra manter eles com dig-
nidade, respeitando a velhice do casal, mas eles não quiseram assim. Pre-
feriram fazer coisas que não deve contra os dogmas da igreja, “sujando” o
bom nome do santo padre. Sabe o que eles fizeram?... Não? ... Então, vou
lhe contar... Eles passaram a explorar o menino Benedito, no trabalho es-
cravo, pesado, debaixo dum sol lascado. O casal adotou o negrinho que
morava lá em cima na sacristia. Até então...

(Corte na cena / Foco em).

PADRE
Então, não tinha como discordar da adoção, mas quando eu soube que era
pra sustentar o vício deles, mandei registrar uma queixa nesta delegacia e
exijo a anulação de doação, exijo o retorno do pobrezinho pra igreja.

CENA 5

(Ambos os velhos novamente mudam de lugar ou de bairro, levando consigo o negrinho pastoreio).

VELHA
Cadê, cadê, cadê... esse negrinho pastoreio? Onde esse negrinho se meteu?
(Chamou por ele). Beneeeé!! ...Ô Benediiiito!!!...Onde você tá seu moleque pio-
lhento?

VELHO
Deve tá na rua brincando com as outras crianças do bairro!

VELHA
E se tiver, vai levar uma surra daquelas!

VELHO
Mas, minha velha, acostumamos a arribar pra tudo quanto é lugar da re-
gião, nem estranho mais qualquer viagem, qualquer partida. Hein, minha
velha... Agora de Belém, pra onde é que nós vamos?
- 60 -

VELHA
E eu sei? Ficar aqui por mais tempo e nesse sufoco é que não fico! Servin-
do de besta pros outros, piorou! (Saiu pela casa procurando algo que não encontra,
tornando-se engraçada).

VELHO
A gente muda pra outro bairro ou vai pra Mocajuba, lá nós vamos vender
no novo mercado à beira do rio, onde a gente não precisa mais vender na
chuva ou no sol, agora tem cobertura. Eu falei com o compadre Manuel so-
bre o assunto e ele vai nos dá hospedagem na casa dele, lá a gente enche a
lata e dorme tranquilo, tais ouvindo Sofia?

VELHA
Hein?

VELHO
Mas que diabo essa mulher tá procurando pelos cantos da casa?!

VELHA
O que podia ser? O Bené!

VELHO
Já disse: Vai ver que o danisquinho foi brincar na rua.

VELHA
Na rua ele não tá, não, meu velho! Aonde foi que ele foi se meter, Cícero?

VELHO
Aonde... Aonde... Ah! minha velha já reparou no guarda-roupa?

VELHA
Já.

VELHO
Embaixo da cama?

VELHA
Também, mas lá ele não se meteu, não, tava muito escuro.
- 61 -

VELHO
Nem em cima do armário de louças?

VELHA
Já, meu velho.

VELHO
Já olhou no quintal, pra ver se o moleque tá escondido na casa do cachorro?

VELHA
Nem no galinheiro! Quanto mais em cima da mangueira ou da goiabeira.
Ah, meu Deus será o Benedito? Sem ele, eu não saio daqui hoje. Vá adian-
tando as coisas, meu velho, que hoje esse negrinho me paga o novo e o ve-
lho! Garra de poupar esse vadio. Hoje, ele trabalha de qualquer maneira.

VELHO
Garanto que o pobrezinho não vai mais nós e fugiu. Foi pra bem longe da-
qui. Tá certo que a Sofia, depois que trouxe ele da igreja e longe daquelas
papa-hóstia, aqui dentro, a vida dele melhorou muito. Agora, ele tá mais
limpinho e cheirosinho, longe daquela sacristia onde enchiam o saco dele,
ouvindo tanta reza, tanta ladainha, além das velas que acendiam incomo-
dando o sono do pretinho.

VELHA
Pior, meu velho, que o Bené descobriu meus pileques e acho que se escafe-
deu por aí. Sumiu! Arrumou as trouxas dele e foi embora aquele ingrato...
(E chorou muito, ficou apavorada). É muita ingratidão daquele tição duma figa.

VELHO
Chora não, Sofia. O pobre ficou cansado e perdeu o estímulo do trabalho,
por nossa causa. Com esse negócio da gente encher a cara no fim de semana.

VELHA
Agora, veja no que deu. Sem ele, a gente tá num mato sem cachorro. Pior
é que eu botava o menino debaixo do sol, pegando poeira, quando não pe-
gando chuviscos de chuva, correndo o risco de gripe, ouvindo na rua o
chaveco, a escrotiação de gente mal- educada.
- 62 -

CENA 6

(Sofia encontra, dentro duma lata grande, aquilo que procurava na casa).

VELHO
Cala um pouco essa boca, Sofia, e vem encher tua boca de pirão! Tô com
fome. Uma fome doida.

VELHA
Quero não! Me ajude a procurar o Bené, isto sim! Tá ficando tarde, a gente
tem que sair daqui, antes que aquele padreco sovina venha jogar merda no
nosso ventilador.

VELHO
Pois ele que venha! Vou mostrar pra ele com quantos paus se faz uma ca-
noa! Ou não me chamo Cícero Raimundo da Cunha Policarpo. Digo, lá na
polícia, que ele anda papando, mas não é hóstia não, e sim, aquela sirigai-
ta da beata Antônia, mulher do Seu Hipólito. (Gracejando, meio porre). Escuta,
minha velha: tu já reparou se esse moleque tinhoso se escondeu na gaiola
do passarinho?

VELHA
O quê?

VELHO
Na caixa de sapato?

VELHA
Deixe de prosa besta. Magina! Se o bichinho cabe lá dentro.

VELHO
Então, tá na caminha do gato, dormindo, depois do trabalho escravo.

VELHA
Trabalho escravo, uma ova! Ele agradeça a mim, que deu a ele total liber-
dade, graças a Lei Áurea, graças a Princesa Izabel e ao Zumbi, hoje, o negro
que nem ele é respeitado na rua. (Esbarrou na lata e gritou). Achei ele!
- 63 -

VELHO
Achou?! Aonde?

VELHA
Aqui dentro desta lata de cal. Olha ele tá! Quase branco o danadinho!

VELHO
Agora a gente vai embora!

VELHA
(Fazendo limpeza nele). Meu negrinho pastoreio! Que susto você me deu, seu es-
pertinho, se escondendo dentro da lata! Tá querendo levar uma surra, uma
sova de dindinha Sofia? Da própria vez, garanto que vai apanhar, sim. Gar-
ra de teimosia comigo. Agora tou com pressa. Vam’bora, meu velho.

VELHO
Com pandeiro ou sem pandeiro?

VELHA
Desta vez com tudo que ele tem direito! Afinal, pra nós, o Bené sempre foi
um santinho do pau oco, quando descobri que guardava dinheiro dentro de-
le, por causa de ladroagem na igreja. Foi por isso que roubei também ele de lá.

VELHO
Vixe! Era mesmo?

VELHA
Era, sim! Se o coitado servia de cofre pra igreja, entre as teias de aranha e
poeira da sacristia, onde ele ouvia tanto peditórios, por que não dá um ru-
mo na vida do santinho?

VELHO
Garra de resmungar, criatura! Ao ensaio, Sofia! Como é mesmo a cantoria?

VELHA
Não se esqueça de imitar a língua dos nordestinos. (Saíram cantando).
- 64 -

AMBOS
(Falado).
Me dê uma esmolinha pra São Benedito, que necessita construir a sua igre-
jinha na Vila de Icoaraci.

(Cantado).
Louvado seja e por Ele amado, nesta terra de Santa Cruz/
Dai-nos a bênção ó Benedito, que era filho de Deus, também irmão de Jesus/
Seja adorado e por explorado, nessa terra de Santa Cruz!

(Corte na cena / Foco em).

FINAL DO ESPETÁCULO
COM QUE
T INTA
PINTAREI
TEU ROSTO?
- 66 -

Com que tinta pintarei teu rosto?


Drama social - 2003

CENA 1

(No quarto de um asilo de idosos).

MÃE
(Surgiu lá de dentro com duas maletas). Pronto. Que tal estou? (Admirou-se no espelho).
Acho que esse vestido está ótimo em mim!

FILHA
Eu não acho! A barra do vestido está cheia de fiapos! Parece uma marmota!

MÃE
(Ajeita-se). Pronto. Estou pronta pra partir. Já me despedi de todos, todo mun-
do ficou feliz em saber que...

FILHA
Aonde pensa que vai?

MÃE
Vou com você pra casa. Vou embora pra minha casa.

FILHA
Comigo?

MÃE
Chega disto aqui!

FILHA
Quem te enfiou isso na cabeça? Quem te disse que eu viria te buscar?

MÃE
E não veio não?...
- 67 -

FILHA
Nem morta!

MÃE
Ah! Você não veio pra me tirar daqui, não? Tá falando sério? Mas hoje é
sexta-feira, a última do mês de outubro, até marquei com caneta no calen-
dário, veja... Nessa data, você disse que viria me buscar pra ficar em casa
pra sempre.

FILHA
Eu disse? Não, senhora. Não foi bem assim. Eu falei que nessa data eu traria
mais um documento pra senhora assinar a meu favor. Foi muito diferente.

MÃE
É! Mas já faz tanto tempo que estou internada neste asilo de idosos e de-
pressivos que, às vezes, eu me pergunto: fazendo o quê? Que eu não sei!

FILHA
Tratamento dos nervos, é claro!

MÃE
Mentirosa. Sabe que os médicos falaram? Que eu não tenho nada! Que tu-
do é armação tua, invenção da tua parte para se ver livre de mim e aí ficar
com tudo o que é meu!

FILHA
Ótimo! Assim vai me poupar tempo e meias palavras para fazê-la assinar
este derradeiro documento aqui. (Esticou o documento na mesa).

MÃE
Que documento? De novo! Já não basta aquele que assinei nomeando vo-
cê como sendo minha procuradora, com poderes de quitar e negociar imó-
veis, ainda quer mais?

FILHA
Quero, quero sim!

MÃE
O quê, por exemplo?...
- 68 -

FILHA
As joias e a grana que estão no banco.

MÃE
Minha filha, deixa de tanta ambição na vida! Você nem sequer trabalhou
para gozar de tudo isso. Depois aquela grana e as joias estão tudo no nome
do seu irmão. Portanto, ele será seu único herdeiro, por minha conta, e sa-
berá usar tais valores na hora certa.

FILHA
Como se ele se precisasse disso. Antonio, adoro ele, mas é um desmiolado,
um leviano, um farrista, um mulherengo.

MÃE
Mentira! Não tente denegrir a imagem do seu próprio irmão! Antonio é bom
filho, bom caráter, companheiro e humano, tão diferente de você que só vê
grandeza na frente, luxo e riqueza como se trabalhasse pra obter tudo isso!

FILHA
Chega de conversa fiada. Vamos, assine aqui!

MÃE
Não vou assinar nada!

FILHA
Ah, vai! Vai sim! Ou por bem ou por mal! (Puxou-a pelo braço e fê-la assinar o do-
cumento).

MÃE
Ingrata. Agindo assim, você nunca será feliz. Deus a castigará por isso.

FILHA
Praga de urubu não mata cavalo! Pronto. Agora sim! Estou tranquila.

MÃE
Desde quando me internou neste asilo, tenho vivido um pesadelo atrás do
outro. Quase sempre são pesadelos que misturam saudades de outros tem-
pos em que a nossa família era feliz. Mas depois do falecimento do meu
velho... tudo mudou.
- 69 -

FILHA
Não quero saber.

MÃE
Não sei como você consegue dormir. Francamente! Sabendo que estou
aqui, à mercê do tempo e da solidão, sem rever os amigos, os parentes, as
pessoas lá fora. (Chorou).

FILHA
Não interessa. Aqui a senhora está sendo bem servida, bem assistida, tem
tudo aqui: bons médicos, bons remédios, boa gente que lhe adora.

MÃE
Minha filha, em nome de Deus, deixe-me voltar pra minha casa! Por favor!
Tire-me daqui, me leve pra casa. Eu juro, eu lhe prometo, haja o que hou-
ver, aconteça o que acontecer, não vou mais dar palpites na sua vida. Faça
da sua vida aquilo que bem entender.

FILHA
Verdade, mesmo? Vou pensar no seu caso.

MÃE
Juro por Deus! Eu só quero estar ao lado do meu filho amado. Oh, meu
Deus! Eu morro de saudades do meu filho, menina. Será possível que você
não sabe o que isto significa, pra mim como mãe?

FILHA
Meu temor é que, futuramente, a senhora bata com a língua nos dentes e
venha me denunciar na delegacia das mulheres, aí vão me dar uns aninhos
de prisão. Já pensou!

MÃE
Minha filha, juro por Deus, eu nunca faria isso contra você! Pelo contrário,
perdoarei você pelas suas maldades contra mim, a deixarei livre e irei em-
bora morar noutro lugar, noutra cidade, talvez no campo, no interior...

FILHA
Tá bom. Vou lhe dar um voto de confiança. Mas, se vacilar comigo, vou man-
dar fuzilar você. Aí, nunca mais vai ver: nem a mim, nem ao meu irmão!
- 70 -

MÃE
Entendi. Se ao menos você conseguisse arranjar uma casa distante, longe da ci-
dade, talvez no interior, onde eu pudesse viver tranquila, morrer sossegada...

FILHA
Não, senhora. Nem pensar! Quero sempre vê-la e tê-la perto de mim. Vaci-
lou comigo, bobeou, dançou... mas dança mesmo! Deu pra entender?

MÃE
Dá! Então posso pegar as malas?

FILHA
Pode. Quero dizer, essas daí, não! Essas estão muito feias. Agora, vai mu-
dar esse vestido ridículo que te deixa mais ridícula ainda! Enquanto vou
atrás duma mochila, de algo mais decente, mais moderno. (Gritou). Vai!! O
que tá esperando? Quer que eu te carregue no colo? Ora te enxerga! Anda,
vai trocar de roupa, antes que os outros te vejam fugir comigo! Vai logo,
mulherzinha chata!!!

MÃE
(Beijou-a no rosto). Obrigada, filha! Eu sabia que me entenderia! (Saindo). Ai, que
beleza! Ai, que maravilha! Vou rever meu filho amado, depois de muitos
anos ausente de casa! Uns 10 anos mais ou menos... Como será que meu fi-
lho amado está?... Hein?... Pode me dizer?... (Sumiu no corredor).

FILHA
(Gritando para ela que está distante). Não sei! Nem quero saber. E tenho raiva de
quem sabe!

MÃE
(De fundo). Sua malcriada. Você sempre foi assim atrevida e respondona, des-
de quando estudava e gazetava na escola.

CENA 2

(A enfermeira entra no quarto com uma bandeja).

ROSA
Dona Olgarina... Desculpe, pensei que ela estivesse sozinha. Onde tá ela?
- 71 -

FILHA
Lá dentro, trocando de roupa. É o que é isso aí na bandeja, algum remédio?

ROSA
Não, senhora. É o lanche dela! Dona Olgarina não está doente, não precisa
de remédios, muito menos ficar internada, morando aqui. Isto aqui nunca
foi lugar para ela. Acho uma tremenda maldade deixá-la aqui, convivendo
com pessoas depressivas, doentes da cabeça, dos nervos.

FILHA
E quem é você para dar palpites na vida dela, para achar o que é bom ou
ruim para ela? Não se meta em assunto de família. Vai cuidar do seu ser-
viço, porque da minha mãe cuido eu, tá bom?! (Passou a rasgar as roupas de sua
mãe na frente da enfermeira).

ROSA
O que está fazendo?

FILHA
O que você tá vendo: destruindo, rasgando tralhas velhas!

ROSA
Mas essas são as únicas mudas de roupas que ela tem aqui dentro, coitada.

FILHA
Por isso mesmo! Odeio, detesto quinquilharias, coisa velha, trapos no armá-
rio dela. Nunca mais ela vai usar esse tipo de coisa. Nunca mais! Ouviu bem?

ROSA
Bom, se a senhora acha isso e vai trazer roupas novas para ela...

FILHA
Nunca! Jamais faria isso por ela! Essa velha merece morrer confinada nes-
se asilo ridículo.

ROSA
Estou bestificada com o que estou vendo e ouvindo! Nunca pensei que ain-
da existisse esse tipo de filhos no mundo, mas quebrei a cara. Entretanto,
a única doença que perturba a sua mãe é a saudade do filho, a solidão, o
- 72 -

abandono da família. Já pensou! Dez anos aqui dentro, sem ver ninguém
do seu mundo real, nenhum amigo, nenhuma amiga!...

FILHA
Cala essa boca. Toma! Leva essas tralhas daqui e taca fogo nelas! Queima
tudo, uma por uma, até virar cinzas.

ROSA
Olha aqui, dona Rita, eu sei que não tenho nada a ver com isso, mas como
uma profissional de enfermagem e destinada a zelar por Dona Olgarina,
sou forçada a esclarecer uma coisa pra senhora: o corpo médico daqui vai
mover uma ação contra a senhora pelos maus tratos que tem feito a ela.
Eles vão lhe mandar prender.

FILHA
E eu com isso? Eles não têm como provar!

ROSA
Pior que tem!

FILHA
É mesmo? Então, a essas alturas do campeonato, estarei fora do país! Não
é moda agora alguém cometer algum delito fugir, anonimamente, para ou-
tro país estrangeiro, graças a impunição existente no Brasil? Pois é! Assim
farei. Vendo tudo, acabo com tudo, pego a grana toda e me mando daqui.
Ninguém vai me achar, vou mudar de cara, vou mandar esticar tudo.

ROSA
Já que faz tanto descaso assim... Olhe isto aqui... Dê uma olhada... (Abriu uma
gaveta da cômoda). Que acha disso?

FILHA
Nossa! Que coisa linda! Que beleza de trabalho! Quem fez? Quem pintou?...

ROSA
Gostou?
- 73 -

FILHA
Adorei! Adoro pintura! Adoro artesanato! Olha esta aqui... que linda! Diga
pra mim, onde posso adquirir uma dessas telas e com quem. Você tem te-
lefone pra contato?

ROSA
Pois é. Esse é o problema: a Dona Olgarina não usa cartão pra contato, não
tem telefone, nem endereço fixo, a não ser este asilo de idosos e depressi-
vos. O que não fica nada bem para ela.

FILHA
Escuta aqui, enfermeira... você tá querendo dizer que foi a minha mãe que
fez isso, que pintou essas telas?!...

ROSA
Exatamente! Tudo foi desenvolvido e pintado por ela. Dona Olgarina é
uma verdadeira artista plástica e na idade dela, por sinal, é muito original,
muito criativa. Aqui, todos nós passamos a considerar e a incentivar seus
trabalhos.

FILHA
É mesmo? Ah, sua espertinha! Ela nem sequer comentou comigo.

ROSA
Claro. Nem poderia. Faz tantos anos que ela não recebe visita nenhuma!
Mas, o trabalho da pintura vai preenchendo seus dias, o seu vazio, a solidão.

FILHA
Tem razão. Tem toda razão. (Calculista). Rosa, minha boa e estimada enfer-
meira, amiga dedicada, você acabou de me dar uma ideia genial. Vou mon-
tar um atelier completo, onde ela vai ficar à vontade, para criar e vender os
seus trabalhos. Vou ganhar muita grana, vou ficar famosa, às suas custas!

ROSA
Como assim? Não entendi.

FILHA
Não tem nada pra entender. Tenho agora que tomar minhas providências e
urgente. Vou nessa. (Sai e volta).
- 74 -

ROSA
E Dona Olgarina? Vai ficar? Não vai com a senhora?

FILHA
Vai sim! Mas depois. Depois que eu acertar tudo com o Nicodemo sobre o
aluguel do ponto para vender as telas que serão, naturalmente, assinadas
por mim, é claro.

ROSA
Santo Deus! Mas isso é roubo de identidade e de caráter ideológico! Não
faça isso. Ela tem o direito de ser feliz, nem que seja à sua maneira!! (Ouvem-
-se o auto-falante chamando pela enfermeira Rosa etc.). Estão me chamando na sala de
curativo. (Saiu). Não se esqueça do mingau dela. Com licença... licencinha...
Pobre senhora!

FILHA
Ra! Sai fora! Cai fora daqui! Vai cuidar dos teus dementes.

CENA 3

(A visita inesperada do filho ao asilo).

FILHA
Credo, mãe! Que tanta demora pra trocar de roupa! Tava quase desistindo
de esperar.

MÃE
Ah, minha filha! A minha emoção é tanta em sair daqui que acabou me
dando uma dor de barriga. Tive que ir ao banheiro.

FILHA
Essa não!

MÃE
Acho que não vou poder sair hoje, só amanhã, quando melhorar. Não é
melhor assim? Vou pedir pra Rosa fazer um chazinho de boldo com casca
de laranja. Dizem que é bom pra estancar diarréia.
- 75 -

FILHA
Tá legal. Amanhã voltarei, à tarde. Combinado? Agora toma teu mingau...

MÃE
Quero não, filha. Acho até que não vou poder mais sair, hoje, daqui com
você. Deixa pra outro dia.

FILHA
A senhora é que sabe.

MÃE
(Correu os olhos no ambiente). Aonde guardou a minha roupa?

FILHA
Mandei a enfermeira Rosa tacar fogo naqueles trapos fedidos, fedendo a
mofo, a naftalina, que horror!

MÃE
Você fez isso? Eram as únicas que eu tinha!

FILHA
Não esquenta a cabeça. Vou comprar roupas novas pra senhora. Nunca
mais a senhora usará trapos na vida. Agora, venha tomar seu mingau...

MÃE
Huuummm! Essa alma quer reza. O que é desta vez? Mais dinheiro? Mais
casa pra alugar?

FILHA
Depois a gente conversa sobre o assunto. Primeiro, o seu mingau... que aca-
bou esfriando por causa da sua demora no banheiro.

MÃE
Toque a campainha, chame a enfermeira pra mim! Quero tomar um chá de
boldo em vez desse mingau. (Ela obedece).

FILHA
Deixe que eu vou chamá-la pessoalmente. Eu sei onde fica a sala de curati-
vo. É lá que ela está trabalhando, tirando plantão hoje.
- 76 -

MÃE
Não, minha filha, não precisa. Basta apertar na cigarra três vezes. Logo, lo-
go ela aparece aí na porta. (E apareceu sendo acompanhada pelo filho dela).

ROSA
Olha quem eu trouxe pra senhora, Dona Olgarina... uma visita muito im-
portante, muito querida!

MÃE
Quem? (O filho adentra o quarto).

FILHA
Antonio!!!

MÃE
Meu filho amado! Que bom que veio! Que surpresa agradável!

ANTONIO
(Com gracejo). Procurei por todo canto e lugar do mundo o paradeiro da Do-
na Olgarina, eis que vim encontrá-la aqui, exilada neste labirinto de dor e
de agonia! Mas, estou aqui firme e forte, para lutar contra o mal que a mi-
nha querida irmãzinha fez contra a senhora, nesses últimos anos, em que
estive fora, ausente deste país! Já estou a par de tudo e já tomei as minhas
providências, já conversei com o advogado da família, portanto, está tudo
praticamente resolvido, viu minha irmãzinha? (Debochou).

FILHA
Otário. Idiota. Burro. Mentecapto.

ANTONIO
Meu amorrr, você pode usar todos os adjetivos do mundo e não vai, daqui
em diante, mudar a minha cabeça, o meu ato de justiça! Você se esqueceu
que a Dona Olgarina é também minha mãe, que foi ela que nos deu à luz,
sem discriminar nenhum de nós dois? Ou você achava que eu não retorna-
ria mais ao meu lugar de origem? E vim por causa dela! Quando recebi a
denúncia deste asilo contra você!
- 77 -

MÃE
Oh, meu filho amado! Quanta saudade tive de você! Nem sei como agra-
decer o que está fazendo por mim. Estou tão comovida. Foram tantos anos
de solidão.

ANTONIO
Mas, foi por isso que vim! Resolvi voltar ao Brasil para dar um basta nes-
sa farsa ridícula. Vou levar a senhora embora daqui para nossa casa, a casa
que é sua, minha mãe, em vida.

FILHA
O quê? Para nossa casa? E quem vai cuidar dela???

ANTONIO
Nós dois: eu e você!

FILHA
Eu me recuso! Pague uma empregada para cuidar dela! Eu não tenho a me-
nor vocação para babá de gente velha e rabugenta.

ANTONIO
Aliás, nunca mais vou permitir que você, nem ninguém, faça gato e sapato
de minha mãe ou dos bens que ela possui ou venha possuir. Enfim, o ad-
vogado vai cuidar de tudo isso e vai acompanhar de perto o caso dela para
que você, sua vampira, não venha mais lançar mão de seus valores. Isso é
crime! A nossa mãe ainda está viva, lúcida, consciente das coisas, e não mor-
ta, mesmo sendo pressionada por você sua víbora! Te manda daqui, antes
que eu cometa uma tragédia contigo, anda! Cai fora daqui sua asquerosa!!!...

FILHA
(Saindo). Nojento. Você me paga por isso. Seu cretino.

ANTONIO
(Puxou-a pelo braço, apertando). Olha aqui, sua bruxa...

MÃE
(Gritou). Antonio! Não bata na sua irmã! Deixe ela em paz, não adianta, ela
nunca prestou mesmo!
- 78 -

FILHA
Tá ouvindo? Essa velha tem mais é que morrer à míngua! Agora, larga meu
braço, larga!

ANTONIO
Toma cuidado comigo. Qualquer coisa, te coloco na cadeia. Não vacila. Pri-
são não foi feita só pra cachorro, mas pra gente que nem você.

FILHA
Larga meu braço. Antonio! Você tá me machucando. Larga!!! (E saiu de cena
quase correndo).

ANTONIO
(Na direção em que ela saiu). Te cuida! Eu vou querer anulação de tudo que vo-
cê mandou ela assinar! Amanhã teremos audiência na justiça e vou levar a
nossa mãe para depor contra você! (Voltando-se para sua mãe que está em pranto).
Pronto, minha mãe, garanto que ela não vai mais importunar a senhora...
Mas o que é isso? A senhora está chorando?!

MÃE
Choro por ela que nunca foi uma boa menina. Sempre, mas sempre, essa
menina me deu trabalho: era em casa com briguinhas com você, lembra?...
Era no colégio com as outras amiguinhas... depois de moça então, nunca
segurou um namorado por causa desse gênio dela.

ANTONIO
Muito simples: Valdirene nunca aceitou o seu afeto para comigo, sempre
achou que a senhora me dava um tratamento diferenciado, e se sentia re-
jeitada, até hoje!

CENA 4

(Nesse instante, entra Rosa, a dedicada enfermeira, trazendo-lhe de volta as roupas destruídas).

MÃE
Rosa! Nem te conto... o meu filho botou aquela malvada pra correr daqui...
- 79 -

ROSA
Tá certo. Mas daqui a pouco, quem vai embora daqui e vai me deixar com
saudade é a senhora, não é mesmo, seu Antonio?

ANTONIO
Com certeza!

MÃE
Também vou levar saudades suas. Mas, de vez em quando lhe farei uma
visita. Vou lhe trazer um bolo de cupuaçu que sempre gostei de fazer e que
você vai adorar! É minha especialidade, Rosa.

ROSA
Eu sei! O seu filho me contou.

MÃE
Rosa, minha filha, me faz um chá de boldo com casca de laranja!

ROSA
Tá com dor de barriga?

MÃE
(Apertando a barriga). Tô com uma caganeira braba, minha filha, tô me dissol-
vendo em merda.

ANTONIO
Ih, mãe! Desse jeito, acho que a senhora não vai poder sair hoje daqui. A se-
nhora vai ter que esperar até amanhã quando ficar boa.

ROSA
Coitada. Isso é nervosismo dela só em saber que vai ganhar sua liberdade!
Como se fosse um passarinho preso, nessa gaiola de vidro, querendo voar,
lá fora, enquanto lhe cortaram as asas. (A enfermeira sai de cena e avisa). A prova
do crime da “outra” está aí dentro do saco plástico, viu seu Antonio.

ANTONIO
Obrigado! Obrigado por ter protegido a minha mãe todos esses anos.
- 80 -

MÃE
Ah! Rosa é um amor de criatura, um desses doces e raros anjos que surgem
em nossas vidas. (Respirou fundo). Nem sei com que tinta pintarei teu rosto, viu.

ANTONIO
Com as cores da bondade, minha mãe, da alegria e da satisfação em lhe ser-
vir, por todos esses anos, como enfermeira e como amiga sua.

ROSA
Bom! Chega de mimos comigo, deixe-me ver seu remédio pra dor de cóli-
ca... mas, tá mesmo com diarréia, Dona Olgarina?

MÃE
Tô, minha filha. Chega tou mofina. Tô cagando fino! Vai buscar o remédio.
(Feito isso, entrou no banheiro e ficou gritando lá de dentro). Antonio... Antonio...

ANTONIO
O que é mãe? O que foi desta vez?

MÃE
Traz papel higiênico!!! Me socorre aqui, meu filho amado!

ANTONIO
Calma. Já tô indo, mãe! Não precisa fazer escândalo.

MÃE
Aiii! Já tô botando as tripas pra fora!

ANTONIO
(Vasculhando as tralhas dela numa sacola). Aonde tá o papel higiênico?...

MÃE
Tá dentro duma sacola onde guardo a Bíblia! Bem ao lado, no fundo!!! Achou?

ANTONIO
Achei! (E foi socorrê-la). Já tô indo! (A enfermeira surgiu na hora).

ROSA
Aonde tá ela?
- 81 -

ANTONIO
Se enfiou no banheiro. Leva isso pra ela, ela tá pedindo...

ROSA
Fiz um chá pra ela, assim é melhor. É calmante. Vai aliviar seu nervosismo.
(Sumiu no interior do quarto).

MÃE
Rosa... me socorre, criatura...

ROSA
(Ao vê-la com hemorragia anal). Meu Deus!!! Minha Virgem Santa! (Rosa vai chamar
o filho para ajudá-la). Seu Antonio, venha me ajudar! A coisa é grave! É muito
grave. Coitadinha.

ANTONIO
O que é que ela tem? (Acompanhou-a a distância).

ROSA
Hemorragia. Temos que levá-la pro hospital. Talvez seja preciso interná-la.

ANTONIO
De novo??? Oh, Deus! Será possível?

ROSA
Tenha paciência com ela. Amanhã estará melhor. Ela vai ficar boa.

(A luz cai no cenário durante a fala dos personagens e fechando o plano de ambos no palco).

FIM DO ESPETÁCULO
CONVERSA
VAI,
CONVERSA
VEM
- 83 -

Conversa vai, conversa vem


Sátira /comédia - 2003

PERSONAGENS
Vários

CENÁRIO
Palco italiano e arena. Mostrando a Vila da Barca, com suas palafitas e barracos nos
alagados da maré baixa, na lama. Com aspecto de favelas e favelados.

TEXTO
Narra a história de pessoas social e culturalmente discriminadas, as quais, vivem
precariamente em palafitas e alagados da Vila da Barca, onde a velhice vive amea-
ças constantes, aqui a espuma da maré traz o arrependimento, mais tarde, pra des-
cascar o abacaxi da trama, desde a retratação de maridos ou namorados traídos
pela presença e simpatia do Boto no pedaço, bem aí, nas fuças de toda população
da Vila. Tudo isso, numa linguagem coloquial, puramente amazônica, onde o as-
sunto em questão também resgata a nossa cultura regional. Será um belo espetá-
culo, sem dúvida, partindo de uma boa direção, sem mexer ou alterar o texto com
apelações indevidas distorcendo o texto original.

CENA 1

(Entregue aos afazeres domésticos).

GENÓ
(Passando roupa a ferro). É assim. Quase todo dia é a mesma coisa. Hoje, volto a
triscar num assunto que, muitas vezes, vocês acham corriqueiro, mas não
é não. Tenho que fazer tudo às pressas... quase tudo ao mesmo tempo. E o
safadão do marido ainda dormindo, o filho então, nem se fala! Tenho qua-
tro lavagem de roupa pra manter esta casa e dou graças a Deus. É uma vi-
- 84 -

da difícil e aperreada para mim, sobretudo com o marido desempregado,


beberrão e fazendo “bico” por aí. (Ao passar pela sua velha mãe, quase surda e cega).
Quer alguma coisa? Aceita uma cuia de mingau?

VELHA
Ein? (Respondeu num asmático tom, fazendo uma concha nos ouvidos).

GENÓ
Eu perguntei se quer alguma coisa, algum mingau! (Gritou bem alto). Quer?

VELHA
Coça a minha cabeça com o pente. Acho que estou cheia de piolho, anda!

GENÓ
Ah, meu Deus. Haja paciência pra lhe dar com essa daí, que vive feito uma
caduca, o tempo todo muda, no canto da sala, nesse vaivém de cadeira, coi-
tada, sem alegria, sem tristeza, sem carnaval, sem pecados, apenas como
um trambolho da família. (Vai e volta com uma cuia de mingau). Venha tomar min-
gau. Tá meio morno. Segura direito.

VELHA
O que é isso?

GENÓ
Oh, saco! Pega logo esse mingau, sua surda e vê se não me torra a paciên-
cia. Toma tudinho. E não vá atirar fora com a cuia como de costume, viu
sua mal agradecida!

VELHA
Tá quente. Fica soprando pra esfriar. Esse mingau tá inçosso!

GENÓ
Quer fazer graça é, sua velha rabugenta? (A velha sorriu zombando dela). Tenho
que fazer as coisas, não posso perder meu tempo só cuidando de ti.

VELHA
Rabugenta é você, que vive reclamando das coisas, falando mal das pes-
soas, como se nada prestasse.
- 85 -

GENÓ
E não presta mesmo! (Voltou pro ferro de engomar). A começar pela senhora que
vive só pra me dar trabalho. Nem pra morrer presta.

CENA 2

(O marido procurando por ela, que continua passando a roupa a ferro).

MARIDO
Hein Genó? Cadê o remédio do fígado? (Friccionou a barriga). Tou com uma dor
de barriga daquelas.

GENÓ
Taí em cima do armário. (Apontou com o beiço, naquela direção).

MARIDO
Tava. Mas não tá mais. Já procurei aí.

GENÓ
Diabo. Se não queria adoecer, por que diabo vai encher a cara por aí? Inda-
gorinha tava aqui a praga do remédio... Tava no meio desses vidros de re-
médios da mamãe. (Achando). Taqui! Toma essa porcaria! Que eu ainda tenho
o que fazer. Ainda vou ferver roupa no quintal. Francamente rapaz, não sei
qual é a tua, nem sei por que tanto bebes? Só pra me dar trabalho, que nem
a minha pobre mãe! Ela pelo menos, eu sei que tá na velhice, caducando, e
tu, por que é?

MARIDO
Bebo pra esquecer.

GENÓ
Esquecer o que? A tua falta de vergonha? O teu mal caratismo?

MARIDO
Tu acha pouco o que estão fazendo com a gente?

GENÓ
Ora! Cria vergonha nessa cara deslambida! Cachaça não enche barriga
não!! Tu vais acabar adoecendo duma cirrose. Bom!
- 86 -

MARIDO
Vaso ruim não se quebra.

GENÓ
Vai nessa. Um dia a casa cai e tu vais te arrepender da graça. Onde já se viu
jogar a vida num fundo do copo, por causo de desemprego? Eu hein!

MARIDO
Tu já deu o mingau da tua mãe?

GENÓ
Ela não quis... Empurrou prum lado, depois ela toma quando a fome apertar.

MARIDO
Coitada. Vive o dia inteiro naquela cadeira se embalando. Ninguém con-
versa com ela, a não ser o neto. Ninguém pede palpite pra ela. Ninguém,
nada com ela. Isso me dá uma pena dela.

GENÓ
Olha aqui, Alfredo... Se tens tanta pena assim, por que tu não vais conver-
sar com ela? Quem sabe se nesse trololó de conversa vai, conversa vem, tu
não acabarás resgatando a memória da velha!

MARIDO
Santo Deus. Nem parece que ela é tua mãe. Nem parece!

GENÓ
Vai-te pra China. Vai atentar o cão com tanta reza. Aliás, tu és a única pes-
soa que mais tem tempo nesta casa, portanto, pode muito bem servir de
babá pra ela. Mas garanto a você que, com esse seu bafo de onça, nem ela
mesma vai querer!

MARIDO
E Luciana... que ela tem?

GENÓ
Doença de criança. Agora apareceu uma prisão de ventre. Faz uns três dias
que a menina não come direito e nem caga. Antes, essa menina tinha adoe-
- 87 -

cido de catapora, sarampo, febre amarela, sei lá mais o que, agora apareceu
isso, essa tal de prisão de ventre, sei lá...

MARIDO
Tu já falou com o médico?

GENÓ
Fui lá ontem de novo. Mas aquele filho duma puta sabe o que fez? Não
quis me atender, simplesmente porque a menina não tem a carteirinha do
INSS, pode? Tu precisava ver o jeito que ele me tratou! Com falta de edu-
cação e respeito.

MARIDO
Tá vendo? Diz se não tenho ou não razão de escrotiar? (Saiu). Ah, mas vou
lá dar um jeito nisso!

GENÓ
Que jeito? Vem cá, homem, abaixa esse facho... A menina já foi medicada
hoje, a vizinha conseguiu remédios pra ela, através do Serviço Social.

MARIDO
Não aguento mais. Vou ao banheiro. Vou parir à vontade.
(Sumiu no interior da casa).

CENA 3

(Nesse instante, o filho se esbarra no pai, ao passar por ele, só de cueca).

FILHO
Porra, pai. Quase me derrubou.

MARIDO
Não enche, tá. Tou com dor de barriga. Com diarreia braba. (Sumiu).

FILHO
Bom dia, mãe! (Se espreguiçou).

GENÓ
Bom dia... Credo! Que morrinha! Já lavou a cara? Já tomou café?
- 88 -

FILHO
(Bocejando). Ainda não. Tou me acordando agora, né mãe? A senhora viu a
minha escova de dente? Ontem procurei no armário e não achei.

GENÓ
É que fiz uma arrumação no armário e coloquei a escova dentro dum jarri-
nho de barro, que eu ganhei da comadre Emiliana. Achou?

FILHO
Achei! (Vai até a sua avó, na sala, e a beija na testa). Bom dia, vó!

VELHA
Hein?

FILHO
Eu disse: bom dia, vó!!! (Gritou pra ela ouvir).

VELHA
Vai tomar banho na praia? Cuidado com arraia, com cobra d’água, Bentinho!

FILHO
Tá certo, vó. Coitada da vó. Tá caducando. Cada vez tá pior.

GENÓ
Escuta, Bentinho, o Sampaio te pagou tudo ontem?

FILHO
Tudo uma ova! Só me deu a metade. Veja aí... Tá em cima da mesa a grana...

GENÓ
Com esse, já dá pra juntar um dinheirinho pra comprar roupas pra sua ir-
mã e alguns remédios que precisar. Esse Sampaio é uma boa bisca, um ver-
dadeiro caloteiro. Eu no teu lugar juntava ferro pra outro, menos pra ele.

FILHO
Tá bom assim, mãe. Ruim com ele, pior sem ele. Hoje em dia, não tá fácil
arranjar emprego, então qualquer coisa serve, nem que seja pra ganhar mi-
xaria. Pior, mãe, é roubar, é assaltar, virar ladrão!
- 89 -

GENÓ
Esse é meu filho de ouro! Saiu igualzinho a mãe. Honesto e trabalhador.

FILHO
Mãe, vai me servindo o café na mesa, enquanto me visto, troco de roupa!!

GENÓ
Tá certo. A mãe ficou mesmo pra servir. Dizem que uma mãe é pra cem
filhos e não cem filhos pruma mãe! Os que pensam assim estão forrados
de razões!! (Enquanto servia a mesa alguém batia na porta várias vezes). Bentinho... oh,
Bentinho, vai atender a porta!!... Oh, saco! Será possível que, nesse inferno,
não existe ninguém que possa ir ver quem é o excomungado que tá baten-
do na porta?...

FILHO
(Abotoando a braguilha). Eu vou! Deixa que eu vou, mãe... (Ao abrir a porta). É um
pobre, mãe. Tá pedindo esmola.

GENÓ
Tu deu?

FILHO
Não tenho trocado. Tudo ficou com a senhora. A senhora não tem um pra
emprestar?

GENÓ
Não tenho. Gastei tudo na feira, tu não viu? Agora tou na miséria de novo.
Sou uma desgraçada. Não tenho merda nenhuma.

FILHO
Ele tá pedindo farinha, mãe, alguma banana...

GENÓ
Não tenho droga nenhuma! Tu sabes muito bem que ninguém come fari-
nha nesta casa, muito menos banana ou açaí. Anda! Vem logo tomar teu ca-
fé antes que esfrie!

FILHO
Nem um pedaço de pão dormido?
- 90 -

GENÓ
Olha aqui, Bentinho... manda esse filho duma cadela pedir esmola na porta
das igrejas ou vou aí e arrebento com a cara dele. Pouca vergonha! Tá pen-
sando o quê? Que eu sou a “mãe do ano”? Sou não! Ora te enxerga, seu va-
gabundo!! (O mendigo saiu correndo apavorado com medo dela etc.).

FILHO
O pobre homem correu pra bem longe! Nem precisava exagerar, né mãe?
(Sentou-se à mesa).

GENÓ
Exagero uma pinoia, seu cachorro. Já não basta a vizinhança, agora me
aparece esse me pedindo as coisas. Eu hein! Nessa casa tudo é comigo. Se
não guardo troquinhos da feira, ninguém tem papel higiênico, sai todo
mundo do banheiro sem limpar o rabo.

FILHO
Realmente, isto é verdade.

GENÓ
Se quero as coisas, tenho que comprar, viu Bentinho, ninguém me dá nada.

FILHO
Isto também é verdade. Mas eu também ajudo um pouco.

GENÓ
Só um pouquinho assim. O resto é tudo eu. Toma um pouco de sopa de le-
gumes, joga farinha nela, faz pirão, enche tua barriga e vê se vai trabalhar
com mais força de vontade. Detesto homem dentro de casa, coçando o sa-
co! (Vai até a sala reparar na velha mãe). E a senhora?...

VELHA
Vai pro diabo que a carregue!

GENÓ
Ah, é assim? Não quer mastigar nada? Ande, mãe! Venha comer alguma
coisa! E vê se deixa um pouco pra mim, sua comilona! (A velha indignada se re-
tirou da mesa e foi para o quarto).
- 91 -

FILHO
Poxa, mãe. Né bandalheira. A vó não merece isso. Vou lá com ela. Vou levar
um copo de leite e esse picadinho com pão.

GENÓ
Vai! Entope a velha com porcaria. Vai puxa-saco duma figa! Qualquer dia,
ela estará te jogando praga como ela fez comigo. (Sentiu uma dor aguda no cora-
ção, cambaleou um pouco e sentou-se numa cadeira para respirar fundo). Ah, coração trai-
çoeiro! Coração ingrato, tais querendo me aprontar agora ou qualquer dia
desses. Bentinho, oh Bentinho, traz um copo d’água pra mim!!!

FILHO
(Trazendo uma garrafa plástica). Tome. Beba! O que houve? Outra vez a falta de ar?...

GENÓ
É! Tem vez que amanheço assim. Com o coração amarrotado pela má sorte.
Com o rabo atravessado de manhã cedo. Com minhocas na cabeça. E lou-
ca pra sair dessa, mas não consigo. Penso até mudar de lugar. Aí dou com
a cara no espelho da vida e vejo que não sou a única, nem serei a última a
curtir sofrimento no Brasil.

FILHO
Isso vai passar, mãe. É só uma crise. Todo mundo tá passando por isso.

GENÓ
Mas até quando?

FILHO
Bom, enquanto a senhora fica aí se remoendo com seus pensamentos, eu
vou à luta, vou batalhar pelo dia de amanhã. (Saiu porta afora por palafitas).

GENÓ
Vai com Deus, filho. Que Deus te acompanhe. (O marido passa por ela quase cor-
rendo, às pressas).

MARIDO
Também vou indo. Vou nessa.
- 92 -

GENÓ
Aonde vai? Será possível que nem com diarreia tu para em casa?

MARIDO
Pelo contrário, mulher, vou em busca de socorro num posto de saúde, por-
que já tou é urinando sangue pela bunda! Quanto mais arrocho o bicho,
mais.... mais frouxo fico. Oh, boca de azar é essa tua!

GENÓ
Boca de azar? Mas isso é muita cara de pau, mesmo! Vai morrer pra lá, dia-
bo, quem mandou tu encher a cara todo dia?! (O marido sumiu na esquina). É lari-
-lari desse vagabundo, a fim de não trabalhar, e ter o pretexto de sair daqui
pra ir beber com os amigos de farra. Esse cretino. Esse pudim de cachaça.
(Voltou pra cozinha). Por toda parte eles vão deixando bagunçado!...

CENA 4

(Genó vai entregar a roupa e faz recomendações à sua velha mãe).

GENÓ
Vou sair. Vou entregar essa roupa na casa da freguesa.

VELHA
Aonde pensa que vai? Vai me deixar sozinha, cuidando das coisas? Eu não
sou sua empregada!...

GENÓ
Vou aqui perto, na casa da vizinha levar essa roupa!!! (Gritou bem alto). E não
me demoro. Toma conta da casa. Não deixa ninguém entrar.

VELHA
Cala essa boca. Amanheci hoje com dor de cabeça, de tanto ouvir essa tua
matraca. Eu juro por essa luz que me alumia, que um dia anoiteço, mas não
amanheço. Quero que o bicho do fundo me leve embora daqui na espuma
da maré.
- 93 -

GENÓ
Já tá delirando de novo com essa história maluca? Procure rezar, procure
ocupar sua mente com coisa boa, não com coisa que não presta. (Saiu). Fecha
a porta. Mete a tranca na porta. (Sumiu nas palafitas).

VELHA
(De pé na porta). Tome cuidado com o bicho do fundo. A maré tá ficando alta,
vai invadir essas palafitas da Vila da Barca. (Com esforço, fechou a porta e foi reco-
locar o penico debaixo da rede atada na sala. Uma das vizinhas vem gritando lá fora).

DONA MOÇA
Comadre Genó... oh comadre Genó!...

VELHA
(Chegando na janela). Quem aqui tá com o rabo pegando fogo? Que gritaria é essa?

DONA MOÇA
Quero falar com a comadre Genó!

VELHA
Ah, é a dona Moça?! O que foi que disse?

DONA MOÇA
Por favor, dona Nina, me deixa entrar um pouco. Abra essa porta.

VELHA
(Abriu a porta). Pronto. A Genó não está. O que quer aqui? O que deseja?

DONA MOÇA
Eu? Eu... Eu só vim tomar uma cabeça de alho emprestado pra comadre
Genó... será que ela tem por aí?

VELHA
Mas entre, Dona Moça... vá entrando, sente aí. Enquanto vou ver a cabeça
do alho.

DONA MOÇA
(Faz cerimônia). Não precisa. Tá bom assim. Não vou me demorar. Só vim mes-
mo aqui por causa disso, senão, não estaria incomodando a comadre.
- 94 -

VELHA
E pra que a senhora quer a cabeça de alho? Pra botar no feijão, na carne?

DONA MOÇA
Também. Com o resto vou preparar um remédio de atração. É sempre bom
ter esse tipo de coisa dentro de casa. A gente nunca sabe quem tem “olho
gordo” na gente, olho de inveja ou de cobiça. (A velha demorou em achar). Escu-
te, dona Nina, ela tem ou não tem o alho?!

VELHA
Tem sim. Deus nos livre de faltar alho nesta casa, de repente, alguém pode
adoecer de pressão alta, aí se faz um remédio caseiro, um chá qualquer....

DONA MOÇA
Lá isto é! É o que sempre falo com o Mundico, mas o coitado saiu às pres-
sas, não me deixou nenhum trocadozinho pra comprar alho.

VELHA
Escute... o seu Mundico já está trabalhando? Aonde?

DONA MOÇA
De vigia. Guarda de portaria. Numa fábrica de cimento lá em Icoaraci. Faz
uns seis meses, eu acho.

VELHA
Que bom! Só o Alfredo que não arranja nada. Agora, as coisas vão melho-
rar pra senhora, graças a Deus, não é dona Moça?

DONA MOÇA
Já não era sem tempo, viu! Tem tempo que a gente se cansa de ser pobre, in-
da mais, morando num lugar desses, onde a maré na enchente traz a lama
e os detritos pra dentro de casa, fora as mortes, os acidentes que ocorrem!!

VELHA
(Gritou feliz). Achei!! Achei duas cabeças de alho! (Entregando-as pra ela).

DONA MOÇA
Puxa! Até que enfim! Desculpe em lhe dar trabalho, viu dona Nina. Pra
mim, só basta uma cabeça, a outra fica aí.
- 95 -

VELHA
Hein?

DONA MOÇA
(Gritou). A outra fica aí com a comadre!!

VELHA
Assim é bem melhor. Pra não faltar nem pra uma, nem pra outra. Ainda
bem que o seu Mundico teve sorte.

DONA MOÇA
“Sorte”? Sorte uma pinoia! Aquela merda nunca teve sorte com nada. É
claro que se não fosse eu a bem apouquentar a cabeça daquele deputado
ordinário, até hoje, estaria o Mundico na fila de espera. Molongó que nem
o meu Mundico, ainda estou por ver... ô homenzinho lento, até pra fazer
“aquilo” debaixo do lençol. Mas comigo, essa raça não bota banca, mas não
bota mesmo, vou lá e armo logo um barraco daqueles.

VELHA
Nossa. A senhora não nega fogo. Não perdoa mesmo.

DONA MOÇA
Perdoo nada! Não é na hora do voto que eles ficam batendo na porta da
gente, bajulando a gente, com conversa fiada, prometendo mundos e fun-
dos? Então. A gente tem que correr atrás deles, cobrando deles a palavra
empenhada. (A velha lhe serviu um cafezinho da garrafa térmica).

VELHA
Vamos tomar um cafezinho pra molhar a goela? Sirva-se, por favor! A gos-
to, e veja a torrada. Está uma delícia.

DONA MOÇA
Obrigada! Nunca a comadre Genó me serviu tão bem quanto a senhora!

VELHA
Não esquenta a cabeça. A Genó vive preocupada, estressada, coitada, com
as dívidas a pagar! Mas não repare a quantidade de alho, só tinham essas
duas pra remédio, então, tive que dividir com a senhora.
- 96 -

DONA MOÇA
Cavalo dado não se olha o rabo, já dizia a minha vó. Não sei como lhe agra-
decer.

VELHA
Quer mais café? Mais torrada? (A outra falou com a boca cheia).

DONA MOÇA
Chega. Pra mim,chega. Tá bom, tá bom, dona Nina.

VELHA
Converse um pouco comigo. Nesta casa ninguém conversa comigo. Eles
acham que sou uma tonta, surda e cega, às vezes, tenho que fingir, pra po-
der observar melhor o comportamento deles.

DONA MOÇA
Mas nós duas não estamos conversando? Só que não posso me demorar
por mais tempo, pois deixei a lesa da minha irmã cuidando das crianças,
lá em casa!! E se eu não tiver de “olho” nelas, será um suplício, elas vão
acabar caindo nas pontes, vão acabar caindo nas águas barrentas da maré,
Deus me livre!

VELHA
Como vai a criança? Ficou boa da coceira?

DONA MOÇA
(Reparou na janela primeiro, espiando lá fora). Ficou, viu, ficou. Graças o remédio
que a senhora ensinou: salsa do mato na forma de banho, dando mastruz
com leite, em jejum para purificar o sangue, melhorar o intestino, limpar a
pele... (Voltou para ela). Dona Nina, foi um santo remédio, um milagre, sumiu
tudo do couro da menina, coceira, ferida, caspa, até aquela assadura nas
virilhas.

VELHA
Não falei? E aquele que se parece com filho de boto? O Tonico?

DONA MOÇA
O quê?! Quem disse isso que o menino é filho de boto? A senhora tá que-
rendo tirar sarro com a minha cara? Tinha até graça! O menino nasceu sa-
- 97 -

dio e é filho legítimo do meu Mundico. Assim a senhora me ofende cha-


mando o meu marido de “cabeça de boi”.

