O Positivismo de Augusto Comte e Seu Projeto Político
O Positivismo de Augusto Comte e Seu Projeto Político
O Positivismo de Augusto Comte e Seu Projeto Político
Eliane Superti
Resumo:
Este artigo analisa a construção teórica de Augusto Comte buscando o entendimento de sua compreensão
sobre a sociedade moderna e as premissas sobre as quais essa interpretação se fundamenta. A análise se
volta também para o projeto politico de reorganização do Estado e da sociedade através da construção de
uma nova moralidade elaborada pelo autor tomando por base a filosofia positiva.
Augusto Comte, como a maior parte dos teóricos sociais que procuraram interpretar a
sociedade moderna, tomou como ponto de partida de suas reflexões a realidade histórica
de sua época. Nessa, ele percebia uma situação de crise emergente, resultado do confronto
entre duas