VELHA
(Sorriu, com gracejo). Não esquente, mulher. Só tava tirando uma prosa com a
senhora. Mas tome cuidado com ele. Aquele menino é muito travesso. Eu
já vi ele se atirando da ponte e nadar nas águas feito um peixe, um bicho
do fundo.

DONA MOÇA
Que bicho do fundo nada! Que coisa! São coisas de criança. Criancice de
moleque. O Tonico é um garoto esperto e normal. (E foi espiar na porta a menina
correndo na ponte).

VELHA
Mas o que é que a dona Moça tanto espia aí na porta?...

DONA MOÇA
Espie só... venha ver!

VELHA
(Indo até ela com dificuldade). Hein? Não tou vendo nada! Tou quase cega.

DONA MOÇA
(Aos gritos, apavorada). Maria... ô Maria... Mariaaa!!! Olha essa menina corren-
do pela ponte!... Toma cuidado com essa menina, sua lesa!...

VELHA
Fique calma. Não há de ser nada. Deus e os anjos protegem as criancinhas.

DONA MOÇA
Acho que já tou indo... antes que aconteça uma tragédia em casa.

VELHA
Fique mais um pouco. Que coisa!

DONA MOÇA
Não posso. Tou é agoniada com aquela menina solta na rua.
- 98 -

VELHA
A gente quase não se vê, tem mais é que colocar o papo em dias.

DONA MOÇA
Magina! Até parece que eu não tenho o que fazer! Quando o Mundico che-
gar... quer encontrar almoço pronto, água no banheiro, roupa lavada e pas-
sada, caso contrário, ele me mata, acaba comigo. Fica me arrasando, me
dando macho nesta Vila da Barca. Já pensou em minha Carolina morta, car-
regada pela correnteza das águas!

VELHA
Credo! Que horror! Vira essa boca pra lá. Nem pensa numa desgraça dessa.

DONA MOÇA
É porque a senhora não conhece direito a minha Carolina. A menina é mui-
to irrequieta, sapeca que só vendo, não dá pra gente se confiar não. Olha,
dona Nina... a água invadindo as brechas do assoalho.

VELHA
Ah! São as águas de março. Já estou até acostumada com isso, com esse ti-
po de enchente.

DONA MOÇA
Mas até quando?

VELHA
Quando a gente criar vergonha na cara, criar coragem pra mudar de casa e
de lugar, sair daqui desta Vila da Barca e ir morar num lugar mais decen-
te, sem esse aguaceiro, sem essa lama, sem esse fedor que vem das valas e
dos esgotos entupidos. Mas me ajude aqui, dona Moça, a suspender essas
tralhas.

DONA MOÇA
Nossa Senhora de Nazaré, nos velai! Isto deve ser a ira de Deus sobre nós!!
Só pode ser, não tem outra explicação. Olhe! Veja pelo buraco do assoalho:
a imundice que a correnteza vem trazendo pra debaixo da cama!

VELHA
E cadê os políticos, os politiqueiros que não veem isso?
- 99 -

DONA MOÇA
A senhora tem razão. Isto aqui, este lugar, e mais essa pinoia desses barra-
cos velhos, montados por sobre essas palafitas, nunca foi, nem nunca será
lugar decente pra gente morar. Bom! Agora tou indo pra casa de verdade,
viu dona Nina. Já cumpri a minha etapa de contribuição...

VELHA
Obrigado por tudo! E Genó que não chega! Eu já tou agoniada com tanta
demora. Fico preocupada com ela.

DONA MOÇA
E ela nem se preocupa com a senhora, deixando-a aí sozinha, coitada! Pa-
rece que a senhora não existe na vida dela.

VELHA
Deixe de exagero. Eu não vejo motivo da senhora falar mal da minha filha.
A senhora já não tá levando a cabeça de alho que queria?... Deixa de ser lin-
guaruda, mal agradecida. (Fechou a porta atrás de si).

CENA 5

(Dona Moça se encontra com as comadres conversando no meio da ponte e os homens que es-
tão bebericando no boteco).

GENÓ
Da onde tá vindo?

DONA MOÇA
Da sua casa comadre. A coitada da dona Nina está agoniada, preocupada
com a senhora e com as águas da maré alta!

GENÓ
Ah, aquela ali é uma chata, um trambolho na minha vida!

MADALENA
Pois é, comadre Genó, o papo tá gostoso, mas vou chegando. Apareça lá
em casa pra tomar um cafezinho com tapioca.
- 100 -

GENÓ
E a senhora também vai lá em casa comer uns pedaços de bolo de macaxeira!

MADALENA
Tá certo. Olha que vou mesmo!

DONA MOÇA
Ela vai cuspir no chão. (A sós com Genó). Toma cuidado com essa daí, com es-
sa cascavel. Não fique jogando conversa fora com essa mulherzinha. (Sumiu).

MADALENA
(Em foco individual). Pois sim! Bolo de macaxeira, é? Aquilo lá parecia um bolo
duro, pedrado, sem muita manteiga, com a massa crua!

GENÓ
Da última vez que provei da tapioca e o café dela cheio de borra, me deu foi
uma dor de barriga, uma diarreia. Nossa! Chega fiquei toda assada.

JULIÃO
(Bebum, escorado no boteco). Parece que essas mulheres daqui não têm o que fa-
zer, de vez em quando elas passam, param aí, no meio da ponte e conver-
sam só besteira.

LAMBARI
Essas daí então, volta e meia, vira e mexe, patati, patata, pororó, o assunto
delas é o chifre que elas botam no marido.

SAPARU
Com cerveja! E bem aí nas fuças dos caras, de toda população da Vila da
Barca, na maior cara de pau. E sabem com quem? O Pajé aí sabe...

PAJÉ
Eu? Tais é doido! Eu só enxergo o cara de longe, mas não me dou com ele...
não levo papo com o cara, ele próprio pinta aí no pedaço mas é só a noite.

SAPARU
O cara tem uma pinta. Só anda nos trinques. É cheio de revestrés, frescura.
- 101 -

PAJÉ
Esse cara é um nó cego, só porque o cara é educado já acha que é um baito-
la, mas o cara tem passe-livre pra entrar nessa Vila da Barca, no peito e na
marra, ninguém tem coragem de peitar o cara.

JULIÃO
Diz-que ele é o próprio boto que vem das águas de Aruanda, que vem lá
das profundezas da encantaria.

LAMBARI
E tu, já, acreditasse nisso? Ora! Isso é história pra boi dormir. Lenda não
existe.

JULIÃO
Existe sim, Lambari. Aqui mesmo, nessa Vila da Barca, vem correndo frouxo
essa história, numa naice, com as mulheres se tornando cada vez mais ad-
miradoras desse cara. Sobra pra nós homens uma coisa: apenas um consolo.

SAPARU
Que consolo? O de chifrudo? Corno manso?

PAJÉ
Triste consolo, sem dúvida. Vila da Barca, com certeza, é a baixada mais co-
biçada e incestada por todo esse mistério, cara. Né não? Por via dessa nos-
sa abestalhação vamos ficar de mutuca no cara, assim que anoitecer. Topa?
(Eles respondem que sim). Tá legal. Vamos bater no cara quando pintar aí na Vila.

LAMBARI
Toma-te! Quero ver se o cara não passa apenas de lari-lari. Eu continuo não
acreditando em lendas. Mas, pago pra ver uma. Querem apostar? Uma
derrama de cerveja!

TODOS
Combinado!... Tá na mão!... Fechado negócio!...

(Cai a noite. Há mudança no cenário e no plano de ação da cena. Somente as janelas dos barra-
cos continuam com a luz acesa, lá fora, lençóis fedorentos e encardidos dependurados por toda
parte fazem o mistério da noite).
- 102 -

MARIDO
(Ao atravessar a sala, porre). Tá que tá um breu lá fora. Parece um apagão na Vi-
la. Vou tomar banho. Depois pago o rango.

FILHO
Escuta pai: quanto ficou o jogo? (Sentou-se à mesa para jantar).

MARIDO
3x0 pro Paissandu, eu acho.

FILHO
Toma-te! Ganhei a aposta lá no serviço. O Sampaio se ferrou.

GENÓ
Vai, vai, vai tomar teu banho. Já te disse: com gente fedida não me deito!
(À Nina que aparece na porta segurando um rádio portátil). E a senhora? Não vem jan-
tar, não? Fique a senhora sabendo que não sou sua ama-seca, não, pra dar
papinha na boca. Magina!

VELHA
Bentinho... oh, Bentinho, meu filho, aonde é que desliga esse porcalhão
aqui?

FILHO
Aqui, ó, apenas nesse botão, tá vendo vó? Liga e desliga.

VELHA
Eu queria tanto ouvir o programa do Jacy Duarte... o “Baú da Saudade”.
Sabe Bentinho? Me dá muita saudade dessa gente que fazia um bom radio
em Belém!

FILHO
Ih, vó! Agora os tempos são outros. Surgem nova onda, novas músicas, no-
vas curtições. Manjou?

GENÓ
Venha jantar um pouco. Sente aí nessa cadeira. Deixe de trololó. Entupa
sua boca de pirão, anda!
- 103 -

VELHA
Oh, Deus! Converse comigo direito.

GENÓ
E o que é que estou fazendo?... Ande, come logo! E vê se deixa um pouco
pra mim! (A velha se retirou da mesa indignada e foi chorar na sala na rede).

FILHO
Oh, mãe! Coitada da vó! Isto não é coisa que se faça. Tenha mais respeito e
consideração por ela! Afinal de contas, né...

GENÓ
Cala essa boca! Essa velha come feito uma disgramada, vira e mexe, ela es-
tá mexendo nas panelas. Parece que vive morta-fome. (Vai até ela). Desculpa.
Tou lhe pedindo desculpas, viu sua velha rabugenta!!! (Gritou bem alto).

FILHO
A vó não merece isso. Vou lá falar com ela.

GENÓ
Não adianta. Ela é que nem jumento quando empaca, não tem jeito de tirar
ele do lugar. Já tou acostumada a lidar com ela, com suas manias... Bom se-
ria interná-la num desses asilos de velhos que tem na cidade.

FILHO
Nem pensar. Nem pensar. Não vou deixar que isso aconteça com ela. Afi-
nal de contas, a senhora recebe sua aposentadoria e pra quê?

GENÓ
(Dando tabefes nos ombros dele). Puxa-saco! Por que não se amiga com ela?

FILHO
Quê que isso, mãe! Tá ficando doida?

GENÓ
Ah! Tou de cabeça quente. Essa velha consegue me irritar sabia? Com es-
se arzinho de sonsa, toda santificada, ela vai me infernizando, desde o co-
meço da minha mocidade. Deus sabe o quanto sofri na mãe dela. Mas, eu
também aprontava pra cima dela, eu e mais duas coleguinhas de infância.
- 104 -

Bom, deixa pra lá... É melhor esquecer os tristes episódios da minha vida,
já que nunca tive sorte com nada, mesmo! Não vê a família que mereci tê-
-la na droga dessa vida?...

(Noutro plano de ação, surge um moço fazendo indagações na Vila da Barca).

CENA 6

(O moço bonito e os homens do boteco).

RAPAZ
(Surgindo das sombras). Boa noite, amigos.

TODOS
(Intercalados, assustados). Boa...

PAJÉ
Vixe! Égua, cara, bem da onde tu surgiu, assim, de repente?!

RAPAZ
(Consultou o relógio de pulso). Desculpe pelo susto que preguei... a modo desse
jeito e por essa escuridão que me ofusca os olhos! Não era a minha inten-
ção. Mas vim de longe, vim de perto, vim de barco no remanso da maré.

PAJÉ
Bem da onde? De que lugar?

RAPAZ
De Aruanda. Conhece?

PAJÉ
Nunca ouvi falar.

SAPARU
Nem eu! (Aos cochichos com o Lambari). Será que esse cara tá querendo nos gam-
belar?

LAMBARI
Talvez, sei não, sei lá. Parece inofensivo.
- 105 -

RAPAZ
Mas, podem me mostrar o caminho principal da Vila, isto é, caso não lhes
traga nenhum transtorno com isso?

LAMBARI
Pois não. Vai por ali... no rumo da venta, onde o vento faz a curva, depois
dobra a direita, logo à frente tem um caminho estreito, onde se vê uma ja-
queira velha, caindo aos pedaços, aí, a um passo adiante o moço vai se de-
parar com... Mas escuta aqui: pra onde o moço tá querendo ir mesmo?

SAPARU
Tá procurando alguém? Ou tá na paquera, dando em cima de alguma mo-
ça virgem, todo arrumadinho desse jeito?

PAJÉ
Só pode ser. Vai sacudir a carcaça numa festa, é cara? Vai esnobar com rou-
pinha de grife. Olhaqui, se tu bobear, mermão, tu já viu. Os caras são capaz
de enfiar uma lâmina, uma faca na tua barriga.

RAPAZ
Pouco provável que eu veja a morte e o diabo juntos, mas nem isso me as-
susta. Agora me deixem ir embora, já passam das onze e meia, tenho que
cumprir uma missão.

JULIÃO
Cuidado, então, meu bom rapaz! Olhe: qualquer coisa, fique com a pulga
atrás da orelha, grite, bote o pé na carreira, caso alguém queira fazer algu-
ma cilada... inda mais, aí pra dentro da Vila.

RAPAZ
(Sumiu). Não se preocupem comigo. Coragem aqui é mato. Tenho de sobra.

JULIÃO
Vou te contar. Esse rapaz tem muita coragem mesmo! Um sujeito com
aquela presença toda, lá pra dentro da Vila da Barca, tem que ser filho de
homem, e homem macho!
- 106 -

PAJÉ
Amanhã o cara vai incrementar os boatos da Vila, vamos ficar sabendo se
ele se escafedeu por aí, se virou presunto lá praquelas bandas dacolá e da-
qui e gente leva longe, espalha logo a notícia...

LAMBARI
Enquanto isso, a gente fica aqui de mutuca na mira do “moço bonito” que
a gente desconfia ser o tal de boto. No lance dele, que adora macaquear o
bicho enrabador da mulher dos outros, a gente saca do berro e mete a bala!

SAPARU
Diz que só mata o bicho, se for com bala de prata e assim mesmo no meio
da cabeça dele, onde tem um nó encoberto pelo chapéu.

PAJÉ
Puta merda. Onde achar, então essa bala de prata? Acho que a turma tá
bancando otária. Acho que não vai rolar nada disso aqui. Porque ninguém,
nem eu, nem tu, nem tu também, é capaz de inventar uma bala de prata
pra matar a lenda do boto.

LAMBARI
Tem razão, Pajé. (Bocejou). E eis que pinta o sono. Vou é botar meu corpo pra
dormir. Vamos nessa? (Sumiu no breu que a noite fazia).

JULIÃO
Também vou nessa. (Todos fazem a mesma coisa).

SAPARU
(Comentou pela última vez). Sabe o que tou pensando, cara? Se o cara que papeou
com a gente, aquele “gente fina, gente boa”, for de verdade o tal façanhudo
e passou por nós de mansinho, numa boa, sem dar nenhuma pista de que
era o dito cujo!

PAJÉ
Meu irmão, tu já viu a cagada pra cima da gente amanhã! Melhor calar o
bico. Não comentar nada. Como é que a gente vai provar? (Enquanto isso, na
casa de Genó ocorria a cena seguinte, durante o sono do marido bebum).
- 107 -

GENÓ
Eu já esperava por você, meu belo rapaz!

RAPAZ
Ande, pois, com isso. Estou apressado! Tenho que atender as outras um
pouco, três por noite e uma de cada vez, durante a lua cheia.

GENÓ
Só tu me acalma e preenche a minha alma. Me completa. Então soubeste
dos outros que te espreitavam, à tua procura na boca do caminho?

RAPAZ
Passei por eles. Eu enxergo longe, eu adivinho tudo. E se disser que por
isso eles ficarão na panemice do mar e dos maridos cornudos, acreditas?
Nunca mais farão uma boa pescaria e nem terão tesão algum, enquanto eu
mundiar essa área apenas por pouco tempo.

GENÓ
É o castigo que merecem.

RAPAZ
Depois desato a prenda. Aí, voltarão a ser como eram antes, homens nor-
mais, sem duvidar das coisas, dos bichos do fundo.

GENÓ
Então é verdade: as folhas secas que me deixaste ontem como se fosse di-
nheiro, é como paga de outras visitas. Tu és, na verdade, o boto que me as-
sanha a paixão com seus ardidos beijos, o meu homem amado, o marujo do
mar, o senhor das águas.

RAPAZ
Sim! Uma condição estabeleço: esta será a última visita que faço a você por
causa das outras.

GENÓ
Que tristeza! Será uma pena!
- 108 -

RAPAZ
Se por extravagância ficares aborrecida e me reclamares na cama, aí, não
tocarás no meu nome, pois ninguém vai acreditar nessa história, passarás
por louca ou leviana. Mas, se concordar com o meu silêncio, com a minha
ausência, terás paz e tranquilidade, em lugar de parir um filho meu.

(A luz cai no cenário durante o coito. É final de espetáculo. Porém, a cena do boto se repete com
Dona Moça, Madalena e Maria que é jovem e fica grávida dele).

(Vozes em off).

Maria, minha filha, quem foi que te engravidou?


Foi o boto, madrinha, que à beira-mar domina!!...

FIM DO ESPETÁCULO
CRET INAS
E DIVINAS
- 110 -

Cretinas e divinas
Espetáculo Musical Rotativo - 2003

CENA 1

(Mostra dois transformistas no camarim, diante do espelho, se preparando para o show musical).

ANABELA
Clarabela... hoje, você vai dublar quem?

CLARABELA
Vou de Marlene e Emilinha... e você Anabela?

ANABELA
Vou de Dalva e Ângela. Pra mim, é uma glória. É sempre uma emoção reno-
vada. Nossa. Adoro as duas. São minhas cantoras prediletas pro meu show.

CLARABELA
Com uma condição, queridinha. Amanhã e nos dias seguintes, nós duas
vamos mudando o roteiro, vamos parodiando outras cantoras, outros ar-
tistas, tudo dentro do mesmo esquema de show musical misturado com sá-
tira. Combinado assim?

ANABELA
Combinado. Pra mim, tá porreta, inclusive a gente pode incluir em nosso
show alguma atração a mais, por exemplo, um artista convidado, assim te-
remos a chance de mostrar e dividir o palco com outros novos talentos, ora
desconhecidos do público. Concordas?

CLARABELA
Claro que concordo. É uma excelente ideia. Uma brilhante ideia.

ANABELA
Aposto que o público vai adorar. Aliás, o público só tem a ganhar com is-
so. Quem vai perder somos nós duas, porque vamos ter que dividir o ca-
chê com eles.
- 111 -

CLARABELA
Não importa. O importante é mostrar novidades. É a melhor prova de que
os talentos existem por aí.

ANABELA
Ah: e por falar nisso, você sabe quem ganhou aquele concurso do Gari Pelado?

CLARABELA
Como vou saber se a mona não estava lá? Pena que eu estava arreadona
com uma gripe doida. Gripada, muito gripadinha, dengosa que só ela. Mas
me contaram que foi um desbunde e que toda bicharada tava lá dando em
cima do bofe que ganhou o concurso de pinto grande. Diz-que foi uma zor-
ra total. Mas conta pra mim quem ganhou o concurso? (Não obteve resposta).
Fala, criatura de Deus! Não me deixe assim aflita.

ANABELA
Pois bem. Quem ganhou...

CLARABELA
(Citar nome local). Foi o Nonato? O amante da velha Hilda?

ANABELA
Magina! Fui eu.

CLARABELA
O quê? Você? Como assim? Eu nunca soube que você era gari e muito me-
nos de pinto grande. O que eu acho de você Anabela, é que você é um
transformista, um artista da noite, agora achar que...

ANABELA
Eu explico, coisinha do pai. Eu tava precisando de uma grana preta, aí pas-
sei a perna no concurso, fingi que era um gari e passei a varrer uma rua e
mais outras, mas tudo de mentirinha, apoiado por um bofe lindérrimo lá
da prefeitura. Aí, ele me indicou pro concurso por achar que eu...

CLARABELA
Isto quer dizer que você Anabela é hermafrodita ou uma hermafodinha?
- 112 -

ANABELA
Que você acha?

CLARABELA
Eu não acho nada. Só vendo. Curiosidade à parte, dá pra você mostrar pra
mim o seu segredão, em vez de segredinho? Nunca vi coisa com coisa. Sério.

ANABELA
(Exibiu sem a plateia perceber). Veja com seus próprios olhos...

CLARABELA
Anabela! Nossa mãe. Então é isso aí? Parece coisa de filme pornô. Menina!
Isso é um fenômeno, mais do que Ronaldinho. Bota toda galera no bolso.

ANABELA
Menos! Menos!

CLARABELA
Verdade, santa. Com essas duas coisas aí nas entranhas o seu show poderia
valer mais ou menos.

ANABELA
Quanto?

CLARABELA
Faz um cálculo.

ANABELA
Uns duzentos reais?

CLARABELA
Tá vendo, queridinha? Eis aí teu problema. Você não sabe se dar valor, nem
sabe negociar seu próprio negócio. Magina! Eu, com isso aí em duplicata,
tava nas manchetes dos jornais do mundo inteiro. Tava na crista da onda.
Tava no cinema, tava nas revistas da televisão e do rádio... enfim, tava na
boca do povão e não escondidinha como você está aqui fazendo show, cor-
rendo atrás dum cachê mixuruca. Pois sim! Eu seria uma estrela maior! Di-
ferente das outras por aí que são estrelinhas de macarrão.
- 113 -

ANABELA
Tá certo. Mas prefiro o anonimato ao estrelato. Depois da fama, a gen-
te acaba na solidão e sozinhas. Ainda bem que somos duas bregachiques
charlando carisma por aí afora. Abrilhando as noites de Belém com plu-
mas, paetês e lantejoulas. Ajeita isso nas minhas costas. Parece muito aper-
tado em meu corpinho.

CLARABELA
Fresca. Nunca vi coisa igual. Eu com isso não tava numa penúria. Duvido.
Tava era ganhando muito dinheiro desses gringos que pintam no pedaço.

ANABELA
Ta louca? Isso, pra mim, é prostituição. Mas, apesar de tudo, eu sou um ar-
tista. Francamente, Clarabela, eu queria ser outra coisa na vida, menos is-
so: uma aberração da natureza, uma ridícula, que me incomoda e me deixa
frustrada até hoje. Né sacanagem.

CLARABELA
Então faz plástica. Joga essa porra fora, já que isso te atrapalha.

ANABELA
Não tenho coragem. Posso ficar atrofiada como a maioria. E, às vezes, sabe
como é, somando esforços, arrastando uma cachorrinha daquelas pra mul-
tiplicar o ganha-pão da gente, prefiro continuar com a nossa dupla. Fale
quem quiser, as despeitadas podem chiar à vontade, mas uma coisa é mais
do que certa: estamos no salto alto, a gente pode até perder o glamour, tu-
do bem. Mas mostra pra essa turma jovem que nós duas veteranas ainda
somos elegantes, finérrimas e mais do que isso - fresquíssimas.

CLARABELA
Bota frescura nisso! Agora me abotoa aqui atrás, Anabela. Você acha que
estou lindona? Que vou arrasar hoje?

ANABELA
Sempre. Sempre você tá linda. Sempre você arrasa, querida.

CLARABELA
Ainda bem que nós duas somos a tampa e o penico. Você também é divina.
- 114 -

CENA 2

(Nesse instante, a harmonia das duas estrelas, é sacudida pela presença da camareira, uma ve-
lha manca, usando óculos).

WALDA
Ei, suas duas lacraias, suas duas caceteiras, aqui estão os brincos, os sapa-
tos, as roupas e os penachos de vocês.

CLARABELA
Da próxima vez, queira se anunciar batendo na porta, nunca entre aqui co-
mo se estivesse na casa da sogra, tá ouvindo, dona Walda?...

ANABELA
E tenha por nós artistas um pouco de respeito, sim. Não nos faça descer do
salto e tacar a mão na sua cara deslambida.

WALDA
Desculpa. Tava só brincando. Não precisa tanta violência. Já basta a dro-
ga dessa guerra lá fora matando, esfolando tanta gente inocente. Eu só ta-
va querendo ser simpática a vocês duas. Mas, já que vocês duas são cheias
de frescuras, e não querem intimidades comigo, tudo bem, já não está mais
aqui quem falou.

ANABELA
Ainda bem que a senhora entendeu perfeitamente.

CLARABELA
E tem mais, queridinha: complete seu serviço, pendure as coisas, aí nos ca-
bides, e só volte aqui para nos avisar da hora que o show vai começar.

WALDA
Ingratas. É só pra isso que sirvo. Depois, eu sei da minha obrigação. Não
precisa me lembrar. Pra isso, fui treinada e sou remunerada, posso não ga-
nhar um salário condigno pra servir de besta, ama-seca de vocês, que pas-
sam por aqui fazendo espetáculos neste teatro, mas dá pra ir aguentando
tanta frescura, tanta palhaçada de vocês, suas bichinhas encubadas.
- 115 -

ANABELA
É mesmo? Agora a senhora ta falando que nem a “Velha Hilda” daquele
teatro Waldemar Henrique.

WALDA
Vai ver que eu tenho algum parentesco com ela – que Deus a tenha em bom
lugar – mas fora deste planeta.

ANABELA
Mas na hora de “molhar” sua mão com alguma graninha por fora, uma ex-
tra, a senhora cai de elogios em cima da gente. Fica bajulando todo mundo.

WALDA
Ah, minha filha... quem não chora, não mama, fica chupando dedo. Ou vo-
cês acham que eu sou alguma pateta, que eu não manjo das coisas, que eu
não enxergo nada, nem percebo nada? Enquanto vocês ficam por aí esban-
jando grana, fazendo derramas com gente da esbórnia e baderna.

CLARABELA
Taí. Tou gostando de ver sua transparência e de ouvir sua falação objetiva,
ali na bucha, na cara, na lata, sem arrodeios. Ela me parece uma senhora, na
verdade, bem educada, bem intencionada, você não acha, Anabela? (Piscou).

ANABELA
Acho sim. Educadíssima. Até mudei de ideia a respeito da probrezinha.
Desculpa, amoreco. Mas pra mim, ou melhor, pra nós duas aqui... você, do-
na Walda... Waldinha do nosso coração, como eu diria... você pra nós é una
persona mui non grata.

WALDA
E o que quer dizer isso?

CLARABELA
Isto significa que você é generosa, prestativa, é gente fina, gente boa, uma
criatura linda, tanto por dentro quanto por fora.
- 116 -

WALDA
(Chorou). Pára, coisinha do pai, pára. Nossa, fico tão emocionada quando al-
guém reconhece meus serviços. Logo fico que nem manteiga derretida. Me
despenco em chororô.

ANABELA
Então, não se derreta tanto, senão o chão vai ficar lambuzado e não há se-
quer papel higiênico no banheiro pra limpar o fiofó quanto mais os seus
olhos sujos de remela.

WALDA
Jura? (Olhou-se no espelho).

ANABELA
Juro pela fé da mocura. Vá também reparar lá no banheiro.

CLARABELA
Toma cuidado, viu sua mocréia. Emprego não tá fácil pra ninguém. Daqui
a algum tempo, o tal administrador desta espeluncas aqui, vai te mandar
embora. Isto significa, meu amorrr... que você tem que tomar cuidado nos
seus serviços e não ficar xeretando vida de quem passa ou deixou de pas-
sar por aqui.

ANABELA
Isso é muito feio.

WALDA
Eu também acho. Mas o que fazer? Sou assim mesmo, extrovertida, diver-
tida e mexeriqueira que nem a finada. Entendeu, gracinha? (Desligou o rádio
portátil). Peraí, deixa eu desligar esse porcalhão... Olha aqui, Clarabela, toca
aqui no meu peito...

CLARABELA
Nossa. O coração da mocréia parece que vai sair pela boca.

WALDA
(Vai saindo). E vai sair mesmo, se vocês continuarem me dando tarefas. Chega
por hoje. Amanhã será outro dia.
- 117 -

ANABELA
Não, senhora. Negativo. A senhora ainda não nos trouxe as sandálias de pra-
ta e a peruca loira, que mandamos consertar as corrêas, e escovar os cabelos.

WALDA
Ah! Depois eu “coiso”, afinal de contas, como se sabe, vocês ainda têm
show por toda esta semana, então, quando eu “coisar” as corrêas das san-
dálias e dá uma escovadela na peruca loura, vou trazer pra cá pro camarim.

CLARABELA
Merci bocu mon na mi.

WALDA
(Voltando). O que foi que disse?

CLARABELA
Eu disse em francês “Obrigada, minha amiga”.

WALDA
(Saiu, aos prantos). Até tu Brutus, quer acabar, arrasar com a Walda? Assim
meu coração não aguenta. (Sumiu no corredor).

ANABELA
Oh, mulherzinha chata. Viram só? Igualzinha a outra.

CLARABELA
Claro que a outra existiu por aí. Aí, basta também que os outros esquentas-
sem com os neurônios dela. Nossa. O mundo vinha abaixo com uma chu-
va de palavrões e tudo. Mas era também um doce de criatura. Mas, infe-
lizmente, tudo passa, nós também um dia vamos passar e cair no esqueci-
mento, até surgir uma nova revelação, uma nova atração na cidade.

CENA 3

(Nesse momento, em vez da camareira, o contra-regra vem avisar que o show, daqui a pouco,
vai começar).
- 118 -

RAPAZ
(Jovem, com gracejo). Não sei se vocês já perceberam na parede o relógio de
plástico, mas fui eu, que comprei no marreteiro, faltam... cinco... cinco mi-
nutinhos pra vocês duas aí sacudirem a franga com seu talento e brilho.

CLARABELA
(Passando-lhe a mão boba). Só tá faltando você pintinho, no meu terreiro.

RAPAZ
Pera, cara... Cai fora. Tô falando sério. Tenho a mais absoluta certeza de
que hoje começa uma nova temporada de sucesso e com isso vai melhorar
o cachê de todos. A casa tá lotada. Isto é uma prova de que o paraense vem
prestigiando, gostando daquilo que a gente faz no teatro.

ANABELA
Tá todo mundo aí... o pessoal da técnica?

RAPAZ
Tá. Todos a postos. Vamos nessa. Vou tocar a última chamada. (Saiu). “Mer-
da” pra vocês. Botem quente nesse caralho.

CLARABELA
Merda pra você Anabela.

ANABELA
Merda pra você também Clarabela. Menina, tô tão nervosa.

CLARABELA
E eu tô sentido aquele friozinho na barriga.

ANABELA
Tipo aquele que a Claudinha Raia sente antes de pisar no palco? Então, é
bom, é benéfico. Só as grandes estrelas sentem isso. (Ouvem-se a campainha pela
última vez e, logo a seguir, a voz o Animador que anuncia).

ANIMADOR
(Com voz de locutor de rádio). E agora senhores e senhoras, meus amigos e mi-
nhas amigas, distinta plateia, hoje, esta casa de espetáculos tem a honra de
- 119 -

prestigiar seus admiradores anunciando-lhes um grande show de dubla-


gem da dupla.

ANABELA / CLARABELA
... numa paródia musical, em homenagem às grandes cantoras do rádio. Por-
tanto, vem aí para vocês, a dupla mais festejada, mais prestigiada deste país...
vem aí... Ângela Maria, Dalva de Oliveira... Marlene, Emilinha Borba...

(E assim sucessivamente as músicas respectivas, em conexão com os textos-letras, que denotam


uma espécie de duelo musical romântico ou carnavalesco ou lírica, conforme a cantora ou o can-
tor a ser homenageados, a cada temporada, tornando-se um espetáculo permanente e itineran-
te, rotativo, utilizando dois palcos móveis, em um, para shows. Sendo o primeiro, um camarim
montado; o segundo, uma escadaria prateada, espelhada, com motivos tropicália, bem Brasil).

ANIMADOR
(Após o final). Assim, encerramos as cortinas do nosso teatro, por hoje, e reno-
vamos convite para o show-espetáculo amanhã, com novas atrações e con-
vidados especiais. Muita gente especulando, na maior expectativa, quem
será a nova atração de amanhã? Será um transformista? Um cantor, uma
cantora?? Ou um ator-bailarino? Ou algum artista de circo?... Afinal de
contas, basta ligar pra este teatro e entrar em contato com a nossa produ-
ção. Combinado? Boa noite. Boa noite a todos. Tchau. (A voz do Animador some
em meio ao prefixo musical do show).

FIM DO ESPETÁCULO
CADEIRA
VAZIA
- 121 -

Cadeira vazia
Drama Social - 2003

PERSONAGENS
Mãe
Filho
Deolinda

CENÁRIO
Palco italiano. Mostrando um simples e pobre barraco numa periferia de Belém ou
de outra localidade brasileira etc.

TEXTO
Narra a história de um filho que, após vinte anos ausente de casa, retorna ao conví-
vio familiar. Porém, encontra a mãe doente e cega dependendo da caridade e soli-
dariedade de alguém, inclusive, da ajuda da sua predileta comadre Deolinda. Atra-
vés dessa dramática história, ocorre o arrependimento do filho que era viciado em
drogas e o resgate social da sua vida diante do mundo, humanamente capaz e pos-
sível de superar suas crises. O espetáculo tem na linguagem coloquial a audiência
imediata, a cumplicidade e a empatia da plateia.

CENA 1

(Mostra uma senhora sentada no cantinho na sala, numa cadeira de embalo, em silêncio, numa
penumbra. A comadre ajeita as coisas no seu devido lugar. Vai sair por alguns minutos, passa
por ela e pergunta).

DEOLINDA
Comadre Arminda... quer que eu acenda a luz? Já tá escurecendo.

MÃE
Aguarde mais um pouco. Eu preciso disso, dessa penumbra pra poder des-
cansar os olhos. A luz muito pesada ofusca-me o que sobra da visão, um
tiquinho só.
- 122 -

DEOLINDA
Tá bom, mea mana, tá bom... Vou lhe deixar aí sossegada um instantinho!!

MÃE
Aonde vai, comadre Deolinda?...

DEOLINDA
E eu não vú ter que ir lá em casa fazer sua janta?

MÃE
Ah, sim! Desculpe. Já tinha me esquecido. Então, pode ir comadre...

DEOLINDA
Vú deixar a porta escorada, qualquer cuisa grite, bote a buca no tromboni.
(E saiu em seguida. De repente, alguém bate palmas na porta se fazendo anunciar).

FILHO
Ô de casa! Posso entrar?... (A mãe reconhece a voz do filho que chega).

MÃE
Parece a voz do Júlio! Quem está aí fora? É você Júlio?!

FILHO
Sou eu sim, mãe!!! (Alegrou-se ao ouvi-la de longe).

MÃE
Entra filho, fica à vontade!

FILHO
Mãe!... (Empurrou a porta semiaberta). Oh, mãe!... Aonde está você?

MÃE
Aqui num cantinho da sala... no escurinho!

FILHO
Deixe que eu ligo a luz pra...

MÃE
Não! (Gritou). Por enquanto não. Não acenda a luz.
- 123 -

FILHO
Por que não, mãe? A senhora adoeceu de conjuntivite, foi?

MÃE
Foi! Foi mais ou menos isso. Mas vou ficar de boa. Vai passar.

FILHO
Só não lhe dou um abraço agora porque estou muito sujo, muito imundo,
encardido, barbudão e cheio de poeira.

MÃE
Até que enfim te lembraste de voltar pra casa!

FILHO
Saudade, mãe. Arrependimento. Solidão. Sofrimento.

MÃE
Nem parece! Por que demorou tanto a tomar tal decisão?

FILHO
Doidice minha. Maluquice. Quem diria: 20 anos ausente desta casa, sem lhe
dar notícias minhas e sem ter notícias suas ou de todos! É muita noia, ó meu.

MÃE
E eu aqui te esperando esse tempo todo, todo esse tempo! Coração de mãe
não se engana nunca. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde voltarias pra
casa a ocupar o teu lugar vazio aqui na minha mesa. Ah, filho, sofri o pão
que o diabo amassou.

FILHO
Já imagino. Pobre mãe! Mas me deixa entrar e descansar um pouco a mi-
nha cabeça, o meu corpo, me deixa rolar um pouco nesse chão, como eu fa-
zia antes quando criança, lembra?...

MÃE
Entra! Deixa e cerimônia. Se quiseres deita um pouco no sofá, na cama da
mamãe ou na tua rede, a casa ainda é tua, apesar de viveres todo esse tem-
po morando por aí na rua.
- 124 -

FILHO
(Brincando de nadar no chão). Cansei daquela vida, mãe. Foi por isso que voltei.

MÃE
Graças a Deus! A esperança é sempre a última que morre.

FILHO
Pô! Não deu certo o que vivi, sofri por aí. Só valeu como experiência.

MÃE
Tá vendo? Teimosia tua! Você tinha que passar por isso para aprender so-
zinho. Meu Deus! Vinte anos ausente desta casa, vinte anos sem te ver! Po-
rém, teu lugar aqui na minha mesa continua vazio. Já percebeste?

FILHO
Já! Tou vendo daqui. (Sentou-se no chão). Acho o maior barato!

MÃE
Só que muitas vezes o barato sai caro. Como se fosse o filho pródigo, que
retorna à casa paterna, procurando aquilo que o mundo lá fora não te deu.

FILHO
Pior que não, viu dona Arminda. Passei fome, passei privações de todo ti-
po e qualidade. Quase virei mendigo na rua, juntando coisas da lata do lixo
pra comer, até urina eu bebi pra não morrer de sede. Levei porrada, ponta-
pés na bunda, tapa na cara, um socão nesse olho, ó, chega ficou roxo.

MÃE
Pobre filho!

FILHO
Aí, criei coragem, me debandar do grupo e voltar pra casa!

MÃE
Agora estás bem?

FILHO
Tou bem sim, mãe. Também tou contente. Ainda tem dúvida?
- 125 -

MÃE
Não. Mas, queria ter certeza disso.

FILHO
Dou minha palavra. Podes crer. Ponha fé no que tou lhe dizendo.

MÃE
Tá bom. Sendo assim... só resta-me acreditar em você. Espero que não haja
outra fuga tua. Ponha-se no meu lugar de mãe. Pensa bem, Júlio.

FILHO
Compreendo a sua preocupação, mãezinha. Mas posso garantir que as do-
res de cabeça que eu lhe dava, não vai haver mais, garanto.

MÃE
Ainda bem! (Suspirou). Porque desta vez me encontraste muito diferente...

FILHO
Diferente como?

MÃE
Vou te falar uma coisa de todo coração...

FILHO
Fala, mãe! Pode falar. Sou de todo ouvido. Se a senhora achar que não devo
ficar mais aqui, tudo bem, eu retiro meu time de campo, ou se a senhora,
né, não pode me alimentar mais como fazia antes, nem me dar um pedaço
de pão, nem seu carinho, nem seu afeto, tudo bem... Não terei eu o direi-
to de exigir tal coisa da senhora. Vou até entender que a senhora esteja tão
magoada comigo, por causa dessas coisas todas que lhe causei.

MÃE
É isso mesmo! Mas, uma casa vazia, sem ninguém por perto, é igual a um
corpo mal vestido, entendeu? Portanto, meu filho, terás meu abrigo e co-
merás do meu pão, mas não te perdoarei se continuares com essa vida torta
por aí... com essas tuas péssimas camaradagens.
- 126 -

FILHO
Ai, que saco! Eu já não lhe falei? Escuta mãe, me ouve: eu já fui um cara er-
rado, tá certo, já fiz muita besteirada na vida, muita mesmo, até fiz muita
gente sofrer por causa disso, inclusive a senhora, mas agora o que passou,
passou e pronto. A senhora tem que me dar um voto de confiança, né não?
(Ficou sem resposta). Voltarei a trabalhar na panificadora do seu Zózimo. Tenho
certeza de que ele me dará uma nova chance.

MÃE
Vou torcer pra que isto aconteça o mais rápido possível.

FILHO
Mas, mãe, isso aqui tá escuro demais! Já é noite! Deixa-me acender a luz.
(Ficou só na vontade). Escuta, se quiseres me castigar mais um pouco, pega, to-
ma este cinto de couro, açoita-me! Satisfaz a tua raiva, me dá umas chibata-
das no meu lombo, como fazia antes, anda mãe! Toma o cinto!... Me aplica
uma surra daquelas que eu tou pronto a te obedecer e te servir de cobaia
desse teu rancor guardado há vinte anos! (Indo até ela). Toma, pega o cinto,
bate logo, mãe!!! (Berrou de raiva, revoltado).

MÃE
(Gritou indignada). Cala essa boca! Para com essa paranoia!

CENA 2

(Nesse instante, sua mãe se levanta da cadeira, apoiada pela bengala diante do olhar de perple-
xidade do filho, indo acender o receptor de luz).

MÃE
E eu? O que pensa que sofri todos esses anos, hein? Pra que tanta revolta, tan-
to desperdício de vida, tanta mágoa ou maldade para rasgar coisas do passa-
do diante do presente, quando, de repente e não mais que tanto, estou pior
do que você agora! Pronto. Veja com seus próprios olhos o motivo de ficar
agasalhada nessa penumbra, pelo menos posso enxergar teu vulto na casa.

FILHO
(Caiu em si). Mãe! A senhora está cega?! Como foi isso, gente? Meu Deus!! Mi-
nha mãe, minha pobre mãe! (Caiu aos pés dela, ajoelhado, desesperado, apavorado).
- 127 -

Oh, meu Deus, me perdoa! Peço mil perdão! E eu aqui me lastimando por
qualquer coisa da vida, se o mal maior é este.

MÃE
Fica calmo. Não adianta desespero agora. Mesmo sem ver a luz do sol, sem
distinguir teu rosto, sinto-me feliz por estar viva, por continuar vivendo,
filho, respirando esse ar que vem de longe. Ah, esse ar que vem do mar e
das montanhas!...

FILHO
Importa me dizer como aconteceu isso, qual foi a causa...

MÃE
Sabe, filho? Deu-se numa crise de diabetes, de uma hora pra outra, fiquei
cega! Fui a exames médicos. O doutor fez várias tentativas, mas em vão!!

FILHO
Fez alguma cirurgia?

MÃE
Várias. Mas nenhuma deu certo. O doutor, não querendo desencorajar-me,
ficou receitando remédios daqui, colírios dali, até que desistiu dessa farsa
clínica e me falou que o meu caso era um caso sem jeito. E acabei me con-
formando com o meu problema.

FILHO
Puxa vida! Até parece que a Ciência avançada continua caduca, diante des-
sa evolução toda no mundo. É tudo tão lamentável, minha mãe, que eu che-
go a me sentenciar ao confinamento dos quintos dos infernos, égua meu!...

MÃE
Pois então esqueça. Porque a sua aqui já esqueceu. Se ficarmos alimentan-
do coisas negativas acabaremos, os dois, depressivos dentro desta casa...
Coisa que eu não quero pra mim.

FILHO
Tá certo. E a mana? Aonde ela está?
- 128 -

MÃE
Casou-se bem antes de eu adoecer. Agora tem família, dois filhos lindos
pra cuidar. Ela mora aqui perto, no meio do quarteirão da rua, dessa rua. A
Juanita é quem cuida de receber no banco a minha aposentadoria por inva-
lidez, sempre, nos finais de semana. eles me visitam.

FILHO
E na ausência dela... quem faz as coisas pra senhora?

MÃE
O Joaquim.

FILHO
Quem é esse Joaquim?

MÃE
O marido dela. Mas não é a mesma coisa. A comida que ele faz é muito
ruim, quando coloca sal, sai salgada demais, não faz nada que preste. Pre-
firo a comida da comadre Deolinda, é mais saborosa.

FILHO
Gente, aquela velha ranheta ainda vive?!

MÃE
Vive. Parece mais lúcida, esperta, trabalhadora, cada vez mais sagica.

FILHO
Uma bengala?

MÃE
Que nada! A comadre Doelinda é dura na queda. Não sente uma dor de ca-
beça, nem sofre da coluna, nada de reumatismo, nada! E lembre-se que ela
é sua madrinha de fogueira.

FILHO
Ainda de fogueira! Já pensou?

MÃE
Daqui a pouco, ela aparece aí na porta trazendo o meu jantar.
- 129 -

FILHO
Que bom! Que bom, né mãe, que ela esteja viva e agindo desse jeito a fim
de lhe socorrer nessa hora. Mas, no caso dela falhar um dia, quem...

MÃE
Eu mesma! Eu me viro sozinha. Dou meu jeito. Através do tato, do olfato
e da audição vou receptando as coisas ou vou realizando outras que pra
mim é mais fácil de lidar.

CENA 3

(Aqui entra em cena, Deolinda que vai empurrando a porta e fica assustada com a presença de
um estranho na casa, sem se perceber do ledo engano. A velha senhora se contém e procura
acompanhar tudo com paciência).

DEOLINDA
Arminda, mea, mana... eu tava cozinhando teu jantar e na hora H faltou
o danado do gás, aí tiver que emprestar dinheiro pra... Uii! Credo e cruz,
minha Santa Rita, me valei dessa alma penada que taí no canto da sala!!!...

MÃE
(Sorriu). Que foi? Se assustou com o quê?

DEOLIDA
Olhe, mea mana, se não for igual, tá escritinho um bicho do mato, um capi-
roto de revestrés, isto se num for o tal cutupira disfarçado nessa marmota
xexelenta, catinguenta!

FILHO
(Rindo). Essa é boa!

MÃE
Mas em plena cidade grande, comadre Deolinda? Pelo amor de Deus, es-
queça um pouco daquelas suas estórias de lenda lá da Vigia.

DEOLINDA
Mea mana, pelo amor de Deus, digo eu ao ver esse bicho na casa da coma-
dre. Tem feição de gente, mas num é gente, é barbudo, cabeludo, todo en-
- 130 -

cardido sentado aí no chão da sala, feito um cão sem dono. E a comadre Ar-
minda ainda quer que eu fique calada diante dessa coisa aí! Dessa marmota.

MÃE
Me admiro da comadre Deolinda chamando o próprio afilhado de marmota!...

DEOLINDA
Esse aí é meu afilhado? Esse homem tá maltrapilho, fedorento, até parece
que morou acolá, bem ali, no afamado Beco do Mijo. E, eu juro por essa luz
que me alumia que esse homem entru na casa pra modi roubar.

MÃE
Ora deixe disso! Comadre Deolinda... esse homem feio, esse barbudo aí, é
o seu afilhado Júlio, o meu filho que voltou, compreendeu?

DEOLINDA
Minha Santa Rita de Cássia! Isso aí, é o Júlio? O meu afilhado de verdade?
Eu já tava pensando que fosse uma dessas aparição da mata dentro da casa!!

FILHO
Eu não lhe falei, mãe? Ela não iria me reconhecer assim!

DEOLINDA
A voz! A voz é dele, comadre! Do meu Júlio, quero dizer, do nosso Júlio!

FILHO
A senhora tem razão, madrinha. Eu mudei muito, também ralei muito, até
me transformei nesse bicho, nessa coisa feia, de mal aspecto que causou um
tremendo susto na senhora. Me desculpe, madrinha. Eu não quis assustá-la.

DEOLINDA
(Comovida). Mas eu te juro, pequeno, que eu nem tava te reconhecendo com
essa barbona toda, vestido dessa maneira, cabeludão. Só podia imaginar
um mendigo, um doido, invadindo aqui pra modi judiar da comadre.

FILHO
Eu fui pior do que isso, madrinha! Depois a mamãe lhe explica tudo.
- 131 -

DEOLINDA
Pois então nem precisa me falar desse assunto cum detalhe. E se tu vortar
a fazer tua mãe sofrer de núvo, novamente, mais do que tem sofrido essa
criatura, essa pobre mãe durante 20 anos, tais ouvindo?... vú ter que te dar
uma surra de cipó de apuizeiro, inté tu ficar roxo, seu moleque! Veja o esta-
do em que a comadre Arminda se encontra! Tudo por tua causa, pequeno...
tudo, mas tudo mermo. (Chorou muito).

FILHO
Perdão, madrinha. Perdão a todos vocês pelo sofrimento que lhes causei a
troco de nada. Tudo por sacanagem e mulherio e drogas que me levaram às
consequências amargas. Mas prometo resgatar o tempo perdido e voltar a
trabalhar, a viver normal, eu prometo... Nem que a galera do Beiçudo que
anda invocado comigo fique por aí achando que esse papo é careta, achan-
do que aí tem boi na linha, que não vou levar a sério... Dou minha palavra,
madrinha, já disse!

DEOLINDA
Faço fé!

MÃE
Oh, filho! Você vai vencer! Tenha fé em Deus.

FILHO
Com cerveja.

DEOLINDA
Agora deixe de palavreado besta... levante-se daí desse chão frio e vá to-
mar seu banho, fazer essa barba, cortar esse cabelo feio, antes que eu te dê
uns catiripapos e puxões de orelha, num instante tu desanda de vez!

FILHO
Mas antes eu queria comer alguma coisa. Estou com uma fome daquelas
de matar o guarda!

DEOLINDA
Não, senhor. Agora quem tá no comando da cozinha sou eu! Depois do ba-
nho, sim, mas agora não. Vá tomar seu banho, seu porqueira. Vamos, va-
mos! (Saiu empurrando ele pelas costas).
- 132 -

CENA 4

(Logo em seguida, Deolinda vai servindo os pratos e os talheres na mesa e uma garrafa de água,
uma cesta de pão, uma garrafa térmica de café e uma tijeladona de sopa).

DEOLINDA
Venha, comadre! Sente-se aqui e vá logo tomando a sua sopinha!

MÃE
Ainda não, comadre Deolinda. Vamos aguardar o Júlio sair do banho.

DEOLINDA
Ah, mea mana, então não é hoje! Aquele ali o que tem de sujeira e seroto
debaixo do saco, vai levar umas horas pra limpar esfregando com bucha
de palha. Ande logo, coma logo é que é! Ainda tenho que assistir a novela!!

MÃE
Ô mulherzinha chata! Tem que ser o que ela quer... não o que a gente dese-
ja que seja.

DEOLINDA
Atente pruma coisa, comadre: o tempo não espera por ninguém, passa por
nós sem a gente perceber, quando der fé, a senhora taí pra trás, sempre es-
perando o tempo passar, sempre esperando o...

MÃE
Já entendi aonde a comadre quer chegar.

DEOLINDA
Uma coisa é certa: quem não se cuida, por si, se rejeita! Vai daí, que a senho-
ra tá cega dos olhos, mas não da alma. Não tem que viver em função dos
utros. Em todo caso, deixo aqui a minha advertência. Júlio voltou e pode se
virar sozinho e até lhe ajudar um pouco, enquanto não arranjar emprego.

MÃE
Depois a gente vê isso, como é que fica.

DEOLINDA
Vu tomar um pouco de sopa com pedaços de pão. Diz-que é gostoso.
- 133 -

FILHO
(Surgindo renovado, metido num ropão de banho). Que tal estou? Mulheres do meu
Brasil varonil!

DEOLINDA
Hum-hum. Pávulo como sempre.

MÃE
Deve estar bonito e charmoso! Com certeza. Hummm! Esse perfume...

DEOLINDA
Ele voltou ao que era antes, comadre, mais bonito, metido no roupão do
cunhado. E tá muito cheirozinho agora!...

FILHO
(Com gracejo, abraçando elas e beijando-lhes na testa). Mas, podem me cheirar à von-
tade, que não me importo, viu minhas senhoras... Que tal, passei no teste
da limpeza e da higiene? (Elas deram uma risada sonora). O que foi que eu falei?

DEOLINDA
Esse menino sempre foi cheio de pavulagem, presepeiro!

MÃE
Pouca coisa mudou nele, comadre! Júlio continua sendo uma eterna criança!

DEOLINDA
E mimado pela madrinha dele, lembra? Quando eu embalava ele na rede,
para não chorar, enquanto a senhora ia praquela fábrica de castanhas tra-
balhar e só vortava à nuite, na buca da nuite. Ele passava a maior parte do
tempo comigo. Vai daí, do menino se apegar a mim e eu a ele...

FILHO
Mas eu amo as duas, pronto! Engraçado madrinha... faz poucas horas que
cheguei parece que o tempo parou aqui... a casa... os móveis de sempre no
mesmo lugar... o banheiro, o banho de cheiro-cheiroso... tudo isto aqui! A
mamãe e a senhora fizeram questão de manter essa memória... essa... como
se tudo fosse uma tradição pessoal nesta casa. Ah, eu adoro isto aqui! Esta
paz! Este sossego, esta quietude! Gente... não existe lugar melhor no mun-
do do que a casa da gente, a casa paterna!! (E chorou de verdade).
- 134 -

MÃE
Calma, filho, calma. Tente reverter o quadro para melhor.

DEOLINDA
A tua mãe tem razão, Júlio. Nem tudo que reluz é ouro. A realidade é outra
e necessita da sua cabecinha no lugar pra modi refazer sua vida.

FILHO
Claro, né madrinha. Já vou começar a batalhar amanhã. Vou lá conversar
com o seu Zózimo e pedir o meu lugar de volta na panificadora. Huummm...
o angú aqui tá danado de bom. Prova um pouco do meu, mãe.

MÃE
Huuummm! Tá uma delícia mesmo!

DEOLINDA
Resolveu agora ocupar o meu lugar de ama-seca, é seu fujão? (Pilheriou).

FILHO
Ih, mãe! A “véia” já com ciúmes!

DEOLINDA
E tou mesmo! Porque antes de tu chegar de vorta pra esta casa, esta zinha
aqui, já cuidava dela. Entonce num é justo me colocar num canto, feito um
traste véio.

FILHO
Tá bom! Continue cuidando, zelando pela minha mãe, que a senhora vai
ganhar o reino dos céus pela justiça Divina!!! (Discursou como político). Assim fa-
lou o advogado do Diabo. Tenho dito.

DEOLINDA
Deixa de caçoada comigo, pequeno. Aí, tu já viste não, quando o Capeta a
modo aparecer na porta e te levar de vorta pros quintos desta vez.

MÃE
Vira essa boca para lá, comadre. Não diga asneiras. Agora temos um ho-
mem dentro e casa pra zelar por nós duas na velhice. Tenha termo, mu-
lher... uma mão lava a outra.
- 135 -

DEOLINDA
E as duas, lava a bunda! (Ambos riram, caíram na gargalhada).

FILHO
Ela continua de morte! Cheia de gracejos. Depois, ela diz que eu é que sou
presepeiro, cheio de palhaçada.

MÃE
Abaixo de Deus, é ela que me ajuda muito nesta casa, mantendo a limpeza,
lavando minhas roupas, fazendo minha comida.

DEOLINDA
Ela também me ajuda. De vez em quando, com um quilo de feijão, arroz,
café, açúcar, farinha, sal, leite, enfim... me ajuda no que pode. Mais do que
isso, não tem pra me dá, se mais tivesse, me daria.

FILHO
Mas agora sou eu que doravante vai passar a sustentar as duas mulheres
da minha vida. Porém, as duas aí, vão ter que me aturar e me obedecer. Na-
da de briga. Nada de discussão besta.

MÃE
Graças a Deus! Tá ouvindo, comadre Deolinda?

DEOLINDA
Tou, tou, tou ouvindo, sim, senhora. Não sou surda!

FILHO
Pronto. Agora estou satisfeito!

DEOLINDA
Quer mais um pouco, Júlio? Coma mais, pequeno, tu tá muito raquítico,
muito seco, muito magro!...

FILHO
Quero não, madrinha. Tou agora querendo colo de mãe. Será que posso?
(Deitou a cabeça sobre as pernas de sua mãe na cadeira).
- 136 -

DEOLINDA
Amamãezado. Vê se pode! Eu hein!

MÃE
Deixa, comadre, o menino... Deixe que ele agora vai dormir um pouco...

DEOLINDA
E quem é que vai lavar essa louça comigo? Me diga.

FILHO
(Sonolento, balbuciando). Deixa aí... que amanhã eu lavo... eu lavo.

DEOLINDA
Menino mimado! É no que dá criar filho dos outros com tanto dengo!

MÃE
Silêncio, comadre! Fale baixo! O menino cochilou. (Murmurou ela).

DEOLINDA
Quero ver quem vai levar esse brutamonte pra rede! Eu é que não sou! Por
mim, ele vai dormir aí no chão. Nem te conto, mea mana, mas outro dia a
vizinha daí do lado...

(Aqui a luz vai caindo em câmera lenta no cenário, no decorrer da última fala do personagem
até ao black-out total).

FINAL DO ESPETÁCULO
A
PERSEGUIDA
- 138 -

A perseguida
Sátira /comédia - 2003

PERSONAGENS
Safira (viúva, socialmente decadente),
Miquelina (adulta, empregada de dona safira),
Rapaz (jovem, atlético, cobrador de lojas),
Jovem (negro, dançarino de reggae, voluntário em campanha contra a fome etc.)
Figurantes (de 2 a 4 homens braçais, uniformizados).

CENÁRIO
Uma sala vazia. Com pouquíssimos móveis. Com paredes nuas, quase sem atrativos,
apenas retratinhos pendurados aqui e acolá nas paredes de cor pastel. Um grande es-
pelho e um enorme sofá no centro da sala. A gosto do diretor.

TEXTO
Mostra e questiona a solidão, a vida e a decadência social e física de uma mulher que
já foi alguém e teve algo na vida e que acabou perdendo tudo, por contas devidas a
pagar, restando-lhe a companhia fiel e humana da empregada que a sustenta com
suas economias, de anos e anos, guardadas no banco. Moral da história: ninguém
cuspa para cima que não caia no rosto. Pois, em alguns lugares ou logradouros da ci-
dade de Belém ou de outras localidades brasileiras, ainda alguém ostenta seu porte
de rico embora vivendo numa penúria cerrada diante de uma realidade, que faz ques-
tão de não ver. Não vê porque não quer e vive fora da realidade ora palpável. O humor
que se instaura nesta peça, vem dosar um misto de amargura e confinamento, que
existe nos seus personagens, fazendo surgir daí seu próprio questionamento diário.

CENA 1

(Abertura de cena. Ouve-se a campainha várias vezes. A empregada vai atender na porta. Em
seguida, aparece apavorada na sala para anunciar alguém. A dona da casa está ao telefone).
- 139 -

SAFIRA
Não. Não adianta, meu senhor, eu não tenho como quitar as dividas do
meu falecido. Aquele mulherengo me deixou numa penúria. O quê? Sim,
meu bem, então. Eu jamais pagaria pelos erros dele. Como? Ah, sim. Por
mim, tá tudo bem. Pode mandar buscar de volta, sim. Se isso resolve o seu
e o meu problema, acho a ideia excelente. Na verdade, a riqueza, o luxo, o
conforto e o glamour que a gente tinha foi de água abaixo. Como assim?
Ah, claro. Toda essa gastança e essa maneira descontrolada que ele tinha de
gastar, misturada com excesso de vaidade e poderio financeiro, só sobrou
pra mim, meu senhor. Tenho vergonha disso. Nunca fui tão perseguida na
vida como agora, nem na época que eu era moça virgem, de cabaço e tu-
do no lugar. Como a Chapeuzinho. Eu, devassa? O senhor, sim, que é um
devasso, um cretino querendo extorquir dinheiro de uma pobre viúva. O
que? Vá... Desligou. O filho duma Cesária desligou na minha cara.

MIQUELINA
Dona Safira... Dona Safira...

SAFIRA
Ai, credo. Que gritaria é essa? Eu já não falei pra você Miquelina, que não
precisa gritar desse jeito pra anunciar alguém?

MIQUELINA
Já. E disse mais: que tudo depende de educação, que a gente tem que agir de
uma maneira educada, sutil, e ser discretíssima no que faz ou naquilo que
fala. Mas, eu ainda não aprendi direito. Tem horas que dou cada mancada.

SAFIRA
Depois, eu não sou surda. Você não é uma mulher burra, até que é um pou-
co inteligente e habilidosa as vezes, quando quer, noutras, é uma aberração
da natureza. Faz coisa que até Deus duvida. É um horror.

MIQUELINA
Pois, eu não vejo assim. Tudo em mim é normal. Minhas pernas, meus pei-
tos, minha coxa, minha bunda...

SAFIRA
Por exemplo, o que faz aí parada feito uma múmia do Egito? Fala, criatura
de Deus, quem era que estava tocando a campainha? Ou quem é que ainda
- 140 -

está lá fora e que lhe deixou assim nervosa, assustada, apavorada, talvez
sem motivos pra isso?

MIQUELINA
Tem razão. Lá na porta tem um moço muito bonito, muito charmoso até,
deve ter uns dois metros de altura, cálculo, tem uma palma de mão enor-
me, olha só a lapa do pé, parece um desses pés de légua. Como agir nesse
caso: mando embora o rapaz ou faço ele entrar? Resolva logo isso. Ele veio
disposto a falar com a senhora e nesse horário marcado pela senhora.

SAFIRA
Comigo, Miquelina? Você tem certeza disso? Ou está querendo me arran-
jar marido?

MIQUELINA
E quem nesta casa tem o nome da Safira Carmina Patrick Augusta Casano-
va, não é a senhora? Por sinal, um nome muito cumprido. E, se dependesse
de mim, desta zinha aqui, a senhora já tinha saído desta clausura, já tinha
um novo marido, porém, mais jovem, mais afoito, que botasse essa ciriema
pra gemer, sem sentir dor, como diz aquela cantora famosa...

SAFIRA
Um jovem bonito na minha casa querendo fala comigo! Quem será? E a es-
ta hora?

MIQUELINA
O que é que tem? Pra rosetar, não se escolhe hora, nem lugar, já dizia minha
vó Chiquinha. Então, dona Safira, decida. O moço tá lá tocando a campai-
nha. Ó, tudo será como nos velhos tempos. E quando era na ausência do
marido? Aí, que eu achava chic. Enquanto ele comandava o barco, durante
dias ou semanas, a madame tava aqui manobrando o timoneiro, sem per-
der a bússula dos caminhos. Deitava e rolava na moleza do safado.

SAFIRA
Cala essa boca. Não seja mal educada. Assuma seu caráter de empregada
doméstica, não de alcoviteira e caftina. Que horror. Me responde uma coi-
sa. Ele disse o nome? Ou pronunciou o nome de alguma loja?
- 141 -

MIQUELINA
Ah! Sua danadinha. Tá querendo disfarçar é? Olha aqui, a senhora pode
fingir ou até mentir pra todo mundo, menos pra mim. Ou eu não me cha-
mo de Miquelina Pereira da Anunciação, ta bom.

SAFIRA
Ora, deixa de ser tonta. Ponha-se no seu lugar devido, sua linguaruda, Ma-
gina! Se eu sou mulher de marcar hora ou visita de um estranho nesta casa!
Não se dê ao desfrute.

MIQUELINA
Menos! Menos!

SAFIRA
Volta lá. E diga que não quero falar com ninguém. Diga que estou com dor
de cabeça, enxaqueca, dor de barriga, diarréia, sei lá. Inventa qualquer coi-
sa. Vai, vai, vai, sua lesa.

MIQUELINA
Eu vou. Mas depois, a madame vai querer chorar no leite derramado, aí se-
rá tarde demais. (Vai e volta acompanhada).

SAFIRA
Para de me atazanar, criatura, com essa sua fissura. Que coisa! O que tem
que ser, será, e acabou-se. Não vou ficar choramingando pela casa, eu...
eu... Meu Deus. O que significa isso, essa invasão a domicílio?...

MIQUELINA
Eu não te falei, moço? Por Deus, dona Safira, eu falei pra ele não entrar sem
a sua permissão... mas o moço aí disse que tava com pressa, não podia es-
perar por mais tempo. A senhora “entendeu” (aos cochichos). Entendeu a grife?

SAFIRA
Entendi. Pode deixar, Miquelina. Vou atendê-lo como manda o figurino.
Sente-se aí meu rapaz. E providencie um cafezinho ou um suco ou um re-
fresco pra nós. Repito. “Nós”.
- 142 -

MIQUELINA
Eu sei. Não precisa grifar. Estou aqui “apenas” para obedecer suas ordens
e lhe servir.

SAFIRA
Nossa. Que dotes! Que músculos! Já posso imaginar o resto. E o que faz aí
parada, Miquelina? Vá nos servir um café!

MIQUELINA
(Aos cochichos com ela). Dona Safira... Café tem, a garrafa térmica ta cheia... só
não tem é pão ou biscoitos de maisena pra oferecer pro moço.

SAFIRA
Azar o dele que chegou numa péssima hora! Nem vinho? Nem um cham-
panhe?

MIQUELINA
Nada. Nadica de nada. Nem Sidra, minha santa. A senhora tá zerada, ma-
tando cachorro a grito.

SAFIRA
Mulher! Inventa qualquer coisa. Pega um limão e um copo de cachaça, faz
uma caipirosca, e oferece pra esse brutamonte. (A empregada sai de cena). Ela é
linda, não acha?

RAPAZ
(Referindo-se a empregada). Ela aí...?

SAFIRA
Não, bobinho. Magina! Estou me referindo a minha poltrona de veludo co-
telê, herança de família. Sente-se aqui...

RAPAZ
Obrigado. (Sentou-se). A cor também é linda. A senhora tem um bom gosto.

SAFIRA
Obrigada. Também tenho um bom apetite sexual, digo, pessoal. Aonde vai
querer sentar: em cima de mim ou no sofá? Opa. Acho que falei asneira.
- 143 -

Desculpa. Na verdade, adoro brincadeiras maldosas. Bom, mas vamos ao


assunto que o trouxe aqui.

RAPAZ
(Desfolhando uma cartela de promissórias). Quantas?

SAFIRA
Quantas o quê?

RAPAZ
Quantas a senhora já deu?

SAFIRA
Nossa. Você é bem atrevidinho, hein rapaz! Mais ainda, adoro gente assim
objetiva, direta, transparente, como você, meu rapaz, que vai logo direto
no assunto. Nada de perder tempo com blá, blá, blá, não é mesmo? Olha,
se quer saber mesmo, de verdade, desde quando fiquei viúva há três anos
atrás, nunca mais eu soube o que é um homem na cama. Estou por assim
dizer... seca por dentro e por fora, precisando ser lubrificada. Já pensou!

RAPAZ
(Todo sem jeito). Minha senhora...

SAFIRA
(Apresentando-se com elegância). Safira Carmina Patrick Augusta Casanova, a
seu dispor, meu jovem, para o que der e vier, sem tirar de dentro.

RAPAZ
Minha senhora... como direi, eu compreendo que a senhora esteja carente,
mas a minha visita a esta casa não tem nada a ver com suas... com suas...

SAFIRA
Queixas. Queixas e mágoas. Mentiras e derrotas. Traição e abandono. Tudo
isto sem ter um ombro amigo, onde apoiar minha cabeça e chorar cântaros
de lágrimas, por causa dum casamento fracassado com um ex-militar.
- 144 -

RAPAZ
Por favor, senhora, não misture as coisas, não complique meu trabalho. Eu
vim pra levar os móveis de volta que o seu marido falecido não pagou, a
não ser quatro parcelas, de vinte parcelas que deveriam ser pagas. Portan-
to, quero a permissão da dona Safira Carmina Patrick Augusta Casanova
para levá-los.

SAFIRA
Nunca! Sem antes você me prestar um favor, uma caridade. E não me cha-
me de dona porque dona é mulher de bordel, mulher da vida, gente que
vive na putaria, na sacanagem, no meio da esbórnia, menos eu. Eu sou mu-
lher fina, educada, culta inteligente.

RAPAZ
Mas a madame falou para que eu passasse nesse horário e apanhasse os
móveis... mas a madame ta complicando as coisas, tá...

SAFIRA
Piorou. Não me chame de madame. Não sou madame coisa nenhuma. Não
mexo com esse negócio de salão de beleza. Olhe aqui seu... seu... como é
mesmo seu nome?

SAFIRA
Herivelto, Herivelto Guaribas. Prazer. (Esticou-lhe a mão).

SAFIRA
O prazer, Herivelto, será todo meu se você exibir seu físico pra mim. Só is-
so. Aí, eu deixo você levar os móveis que restam, até a casa, se pudesse, já
que possui um belo porte, um físico assim... Quer dizer, só pra satisfazer a
minha curiosidade feminina, se você está em condições de ficar só de cue-
ca, dance... dance pra mim.

RAPAZ
Dançar? Tirar a roupa dançando, é isso que tá desejando? Somente isso?

SAFIRA
Só pra satisfazer minha curiosidade. Mostra, não tenha vergonha, sou mui-
to tímida pra frequentar um clube de rapazes que se despem para as mu-
- 145 -

lheres se divertirem. Certo dia, uma amiga minha, ia me levar no clube,


mas rapaz, fiquei com receio e não fui.

RAPAZ
Tá legal. Vou tentar. Acho que é melhor do que o meu trabalho. Veja um CD
bacana, um som maneiro. Qualquer musiquinha cairá bem.

SAFIRA
Então meus olhos estavam certos. Isto, quer dizer que você faz estreepe?

RAPAZ
Numa casa noturna.

SAFIRA
Faz tempo isso?

RAPAZ
Um ou dois anos, não sei ao certo. Só sei dizer que eu era tímido, tinha me-
do de mostrar, tinha vergonha de mostrar. Mas um dia, um colega meu dis-
se: “Mas rapaz, tu só dança seminu e ganha coisas da mulherada. Tu recebe
grana, fatura bem, mas tu não tem nenhum direito de reclamar delas”. Aí,
eu topei por enquanto. Eu gosto do que faço numa hora vaga. Mas a senho-
ra não precisa me pagar, não.

SAFIRA
Então faça. Dança pra mim. Eu gosto disso. (O rapaz iniciou sua coreografia).

MIQUELINA
(Ao vê-lo sensualmente). Minha Santa Maria do Grão-Pará! Ma que coisa horroro-
sa, madame, Dona Safira, mande esse sem vergonha vestir as calças. Credo!

SAFIRA
Cala a boca, Miquelina. O que é belo é para ser admirado.

MIQUELINA
Menos! Menos! Também não precisa exagerar, né madame.
- 146 -

SAFIRA
Meu Deus. Olhe só pra ele... espia os dotes dele, é um verdadeiro Apolo este
rapaz, Miquelina. Parece um Deus sodogomita perdido na terra. (Segredando
para a plateia). Mas, é um cara de pau mesmo. Exibido. Um narcisista de maior.

RAPAZ
(Enquanto faz trejeitos). Me considero um cara sortudo, quando faço esse traba-
lho e levo às mulheres a alegria e prazer. Mas quando vejo que elas querem
me explorar caio fora. Passo a perna nelas e nos outros, que acham que seu
físico é melhor do que o meu, aí eu digo, agora pago pra ver.

CENA 2

(O rapaz continua se requebrando, ao som da música frenética, alegrando o coração da dona


Safira e da empregada que, ao mesmo tempo, é contra seu exibicionismo e procura acabar com
seu show desligando o CD play etc.).

MIQUELINA
Ai, minha santa paciência. Isso vai demorar muito acabar? Olha, o café,
gente! O biscoitinho de maisena acabou, viu dona Safira? Se o moço quiser,
mande ele comprar. Esse cara de pau. (E foi desligar o som). Pronto. Acabou-se
o desfrute. E cubra seu ganha-pão e fique aqui sentadinho, quietinho, pra
tomar seu café.

RAPAZ
Por que desligou? Não gostou de me ver assim? Fui tão ruim do que você
imaginava?

MIQUELINA
Eu, mesmo não gosto dessa palhaçada. Mas ela aí deve gostar, coitada, tan-
to tempo enclausurada nesta casa sem poder sair por aí, sem se divertir
com ninguém... deve achar que qualquer porcaria serve.

SAFIRA
Não seja casca grossa com o rapaz. Guarde sua opinião pra si. Afinal de
contas, fui eu que pedi a ele um pouquinho disso aí que ele chama de
streep musical.
- 147 -

MIQUELINA
Pois sim! Garanto que ele tá querendo se aproveitar da sua moleza ou da
sua viuvez, para sacanear com a senhora. Eu, se fosse a senhora, tomava
cuidado com esse moço. Essa rapaziada nova, hoje em dia, topa qualquer
parada pra conseguir arrancar dinheiro, muita grana, de pessoas que nem
a senhora, viúva e carente pra merda.

RAPAZ
(Com deboche). Tá com ciúmes, é bonitinha? Te enxerga! Eu sou artista e não
prostituto.

MIQUELINA
Vai-te pra China! Sua coisinha feia. Se quer saber, eu tenho namorado e é
mais bonito do que você e me quebra um galho doiiido. Aquele sim, me sa-
tisfaz até em pensamento.

SAFIRA
Menos! Também não exagere, criatura.

MIQUELINA
Mande esse cara se vestir, dona Safira. De repente, alguma amiga ou vizi-
nha sua entra, nesta casa, e vai ver essa marmota aí na sala. Aí, vai pensar
que a senhora é uma depravada. Bonito pra senhora! Uma mulher decente,
uma mulher de respeito. (O rapaz obedece a sugestão da empregada, ora preocupada
com a reputação de sua patroa, sua melhor amiga).

RAPAZ
Tá certo. É coisa comum, tem certa empregada que fica protegendo a pa-
troa e (fazendo gracejo) quando peida, aquele peido calado, né sacanagem, diz
que é uma coisa que todo mundo faz, até a rainha da Inglaterra. (A dona Sa-
fira solta risos e gargalhadas sonoras durante a fala).

MIQUELINA
Ah, seu nojento!

RAPAZ
Verdade. E o rei e a rainha, o ministro da guerra, a mulher dele e a minha...
Então, eles caíram em graça. E quando o cabra fica velho?
- 148 -

SAFIRA
O que é que tem?

RAPAZ
Começa a fazer besteira. Caga na cueca e mija nos pés ou fica endividado
pro resto da velhice. (Após vestir-se, ajeitar-se todo frente ao espelho). Pronto.

SAFIRA
Agora diga, meu rapaz, quem o mandou aqui? Algum hospital por onde o
meu falecido marido passou? Ou foi o seu Agripino diretor da casa funerá-
ria “Pés Juntos”, para quem ficamos devendo o velório, as choradeiras, os
seresteiros e o pessoal da canastra?

RAPAZ
Calma, dona Safira, digo, Safira... Safirazinha...

SAFIRA
(Explode). Safirazinha uma pinóia. Não lhe dou esse direito de olhar, como se
eu fosse uma mulher qualquer. Vá chamar de “zinha” qualquer Mariazinha
da vida, qualquer Candinha, Luizinha, Julinha... menos a mim. Ora, se toque!

MIQUELINA
É isso mesmo! Agora peça desculpas a ela, vamos! Seu exibido. Seu prese-
peiro. Seu enxerido.

RAPAZ
Desculpa. Eu não quis ofendê-la, dona Safira. Juro.

SAFIRA
Pois continua me ofendendo me chamando de “dona”. Já basta a praga
dessa empregada me azucrinando o dia inteiro, o tempo todo, com esse
termo pejorativo.

RAPAZ
Mas acontece que isso é por conta do tempo ou por questão de educação
também. Quando o cara é novo e conversa com uma pessoa adulta, mais
velha, mais madura do que ele, sempre usa essa palavra. Quando é homem
a gente chama de coroa, quando é gente nossa, da família... e de senhor pra
quem é algum conhecido... (Ouvem-se a campainha novamente).
- 149 -

SAFIRA
Ai, meu Deus. Quem será desta vez?

RAPAZ
Deve ser os caras do caminhão, que estão aguardando as ordens lá fora.

MIQUELINA
Mas sim, abro a porta, faço eles entrarem ou não?...

RAPAZ
Mande-os entrar, por favor! Quero vê-los longe daqui, o quanto antes.

CENA 3

(Enquanto Miquelina vai abrir a porta e é quase atropelada pelos empregados que vão retirar
os móveis da casa que estão em débito, dona Safira atende o telefonema de uma amiga e tenta
disfarçar seu constrangimento etc.).

RAPAZ
(Saindo de cena). Sinto muito. Não posso fazer nada, minha senhora. Desculpa.

MIQUELINA
Credo. Mas o que é isso, gente? Parece um monte de brutamontes! Quase
caí no chão. Vocês não têm educação, não? A mãe de vocês não deu disci-
plina a vocês? Parece até uma invasão dos sem-teto, ou um assalto ou sa-
queamento dos descamisados. Pai d’égua essa. Não, essa daqui não, nem
essa aí, que foram comprados com o meu dinheiro.

SAFIRA
Quando isso? Lamento, amiga. Aceite também meus pêsames. Saudades
do meu falecido? Mais ou menos. Mas sempre. Como? Ah, sim, lá isto era,
um farrista mulherengo de primeira. Um sacana que ele era. Hein? Barulho
aqui? Ah, é o rapaz do supermercado despachando minhas caixas de com-
pras do mês inteiro. O quê? Ah, eu não compro nada à vista, pra mim, tem
que ser tudo na base do crediário. É sim, filhota, economiza mais, sabia?
Pois não. Boa sorte pra você também, queridinha. Escute... dê lembranças
minhas à senhora sua mãe e a Jamil, seu marido. E tome cuidado com o
trânsito pra não acontecer contigo a mesma tragédia que aconteceu com
seu filho. Tá bom. (Breve pausa). Hum-hum... Ligue sempre sim. Tchau. (Após
- 150 -

atendê-lo). Ah, ela é uma chata de galocha. Só porque perdeu o filho menor
no trânsito dirigindo uma moto quer indenização do governo e o ascam-
bau a quatro. Pode? Coitado do governo, se fosse indenizar tudo quanto é
acidente neste país!

MIQUELINA
Quem era?

SAFIRA
A Carmella do Jamil, aquele deficiente de necessidades especiais, ex-com-
batente de guerra.

MIQUELINA
Dona Safira, mulher de Deus, meu anjo de guarda-mor! Aquele homem
ainda vive?

SAFIRA
Vive. Ainda está sajico o diabo do velho.

MIQUELINA
E ela...?

SAFIRA
Quebrada e usada pelo tempo. Pior do que ele. Ela tava me contando que
anda doente de osteoporose, artrite, reumatismo, gastrite crônica e, como
se não bastasse tudo isso, ainda sofre de diabete. Doenças da moda.

MIQUELINA
Tadinha. Qualquer dia vou lá fazer uma visitinha pra ela. Vou levar doces
e frutas pra dona Carmella.

SAFIRA
Mas como, criatura? Você quer matar a mulher? Frutas ácidas, tudo bem,
mas esse negócio de doces, bolo, pudim, quem sofre de diabete não pode
comer.

MIQUELINA
Ah, sim. Nem me lembrava disso. Sou mesmo uma tonta. (Observando o vazio
que ficou na sala). Olhe só pra isto, dona Safira! A sala vazia. Aqueles mal edu-
- 151 -

cados levaram quase tudo, arrastaram o que tinha, só não levaram o fogão,
a geladeira, a mesa da cozinha e a máquina de lavar, porque fui eu que com-
prei com o meu dinheiro, com o meu suor. Nada me foi dado de graça pela
senhora. Quero dizer, com exceção, do meu emprego e de sua hospitalidade
nesta casa, há 15 anos atrás, aparando a mim e agora minha filhinha Luciana.

SAFIRA
(Reparando na sala). Veja, Miquelina. Essas paredes nuas, vazias, sem nenhum
quadro de gente famosa, sem nenhuma tela de pintor premiado, nada de
cristal ou de ouro folheado nos objetos, tudo ou quase tudo foi leiloado pa-
ra safar as dívidas daquele desgraçado do falecido.

MIQUELINA
Olhe... só restam estas molduras mixurucas, que a gente chama de retrati-
nhos de família, pendurados por aí. Quem são eles?

SAFIRA
Meus pais. Meus bisavós. Gente morta.

RAPAZ
(Sorridente, feliz). Olha eu aqui outra vez. Esqueci de lhe dar uma dica. Passe
uma borracha nessa bandalheira que estão fazendo contra a senhora. Venda
a casa e mude de endereço, troque de localidade, vá bem pra longe daqui e
leve consigo aquilo que lhe resta. A maioria faz isso. Até mais ver, senhora.

SAFIRA
Você ouviu isso?

MIQUELINA
(Corre atrás dele). Mas rapaz, tu só vem aqui botar minhocas na cabeça do ou-
tros? Tu podes tudo, mas tu não tem nenhuma grana no banco. Cai fora da
nossa porta, tais ouvindo? Ou eu chamo a polícia.

SAFIRA
Mas que audácia dele, que atrevimento!

MIQUELINA
E a senhora tome juízo pelo amor de Deus! Não vá querer entrar nessa. Is-
so é uma paranoia desse moço. Doidice dele. Deve está acostumado com
- 152 -

trambicagem por aí. Ele quer ver é a senhora “perseguida” ainda mais pe-
los lojistas. Garanto à senhora uma coisa: Nem passando a pena no capeta
eles deixariam de cobrar a senhora por contas devidas.

SAFIRA
Às vezes, eu penso que você só me considera quando faço uma burrada,
para ter o motivo, o pretexto de ficar me esculhambando como se fosse mi-
nha mãe ou uma tia solteirona daquelas bem ranheta.

MIQUELINA
E sou mesmo! Ainda estou aqui por gratidão, por amor e respeito à senho-
ra que já me ajudou e muito. Agora, chegou a minha vez de zelar pela se-
nhora e de cuidar das suas coisas, das suas vontades ou dos seus caprichos.
Mas a fé remove montanhas e a esperança nos resgata a vida, portanto, te-
nho fé em Deus que a gente vai encontrar uma saída, uma alternativa, a se-
nhora vai ver, aí sim, tudo ficará sob controle.

SAFIRA
Tem outro jeito? O jeito mesmo é reconhecer sua amizade, sua dedicação...
sua companhia, às vezes, meio chatinha, mas que eu adoro, já que meus
parentes também resolveram virar as costas para mim.

MIQUELINA
Xá pra lá! Esqueça aqueles ingratos que a senhora tanto ajudou. Mas não
esquente a cabeça, não. Basta que nós duas, eu e minha filha, estamos aqui
e adoramos a senhora.

SAFIRA
(Abraçando-a pela primeira vez). Obrigada, amiga. Por tudo, viu.

MIQUELINA
E esses aqui?...

SAFIRA
Ah! Esta foto tem longa história de família. Mas vou resumi-la numa frase.
Qualquer pessoa critica a ambição, a ganância e a partilha da herança dos
bens da família entre seus familiares, do mesmo modo que brigam e fazem
rasgação de saia, por essa partilha dessa herança. Entendeu?
- 153 -

MIQUELINA
Acho que sim. O que é pior, dona Safira, alguns espertinhos ainda acham
de tirar proveito dessa situação para esvaziar o bolso de alguém, a sacola,
a casa desta pobre viúva, que vive agora às minhas custas. (Ela chorou). Ve-
nha cá, madame: sente aqui, ao meu lado, e ponha sua cabeça no meu colo.

SAFIRA
Não fale assim. Se soubesse o quanto isso me machuca, me humilha...

MIQUELINA
Isso! Chore, pode chorar a vontade. Desabafa. Ponha pra fora tudo aquilo
que vê e sente. Se abafar dentro de si, é pior. (Nesse momento, toca a campainha e
a empregada vai atender com rapidez).

SAFIRA
(Se refazendo etc.). Que diacho! Quero sossego e não consigo.

MIQUELINA
Já vai. Já estou indo. Quem é esse apressadinho ou apressadinha hein?...
(Ao abrir a porta ressurge o rapaz cobrador da loja de móveis). Ah, é você, seu abestado!

RAPAZ
Tome isto aqui, minha senhora.

MIQUELINA
Uma cesta básica! Com vinho, champanhe e tudo como a senhora gosta!

RAPAZ
Pena que eu não posso ficar pra santa ceia. Aceite meu presente, é de cora-
ção. Até logo! (Sumiu batendo a porta atrás de si). Fui.

SAFIRA
Que deu em você, rapaz? Volte aqui! Eu não tenho dinheiro para lhe pagar
esta cesta adubada!

MIQUELINA
Que bom! Hein dona Safira? Agora vai dar pra encher a nossa geladeira e
as latas de mantimentos. Com certeza. (Nesse instante, o rapaz volta da rua e sai no-
vamente). (Fica emotiva). Puxa vida. Pela primeira vez eu recebo um abraço da
- 154 -

senhora. Olha que eu vivo nesta casa há 15 anos e a senhora nunca reparou
em mim o desejo, a vontade de lhe dar também um abraço.

SAFIRA
Exagerada! Nem o santo Papa acredita. Desse jeito, você não entrará no rei-
no do céu, a não ser das formigas. (Risos entre ambas). Agora vá trabalhar. Che-
ga de frescura comigo. Prepare o nosso jantar.

MIQUELINA
É pra já. Pela senhora sou capaz de tudo, até de lavar roupa para fora ou
virar camelô ou vendedora de tacacá, marreteira...

SAFIRA
Menos! Menos! Ponha-se no seu lugar.

RAPAZ
A senhora vai ver. Deixa comigo. (Sumiu no interior da casa. Enquanto dona Safira vol-
ta a sentar-se na sala do aparelho de TV).

SAFIRA
Faça-me um chazinho e sirva-me depois com torradas.

MIQUELINA
(Voltando, com gracejo). Agora tem, né! Graças aquele moço bonito! Sua danadi-
nha. Ela conquista fácil, fácil as pessoas ao seu redor. (Sai de cena).

SAFIRA
Oh, mulherzinha faladeira. É no que dá, a gente como patroa, dar confian-
ça à empregada, a essa gentalha. Não se pode dar a mão, que elas vão logo
querendo o pé. É uma raça brega mesmo, cheia de lesco-lesco, de bambam-
bam, pra lá de xereta. E o que é pior, querem mandar na gente, mudar o
cardápio da gente e até começam a opinar sobre o pessoal de nossa família.
Até eu mesma reconheço que me deixei influenciar por Miquelina, pois mi-
nha linguagem já não é normal como antigamente, antes dela entrar e mo-
rar nesta casa. Hoje, como agora, Miquelina faz de mim gato e sapato. Ela
tira no bico uma prosa comigo, na maior cara de pau. Acho que me tornei
numa irmãzinha pra ela e vice-versa. Manja? Essa mocréia tem a petulân-
cia de dizer, na minha cara, que sou uma velhota ainda um tanto quanto
sagica e sacudida. Agora, ela preocupada em arranjar um amante pra mim,
- 155 -

a fim de me arrancar da solidão. Para ela, será a glória. Quem sabe, mesmo,
se não me aparelho com algum carcamano bem marreta... Desses que pin-
tam na TV de remelexoxó nas ancas e na bunda, nem morta!

CENA 4

(Tempo. Fim de tarde. Começo de noite. Hora do ângelus: hora de servir a santa ceia: pedaços
de pão dormido, garrafa de café com leite, manteiga, torradas e pratos de sopa na mesa. Um
jantar com pouca luz e à luz de velas com castiçais e tudo que sua patroa tinha direito. Mique-
lina parece ágil e afobada).

MIQUELINA
Oh, gentinha escrota, viu dona Safira? Ouvi indagorinha mesmo pelo rá-
dio, que o povo tá reclamando sobre os 50 reais que o presidente Lula man-
dou dar pra eles, a cada mês, para ajudar na alimentação da família.

SAFIRA
Acho pouco também. Me dá pena ver tanta gente passando necessidades
neste país tão rico em minérios e tão pobre ao mesmo tempo. Aí, será um
verdadeiro milagre reduzir a fome a zero.

MIQUELINA
Também, assisti na TV um bando de crianças magrinhas, esqueléticas, ou-
tras de bucho quebrado, um buchão por’acolá, cheio de verminoses, des-
nutridas, coitadas, por falta de legumes e verduras na alimentação delas. O
doutor tava lá dizendo pro homem da reportagem que o problema atinge 40
por cento das crianças até 5 anos, nas periferias da cidade e nos municípios.

SAFIRA
Isto, é pra você ver o quanto a população sofre! Fora aquele povo ribeirinho
que vive no isolamento social político, lá pra dentro das matas, num mata-
gal cerrado ou nos mangues de pescado, sem recursos ou coisa parecida.

MIQUELINA
Já pensou! Ainda tem neguinho que chora de barriga cheia. Acho ótima,
muito legal mesmo, essa iniciativa do governo implantando no Brasil o
Programa Fome Zero. Menos mal, obviamente, para aqueles que não têm
nada pra mastigar, nem farinha pra fazer um xibé na cuia pitinga. Já pen-
- 156 -

sou! Madame, se aparece alguma Georgina da vida ou algum parente dela,


no meio disso, para passar a perna na campanha! Cala-te boca.

SAFIRA
Acho bom mesmo que se cale para sempre. Hoje você tá com a matraca sol-
ta e ferina. Debochada. Escrachada por demais.

MIQUELINA
Olha só quem fala! Nós duas, na verdade, somos a tampa e o penico. Não
queira dar uma de santinha agora. Pra cima de mim, não! (Ao acabar a costura)
Pronto. Já fiz a bainha das calças do meu Acauã e preguei os botões da cami-
sa dele, agora vou servir o jantar. Vai ser um jantar à luz de velas, como nos
velhos tempos, com baixela finíssima, xícaras de porcelana francesa, pratos
da Itália e copos de cristal para água e vinho de Portugal. Tudo chic. Pra nin-
guém caçoar da sua santa ceia, nem falar mal do seu modelito bregachic.

SAFIRA
Cala essa boca, criatura. E vá atender a porta! Se for algum cobrador de lo-
ja, diga que viajei por aí, fui pra Suíça.

MIQUELINA
Olha que eu digo mesmo! Aí, depois, a senhora fica mais encrencada ainda.

SAFIRA
Não, não, isso não. Diga outra coisa, invente qualquer coisa, por exemplo...
digamos, digamos...

MIQUELINA
Que a senhora está no banheiro. Tá doente. Tá com diarréia braba e pronto.

SAFIRA
(Ocultando-se na cozinha em penumbra). Menos mal!

MIQUELINA
(Abrindo a porta). Pois sim? Pois não?

JOVEM
Sabemos que ela é rica e generosa. Boa de coração.
- 157 -

MIQUELINA
Quem? Nossa. Você é um pretinho muito bonitinho sabia?

JOVEM
A dona da casa está?

MIQUELINA
(Suspira fundo). Está sim. Está jantando.

JOVEM
Quero falar com ela. (Adentrando a sala). Com licença... Não se preocupe. Não
tou aqui pra fazer mal a ninguém.

MIQUELINA
Eu sei! Com toda essa beleza e esse porte, se mal não faz, um bem fará pra
minha irmãzinha de fé. Mas sente-se aí, que vou chamá-la... (Ia saindo, quando).

SAFIRA
(Apareceu na sala, vestindo um suéter glamouroso). Miquelina...

MIQUELINA
O negrinho pastoreio? A senhora sabe que nem eu sei! Esqueci de perguntar.

JOVEM
Por favor, madame, desculpe pela invasão ao seu sossego na hora do ran-
go. Mas faço parte do movimento do reggae, que fica aqui perto na rua do
Buraco Forrado. Então, tia, nós estamos arrecadando alimentos pra ajudar
casas de saúde filantrópicas.

SAFIRA
Gesto bonito o seu! Porém, a sua “tia” aqui, está falida, pobretona, pra lá de
miserável, matando cachorro a grito, como diz essa zinha aí. Passe o pano
no ambiente. Veja com seus próprios olhos, meu fofo. Quem te falou que eu
poderia ajudar na campanha? Acho que te informaram errado.

JOVEM
Tou sacando. Vi que a casa tem uma fachada bonita, agora tou sacando que
é só fachada, gente boa. Desculpe. Me perdoa, tia. (E foi saindo).
- 158 -

MIQUELINA
(Acompanhando-o até a porta). Não nos queira mal, moço, por isso. Mas tem tem-
po que é assim. Uma crise doida.

JOVEM
A crise é geral. Tá na barriga do povão. E obrigado pelo suco!

MIQUELINA
De nada. Escute... eu, eu queria lhe dizer uma coisa. Eu adoro reggae.

JOVEM
Verdade? Eu também! É minha praia! Não perco um rally show lá no bar-
racão do reggae.

MIQUELINA
Escuta aqui, se eu te pedir pra dançar o reggae comigo, só um pouquinho,
você dança?

JOVEM
Danço sim. Por que não? Já disse: eu adoro reggae!

MIQUELINA
Sabe o que acontece? A minha patroa anda triste e amargurada esses dias,
aí, pensei dar a ela um pouco de alegria através de você. Depois, você dan-
ça com ela um pouquinho também. Topa?

JOVEM
Senti firmeza. Vamos nessa. (E voltaram para sala, ajeitaram o ambiente e fizeram o
aparelho de som funcionar).

MIQUELINA
(Anunciou alegre). Olha, dona Safira, o coisinha aqui vai dançar comigo um re-
ggae arretado. A senhora vai adorar. Vai ficar mais alegre.

SAFIRA
Eu sei! Me engana que eu gosto. Sua assanhada. Sua alcoviteira. Façam me-
nos barulho por causa da criança que está dormindo. Por favor! (Reparando
no casal dançando). Manja só? Até que o rapaz aí mexe bem dengoso.
- 159 -

MIQUELINA
Ela tá gostando. Oh, glória, meu chapa. A bruaca velha se abre por inteiro,
mostrando um sorrisão cheio de dentes encardidos e escambimbados pelo
cigarro. Ela era pior do que uma locomotiva, uma chaminé de automóvel.

JOVEM
Agora é a sua vez! Tia... venha, dona Safira! Isso. Aproveite e respire a vida
que Deus lhe dá de graça. Tá indo muito bem. Solte a franga, solte a franga,
não deixe a peteca cair. (E caiu desmaiada nos braços dele).

MIQUELINA
O que houve? Não quer mais dançar?

JOVEM
Me ajude aqui, tia. As pernas dela...

MIQUELINA
Que tem as pernas dela? Me diz.

JOVEM
Estão bambas. Estão sem movimentos, sem comando. Acho que ela desmaiou.

MIQUELINA
Ou está morta? Mas meu Deus como foi isso? Eu nunca soube que essa
criatura era hipertensa ou sofria do coração. E agora? O que é que eu faço?

CENA FINAL

(O jovem, auxiliado por Miquelina, coloca o corpo de dona Safira esticado no sofá da sala, en-
quanto providenciam o óbito e o velório dela).

JOVEM
Ela realmente não está respirando. Já fiz massagens no peito dela, respira-
ção boca a boca, passei álcool na testa dela, fiz ela cheirar, e nada. Essa mu-
lher ta ferrada na base da sepultura, já desencarnou. Telefone pro médico
dela, que eu já vou indo. Qualquer coisa eu volto pro velório. (Saiu de cena).
- 160 -

MIQUELINA
(Chorando). Volte aqui, seu ingrato! Não me deixe sozinha com a defunta. Te-
nho medo, tenho um pavor enorme. Oh, meu Deus! O que foi que eu fiz?
Tenha misericórdia de mim, Senhor meu Deus. Pra que fui colocar a coita-
dinha pra dançar e dançar feito uma doidivana, uma maluca, parecia que
não tinha visto antes um crioulo na vida. Dona Safira, não faça isso comigo
agora, e lá onde a senhora esteja, pertinho do Nosso Senhor, quero que me
perdoe, viu minha irmãzinha de fé. Oh, meu Deus, o que será de mim sem
ela. Ruim com ela, pior sem ela, minha companheira de conversê, de fuxi-
co... Vou telefonar pro médico da família, depois pro posto de saúde, a fim
de removerem daqui a defunta numa ambulância... pra fazer uma autóp-
sia. Agora tou me lembrando que a pobrezinha queria que eu colocasse o
seu epitáfio no mausoléo, deixe-me lembrar como era... foi ela mesma que
escreveu... Ah, sim. Já sei! Era mais ou menos assim: “Como prova do meu
derradeiro sorriso nesta terra/ Aqui jaz, alguém que, em Vida, foi e agora
já era”. Tadinha. (Ao telefone). Alô... Alô, é do consultório do doutor Abigail
Castanheira? Não? Mas esse número tá na agenda que era da madame. Co-
mo? E esse bater de pregos que tou ouvindo, é da onde? Claro que dá pra
ouvir. O que, moço? É da casa funerária Pés Juntos? (Desligando o telefone). Que
ironia! Ela mesma anotou o número nessa cadernetazinha.

SAFIRA
(Voltando a si). Anotei o que, sua tonta?

MIQUELINA
(Assustou-se). Aiii. Uiii. Dona Safira, a senhora não estava morta, o que foi que
houve com a senhora? Parece um milagre. Deus ouviu minhas preces.

SAFIRA
Frescura minha. Armação minha. Quero testar a sua amizade por mim.

MIQUELINA
O quê? Ah, dona Safira, a senhora quase me matou de susto. Porra. Que
brincadeira de mal gosto. Égua xiri. (E foi lá pra cozinha).

(Corte na cena).

FIM DO ESPETÁCULO
A
EMPREGADA
E A PATROA
NUMA BOA
- 162 -

A empregada e a
patroa numa boa
Drama social - 2003

PERSONAGENS
Maria
Dionor
Filho
Sr. Eriberto
Figurantes (de 4 a 6 pessoas)

CENÁRIO
Palco italiano. Mostrando apenas uma sala e uma cozinha, onde ocorre todo o espetá-
culo, com recursos de adereços e objetos cênicos, de acordo com a criatividade do dire-
tor, sem distorcer seu objetivo: o fazer teatral regional popular com audiência imediata.

TEXTO
Narra a história de uma mulher de idade, aposentada, discriminada e abandona-
da pela família, porém, amparada e apoiada pelo companheirismo e solidarieda-
de de sua própria e antiga empregada, tão somente fiel à sua humilde amizade. E
tudo que faz ou pleiteia na tentativa de afastá-la da solidão e da depressão, moti-
vada pela viuvez e pelo abandono familiar, tem causado problemas para elas. Mas
a companhia e o afeto da fiel empregada procura afastá-la dessa doença. Doença
que pode afetar qualquer indivíduo independentemente de raça, cor, classe e gê-
nero, onde as mulheres são as maiores vítimas, principalmente, aquelas que viven-
ciam a terceira idade. Será um belo espetáculo, sem dúvida, a partir de uma boa
direção e um bom elenco. O resto fica por conta da cumplicidade e da empatia da
plateia. Com certeza.
- 163 -

CENA 1

(A velha senhora assiste televisão na sala. Depois, entra em cena, a empregada que vem che-
gando da rua, com duas sacolas de compras e passando a separá-las sobre a mesa, na cozinha).

MARIA
Nada feito, Dona Dionor! Eles só lhe mandaram isto aqui pra senhora: ce-
bola, tomate, batata, farinha, leite, manteiga, vitamilho pro mingau e aveia.
Agora, nessa outra sacola veio o feijão, a farinha, o arroz, macarrão, o jabá...
Tudo, até este fim de mês. No próximo, eles disseram, a sua mordomia vai
acabar, não haverá essas mordomias.

DIONOR
(Alheia ao assunto). Pare de reclamar, criatura, e venha dar uma espiada nesse
desenho animado! Veja como as imagens são lindas! Olhe só, que beleza,
que coisa mais engraçada!... (E riu às gargalhadas).

MARIA
Não sei que graça tem isso! Coisa mais patética. (Desligou a TV). Chega por hoje.

DIONOR
Sua grossa. Sua mal-educada. Por que desligou? A televisão não é sua!

MARIA
Eu sei disso. E quem não sabe disso morreu ontem! Acontece que a senhora
já amanhece o dia grudada nessa televisão, fica o dia todo aí sentada, assis-
tindo coisas que não deve, nem sequer me dá ouvidos quando falo.

DIONOR
É porque você só fala besteira. Nada que vem da sua boca tem proveito.

MARIA
Ah, é? Pois lembre-se de que estou sendo sua amiga, querendo livrar a se-
nhora de algum transtorno. A senhora não foi recentemente operada do
olho esquerdo? Se ficar por muito tempo diante da TV prejudicará a cirur-
gia e aí vai querer culpar o médico depois.
- 164 -

DIONOR
Sua chata! Prefiro esquecer que ainda existo em meio a esse mundo cão!!
Pelo menos o desenho animado me desopila o fígado. (Religou a TV).

MARIA
Faz de contas que eu acredito nisso. E aproveite bastante porque para o
mês que vem essa mordomia vai acabar também. Vão cortar água, ener-
gia... o escambau a quatro!

DIONOR
Apagão de novo? Mas isso já tá virando uma anarquia!

MARIA
Não se trata desse assunto. Estou me referindo aos seus filhos que fazem
ameaças de acabar com a sua cota de alimentos e outras despesas nesta casa.

DIONOR
Ora, Maria! Cachorro que muito ladra não morde!

MARIA
Pois acho melhor a senhora tomar cuidado e se prevenir, como se diz. Por-
que desta vez aquela cachorrada toda está disposta a lhe morder sim, até
vê-la cair morta.

DIONOR
Deus é grande, está comigo e há de me proteger contra a maldade deles!

MARIA
Ah, Dona Dionor! Eu também acredito na existência de Deus. Mas pra essa
raça, a maldade está acima de tudo. Sabe o que eles disseram? Que vão cor-
tar sua mesada e que vão providenciar um asilo qualquer, onde a senhora
possa morar. Uma espécie de abrigo que acomodam velhinhos aposenta-
dos e desamparados pela família.

DIONOR
(Desligou a TV e gritou). Nem morta! Eles farão isso comigo! Que se danem todo
mundo! Eu vou mostrar pra eles quem manda em mim e nas minhas von-
tades! Daqui não saio, daqui ninguém me tira, a não ser carregada para o
- 165 -

cemitério. Estou cheia deles! E você, sua fofoqueira, pare de me trazer pés-
simas notícias de lá.

MARIA
Eu fofoqueira? Eu só queria ajudar. Já que estou vendo a senhora abarrota-
da de problemas de saúde.

DIONOR
Isso não me deixa arrasada. Muito pelo contrário, para os que ainda não sa-
bem aqueles ingratos ficaram com o meu dinheiro da aposentadoria, e com
a pensão que o meu velho deixou ao morrer num acidente militar. Maria,
não tem cabimento eles fazerem isso contra mim!

MARIA
É muita ingratidão mesmo, é muito desamor. E como toda essa grana foi
parar nas mãos deles?

DIONOR
Ao cair doente, depressiva, quase pra morrer de hipertensão, acabei assi-
nando, passando uma procuração para eles, para os dois mais adultos: Ana
Joaquina e Antonio Luiz.

MARIA
E não tem como anular isso, voltar atrás na sua decisão?

DIONOR
Claro que tem! Basta ir ao banco e desfazer tudo que eu assinei e pronto.
Aí, eu quero ver da onde eles vão tirar pra encher a barriga, pra manter o
luxo e a orgia deles.

MARIA
Então, minha querida, faça isso! Não deixe as coisas acontecerem de mal
a pior pra cima da senhora, sabendo que possui recursos necessários pa-
ra sua sobrevivência. Se quiser pode contar com o meu apoio. Eu lhe dou
maior força.
- 166 -

DIONOR
Obrigada, viu. Estou cheia deles. Estou chateada com isso. Chega de humi-
lhação, minha amiga. Se quero mastigar algo, comer melhor ou então ves-
tir algo novo, tenho que ter o consentimento deles ou então mandar você à
casa deles, para apanhar algum dinheiro que eles, supostamente, mantêm
na ilharga. Tinha até graça! Eu - a própria dona do dinheiro, ainda lúcida -
passar necessidades por causa da usura daqueles estúpidos. Filhos desna-
turados. (Lacrimejou e a empregada lhe enxugou os olhos com cuidado). Obrigada, Ma-
ria. Pobre de mim se não fosse você nessa casa!

MARIA
Olhe, a senhora pode até achar que é fuxico, fofocada, mas não posso, nem
devo ficar calada, então aquele que é enfermeiro...

DIONOR
É o Antonio Luiz! Ele é muito inteligente, estudioso e astuto.

MARIA
Pois é. De quando em quando, ele fala que vai arranjar um atestado de in-
sanidade mental para poder internar a senhora num asilo de loucos.

DIONOR
O quê? A mim?

MARIA
E disse mais: “Só assim poderemos nos ver livre da mamãe e de suas exi-
gências idiotas”. Foram as palavras dele, na minha cara, quando tentei de-
fender os seus direitos. Até me chamou e interesseira. Coisa que eu não
sou. Sou apenas sua amiga.

DIONOR
E eu acredito! Pode deixar eles comigo. Não vou me deixar intimidar por
esses abutres mal-acostumados com mordomias que o meu marido lhes
oferecia.

MARIA
Só sobrou pra senhora! Agora taí o pago que lhe dão! Nunca vi coisa com
coisa ou pelo menos igual.
- 167 -

DIONOR
O mundo tá cheio deles, Maria!

MARIA
Acho que a senhora não soube criar eles. Vai ver que nem batia neles.

DIONOR
Pior que não. Sempre tiveram do bom e do melhor. Bons colégios, bons clu-
bes que frequentavam, viagens lindas pelo mundo inteiro, pra no fim, dar
nisso. O meu velho, por sua vez, apesar de militar, liberava eles pra tudo o
quanto na vida, afrouxava mesmo. Nem te conto Maria, o nosso casamen-
to, no fundo, era um fracasso. Nem quero mais tocar nesse assunto.

MARIA
Então não toque, pronto. Não precisa. Não se torture com isso, com lem-
branças amargas. Tem coisa na vida, viu Dona Dionor, que a gente prefere
esquecer, né não?

DIONOR
Essa é uma delas. Ah, Maria! Tive que conviver com um marido farrista...
mulherengo, em cada esquina, o safado tinha uma piva esperando por sua
gorgeta. Depois, surgiram outros filhos dele por aí, que foram me sungan-
do tudo o que eu tinha, deixando-me sem nada, atordoada, sem saber co-
mo agir. (Chorou).

MARIA
Chore não, Dona Dionor. Nem vale a pena chorar por gente que não mere-
ce... Esqueça tudo isso. Essas coisas lhe trazem sofrimento, amargura, sei lá.

DIONOR
Agora querem me confinar num asilo de loucos!

MARIA
Mas não vou deixar.

DIONOR
Não se meta nisso. Você vai enfrentar uma barra.
- 168 -

MARIA
E quem não enfrenta uma barra hoje em dia pela própria sobrevivência?
Tou com umas ideias na cabeça me remoendo.

DIONOR
Que ideias são essas? Não me diga que é aquela mesma ideia que eu tive
uns tampos atrás.

MARIA
Exatamente. É essa mesma.

DIONOR
Mas a Maria tem cada uma que parecem duas! Aquilo nunca vai dar certo.

MARIA
Vai, sim, senhora. Vai funcionar direitinho na cabeça deles. Deus está co-
migo, não é isso que a senhora diz? Então. Mãos à obra, minha santa, que
aí vem gente atrás da gente. Até os vizinhos vão adorar a sua ideia mara-
vilhosa, Dona Dionor!...

DIONOR
Será? Mas, pelo menos um consolo me dará: durante alguns anos terei uns
belos e bons momentos a me deliciar na vida. (Maria vai e volta trazendo uma ban-
deja com sua dieta).

MARIA
Pronto. Aqui tem sua dieta da manhã. Enquanto preparo o almoço e vou lá
na venda do “Seu” Eriberto. Vamos nos munir de armas para atacar aque-
les imbecis e tacar o porrete na consciência deles. A senhora vai ver.

DIONOR
O que vai fazer? Não tome decisões precipitadas, Maria! Olhe, as conse-
quências mais tarde, bom! Depois não vá dizer que não lhe avisei. (Gritou na
direção em que ela saiu afobada).
- 169 -

CENA 2

(O telefone toca várias vezes e a velha senhora resolve, finalmente, atender fazendo gracejo.
Nessa hora entra Maria trazendo um documento em mão e fica apreciando a cena de longe,
sem ser vista por Dionor).

DIONOR
Esse porcalhão. Se não atender, fica aí azucrinando os ouvidos. Quem se-
rá o apressadinho? (Ao telefone). Vou botar pra correr se for cobranças. Alô!
Quem?... Aqui é da casa funerária pés juntos, pois não! Temos ótimas pro-
moções de funerais: arranjos de acordo com o defunto, mulheres choradei-
ras, gente que joga baralho, gente que toca seresta ou as músicas que o fale-
cido gostava, enfim, temos filmagem pra registrar a hipocrisia dos parentes
e dos falsos amigos... Como?... Ora vai pra... Desligou o desgraçado.

MARIA
Mas que história é essa de “casa funerária pés juntos”!?

DIONOR
Foi coisa que inventei para afugentar aos meus credores e tem dado certo!!
Eles ficam apavorados, me tacham de louca, me esculhambam, depois des-
ligam e não voltam mais a me importunar.

MARIA
Bonito! (Aplaude). Muito bonito! Quem diria, hein Dona Dionor, a senhora
tão impoluta, tão cheia de frescura melhor dizendo, metida em feio arras-
tão, apelando pra mentirinhas inocentes!

DIONOR
Esqueça esse triste episódio. Prometo que isso não vai se repetir.

MARIA
Olhe, aqui tem as promissórias que a senhora vai assinar para que o seu
Eriberto firme um contrato conosco sobre a venda das flores. Assine logo!

DIONOR
Maria, minha flor de lótus, você não existe! Você é extraordinária! Como
conseguiu conversar com ele, convencer aquele mão de vaca?
- 170 -

MARIA
Fui lá. Primeiramente, apelei pra mulher dele que atende na loja, depois,
foi a vez dele, aí ele se confiou e deu ordens pra abrir o crédito. Claro que
nós duas não podemos enganar o homem, a confiança dele, muito menos a
gente surrupiar os negócios, vamos pagar tudo direitinho, de acordo.

DIONOR
Claro, né Maria! Ninguém entra num negócio desses pra perder.

MARIA
Até porque nesta altura do campeonato, em lugar de interná-la e confiná-la
num asilo de loucos, é provável que seus algozes irão se lastimar por não
terem motivos de concretizar o plano diabólico.

DIONOR
Dramática! Você voltou de lá do seu Eriberto muito inspirada ou anda as-
sistindo muita novela na televisão!

MARIA
Agora sim! A senhora vai se livrar de um cárcere privado, vai se livrar da so-
lidão e do esquecimento, iguais aqueles que vivem no isolamento total, ab-
soluto. Depois como micro-empresária - eu disse “micro-empresária” gos-
tou, gostou?! - Ninguém vai ter poderes pra sacanear com a senhora e vai
até arranjar novas amizades, novos amigos, vai adquirir status, quem sabe,
arrumar um novo namorado, um maridinho pra esquentar suas costelas!

DIONOR
Ah, lá vem você pensando em coisas que não deve! Longe de mim esquen-
tar a minha cabeça com semelhante besteira. Já fiz a minha escolha: que-
ro morar sozinha sem ninguém por perto pra roubar a minha privacidade.
Mas, me diga aqui, onde é que assino esse papelório?

CENA 3

(Nesse instante, toca a campainha e o telefone ao mesmo tempo. A empregada corre para aten-
der o telefone, depois desliga, para atender a porta).
- 171 -

DIONOR
Menina! Atende logo a porcaria dessa porta! Já faz tanto tempo que essa
campainha não tocava , que estou curiosa pra saber quem se lembrou de
mim!!

MARIA
(Ao abrir a porta). Adivinhe!

FILHO
Querida, estimada e idolatrada mamãezinha! (Correu para abraçá-la).

DIONOR
(Tomou um susto, deixando cair os papéis no chão). Antonio Luiz!!! Que veio fazer
aqui? O que te trouxe aqui afinal? Me diga.

FILHO
(Com deboche). Calma, mãezona, calma. Uma pergunta de cada vez. Só vim
mesmo trazer uma procuração para ela renovar, já que a primeira caducou,
tem que assinar outra e também pra saber da minha querida mãezinha,
que história é essa de “casa funerária pés juntos” que alguém ouviu da se-
nhora nesse telefone.

MARIA
(Tentou interferir). Seu Antonio Luiz deixe a sua mãe em paz! Ela não fez por
mal. Só queria descansar a cabeça um pouco.

FILHO
(Empurrando-a). Cala essa boca, sua cretina. Vá procurar o que fazer. Você é pa-
ga pra isso e não para se meter em assunto de família. Saia daqui!!!...

MARIA
Não saio! Nem que a vaca tussa ou vá pro brejo! Sou paga também para
cuidar dela e se fizer algum mal a ela, pode escrever, saio daqui sim, mas
para ir denunciá-lo na delegacia das mulheres , ouviu bem, seu estrupício?
Bote a mão nela pra ver só uma coisa! Arranque um só fio dos cabelos dela
pra ver o quanto do que sou capaz. Experimente!
- 172 -

FILHO
(Olvidando). Mulherzinha interesseira, taí dando o bote. Pensa que eu engu-
lo essa bondade toda. Então, a senhora vai ou não vai assinar essa droga?

DIONOR
Por favor, Maria, junte a minha caneta e os papéis que caíram no chão...

MARIA
Não diga que, em vez de assinar sua Lei Áurea, a sua liberdade, vai assinar
sua sentença de morte, Dona Dionor.

DIONOR
Não se preocupe comigo. O que está feito, está feito, não está por fazer. E
eu só tenho uma palavra. Nunca voltei atrás nos meus atos, nas minhas ati-
tudes, a não ser quando querem pegar no meu pé, não é isso mesmo, Anto-
nio Luiz, meu filho bastardo?

FILHO
Que papéis são esses? Promissórias? (Deu uma risada). Vai virar empresária ago-
ra? Ótimo! Ótimo! Mais grana obteremos para nós, né mãezinha? Boa sor-
te nos seus novos negócios e empreendimentos. Faço votos, desde que não
esqueça de mim na sua conta bancária e no seu testamento, tá mãezinha?!!!

DIONOR
Cretino! (Acabou de assinar). Pronto, Maria. Esses estão assinados e com muito
gosto! Mas esse aqui... eu faço isto aqui... (Rasgou em picadinho).

MARIA
(Com euforia). Isso, Dona Dionor! Gostei de ver! Meu Deus, pensei, numa cer-
ta hora, que a senhora não teria coragem de fazer isso, cheguei mesmo a
duvidar. Me desculpe.

DIONOR
Maria, minha flor, me traga um copo com leite gelado...

MARIA
É pra já, minha patroa querida! Volto já, já!
- 173 -

FILHO
A senhora me paga por isso. Por essa humilhação diante dessa empregadi-
nha fuleira e interesseira.

DIONOR
E que ao morrer, deixarei tudo para ela. Já fui ao cartório, já fui ao banco, e
passei tudo pro nome dela e da filha dela, em reconhecimento a tudo que
Maria fez por mim e por vocês durante a adolescência de vocês!!

FILHO
Mas isso não pode ser feito assim sem mais, nem menos, sem o consenti-
mento da família.

DIONOR
Como não? Eu sou a única dona das minhas coisas e do meu dinheiro.
Quanto a vocês esbanjaram por muito tempo e não souberam desfrutar,
muito menos investir em prol de vocês mesmos, só souberam arranjar pre-
cipício com mulheres da rua e filhos por aí, semelhante ao pai de vocês,
agora chega!!! Danem-se quem quiser! Vão pros quintos dos infernos!

FILHO
E eu? Como vou viver sem a sua ajuda? O dinheiro que ganho lá no hos-
pital é uma mixaria.

DIONOR
Procure fazer bico. Dê seu jeito. E se puder arranje um atestado de doido
pra poder se aposentar muito cedo, viu seu abestado. Agora saia da minha
casa! Não volte mais aqui! E diga lá pros outros que voltei a viver!

FILHO
Tá certo. Mesmo assim, vou fazer uma última tentativa. Aguarde! (Sumiu).

MARIA
(Voltando com a bandeja com cerveja). Desculpe pela demora, Dona Dionor... é que
eu tive que ir ali na mercearia ao lado e lhe trazer isso aqui.

DIONOR
Mas eu pedi leite! Maria, o que significa isso? Você já me viu encher a cara
com cachaça ou cerveja por acaso?
- 174 -

MARIA
Não!

DIONOR
Já me viu nas esquinas bebemorando alguma coisa com alguém?

MARIA
Não!

DIONOR
Nem mesmo aqui dentro de casa?

MARIA
Também não!

DIONOR
Então, Maria, porque essa história de cerveja agora no fim da vida!

MARIA
Ah, Dona Dionor! Que desfeita! Deixa de ser chata. O que é que tem mo-
lhar um pouco o bico com uma cervejinha besta? Me diga. Depois essa da-
qui é do tipo de refresquinho, geladinho, gostosinho, não faz mal a nin-
guém, é tudo maneiro...

DIONOR
Tá bom. Mas vou provar só um copo, apenas um! (Ambas riram felizes).

MARIA
Eu sabia! Eu sabia que a senhora ia gostar! De vez em quando é bom não
levar ao pé da letra essas coisas tão sérias da vida, senão, a gente acaba fi-
cando doente, depressiva, neurótica, solitária demais. Eu hein! (A campainha
toca, os copos se quebram no chão, o medo, o susto toma conta de ambas as senhoras).

DIONOR
Meu Deus! Maria, Maria... Vai ver que o Antonio voltou e trouxe a polícia!
Eles vão me levar presa numa camisa de forças!

MARIA
Calma. Muita calma. Não há de ser nada. Deixe-me ir ver na porta...
- 175 -

DIONOR
Não demore. Estou apavorada. Depois limpe tudo isso aqui antes que alguém
veja. Meu Deus, o que irão pensar de nós duas? Com certeza, vão conside-
rar que nós somos duas alcoólatras anônimas. É sempre assim que começa...
Com um gole, depois outro, mais outro. Eu não quero mais. Deus me livre!!!

MARIA
(Após limpar o chão foi abrir a porta). Pois não, quer falar com quem?... Ah, chega-
ram as flores!!! Entre, entre, seu Eriberto... pode entrar, vai entrando... sen-
te aí um pouco.

ERIBERTO
(Sentou-se no sofá). E onde está sua patroa?

DIONOR
(Surgindo na porta). Estou aqui, seu Eriberto.

ERIBERTO
Fiz questão de lhe trazer as flores pessoalmente, já que vamos ser parceiros
de negócios. Aqui estão as mais refinadas e as mais lindas do ramo. A se-
nhora vai fazer sucesso com sua floricultura. Eu lhe garanto.

DIONOR
São lindas!

MARIA
Gostou?

DIONOR
Adorei! Amei!

ERIBERTO
Essas, por enquanto, é doação que faço pra senhora pra dar início ao seu
negócio, depois, a senhora vai bancando o resto. E esta aqui é uma tenda
móvel, uma espécie de barraca de lona, para revender as flores, até a se-
nhora poder negociar um kit de verdade.

DIONOR
Meu Deus. Nem sei como lhe agradecer, senhor Eriberto.
- 176 -

ERIBERTO
A mim não agradeça nada. Mas, à sua empregada, que entrou com a grana
dela e comprou tudo isso para lhe tirar do sufoco!

DIONOR
(Abraçou-a emocionada, chorando). Oh, Maria! Não precisava tanto.

MARIA
Agora somos empresárias de verdade! Satisfeita?

ERIBERTO
Mãos à obra, gente! Quero ver essa espelunca funcionar! Querem me ajudar?

DIONOR
Claro que queremos, senhor Eriberto! Estou muito velha pra carregar coisa
pesada, pra subir em escada...

ERIBERTO
Então vamos nessa. (E todos transformaram o palco numa floricultura. Dona Dionor, emo-
cionada e feliz, sai distribuindo flores na plateia sob o protesto da sua co-parceira).

MARIA
Êpa, êpa Dona Dionor! Nada disso. Se começar a distribuir florzinhas por
aí à toa vamos acabar afundando o nosso negócio, viu santa! Nada de co-
ração molhe, coração de manteiga. (Maria vai ao seu encontro no meio da plateia).

DIONOR
Menina! Essa gente merece. É gente fina, é gente boa. Deixa de ser sovina.
Afinal de contas, não estamos inaugurando a nossa loja? Então. Faz de con-
ta que são brindes de inauguração, Maria.

MARIA
(Sorriu). Aplica! Mas vou ficar de “olho” em você, viu santa?

(A música sobe. Cai a luz no cenário e na plateia. Depois a luz volta ao normal com o elenco no
palco para receber os aplausos da plateia).

FIM DO ESPETÁCULO
VILA DA
BARCA
- 178 -

Vila da Barca
2003

PERSONAGENS
Moleque Pedro
Dona Coló
Lobato
Bastião
Dona Maricota
Mariano
Zé Guariba
Raimundão
Piva
Povo – figurantes

CENÁRIO
Palco italiano e semi-arena. Mostrando Vila da Barca, uma favela ribeirinha, localiza-
da num bairro periférico de Belém, onde a malandragem impera e norteia a popula-
ção oriunda de antigos pescadores e grileiros foragidos das guerrilhas de Araguaia,
daí o bandidismo no local deixando os moradores - novos habitantes - em pânico.

TEXTO
Questiona o futuro dessa comunidade com relação às mudanças sociais e geográ-
ficas nessa área, onde o remanejamento das famílias de bem tende a ser feito com
maior zelo e cuidado, em busca da cidadania e da dignidade humana.
- 179 -

CENA 1

(Cena do afogamento do garoto na maré debaixo do assoalho das palafitas).

MOLEQUE PEDRO
(Correndo pela palafita pra avisar). Seu Lobato... Seu Bastião... Dona Coló, corram
aqui depressa!... Corre, gente! Tem um moleque afogado debaixo da ponte,
arrastado pela maré!!!... (Todos correm pra ver).

DONA COLÓ
O que houve? Que gritaria é essa, moleque Pedro?

LOBATO
De quem, moleque, tu tava falando?

BASTIÃO
De algum “presunto” a mais nessa Vila da Barca dos infernos, é isso?... Se
for, tou cansado de dizer, nascido a 37 anos nessa Vila, em casa, com par-
teira, e não na Santa Casa, faço questão de falar de que já vi coisa com coi-
sa e muito pior.

DONA COLÓ
Mas deixe o menino falar, seu velho falador. Diga pra nós, moleque Pedro,
o que houve praquelas bandas da ponte. (Reparando nele). Chega o menino tá
com o coração batendo forte em tempo de sair pela boca!

BASTIÃO
Te desconjuro. Então foi uma coisa feia que o moleque viu. Fala, Pedro!

MOLEQUE PEDRO
(Quase soluçando). O Donato...

LOBATO
Que tem o meu filho?!

MOLEQUE PEDRO
Tava brincando na ponte de manhãzinha, a maré tava enchendo, aí ele pu-
lou na água e a maré foi arrastado ele, quanto mais ele gritava mais ela ia
levando ele pra bem longe...
- 180 -

LOBATO
Meu filho, não!! (Gritou de dor). Não pode ter sido ele, o menino nem sequer
sabia nadar.

DONA COLÓ
É no que dá morar nesses alagados dos infernos! A gente acaba perdendo
as nossas crianças, os nossos velhos, afogados, arrastados pela maré alta,
altas horas da madrugada!

MOLEQUE PEDRO
Agora tem um monte de gente querendo tirar ele que tá preso debaixo do
assoalho da palafita!...

DONA COLÓ
Vamos lá pessoal, ajudar a tirar o menino de lá! Vem Bastião! Vem, Lobato!

LOBATO
Nem tenho coragem, viu Coló. Custo acreditar que meu filho tenha morri-
do afogado na espuma da maré enchendo, acabando com seus sonhos de
criança!!!

BASTIÃO
Vamos, dona Coló, deixa o Lobato aí com sua dor.

MOLEQUE PEDRO
Borimbora! Antes que os caranguejos façam um estrago no corpo dele.
(E foram saindo para um lado dos becos da Vila).

LOBATO
Oh, vidinha ingrata, gente. Olha que eu moro nessa Vila há anos e anos e
nunca soube de família ou de parente que fosse totalmente feliz, sem algum
problema, sem embarcar nesse drama das perdas por essas bandas daqui.
Aos poucos a população vai se cansando disso aqui enquanto o poder pú-
blico vai aterrando a área alagada, mais palafitas iam surgindo e avançan-
do sobre o rio, aí a natureza se revolta e toma tudo de volta, arrebata casa,
arrebata família e nossas crianças. Oh, meu Deus! (Soluçou). Por que Donato,
meu Donatinho?! O meu inocente, bem antes dele completar 10 aninhos!...
- 181 -

CENA 2

(Coreografia da ponte na retirada do cadáver do menino afogado).

TODOS
(Uníssonos).
Vila da Barca nessa enseada
onde a atração dos barcos
me devolve o corpo dessa criança
que morreu nesse alagado!...

DONA COLÓ
Um dia... a gente vai sair dessa. Vamos deixar de morar em palafitas e nes-
se alagado.

BASTIÃO
Se Deus quiser! Deus lhe ouça, viu dona Coló.

DONA COLÓ
Já ouvi dizer que as autoridades vão melhorar tudo isto aqui. Vão remanejar
a gente prum lugar enxuto, seco, onde tem esgoto e condições de moradia.

DONA MARICOTA
Só se for no dia do São Nunca!

BASTIÃO
Diz-que vão dar casas de alvenaria pra gente morar, mais próximo do cen-
tro da cidade.

DONA COLÓ
Vai ser muito chic!! Vamos ter mais higiene! Mais saúde, longe desse alagado.

DONA MARICOTA
Só acredito vendo! Enquanto tiver no papel... acredito, não.

BASTIÃO
Ora! Deixa de ser pessimista, Dona Maricota. A gente tem que acreditar
nos homem do governo. Se eles falam que vão fazer isto e aquilo outro pra
- 182 -

melhorar a vida do povo da Vila da Barca é porque vão mesmo! Senão, pra
quê que serviu o meu, o seu, o nosso voto no dia das eleição, ham?

MARIANO
Nem te conto. Corre por aí um boato que os ôme do governo vão cons-
truir... nas margens da Baía do Guajará, em toda extenção do muro de arri-
mo, uma área de convivência de 10 metros e largura com um total de 1.250
metros quadrados, em piso de pranchas de madeira, com bancos, jardins,
telefones públicos, brinquedos e escada de acesso para o rio.

BASTIÃO
Nossa! Tudo isso?

MARIANO
Como se isso não bastasse, eles vão incluir ainda a construção duma cre-
che, uma escola infantil, um centro de cidadania que abrigará cursos de al-
fabetização de adultos e oficinas profissionalizantes, além de...

DONA COLÓ
E o que vem a ser isso?

MARIANO
E eu sei? Sei lá! Só sei dizer que a falação deles é muito boa. São gente fina,
gente de fala mansa, que vai engurupindo a gente que mora nesse morre-
douro dos diabos.

DONA MARICOTA
É! Vamos esperar pra ver se acontece mesmo! Pra onde levamos o Donato
pra capela da Vila ou pra casa do pai dele, o seu Lobato?...

BASTIÃO
Melhor não, vamos levar o pixixito pra capela do padre Inácio. Lá, sua al-
ma, estará segura dos castigos e das maldades desse bandidagem daqui.

MOLEQUE PEDRO
Borimbora, gente! Além disso essa demora de enterrar o moleque aí tá de-
morando muito. É que devido isso os urubus já tão lá em cima dos mastro
dos barcos só urubuservando afim de triturar o corpo do moleque. Tanto
assim que já tem um ali em cima da casa do Zé Boteco, espia só, bem ali...
- 183 -

DONA COLÓ
Não há de ser nada, moleque Pedro. O Donato será enterrado com digni-
dade e ainda: com muita reza, muita ladainha, muitas flores, devido mor-
rer anjinho.

LOBATO
(Ao vê-lo carregado nos braços da comunidade). Meu querido filho! Como teu pai vai
suportar isso, como? Como vou aguentar tanta saudade de ti? Me diz.

DONA COLÓ
Comadre Maricota, traga uma toalha de renda pra encapar a mesa. Pedro!
Vai pegar um copo d’água na geladeira pro compadre Lobato.

MOLEQUE PEDRO
Na geladeira? E ele tem geladeira?

DONA COLÓ
(Berrou). Pedro! Imagem do cão! Vai na geladeira e trás a água. Daqui a pou-
co o homem desmaia de tanta dor no peito, coitado. (Pedro vai e volta com o co-
po com água).

MOLEQUE PEDRO
Essa tá geladinha. Tá de doer os dentes. (O Lobato bebe e faz um pedido).

LOBATO
Pedro! Vai buscar uma xícara de café pra mim. Não, não, não, vai buscar
um copo de leite, é melhor.

MOLEQUE PEDRO
(Indignado). Escute aqui seu Lobato... Quer saber duma coisa? Eu não sirvo
pra empregado de ninguém ou pra puxa-saco de alguém. Se quiser mais
coisa: vai tomar na... na cozinha, viu??? (E saiu correndo pela palafita).

TODOS
(Orando).
Foi-se o tempo em que pedir favor
era como alugar uma amizade a vida toda,
agora por dúvida e por desamor
a voz que canta não desafina à toa.
- 184 -

Olhando essa matéria


enrolada num lençol
antes que o Mal aconteça:
não me deixa ver a luz do sol.

Esse gesto doloroso


um dia será a minha cruz
e num gesto mais profundo
eu te agradeço, oh meu Jesus!!!...

(Noutro plano de ação ocorre um tiroteio entre bandidos por causa de mulher).

CENA 3

(Ambos no meio da ponte, frente à frente, assistido por dezena de pessoas da Vila).

ZÉ GUARIBA
Ei, Raimundão! Se tu for macho, saí fora, vem pra rua me peitar! Seu Bacu!
Seu baitola! Coragem aqui é mato pra te matar. Raimundão!!! Cadê tu seu
pustema? Vamo acabar com essa arenga de vez, seu filho duma égua! Nun-
ca mais tu vais querer mexer com a mulher dos outros. Anda, vem! Vem me
peitar, seu carachué de mulher, otário, gigolô... (O povo corre na ponto pra ver).

RAIMUNDÃO
Tou aqui, meu mano véio. Pode apostar. Pro nosso acerto de contas por cau-
sa daquela piva da Odaléa, piva nojenta, piva escrota. Mas se tu quiser me
apagar, a hora é essa, meu irmão. Podes crer. Vou botar pra chulear contigo.
E tu saca da arma primeiro, se tu puder, não é fácil descascar esse abacaxi.

ZÉ GUARIBA
Acabo com teu topete, com tua raça, malandro. Na frente desse povo. Vou
fazer tu calar essa boca. Nem que a polícia entre cá pra dentro da Vila e co-
loque as algema na mão, mas te digo uma coisa: tem muito lugar, aqui em
Belém, que o povo virou contra o povo, bandido contra bandido e quem
tá em cima da onda tá no meio das pontes, só nós dois, eu e tu, malandro.
- 185 -

RAIMUNDÃO
Qualé, meu irmão? Pra cima de mim isso não cola, nunca colou, tais ouvin-
do? Na ação basta um golpe de vista. E logo acabo com esse teu furdunço!
Não tem borocochô comigo, não. Ninguém se espante. Tu tá ferrado na mi-
nha mira.

ZÉ GUARIBA
Ah, tu bota, tu bota fé? Os pessoal em quem ninguém bota fé, só tá de mu-
tuca, querendo ver tua carcaça tombar nessa maromba nessa ponte ma-
rombenta. (Logo a piva aparece no meio da cena, trêmula de raiva e revolta).

PIVA
Olhem aqui vocês dois... Eu posso ser piva escrota como sou e vou cair de
amores pelos dois, não. Nesse rebuceteio de vocês quero estar fora desse
rebuliço todo, pois não sou nenhuma vaca ferrada no pasto pra servir de
cobertura, cobaia de dois cabras frouchos, que nem vocês, que só tem co-
ragem por levar vantagem no uso dessa arma. Agora, quero ver se tu e tu
são macho de verdade pra desencantar a verdade, jogando essa arma fora,
e disputando a mim, no tapa, na porrada.

RAIMUNDÃO
Eu topo!

PIVA
E tu Guariba? Topas?

ZÉ GUARIBA
E depois o que se sucede com quem perder na queda?

PIVA
Negócio seguinte. Quem fica de pé é quem ganha na parada e quem fica
como quem vai leva terra no aterro que incha no peito do pressunto.

RAIMUNDÃO
Vai morrer pra lá. Piva nenhuma tira sarro da minha cara. Só se eu fosse
um filho da puta. Mas tu? Tais é fudidona no furdunço dessa Vila onde a
maré vai te levar pra bem longe. Tu não tem escapatória.
- 186 -

PIVA
E por acaso tu tem? Tu tem? Tem quem diga que tu é que não tem escapa-
tória, nem futuro nessas pontes de palafita. Tu que te mete nas mirongas
por qualquer piva que te escancare o rabo vai acabar com a boca cheia de
formiga qualquer dia desse. Por mim, pode marombar ele de bala, ou de
porrada, pouco tou ligando. Malandro que se preza não leva desaforo pra
casa. É ou não é, gente?

POVO
(Que os assiste, grita em coro).
É!!! Mata esse cabra safado!

RAIMUNDÃO
Vou te matar filho duma égua!!! (E atirou nele rapidamente sem dar a ele a chance de
defesa, caindo morto ao chão). Esse grileiro pensava que eu tinha medo de sacar
da arma. Caboclo refeito na lama da maré, agora vai longe desovado na es-
puma da maré. (Ele próprio carrega o defunto pendurado nas costas para atirá-lo nas águas).

PIVA
Raimundão! Tu acabou com o meu homem! Tão taludo, tão afoito numa
cama, num coito refeito de tanto amor e maresia que parecia ser um boto
da Amazônia!

RAIMUNDÃO
Agora vai longe! Vai passarinho para onde todos passarão! Mala vazia...
no meio do rio. Pronto. O bandido vai servir de comida pros caranguejos.

PIVA
(Chorou). Seu bruto. Ele não queria te matar. Era bafo dele. Veja o revólver de-
le. (Ele examinou de perto).

RAIMUNDÃO
Mas é de brinquedo! Porque tu não disse logo a verdade?

PIVA
Nem eu mesma sabia! Descobri isso agora quando juntei do chão.
- 187 -

RAIMUNDÃO
Puta merda. Ora, sim senhor, bastava um golpe de vista pra ver se a arma
era de brinquedo! Agora... quem fica, fica como quem leva a pior. Tu pode
choramingar no meu ombro, se tu quiser, senão...

PIVA
(Fugindo dele). Vai procurar outra, menos eu! Seu safadão. Covarde. (Sumiu).

RAIMUNDÃO
Vai pro diabo que te carregue e te jogue longe daqui. Sua ingrata.

FIM DO ESPETÁCULO
NO
JONGO DOS
TAMBORES
DA NOITE
- 189 -

No jongo dos tambores da noite


Dramaturgia musical - 2003

CENA 1

(Um casal de negros que arruma o terreiro da festa e dança para homenagear o jongo dos tam-
bores da noite, onde o reggae e outros ritmos afro-brasileiro estão presentes no desenrolar do
espetáculo, quase no final, de repente, o filho vem até eles com indagações de estudante).

FILHO
Escuta pai... você ta muito ocupado? Será que o senhor podia me dá um
minuto de sua atenção?... Um minuto não, três minutinhos só. Pra mim, é
o bastante, o suficiente.

PAI
Estou ocupado sim, ocupadíssimo como você tá vendo! Eu e sua mãe esta-
mos nesse corre-corre, com os preparativos da nossa festa, em homenagem
ao jongo dos tambores da noite, aos ritmos afro-brasileiros, que de certa
forma estão no sangue da gente.

MÃE
Meu filho, passa pra mim, aquele material que está ali no canto.

FILHO
(Obedece enquanto fala). Mas é exatamente sobre isso que eu vinha pensando
todo esse tempo tirar uma dúvida com o senhor, pai. Pois estou coletando
um trabalho lá na escola sobre esse assunto.

PAI
Que bom, filho!

MÃE
Que belo filho é você querendo homenagear nossa raça!

FILHO
A mana e eu tamos nessa lá no colégio. Também existem outras pessoas,
outra galera afinzona dessa matéria. Vale 10 pontos. Já pensou!
- 190 -

PAI
É formidável, sim, meu filho. Só tá faltando uma coisa!

FILHO
Que coisa?

PAI
Você fazer perguntas, as indagações, especulações naturais e eu a respon-
der tirando-lhes as dúvidas. Então?

FILHO
É isso aí, pai! A dança do jongo do caxambu...

PAI
O que é que tem?

FILHO
Ela foi criada no Brasil?

PAI
Ah, sim! Anote aí no caderno. A dança do jongo do caxambu, que logo
mais você verá aqui no terreiro, é mais uma contribuição dos escravos...
africanos à cultura brasileira.

FILHO
Tá. Essa questão tá safa. E aonde ela é praticada, em que região, hein?

PAI
Olha filho, isso é realizado na região africana entre o Congo e Angola, à épo-
ca do Brasil Colônia.

MÃE
Como assim, meu velho? Já nem me lembro se estudei isso no meu tempo
de escola.

FILHO
Não atrapalha, mãe. Deixa só o pai falar.
- 191 -

PAI
Chegou à América na bagagem dos negros trazidos a força para as fazen-
das de café e cana-de-açúcar do Vale do Paraíba, na divisa de São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais.

FILHO
Puxa pai, como é legal o senhor sacar tudo, isso me ajuda pra caramba, é o
maior barato!

PAI
E tem mais, filho: não demorou muito para que os senhores, ao perceberem
a importância da manifestação, liberarem a dança, mas somente nos dias
dedicados aos santos católicos.

MÃE
Epa! Tem um negócio que não tá batendo, meu velho.

FILHO
Ah, mãe! Essa não! Lá vem a senhora novamente interromper a nossa con-
versa!

PAI
Calma, filho. Paciência. Deixe sua mãe falar, tirar as dúvidas que minha ve-
lha tenha durante tantos anos.

MÃE
Obrigado, meu velho. Eu só queria saber assim... o jongo não era só dos
negros?...

PAI
Disse bem, era! Para os negros, coitados, essas eram as únicas oportunida-
des de confraternização; para os donos da terra, era uma forma de ameni-
zar o sofrimento deles e apaziguar as possíveis revoltas.

FILHO
Coitados, mesmo!!!
- 192 -

PAI
Coitados porque naquela época o jongo da dança, considerada profana, de
origem dos ancestrais e dos pretos velhos escravos, a dança do jongo tem
raízes religiosas...

CENA 2

(A mulher abandona o que estava fazendo e vai ao interior da casa e trás lá de dentro uma ban-
deja artesanal).

MÃE
Olha aqui um lanchinho gostoso para os meus amores! O café ainda tá quen-
te na garrafa térmica.

FILHO
A senhora sabe que eu não gosto de café. Não tem suco, não? Se não tiver
não tem problema. Como só sanduiche.

MÃE
Se o “problema” é esse... vou fazer um suco pra você! Aguarde um minu-
to!! (Saiu gritando). Lenira... Prepara um suquinho pro Amiraldo...

PAI
Bom! Como eu tava dizendo... cujos segredos eram naquele tempo transmi-
tidos dos mais velhos para os mais novos. (A mulher entra e complementa a frase).

MÃE
Xiii! Essa história é velha! É do tempo do ronca!

FILHO
(Olhou-a com um olhar de censura e ela sorriu para ele).

PAI
Pois é! Dessa maneira enquanto os mais antigos entravam na roda, os jo-
vens podiam apenas observar.

MÃE
É isso aí. Era mesmo! Até no meu tempo mais pra cá, ninguém podia chegar
nem na sala, quanto mais pra olhar na cara de alguém, nossa, a peia comia!!
- 193 -

FILHO
Peraí, mãe, dá um tempo! Deixa eu falar.

MÃE
Tá bom. Eu só queria ajudar.

FILHO
Mas, pai, e os antigos jongueiros não faziam nada contra?

PAI
Olha! Eram exigentes com os mais novos, dos quais cobravam dedicação e
respeito para ensinar os segredos ou “mirongas” da dança e os fundamen-
tos dos seus pontos.

VELHA
(Que estava cochilando na cadeira). Presta atenção, menino! Vai anotando, Amiral-
do. Não perde tempo só ouvindo.

FILHO
Mas, eu tou anotando, vó! Continue cochilando aí na cadeira.

PAI
Me ajude aqui um pouco. (O filho obedece). Obrigado. Então deixa eu termi-
nar. Pra decifrar os significados do jongo era indispensável muita expe-
riência. Pois alguns jongueiros eram vistos como poetas...

VELHA
...e feiticeiros! (Completou).

FILHO
Por que, vó?

VELHA
Ora porque! Porque nas rodas, a disputa era pela sabedoria. Era parecido
como o repente nordestino, o jongueiro, ao receber um ponto, tinha que de-
cifrar a coisa rapidamente e responder de imediato.

PAI
Ela ainda preserva tais lembranças da memória, apesar da idade.
- 194 -

MÃE
Ah, a mamãe sabe das coisas que vou te contar. E nunca esquece!

FILHO
Mas vovó se o cara não conseguia “desatar o ponto”...?

VELHA
Ih, meu filho! Ficava era enfeitiçado, amarrado.

MÃE
Era mesmo, mamãe?

VELHA
Ih, minha filha! O sujeito chegava a desmaiar. Muitas vezes, perdia a voz,
se embrenhava na mata ou até morria instantaneamente.

MÃE
Vixe! Você anotou isso aí que sua vó falou, filho?

FILHO
Anotei, sim, palavra por palavra. Pelo menos, o essencial, convém fazer a
devida e importante ressalva.

PAI
Que ressalva, filho? Você acha que vó ta mentindo quanto ao fato?

FILHO
Claro que não! Corre, meu pai, minha vó, minha mãe, que era uma coisa
muito feia mesmo, vocês que são chegados num batuque, adoram o jongo
de tambores e sair tascando encruzilhadas por aí.

VELHA
Claro que meu neto tá certo, corretíssimo, mas é claro também que tais fa-
tos não ocorrem mais nos dias de hoje.

FILHO
É! Mas tomem cuidado, segurem o ímpeto e nada de sair por aí distribuin-
do coisas ou despachando coisas nas esquinas no varejo e no atacado.
- 195 -

VELHA
De vez em quando é bom reverenciar os antigos ancestrais! Apenas.

FILHO
E esse negócio de “jongo dos tambores”, hein, vovó?

VELHA
(Levantou-se). Olhe, a conversa tá boa, mas a tua vó torta mais tua mãe tem
que cuidar da comida e das bebidas que hoje a noite é uma criança!! Não
tem hora pra acabar. Vem comigo, Adelina, vamos preparar meia dúzia de
cada coisa. (Saíram para o fundo da casa).

MÃE
Só isso?

VELHA
Acha que não basta? Esse bando de esfomeado tem que se conter, se con-
formar com o que tem. Tinha até graça! Ficar escrava a noite inteira na bei-
ra do fogão. Vou mais custa! Quero dormir depois sossegada, só ouvindo o
som dos tambores, da batucada, varando madrugada a dentro. (Sumiu).

FILHO
Então, pai, o senhor vai responder.

CENA 3

(Fazendo as coisas com dificuldades para dar pronto a decoração do terreiro, o pai acaba pe-
dindo uma mãozinha ao filho que continua interessado nas suas especulações e informações).

PAI
Só se o meu filho me der uma mãozinha também nesse trabalho...

FILHO
Interessante. Pensei a mesma coisa. Eu fico aqui falando, perguntando, só
tou atrapalhando o seu serviço. Achei que estava por merecer a minha aju-
da, mas depois.
- 196 -

PAI
Como depois? Daqui a pouco o povo, o pessoal, começará a chegar, vem
gente de tudo quanto é biboca por aí.

FILHO
Não se estresse. Fique de cabeça fria. Dê um tempo, eu vou ajudar, corre
que essa pesquisa é assim devidamente importante pra mim no colégio. Se
eu não pintar com o tal resumo, a galera vai me derrubar pra meia dúzia
daqueles que dependem dessa fantástica história.

PAI
Tem razão, filho. Você merece a minha especial atenção! (Deu uma pausa).

FILHO
Valeu pai!

PAI
Bom... Hoje em dia, as festas onde se dança o jongo, costumam ser realiza-
das no dia 13 de maio, consagrado a São Benedito, na tradição católica, e à
Abolição da Escravatura, nos demais dias dos santos católicos de devoção
da comunidade; nas festas juninas; e nos casamentos.

FILHO
Nos casamentos, pai?

PAI
Sim! O terreiro é iluminado com tochas, enquanto os casais dançam ao som
do calango.

FILHO
(Anotando). Ao som do calango. Tá. E a que hora e como era realizada tal festa?

PAI
À meia-noite, a negra mais idosa responsável pelo jongo interrompe o baile.

FILHO
Interrompe o baile mas por maldade?
- 197 -

PAI
Não, filho. É muito menos do que isso, porque em seguida, a fogueira é
acesa e os participantes formam uma roda. Ela se benze nos tambores sa-
grados, pede licença aos pretos velhos, antigos jongueiros que já morre-
ram, e inicia o jongo.

FILHO
Pai’dégua! Que bonito! Tá. E daí? Sempre ouvi falar, pai, que os tambores
utilizados são dois, é verdade?

PAI
É verdade, sim!

FILHO
O grave, chamado angoma, caxambú ou tambu...

PAI
Correto!

FILHO
E o agudo, conhecido como candogueiro.

PAI
Certíssimo! É usada também uma cuíca de som grave, angoma-puíta ou
onça, e um chocalho de palhas com penas de guará, inguará, angorá e an-
guiá, com fundo de cabaça podem fazer o acompanhamento.

FILHO
Eras! É muita coisa pra nossa matéria, gente. Pronto. Já anotei. Agora, uma
outra coisa que eu queria saber: qual o tipo de roupa que usam?

PAI
Para dançar o jongo, não é necessário roupa especial. É também comum os
participantes estarem descalços.

FILHO
E como procede?
- 198 -

TIO
(Aparece de sopetão). Deixa essa comigo, mano! Essa eu sei de cor.

FILHO
Verdade mesmo, tio?!!!

TIO
Anote aí no seu caderninho. A mestra do cerimonial improvisa um verso
e canta o primeiro ponto de abertura, dando inicio à roda de jongo. Aí, os
participantes respondem cantando alto e batem palmas com animação.

PAI
Coloque aí... Os pontos são versos, de improviso em uma linguagem de di-
fícil compreensão.

FILHO
Pior que é. Eu tenho ouvido e não entendo patavina!

TIO
Há frases curtas que retratam o contato com a natureza, os fatos do cotidia-
no e o dia a dia de trabalho braçal nas fazendas.

FILHO
Quanto a linguagem?...

TIO
Também são misturados ao idioma português resquícios do quimbundo,
dialeto africano de origem banto. Além do ponto de abertura ou de licença,
para iniciar a roda do jongo...

FILHO
Peraí, tio... existem outros?

TIO
Claro! Há o de louvação, para saudar o local, o dono da casa ou um ante-
passado, o de visita para alegrar a roda e divertir a comunidade; o de de-
manda, porfia ou gurmenta, para aboiga, quando um jongueiro desafia o
seu rival a demonstrar sua sabedoria.
- 199 -

(O pai volta a realizar suas tarefas, enquanto as duas mulheres retornam ao terreiro carregando
comida e bebidas para compor a mesa num canto).

VELHA
O de encante era cantado quando um jongueiro queria enfeitiçar o outro
pelo ponto, e, finalmente, o de encerramento ou despedida cantado ao
amanhecer para saudar a chegada do dia e encenar a festa.

MÃE
A senhora se lembra, mamãe? Na roda formada, os participantes marcam
com os pés e palmas o ritmo dos tambores. Um homem entra na roda e
convida uma mulher para acompanhá-lo na dança.

VELHA
Eu fiz muito isso com seu pai. Era gostoso dançar com meu velho quando
jovem! Bom, aí o casal se aproxima para a umbigada (passo que tem parentesco
com o coco e congada), mas não acontece o contato físico. Em seguida, é substi-
tuído por outro casal.

FILHO
Aí termina a parada?

PAI
Não, senhor. Anote aí. Se um jongueiro quiser cantar outro ponto, coloca
ou melhor, ele interrompe o anterior, depois coloca as mãos no couro dos
tambores e grita a palavra “machado” ou “cachoeira”. Os tambores se ca-
lam e o ponto e a dança são interioramtambu*, e o agudo, conhecido como
candogueiro.

MÃE
Eu também vi na dança uma cuíca de som grave, angoma-puíta ou onça, e
um chocalho de palha-guará, inguará, angorá e anguiá - com fundo de ca-
baça podem fazer o acompanhamento!

FILHO
Puxa vida! Tudo isso? É muita coisa! Pronto. Já anotei. Escuta pai, qual era
o tipo de roupa que usam?

*Nota: Ininteligível no original.


- 200 -

PAI
Filho... para dançar o jongo, não é necessário roupa especial. É comum os
participantes estarem descalços.

FILHO
Tá. E como procede?

VELHA
A mestra do cerimonial improvisa um verso e canta o primeiro ponto de
abertura, dando inicio à roda de jongo. Os participantes respondem can-
tando alto e batem palmas com animação.

MÃE
Aí os pontos são versos, de improviso em uma linguagem de difícil com-
preensão. Há frases curtas que retratam o contato com a natureza, os fatos
do cotidiano e o dia-a-dia de trabalho braçal nas fazendas.

VELHA
Também são misturados ao idioma português resquícios do quimbundo,
dialeto africano de origem bando. Além do ponto de abertura ou de licen-
ça, para iniciar a roda do jongo, existem outros.

FILHO
Outros???

VELHA
Claro. Há o de louvação, para acender ou melhor... saudar o local, o dono
da casa ou um antepassado, o de visagem para alegrar a roda e divertir a
comunidade; o de demanda, porfia ou gurumenta, para aboiga... quando
um jongueiro desafia seu ritual a demonstrar sua sabedoria. O de encante
era cantado quando um jongueiro queria enfeitiçar o outro pelo ponto, e,
finalmente, o de encerramento ou despedida cantado ao amanhecer para
saudar a chegada do dia e encenar a festa. Já satisfeito?

FILHO
Valeu, vó! Valeu, pai! Vou tirar 10 nessa matéria!

MÃE
E a mim não vai agradecer, não???
- 201 -

FILHO
Ah, sim! Claro que valeu, mãe, a sua colaboração! Agora vou passar a lim-
po o material que colhi de vocês todos. (Beijou-a no rosto). Obrigado, mãe!

CENA 4

(Aqui encerra o espetáculo com a chegada dos convidados e jongueiros para a festa de terreiro.
E todo o elenco no palco participando com alegria e entusiasmo. Enquanto os donos da casa
nesse instante serviam comidas típicas da região).

VELHA
(Recebendo os convidados). Entrem!... Vão entrando, gente!... Fiquem apostos
que o jongo dos tambores vai começar daqui a pouco.

NAMORADO
(Ao lado da sua gatinha). Eu saliente com você? Ora, não se faça de rogada!
Quem iniciou foi você botando fogo em mim. Agora tou em ponto de bala.

NAMORADA
Ih, cara, tu tá fazendo uma ideia completamente errada de mim. Eu não
sou dessas, não... Tu é que és um tarado... um saliente!

NAMORADO
Esquenta não, gatinha. Fique sabendo que eu respeito você pra burro. Eu
nunca pensei mal de você...

NAMORADA
Sabes que tu és o primeiro.

NAMORADO
(Todo feliz pela revelação). O primeiro a transar contigo, benzinho?

NAMORADA
Não, tolinho, o primeiro a não pensar mal de mim!!!

(E jongueiros cantam e dançam até amanhecer etc.).

FIM DO ESPETÁCULO
CARA OU
COROA
- 203 -

Cara ou coroa
2003

PERSONAGENS
Agnalda - empregada, acompanhante de idosos.
Dionor - velha, rica, aposentada, senil.
Lauro - filho de Dionor, enfermeiro.
Ciça - filha de Dionor, drogada, problemática.

CENÁRIO
Uma casa modesta. Muito bem arrumadinha. Com algo mais de elegância e bom
gosto nas paredes. Com telefone, cabides, biombos chinês etc., ou a gosto do dire-
tor. Uma família classe média.

TEXTO
Narra o preconceito social e cultural contra os idosos, cujos familiares fazem tudo
para excluí-los do seu convívio social junto aos amigos mais chegados, ou por moti-
vo de descaso aos cuidados que requer uma pessoa idosa, doente, cheia de reuma-
tismo ou por razões outras de loucura, ambição e ganância por problemas de heran-
ça não ministrada mais pelos mais velhos, vai daí as consequências de mortes ou as-
sassinatos contra esse tipo de idosos no mundo inteiro. Hoje em dia o mundo, os psi-
cólogos, os estudiosos sobre o assunto, estão preocupados com o destino de nossos
idosos ora discriminados por jovens canibalistas etc. e salvem-se quem ou se puder.
O Autor

CENA 1

(Enquanto uma velha senhora assiste televisão a outra vem chegando da rua com sacolas de
compras e ajeita com correria).
- 204 -

AGNALDA
Nada feito, dona Dionor. Eles só mandaram isto aqui pra senhora até este
mês.

DIONOR
Agnalda! Venha ver este desenho animado! Olha só pra isto! Que coisa lin-
da, que coisa mais engraçada. Veja...

AGNALDA
(Desligou o aparelho). Chega por hoje.

DIONOR
Por que desligou a TV? Sua mal educada!

AGNALDA
Lembre-se que a senhora está recém-operada dos olhos e não ficar muito
tempo diante da televisão, principalmente, assistindo porcarias.

DIONOR
Você é muito chata sabia? Daqui a pouco sou obrigada a assistir só novelas
ou programas que você gosta! E jamais perco meu tempo assistindo nove-
las escandalosas, pornográficas, filmes eróticos, programas de guerras que
tanto adora. Prefiro esquecer que ainda existo em meio a tantas tragédias
no mundo. Nesse mundo cão, sem paz, sem amor.

AGNALDA
Tadinha dela. Apela logo pros meus sentimentos. (Religou a TV). Pronto. Ve-
nha, minha querida, assistir seu programa predileto. Desculpa, viu. Afinal
de contas, tudo isso será por pouco tempo, querida. Aproveite bastante.

DIONOR
Como assim? Vão agora semear essa guerra do Iraque também no Brasil?

AGNALDA
Nada disso. Estou me referindo a seus filhos quando estive lá pra apanhar a
sua quota de alimentos. Eles me disseram que vão cortar sua mesada, que a
dona Dionor está causando muitas despesas pra eles e que por causa disso
já providenciaram um asilo qualquer pra senhora morar para sempre, uma
espécie de abrigo para velhinhos aposentados e desamparados pela família.
- 205 -

DIONOR
Nem morta! Que se danem todo mundo! Daqui não saio, daqui ninguém
me tira. Pelo contrário. Para os que ainda não sabem, aqueles ingratos fi-
caram com o dinheiro da minha aposentadoria como ex-funcionária do go-
verno e com a pensão que o meu velho me deixou ao morrer num acidente
aéreo. Agnalda... não tem cabimento eles fazerem isso contra mim. É muita
ingratidão, é muito desamor.

AGNALDA
Foi o que falei pra eles. Foi a única coisa que eu disse. Procurando defender
seus direitos e sua liberdade, minha querida, mas eles estão dispostos a lhe
jogar num confinamento.

DIONOR
Nunca. Antes de mais nada sou uma criatura de muita fibra e coragem.
Vou ao banco e desfaço a procuração, desfaço tudo, aí, eu quero ver onde
eles vão tirar pra encher o rabo.

AGNALDA
Isso! Dona Dionor! É assim que se fala. E a senhora pode contar com a mi-
nha discrição. Pode contar com o meu apoio em todos os sentidos.

DIONOR
To cheia deles. Chega de humilhação. Se quero mastigar algo tenho que tele-
fonar e pedir o consentimento deles ou então mandar você na casa deles apa-
nhar o dinheiro que eles, supostamente, o mantém na ilharga. Tinha até graça
eu passar necessidades por causa daqueles estúpidos. Filhos desnaturados.

AGNALDA
Bom, eu não queria lhe dizer, mas sabe como é, esse negócio de leva e traz,
vira logo um fuxico, mas ouvi o mais velho falar – aquele que é enfermeiro
técnico – que vai arranjar um atestado de sanidade mental pra poder inter-
nar a senhora num asilo de loucos. Só assim poderão se ver livre da senho-
ra e das suas exigências.

DIONOR
Nunca me curvei ante os poderosos, muitos menos diante do meu faleci-
do marido que era militar, sempre fui contra as injustiças, inclusive sociais,
sempre me mantive íntegra a vida toda, não será agora que vou me deixar
- 206 -

intimidar pelos meus filhos que estão acostumados com mordomias, mui-
to mal acostumados por sinal. Agora tai o pago que me dão.

AGNALDA
Acho que a senhora não soube criar eles. Vai ver que nem batia neles.

DIONOR
Pior que não. Sempre tiveram do bom e do melhor. Bons colégios, bons clu-
bes onde frequentavam, viagens lindas pelo mundo... pra no fim, dá nisso.
O meu velho, por sua vez, afrouxava tudo, liberava eles pra tudo o quan-
to na vida, nunca teve pulso pra eles. Era um desastre o nosso casamento.
Nem te conto. E nem quero tocar nesse assunto.

AGNALDA
Não precisa. Não se torture com isso. Tem coisas na vida que a gente prefe-
re esquecer e dar a volta por cima.

DIONOR
Essa é uma. Agnalda, o meu Afonso era muito mulherengo, em cada es-
quina, ele tinha sempre uma Piva esperando por sua gorjeta. (Falou magoada).
Depois surgiram outros filhos dele por aí no mundo deixando-me atordoa-
da, sem saber o que fazer, como agir naquela época, até que me levam tudo
um dia, deixando-me sem eira nem beira. (Chorou).

AGNALDA
(Abraçando-a, consolando-a). Não chore não, dona Dionor. Não vale a pena. Es-
queça tudo isso. Essas coisas que lhe trazem sofrimento e amarguras.

DIONOR
Agora querem me confinar num asilo.

AGNALDA
Mas não vou deixar. Eles vão se ver comigo.

DIONOR
Não se meta nisso. Você vai enfrentar uma barra.
- 207 -

AGNALDA
Mas quem não enfrenta uma barra hoje, a própria vida pela própria sobre-
vivência?... Sabe dona Dionor, ao longo da minha convivência aqui enter-
rada com a senhora, aprendi várias coisas, uma delas é a seguinte: que a
gente tem que ser autêntica e assumida, corajosa e audaciosa. Então, en-
quanto a senhora tava aí falando, falando, eu pensei com os meus botões:
por que não arribar com a dona Dionor fora daqui, pra outro Estado, pra
dentro do mato de alguma fazenda velha e abandonada?...

DIONOR
Pra quê? Pra onça não demorar em me contar? Nunca! Prefiro vender flo-
res na porta de cemitérios no Dia de Finado do que acender velas para mim
mesma!

AGNALDA
Ó tai uma ideia. Uma boa ideia pra livrar a senhora desse aperreio.

DIONOR
Que ideia?

AGNALDA
Essa que a senhora diz que “prefere vender flores na porta de cemitérios”.

DIONOR
E daí? O que uma coisa tem a ver com outra?

AGNALDA
Dona Dionor...sem querer a senhora descobriu uma saída para fugir do
confinamento de algum asilo...vendendo ou melhor, tornando-se vendedo-
ra de flores na porta do cemitério.

DIONOR
O quê?!

AGNALDA
É isso mesmo! Eu lhe ajudo a fazer isso! Deixa que eu me encarrego de tu-
do. E nós duas vamos montar uma barraca de lona e vender as ditas cujas
a preço de banana. E com isso, ninguém terá motivo de sacanear com a se-
nhora, porque todo mundo vai ver – inclusive seus filhos -, que a senhora
- 208 -

está sendo útil, ainda trabalhando, pelejando para que sobreviva com dig-
nidade, honestidade, acima de tudo, lúcida, poderosa. Entendeu agora?

DIONOR
Claro. Mas é claro que entendi tudo. Agnalda, minha flor da noite, você
não existe, é fantástica! Por que não pensei nisso antes?

AGNALDA
Assim a senhora juntará o útil ao agradável. Pelo menos vai se livrar de um
cárcere privado, vai se livrar da solidão e do esquecimento, vai fazer no-
vas amizades, vai adquirir novos amigos, quem sabe até, arranjar um novo
maridinho, nem que seja só pra esquentar as costelas hã?...

DIONOR
Lá vem você pensando o que não deve. Longe de mim já começar a esquen-
tar a cabeça com isso. Eu sempre fiz a mais absoluta questão de morar lon-
ge dos filhos que estão casados e dos filhos mais novos, que sabem olvidar
com certeza a minha existência, talvez nunca tenham falado de mim pra
alguém ou pro seus amiguinhos de farra.

AGNALDA
Até parece que eles nunca vão envelhecer também. Pelo contrário. A maio-
ria a qualquer hora perde a vida na rua, no trânsito, com uma bala perdida
ou porque não o privativo naquela horinha no motel. Uma juventude, coi-
tada, que morre cedo, cedo. Isto, sem falar nas drogas transformando tudo
num caos, sem placa inaugurada em praça pública rendendo um tributo à
sua memória.

DIONOR
Hum! Hoje a Agnalda tá muito falante. Voltou inspirada lá da casa dos meus
algozes.

AGNALDA
Doravante não serão mais enquanto eu existir e estiver do seu lado. Agora,
venha tomar seu lanche da manhã enquanto preparo seu almoço. Daqui a
pouco vou sair.

DIONOR
Vai aonde?
- 209 -

AGNALDA
E eu não vou comprar as flores para revendê-las? Dona Dionor, temos que
agir rápido, antes que seja tarde demais. Antes que aqueles abutres ve-
nham soterrar a senhora viva no asilo.

DIONOR
Tá certo. Procure uma floricultura com mais abatimento nos preços ou que
tenha alguma promoção pra gente poder pechinchar. Depois as coisas vão
se encaixando, tornando-se práticas e fáceis para nós duas. Vamos nos tor-
nar comerciante.

AGNALDA
Com carteirinha assinada e tudo. Quero ver se eles se atreverão a mexer
com a senhora estando eu por perto.

CENA 2

(Enquanto isso, toca o telefone várias vezes e Agnalda vai atender com euforia).

DIONOR
Seu porcalhão. Que horror.

AGNALDA
Ai, meu Deus. Deve ser o meu gatão. Sou uma mulher sortuda, mesmo, to-
mara que seja ele. A gente combinou um cinema hoje. Alô...Como?...Tá le-
gal, vou dar uma espiada... (E foi reparar na janela lá fora).

DIONOR
O que está fazendo olhando lá fora?

AGNALDA
Tem um moço no telefone que me pediu pra conferir se tem um caminhão
de gelo branco na beira da calçada.

DIONOR
Agnalda! E você caiu nessa? Acreditou?

AGNALDA
Não entendi.
- 210 -

DIONOR
Isso é trote. Magina! Me admiro de você tão esperta cair num trote desses.
É coisa de quem não tem o que fazer. Agora manda ele descascar batata no
asfalto quente esse vagabundo.

AGNALDA
(Ao telefone). Alô...Não tinha nenhum caminhão de gelo, não, o que eu vi me
deu medo, que foi a tua mãe arrastando a bunda na calçada que nem ca-
chorro pirento. (Desligou). Cretino.

DIONOR
Agnalda me traz um pouco de leite gelado. Quero saborear com meus bis-
coitinhos de chamapanhe. Eu adoro. (O telefone toca outra vez e dona Dionor vai aten-
der). Deixa... Deixa que eu atendo, pode deixar... Comigo, mando logo esse
cachorrão plantar bananeira em cima dum monte de bosta. Alô... Não tem o
que fazer não, seu cafajeste?...Vai tomar banho onde as patas tomam, seu....
O quê? Quem? Ah, é você meu filho!...Ainda bem. Tá. Tudo bem, sim. É que
a pouco fizeram um trote pra cá e a pobre da Agnalda caiu na conversa. Ma-
gina, que mandaram ela ver na calçada um caminhão abarrotado de gelo
branco, e ela foi ver, ficou espiando pela janela. Também achei engraçado.
Escuta, Alberto... providencie aqueles pãezinhos de chá, uns sacos de torra-
das, e queijo branco, aquele bem molhezinho, suave... Alô... Desligou.

AGNALDA
Quem era?

DIONOR
Era o meu filho Alberto querendo saber de mim.

AGNALDA
A senhora falou pra ele que montou uma barraca de floricultura na Praça
da República?....

DIONOR
Eu não! Não tô ficando doida! Não tenho e nunca tive tal barraca que ven-
desse tal coisa naquela praça.
- 211 -

AGNALDA
Pois então invente! Doravante a senhora passará a buzinar nos ouvidos
dessa raça que a senhora é vendedora de flores, a fim de livrar sua pele, viu
santa! Deixa o resto por minha conta. Deixa comigo. Eles não sabem com
quem estão se metendo. Pela senhora, faço tudo, vou até no inferno pra li-
vrar sua cara!

DIONOR
Dramática! Tá assistindo muito dramalhão mexicano, querida! Querida (in-
do até ela) engraçado... Agnalda, agora que estou me tocando, não sei se é
impressão minha, uma cisma besta, mas notei que o Alberto falava com
uma voz embargada, parecia estranho, mas também não perguntei o que
ele tinha e fui logo enchendo o Alberto de pedidos.

AGNALDA
Coisa de mãe preocupada com filho. Tamanho marmanjão daquele. Mas
que tipo de pedido a senhora fez?!

DIONOR
Os pãezinhos de chá, as torradas, o queijo branco, aquele bem molhezinho
que não vieram dessa vez na cesta básica. Daqui a semanas eles vão me ne-
gar outras coisas, aí vou acabar morrendo de inanição.

AGNALDA
Apele praquele programa do governo o tal do Fome Zero. Já pensou? A
vergonha, o vexame, a humilhação pela qual iriam passar.

DIONOR
Eles uma ova! Eu, somente eu, queridinha! Como se não bastasse o desa-
mor dos filhos, eu teria o escárnio, o deboche dos vizinhos e dos velhos
amigos, os quais, já nem me telefonam mais, achando naturalmente que
sou um trambolho velho, uma velha chata, uma velha caquética, faladeira!

AGNALDA
E pensar que a senhora os ajudou tanto para alcançarem seus objetivos
como alcançaram hoje em dia! Agora estão por aí esnobando, esbanjando
saúde, grana e sacanagem. Tudo graças à senhora que se penalizou da mi-
séria e da falta de sorte deles! Bom, eu já tô indo...vou falar com um dos
fornecedores da floricultura.
- 212 -

CENA 3

(Nesse momento alguém toca a campainha da porta com insistência e Agnalda, apreensiva, vai
atender).

DIONOR
Meu Deus! Faz tantos anos que essa campainha não toca! A não ser quando
você está na rua fazendo compras na feira ou no supermercado!

AGNALDA
Nossa mãe! Que insistência! A senhora tá esperando alguém?

DIONOR
Nem Godôd, se viesse! Mas quem poderia ser, Agnalda? Há anos que não
recebo visita de ninguém, nem mesmo dos filhos ou dos parentes, você sa-
be disso.

AGNALDA
De vez em quando seria bom receber um velho conhecido, um amigo, ou
amiga, e trocarem confete, figurinha, colocando o papo em dia, como anti-
gamente. A senhora passa muito tempo presa aqui dentro, não sai pra lu-
gar nenhum, já não assiste mais as missas de domingo, nem de feriado san-
to! (Abriu a porta).

LAURO
Quero ver minha mãe. Onde está minha mãe? Onde está ela? Ela melhorou
da cabeça?

AGNALDA
Que cabeça, rapaz? Veja com seus próprios olhos! A dona Dionor não tá
doente coisa nenhuma.

DIONOR
Agnalda tem razão! Nunca estive tão lúcida como agora! Se é isto que dese-
ja saber. E tem mais: Diga lá praquela ordinária da sua mulher que a partir
de hoje darei a volta por cima! Vou tomar de volta tudo que é meu! Vou bo-
tar quente no rabo de vocês! Vou incendiar o circo de vocês, seu paspalho!
- 213 -

LAURO
Pronto. A velha endoidou de vez.

DIONOR
Doida eu? Doidos, malucos, psicopatas estão vocês, querendo se apossar
de tudo quanto é coisa minha, achando que estou caquética, estou morta,
sem noção de nada.

LAURO
Não diga isso, mãe. A senhora sabe que em casa todos nós estamos preocu-
pados com sua saúde, com seu bem-estar. E foi a senhora mesma que prefe-
riu morar sozinha, ficar aqui presa entre essas quatro paredes, na companhia
dessa empregadinha fofoqueira, correndo o risco de ser envenenada por ela.

DIONOR
(Esbofeteou). Cale-se! Seu cretino! Como ousa falar assim de Agnalda? Uma
mulher que anulou sua vida pessoal, íntima, abandonando sua própria fa-
mília, na Ilha de Marajó, para servir a mim e vocês nesta casa quando pe-
quenos e na idade de adolescentes!

LAURO
Ah! Sentimentalismo agora pra cima de mim, não! Tomara que essa mulher
aplique um golpe do baú pra cima da senhora. Aí, a senhora vai ver se ela
é sua amiga de verdade ou se ela é melhor do que nós seus filhos.

DIONOR
E o que mais?

LAURO
Bem, não direi todas, mas a maioria dessas criaturas é mal-intencionada!
Os jornais estão aí trazendo manchetes todos os dias a respeito desse as-
sunto. Raça fingida, hipócrita, buscando se dar bem na vida, cuidando, fin-
gindo em ser acompanhante de idosos, pra no fim, dar um golpe sem ta-
manho. Na verdade, eu não vim aqui para isso, pra discutir sobre o com-
portamento da sua... bom, eu vim aqui buscar a senhora pra passar este fi-
nal de semana lá em casa ou na casa da...

CIÇA
(Empurrou a porta semifechada). Da sua querida Ciça!
- 214 -

AGNALDA
Reencontrar a família, logo agora? (Saiu).

LAURO
O que faz aqui?

CIÇA
O mesmo que você! Vim visitar também a minha mãe, a nossa mãe. Não
posso?

DIONOR
Ciça! Minha filha! Quanto tempo? (Foi ao encontro dela, quando).

CIÇA
(Distanciou-se dela). Agora não, mamãe! Por favor... Tô muito exausta... Eu tou
também suada, cheia de poeira! Faz mal a sua saúde.

DIONOR
Menina! Deixa de ser fresca! Deixa de frescura! E quando você estourou a
minha bolsa uterina, rasgando a minha placenta, sendo cagada e cuspida
pelos cornos, no meio de fezes, urina e sangue?

CIÇA
Ai, credo. Estamos preocupados aqui com sua saúde e a senhora aí vem
nos fazer lembrar esse triste episódio na nossa vida! Entretanto, estamos
preocupados com sua saúde mental, e achamos bom interná-la por alguns.

DIONOR
Nunca!

CIÇA
Aqui a senhora não vai ficar boa. Tem que tomar remédio. Vai ver a senho-
ra tem problema de hipertensão e nem sabe, pressão alta, pressão baixa,
problema de coração, sei lá...Tem que ver isso através de exames médicos.

DIONOR
E pra quê? Pra vocês me confinarem de vez num desse asilo-hospitais?
Não, senhora, dispenso. Estou ótima!
- 215 -

LAURO
Deixe-me averiguar sua pressão. Sente-se aqui. Estique os braços.

DIONOR
O que vai fazer comigo?

LAURO
Consultá-la. Só vou averiguar sua pressão. Tá vendo? A pressão dela tá me-
lhor, parece que de gente nova.

DIONOR
Tá vendo? Tô louca não, filha. Vocês é que estão precisando de médico e de
internamento imediatamente. A fim de quê querem me internar? Pra me
fazerem sumir da vida de vocês para sempre, é isso? Ora, não me façam rir
de tamanha farsa!

CIÇA
Agora a senhora está sendo amarga. Mas se a senhora prefere a companhia
chata de uma empregada mexeriqueira do que a presença dos seus pró-
prios filhos, não tem problema.

LAURO
Depois não vá dizer que não lhe oferecemos ajuda, não lhe oferecemos amor
e nem afeto.

CIÇA
Senhora é que sabe. E não venha se queixar de abandono familiar quando
tiver suas crises de dor de cabeça.

DIONOR
Deus está comigo. Deus não vai me deixar sofrer esse tipo de mazela. Já
basta a cruz que carrego em ter parido no mundo filhos tão desnaturados
que nem vocês! Por isso, prefiro a companhia da Agnalda, que me parece
mais sensata, mais digna da minha amizade, do meu respeito.

LAURO
Tá legal. Se a senhora acha que não somos dignos nem do seu perdão, nem
do seu carinho ou coisa parecida, então sou obrigado a arranjar um ates-
tado médico prezando sua saúde mental a fim de um internamento num
asilo de loucos.
- 216 -

DIONOR
Pois fique sabendo que não tenho medo de ameaças! Porque não estou lou-
ca! Muito menos amassando merda, rasgando dinheiro, todo mundo sabe
disso. Daqui não saio, daqui ninguém vai me tirar, a não ser pro cemitério,
estão ouvindo? Ninguém! E danem-se vocês dois. Não queiram incurtir
em mim a loucura que lhes afeta! Há muito vocês me anularam como mãe
para no fim se apossarem dos meus bens, inclusive da minha aposentado-
ria e da minha pensão que o meu velho deixou, agora querem que eu mor-
ra de fome ou fique confinada a um lugar qualquer, ainda preocupados
com dinheiro, gastronomia. Ingratos!!

LAURO
(Aos cochichos com a irmã). O que você acha?

CIÇA
Eu não acho nada! Temos que partir pra outra. O prazo da procuração está
expirando! Daqui a pouco ela será visitada pelo advogado da família, que
por sua vez, vai exigir uma nova procuração e se a gente ficar aborrecendo
a coitadinha, vamos acabar perdendo a posse de tudo.

LAURO
É isso mesmo! (Caindo em si). Ciça, como é que não pensei nisso antes?! A gen-
te pode mudar de tática, minha irmã, nós dois vamos nos encarregar de le-
var ela a dar um passeio pela cidade e pimba!

CIÇA
Nunca! Isto é pior do que vê-la definhando num asilo! Lá, pelo menos, sa-
berei que está viva e posso visitá-la de vez em quando. Posso ser uma dro-
gada, uma vadia, mas ainda não tou louca, nem sou psicopata que nem vo-
cê com seus planos diabólicos.

LAURO
Esqueça o que eu disse. Falei por falar. Mas que a gente vai perder a posse
de tudo isso lá isto vai!

CIÇA
Totalmente não. Alguma coisa vai sobrar pra gente.
- 217 -

LAURO
Será? Tenho medo de ficar pobre. Pobre morre fedorento.

DIONOR
O que tanto cochicham aí? Por que não ligam a televisão e venham assis-
tir um pouco comigo! Venham! Vai passar um filme lindo. A vida de Jesus.

CIÇA
Piorou. Tô nessa não, tô noutra. A senhora não quer dar um passeio na ci-
dade? A senhora vai adorar!

DIONOR
Mas pra conhecer o quê? Os bairros periféricos com suas favelas e com seu
povoado descamisado?

CIÇA
Não. A senhora vai ver uma “nova Belém”, com cara nova, mais moderna,
muito mais jovem, a exemplo da feira do Ver-o-peso, da Casa das 11 Jane-
las, recentemente inaugurada, lá no Forte do Castelo, fora outras relíquias
arquitetônicas da Belém antiga que tanto a senhora adora.

DIONOR
Adoro não, adorava! Porque hoje em dia não se pode andar por aí com li-
berdade correndo o risco de ser assaltada. Eu hein! Boa romaria faz, quem
fica em casa rezando contra o satanás. Já dizia a minha vó Joana – que Deus
a tenha no reino de sua glória!

LAURO
Escuta mãe: lá, a gente pode fotografar tudo, filmar... Se quiser, a senho-
ra pode exibir alguns vestidos seus do ano de 60, eu acho, aí todo mundo
vai lá apreciar e comprar...são pessoas que colecionam coisas antigas, coi-
sa histórica.

DIONOR
Vender meus vestidos antigos, lindos de morrer? Quero não! Posso ir pas-
sear com vocês mas só se for acompanhada pela Agnalda. Eu adoraria re-
ver Belém!! A minha saudosa Belém, com seus pontos turísticos, com suas
praças antigas, embelezando a orla marítima, logo ali, na beira do cais de
arrimo, ladeado de bancos toscos e lanternas francesas. Era um local chic
- 218 -

onde os poetas e namorados vinham ver o pôr do sol na Baía de Guajará.


Era algo lindo!

LAURO
Mamãe... Não fica bem, numa reunião de família, a presença da Agnalda,
uma pessoa estranha. No passeio de família vão estar eu e minha esposa
Clarinda, a Ciça com seu maridão Antonio, o Alberto, o Arlindo.

CIÇA
Mãe! Ao que me parece, depois de tantos anos, a família, a nossa família
vai estar junta! Vai ter muita gente pra cuidar da senhora.

DIONOR
Tá certo. Mas continuo achando que esmola muito grande o cego desconfia!

CIÇA
Não tem grilo, coroa. Não tem chifre. Meta uma beca nova e vamos embora!

LAURO
Então, a senhora vai ou não vai trocar de roupa?

DIONOR
Claro que eu vou! Mas quando a Agnalda chegar da rua! Deixa ela chegar.
Ela é que troca a minha roupa, me ajuda a me vestir, a me calçar... Nessa
idade, 75, a gente já não coordena os movimentos, apesar da cabeça ainda
funcionar muito bem.

CIÇA
(Aos cochichos com o irmão). Olha cara, a ideia colou. Agora, resta usar o telefone
pra chamar uma ambulância qualquer.

LAURO
Melhor não, bom seria um táxi. Ela não pode desconfiar de nada. Devo ad-
mitir que a velha é mais sajica do que nunca. Vamos levá-la prum asilo de
velhos, assim é bem melhor, mais tranquilo pra nós dois. Certo?

CIÇA
Tadinha. No fundo, no fundo, tenho pena da coroa, ela merecia um lugar
decente, um lugar melhor, sei lá.
- 219 -

LAURO
O que tá feito, tá feito. Não vamos voltar atrás. Eu sei, todos nós sabemos
que não é justo confinar a coroa num asilo de velhos e ficar lá no esqueci-
mento, mas porra, ela é o nosso único obstáculo. Não podemos cuidar dela,
das coisas dela, a não ser da grana. O resto a gente vende a preço de bana-
na. Pra que a gente quer casa velha, quinquilharias do tempo antigo? Por
mim, jogava tudo na lata do lixo!

CIÇA
E por mim, também! Coisa que pra mim não tem serventia alguma. Só ser-
ve mesmo pra entulhar.

CENA 4

(Nesse instante, toca o telefone e dona Dionor vai atender, disfarçando o olhar pra cima dos fi-
lhos que estão afastados dali).

DIONOR
Alô... Quem fala?...Hein?...Pode sim! Não, ainda não... Mas tô entendendo,
sim, senhora. Pode deixar comigo. Claro... Claro que eu vou providenciar!!
É pra já! (Desligou). Era o bombeiro que vem concertar a torneira da pia do
banheiro e o chuveiro que só vive pingando, pingando, gastando água du-
rante o dia e a noite.

LAURO
Sujou!

CIÇA
Pai d´égua essa agora!

DIONOR
Meus queridos... O passeio, como vê, gorou! Não vou poder sair agora.

LAURO
Nem outro dia?

CIÇA
Uma quinta, uma sexta?... (Toca a campainha da porta e Ciça atende).
- 220 -

AGNALDA
(Entrando, acompanhada de dois homens). Ainda estão por aqui? (Referiu-se aos dois ir-
mãos péssimos). Dona Dionor... Este sinhor aqui veio consertar a pia e o chu-
veiro do banheiro... e este aqui, Seu Túlio Mendoim, veio a negócios, quero
dizer, veio negociar as flores com a senhora. Vou deixar vocês à vontade.
Enquanto isso, vou mostrar o vazamento do banheiro pro...como é mesmo
o seu nome hein?

BOMBEIRO
(Gaguejando). Meu-meu...nome...é-é...Afonso Pe-pena, Pena! (Sumiram).

LAURO E CIÇA
(Entreolharam-se, perplexos). Flores?!

CIÇA
Será o que você tá pensando é o mesmo que saquei?

LAURO
Floricultura. Um novo negócio. Um novo ramo e rumo na vida da coroa!

CIÇA
Exatamente! Com isso, ela vai provar a todos que está lúcida e que pode
ainda continuar sendo útil na comunidade. Sobrou pra nós!

LAURO
Só sobrou! A coroa é terrível de esperta. Manja só? Vai partir pruma nova
atividade.

CIÇA
Vai mesmo. (Saiu de fininho). Vamos nessa. Deixa ela pra lá.

TÚLIO MENDOIM
(Conversando, com detalhes e gestual). Primeiramente, a senhora vai usar um capi-
tal de giro pra poder montar sua banca de venda na praça, também poderá
ser noutro lugar, onde seria melhor pra organizar uma floricultura e como
será o nome?

DIONOR
Nome de quê?...
- 221 -

LAURO
Bença, mãe! (Ela só esticou a mão que foi beijada pelo filho). Boa sorte nos seus negó-
cios, viu! (Sumiu indo atrás da Ciça que não se despediu).

TÚLIO MENDOIM
Voltando ao assunto, todo e qualquer negócio tem um nome fictício, um tí-
tulo, uma fachada... No seu caso, além do produto de floricultura à venda,
que nome daria pra sua casa de venda?

DIONOR
Olha, seu Túlio, prefiro assim: Floricultura “Cara ou Coroa”.

TÚLIO MENDOIM
Taí. Gostei! Fica uma coisa diferente. Que soa diferente. Mas por que “Ca-
ra”, por que “Coroa”??!...

DIONOR
A moeda não têm dois lados adversos? As pessoas, por exemplo, os filhos,
os parentes, não usam duas caras, pra conseguir seus intentos? E nas artes,
no cinema, no tetro, na dança, na música, nas artes plásticas, há o câmbio
da moeda em toda a parte, além das máscaras. Máscaras tristes, outras ale-
gres, descontraídas. Mas todas com o mesmo objetivo: disfarçar aquilo que
nos perturba na realidade e olhos vistos. E eu enxergo a maioria!...

TÚLIO MENDOIM
Bom, já tô indo! Portanto, estamos combinados assim. Seremos sócios...né
não, dona Dionor? (Saiu batendo a porta). Até amanhã.

DIONOR
(Vai sentar-se diante da TV). Que homem chato! Agnalda!...oh Agnalda!

FIM DO ESPETÁCULO
O BORDEL
DE JOANA
HOMEM
- 223 -

O bordel de Joana Homem


Drama social - 2004

PERSONAGENS
Joana Homem - prostituta, ex-cafetina
Mordomo - 50 anos, antigo serviçal da cafetina

CENÁRIO
Palco italiano. Mostra praticamente uma sala vazia contendo apenas um sofá-ca-
ma, uma cadeira de vime, um bastidor para troca de roupa, um cabide de pendurar
chapéu etc. e um telefone no cenário tendo as paredes forradas de papel. No canto
da sala, um quadro de Santo Antônio.

TEXTO
Narra na trama a história de uma prostituta e ex-cafetina, querendo justificar sua
decadência sob o ponto de vista social relacionada ao seu bordel Puleiro dos Anjos,
por considerar-se honesta, sem jogo sujo, sem qualquer envolvimento com bandi-
do, com traficante de drogas. Esse tipo de coisa do submundo onde a personagem
passa a contemplar o espaço vazio e a viajar nas suas divagações do tempo passa-
do a limpo; onde torna-se difícil a difícil “vida fácil” por onde andam as “rainhas da
noite” como os boleros e os chavões costumam chamar.

CENA 1

(Mostra a negra cafetina aposentada dando voltas pela sala e justificando o vazio existente no
ambiente que, em épocas passadas, foi cheio de glamour e muita grana de marinheiros).

JOANA HOMEM
Olhem só pra isto! Vejam o que restou da minha casa de negócio: uma sa-
la vazia, apenas com uma cadeira de palha onde embalo meus cochilos e
um telefone mudo em regime de silêncio!!! O desgraçado não toca nem pra
- 224 -

atender o chamado da mãe, quanto mais um convite prum coito entre quatro
paredes deste antigo puteiro chamado carinhosamente de “Puleiro dos An-
jos” em 1955, hoje completamente esquecido da rapaziada da Marinha que
adorava a putaria neste velho bordel. Seria ótimo se o telefone tocasse numa
chamada especial e de emergência, até porque, mesmo estando toda quebra-
da, aposentada por invalidez, eu daria meu jeito de tirar a barriga da misé-
ria! Mas essa artrose nos joelhos e nos tornozelos é que me deixa de bengala
e sem poder andar sozinha por aí. É perigoso! Tem muito assalto nas ruas.

(Neste momento, o mordomo aparece com trajes à rigor e trazendo uma bandeja onde lhe ser-
virá um chá de camomila. Ela detesta tal lembrança, desta feita, numa paródia de cinema).

MORDOMO
Madame... seu chá de camomila. É um bom calmante pros nervos.

JOANA HOMEM
Mas que marmota é essa?? Detesto quando você se veste assim! Vai, Alfre-
dinho, tirar essa roupa ridícula. Esse tempo aí já passou.

MORDOMO
Pois pra mim, permanece... Madame! Continuarei servindo a madame da
mesma maneira antiga que sempre lhe servi, mesmo contra sua vontade.
Deixe que eu continue lhe servindo assim, uniformizado, para que me sin-
ta feliz em continuar sendo útil a senhora, fiel aos seus caprichos, madame.

JOANA HOMEM
Olha aqui, seu Alfredo! Corra lá no quarto e guarde essa tralha velha, e me-
ça a sua palavra quando se dirigir a mim!!! Depois eu tomo chá. Agora vá
se desfazer dessa fantasia de carnaval.

MORDOMO
Com licença, madame... (Retirou-se da sala com altivez e postura). Sinto muito em
decepcioná-la.

JOANA HOMEM
Macaco!!! Bajulador!!! Puxa-saco!!! (Voltando-se para plateia). No fundo, talvez
ele tenha razão! Aí entra uma coisa que todos nós temos: a saudade de al-
guma coisa boa que passou; o livre arbítrio de escolher esta ou aquela op-
ção de vida. (Temperou o chá e bebeu). Pobre Alfredo! Quantos chás ainda vai
- 225 -

ter que me servir?... Até quando, meu Deus?!.... Tanta gente granfina, tan-
tos políticos, bancários, empresários, artistas e poetas da época passaram
por aqui em busca de prazer, em busca de mulheres e rapazes alegres super
dotados, com direito ao luxo, ao prazer a dois, agora olhem só pra isto...
em nada adiantou a sacanagem, a putaria que havia dentro do “Puleiro dos
Anjos”!!! Tô com uma cara de jaca. A grande preocupação de uma mulher
é envelhecer e não ter mais condição de usar seu atributo. Embora hoje nos
tempos modernos há vários recursos na medicina.

MORDOMO
(Adentrando, formalmente). Madame, pode me dizer o menu de hoje? (Apanhou a
bandeja e ficou de pé aguardando sua resposta). O que a madame deseja pro jantar?

JOANA HOMEM
Vá pro inferno com seu “menu” idiota!!!

MORDOMO
Temos peixe, frango e peru na geladeira. Se me permite, madame, posso
providenciar um “peru a California” que tanto a madame gosta!

JOANA HOMEM
Ô homenzinho chato! Vá com seu peru pra lá. Faça o que bem quiser. Sem-
pre adorei o seu cardápio, até mesmo de frango assado na brasa!

MORDOMO
É pra já! Como nos velhos tempos, madame!!! (Alegrou-se um pouco). Deixe co-
migo que eu vou caprichar no frango assado! (Saiu comicamente).

CENA 2

(A negra cafetina continua envolvida com suas lembranças e guarda rancor de uma época que
lhe tiraram tudo, até o único filho que morrerá no movimento das guerrilhas do Araguaia).

JOANA HOMEM
Esta casa, esta casa! De que maneira esta casa ruiu no tempo?? Nem eu mes-
ma sei! Até grandes instituições faliram nesta época no Brasil, por que o
“Puleiro dos Anjos” da Joana Homem podia ser diferente?? Apesar da cri-
se que perdura até hoje, em maior escala, no Brasil de agora nos arrastando
pruma vida miserável e cretina. Talvez a morte brusca do único filho que
- 226 -

eu tinha e que morrerá nas guerrilhas do Araguaia. Isso me deixou um tan-


to arrasada, sem vontade pra nada, nem pra fornicar ou soerguer esse ramo
de negócio. Foi uma época terrível, cruel e nojenta que massacrou o meu fi-
lho e o meu coração. Mesmo assim, continuei tentando, tentando... Mas não
havia meios de contornar o problema. Era uma montanha de dívidas e tri-
butos a pagar pra Justiça!!! Então resolvi fechar o “Puleiro”, além do mais,
muitas das minhas meninas saíram daqui casadas, e bem casadas!! A maio-
ria dessas infelizes me batia a porta em busca de arrego, sem emprego, que-
riam lavar os lençóis do motel manchados de sangue, aí resolvia deixá-la
trabalhar como prostituta. Nem sempre dava certo porque todos - sem exce-
ção! - queriam trepar com a boasuda aqui, com esta negra cafetina, dona de
um motel decente, limpo, asseado, vistoriado pela saúde, frequentado por
homens granfinos. Mas resolvi ouvir o conselho da minha velha mãe: elimi-
nar um negócio que não estava mais dando certo e seguir em frente sozinha,
e com Alfredo a tira colo. Portanto o vazio seria menos vazio e menos pe-
noso para mim... Mais suportável. Principalmente agora... que me apareceu
esse problema de saúde nos ossos. Vê se pode! Alfredo!!! (Chamou-o irritada).

MORDOMO
(Apressou-se, atento). Sim, madame?...

JOANA HOMEM
(Ao vê-lo uniformizado). Ah, não! Pelo amor de Deus e em nome de todos os
santos me poupe de olhar esse uniforme ridículo em você!!! Vá retirá-lo do
corpo agora. Por favor!

MORDOMO
Está bem. Se a madame prefere assim...

JOANA HOMEM
Prefiro! Chega de palhaçada. Ponha na sua cabecinha de vento, meu ami-
go, que acertos e tropeços fazem parte da vida de todos nós e de todas as
instituições, sejam estas quais forem; o que não podemos deixar é de ar-
riscar quando se faz necessário mudar. Sem medo de tentar por uma vida
melhor, esta ex-cafetina aqui, está pronta para negociar o “Puleiro” com al-
guém que daqui a pouco chegará. Aí sim, quero que você o receba como
príncipe. Com educação, finura e mordomia. Tome! Pegue a chave do meu
carro e corra na feira pra comprar um frango na brasa com poeira e tudo
que ele tem direito. E é pra já, Alfredo!!! É pra ontem, queridinho!!!
- 227 -

MORDOMO
Mesmo assim! Ainda assim acho que a madame tá pisando na bola! Fazen-
do maldade com quem não devia ou merecia. Enfim, a senhora é quem sa-
be quanto custa o preço da fama e do glamour! (Saiu constrangido). Amarra-se
o burro onde o dono do burro manda, e daí?... Vou contradizer?...

JOANA HOMEM
Então faça exatamente o que lhe pedi. É uma ordem! Corra lá e traga o frango.

MORDOMO
Sim, madame! (E saiu).

JOANA HOMEM
Vai atender o cão com esse negócio de “madame”, vai pro inferno!!! Que
coisa mais sem graça. Fora de moda. Eu hein!

CENA 3

(O telefone toca e ela demora atender devido a dificuldade de andar com a muleta de braço da
marca “canadense”).

JOANA HOMEM
Ai, que desgraça! Ainda não consigo me adaptar a esta muleta, meu braço
dói muito, parece machucar meus nervos, os tendões do braço. Enquanto
o telefone me anuncia uma esperança de vida! Quem será? Tomara que se-
ja um michê qualquer, um convite pra jantar... Alô! Puleiro dos Anjos, boa
tarde. Em que posso servi-lo? Diga lá! (Pausa). Desligou. Seja quem for deve
estar curtindo saudades como eu agora pruma fornicadinha. Ou a julgar
pelo fungado devia estar cansado, prestes a ter um enfarte, e talvez qui-
sesse se despedir de mim ouvindo apenas a minha voz. Será meu Deus??
Que mereço tanto!!! Ultimamente, com o surgimento da Aids, as pessoas
e os farristas parecem desestimulados para o amor. Que horror. Mas con-
tinuam usando a “camisinha”, é necessário, é precaução. A vida vale mais
do que uma trepada com alguém que a gente gosta. Espero que os motéis
e bordéis não permaneçam vazios por muito tempo, até esse povo se acos-
tumar com a ideia. Como é que pode, meus homens queridos? Botem es-
sa rola pra funcionar de verdade, antes que a minhoca venha comer o res-
to sob 7 palmos da terra. Magina! Se vou deixar que isto aconteça comigo.
Nem morta, filho! Tenho fé em Deus que através dos poetas, dos políticos,
- 228 -

dos artistas e dos devassos esta cafetina aqui conseguirá que os burocratas
sejam menos burros e mais sensíveis aos apelos de todas nós prostitutas.
Quando gritaremos: Queremos homens de verdade em nossa cama!!! Nem
que para isso a gente tenha que ceder o traseiro e mudar o rumo da nossa
história, de nossa vida... que ninguém é de ferro ou doente da cuca!!! Que
a moral se exploda neste país dos corruptos!!!

CENA 4

(Vaidosamente se contempla no espelho. Faz caras e bocas diante do espelho e faz crítica).

JOANA HOMEM
Ah! Joana Homem! Quanto tempo ultrapassou o meu tempo? Algumas
rugas aqui, outras embaixo do queixo, é minha cara Joana, a velhice che-
gando no pé das orelhas!!! Acima disso, vamos comparar que a fé é neces-
sária. O sexo é necessário. O amor é necessário. A luta é necessária. Tudo
é necessário. Que droga!!! Em que foi que errei então?... Na minha opção
de vida?... Na escolha dos homens granfinos com os quais me deitei?... É
possível mudar o mundo, mudar o que já está ao alcance das mãos??... (Vol-
tou-se para plateia). E o que é que está ao alcance das mãos? Isto aqui: a minha
xereca? A minha bunda? Os meus peitos? Ah, Joana Homem! E pensar que
apesar do apelido que te deram anos atrás, muitos homens, loucos e poe-
tas escreveram versos de sacanagem nas minhas coxas ou nos meus seios
ou nas minhas nádegas!!! Eu era a que mais faturava no Puleiro dos Anjos.
Olhar tudo isso aqui, tudo vazio e cheio de lembranças boas ou ruins, me
causa arrepios, um nó na minha garganta. Ah! Como gostaria de arranjar
um caixa-alta, cheio de grana e que me desse um banho de loja e um livro
de cheque para poder retomar tudo isto!! (Dando tapinhas no rosto). Ih, Joana
Homem! Te acorda, desperta desse sonho idiota!! Vai batalhar que o dia e a
noite são dado de graça, menos o pão de cada dia. (Entra novamente o mordomo,
com sutilezas e afetivo).

MORDOMO
Madame... Se me permite...

JOANA HOMEM
Já vi que com você não adianta o protesto, nem a censura, pra continuar a
usar esse traje ridículo!!! Mas fala, imbecil, diz o que pretende.
- 229 -

MORDOMO
Madame! O frango assado esta na mesa, do jeitinho que a madame prefere
com poeira, óleo e tudo! Só falta agora o convidado especial.

JOANA HOMEM
Ainda não chegou??? Mas que homem cretino! Basta ser um manobrista de
carro em lava-jato, pé rapado!!

MORDOMO
Telefone pra ele ou quer que eu ligue avisando que a madame tem hora pra...

JOANA HOMEM
Não, não! Fique tranquilo. Ele é meu amigo e sabe disso, de que tenho ho-
rário pra encher a barriga.

MORDOMO
Tomara que, em sua vida preguessa, esse seu amigo possa olha para trás e
reconhecer como os demais ao telefone: Se Joana Homem, a minha rainha,
pôde me dar o que me deu em termos de amor e sacanagem, então a minha
mulher é galinha!!!

JOANA HOMEM
Com certeza! E também chifruda! Com certeza. Pelo simples fato de que
a prostituta não dá em cima deles, dos homens casados, às vezes, são eles
que nos perseguem porque ficam de “greve” com a mulher em casa duran-
te dias ou semanas. É aí que entramos na história deles sem a gente querer
ou forçar a barra. E tem caso que eles ficam com as duas: a esposa e a pira-
nha! Eu acho bobeira.

CENA 5

(Tempo. Numa outra área de ação onde após o jantar, a nega cafetina aposentada, veste uma
camisola pra dormir e reza diante da imagem de Santo Antônio).

JOANA HOMEM
Como é que é, meu santinho? Não vai fazer nenhuma bacanagem comigo,
como dante fazia? A vida não tá fácil, não! Eu é que sei. Eu também sou fi-
lha de Deus. Que diabo! Quer que eu morra de útero seco? Sem pingar es-
perma na distinta aqui?? (Bateu na boca três vezes). Perdão, perdão, perdão meu
- 230 -

santinho, eu não devia ter falado isso. Mas por favor meu Santo Antônio
me ajude!!! Não quero retornar ao frio das madrugadas, nem às “estações”
das calçadas!!! Quero, isto sim, que me ajude arrumar um homem de ver-
dade, tão cheio de grana quanto o Lula, um cara fofinho que nem ele, co-
medor de churrasco, um homem de dar água na boca e comichão na buce-
ta. Vê lá o que pode arranjar pra mim, mas não vá me colocar numa fria,
viu meu santinho!!! (O telefone toca e ela fica alegre). Opa! Opa! É hoje que a Joa-
na Homem vai gemer como uma cadela no cio. Mas que milagre porreta!
Obrigada, meu santinho, obrigada! Foi muito apressado nas suas artima-
nhas. Alô... Alô! Sim, sei. Pois não, seu Formiga, que deseja do meu “Pulei-
ro dos Anjos”? Como?? Quer fornicar com a dona do bordel? Mesmo estan-
do foló, toda frouxa?? Bom, se assim deseja, pode vir. Não tem problema,
Sr. Formiga. Se está bem empregado e tem um cheque de mil reais pra gas-
tar comigo, então o que tá esperando meu amore mio?... Tudo bem. Segre-
do nosso. Combinado. Claro que a família nunca vai saber. Sou puramente
discreta. Profissional. Sei guardar sigilo. Até mais tarde, então. (Desligou o te-
lefone. Olhou para o santo). Olha! Vê lá o que me arranjou!! Não tô afim de gas-
tar meu último dinheirinho com velas e prendas!

CENA 6

(Tempo. Cai a luz no cenário. Em seguida, mandou o mordomo preparar o ambiente como nos
velhos tempos. Depois vestiu uma camisola vermelha e longa. Com detalhes em pluma deixan-
do transparecer o seu corpo numa nudez sensual e charmosa).

MORDOMO
(Diante de sua beleza). Pronto, minha rainha. Esta noite será toda da madame.
Faça desta noite a mais longa de todas! Não deixe por menos, madame!!

JOANA HOMEM
Mas menino! São mil reais!!! Já dá pra tirar da barriga da miséria, por en-
quanto. E se o cabra for bom de cama como ele disse nós podemos firmar
um acordo temporário. Que acha?

MORDOMO
A vida é um jogo e a madame tem que saber jogar! Mas jogar pra ganhar!!
- 231 -

JOANA HOMEM
Tá certo. Vou seguir seus conselhos... Alfredo. Aliás, o que é dado com gos-
to não se regala os olhos, já dizia minha vó. Eu diria: não só de regalaria os
olhos como as beiras dessa coisinha fofa aqui.

MORDOMO
Magina! Quem foi rainha nunca perde a majestade! Nunca!!!

JOANA HOMEM
Meu filho, eu só é das boas! E se esse tal de Formiga for realmente um cara
bem sucedido na vida e tiver alguma influência política no ramo, aí o “Pu-
leiro dos Anjos” vai estar azul novamente, cheio de clientes, onde fino trato
faz parte do “Puleiro”. (A campainha toca).

MORDOMO
Deve ser ele, madame! O seu convidado especial.

JOANA HOMEM
Já? Vá atendê-lo! (O mordomo obedece). Nossa! Como foi tão rapidola! Nem
deu tempo de passar um desodorante intimo na bichinha...

MORDOMO
(Ao anunciá-lo). Madame... O Sr. Formiga Borborema! (Saiu de cena).

JOANA HOMEM
(Ficou estupefata ao vê-lo, feio, magro e desdentado). Não!!! Meu Deus!! Eu não mere-
ço esse castigo já no fim da vida!!!...

FORMIGA
(Foi logo tirando a roupa, ficando nu e falando pouco por ser gago). Fui, fui, fui com, com,
com tua cara, minha, minha, minha criou, criou... la!!

JOANA HOMEM
(Escondendo-se no lençol). Não me diga! Que estrago o meu! Puta merda. (Aí des-
ligou-se as luzes e tudo ocorreu em absoluto silêncio).

FIM DO ESPETÁCULO
A GAIOLA
DE VIDRO
- 233 -

A gaiola de vidro
Dramaturgia - 2004

PERSONAGENS
Olga
Quirina

CENA 1

(Mostra Dona Olga preocupada, enquanto a irmã mais nova vai preparando a mesa para a San-
ta Ceia).

OLGA
Haja Deus. Que situação!

QUIRINA
O que foi, minha irmã? Não gostou da arrumação da mesa! Tá feia assim?

OLGA
Não se trata disso. Pra mim, tanto faz como tanto fez, se a mesa está ou não
bem arrumada.

QUIRINA
É que você, Olga, deu um suspiro tão profundo, que até pensei que fosse
uma viagem ao passado bem remoto. Acertei?

OLGA
Acertou!

QUIRINA
Muito distante, a que lonjuras de Belém?...
- 234 -

OLGA
Não. É aqui mesmo dentro de Belém. E tem algo com você, viu Quirina!

QUIRINA
Comigo? Como assim?...

OLGA
Ai, que meleca de vida! (Suspirou outra vez).

QUIRINA
Credo. Que horror! Suspirando desse jeito, vai acabar tendo um troço, nes-
sa cadeira. Não é melhor andar um pouquinho pela casa não, fazer um...?

OLGA
Não! Não é nada disso que estou precisando. Mas olhe só pra isto!! Esta sa-
la vazia. Estas paredes nuas. Sem fotografias, como lembrança, que retrate
alguma recordação. Meu Deus. Sem nenhum quadro da família pendura-
do. Sem nenhuma tela de algum pintor famoso.

QUIRINA
Ah: você tá preocupada com isso? Fuja do passado, minha querida. Não
há como viver do passado ou em função do passado. Acho tudo isso muito
vazio, muito triste. Esqueça tudo, viu Olga. Passe uma esponja nisso.

OLGA
Como esquecer, sua tonta? Ah, eu adorava tudo aquilo! Eu adorava cada
passo que eu dava dentro desta casa para atender nossos clientes.

QUIRINA
E que clientes!

OLGA
Marujos, estivadores e um pessoal granfino, chiquérrimo.

QUIRINA
Cada qual mais ousado. Um mais pimpudo do que o outro!

OLGA
(Riu). Menina! Do que você veio lembrar agora!
- 235 -

QUIRINA
Era sim! Chegava a causar aflição na gente. Uma gastura por dentro. Nos-
sa!! O fogo subia no rabo e tomava conta de tudo! E você tornou-se famosa,
porque era a favorita deles...

OLGA
Diga-se de passagem... Eu era a que mais derrubava pau. A rapaziada gos-
tava. A moçada era muito alegre, muito divertida.

QUIRINA
Até onde me lembro... tudo aconteceu naquele triste acidente rodoviário
quando o ônibus caiu na ribanceira, matando nossos pais e ferindo outros
passageiros. Lembra? A gente vinha passar o Círio de Nazaré.

OLGA
Aí fomos parar numa casa na Gaspar Viana, onde havia um bordel coman-
dado pela negra cafetina Joana. Ela era tão engraçada, tão cheia de prosa!

QUIRINA
Era sim! Assim como era muito esperta e teimosa. Não tinha homem que
passasse ela pra trás. E, que antes de morrer, aos 47 anos, nos passou todos
os macetes da sacanagem e da putaria com os homens, como arrancar di-
nheiro dos calhordas.

OLGA
Ela era terrível. Na boca ela carregava um pedaço de gilete e no bolso ocul-
to da saia, uma navalha afiada, que fazia funcionar na hora H, na hora que
fosse enganada. Eu me lembro de tudo. Na época, eu tinha o que? Uns 15
anos e você uns 13.

QUIRINA
Exatamente. Duas mocinhas afrescalhadas que sonhavam fazer fortuna
com o sexo livre, como fizeram, construindo um puteiro de verdade no
centro de Belém e que denominamos de “Casa de Massagem Puleiro dos
Anjos”. Vê se pode! (Riu). Pode sim! Tanto pode que você iniciou comigo tor-
nando-se a minha cafetina. Depois foram chegando as outras que você “ga-
rimpava” pelas ruas. Lembra?!
- 236 -

OLGA
Ora se me lembro! Eram moças pobres, algumas desamparadas, ignoran-
tes, semianalfabetas, sobretudo bonitas, sem eira nem beira. Não tinham
o que comer nem onde morar. Vendiam o corpo, na beira da estrada, pros
motoristas a preço de banana.

QUIRINA
Coitadas. Ainda havia aquelas que, na tentativa de mudar de vida, procu-
ravam ser empregada doméstica, mas acabavam dando de graça pro pa-
trão na ausência da patroa. Quando a mulher do cara descobria mandava
a coitada pro olho da rua. Aí ficava na rua e nos becos de lua “fazendo es-
tação” pra ganhar mixaria, quando não, um tapa na cara ou um chute nos
cornos pra fornicar de graça. Eu hein!

CENA 2

(Durante suas divagações envolvendo lembranças do que é passado, dona Olga resolve passear,
pela sala sustentada pela bengala australiana, e tenta usar o telefone em vão. Enquanto Quirina re-
compõe a mesa, novamente, como se fosse um gesto neurótico, deixando passar mania de limpeza).

OLGA
Vocês pensam? Não é fácil disputar espaço na rua. A vida fácil não tem na-
da fácil. Pensa que é moleza tá de olho nos faróis de carros, suportar tanto
frio na madrugada, aguentar desaforo do capitão ou cobranças da cafetina,
levar porrada no olho e pontapés na bunda?...

QUIRINA
Isto é verdade! E quando amanhece o dia...? A piva, muitas vezes, não ga-
nhou nem pro café, quanto mais pro almoço ou pra enviar qualquer coisa
pro filho, que mora com a vó no subúrbio ou no interior. É ralado mesmo!
Tô cansada de dizer que: quem gosta de puta é gigolô. Porque reza pela
cartilha da coitada.

OLGA
Alô...Alô... Haja Deus. Esse telefone da Lady Funda só vive ocupado. De-
sisto. Mais tarde ligo pra ela. Gostaria que ela viesse jantar com a gente...
Essa raça, quando se gruda num telefone, parece trepada de cachorro: não
larga nunca. Eu hein! Me admiro da Lady Funda que reclama de solidão!!
Não é mesmo, Quirina?...
- 237 -

QUIRINA
(Levando de volta a louça ao armário). Magina! Não sei do que se trata, minha que-
rida irmã, Olga D’Volga, portanto... não posso e nem devo me enxerir nesse
seu assunto de espírito de porco. Com certeza. Porque se fosse conversa de
espírito de Natal era pura assombração. Coisa que nunca houve no Puleiro
dos Anjos. Nunca! (Sumiu no corredor da casa).

OLGA
Tá ficando doida, Quirina? Eu hein! Eu tô falando uma coisa, você enten-
de outra. Haja Deus. (Vai ao espelho e comenta). Me diga, espelho meu: por ca-
da ruga que tenho, quanto tempo em estilhaço, vou ter que conferir, a cada
passo, a minha velhice sem futuro, sem objetivo, sem perspectiva?? Que
horror! Estou me sentindo como se fosse o vazio e a solidão desta sala. Tal-
vez, como um pássaro na sua gaiola cativa, tentando voar em vão, tendo as
asas feridas! (Chorou disfarçadamente e voltou a sentar-se). No que vislumbro, a ca-
da espaço ou quarto desta casa, era de fato ocupado por pessoas granfinas.
Gente da alta roda. Pessoas famosas. Pessoas ilustres. Todas vinham curar
sua dor de cotovelo. (Ao vê-la atravessar a sala). Não... era mesmo, Quirina?

QUIRINA
Era sim! Isto tudo aqui já foi uma casa de atrações, muito bem frequentada
por políticos, bancários, empresários, até poetas, artistas, cafetinos e devas-
sos! E digo mais: se não fosse o procedimento escuso dessa raça, haveria
um certo glamour bem mais sofisticado.

OLGA
Tem razão. Uma coisa é certa. A gente tinha um respaldo político e social
pelo qual mantínhamos nossa porta aberta.

QUIRINA
E nossas vaginas escancaradas! Ocupadíssimas! (Riram juntas).

OLGA
Haja Deus.

QUIRINA
Eu era a preferida dos marujos por causa da fundura da minha xereca! Tu-
do virava uma bandalheira. Nossa!
- 238 -

OLGA
E eu então, menina! Era a que mais faturava no bordel. Arreava qualquer
cacete. Enquanto a maioria morria de ciúmes, inveja. Era ou não era?...

QUIRINA
Era sim! Naquela época você era muito bonita, muito charmosa, glamouro-
sa. Tinha um brilho que era só seu. Era uma rainha da noite! Todos os ho-
mens, cretinos e divinos, beijavam seus pés... Assim...

(A irmã, para reverenciá-la, estende um tapete vermelho na sala e finge ser alguém de alguma
realeza. E anuncia).

QUIRINA
Senhores e senhoras, cretinos e devassos, eis a nossa rainha da cocada pre-
ta... a rainha da noite!! Cantada em verso e prosa nas letras dos boleros e
tangos. Viva a nossa rainha! Olga D’Volga!!

OLGA
(Após desfilar, auxiliada pela irmã). Pensando bem. Eu era de fato rainha da noi-
te! A maioria me adorava do mesmo modo que respeitava o meu canivete.
Qualquer coisa eu metia a lâmina. Fazia logo uma bocetinha na cara!!

QUIRINA
Pior que era! Havia uma certa revolta em você que me assustava. Eis por-
que também eu lhe protegia do ciúme das outras. Mandava embora. Dis-
pensava pra evitar alguma tragédia no bordel.

OLGA
Eu sempre soube disso. E sempre lhe agradeci por isso!

QUIRINA
Eis porque estamos juntas. Sabes por quê? Porque a gente se respeita!

OLGA
Mas hoje, olha como estou... peito caído, bunda caída, cheia de varizes, es-
trias por tudo quanto é parte do corpo. Nossa! Que homem vai me querer
assim, Quirina? Haja Deus.
- 239 -

QUIRINA
Olga! Não te frustra. Já reparou na rapaziada moderna? Hoje em dia, tem
um certo gosto pra tudo, até pro que não presta. Tem homem que adora mu-
lher obesa, recheada de gorduras, com um monte de pneus na barriga, es-
trias nas coxas... Ai, que horror! Era preferível morrer do que ficar deforma-
da. Coisa que você não é, nem nunca será, viu mana. Esteja tranquila. (Sumiu).

CENA 3

(Em seguida, Olga volta a pintar em tecido, enquanto Quirina entra na sala, ajeitando o vestido
novo e contempla-se no espelho. Toda alegre. Otimista).

QUIRINA
Que tal estou? (Exibiu o vestido florido). Bonita? Feia? Ou ridícula?...

OLGA
Simplesmente ridícula com essa flor nos cabelos! Você não é nenhuma “Ma-
ria Igarapé” da vida, pra se vestir desse jeito. Haja Deus. Vista-se com gla-
mour, com elegância, com simplicidade. O exagero descaracteriza as pessoas.

QUIRINA
Engraçado... Você sempre foi assim. Cheia de pose, cheia de frescura.

OLGA
Eu sempre me vesti discretamente! Ao passo que você, minha doce Qui-
rina, sempre exagerou nas coisas com esse seu péssimo gosto. Haja Deus.

QUIRINA
(Diante do espelho). Você tá com despeito por eu ser mais jovial e alegre.

OLGA
Tu juras! Só porque tu queres.

QUIRINA
Veja. Agora é que estou reparando em mim. Tenho poucos pés de galinha
e rugas na cara! Pra muita gente que anda a perigo, ainda dou no couro,
eu acho. Se duvidar, trepo mesmo! Mais do que Leonardo da Vince. Ora da
vinte! Eu zinha dava mais do que ele... umas 30, 40, até 50 trepadinhas de
- 240 -

duas em duas horas... subindo e descendo essa escada, com a arrumadeira


de quartos, para dar melhor conforto aos nossos clientes. Não era, Olga?...

OLGA
Haja Deus. Bons tempos aqueles, bons dias, eu diria, onde o fim do mês
não era também o fim da picada!! Dinheiro não faltava. Claro que existia
algum cliente mão de vaca, sovina, que nos dava um michê miserável, de
filho da puta.

QUIRINA
Também era verdade. Em compensação, eles passavam uma noitada ale-
gre, divertida, com derrama de bebidas e comida! Fora o salão de dança
onde ressonavam músicas da época, merengues, lambadas, boleros que de-
leitavam a dor de cotovelos, dor de corno manso. (Riram às gargalhadas).

OLGA
Haja Deus. Se eu tivesse que repetir tudo de novo...

QUIRINA
(Interrompe). Que os anjos não me ouçam pelo que vou lhe dizer. Aqui pra
nós, não existe a menor possibilidade da Olga D’Volga reverter o quadro!

OLGA
Claro que não, sua tonta!

QUIRINA
Nem poderia! Hoje, você só consegue escancarar as pernas pra mijar e de-
fecar. Ora, me poupe! Endiabrada e fogosa como era, acabou escancarando
tanto, mas tanto, que hoje taí fudida, fudidona. Sem eira nem beira. Culpa
do passado, como costumo dizer. De coisa mal administrada. Fazer o quê?
Lutar contra o destino? O nosso destino de puta e cafetina?!!

CENA 4

(Mostra Quirina voltando a arrumar a mesa, como se fosse servir a santa ceia. Enquanto a irmã
mais velha atende o telefone no final).
- 241 -

OLGA
Tá bom. Faz de conta que já não pertencemos às orgias da vida e que não
fazemos parte deste mundo. Morremos faz tempo. Tudo começou ali, na
hora que você recebeu o ultimato da justiça!

QUIRINA
Foi uma bosta! Foi muita bosta na Geni. Dívidas e mais dívidas desencava-
das pela Justiça dos homens. Que grande ironia! Comeram, comeram, até
se fartarem, depois cuspiram no prato que comeram. Vê se pode! E só não
fui atrás do prejuízo por sua causa! Achava que era um constrangimento.
Muito aborrecimento.

OLGA
O que é pior, não tinha como fazer isso! A maioria já se escafedeu. Talvez,
alguns morreram de infarto ou coisa parecida!! Tenho certeza. Não vale a
pena resgatar algum valor monetário por algo que nos condena agora! É
simplesmente lamentável, Quirina.

QUIRINA
Eu sei que é! Mas os canalhas continuam rindo, debochando, fazendo ca-
çoada contra nós duas, quer dizer, cuspindo na xereca que a maioria lam-
buzou um dia sem fazer cara feia!! Quisera a gente poder remontar o Pu-
leiro dos Anjos com sangue novo, gente jovem, gente afoita, moderna, pra
cima! Como a rapaziada fala.

OLGA
Quem não gostaria de curtir alguém cheirando a leite? Como eles dizem:
turbinado! Cheio de frescor e juventude. Haja Deus. (O telefone toca). Deixa
que eu atendo...

QUIRINA
Não senhora! Eu atendo. Como nos velhos tempos.

OLGA
Negativo, Quirina! Deixa que eu atendo. Nada de “velhos tempos” coisa
nenhuma! Afinal de contas, não me trate como se eu fosse uma inválida...
Fico embucetada com isso! Me trata como gente normal.
- 242 -

QUIRINA
(Largando o aparelho). Toma essa porcaria!! Não precisava me xingar à toa. Te-
nho mais o que fazer dentro desta casa. Inclusive, servir essa raça de solda-
dos famintos, essa rapaziada com desejos de fome. Acabei virando...

OLGA
... uma empregada doméstica! Uma empregada neurótica, maluca, doida,
que passa o dia inteiro arrumando a mesa. Haja Deus.

QUIRINA
Ah, deixa de ser chata! Eu sempre procurei servir bem aos outros! (Vai no fun-
do da casa e volta com pratos e talheres).

OLGA
Alô... Alô! Fala, coração! (Breve pausa). Desligou...

QUIRINA
Quem era?

OLGA
Como vou saber? Alguém, não falou nada! Parecia que estava com a língua
travada no rabo, só pode. Deu um suspiro e desligou!

QUIRINA
Vai ver que só queria ouvir sua bela voz! Era um fã seu antigo, só queria
saber se estava viva, foi por isso que suspirou, tenho certeza, que vai ligar
de novo. Tome esta cadeira. Fica logo sentada aí pra receber o telefonema.
(A outra sentou-se e agradeceu com entusiasmo).

OLGA
Obrigada. Deus lhe ouça. Só assim vou livrar minha xereca da ferrugem.
Haja Deus. E tomara que seja o Toinho, aquele lindão do apartamento 408.

CENA 5

(Mostra Olga impaciente com a irmã num vaivém constante na sala: colocando e retirando pra-
tos e talheres da mesa de vez em quando. Como se quisesse arrumar de novo pela derradeira
vez. É uma cena patética e curiosa).
- 243 -

QUIRINA
Enquanto você pensa “naquilo” eu tô aqui atarefada de serviços pro jan-
tar! Adivinha quem vem jantar com a gente? O Presidente do Brasil e a 1ª
dama...

OLGA
Pare com essa leseira! Com essa paranoia de ficar arrumando e tirando ta-
lheres e pratos da mesa. Que coisa! Chega me dá uma gastura. Que horror!
Haja Deus. Haja estômago pra aguentar. Égua xiri.

QUIRINA
Você tá fuxicando de mim, é? Pouco tou me lixando! Só faço aquilo que me
dá na telha, não aquilo que você queira que eu faça. Faço nada! (O telefone to-
ca e a outra vai atender com elegância, fazendo pose).

OLGA
Alô! Casa Funerária Pés Juntos, bom dia... Diga, meu amorrr! Em que pos-
so servi-lo?...

QUIRINA
(Estupefata). O quê??? Já não é mais Puleiro dos Anjos? Mudou de fachada?

OLGA
Sim, sim! Claro. Mudamos de ramo sim!

QUIRINA
Mentira dela. Deve tá ficando louca. Essa égua pocotó!

OLGA
Claro que eu tou falando sério. Como? Ora! Temos caixão simples, urnas
de luxo... Hein? Sim! Tem sim, para todos os tamanhos, para todos os gos-
tos e gastos, de acordo com a vontade da família.

QUIRINA
Olga D’Volga!! Aonde você vai arranjar isso?

OLGA
Tem caixão até pra presunto, digo, defunto fino, defunto grosso. Hein?...
Não! Estou me referindo a defunto magrinho, esbelto, light, e a defunto
- 244 -

gordo, gordão, obeso, fofo, fofão, fofinho e... Como? O quê? Vai você, cor-
no manso, tu e teu defunto comedor de bosta!! Viadão!

QUIRINA
Menina! Para com isso! Seja educada. Respeite a dor da família do falecido!

OLGA
Como? É você que não presta, seu canalha! Pois sim! Quero mais que os
urubus puxem as tripas podres do defunto pela rua e fiquem disputando a
carniça dele no pisão, seu imoral!! (Pausa). Desligou. Haja Deus. Você pensa?
O pobretão queria pexinxar a porra do caixão. Pensava bem que eu ia fazer
negócio com gente chinfrinha. Nunca! Haja Deus.

QUIRINA
E que ideia é essa de Casa Funerária Pés Juntos?! Que ideia lhe passou na
cabeça, minha querida?...

OLGA
Simplesmente, mudamos de ramo e eliminamos o passado. Agora, em vez
de acolher esses cretinos em nossa casa, vamos tratar de fazer o funeral de-
les!! Melhor do que ninguém, nós duas, pra realizar o desejo deles através da
família ou de pessoas amigas, quando estes morrem sozinhos, no abandono.

QUIRINA
Entendi. Mas como você vai dar conta desse negócio, se não existe tal coisa
aqui em casa, como??

OLGA
Não esquenta a periquita. Eu sabia que a novidade ia lhe pegar de surpre-
sa, até pensar que eu estaria louca. Mas não estou não, Quirina. Estou sim,
pensando em nós duas, sempre pensando em nosso futuro quanto à velhi-
ce. Então, pensei: meu Deus, há tanta gente morrendo de infarto e de aci-
dente no trânsito, porque não abrir uma casa funerária decente e enterrar
essa gente com mais dignidade, em vez de encaixotá-los simplesmente?!...

QUIRINA
Que horror! É, você tá certa. Então faça aquilo que seu coração mandar. Eu
dou maior apoio. Estou sempre do seu lado.
- 245 -

OLGA
Não se preocupe com nada. Já tomei minhas providências. Você verá que
é um grande negócio. Quanto mais defunto, caixão pronto! Fiz sociedade
com uma funerária clandestina, e montei outros serviços com o proprietário.

QUIRINA
São sócios?

OLGA
Uma semana! E já está dando certo. Tá pintando clientes na fábrica. Agora
serei uma mulher de negócio, embora diferente.

QUIRINA
Espero que não seja algo escuso ou de camuflagem pra não sair prejudicada.

OLGA
Acho que não! (O telefone toca e vai atender às pressas). Haja Deus. Alô... Casa Fu-
nerária Pés Juntos, bom dia! Diga, cara amiga! Em que posso ser útil, nem
que seja pela última vez?!... Claro. Claro. Somos mortais sim, precisamos
enterrar nossos mortos com dignidade. Como? Temos sim, uma promoção
supimpa: oferecemos mulheres choradeiras, buquês de flores, seresteiros
se for o caso, jogadores de baralho, cafezinho com biscoitos, além da filma-
gem simples, antes dos 15 minutos da despedida dos familiares, registran-
do tudo, até a hipocrisia dos falsos amigos. Não, o quê? Ah, sei, sei! Sua ir-
mã só tinha amigos. Ainda bem! Hein? Quanto custa o pacote? Olha, pra
você que é legal, gente fina, gente boa como se diz, eu faço pela metade do
preço: 2 mil reais. Tá bom? OK! Ficarei aguardando sua visita ainda hoje.
(Desligou). Haja Deus.

QUIRINA
Mas como?

OLGA
Sei lá! Vou dar meu jeito.

QUIRINA
Que jeito?! Bom, deixe-me arrumar meus talheres que é bem melhor. Não
me meto em encrenca. (E foi estar entregue aos seus afazeres contínuos). Deus me li-
vre e guarde!
- 246 -

OLGA
Mas não foi você mesma que falou que me daria maior apoio?...

QUIRINA
Mas não pra suas falcatruas!! Pra suas façanhas mentirosas! Pra suas inves-
tidas enganosas! Sendo assim... não conte mais comigo, viu zinha? Rainha
da merda! Mentirosa.

OLGA
Mentirosa é você!! Com esse seu teatrinho mambembe!

QUIRINA
E você? Cafetina fracassada! Rampeirona decadente!

OLGA
Você sim, que é puta fracassada! Que não tem ideia pra sair dessa gaiola de
vidro, sua malucona! Haja Deus, Quer saber duma coisa? Vai pro inferno!!!
Com esse seu jeito de ser. Doida!

QUIRINA
Doida eu? Doida é você! Que sempre enganou a Deus e a todo mundo! Eu
apenas sou vítima dos seus caprichos escabrosos!

OLGA
Vai! Xinga mais! Xinga mais, quem sempre tirou tua barriga da miséria e
não te deixou faltar nada, nem roupa, nem sapato, sua cachorra!! (A outra fin-
ge sair, pegou a bolsa e ajeitou os cabelos, quando). Vai sair?

QUIRINA
Vou! O ar desta casa está insuportável.

OLGA
Aonde vai?

QUIRINA
Vou dar umas pernadas por aí. Talvez, encontro alguém pra bater papo,
pra... sei lá, talvez pra uma fornicaçãozinha maneira. Bom, tô indo. Fui!
- 247 -

OLGA
Espere! Eu vou com você! Não me deixe sozinha. Tenho medo da solidão!

QUIRINA
Não senhora! Comigo não! Fique aí com seus arreios. (A outra se deteve).

OLGA
Não demora a voltar pra casa. Vê lá hein! Vou cuspir no chão.

QUIRINA
Pode cuspir. (Vai e volta pra pegar a bolsa). Vou é cair na gandaia!! Vou dá essa
xereca por aí. Chega de ficar nessa clausura. Chega!

OLGA
(Aproxima-se dela). Sabe aquela onda toda que andaram fazendo contra a nos-
sa casa de massagem clandestina?

QUIRINA
Não! Nem consigo imaginar o que seja.

OLGA
Nem adivinha? Aquelas dividas acumuladas, desencavadas pela justiça,
que a gente tinha que quitá-las uma por uma!

QUIRINA
Sim, sim! O que é que tem?

OLGA
Pois bem. Aí vendemos tudo que tínhamos e zeramos tudo também. Fica-
mos por assim dizer na miséria. Hoje me sinto ultrajada, ferida em meus
brios, humilhada mesmo, quando esses safados mexem com a gente na rua
ou por telefone atazanando-nos com palavreado besta.

QUIRINA
Eu que o diga! Agora , saí à rua por alguns minutinhos, não é que fui abor-
dada por um jovem drogado!

OLGA
Jura?? O que foi que ele fez? Xingou você?
- 248 -

QUIRINA
Não!

OLGA
Enrabou?

QUIRINA
Também não!

OLGA
Então, ele não fez nada! Do que é que você tá se queixando?

QUIRINA
Daquilo que ele tentou fazer usando um gesto clássico, corriqueiro: passou
a mão na minha “Josefina”, mão divina e cretina que me provocou um frio-
zinho não na barriga, mais no fim do espinhaço, aqui, quase perto do fiofó.
Bem pertinho do olho do cu. E toma jato no rabo! Era tudo que eu queria,
seu fedelho. Joia. Valeu. Pena que passou!... Foi o que eu falei pra ele.

OLGA
É uma pena! Mal ele sabe o que perdeu. Uma barata funda. Fundoda e fu-
dona!!

QUIRINA
Vá lá que seja. Mas tudo não passou de uma tremenda vontade. Se todos os
caminhos nos levassem para o paraíso do amor, a fim de deitar e rolar com
alguém que você gosta ou pelo menos “finge” gostar, a gente sofreria menos.

OLGA
(Abraçou a irmã). Então, meu docinho de morango! Como foi que nós duas
saímos ilesas desse desconforto mundo sexual? Sem doenças venéreas ou
hemofílicas! Não foi usando na época aquela famosa pomadinha chinesa e
preventivos caseiros? Lembra-se disso?!

QUIRINA
Oh! E como! Graças a Deus, a rapaziada nova está protegida, hoje em dia,
tem o recurso do uso da camisinha. Só não usam porque não querem.
- 249 -

OLGA
Porque são burros! Da mesma maneira que o sexo é algo nocivo, pode tor-
nar-se um veneno mortal. Desses que deformam e fazem cair por terra a
mais forte das criaturas humanas!

QUIRINA
Fico pasma quando estou lhe ouvindo falar com tanta sabedoria. E menos
entendo porque você mudou de ramo, e o subtítulo da nossa casa de mas-
sagem. Foi alguma exigência do novo código de postura brasileiro?!

OLGA
Quem te falou isso?

QUIRINA
Eu que pensei que fosse!

OLGA
Claro que não. O puteiro informal sofreria um colapso e, imediatamente,
entraria em crise. Ou seja, a putada migraria para as ruas, becos e esquinas
da cidade, como era antigamente. Por outro lado, querida, a zinha aqui ti-
nha que romper o silêncio desta casa, o mutismo das palavras, com relação
a nós duas e o mundo lá fora. Já era sem tempo!

QUIRINA
Mais de 40 anos na clausura!! Tem toda razão. Em vez de ficarmos com es-
se papo de massagem, a gente pode agora recorrer ao carnê funerário, pra
derrubar a péssima impressão que ficou sobre nossa casa de massagem.

OLGA
Exatamente. Haja Deus. Quero estar longe da famigerada orgia dos impos-
tos e juros e correção monetária sobre o sexo livre. Eu hein! Isto fica pra tur-
ma de camelôs, marreteiros e ambulantes que enfeiam as calçadas!

QUIRINA
Concordo até certo ponto. Pois uma coisa ninguém discute: esse pessoal é
vítima de uma política arbitrária, suja, de alguns políticos “bundão” que
perseguem os descamisados e derrubam o camarada no comércio.
- 250 -

OLGA
Menina! Você defendendo aí a bandeira clandestina desse pessoal acabou
se esquecendo que ia dar umas pernadas!!

QUIRINA
Ah, sim! Eu ia mesmo! Mas agora não vou. Prefiro ficar te fazendo companhia.

OLGA
Obrigada. Eu sabia que não me abandonaria nem por um momento desses.

QUIRINA
(Afastando-se dela). Deixe-me cuidar de sentir o nosso almoço.

CENA FINAL

(Enquanto Quirina prepara, pela derradeira vez, a santa ceia, a irmã mais velha atende o telefo-
nema. Aqui, a luz vai caindo no cenário acompanhando o final da fala da personagem).

OLGA
Alô... Alô! Casa Funerária Pés Juntos... pois não, senhor! Em que posso servi-
-lo? Ah, sim! Nossas urnas são granfinas, chiquérrimas sim, com material de
primeira qualidade. Como? Claro que são trabalhadas, artisticamente talha-
das, pra nenhum defunto botar defeito, digo, nenhuma família do falecido.
(Pausa). Sim, pode sim. Isto lhe garanto. O senhor vai adorar! Já que gosta de re-
quinte e beleza. Pagamento parcelado? Quantas parcelas que o senhor quiser!!

QUIRINA
Meu Deus. Como é que essa criatura vai dar conta disso? Que brincadei-
ra é essa, gente? Que papo esquisito é esse? Minha Olga D’Volga pirou de
vez! Será possível?

OLGA
Escute senhor... Como é mesmo seu nome? Isto! Gumercindo Magalhães Pa-
monhas!! Está bem. O quê? O que oferecemos como serviços? Olha, nós te-
mos um grupo de mulheres choradeiras, ricamente vestidas, de acordo com
os recursos da família, também moças e rapazes que representam parentes
que detestam comparecer a velórios e a enterros vestidos de preto, usando
óculos escuros. Falam que isso é só fachada e que não são hipócritas. (Pausa).
- 251 -

QUIRINA
Meu Deus. Será, criatura, que você vai cumprir tudo isso e mais aquilo??

OLGA
(Com o aparelho ao peito). Pare de resmungar, sua barata tonta! O cliente pode-
rá ouvir. Afaste-se daqui de perto. (Voltou ao telefone). Claro senhor. Eu enten-
do seus sentimentos. Hein? Também temos sim, um grupo de seresteiros
pra cantar músicas que o falecido gostava, com direito a jogos de canastra,
pif-paf durante a madrugada. Como? Também! É uma filmagem simples,
sem edição, direta, mostrando as máscaras dos que lá estarão em torno do
jazigo, 15 minutos antes... quanto custa o quê? O pacote? Não menos do
que 3 mil e quinhentos reais, meu caro amigo Gumercindo Magalhães Pa-
monhas... (Desligou). Haja Deus. O desgraçado desligou na minha cara, recla-
mando que o pacote está caro e que ia pechinchar por aí primeiro. Ora, me
compre um bode! Que a minha cabra está solta no pasto! Magina! Se de-
funto quer saber de flores e dessa frescura toda de família, quer mais é ser
enterrado num buraco qualquer, antes que apodreça em cima da terra. É
ou não é? Haja Deus.

QUIRINA
Bom! É o direito dele como consumidor. Quem era ele? Algum político?

OLGA
Sei lá! Talvez algum pé rapado. Com certeza. Essa gente é que vive pechin-
chando tudo.

QUIRINA
Querida... o almoço está na mesa. Venha almoçar! Antes que esfrie.

OLGA
(Fixou alguém na plateia). Será também verdade??

(Fechou o foco de luz).

FIM DO ESPETÁCULO
DUAS VIDAS
EM
FRANGALHOS
- 253 -

Duas vidas em frangalhos


Comédia - 2004

CENA 1

(Mostra dona Lenira andando de um lado para outro da sala. Depois se senta um pouco no úni-
co sofá e aguarda dona Ivana , sua irmã mais nova, que irá lhe servir um chá como calmante).

LENIRA
Meleca de vida. Uma das maiores piras que assolam este país é a dos apo-
sentados e dos pensionistas. Também muito conhecidos como miseráveis e
que fazem parte da turma da terceira idade que não lê nada, mas se depri-
me. De uma coisa estou certa, a nossa vida - a minha e da minha irmã - mu-
dou e muito, como da água pro vinho. Isto, há 40 anos atrás! De lá pra cá,
tudo tomou um rumo diferente e acabou tudo: o luxo, a beleza, o requinte,
o glamour daquela época!! Só me restaram as lembranças e saudades da-
quela nossa vidinha afrescalhada... e a tentativa em vão de resgatar a ca-
sa de massagens. Vocês pensam? Hoje em dia nem convite pra festinha de
aniversários no bairro, nem pra eventos sociais, culturais, filantrópicos ou
até mesmo para algum velório de gente famosa. Nada. Porra nenhuma. Fo-
mos totalmente esquecidas.

IVANA
Pronto. Aqui está um chazinho de camomila pra nos acalmar um pouco.
Venha tomar uma xícara, minha rainha da noite.

LENIRA
Obrigada, minha irmã. Diga-se de passagem: eu já fui rainha!! Cantada em
verso e prosa pelos poetas ou nas letras dos boleros da época. Hoje, como
hoje, não passo de uma cafetina fracassada, uma rampeira da ralé.

IVANA
Não se machuque por isso. Nem se torture com lembranças amargas. Vale
lembrar que éramos jovens demais, que deveríamos estar preparadas para
aceitar a decadência física do nosso corpo, em vez desta contestação, deste
ridículo protesto. Às vezes, fico me remoendo ao lembrar o brilho de luxú-
ria faiscando nos olhos dos marujos, quando não uma baba elástica e bovi-
- 254 -

na, como diria Nelson Rodrigues, que escorria no canto dos lábios, fora a
cabeça cheia de caraminholas e pensamentos pecaminosos. E o cliente esta-
va absolutamente certo, correto sim, dona Lenira, aqui nesta casa o cliente
é quem sempre tem razão.

LENIRA
Tinha. Tinha! Só que essa coisa ficou no passado. Agora passamos a viver
de que? De uma pensão gorda que o nosso pai, que era militar, deixou. Isto
mantém um padrão de vida razoável. Acho que ele previu o nosso futuro:
esta decadência total. Olhe só pra isto, Ivana! Estas paredes nuas, sem ne-
nhum quadro pendurado, nenhuma pintura de artista plástico, qualquer
moldura que nos faça remover as lembranças do que existiu de bom, apenas
este velho sofá de veludo, este cabide bizarro, esta mesinha de telefone, o
velho tapete e um telefone mudo, que não toca nunca, que parece conivente,
aliado ao mutismo das palavras. Que meleca de vida é esta, minha irmã?!...

IVANA
E pensar que há 40 anos nós duas nos unimos e criamos nossa casa de mas-
sagem. Eu era espirituosamente a prostituta, a melhor do bordel, a piva
que mais derrubava cacete. Só que eu me apaixonava por todos. Depois,
vieram as outras e encheram o salão de novos clientes, e você continuava
sendo a minha cafetina.

LENIRA
Uma casa camuflada, frequentada por gente ordinária, metida a besta, a
grã-fina. Hoje tem muita gente correndo léguas de nós duas, não querem
saber mais da nossa fornicação, quem tem... Tem medo.

IVANA
O caso é usar camisinha.

LENIRA
Ah, Ivana! Ninguém tem coragem de convidar uma de nós duas a passear
por aí para espairecer um pouco, dar umas pernadas, tomar uma estupida-
mente gelada, visitar o Museu, o Bosque, as galerias de arte ou curtir uma
água de coco na orla de Icoaraci. (Respirou fundo). Ah, mana, como seria bom!!
- 255 -

IVANA
Tem razão. O que menos vale são as aparências. Diante do olhar deles não
passamos de um caco. Coisa usada e antiga. Entretanto, hoje o que tem va-
lor é gente com espírito de porco e a cores, na TV, com direito a reportagem
e tudo.

LENIRA
Concordo. As desculpas esfarrapadas são aquelas mesmas de sempre. Fal-
ta de tempo, falta de grana, falta de tesão e sei lá mais o quê.

IVANA
Só conversa fiada, minha irmã. O jeito mesmo é viver de lembranças da-
queles garanhões cheios de grana e da catuaba. (A outra riu).

LENIRA
Pior que era!

IVANA
Um monte deles. Marujos, poetas, devassos, políticos, bancários, empresá-
rios, comerciantes, estivadores, enfim...

LENIRA
Até artistas, cafetinas e prostitutas de todas as bibocas frequentavam esta
casa.

IVANA
Bons tempos aqueles, bons dias, eu diria. Onde o final do mês não era tam-
bém o fim da picada. Dinheiro não faltava no bolso da clientela. Até ho-
mem casado vinha buscar consolo pra suas mágoas durante a semana.

LENIRA
E onde estão as dezenas deles que foram inesquecíveis amantes e maridos
traídos e que foram amargamente incorporados à solidão, ao abandono, e
ao desprezo, como nós duas. Nem sequer nos oferecem gorjetas mixuru-
cas, muito embora os marginais deem maiores ofertas. Esses pichadores de
paredes e muros enfeiando a cidade de Belém.
- 256 -

IVANA
Que horror. Esses caras só fazem porcaria. Garranchos sem pé nem cabeça.
O que eles fazem é pichação nojenta. Tenho certeza que no lugar de cérebro
dentro da cabeça tem outra coisa, muita bosta!! Desses daí não quero ver
nem a cara, quanto mais o pinto. Prefiro enfiar um cabo de vassoura. Magi-
na! Eu passar à tiracolo com um deles por aí? Tu tá é doida, minha rainha!
Discordo de sua opinião. Faltou senso de humor.

LENIRA
Tá bom. Esqueça. Faz de conta que eu não falei nada. E se nós duas corrês-
semos atrás do prejuízo?!

IVANA
Mas como? São uns canalhas! Sempre vomitaram no prato que comeram
sem fazer cara feia. À estas alturas do campeonato, querida, suponho que
a maioria morreu de enfarto ou coisa parecida! Não sabemos deles, nem de
sua sepultura, onde acender uma vela pra alma dos calhordas. Você pensa?
Eu já me virei pra Rafaela – aquela menina de rua – nos ajudar a remontar
a nossa casa de massagem.

LENIRA
E ela? Deu alguma resposta?

IVANA
Deu sim. Foi muito grossa comigo. Disse que não aceitava o convite porque
não tinha nascido pra ser piva. E eu disse pra ela que, pra ser prostituta,
garota de programa, depende de vários fatores sociais e que exige bastante
coragem, em se tratando de uma profissão de risco. Coitada! A garota ficou
apavorada e sumiu da praça.

LENIRA
O que é pior. Nem todas estão na rua ou na Zona porque gostam, mas sim...
por necessidade. Tá pensando que é moleza enfrentar o frio da madruga-
da, a bandidagem lá fora, os faróis acesos em cima de você, além de levar
porrada no olho, pontapés na bunda, ainda por cima, aguentar os abusos
do tal coronel, o gigolô que fica com tua grana. Nossa! Na calçada, um mi-
chêzinho vagabundo, muito devagar, mal dá pro café da manhã ou pro al-
moço dos filhos que a maioria possui e vivem lá com a vó num bairro da
periferia ou no interior.
- 257 -

IVANA
Bom! A Rafaela preferiu se juntar aos pivetes cheiradores de cola!

LENIRA
É a sina dela. Um ato desse em que as autoridades têm uma parcela de cul-
pa, e bota culpa nisso!! O resto são consequências de uma péssima educa-
ção e de esclarecimento no seio da família.

IVANA
Claro que é! Essa nova geração está ameaçada e se sente perdida. O que,
por sinal, ocorro também nos fins de semana nos bailes fanks da cidade ou
na zona suburbana. Onde, ligadíssimos, eles se arrebentam no traseiro com
essa nova dança, uma nova onda de dançar, como dizem... A Lenira já viu?

LENIRA
Já. Na reportagem da TV.

IVANA
E o que achou?

LENIRA
Uma merda. Coisa de gente doida. Mas essa “onde” vai passar como pas-
saram as outras do nosso tempo. É puro modismo! Falta de imaginação.

CENA 2

(Tempo. Finalmente o telefone toca e ambas correm imediatamente para atender como se fosse
uma disputa de corrida de automóvel).

LENIRA
Milagre Santo André. O mudinho voltou a falar depois de tanto tempo.

IVANA
Quanto tempo, meu Deus?

LENIRA
Acontece que eu peguei primeiro! Portanto, quem vai atender sou eu. Alô...
- 258 -

IVANA
Diga que o Puleiro dos Anjos foi reativado, que a gente tá com uma clien-
tela muito doidona, pirada mesmo, malucona, que precisa morrer esborra-
chado em cima duma cama. Fala!

LENIRA
(Tensa). Só que eu não devo. Ou devo? Posso ou não posso?!

IVANA
Claro que pode! E deve! Atenda o freguês... Rápido, Lenira! Antes que ele
perca a paciência de esperar pelo telefone.

LENIRA
(Assume outra postura). Alô! Casa Funerária Pés Juntos, bom dia! Pois não, se-
nhor. Em que posso servi-lo?... (Ivana insiste em falar).

IVANA
Não, sua tonta! Não transfira os signos. Chama-se Puleiro dos Anjos! Diga
também que a rapaziada é legal e curte uma diferente, adoidado.

LENIRA
Alô... Estou ouvindo, sim, senhor! É que caiu a ficha. Pois fiquei emociona-
da com sua bela voz. Se temos urnas grã-finas? Temos sim, e são chiquér-
rimas! Também temos caixão comum, mas de boa qualidade, com material
de primeira linha e bem trabalhado. Nossa! É quase um acabamento artís-
tico e pra ninguém botar defeito. Como? Ah, sim! Dá sim... Dá pro cliente
pagar em 6 parcelas de R$ 1.200,00. Hein?...

IVANA
Pronto. Vai começar tudo de novo. Desta vez, Lenira endoidou de vez,
transferindo o “Puleiro dos Anjos” para a “Casa Funerária Pés Juntos”. Vê
se pode! Eu tenho que corrigir isso. Nem que a vaca tussa ou vá pro brejo!

LENIRA
Escute, meu querido, também estamos realizando uma promoção, com
venda de flores e serviços especiais, como: mulheres choradeiras, ricamen-
te vestidas, grupo de jovens, moças e rapazes, que representam os familia-
res que odeiam velório, que detestam comparecer a enterro vestidos de pa-
- 259 -

letó preto e óculos escuros. E pra completar o pacote: oferecemos jogo de


baralho, canastra, xadrez durante a madrugada, com direito a cafezinho e
bolacha...

IVANA
Lenira! Para com isso, minha irmã!

LENIRA
Não, não, não. Nesse caso não pode faltar, eu sei. Mas nós oferecemos uma
turma da seresta e outra da birita pra tocar e cantar as músicas preferidas
do falecido. O que? Como? Ah, sim: a filmagem nós fazemos de graça 15
minutos antes de enterrarem o presunto, digo, o defunto... Sim! Sim! Na
hora em que todos choram lágrimas falsas, lágrimas cretinas, em torno do
jazigo... Hein?...

IVANA
Minha irmã... não ilude o homem dessa maneira. Acaba com isso! Nós não
temos urnas coisa nenhuma.

LENIRA
Quanto custa o pacote? Adivinha. Faz um cálculo. Olha! Pra você amigo que
um cliente novo, faço por uma bagatela de R$ 3.500,00. Tá bom assim?! (Do
outro lado da linha, alguém desligou). Desligou! Falou na minha cara que era preferí-
vel enterrar o pai dele em um buraco no quintal. Mão de vaca. Um miserável.

IVANA
Quem era ele? Algum político? Algum deputado? O governador?

LENIRA
Sei lá. Faz de conta que era alguém muito importante rompendo o silên-
cio, o mutismo das palavras e a saudade daqueles que não amanheceram.

IVANA
Ufa! Que alívio! Pensei que fosse sobrar pra mim.

LENIRA
Magina! Seria muita pretensão sua! Quanto a isso esteja tranquila. Nin-
guém vai comparecer na sua cama para navegar suas pernas escancaradas.
- 260 -

IVANA
Ai, credo! Nem pense nisso. Hoje morro de vergonha só em pensar como
era que eu dormia de barriga pra cima e as pernas na forma de cruzetas.
Nossa! Que horror.

LENIRA
Dê um tempo e procure fazer uma faxina nesta casa enquanto vou prepa-
rar nosso almoço. E se o Pedro Álvares Cabral e a dondoca dele me convi-
darem para o jantar na casa do casal, diga que irei sim, viu! Não vou dis-
pensar aquele cardápio. (Sumiu no corredor da casa).

IVANA
Essa daí pirou de vez. Haja Deus. Haja saco pra aguentar neurose de mu-
lher da terceira idade!

CENA 3

(Ivana obedece a irmã mais velha e passa a arrumar a casa com o mesmo cuidado de aranha pa-
ra evitar quebrar algo que resta. Depois de alguns segundos, o telefone toca e Lenira fica atrás
da porta ouvindo tal conversa).

IVANA
Alô! Alô... Puleiro dos Anjos, às suas ordens, boa tarde! Diga. Pode falar o
que deseja, meu dengo! Como? Bom! Mas hoje em dia tudo é só fachada,
meu caro. Então, você não é o único nem será o último de sua geração a
curtir a mulher do seu melhor amigo numa boa. Essa história vem dos tem-
pos mais remotos. Vem da época de Cristo! Quando Jesus perdoou a Ma-
dalena impedindo que aquele povo apedrejasse a coitada, dita e havida co-
mo pecadora. Aproveita a “deixa” meu nêgo e vai fundo! A hora é esta en-
quanto o piru está pegando fogo na cueca. O quê? Se nós somos discretas?
Discretíssimas!! Mantemos o maior sigilo. A nossa boca é um túmulo de
segredos lacrados. Não passamos a bola pra ninguém não, meu filho. Tu-
do no maior respaldo profissional. Hein? Quanto custa uma... Uma o que,
uma suruba a quatro??? Olha aqui, seu taradinho, depende muito de quem
topa e gosta dessa prática! Claro que nós temos um bom cardápio de mo-
ças e rapazes vitaminados que adoram suruba! E até participam de porno-
chanchada. Como? O que as pessoas pensam a respeito do assunto? Olha,
pra ser franca, tal preceito ficou enterrado no passado. Antes era uma coisa
encubada. Hoje nessa modernidade o pessoal quer saber de soltar a fran-
- 261 -

ga, cair na gandaia. Hein? É claro! Desde que use a camisinha. Como as-
sim? Ah: tava testando a minha vã sabedoria popular?! Mas que safadinho!
Olha aqui, seu corno manso, seu chifrudo, vai enfiar esse pinto na puta que
o pariu!!! Seu fedelho. (Desligou).

LENIRA
(Sai de trás da porta). O que houve? Que gritaria é essa?

IVANA
Sabe o que o rapaz tava fazendo? Enquanto conversava comigo no telefo-
ne... O infeliz se masturbava só de ouvir a minha voz, segundo me falou.
Pode? Ô juventude mais louca essa!

LENIRA
Hum! Isto é pra você vê. Cada louco com sua mania. E cada cidade tem o
louco que merece!

IVANA
Eu hein!

(O telefone toca novamente. Já não é mais surpresa nem novidade. Lenira tem dificuldade em
andar e usa muleta de braço, pacientemente se dirige ao aparelho que toca com insistência).

IVANA
Haja Deus. Por que não atende essa droga? Vai, Lenira, atende!

LENIRA
Meleca. A gente agora não tem sossego. Só faz entender, e cliente que é
bom, neca, neca.

IVANA
Tenha paciência. Um dia vai pintar algum otário aí na porta pruma noitada
bem sacana. Quem foi rainha não perde a majestade. Vai, vai, vai atender a
porra desse telefone, Lenira. Que coisa!

LENIRA
Ah, meu Deus, porque inventaram o telefone! (Pausa. Enquanto se aproxima do
aparelho). Alô. Casa de massagem “Puleiro dos Anjos”, boa tarde. O quê?
Claro que voltou a funcionar a miúde. Como? Bom! É seu ponto de vis-
- 262 -

ta, meu bem. Claro! Mas é lógico. Percebe-se. De vez em quando, pinta al-
guém que curte algo novo e nos trás uma nova posição de trepar. Deseja
curtir com quem? Com uma de nós duas??

IVANA
(Curiosa). Me deixa ouvir um pouquinho. Quero saber quem é ele, o otário!

LENIRA
Como? O quê? Meu Deus do céu. Então, foi você Pedrão que pagou as con-
tas atrasadas do telefone, ainda por cima, pagou nossas dívidas básicas e
encheu nossas latas de mantimentos? Claro, claro, vamos manter o sigilo.
Mas em todo caso só tenho que agradecer tamanha gentileza em nome da
minha irmã e em meu próprio.

IVANA
Nossa! Que barato! Adorei milhões!

LENIRA
É com prazer que aguardaremos você hoje à noite! A que horas? No mesmo
horário de sempre? Último! E você como é que vai? Ainda continua quei-
mando lenha? Jura? Verdade mesmo? Menino! Tô pasma, tô bestificada.
Que danadinho você é, hein Pedrão! Quer jantar o quê? Pirarucu com co-
co?? Escuta, benzinho, em lugar da pizza, cerveja, pirarucu com baião de 2,
por que não uma vagina num ensopado de mal de abelha, ou então, uma
bunda recheada de creme chantilly com ameixas e moranguinhos? Não
gostou da ideia? Prefere o quê? Frango assado? Cruzes! Então veremos.
Tchau, Pedrão, amore mio... Até mais ver. Não vai deixar furo. (Desligou).

IVANA
Que safadinho esse Pedrão!

LENIRA
Disse que pagou tudo isso em troca de um favor seu na rua embaixo duma
mangueira ali na Praça da República. Nunca soube dele com tanta grana.
Afinal de contas, quanto fatura um Guarda noturno? Ele tem que nos con-
fessar. Vamos disputar ele numa porrinha. Ora se vamos!
- 263 -

CENA FINAL

(Tempo. Mudança de figurino e de luz no cenário. Algo sofisticado com um aroma forte de per-
fume. Ambas estão produzidas e ouvindo música ambiente).

IVANA
(Saindo pro canto). Que tal estou?

LENIRA
Você? Você tá chiquérrima, meu bem!!

IVANA
Você também! Como sempre você está deslumbrante!

LENIRA
É uma pena. A julgar pelo homem que nós duas vamos disputar. Eu hein!
A que ponto chegamos, Ivana!

IVANA
É a lei da selva de cimento e concreto, minha rainha!

(De vez em quando, ambas largavam sorrisos amarelos e voltam a sentar-se no sofá de veludo
ou trocar de música, até caírem de porre de sono numa cadeira de embalo. É fim de noite. Si-
lêncio total. Apenas uma vitrola a fazer ruídos riscando o disco: um bolero de Adelino Moreira
na voz de Ângela Maria).

FIM DO ESPETÁCULO
A MORTE
DE PEDRO
MALEIRO
- 265 -

A morte de Pedro Maleiro


2004

PERSONAGENS
Pedro Maleiro - desempregado, bebum, jogado na sarjeta, 50 anos

CENÁRIO
Palco italiano e semiarena. Cenografia experimental destacando característica urba-
na, onde vê-se, ao fundo, o paredão com pichação variada, pneus velhos, latas etc..

TEXTO
Narra na trama a história de um maleiro, marreteiro desempregado, machucado pe-
la depressão, acabou tornando-se um bebum rejeitado pela família e pelos amigos.
Dessas criaturas humanas que infelizmente a gente (ainda) se esbarra por aí no meio
da rua, nos becos, nas ruelas, na avenida da cidade grande, dormindo embaixo das
marquises, morando em quiosques ou em mausoléus de cemitérios. Enquanto nos-
sos políticos modernos vão pro seu apê assistir a reportagem na TV. E daí? Como
mudar o quadro? A quem cabe a culpa? Aos políticos? Ou ao egoísmo dos homens?...

CENA 1

(Mostra Pedro Maleiro deitado na sarjeta, barbudo, esfarrapado feito um mendigo e doente pra
morrer à míngua. Na rua, longe da família etc.).

PEDRO
O que tô fazendo aqui? E o que o senhor acha que tô fazendo aqui nesta
pinóia de sarjeta, jogado fora, na rua da amargura, comendo migalhas e
morando embaixo das marquises?! Sou mais um brasileiro desemprega-
do há alguns anos e abandonado pela família. Eu falei lá pro patrão: porra
doutor, porque me botar no olho da rua? Eu sempre fui um cara de cará-
ter e personalidade. Sempre fui um bom funcionário, um marreteiro, um
- 266 -

bom maleiro, qual é, a sua doutor? Aí ele respondeu: a minha é concessão


de despesas. Porra, quando ele me disse isso, me subiu uma raiva, uma re-
volta, meu irmão, que vou te contar. Aí ficou uma mágoa no peito e uma
cicatriz na cabeça. Dei muitas rendas pra fábrica clandestina daquele ca-
bra safado. Sonegador de imposto de renda. Me admiro do advogado de-
le que deita e rola na grana pra abafar serviços exclusos. Xá pra lá! O que
passou, passou... já é passado, quero esquecer, embora a revolta de alguns
seja hoje o meu consolo em morrer no fundo do poço, ou seja, no fundo da
garrafa. Aí as sanfonas vão se calar, os bares vão à pique, vão se fechar, as
prostitutas vão chorar, e os devassos vão mijar em cima. E logo gritarão ao
mundo, talvez um gaiato dessa nova geração soltara um berro: Ei, cara! O
garrafinha morreu! O Pedro Maleiro. Pai’dégua essa. (E tomou mais um gole de
lamber o beiço).

CENA 2

(Neste instante, Pedro Maleiro, ao tomar um gole de birita lembra da mulher e dos filhos que
deixou em casa sem retornar a vê-los um dia. Nem que fosse por um momento. Então chorou
feito criança abandonada).

PEDRO
Vou nessa. A gente bebe pra esquecer. Que papo furado, conversa fiada!
No dia seguinte a gente volta a lembrar. Vem uma secura na goela. A cabe-
ça viaja atrás do mal hábito. A gente ouve falatório do povo contra os be-
buns daqui da praça. A grana se acaba. A rapaziada nova que tá aí descola
uma grana numa boa, aí dá pra encher a cara... tomar um porre sacana de
abandono. Ninguém merece! Merece sim, um pontapé na bunda. Foi o que
mereci da dona encrenca, ela me pegou de surpresa, me abandonando de
vez por causa da birita. Seguro a você seu doutor uma coisa: eu nunca ba-
ti na minha mulher e nos meus filhos, tá ouvindo? Mas, a Mirica que já se
embadeirava pra lado do seu Raimundo, nosso vizinho, falava que eu da-
va muito trabalho, muito vexame pra ela, além do constrangimento na vi-
zinhança, então... (Chorou) resolvi morar na rua, seu doutor. Sabe por que?
Porque aqui a gente não paga aluguel, nem nada, nadica de nada. A comi-
da o povo dá, oferece. O povo daqui é bom, é generoso. Olhe, seu doutor,
também tem gente sovina no meio, mão de vaca. Assim como tem gente
péssima, gente mau caráter, mas a gente vai vivendo como Deus quer. Só
recomendo uma coisa pra dona encrenca: a comida daqui é melhor do que
o feijão com arroz da Mirica! Com certeza! Tujuras! Diria ela... (Foi até um
- 267 -

canto e abriu uma bolsa velha e contemplou uma fotografia) Ah, meus filhinhos quan-
ta saudade! Parem com esse falatório besta! Esse daqui é o Ziza (o mais ve-
lho) tem cinco anos, esse é o Tonico (tem quatro) e essa é a caçula, a Dodó, tem
três... Não deixem o papai morrer...

CENA 3

(Aqui, sequenciando a cena, Pedro Maleiro, ao beijar a fotografia tem a céu aberto uma forte
crise de tosse provocada pela asma cardíaca).

PEDRO
Segura firme, Pedro Maleiro. Aguenta a crise, homem. Vai! Seja forte como
foi teu pai. Encara a droga dessa crise. (Pausa. Enquanto toma fôlego e respira fundo).
Porra. Ainda não será desta vez. Fica frio, Pedrão. Morrer faz parte da vi-
da. E pobre morre fedorento! Mas, será que vou me apagar agora? Aqui?
Com essa gente toda passando e repassando, indo e vindo, sem dar con-
ta daquilo que tá acontecendo com a gente! Era preferível morrer em casa,
fulminado, mas junto da família, dos amigos, do que céu aberto, no meio
da rua, nos becos ou ruelas da cidade. Manjou?? Eu, Pedro Maleiro, muito
embora capacitado, tornar-me agora um defunto chifrinho!! Na verdade, o
coroa aqui merece uma estátua velada em praça pública onde o passarinho
vem e caga em cima. Mas a morte que torturou Jases na cruz e no calvário,
vai querer acabar com este bebum enfeiando a paisagem da cidade! Nunca
falei tão sério, doutor. Pode apostar.

CENA 4

(Cena final. Mostrando Pedro Maleiro com dificuldades de andar para apanhar do chão uma
fantasia de palhaço ou de pierrô abandonada na quarta-feira de cinzas. Ouvem-se batucada ao
longe. Pano de fundo da cena).

PEDRO
(Vestindo-se). Ah, meu carnaval passado! Minha quarta-feira de cinzas jamais
esquecida! Ah, minha linda fantasia de palhaço ou de pierrô pulando, dan-
çando, brincando de alegria na última escola que desfilou!!... Em lugar da
mortalha, paletó surrado, pijama velho, deixe experimentar uma dessas
fantasias abandonadas na rua. Assim que nem eu! Esta aqui de palhaço cai
bem. A dona encrenca diria: palhaço, a vida inteira, foi o que ele sempre
foi! E, não se esqueça de dizer, chifrudo também, corno manso. Seja feliz
- 268 -

Mirica com o tal de Raimundo, bom de boca, bom de rola, não foi isso que
você disse?... Se tem coisa pior do que isso, só praga de mãe! E mãe escrota.
Sacana. Olhe, seu doutor, pouco antes de eu morrer, daí uns 10 minutinhos,
confesso que corri atrás de emprego, procurei, procurei... nada. Só promes-
sa, vem amanhã, vem depois, que puta merda. Quem vive de promessa é
santo de igreja. Tenho mais é que subir. Nessa eu danço.
(E dançou numa batucada de samba, depois tombou, caiu ao chão, num íntimo turpor de amar-
gura e dor).

PEDRO
Meleca de vida. Oh, morte muito sábia, muito justa! Um cara sem desti-
no, sem futuro, um resto mortal. Um canalha. Um covardão. Ratos, formi-
gas e baratas roerão meus ossos. Ninguém chorará por mim. Talvez Mirica
quando escrever o meu epitáfio “Aqui jaz nessa quimera/ Alguém que foi
tudo na vida/ E que agora já era!”. Mas acabo indo. Sem dor nem coro de
gemidos. Apenas este frio, muito frio nas entranhas.

(Tentou ajoelhar-se em vão. Queria levantar o corpo. Então passou a deambular um pouco no
chão buscando forças).

PEDRO
Meu Deus. Minhas pernas estão fracas. Estou me acabando de vez. Oh, Se-
nhor meu Deus! Quem sou eu para ir contra teus desígnios? O Senhor é
que manda no pedaço, quero dizer, neste planetinha de bosta! Perdão. Des-
culpe. Eu não queria falar isso, acredite. Mas acontece que a gente fica até
sem paciência pra morrer quando a gente saca que o Senhor, como o único
criador do Mundo, foi também apunhalado pelas costas por essa raça hu-
mana. Transformaram esse mundo num grande circo onde fui um grande
otário, um palhaço nesse picadeiro, o de menos graça que já vi! Já vou, já tô
indo... Doutror, cuide da minha carcaça... não deixa a molecada zombarem
de mim... nem permita que os urubus fiquem rasgando minhas entranhas
e disputando no pisão... Fui! (Após isso, ouvem-se uma ambulância).

(Aqui sobe uma música de meditação ou reflexão sobre o assunto. Enquanto a luz cai no cenário).

FIM DO ESPETÁCULO
BAR DO
PARQUE
- 270 -

Bar do Parque
1997

PERSONAGENS
Vários

CENÁRIO
Bar do Parque e adjacências da Praça da República.

TEXTO
Uma crônica sobre a cidade de Belém, capital do Pará, conhecida mundialmente
como a “cidade das mangueiras” do “açaí” e do “tacacá” e do “bar do parque” que
serve de fundo de cena para contar um pouco da sua história ora recontada por
pessoas e artistas que nasceram no início do século, nasceram, viveram e testemu-
nharam o que já fomos, o que somos e o que podemos ser.
Bar do parque, também é a homenagem deste velho poeta e dramaturgo, que in-
clui num roteiro sobre a minha, a nossa e a sua declaração de amor por Belém du-
rante 365 dias do ano. Uma cidade envolvida de encantos, encontros, desencon-
tros, paixões, amores, histórias e nomes, como Eneida de Moraes, Fafá de Belém,
Leila Pinheiro, Nazaré Pereira, Lindanor Celina, que deixaram a cidade para ganhar
o mundo da fama, reconhecidas por sua especialidade no Brasil e exterior. Belém
esperançosa, caprichosa, vaidosa, porque parece que se remoça a cada ano.

CENA 1

(Amanhecida outra noite, surge um pequeno grupo de rapazes alegres e duas mulheres, que se
aproximam do garçom, que por sua vez parece atarefado limpando as cadeiras em torno do bar
que está me movimento de freguesia).
- 271 -

RAPAZ 1
Garçom! Vem cá... vem cá, gente boa. Serve uma dose pra nós. Uísque...

GARÇOM
Nacional, evidente? ...

RAPAZ 1
(Com deboche). Adivinhão! Olha bem pra nossa cara. A gente tem cara de ban-
cário pra fazer derrama de uísque, tem Zé Mané?

GARÇOM
Desculpe, senhor. Não quis ofender ninguém.

BICHA 1
Olha a carinha dele margarida – que – perdeu a vida, a gente!

BICHA 2
Tadinho. Olha os olhinhos de bandido que ele tem, não é uma gracinha?

BICHA 3
Vai amoreco, vai ver o uísque. Faz teu serviço. Traz a garrafa que essa tur-
ma aqui não é de brincadeira.

GARÇOM
(Retirando-se). Sim, senhor, é pra já.

BICHA 3
Escuta aqui bofe, não chame a mim e nenhuma das minha amigas aqui, de
“senhor”, isso nos ofende profundamente. Eu sou uma lady, e foda-se o
resto, viu queridinho.

GARÇOM
E tira gosto? Que tipo preferem?

RAPAZ 2
Rapaz, serve qualquer um! Desde que não seja algo estragado.
- 272 -

BICHA 1
Eu preferiria que fosse o “seu” (Palpando-lhe as entranhas), mas parece tão mur-
cho, tão passado, tão démodé... que prefiro qualquer coisa, mesmo.

GARÇOM
Olhem o respeito comigo! E as duas distintas aí? ... que preferem?

MULHER 1
Eu? Tá falando comigo?

RAPAZ 2
Fala, né Zezé. Diz alguma coisa que é pro cara se mandar daqui, senão, o
cara não vai fazer o que pedimos.

MULHER 1
Nada de importante a declarar, a não ser o meu amor por ela (Abraça-se a ou-
tra mulher e a beija na boca). E demais, cara. A gente se curte numa boa, sem ca-
retice, sem preconceito dessa raça. Né não, Rosa?

MULHER 2
(Encabulada). Mais ou menos. Agente só veio se ver. E ver o Flor também.

BICHA 1
(Fazendo frescura). A mim? Ai, que boazinha ela é! Que gracinha da mamãe! E,
desde já, fico cheia de saudades de você (Tocam gentilezas). Tu és mesmo mui-
to bacana. Bacanérrima.

MULHER 2
Também te acho o máximo. Faz bacanagens com a gente, quando a gente
precisa ficar a sois.

GARÇOM
Com licença... vou, vou buscar o uísque, o tira gosto. (Vai e volta).

RAPAZ 1
O que ouve?

GARÇOM
Não tem uísque. Nem nacional.
- 273 -

RAPAZ 2
Nem cerveja?

BICHA 1
Uma caninha pura. Uma caipirosca. Cai legal.

RAPAZ 1
Toma. Leva a porra da grana. Enche a porra dessa mesa com bebidas. Vai!
Diz lá pro porra do teu patrão que eu tenho dinheiro o bastante pra bancar
qualquer derrama no caralho desse bar, ora porra. Já mandei qual é a dele.
E a tua cara, qual é?

GARÇOM
Eu sou novato aqui. Preciso desse emprego.

MULHER 2
Pois então. Traz cerveja pra gente. E birita pra essas danadinhas.

BICHA 2
Vai, cara. Safa a nossa, que a gente safa a tua gorjeta.

GARÇOM
Tá legal. Cerveja mesmo? Pinga não temos. Acabou.

TODOS
(Quase ao mesmo tempo). Traz cerveja...

GARÇOM
Quantas?

BICHA 3
Todas, benzinho. Adoro cerveja.

CENA 2

(O garçom conversa com o patrão e este libera o movimento de venda de bebida no bar. Neste
instante, alguém surge travestido a la Rodolfo Valentino. Há um certo glamour na sua postu-
ra. Homenagem ao “Patelo” figura elegante e refinada que frequentou o bar do bar do parque
tempos idos).
- 274 -

GRETA GARBO
Ei garçom... traz um uisquezinho pra tua Greta Garbo.

GARÇOM
A dose de sempre?

GRETA GARBO
Hoje não, hoje tenho motivo para comemorar o meu sucesso como profis-
sional e como pessoa de fino trato.

GARÇOM
Vocês aqui mandam e a gente obedece. Como preferir.

GRETA GARBO
Gostou do meu visual? (Mostrando-se para ele).

GARÇOM
Tá legal. Tô achando bonito.

GRETA GARBO
Querido... hoje estou esperando alguém para comemorar a minha vitória
profissional como criador de grifes belíssimas. Também quero bancar cer-
vejas para todo mundo.

GARÇOM
Pra todo mundo?

GRETA GARBO
Acho que falei claro. Hoje eu pago tudo. Meu querido, chama toda essa ra-
ça e avisa pra beber de graça que a Greta lá do bairro do Jurunas vai pagar
tudo. Anda, vai! Chama essa bicharada toda da praça para encher a cara...
por mim e por minha conta, vai, chama!

GARÇOM
(Saindo pra “avisar”). Com licença.
- 275 -

GRETA GARBO
E mais, meu amor, diga a estes homossexuais despeitados, que Greta aqui
vai dançar um tango para eles e elas em praça pública: aqui no terrasse do
Bar do Parque.

GARÇOM
Ulalá. Vai ser joia. Vai atrair freguês (Sai).

CENA 3

(Sequenciando a cena, o Garçom saiu abrindo cervejas e servindo a todo mundo, inclusive tur-
minhas indesejáveis para ele).

GARÇOM
Pessoal, hoje vocês vão poupar a grana de vocês.

BICHA 1
Cruzes, como assim?

GARÇOM
Vão beber sem pagar. Alguém vai bancar tudo pra todo mundo.

RAPAZ 1
O quê? Quem é o otário?

RAPAZ 2
Quem é esse santo milagreiro “papudinho”? ...

GARÇOM
É uma santa. A Greta Garbo.

BICHA 2
Ah, logo vi. Tinha que ser a madre Tereza de Calcutá.

BICHA 3
A bicha adora aparecer. Faz qualquer coisa pra mostrar seu glamour. Nis-
so ela arrasa.
- 276 -

(Nesse instante, alguém atravessa a praça e vai se sentar no Bar do Parque, atraindo a atenção
da turma).

BICHA 1
Quem é o bofe na outra mesa? Olhem discretamente. Reparem: tá espian-
do pra cá. Parece atraente.

MULHER 1
Mas não é pro teu bico, não. Aquele ali já tem dono: o Tavico aqui.

RAPAZ 2
O quê? O carinha lá, também é? ...

MULHER 2
É seu prato predileto.

BICHA 1
Mona mesmo, Tavico?

RAPAZ 1
Bichona. É gente fina. Caixa alta.

MULHER 1
Doutora em engenharia. Arquiteta. De carrão e tudo. É faca de dois gumes.
Trepa com mulher, tem quatro filhos, mas gosta de soltar a rodinha. O Ta-
vico aí fez uma bacanagem com ele.

BICHA 2
E ele? Te pagou direitinho?

RAPAZ 1
Claro né, xará.

BICHA 3
E foi legal?

BICHA 1
“Isso” aí levantou pro veado? (Referindo-se ao sexo dele). Tais fodido.
- 277 -

RAPAZ 1
Fudido por quê? Não tenho preconceito, cara. Quando tô afim de grana,
baixo o pau no rabo desses caras. Querem saber de uma coisa? Ainda vou
ser dono do maior motel de Belém?

MULHER 2
Não é má ideia. É o que tá dando hoje em dia. Muita grana, chove lá den-
tro, né benzinho.

BICHA 3
E quando precisar duma recepcionista ou arrumadeira de motel, é só con-
tratar os serviços desta negrinha aqui. Também sei de etiquetas e pregá-las
nas roupas de cama. Magina amorrr. A própria Gilda Medeiros iria des-
maiar ou morrer de inveja quando visse sua amiga ex- miss da Tocha Olím-
pica, metida nesse paraíso, com certeza, a Gilda dramática como ela é, aca-
baria caindo escada abaixo, assim... (Os outros riram da imitação grotesca). Sabiam
não? Mas a Gilda Medeiros só foi Miss Pará naquela época por causa de
sua costureira, que na marra boicotou o seu vestido de organza francesa...
cor de abóbora... lindérrimo.

(A cena é interrompida pela voz do locutor anunciando o show de Greta Garbo no quiosque. A
luz cai no cenário e tudo se transforma em espetáculo).

LOCUTOR
Atenção, atenção pessoal. Um pouco de silêncio, por favor. Temos hoje
uma grande atração em homenagem aos 381 anos de fundação de Belém.
Hoje, esta cidade de chuvas e mangueiras tem um pouco da sua história re-
contada por pessoas e artistas que nasceram no início do século, nasceram,
viveram e testemunharam o que já fomos, o que somos e o que podería-
mos ser. Belém tem histórias e nomes, como Fafá, Nazaré Pereira, Leila Pi-
nheiro, Lúcio Mauro e tantos outros, que deixaram a cidade, para ganhar o
mundo da música e das artes cênicas. Bom, deixamos de trololó e vamos ao
que nos interessa... pra vocês... no palco... o glamour de Greta Garbo em...
TANGOLOMANGO. (Ocorre um número de dança etc.).

CENA 4

(Após o show, o poeta – aqui representando Rui Barata –, vem estar no Bar do Parque acom-
panhado de uma prostituta que, por sua vez, vasculha seus bolsos).
- 278 -

POETA
(De pilequinho). Tá procurando o que? Dinheiro?

PROSTITUTA
Marmota. Por que tu foste beber, cara?

POETA
(Recitando uma poesia). Ouve só este menestrel... Na mesa do Bar do Parque
deixei meu jeito de andar nas ruas nas vésperas de morrer... e nunca morro
quando me abandono no óleo do cais... onde me assassino na praça na vés-
pera da inauguração da placa de bronze.

PROSTITUTA
Porra, cara. Poesia não enche barriga. Logo mais tu esqueces quem te ama,
pois, o pessoal da seresta chega e tu esquece a garota, as mágoas.

POETA
Esqueço não. Comigo é diferente.

PROSTITUTA
Diferente por quê?

POETA
Diferente, por quê? Porque sim, porque sou poeta, porque eu adoro ela...

PROSTITUTA
Já vi que tu não é macho pra encarar essa situação assim de frente.

POETA
Vai pros quintos. Piva escrota.

PROSTITUTA
Não tive sorte hoje. Logo com um poeta! Tenho que batalhar, cara, senão
amanhã não tomo café.

POETA
(Retirando moedas do bolso). Aqui têm uns trocados... acho que dá pra comprar
pão e café...
- 279 -

PROSTITUTA
Tás fazendo gozação da minha cara, é poetinha de meia tigela? Porra tenho
um azar danado. Égua é meu. Sempre ouvi dizer que todo poeta é bicha.

POETA
Vai te fuder, piva escrota. Cabaço estragado. Eu sou o que sou. E tu, és o
que és, não vais mudar nunca.

PROSTITUTA
Reage, cara. Não fica fantasiando muito a vida.

POETA
Cai fora. Te manda. Cai fora, porra, vai chupar rola por aí... me deixa sozi-
nho, quero ficar sozinho, eu e meu poema... Canção de Amor Maior.

PROSTITUTA
(Saindo de cena). Aí vem tua turminha afrescalhada, a turminha da seresta.

POETA
(Batendo palmas ao vê-los). Ulalá. Bravos. Bravíssimos.

SERESTEIROS
(Intercalados). Ei Ruizinho, faz um verso aí pra gente colocar música... canta teu
pranto poético... já tá de pileque Ruizinho? Quem vai te levar para casa? ...

POETA
O luar. Vou nas asas do luar. E vou chegar mais rápido que vocês todos.
Afina... vamos lá, afina a viola da boemia. (Recita). Foi quando o meu poema
ficou inacabado naquela mesa de bar... e o amor, que durou tão pouco, na
paixão alucinada dos ateus, agora se desgasta... por esse amor maior que
passa e por esses sonhos que forma meus.

(Ao término da seresta, o poeta e os outros amigos seus atravessam a praça passando entre a
turminha da Bailique e os travestis da praça).

JOVEM 1
(Chegando de algum lugar). E aí rapaziada? A pescaria tá boa?
- 280 -

BICHA 4
A “pegação” tu queres dizer... tá tudo em cima, tá na mão.

JOVEM 1
Ainda bem, bicha. Hoje tô afim dum otário. Um gringo.

BICHA 5
Passa o pano, meu bem. Vá à luta. A praça é nossa.

POETA
(Ao passar). Isto aqui já foi bom. Agora tá sendo frequentado pelo lixo huma-
no. É lamentável. Até que eu gosto delas, mas elas são tão vazias, cabeça oca.

JOVEM 2
Quem é esse cara? Qual é a do coroa?

BICHA 6
Tu és novata aqui, ainda não o conheces. Mas é um poeta, um cara legal
com a gente. De vez em quando, quando a barriga reclama, ele paga um
lanche pra gente.

JOVEM 2
Não fui com os cornos dele. Parece um dedo-duro.

JOVEM 3
Mas não é. É o jeito do cara. Deixa pra lá. Esquece. Vamos ao que me inte-
ressa. Escuta Márcia, dá pra descola uns dólares?

BICHA 6
Quanto?

JOVEM 3
500 dólares.

BICHA 6
Uau. Mas isso não é um empréstimo, é uma facada na bunda, meu bem.
Nem minha bundinha é de ouro para poder cobrar uma grana preta dos
gringos.
- 281 -

JOVEM 3
100 reais? Faz isso pelo seu gatinho, diz que faz.

BICHA 6
Toma (Entrega-lhe o dinheiro). Depois eu quero retorno, a minha recompensa,
viu seu danado (Ao vê-lo indo embora, sem se despedir). Tá vendo como ele é? Só
quer extorquir meu mísero dinheirinho.

JOVEM 1
Bom, a conversa tá boa, mas vamos à caça. A praça tá cheia de gringo otá-
rio, laranja. Olha lá, um deles, corre atrás Margot. Passa o sarrafo no cara.
Leva ele para trás do quiosque ou do chafariz, vai bicha... (A outra obedece) ...
e as Messalinas e as Lucrécias estão aqui “prontinhas” para darem o bote.

BICHA 4
Olhem outro lá, bem ali, por detrás das mangueiras. Agora, é a minha vez.
Vou fazer com ele aquilo que combinamos.

BICHA 6
Não te esquece, Mary Morrô. Tu leva o cara praquela moita acolá... finge
que tu vais arrear a calcinha, depois tu pega no pau dele e fica massageando
até o cara gozar na tua mão, aí a gente entra em cena como se diz, entra em
ação: dá uma cacetada nele só pra desmaiar o cara e afana toda a grana dele.

BICHA 4
Por Deus, gente, não vão sangrar o cara. Tenho HORROR a pancadaria, a
violência, meu amorrr. Chega de encrenca com a polícia.

JOVEM 2
Vai logo. O otário tá te chamando. Tiveste sorte hein Mary! ...
(No meio da cena, entram dois pivetes desconfiados e falando para todos eles ouvirem, numa
xinga conhecida).

PIVETE 1
Tu sacou ó Rafa, que a muamba tá escondida na noite?

PIVETE 2
Saquei. Tá na raiz da mangueira.
- 282 -

PIVETE 1
Então vai lá e descola ela pra mim. Não deixa o samango te ver.

PIVETE 2
Por que tu não vai, cara?

PIVETE 1
Tu não visse? O veado do samango tá de mutuca em mim, manja só. Não
vou poder sair daqui agora. Fico aqui perto das meninas pro cara não des-
confiar. Vai lá e apanha o embrulho.

PIVETE 2
Tá safo. Vou lá. Mas não arreda o pé daqui.

PIVETE 1
(Dirigindo-se aos travestis). Oi, meninas. Vamos dar uma fornicadinha. Quem topa?

BICHA 6
Eu – zinha. Adoro fazer a linha maternal. Adoro chupetinha. Vem cá, meu
neném. Mamãe tá aqui... prontinha pra dar de comer...

PIVETE 1
Valeu tudo. Serviço completo.

BICHA 6
Quanto paga?

PIVETE 1
50 paus. Topa?

BICHA 6
Topo. Vamo nessa.

PIVETE 1
Peraí, calma. Tô aguardando um lance aí com o baitola do Rafa. Porra. O
cara tá demorando, égua meu.

BICHA 6
Outra mona?
- 283 -

PIVETE 1
O Rafa? É sarro meu. Mas ele não curte essa onda. A gente é como irmão,
ali, unha e carne, olho por olho, dente por dente. Qualquer coisa meto bala
na boca, aonde der. Né bandalheira.

(Simultaneamente, do outro lado da praça, ocorre uma tragédia com o garoto Rafa ora assassi-
nado pelo policial à queima roupa, com arma silenciosa).

PIVETE 2
Esse nego Tiago é flórida. Onde achar a porcaria da muamba? Droga aqui
não tá. Nem aqui. Como é que eu vou achar a porra desse “bagulho”... nes-
se escuro...

POLICIAL
(Surpreendendo-o). Que faz aí agachado, pivete? Nessa atitude suspeita!

PIVETE 2
Eu? Eu nada. Tô achando um jeito de cagar... aqui. Só isso (E despiu-se para
“fingir” que estaria defecando). Seu guarda, me faça um favorzinho, me dê aque-
le pedaço de papel pra limpar o...

POLICIAL
(Chutando o papel para longe). Vou dar nada porra nenhuma. E tu pivete vai fa-
zer cocô agora no céu das formigas, seu maconheirozinho safado (E dispara
no peito dele). Cão danado. Morre ó infeliz. Menos um pra sujar essa cidade.

(Ao assistir de longe a cena, Alabar, que toma conta da praça e vigia sua tropa de travestis no
comércio do sexo e das drogas, aproxima-se sorrateiramente para ameaçar o policial).

ALABAR
De longe eu vi tudo. Por que fez isso com o garoto, seu canalha? Eu vou
denunciá-lo pro teu chefe.

POLICIAL
Cala esse teu bico. Senão, vai sobrar pra ti e pra tuas amiguinhas.
- 284 -

ALABAR
Veremos. Nós somos a maioria contra vocês. Mas na hora do pega pra capar,
somos nós que vocês procuram para descarregar seu cafajeste (Reparando no
cadáver). Pobrezinho do garoto, só queria aliviar a dor de barriga, seu nojento.

POLICIAL
O que tá feito, não tá por fazer. Acho que aliviei o carma dele (E some entre as
mangueiras).

ALABAR
Miserável. Bandido. Onde estará o amiguinho dele? Acho que vou telefo-
nar pro IML ou camburão da prefeitura para retirar o pobrezinho daqui.
Corte na cena, foco noutra.

CENA 5

(Mostra uma seresta no bar. Há um clima de festa e algazarra. Uma prostituta que conversa com
um gringo e um pivete em busca do paradeiro do outro. Ninguém viu, ninguém soube nada dele).

PIVA
Violência tem sim, mas eu não tenho medo não. Tenho medo é de amanhecer
na calçada sem nenhum tostão furado no bolso, sem grana pra pagar o colé-
gio de minhas duas crianças, Fábio e Flávia; ele tem dois anos, ela tem dez.

GRINGO
Eles morrar com quem?

PIVA
Com a avó. No subúrbio de Belém. Quero ver eles estudando. Já basta a
burrice da mãe. Quando eu morrer, se souberem de mim, vão se orgulhar
da mãe que tiveram. Sou honesta. Não tenho encrenca na polícia.

GRINGO
Oh, esquecer esse assunto. Chuparrr pau. Terrr medo desse vara aqui? (Exi-
biu o tamanho do pênis).

PIVA
Gringo safadinho. Tá vendo essa língua? (Exibe a língua). Não tem calo, não.
Sou puta sim, mas me dou valor. Sou boa de tudo, meu amoreco, faço um
- 285 -

serviço completo, mas não chupo, a não ser picolé. Nem roubo ninguém,
como as outras por aí.

GRINGO
Ooooh. Tá mais certa você, ok? Vou pagarrr michê alto. Parecer moça boa-
zinha você. Eu gostar de amiguinha. Mas amiguinha vai gemer em cima
desse pau, ok?

PIVA
Duvido. Quero é ver. (Rindo). Essa tabaca...

GRINGO
(Sem entender a palavra). Ésse tabaco?

PIVA
Não. Essa tabaca... essa xereca... essa buceta aqui, é mais funda que o poço
artesiano lá de casa.

GRINGO
Ooooh. (Rindo). Amiguinha é muito fundura... vai éste afogar pombinha minha.

PIVETE 1
Vocês viram o Rafa? (Não obtém resposta. E vai consultar outros fregueses). O Rafa
passou por aqui? ... Ele é um pivete encardido, cheio de brotoeja na cara...
mordida de carapanã.

MULHER 3
Cai fora, pivete. Vai pra casa. Vai dormir

PIVETE 1
Eu só queria saber do meu amigo Rafa. A gente tá com um lance aí, mas, ele
até agora não pintou no pedaço.

MULHER 3
Vai ver que desistiu e foi embora pra casa.

PIVETE 1
Esse baitola... esse fresco... vou atrás dele e vou encher a cara dele de soco
(Some no cenário).
- 286 -

(Tempo. Música. De repente arma-se uma briga, uma confusão entre homens, mulheres e travestis
da praça, tiros e cadeiras. Noutro plano, um gigolô querendo sexo de graça com uma prostituta).

MULHER 4
(Prostituta). Trepar de graça? Não trepo não. Nem pensar.

GIGOLÔ
Fala baixo, fala baixo comigo. Senão, te taco a mão na cara.

MULHER 4
Bate vai. Bate na minha cara. Mas contigo não trepo.

GIGOLÔ
Vem cá, piva escrota...

MULHER 4
Larga meu braço, cara. Larga, seu porra. Tá me machucando.

GIGOLÔ
Não largo enquanto tu não ceder. Quero fazer uma bacanagem e tu fica bo-
tando banca comigo, safada.

MULHER 4
Cara, vai te embora. Me deixa em paz. Pensa que é moleza estar aqui na
calçada, enfrentando o frio da madrugada? Pensa que tô aqui por que gos-
to? Tô não, cara, tô não. Eu tenho a minha mãe, que está velhinha e doente
e mais quatro filhos...

GIGOLÔ
(Interrompe). Chega. Não estou a fim de ouvir tua história melodramática. É
tudo igual. Tô mais a fim de comer esse teu rabão e tu fica aí me enrolando.
Tu não vai querer me deixar com o pau na mão, vai? (Pausa. Enquanto ela pensa
numa resposta qualquer). Olha, tu leva o relógio, é folheado a ouro, tá na garantia.

MULHER 4
Firmeza. Depois eu te devolvo o relógio, quando tu me pagar.

GIGOLÔ
Correto. Gigolô, como eu, não tem igual. Bom papo, boa pinta.
- 287 -

MULHER 4
Anda, vem pra cá... (Conduzindo-o para um canto escuro). Aqui no cantinho escuro
da mangueira é o melhor lugar. Arreia a calça. Bota essa rola pra fora.

GIGOLÔ
Aqui? Em plena praça? Tás doida.

MULHER 4
Ora porra. Tu querias o que? Um quarto, uma suíte presidencial, com sabo-
nete, toalhas de veludo e tudo?

GIGOLÔ
Mas aqui?? Com o povo passando pela praça? ...

MULHER 4
Ninguém vai perceber. Eu já tô acostumada.

GIGOLÔ
(Encabulado). Porra. Mas assimmm.

MULHER 4
Cara, esse teu relógio não paga nem a minha taxa praquelas da Mãe Santa
e da Alabar. Se vou dar quase de graça, seu gigolô fracassado, tem que ser
no mato, no coreto da praça, atrás da moita de capim, na escadaria do Tea-
tro da Paz, enfim, aonde der e vier.

GIGOLÔ
Como cachorro no cio? Deixa de papo furado sua fresca... tu vais querer
desfeitear da minha cara, sua puta relé?

MULHER 4
Vou. Vou sim. Toma de volta essa porcaria de relógio. E vai trepar com a
tua mãe! Aquela “santinha do pau oco”.
(A prostituta vai saindo para um lado da praça, quando de repente. É agarrada pelos braços e
esbofeteada pelo gigolô. A mulher grita e pede socorro aos seus amigos).

GIGOLÔ
Sua piva escrota. Vou te fazer engolir isso. Pilantrona.
- 288 -

MULHER 4
Me larga! Me larga, porra! Eu vou chamar as outras.

GIGOLÔ
Chama. Vai, chama. Sua vagabunda. Vou acabar com tua raça!!

MULHER 4
(Aos gritos). Aiiii meu braço. Socorroooooo. Lola, Alabar, Macapazão. Socor-
rooo, Gabi, Guabira (os outros correm pra acudir, livrando-a do massacre).

GIGOLÔ
Piva nojenta, safada.

ALABAR
Larga ela, cara. A gente vai acabar contigo.

LOLA
Solta, que é melhor pra ti, cara.

MULHER 4
Lola, tu que luta karatê, derruba esse gigolô pobretão. Dá uma rabiola nele.
Esse cara queria me roubar. Esse filho duma puta. Veado. Chupão. Pomba
molhe.

(O gigolô tenta livrar-se das ameaças de lâminas e canivetes correndo em ziguezague pelo palco
e todo mundo da briga. Ouve-se a sirene da polícia chegando no local).

POVO
(Fechando o cerco). Dá uma facada na bicha, cara, deixa de ser frouxo... cai de
pau nesse cara, Gabi, dá porrada nele... joga essa bicha na vala, no valão da
Doca... soca, isso, soca a cara dessa piva... Alabar, me dá a faca, quero en-
fiar no bucho dele.

ALABAR
(Entregando a faca). Enfia no duro, mesmo. Sangra agora, vai, enquanto ele
perde as forças. Ataca.

LOLA
Faz só uma bucetinha na cara dele. Não precisa matar.
- 289 -

PIVETE 3
(Correndo para avisar). Cuidado, rapaziada. Olha a polícia vem aí. Olhem o cam-
burão chegando. Fujam! Fujam, seus otários (E fugiu também).

(Feito isso, a rapaziada se espalha pela praça e os policiais só conseguem levar preso o gigolô
que está caído no chão e um travesti).

POLICIAL 1
Estejam presos.

POLICIAL 2
Safados. Queremos manter a ordem nesta Praça e vocês ficam bagunçando
com tudo, com a cachola da gente, porra.

POLICIAL 1
Qual é, hein cara? (Deu um soco no estômago do Gigolô e outro na bicha).

TRAVESTI
Ai. Não precisa de violência. Credo. Me larga, seu guarda. Eu só tava apre-
ciando a briga.

GIGOLÔ
Mentira desse cara. Esse cretino mais os outros tavão querendo me assassinar.

TRAVESTI
Magina. Nem gilete nós usamos, seu guarda, como é que a gente ia matar
um pilantra desses, que precisava de facão e não de canivete. Ele tava que-
rendo roubar a piva, aí a piva, tá sacando, meteu o cacete nele.

POLICIAL 1
Vão dormir no xilindró. Subam no camburão.

POLICIAL 2
Vamos, vamos. Vão os dois pra delegacia.

TRAVESTI
Calma, bofe. Eu vou. Não carece empurrar. (Ajeitando-se toda e mirando-se no
espelhinho). Deixe-me ir ao menos do meu estilo, jeitosinha. Magina. Como
- 290 -

vou encarar o delegado, como vou chegar numa delegacia desse jeito, meu
amorr? Ah, não. Quero manter a pose.

POLICIAL 2
Larga de frescura. (Deu um empurrão nele que desabou para frente, quase tropeçando).

TRAVESTI
Eparrê. Filha de Iansã não cai, escorrega, mas não tomba, e minha Pomba
Gira é muito amorrr. Não há de ser nada, meu amorrr. (Somem no camburão).

CENA 6

(Tempo. Madrugada. Música. Um maluco da praça que toca realejo passeia entre os transeun-
tes. Uma atriz ou ator travestido de “Fafá de Belém” num encontro impossível com a famosa
“Arara” professora aposentada).

POETA
(Recita o que escreveu). Na mesa do bar da noite como quem apareceu na hora
marcada da inauguração da placa de bronze. Naquela mesa, naquela noite,
daquele dia... a minha mágoa só afoguei no fundo do copo depois que ateei
fogo no poema inacabado (Os amigos o aplaudiram e lhe abraçaram emocionados).

RAPAZ
Porra, cara. Tu és demais.

MOÇA
Poema lindo. Fiquei emocionada.

POETA
De onde estão vindo?

RAPAZ
Duma festa. Perdemos o ônibus.

MOÇA
A gente te viu aqui sozinho e viemos te fazer companhia.

RAPAZ
Até amanhecer. Podemos?
- 291 -

POETA
(Balança negativamente a cabeça).

MOÇA
Não se importa mesmo? De verdade? Oh, que ótimo, que felicidade de estar
ao lado de um poeta como você (Nesse instante, entra a Fafá e sua turma de seresteiros).

POETA
Olhem quem vem lá... a Fafá e sua turma! (Convida-os). Ei Fafá, traz teu pes-
soal pra nossa mesa. Será uma honra para nós.

FAFÁ
Menino! É mesmo? Isso é uma maravilha!

POETA
Te apresento os filhos da minha secretária (Piscou para ambos desfazendo a postura
de namorados). Otávio e Lena.

MOÇA
Muito prazer. Sou sua fã.

FAFÁ
É mesmo? Eu nem sabia! (Cai na gargalhada característica).

RAPAZ
Muito prazer. Pouco ouço teus disquinhos na rádio, mas tens um repertó-
rio legal.

MOÇA
É que ele só gosta de fank.

FAFÁ
É mesmo? (Rir). Tem um puc- puc- puc infernal! Que dá no saco.

MOÇA
Também acho. Mas estás ótima de aparência.

FAFÁ
Acha mesmo?
- 292 -

MOÇA
Tá com menos peito, menos barriga, só a perna que continua fina e a boca
larga, imensa.

FAFÁ
É mesmo queridinha? (Rir). Não quer ver meu útero também? Olha que eu
mosto hein!

POETA
Que será de nós, sem a tua voz Fafá? (Beijando-lhe as mãos).

FAFÁ
Menino! Sempre poetando, né Ruizinho? Também nessa praça tem tudo e
de tudo um pouco: pederasta, travesti, poetas e loucos, puta, políticos, de-
vassos, artistas, atores, funcionários, gente pública.

POETA
(Apontando com a boca). Por falar em gente pública, aí vem um a delas...

FAFÁ
Ah! Essa é folclórica, que nem a Maria Igarapé! (Alusão). Sabiam que ela foi
minha professora escolástica? (Citar nome do colégio).

ARARA
(Aproxima-se). Madrugada bonita, meu poeta. Não repare não, que eu estou
meio de pilequinho. Pode me dizer onde fica o banheiro?...

FAFÁ
(Antecede, fazendo gozação). No rumo da venta... bem na direção do seu narigão.
Arara, arara.

ARARA
(Indignada). Arara é o xiri da mãe que não trepa mais. (Ao poeta na mesa). Mas
quem é essa peituda que me apelidou?

POETA
Não tá conhecendo a bela voz, a gostosa risada, que só ela possui?
- 293 -

ARARA
Confesso, meu menestrel, que não sei de quem se trata.

POETA
É a Fafá de Belém.

ARARA
Ah, é a Fafá! A minha ex-aluna! (Reparando nela). O que você tem de peito so-
brando, com certeza, está faltando na xereca.

FAFÁ
(Rir). Ela não mudou nada.

ARARA
Mas menina, nos dá uma colher de chá. Canta alguma coisa pra nós.

FAFÁ
Quem canta os males espanta e a perna levanta, não é verdade? ... (Rindo.
Abraçada a ela). Minha doce Arara, o que seria desta Belém sem a tua graça
sacânica?

ARARA
Mas eu sempre fiz parte da história desta cidade desde os primórdios tem-
pos do governador Magalhães Barata, Zacarias Assunção e tantos outros
políticos que só faltaram lamber meus pés porque eu sabia do podre deles.
Eles dependiam da minha eficácia como professora, para angariar votos,
para eles, em época de eleição.

FAFÁ
Então, minha doce Arara, afoga as mágoas que a noite é uma criança já di-
zia o poeta Vinícius de Moraes, depois toma banho de cheiro-cheiroso pra
matar esse catingoso (Bate de leve na vagina). Gente... vou cantar primeira gra-
vação que estourou no Brasil. (Ela ia cantar, quando).

ARARA
Não. Agora não, fala. Deixa eu ir primeiro ao banheiro (Vai e volta aborrecida).

FAFÁ
Arara! Que foi?
- 294 -

ARARA
Porra. Tem um bando de veado lá dentro fazendo “pregação”, cheirando
mijo, fazendo “sabão”. Nem deixam a gente mijar.

RAPAZ
Bateu em porta errada, minha tia.

ARARA
Um bando de frescos, podendo trabalhar, pegar pesado. Ficam se lamben-
do e se lambuzando. Vôte. (Grito). Quero mijar. Quero mijar.

FAFÁ
Mija aí, mulher. Deixa de chiliques. Uma como eu já tinha tirado água do
joelho. Não se lembram quando mijei no salão da Assembleia?

ARARA
É mesmo! (E se agacha atrás da mesa). Agora, canta.

(Na medida que a cena da cantoria vai desaparecendo, noutra área de ação, vai surgindo outra
situação na cabine policial da praça).

POLICIAL 1
Libera essa safada. Deixa essa filha da puta ir embora para vida dela.

POLICIAL 2
(Tirando-lhe as algemas). Vamos ficar de olho em ti. Qualquer atrito, a gente te
prende.

SAPATÃO
Tá legal. Tu és gente fina, cara.

POLICIAL 1
Mas antes, tu vais lamber meu colhão e chupar minha rola.

SAPATÃO
Essa eu pago pra ver. Me solta! Me deixa!

POLICIAL 2
Vou fazer gostar de homem. Anda, chupa. Chupa, porra.
- 295 -

POLICIAL 1
(Livrando-se deles e ameaçando com um canivete). Agora, mete a cara. Experimenta!
Vem, anda. Pula em cima, seus porra!

POLICIAL 2
Rapaz, vai te embora. Ninguém vai fazer nada contigo.

POLICIAL 1
Só queria te dar um susto.

SAPATÃO
Cafajeste. Ó, um aviso: da próxima vez, que vocês tirarem sarro da minha
cara, me mantendo presa aqui nessa cabine por causa de maconha, eu juro,
por tudo que é sagrado, vou arrancar teus olhos teus olhos com esse cani-
vete. Aí, tu nunca mais vais sacaniar comigo, nem com as minhas colegas,
seus nojentos. (Sai de cena).

POLICIAL 2
Sapatão desgraçado. (O outro ri). Tu ainda rir? Essa filha duma puta pensa
que é dona da zona do meretrício. Ela vai se fuder na minha mão, tu vai
ver só.

POLICIAL 1
Toma cuidado. Todo cuidado é pouco com essa gente. Senão, ela te estripa.
Tu não visse como ela reagiu rapidinho?

POLICIAL 2
É, ela é perigosa. Mas olha aqui pra ela: saque, trape, sape! (Simula tapinhas na
cara do outro).

POLICIAL 1
Ih, rapaz. Você também?

POLICIAL 2
(Falando grosso). Eh, porra. Eu sou é homem. Sou macho.
- 296 -

CENA 7

(Sequenciando a cena, noutro lado, o poeta sentado sozinho na mesa escrevendo seu derradei-
ro poema).

POETA
Sou o vindimador de minhas próprias vinhas amargas... o que fizeram com
os meus olhos não importa... minha canção tem sabor de liberdade e acor-
da girassóis que dormitam entre as mangueiras da avenida... pois nesse
maldito Bar deixei meu poema inacabado num fogaréu.

MARIA IGARAPÉ
(Ia passando em direção ao Bar do Parque quando).

POETA
Psiu. Vem cá ó Maria de Igarapé! Senta aqui. Me faz companhia. Vamos pa-
pear um pouco.

MARIA IGARAPÉ
Então me paga um lanche. Tô com a barriga na miséria. Os caras não que-
rem nada comigo.

POETA
(Chamando). Garçom! Faz favor, serve um lanche gordo pra ela.

GARÇOM
Sim, senhor. Aqui o senhor manda e não pede (Retira-se e volta depois com o lanche).

MARIA IGARAPÉ
Esses caras só querem sacaniar comigo, é por isso, que encho a cara de ca-
chaça e rodo a baiana pra cima deles. O dinheiro que é bom, neca.

POETA
Sempre te vejo assim aborrecida. Parece amargurada. Angustiada.

MARIA IGARAPÉ
Alguma vez o poetinha já foi abandonado no altar da igreja no dia do seu
casamento pela pessoa que mais amava? ... eu já! Não é fácil segurar essa
barra. A gente fica encaralhada, com um nó aqui ó na cabeça.
- 297 -

POETA
E agora?

MARIA IGARAPÉ
Agora fudeu-se tudo. Não tem mais caminho de volta. A vida, meu poeti-
nha, será cada dia mais difícil. Um caralho.

POETA
A moral como é que fica?

MARIA IGARAPÉ
A moral que se exploda! Ainda mais a moral do povo brasileiro com o sur-
gimento da AIDS no país. Essa peste do fim do século parece desestimular
as pessoas para o sexo. Ninguém deseja mais trepar com alguém. Ai, que
HORROR!

POETA
É só usar camisinha. A fé é necessária. O sexo é necessário. O amor é neces-
sário. A luta pela Vida é necessária.

MARIA IGARAPÉ
Em que foi que erramos então? Mudar o mundo é possível?!!! Mudar o que
está ao alcance das mãos? E o que é que está ao alcance das mãos, hein poeti-
nha? (Apalpando-se por inteira até ficar semidespida diante dele). Isto aqui. Esse peito que
ele chupou? Esta tabaca enrabada. Essa bunda de celulite. Isto é normal? É?

POETA
Calma. Ter paciência. Bebe um pouco de refrigerante.

MARIA IGARAPÉ
(Saindo de cena). Quero não. Vou me arreando pro meu reduto: Sacramenta,
onde nasci e fui gente fina. Tchau hein poeta! Obrigada pelo lanche. Te de-
vo uma trepada.

POETA
(Rindo baixinho). Não senhora. Não me deve nada (Amassa um papel e atira fora). Fa-
rei outro poema muito melhor.
- 298 -

(Numa outra extremidade da praça, próximo ao Bar do Parque, uma mãe que negocia prostitui-
ção com suas duas crianças que, por sua vez, disfarçam vendendo bombons por aí).

MÃE
Venham cá, vocês dois.

FILHA
Sim, mamãezinha querida?

FILHO
Diga, mãezinha.

MÃE
Tá na hora de vocês pintarem no apartamento daquele cara. Façam tudo
que ele mandar. Obedeçam. Não sejam malcriados. Certo? Não quero ou-
vir queixas contra vocês, bom! Se possível, lambem seus pés, chupem o
pau dele, quanto mais o rabo dele, mas não apareçam aqui sem grana, tão
ouvindo?

FILHO
Sim, mamãezinha querida! Eu mais a mana fazemos uma suruba com ele,
numa boa, só não podemos é atravessar a maconha dele para o apartamen-
to do amigo dele.

MÃE
Isso! A mamãe não tá podendo trabalhar tão cedo por causa do reumatis-
mo e da asma cardíaca, é por isso que a mamãe precisa vender e corpinho
de vocês pra gente poder sobreviver. (Finge chorar).

FILHA
Não chora não, mamãezinha querida.

FILHO
Pare de chorar, senão a gente chora também.

MÃE
Tá bom, tá bom. Vão se embora. Vão depressa. Não demorem. E não vão pe-
dir nada pro cara. A grana ele já adiantou, agora cumpram a parte de vocês.
- 299 -

FILHA
Tchau, mãe.

MÃE
Não se esqueçam: vou ficar aguardando vocês aqui.

AMBOS
(Saindo e voltando). Mãe... mãe...

MÃE
O que foi agora?

FILHO
O meu pipo. Esqueci do meu pipo na sacola.

FILHA
Vou mijar. Vou tirar água do joelho, como a senhora diz.

MÃE
Arre égua. Que pipo que nada! Que mijar coisa nenhuma! Vou tacar o chi-
nelo em vocês. Vão se emboraaa!!! (Eles saem correndo).

FILHO
Corre mana, corre... a mamãe vai nos bater... corre, sua molenga.
(As duas crianças correram para atravessar a rua entre a romaria de faróis acesos em meio a ne-
blina da madrugada, quando um carro em disparada lhes provocou um acidente fatal aos olhos
da mãe que grita desesperada).

MÃE
Olhem o carro! ... cuidadoooo!!!... (Noutro plano de ação). Eu não me perdoo por
isso. Eu mereço ser incendiada em praça pública. Que Deus me castigue
até a morte. Eu mereço... eu mereço... (Corte em cena).

CENA 8

(Tempo de outubro. Tempo de Círio de Nazaré. Neblina caindo sobre o túnel de mangueiras.
O poeta reaparece no Bar para o último gole para comemorar o baile das “Filhas da Chiquita”:
uma espécie de grito de carnaval no mês de outubro que antecede a quadra nazarena. Onde
todos comparecem em massa para prestigiá-las, inclusive, os artistas).
- 300 -

POETA
Olhem só! As “filhas da chiquita”, todas elas bem bacanas, bem bonitas!
Saltando a franga! É isso aí moçada! Desta vida, não se leva nada, a não ser
porrada.

TODOS
(Fantasiados, brincando, pulando, sambando).
Vamos nessa, minha gente
Hoje Belém é nossa!
O que é barato, é da praça,
Tem folia na praça pra você curtir,
Ontem a vida me levou o sorriso
Quando foi preciso a gente se divertir...
Viva Belém! Belém das mangueiras!
Belém das buraqueiras, do patchuli! (Bis).

(O bloco vai sumindo pela praça até final de madrugada. Próximo ao Bar do Parque, estão os
pederastas que se alcunham de Alabar e Macapá negociando os bofes da praça. Estão em pla-
nos e focos individuais).

ALABAR
Ei bofe, ei você gracinha! Não quer afogar o ganso, numa boa, numa nais-
se? Cobro em reais, garotão. E você coroa bonitão, enxuto e elegantérrimo?
Não tem nenhuma preferência? Alguém que possa lhe deixar extrovertido.
Não fique encabulado. Hoje em dia todo mundo dá. Quem não dá? Nem
que seja uma vizinha só pra experimentar uma diferente. Olha, tenho bo-
fes lindíssimos, limpíssimos. A bicha Macapá é que oferece coisa horrorosa.

MACAPÁ
Os marginais que a bicha Alabar sustenta na casa dela, jamais serão donas
da madrugada, a não ser meus lindinhos. Homens másculos e pimbudos.
Marca boa. Dessas que satisfaz qualquer uma de nós. E, bicha, leva um
pra casa e curte adoidado. Vale a pena. O cara faz tudo numa cama. Ala-
bar morre de inveja desta mona aqui por não conseguir negociar bofes lin-
dos, olhe só, olhem para este... o Silvinho menino lindo gatérrimo, quem
dá mais? Quem dá mais? Outro bofe lindo... o Laércio! Gostaram? Só tran-
sa com camisinha. É o famoso “pica de ouro”.
- 301 -

ALABAR
Veado despeitado. Cafajeste. Acabou me roubando Silvinho. Essa Macapá
me paga! ... pois ela que se cuide porque vou botar pra fuder aqui na praça.
Eu é que tenho os meninos mais lindos desta Belém. E ela? Que bofes ela
tem? Tudo gente da terceira idade, um asilo. (Ri com deboche). Hoje eu acabo
com aquele veado.

(Sequenciando a cena, a bicha Alabar com a bicha Macapá. Procuram entrar em entendimento.
Há anos disputam o espaço físico da praça agenciando os rapazes alegres. A princípio tem-se
a impressão que ambas vão aos tapas e puxões de cabelos. A cena é engraçada. Todos correm
pra ver).

ALABAR
(Com punhal em punho). Vem cá, sua linda bicha velha. Chegou a hora de nós
duas ajustar as contas.

MACAPÁ
(Idem). Não vem que não tem. Não tô a fim de encrenca com ninguém. Cai
fora da minha área.

ALABAR
Tá com medo? Mete a cara, anda! Bicha velha sua capivara filha da puta.
Vou te mostrar quem cisca melhor o terreiro. Anda, vem!

MACAPÁ
Não vem que não tem, já disse! Grito um baita hip-hurra aqui na praça e tu
vais parar no Presídio São José.

ALABAR
Pago pra ver. Tomara que tua sacanagem não piore a sua dor de cotovelo.
Bicha louca. Só assim, acaba com a tua frescura contra a minha pessoa.

MACAPÁ
Escuta veado, tais pretendendo tirar os casais de namorados que eu pro-
gramo na praça? Se fizeres isso, vai dar na cadeia pra ti. Sabe como é, eu
conheço um coronel da PM que pode muito bem te colocar no xilindró.
- 302 -

ALABAR
Tudo bem. Pagarei pra ver. Mas antes de começar a vomitar os teus vene-
nos contra os meus garotos, eu venho te propor um acordo. (E guardou o pu-
nhal na bolsa a tiracolo).

MACAPÁ
(Faz o mesmo acordo). Acordo?!

ALABAR
Pois é, menina. Uma espécie de trégua entre nós duas.

MACAPÁ
Puxa! Até que enfim! Falamos uma linguagem civilizada. Já não era sem
tempo. Mas você bicha é que anda se esquivando, se escondendo atrás das
mangueiras e quiosques para não falar comigo. Que bobagem!

ALABAR
Não senhora, era você. Com essa tolice de andar dizendo que os meus ra-
pazes eram traficantes de drogas.

MACAPÁ
Mas porque você me insultava também com sua falação na praça. Eu fica-
va cega de ódio, invocada mesmo, com a tua descaração em dizer que eras
mais veterano que eu!

ALABAR
Cruzes, menina! E por que diria? Não sou, nem pretendo ser um matusa-
lém da vida. Isola. E isso te tortura? ... babona. Vem de lá um abraço, anda...
deixa eu abraço andar ... deixa eu abraçar a minha velha amiga de guerra
(Se abraçam dando-se tapinhas nas costas e beijos).

MACAPÁ
... nem provocam colisão. Bom, mas a proposta do acordo, bicha valho-nos,
quem agora, no pedaço?

ALABAR
Ah, sim. Negócio seguinte: se a gente bobear, der bobeira pra samango ou
pra maconheiro safado, nós duas é que vamos presas. Eu explico. Com es-
sas histórias AIDS os motéis estão em crise, os homens que trepavam adoi-
- 303 -

dado não têm perspectiva, daí achei de inventar e lançar um “Vale cucêta”
tem dado o que falar na roda. É promoção porreta. O vale cucêta tem o va-
lor de 50 a 100 reais por noitada alegre, em motel e tudo.

MACAPÁ
(Vão saindo, lado a lado, papeando). Chique. Unidas então. Conta comigo.

ALABAR
Com o fim da nossa “guerrinha pessoal, temos tudo pra transformar nosso
Coliseu, daqui da praça, numa ruína folclórica”.

MACAPÁ
Oh, caramba. (Sumiu).

CENA FINAL

(Amanhecendo outro dia. Manhã nebulosa com pingo de chuva. Final de farra. Final de movi-
mento no bar. Ainda resta, o último freguês, aquele que dorme embriagado, emborcado numa
mesa de bar. Cena corriqueira e patética).

PROPRIETÁRIO
(Esticando o corpo e bocejando). Ramiro... recolhe as cadeiras. Fecha o Bar. Vou
dormir um pouquinho, depois eu volto. Passa a chave a Joana.

GARÇOM
O que é que eu faço com ele? Patrão! (O proprietário deu de ombro e foi embora). Te
acorda, cara. Tá na hora de fechar o Bar. (Josias aparece).

JOSIAS
Deixa o cara. Te manda. Deixa que eu assumo esta manhã.

FIM DO ESPETÁCULO
O BERRO
DO SILÊNCIO
- 305 -

O berro do silêncio
2006

PERSONAGENS
Ernestino - jovem
Vozes em off - inquisidores

CENÁRIO
Um quarto de rapaz solteiro, onde vê-se uma cama desarrumada, um cabide pa-
ra pendurar roupa, chapéu, boné ou guarda-chuva, tendo muitas bugigangas es-
palhadas pelo chão dando a impressão de bagunça, onde ocorre o espetáculo. As
paredes são revestidas com papel de parede americano, se preferir, podendo usar
outro recurso cênico, com elementos visuais.

O TEXTO
Narra o conflito de um jovem viciado em drogas, ora coagido pelo medo de servir
a carreira militar sob a pressão psicológica dos pais e da sociedade castradora de
valores. Encerrado em seu “pequeno mundo” ele passa a ver o mundo que não gos-
taria de ver e nessa “viagem” quer fugir, mas não consegue. Não consegue porque
não sabe dar amor e sofre com isso, tornando-se cúmplice da solidão e do isola-
mento social. Em sua vida angustiada ele vive em conflito consigo mesmo, sem sa-
ber o que deseja, sem ter nenhuma opção ou escolha por livre arbítrio, então passa
a travar uma grande batalha entre o vício que o leva à loucura, ao desequilíbrio, on-
de o desejo possessivo de morte o induz ao ato suicida cometido no final. Ato este
em que ele, Ernestino Góes, supunha ser executado pelo seu melhor amigo de in-
fância – o Labareda – senão, por ele próprio como resultado de sua fértil imagina-
ção. Onde, o berro do silêncio se calou para sempre. Será?

O Autor
- 306 -

CENA 1

(Tempo. Entra música de efeitos sonoros ou percussão causando suspense na cena. É madruga-
da. Ernestino anda de um lado para outro no quarto. Não consegue dormir. A luz do amanhecer
adentrando a janela, aos poucos, vai substituindo a penumbra que havia no quarto deixando a
ver agora o jovem Ernestino sentado em uma cadeira respondendo algum interrogatório. Parece
aparentemente assustado e inseguro).

VOZ EM OFF
Como te chama?

ERNESTINO
Eu?

VOZ EM OFF
Sim. Como é teu nome?

ERNESTINO
Meu nome? Meu nome todo? ... verdadeiro? ... (Fez-se silêncio).

VOZ EM OFF
(Gritando). Fala teu nome?

ERNESTINO
Meu nome... engraçado ... todos me chamam de Ernestino ... Ernestino Gó-
es. Tendo por sobrenome da Silva ... Júnior .... Oliveira ... Pereira, tanto faz.
Mas foi um apelido que meus pais me botaram, quando estavam vivos. Só
sei que tenho medo.

VOZ EM OFF
Medo?

ERNESTINO
Muito medo.

VOZ EM OFF
E de que você tem medo?
- 307 -

ERNESTINO
Eu não sei. Tenho medo do homem que violentou a borboleta. Medo dos
que praticam pedofilia destruindo com a pureza das crianças. Medo do
preconceito contra os negros, contra as pessoas deficientes; contra os ido-
sos. O medo dessa gente que mora em nossas casas, atrás das portas, em
nossos jardins, em nossa rua. E tenho medo de perder esse meu próprio
medo! Pois não fui eu que escrevi as Profecias nas pedras, nem fui que ex-
trai delas o leite, o mel... foi JESUS. Esse cara bonachão. Esperto. Tem cada
lance Dele que me amarro de montão. A gente curte Ele adoidado.

VOZ EM OFF
Hummm. Menos mal. Você acredita mesmo em Deus ou no Diabo?

ERNESTINO
Carrego Deus aqui ó, no coração. Cara, só Ele compreende as falhas huma-
nas do Homem. Seu santo nome será sempre respeitado no mundo intei-
ro e nossa devoção nos leva a crer que todo mal passará e haverá Paz um
dia. Por enquanto, a Paz só existe na palavra paz e não há Paz na Palavra,
quando os mananciais vão secando e as águas dos rios sendo poluídas. E
vamos beber o quê? Urina? Oh, Deus. Cuidem da água senão o rio se aca-
ba. Gostaria tanto de ver um Mundo diferente, harmonioso, humanitário.

VOZ EM OFF
Final dos tempos. Cada um fará sua parte. Salve-se quem puder! Vem cá,
por que não seguiu a carreira militar, de acordo com a vontade do seu pai?

CENA 2

(Neste instante, Ernestino parece enlouquecer de raiva, tem uma crise de histeria e se imagina
chicoteado pelo pai diante da proposta de “servir à pátria”. Coisa literalmente impossível para ele
desde a infância. Sai quebrando seus brinquedos de estimação. Completamente revoltado e inde-
feso. Ouve-se a explosão de bombas e canhão em campo de batalha. Fruto de sua imaginação).

ERNESTINO
(Em transe). Meu Deus. Eu tenho horror a guerras e a tudo que cheira material
bélico. Eu não quero servir à Pátria, meu pai. Diz pra ele, mãe. Explica pro pai.

VOZ EM OFF
(Chicoteando). Por quê? Fala! Por que hein seu froucho??? (Repete três vezes).
- 308 -

ERNESTINO
(Quase sem forças para reagir). Porque não quero. Só isso. Não vê que querem
transformar o mundo num esgoto de sangue. Prefiro morrer à míngua,
neste quarto onde me tenho por inteiro, completamente despido de suas
maldades, meu pai.

VOZ EM OFF
Por quê? Por que hein seu froucho?

ERNESTINO
Meu pai ... ainda sou jovem. Tenho sonho, tenho ideias. Como posso soter-
rar os meu sonhos nos escombros de uma guerra? Me diga! Se soubesses o
quanto desejo ver o mundo que eu não gostaria de ver, não estaria aí “for-
çando” e me “obrigando” a ser aquilo que não quero, nem rola na minha
cabeça. Pai ... eu nunca seria um bom soldado ou um voluntário da Pátria
... meus tímpanos estourariam só de ouvir o barulho das bombas e dos ca-
nhões, aí me achariam estendido e apodrecido no campo de batalha, segu-
rando uma carta na mão jaz esquelético. Percebe?

VOZ EM OFF
(Saindo). Froucho. Você é um froucho. Por que lembra disso agora?

(Corte: foco em)

CENA 3

(Feito isso, tudo o que é passado volta à tona na vida atual do jovem Ernestino, que sonha com
um futuro melhor para a humanidade nesta terra de ninguém. Porém, seu “mundo” vive cerca-
do de fantoches e divagações mudando radicalmente seu comportamento mediante à sua filo-
sofia de vida e de pensamentos. Entra efeitos de percussão).

ERNESTINO
(Tenta experimentar, vestir a farda e, ao mesmo tempo, rejeita). Olha cara, independente
do que eu sou, não sou parte de coisa alguma que jamais se reparte como
algo. Uma obra de arte por exemplo (Aqui ele forma uma postura ridícula de algum
“quadro” sobre Monaliza). Ou uma velha casa de velhos herdeiros que vemos
disputar suas velhas paredes e suas velhas portas (Montou algo semelhante). Os
homens enlouqueceram de vez e se fazem de vítima para assassinar seus
familiares ou seus patriarcas a fim de ficarem com tal herança. Olha ca-
- 309 -

ra, aqui dentro, no quarto, no meu mundo, estou salvo de alguma ameaça
de morte ou de qualquer suspeita que as pessoas possam levantar contra
mim. Eu me pertenço a mim mesmo, pois o homem é prisioneiro de si mes-
mo e incapaz de escapar a essa prisão. E quando estendo a minha vida no
varal da existência e ninguém toma conhecimento dela. Tudo porque sou
diferente. Assim como estendo os medos, as paixões, os instintos de liber-
dade provocando anarquia e baderna no mundo inteiro. Enfim, um mun-
do em que uma ou mais pessoas tiranas infernizam a Vida a três porradas...

VOZERIO EM OFF
(Intercaladas). ... a paulada ... a pedrada ... a chicotada de ódios ocultos atrás
dos gabinetes e na escadaria dos palácios.

ERNESTINO
O crime premeditado, cogitado, pelas pessoas frustradas que encerram
com seu ódio o ato da vingança. Cara, há quem queira saber da minha ver-
dadeira identidade: se sou anjo ou Demônio. Que importância tem isso
agora? Estou dentro da imaginação de todos: em cada Porto...

VOZERIO EM OFF
(Barulho de rua). ... em cada Poço ... em cada Corpo ... em cada Raiz.

ERNESTINO
Há quem peça pelo amor de Deus que morra o joio e o trigo que existe na
minha mente. Pode?

VOZERIO EM OFF
(Todos na rua, uníssonas). NÃO! Nem poderia. Seus cartolas burraldos.

ERNESTINO
Tenho culpa se fui gerado no escuro das veredas ou nos quilombos da Vi-
da para punir suas entre aspas? ... Morra sim, os agouros, as tristezas, os
fantasmas que povoam sua mente e habitam no cais dessa espera por nin-
guém a provocar suas asperezas. Pessoas, morrei por mim? (Súplica). Pessoas
... Pessoas, morrei por mim, que vim do nada e voltarei ao nada do jeito
que nasci. Meu Deus. Onde e como semear este poema? ... Num mar de iso-
por e acrílico? ... Nem sei como usar uma arma: um rifle, um revolver, uma
faca! Estou isento dessa loucura.
(Corte: foco em).
- 310 -

CENA 4

(Tempo. Entra a música de meditação. Ernestino percebe entre a fala e o riso a navalha na carne
remontando o vício das drogas na figura do “diabo”. Invisível à sua frente, deambulando pelo
chão como algo anímico numa degradação humana).

VOZERIO EM OFF
(Uníssonas, barulho no bar). Toma, Ernestino. Pega o fumo. Você vai ficar numa
boa, cara. Vai curtir. Experimenta. Vai!

ERNESTINO
Não. Não quero. Não insiste, cara. Fica na tua. Não sei se devo te dizer is-
so, mas me atrevo a falar: a carícia de suas maldades não poderia aliviar
em mim tão entristecida memória. E tão clara a paixão pelo ódio que o ócio
de seu peito traduz, que me dá arrepios, calafrios. Nem tenho o tempo do
mundo – que tempo terei? – para pensar dez vezes! Morrei por mim pes-
soas maliciosas, que o mundo ardente de guerras e guerrilhas invocam o
crime numa só voz.

VOZERIO EM OFF
(Multidão na rua). Quebrem de pau essa cara. Quebrem esse cara. Quebrem!

ERNESTINO
(Fugindo de algo). Morrei por mim, pessoas que nasceram para a prática do
Mal. Em sua morte expressam a inocência do meu mundo. Morram, mor-
ram, e há de arder em chamas o desamor deste Inferno que inventaram pa-
ra implodir o meu corpo. E não voltem à terra.

VOZERIO EM OFF
(No meio do trânsito). Não. Nunca. Jamais.

ERNESTINO
Pessoas, vou lhes confessar uma coisa. Por sua culpa e de penosa alma o
meu coração está gelado como vinho. E tão inútil quanto aquele que bebe
o sangue da noite que escorre na vala, nos esgotos a céu aberto. Ou dorme
em branca cadeia, onde os nossos deuses picharam as paredes com ternura
e descerraram as grades de ferro e nos ofereceram taças de licores e manjás
do céu. Pessoas, atentem: por causa de suas maldades habitadas em suas
entranhas, eu sou o começo de uma sombra no fim da escada...
- 311 -

VOZES EM OFF
(Nos palanques ou tribunas).
... eu sou a escada e o fim dessa sombra!
(Intercaladas).
– Eu sou a sombra e esse fim que se arrasta como serpente expelindo veneno!
– Eu sou tudo isso e o veneno dessa serpente!

ERNESTINO
Ra! Maldita serpente! Assim como o homem de negócio com suas tabuletas
de preço a respirar indiferente à pobreza. Ou fabrica brinquedos de guer-
ra para alimentar os sonhos da Infância que perdi no menino que fui. Por
Deus, desçam o alçapão de suas memórias e me devolvam os sonhos que
foram meus.

(Corte: foco em)

CENA 5

(Tempo. Ernestino toma a postura de uma criança que vai pra cama: ajoelha-se, anda de joelhos
até ao pé da cama, reza e se deita. Em seguida, tem pesadelo, onde a figura materna o obrigaria
a desfilar pelo colégio no mês de setembro. Coisa que lhe provoca certa aflição e insegurança).

ERNESTINO
Oh! Mamãe. Mãe! Mamãe. Eu sei que existe um céu nas alturas e um Infer-
no nas profunduras da terra, assim me ensinaram nas igrejas, nos templos
de oração, nos colégios por onde passei, nas cavernas e bares. Talvez um
Deus que manda e desmanada como um senhor de engenhos... ou como o
Sol que apoquenta as flores na primavera ou como a Lua que continua ins-
pirando os poetas. Também sei que este ou aquele crime hediondo na pon-
ta do sabre ardido de febre de morte, faz parte do trauma gerado na infân-
cia. Na infância que não era minha, mas que podia ser a sua. Ei, mãe... olha
eu aqui. Tô errando o passo? Não? ... E a bandeira tá firmeza?

(Aqui, desfaz o “quadro” da parada escolar, sequenciando a coreografia da guerrilha em que to-
dos caem por terra, metralhados).
- 312 -

VOZES EM OFF
(Intercaladas).
Neura. Só neura. Cara, que besteira.
Há sacanagem igual? A gente vive, a gente morre. Ou morre porque vive.
E vivemos como pequenos vermes ou como tubérculos que almejam seus
desejos de morte, sem conhecer a liberdade do voo de pássaros.
Nem o perfume das pétalas, nem o cheiro no verde das folhas, nem o chei-
ro da terra molhada, depois da chuva...
Cara, nossas rosas rubras são tristes assassinas de antigas manhãs e tudo
isto ficará na saudade.

ERNESTINO
(Sobe por um balanço improvisado por ele e brinca). É bem verdade que há pessoas
que nunca nasceram com os olhos, porque nunca enxergaram ou simples-
mente não queriam ver, outras que não se movem por nada, a troco de
nada, outras que não mastigam aquilo que lhe foi negado, pois a palavra
NÃO a ninguém consola, nem leva ninguém a lugar nenhum. Lembrem
que meu coração está gelado como uma pluma! Onde as mãos aplicam
golpes às carnes desnudas em que outros seres poderiam viver mais tem-
po, o meu puríssimo calor humano só propicia as flores de um mundo sem
pecado. Cara... não fui eu quem inventou as leis desse país sem lei e sem
bandeira habitando nossa alma e negando-me sua clemência. Cara, o fogo
que purifica minha memória rasgando-me o peito à luz do sol, desterra em
mim os campos de batalha, as almas que se abrasam de solidão sem nome.
Lá fora, não tenho sequer algum itinerário, nem experiência alguma para
minha sobrevivência, se aprendi apenas a usar esta arma porque me ensi-
naram. Sou um otário. E quando me perco em mim até me perder de vista
pra nunca mais (Aqui, ele fica pendurado de cabeça para baixo, depois atira-se ao chão e
se arrasta feito lagartixa).

CENA 6

(Tempo. Música. Cena final. Todo homem fica coagido diante do desconhecido. O desconheci-
do é um desafio que absorve e aclara o homem que tem por destino a sina de cultivar sonhos.
Jovem ou adulto, branco ou negro, num só corpo, num só espirito).
- 313 -

VOZES EM OFF
(Intercalados, no telão com figuras ensombradas).
Não são vocês às sombras de seus crimes que me colocarão no exílio ou de-
terão o meu destino cristalino, transparente...
Vocês que são obrigados a viver num mundo apodrecido, onde inventam
deserto de que nenhuma criança consegue brincar de infância, se toquem,
porque jamais me ditarão ordens, nem saberão o destino de um homem.
Nunca.
Nunca. Jamais.
Pessoas, se deem conta, esse mundo é digno de pena. E assombroso sim-
plesmente.
A quem cabe a culpa? ... Às famílias gerais? ...
Aos muros altos? ...
À cerca de arame farpado? ...
Ao verde da mata?

ERNESTINO
(Debilitado). Lembrem que meu sangue e meu corpo a mim pertence. Como
pássaros que voam com o nome de poente, aurora ou de gênese. E mor-
ram, se puderem, como flores que crescem para dentro de si mesmas. Mor-
rammm que eu duvido! E deixem que eu me repouse nos ventos e durma
nas ondas sonoras do mar que tem por segredo os cochichos do rio que de-
ságua no dentro de mim. Deixem eu curtir a dor, o silêncio dessa clausura
imposta pelas suas espadas, na forma de sonhos e alucinação. Morram que
eu duvido! E deixem-me sonhar na relva pura, molhada de neblina, sem
punhal cravado no peito. Morram, e deixem eu me guardar de seus milê-
nios. Ah, plenitude do dia em que me fizeste criança tão somente.

VOZES EM OFF
(Uníssonas).
Pessoas, morrei por nós. (Grita). Morrammmmmmm...

VOZES EM OFF
(Seu amigo de infância, que exterminará com a sua vida). Ernestino Góes!

ERNESTINO
(Supõe sua presença neste momento). Labareda, meu bom amigo!
- 314 -

VOZES EM OFF
(Continua). Seu safado, por onde é que andavas esse tempo todo? ...

ERNESTINO
Todo esse tempo escondido aqui dentro neste quarto, entre ratos, mosqui-
tos e baratas.

VOZES EM OFF
(Com ironia). Pô ... ó meu. Como tu pode ficar nessa e esquecer nossa infância,
nossas diferenças, cara?

ERNESTINO
(Em transe completamente). Como posso esquecer a nossa infância? A nossa brin-
cadeira de bola na rua, de empinar papagaio e de pira maromba. Toma. Pe-
ga a arma e acaba com essa minha aflição, cara. Vai! Anda, atira em mim. Do
que é que você tem medo? Acaba logo com isso, seu frouxo. Atira. Vai atira!

(Aqui, neste momento, ouve-se um estampido de arma e um deles cai ao chão mortalmente fe-
rido. A música entra como pano de fundo. Enquanto os pirilampos levam o corpo de Ernestino
para outro plano azul, céu).

FIM DO ESPETÁCULO
- 315 -

Posfácio
Ramon Stergmannn: O fenômeno do
teatro paraense e sua produção textual
para os grupos da cidade de Belém do Pará.
Por Paulo Roberto Santana Furtado (7)

Tão antigo como o homem é o ato gestual dramático que está vinculado aos rituais
religiosos mais primitivos, ao instante em que o homem completou a ação de colo-
car e tirar a máscara em frente ao espectador, com a consciência da representação
de seu signo. Dentre os elementos característicos de uma cultura, os signos repre-
sentam particularmente formas próprias de conhecimento, de expressão e de va-
lor, desenvolvido ao longo de um processo de civilização de um grupo de teatro, de
um povo ou de uma nação, aprimorados na e pela comunicação, da vida coletiva e
das suas interações sociais. É por meio dos grupos de teatrais da cidade que as ar-
tes cênicas e as manifestações culturais extraem a sua poética, ocupando os espa-
ços culturais e mantendo um ritmo constante de troca com o meio social urbano.

As manifestações que se fazem presentes, neste posfácio, referem-se à produção


artística realizada pelo Grupo de Teatro Palha, entre os anos de 1982 a 1984, e a re-
lação de seu dirigente com o dramaturgo Ramon Stergmannn, e sua participação
na construção dramatúrgica dos textos para os espetáculos realizados pelo Grupo.
Vou me colocar como um historiador do teatro, aquele que olha duas vezes e preci-
sa, ao mesmo tempo, ver um mundo a ser inventado e construído, além de perce-
ber como esses atores deste mundo chamado Belém, tornam-se atores desse pal-
co da história teatral desta cidade.

Neste posfácio, apresentarei o desempenho do Grupo de Teatro Palha, em parceria


com Ramon Stergmannn, trazendo o registro do fazer performático, aquele que só
acontece quando estão presentes, no palco, jovens homens e mulheres que, jun-
tos, experimentam vivências e sensações com seus corpos e emoções, a partir da
obra desse dramaturgo. Trarei o arquivo pessoal do Grupo, um conjunto documen-

(7) Doutorando em Artes pelo Programa de Pós Graduação em Artes da UFPA, ator, cantor, diretor teatral, pu-
blicitário e professor da UFPA, lotado no ICA (Instituto de Ciências da Arte), vinculado à ETDUFPA (Escola de
Teatro e Dança) da UFPA. Fundador do Grupo de Teatro Palha. E-mail: rspaulo36@gmail.com.
- 316 -

tal formado da decorrência da atuação profissional, das relações sociais e dos inte-
resses que caracterizam a trajetória de um indivíduo ou de um grupo cultural. Aqui,
o elo entre a obra e o indivíduo é, inclusive, a base para se justificar o valor atribuí-
do aos arquivos pessoais, como patrimônio documental.

Uma das finalidades do texto será a de falar de um amigo que, juntos, sonhamos o
fazer teatral, em uma cidade, onde pouco se fazia ou se faz a favor de nós artistas,
seja da cena e/ou principalmente artistas, escritores e dramaturgos, como Ramon
Stergmannn, nome artístico do também poeta, cujo nome de batismo era Carlos
Alberto Ferreira Bittencourt, artista plástico, jornalista, ator e diretor teatral. Ra-
mon foi um artista-escritor que transitou por várias modalidades artísticas!

Ramon nasceu em Belém do Pará, no dia 06 de Agosto de 1943, filho de descenden-


tes de imigrantes alemães, que chegaram à Amazônia no século XVIII, cresceu no
bairro de São Braz e, já adulto, foi morar no município de Ananindeua, mais preci-
samente na cidade Nova VI onde, em 1973, criou a sede de seu grupo de teatro, o
Maromba que, para seu criador, significava uma pequena onda. Onda que, em seus
27 anos de trabalho, uniu as três linguagens distintas das artes: o Teatro, a Música e
a Dança, talvez pela formação de seus criadores, o músico Walter Freitas e o baila-
rino Romualdo Rodrigues. Os textos de Ramon sempre refletiram sobre o homem e
o seu meio, sobre a cidade e suas problemáticas e seus conflitos gerados no campo
e nas florestas, o universo mítico espiritual de uma realidade paralela, brinca com
os gêneros dramatúrgicos, a moralidade e os dramas sociais.

Na mesma época, foi criado o Grupo de Teatro Palha, mais precisamente no dia 03
de setembro de 1980, em um momento marcado pela articulação da classe cultu-
ral, que vivia a ressaca da ditadura militar, a retomada do trabalho em grupo, e pe-
la valorização da figura do encenador, fenômeno este que já acontecia na Europa,
desde a década de 50, em detrimento das experimentações coletivas, que deram
o tom de ousadia na década de 70. O Grupo de Teatro Palha se constituiu, num pe-
ríodo considerado como um vácuo, no surgimento de grupos teatrais e teve à sua
frente, eu e Wlad Lima, diretores com características de encenadores, pessoas que
estimulam e organizam o trabalho de criação, apostando no processo, mas que
têm a palavra final sobre o que será ou não usado em cena, e na concepção geral
dos elementos constituintes do espetáculo, enfim, na sua estética. O “peso” da es-
tética, ou melhor, o rigor estético, foi uma das mais marcantes características da-
quele período, refletida na criação de muitos grupos que surgiram em Belém e no
Brasil, entre eles o Grupo de Teatro Palha.
- 317 -

Pilar do melhor teatro produzido nos anos 60-70, o teatro de Grupo sofreu uma
retração na década seguinte, dando lugar ao domínio do diretor. Foi também um
período fértil, durante o qual aprendemos muito a respeito das possibilidades da
renovação da linguagem cênica, promovida pela ousadia e internacionalismo de
bons diretores em ação (GARCIA, 2004, p.25).

A geração anterior tinha percorrido o caminho da estética à política e, agora, o retor-


no se fazia num grau de maior apuro. Isto é evidente na década de 80, que é marca-
da pelo estímulo aos estudos da semiologia, de grande importância para a área tea-
tral, exatamente pela qualidade estética dos trabalhos, às vezes, em detrimento do
texto, passando este para um segundo plano. Além de um discurso politizado que,
juntamente, com o texto dá lugar a questionamentos de ordem filosófica. No caso
do Grupo de Teatro Palha, o delicado equilíbrio entre forma e conteúdo vai dar um
perfil diferenciado, apesar de todas as dificuldades da época, tornando-o uma refe-
rência de qualidade e ousadia na construção de uma linguagem teatral consistente.

Jurupari, a Guerra dos Sexos, dá início à trajetória do Grupo de Teatro Palha, um


grupo de jovens. Eu, com apenas 20 anos de idade, sem uma formação na área, e
já querendo experimentar a linguagem teatral, além de capitanear um grupo de,
aproximadamente, 20 (vinte) pessoas. Nosso fôlego estava apenas no início, realizá-
vamos encontros três vezes por semana, para ensaiar e fazer exercícios práticos de
teatro, assim como leitura de textos e livros sobre o assunto. [FIGURA 1 - CLIQUE AQUI].

O Grupo de Teatro Palha não parou e iniciou uma pesquisa pelos municípios do
Estado, em busca de subsídios que sustentassem os anseios do Grupo, subsí-
dios estes que retratassem as riquezas locais, o homem amazônico ou uma te-
mática que pudesse ser levada para o palco. Viajou para vários municípios e, em
Cametá(8), juntamente com o poeta e dramaturgo Ramon Stergmannn, que acom-
panhou o processo de criação coletiva, e redigiu o texto final, sob o título de Tatu
da Terra, lenda ou erosão?. O texto faz um mergulho profundo no imaginário ama-
zônico, trazendo para a cena, causos e lendas que faziam parte da exploração da
Castanha do Pará, às margens do rio Tocantins, terras que poderiam ser desapro-
priadas por um político local, com intuito de venda e enriquecimento.

O espetáculo estreou no dia 3 julho de 1982, na Casa de Cultura do Município de Ca-


metá, participou do Festival de Teatro de Campina Grande, na Paraíba, no dia 27 de

(8) Cametá é uma das cidades mais antigas da Amazônia, foi capital do Estado do Pará, por 11 meses, no período
da “Cabanagem”, (1835 a 1840), um dos movimentos sociais e políticos mais importantes da História do Brasil.
- 318 -

julho de 1982, realizou temporada no Teatro Experimental do Pará, Waldemar Hen-


rique, de 10 a 15 de Agosto de 1982, no Teatro Amazonas, em Manaus, nos dias 03,
04 e 05 de Dezembro de 1982, e retornou para uma nova temporada, no Waldemar
Henrique, no período de 06 a 12 de dezembro de 1982. Com este espetáculo, parti-
cipou da IV Mostra de Teatro Amador do Pará, promovida pela Federação Estadual
de Atores, Autores e Técnicos de Teatro - FESAT, com apoio da Secretaria Municipal
de Educação e Cultura - SEMEC e do Instituto Nacional de Artes Cênica - INACEN re-
alizada no período de 15 a 23 de dezembro de 1982, no Teatro Experimental do Pa-
rá Waldemar Henrique, juntamente com os seguintes espetáculos e grupos: Carro
dos milagres, do Grupo Cabano; Show de eleições, do Grupo Pé na Estrada; As bru-
xas vão a Marte, do Teatro Equipe do Pará; O palácio dos urubus / Concerto de difi-
culdades em quatro estações, do Grupo Cena Aberta; Miragens, do Grupo Os Sete
da Arte; No tempo que as coisas são, do Estúdio de Pesquisa Artística; e, Circo U de
grude, do Grupo Agir. [FIGURA 2- CLIQUE AQUI].

Elenco do espetáculo Tatu da Terra, lenda ou erosão?: Idanilda Góes, Charles Ser-
ruya, Paulo Faria, Helém Lilian, Zeneide Charone, Andréia Rezende, Abigail Silva,
Otávio Rodrigues, Rui Seixas, Vilson Paz. Direção musical de Firmo Cardoso e Nival-
do Fiúza de Melo, iluminação Carlos Ávila, cenografia do Grupo, figurino e direção
Paulo Santana. A pesquisa foi toda realizada pelos integrantes do Grupo de Teatro
Palha, em suas viagens ao município de Cametá, onde o elenco apreendeu o sota-
que do caboclo local e levou as estórias dos causos e lendas do município, para tal
coleta, visitávamos os mais velhos e ouvíamos seus relatos de como era o municí-
pio no passado e nos dias atuais. De posse de todo esse material, o Grupo iniciava
seu processo de criação, na sala de ensaio, onde era estruturado todo o material
da pesquisa, em cenas e quadros, os quais, os atores experimentavam na cena. Há
casos em que a criação coletiva, embora coletivizada, se dava sob a condução do
encenador. Este se utilizava desse procedimento para uma obra determinada, sem
torná-lo uma marca de estética.

Para compor a equipe do espetáculo, chamamos dois compositores e músicos e os


mesmos fizeram composições narrativas, que serviam de base para a encenação. O
Grupo experimentava um trabalho que se materializava na expressão corporal dos
atores, e todas as cenas eram concebidas a partir do corpo dos mesmos. “Do ponto
de vista da linguagem, há em geral uma ênfase do corpo e da ação, originada no pon-
to de partida do processo criativo: o jogo entre os atores e a improvisação funciona
como alfabeto com que o grupo escreve suas ideias”. (GUINSBURG, 2006, p. 102). Para Guins-
burg, “A Criação coletiva surge com os conjuntos teatrais que na década de 1960 e 70,
- 319 -

associam todos os elementos da encenação, inclusive o texto, em um mesmo proces-


so de autoria baseado na experimentação em sala de ensaio”. (GUINSBURG, 2006, p. 78).

Após as excursões realizadas, começamos a ganhar visibilidade na capital e fora do


Estado, e com a participação do Grupo em festivais de teatro, mais o engajamento
em projetos de formação de plateias, ancorados em projetos mais amplos que bus-
cavam um diálogo com as escolas, os professores se desdobravam em atividades
interativas com o público, nos trazendo novas perspectivas para as nossas apre-
sentações. O reconhecimento pelo público foi quase imediato e, logo, as persona-
lidades de renome do meio cultural paraense se manifestaram, como o Maestro
Waldemar Henrique que, após ter assistido ao espetáculo, nos escreveu uma men-
sagem. [FIGURA 3 - CLIQUE AQUI].

Logo após o término da rodada de apresentações do espetáculo Tatu da Terra, len-


da ou erosão? O Grupo de Teatro Palha iniciou a montagem do Espetáculo Ao To-
que do Berrante, com texto escrito, também, pelo poeta e dramaturgo paraense
Ramon Stergmannn, premiado pela Academia Paraense de Letras. Neste momen-
to, o grupo Palha assumiu a temática regional, com intuito do fortalecimento das
identificações culturais do estado e, com uma contínua pesquisa de corpo do ator,
só que agora com um trabalho voltado para o teatro musical. [FIGURA 4 - CLIQUE AQUI].

A montagem estreou no Teatro Experimental do Pará, Waldemar Henrique, no dia


17 de novembro de 1983, e ficou em cartaz até o dia 20, com ela viaja para São Luís
no Maranhão. No dia 29 de junho de 1983, na Igreja da Floresta, no Bairro da Flores-
ta, pelo Projeto Esporte Para Todos, organizado pela Secretaria de Desporto e La-
zer de São Luís e coordenado pelo Ministério da Educação e Cultura; e, nos dias 01 e
02 de julho, no Teatro Arthur Azevedo. O Grupo partiu para Teresina (PI), e realizou
apresentações no Teatro 04 de Setembro, nos dias 05 e 06 de julho de 1983. Dando
continuidade a sua excursão, realizou temporada em Fortaleza (CE), nos dias 12 e
13 de julho de 1983, no Teatro da EMCENTUR – Centro de Turismo do Ceará – Mu-
seu de Arte e Cultura Popular. O objetivo do Grupo era chegar a Campina Grande,
na Paraíba, para participar do VIII Festival de Inverno de Campina Grande / IX Mos-
tra Nacional de Teatro.

Atingido seu objetivo, o Grupo chegou a Campina Grande e apresentou o espetá-


culo, no VIII Festival de Inverno, de Campina Grande / IX Mostra Nacional de Teatro
e, dentre os 20 espetáculos participantes, se destacou entre os seis melhores, rece-
bendo a crítica feita por Walter Tavares, crítico de Teatro do Jornal Gazeta Jovem, de
- 320 -

Campina Grande (PB). “Ao Toque do Berrante foi um espetáculo antológico, desses
que a gente não esquece nunca, com uma riqueza de cenografia, talento do elenco,
expressão Corporal, tudo. O Pará veio e venceu”. (TAVARES, 1983, GAZETA JOVEM-PB).

De volta a Belém, o Grupo realizou novas temporadas: no Teatro Experimental do


Pará, Waldemar Henrique, no período de 31 de agosto a 04 de setembro de 1983 e,
nos dias 19 e 20 de novembro. No Teatro da Paz, no período de 22 a 25 de outubro
e nos dias 05 e 06 de dezembro. Participou, ainda, da V Mostra de Teatro Amador do
Pará, realizada pela FESAT, no Teatro Experimental do Pará, Waldemar Henrique,
de 19 a 30 de dezembro, juntamente com outros espetáculos e grupos participan-
tes: O Café, da Escola de Teatro, da Universidade Federal do Pará; A Importância de
Estar de Acordo, da Oficina de Teatro da Casa de Estudos Germânico; Catumba, Ti-
piri, o Curupira vem aí, do Teatro Equipe do Pará; O Carro dos Milagres, do Grupo
Cabano Vai ou Racha; Terra, Chão, Ouro Feijão, do Grupo Sete da Arte; e, Theastai,
Theatron, do Grupo Cena Aberta. [FIGURA 5 - CLIQUE AQUI].

O elenco do espetáculo Ao Toque do Berrante, composto por: Charles Serruya, Tony


Cruz; Otávio Rodrigues, Carlin Almir, Guilherme Henrique, Idanilda Góes, Zeneide
Charone, Abigail Silva, Helen Lilian e Denise Bandeira; direção musical de Toni So-
ares, Júnior Soares e Everaldo Ferreira; percussão Dimi; criação de iluminação Au-
gusto Condurú, operação de iluminação Carlos Ávila; direção de Paulo Santana. O
trabalho de divulgação, iniciado nas montagens anteriores, começou a se solidificar
e as excursões realizadas ao Norte e Nordeste, bem como a participação em festi-
vais de teatro, em nível nacional, nos quais obteve críticas favoráveis que reafirma-
ram o reconhecimento do trabalho, fez com que, outra vez, o Maestro Waldemar
Henrique se manifeste através de carta enviada ao Grupo. [FIGURA 6 - CLIQUE AQUI].

Antes de encerrar a temporada do espetáculo Tatu da Terra, Lenda ou Erosão?, o


Grupo realizava frequentes encontros para a prática de ensaios, oficinas, leituras
de textos, discussão em busca de novas ideias, para a próxima montagem e busca
de estratégias de manutenção do grupo e de seus componentes, já que a esta al-
tura dedicavam suas vidas ao Grupo. Em uma das reuniões, promovidas pelo Gru-
po Palha, a atriz Helém Lilian trouxe uma revista de cunho científico, que conta-
va a história no traço e na palavra Yanomami. O Poema descreve a forma como os
Yanomami entendem o começo do mundo, representados pelo Xamã, ou feiticei-
ro, que sustenta o Céu. “Céu rachou enorme, céu rachou todo. Tudo acabou. Lon-
ge dos seus pés. Céu escorado. O Céu sobreposto. Céu suspenso. Longe céu, longe
suspenso. (Começo do Mundo 1 – Índio Yanomami)”.
- 321 -

E assim nasceu o projeto de construção do roteiro para a feitura do espetáculo Ibi


Ey Mârã – Terra Sem Males. O Roteiro tem como base a pesquisa da fotógrafa Cláu-
dia Andujar, nascida na Suíça, criada na Hungria e naturalizada brasileira. Ela, des-
de o começo da década de 70, realizava uma extensa pesquisa e documentação so-
bre os índios Yanomami. A partir de 1971, Cláudia trava seu primeiro contato com
os Yanomami e, encantada com a rica mitologia, as crenças, a religião e a própria
maneira de existir do grupo, num trabalho onde o índio pudesse expressar, visual-
mente e com palavras, o mundo que o cercava.

A pesquisa resultou em 48 ilustrações e dezenas de poemas, todos voltados para o


início da humanidade. E, foi a partir destes registros visuais e poemas, que se ori-
ginou o processo de encenação. Tomamos como ponto de partida “A História do
mundo, no traço e na palavra Yanomami”, foram cinco imagens e cinco poemas, os
quais afirmaram, no percurso criativo, a poética do trabalho. A leitura e visualiza-
ção da obra de Cláudia eram divididas com os antigos e novos integrantes do Gru-
po, os quais faziam a oficina aberta à comunidade. Durante os exercícios, os atores
experimentavam nos laboratórios propostos pela direção e por Ramon Stergman-
nn. Desta vez, Ramon estava ao lado do Grupo, acompanhando todo o processo re-
alizado pelos atores, além de um grupo de músicos e percursionistas, sob a direção
musical de Toni Soares. [FIGURA 7 - CLIQUE AQUI].

O caminho era trilhado, e o conhecimento produzido a cada encontro, a cada no-


vo momento, em busca de uma dramaturgia que satisfizesse a equipe. A expres-
são corporal tinha o objetivo de ativar a expressividade dos atores, desenvolvendo
seus recursos vocais, gestuais e improvisos a serviço da interpretação dos partici-
pantes. O trabalho corporal foi intenso, tendo como matriz o ritual e a música indí-
gena, onde o corpo interagia com os sons dos atabaques e flautas, o canto e a fala.
Tomávamos emprestadas técnicas da mímica, do jogo dramático e da improvisa-
ção. E assim fomos construindo as cenas, o jogo do ator e a busca de signos para a
composição dos quadros e cenas. Sentimos a necessidade de desdobrar o texto em
momentos, onde a criação do mundo dos índios, as terras sem males, seriam aba-
ladas com as grandes obras dos homens civilizados.

Foi realizada uma pesquisa sobre as demarcações de terras, feitas pela Fundação
Nacional do Índio-FUNAI, e do projeto no 637, inciso A de 1975, no qual o índio é vis-
to como um débil mental, pessoa incapaz de pensar, agir e de se autogovernar. Esta
legislação foi aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, ainda no tempo
em que os parlamentares nem imaginavam que, em algum dia, um índio fosse ocu-
- 322 -

par a tribuna da Câmara dos Deputados e discursar em tupi-guarani. Sequer imagi-


navam o acesso de índios às universidades, e se tornarem pesquisadores-doutores.

O texto teatral, de Ramon Stergmannn, trazia para a cena todos os conflitos que ví-
amos e vemos, ainda hoje, estampados nos jornais e televisões entre os índios e a
FUNAI, além de outras autoridades, sempre discriminando e perseguindo esses po-
vos. A música para o espetáculo foi composta por Toni Soares, criada a partir de so-
noridades indígenas e com letras em tupi-guarani, espanholas e portuguesas, per-
passando por toda a encenação, na qual o gesto e o corpo dos atores eram a maté-
ria principal para a realização da dramaturgia do espetáculo. Neste ponto, estamos
de acordo com Patrice Pavis, quando ele afirma que:

A encenação não restitui tais quais os movimentos e comportamentos da vida co-


tidiana. Ela os estiliza, torna-os harmoniosos e legíveis, coordenados em função do
olhar do espectador, trabalhando-os e ensaiando-as até que a encenação esteja
por assim dizer ‘Coreografada’ (PAVIS, 1999, p. 131).

Assim, foi construído o processo e colocado em prática todo o nosso estudo de


técnicas corporais e interpretativas, iniciada na primeira montagem e consolida-
da nestes cinco anos de atividades. O Espetáculo tinha como base a gestualida-
de e não poderia abrir mão da coreografia. “A Elegância de um gesto, a graça de
um movimento de conjunto bastam para produzir um efeito de distanciamento e
a invenção pantomímica oferece à fábula um auxílio inestimável.” (BRECHT, 2005, p. 73).
[FIGURA 8 - CLIQUE AQUI].

E assim foi concebido o espetáculo: Ibi Ey Mârã – Terra Sem Males, de criação cole-
tiva, com redação final de Ramon Stergmannn e poemas de Helém Lilian. No elen-
co: Zeneide Charone; Denise Bandeira; Idanilda Góes; Charles Serruya; Otávio Ro-
drigues; Carlos Ávila; Vilson Paz; e, João Rodrigues. Músicos: Toni Soares (violão,
direção e composição musical); Cláudio Darwich (baixo e teclados); Cláudio Lobato
(bateria); Dimmy (percussão); Figurino, cenografia e adereços: Carlos Nunes, Paulo
Ozela e Edson Mourão; Direção: Paulo Santana.

O espetáculo estreou no Teatro da Paz, em Belém, no período de 13 a 17 de junho de


1984, viajou em excursão pelo nordeste, fazendo apresentações nos teatros das ca-
pitais: Teatro José de Alencar, Fortaleza (CE), de 05 a 08 de junho de 1984; Teatro Al-
berto Maranhão, Natal (RN), de 11 a 13 de julho de 1984; e Teatro Santa Rosa, João
Pessoa (PB), de 17 a 19 de julho de 1984. O Término de nossa excursão foi no IX Fes-
tival de Teatro Amador, de Campina Grande, X Mostra Nacional de Teatro, realizado
- 323 -

em Campina Grande, na Paraíba, nos dias 24 e 25 de julho de 1984, no Teatro Munici-


pal Severino Cabral, recebendo críticas de Ademar Dantas. [FIGURAS 9 E 10 - CLIQUE AQUI].

É interessante observar que, a partir da década de 80, o amadorismo das gerações,


que não impediu um caráter de pioneirismo e experimentação, é substituído por
uma postura de busca de profissionalismo. “As pessoas trabalhavam amadoristi-
camente no sentido pleno da palavra: com muito amor, mas sem técnica e sem di-
nheiro. Não existia profissionalismo, o elenco não recebia cachê, o diretor também
não (...) as pessoas tinham outras profissões”. (REIS, 2005, p. 42).

Mas, os grupos que nasceram naquela época, em Belém, desenvolviam um traba-


lho profissional, não no sentido da palavra, mas no sentido da qualidade de seu fa-
zer. O maior problema desta época era a falta de uma política clara e justa de in-
centivo à cultura, muitas das vezes, as iniciativas federais, estaduais e municipais
apenas beneficiavam artistas de renome nacional, enquanto os que não conquis-
tavam grandes plateias amargavam uma via crucis, para conseguir patrocínios e
apoio institucional. Em Belém, este mercado girava em torno dos veteranos, dos
profissionais vindos do curso livre de teatro da Universidade Federal do Pará-UFPA
e dos dirigentes da FESAT; enquanto nós, jovens oriundos dos grupos de periferia,
ficávamos alijados desse processo, como afirma Luiz Otávio Barata em sua entre-
vista publicada na revista Aspectos (9). [FIGURA 11 - CLIQUE AQUI].

O que se percebe nesta matéria é o confronto entre grupos e diretores e a imposi-


ção do certo e do errado, do bom e do melhor, enfatizando a existência dos grupos
de periferia e a falta de espaço e de voz para eles. Os grupos tradicionais existen-
tes em Belém, daquela época, realizavam suas montagens com atores vindos dos
grupos de periferia, grupos que preparavam seus atores para atuar e, quando esta-
vam prontos, eram convidados a participar das montagens dos grupos de elite. Pa-
ra nós, a relação que estas pessoas, dirigentes desses grupos de elite tinham com o
trabalho teatral, era uma relação de “tarefa”, ou seja, um grupo de pessoas que se
reuniam, quase sempre, em torno de quem quer produzir ou dirigir – naturalmente,
já escolhiam a montagem – para cumprir a tarefa de estrear e fazer temporada de
determinado trabalho e se separam depois.

Um dos problemas imediatos que o trabalho de “tarefa” fazia era a falta de visão
histórica da linguagem do grupo teatral. O trabalho de “tarefa” não permite a pes-
quisa e a experimentação da linguagem teatral e artística, pela falta de conheci-

(9) Aspectos - Revista Mensal de Informação, Belém, Outubro de 1983, ANO I, Nº 2. Editora Gazeta Ltda.
- 324 -

mento, pelo pouco tempo de trabalho, pela estreia já marcada e pela falta de conti-
nuidade de demandas. Esta prática era e é muito comum no teatro feito em Belém,
diretores de grupos que não têm um compromisso com a formação e a pesquisa, e
buscam atores de grupos que o fazem. Aderbal Freire Filho, diretor teatral carioca,
compara os resultados do teatro de “tarefa” aos de uma fábrica: “As peças avulsas
são uma aberração, uma fábrica montada para fabricar um único produto; esse
produto vende ou não e a fábrica acaba depois”. (FREIRE FILHO, 2008, p. 90).

E foi o que aconteceu com os componentes do Grupo Palha, partiram para outros
desafios, e o Grupo continuou sua trajetória de rupturas e recomeços, motivos pe-
los quais ele funcionou, neste período, como um celeiro, por onde surgiram e pas-
saram muitos atores e artistas, os quais, após aprendizado e experiência adquirida,
fundaram novos grupos.

E assim Ramon fez parte do Grupo de Teatro Palha, com a escrita de três drama-
turgias para seus espetáculos. Ele participava, desde as conversas iniciais sobre o
processo do que se queria “montar”, a pesquisa para uma escrita colaborativa e a
redação final da dramaturgia, a ser levada à cena, isso comprova que Ramon é um
escritor brechtiano, aquele que chega aos primeiros anos do século XX, após o sur-
gimento da função do encenador, no teatro, e das vanguardas artísticas europeias,
quando a experimentação tornou-se constante nas representações teatrais, mo-
mento em que as duas Grandes Guerras mundiais foram o mote para uma arte cê-
nica comprometida com a denúncia e contra a alienação de seu público, porque “o
teatro desse período passou a incitar o povo a tomar consciência pela luta por seus
direitos e interesses”. (ROUBINE, 2003, p. 132).

Nas peças teatrais de Ramon, o naturalismo e o expressionismo aparecem com as


novas configurações para o drama. Podemos citar que o teatro expressionista di-
fere do teatro naturalista, pelo fato das peças abordarem a consciência coletiva,
enquanto a preocupação dos dramas naturalistas era a consciência individual da
personagem. Portanto, baseado no “Drama Social” dos naturalistas e no engaja-
mento do teatro expressionista, o drama “assumiu o ritmo do século XX. Enquanto
a reformulação, com fins de agitação, ainda estava em andamento, o novo drama
encontrou um autor em Bertolt Brecht”. (BERTHOLD, 2006, p. 504). Os trabalhos de Brecht
(1990) influenciaram o teatro contemporâneo e se concentraram na formação das
ideias dos espectadores.

Segundo Pavis “no teatro épico existia a importância da narração, ou seja, a inter-
venção do “narrador” que relata seu ponto de vista sobre a trama ou a encenação”.
- 325 -

(PAVIS, 2011, 120). E assim o teatro de Ramon se parecia, assumia um caráter excepcio-
nal, capaz de transformar seu espectador em um atento “observador” do que es-
tava sendo narrado. Nos textos escritos para o Grupo de Teatro Palha, notamos a
semelhança com as obras de Brecht, no sentido da provocação dos espectadores,
na tensão entre a narração e a encenação, o que possibilita o “distanciamento” da
plateia, técnica que desperta a reflexão de seus espectadores sobre o que esta sen-
do encenado, sem pretender despertar fortes emoções ao público. Dramaturgica-
mente falando, esse distanciamento ocorre quando o dramaturgo (1999), “utiliza
recursos não convencionais em sua escrita dramática como, por exemplo, a fala
das personagens em terceira pessoa, quando se refere a eles mesmos”. (BRECHT, 1999,
p. 97). Acredito que pelo fato de Ramon também ter sido ator e diretor teatral, suas
ideias se vinculam muitas vezes às técnicas de palco, tais como a cenografia, a ilu-
minação e a própria música.

No caso de Bertolt Brecht, esses recursos serviram, inclusive, como técnica eficaz
para o distanciamento proposto pelo dramaturgo Alemão. A partir das propostas
do teatro de Brecht (1999), as propriedades do drama moderno exploraram o senti-
do original de dramaturgia e intensificaram a natureza híbrida do teatro. Comparo
Ramon a Brecht, porque ele é denúncia e consciência, em sua obra sob o clima de
repressão ditatorial, colocou em cena a relação entre opressores e oprimidos, mos-
trando a opressão sofrida por seus personagens, pobres, miseráveis, marginaliza-
dos e indivíduos amazônidas em péssimas vivendo em condições de vida.

Ramon Stergmannn, ao colocar para os espectadores os dramas dessas figuras


marginalizadas, como foco de atenção, deu um tratamento mais realista ao teatro
paraense, cuja proposta era denunciar a situação dos menos favorecidos social-
mente. A obra produzida nos idos dos anos de 1980 pode ser vista como uma críti-
ca ao poder da ditadura militar brasileira e amazônida.

REFERÊNCIAS:
ARDAILLON, Danielle (Apr.). Dar nome aos documentos: da teoria à prática. São Paulo: Ins-
tituto Fernando Henrique Cardoso, 2015. p. 14-30. Disponível em: http://fundacaofhc.org.br/files/
dar_nome_aos%20documentos.pdf (Acesso em: 25/01/2021).
BERTHOLD, Marfgot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
BRECHT, Bertolt. Mãe Coragem e seus filhos: uma crônica da Guerra dos Trinta Anos. In: BRECHT,
Bertolt. Teatro completo: Bertolt Brecht, 3. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 97.
- 326 -

______. Escritos sobre teatro. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2005.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Sobre espécies e tipos documentais. In:
DUBATTI, Jorge. O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro. São Paulo:
Edições SESC São Paulo, 2016.
FREIRE-FILHO, Aderbal: Aderbal Freire-Filho, o coreografo da palavra. Revista Folhetim, outubro a
dezembro, 2002, p. 89 – 118.
FURTADO, Paulo Roberto Santana, 1960 – Grupo de Teatro Palha: trajetória e identidade
teatral / Paulo Roberto Santana Furtado. – 2015. Sistemade Biblioteca da UFPA.
GARCIA, Silvana. La nueva dramaturgia y el processo colaborativo em la escena paulista. Conjunto-
Revista de Teatro Latino-americano. La Habana, casa de Las Américas nº 134. P. 24-28oct/dic.2004.
GUINSBURG, J. Et all. (Orgs.). Dicionário do Teatro Brasileiro. Temas, Formas e conceitos, São
Paulo: Perspectiva, 2006.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.
RABETTI, Maria de Lourdes (Beti Rabetti). Em busca da tradução teatral: o trabalho do historia-
dor em meio à miudeza da cena e precariedades documentais. Sala Preta, São Paulo, V. 17,
n. 2, 2007.
REIS, Maria da Glória Ferreira. Cidade e Palco: experimentação, transformação e perma-
nências. Belo Horizonte: Cuitiara, 2005.
ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
TAVARES, Walter. Critico de Teatro do Jornal GAZETA jovem da Paraiba.p.9 1983.

REVISTA
Aspectos - Revista Mensal de Informação, Belém, Outubro de 1983, ANO I, Nº 2. Editora Gazeta Ltda.
- 327 -

FIGURA 1: Cartaz do espetáculo Tatu da terra, lenda ou erosão? - 1982.


(Fonte: Arquivo do autor).
FIGURA 2: Foto do espetáculo “Tatu da terra, lenda ou erosão?” - 1982.
Na foto o ator Paulo Santana. Foto: Miguel Shikaoka. (Fonte: Arquivo do autor).
- 328 -

FIGURA 4: Cartaz do espetáculo “Ao Toque do Berrante” - 1983.


FIGURA 3: Primeira carta Maestro Waldemar Henrique - 1982. (Fonte: Arquivo do autor). Criação: Branco Melo. (Fonte: Arquivo do autor).
- 329 -

FIGURA 5: Foto do espetáculo “Ao toque do berrante” - 1983. Na foto: Denise Bandeira, Guilherme Henrique, Abigail Silva, Carlin Almir, Tony Cruz,
Helen Lilian, Zeneide Charone e Idanilda Góes. Foto: Eduardo Kalif. (Fonte: Arquivo do autor).
- 330 -

FIGURA 7: “Ibi Ey Mârã - Terra Sem Males” - 1984.


Criação: Rosângela Brito. (Fonte: Arquivo do autor).

FIGURA 6: Segunda carta do maestro Waldemar Henrique - 1983. (Fonte: Arquivo do autor).
- 331 -

FIGURA 8: Foto do espetáculo “Ibi Ey Mârã - Terra Sem Males”. Na foto a atriz Zeneide Charone. Foto: Eduardo Kali. (Fonte: Arquivo do autor).
- 332 -

FIGURA 9: Matéria de Jornal: FIGURA 10: Matéria de Jornal:


Crítica Ademar Dantas – Parte 1. Crítica Ademar Dantas – Parte 2.
(Fonte: Arquivo do autor). (Fonte: Arquivo do autor).
- 333 -

FIGURA 11: Matéria da Revista Aspectos – outubro - 1983. (Fonte: Arquivo do autor).
Poucos souberam colocar esta cara, a da gente paraense,
com uma exatidão tão pródiga, na cena, sem arremedos nem distorções,
sem comedimentos ou exageros e sobretudo sem falsos arroubos de exagerado
protecionismo a que muitos autores são conduzidos pelo excessivo zelo que as
causas sociais facilmente fazem brotar. Ramon não quis escrever sobre heróis.
Interessava-se pelo recorte do drama, pela pequena notícia, pelo detalhe quase
insignificante que a realidade lhe fornecia. Seu foco era quase microscópico,
atento sempre ao desenrolar dos acontecimentos num microuniverso sobre o
qual se debruçava com a delicadeza de uma fada. E sempre se fazia acompanhar
de uma ironia marcante, de um humor que suavizava os contrastes agressivos,
ao mesmo tempo em que fazia saltar a tragédia cotidiana para a dimensão de
uma grande cena, apta a se fazer completar de poderosas encenações, belas
interpretações, a mais bem engendrada carpintaria teatral.
Walter Freitas

Projeto Memórias da Dramaturgia Amazônida:


construção de acervo dramatúrgico.
Idealizadora e coordenadora: Bene Martins

Coleção Teatro do Norte Brasileiro - Volume 2


Programa de Pós-Graduação em Artes

Direcione seu celular


para o QR Code ao lado,
e conheça os livros da
Editora PPGArtes.

Você também pode gostar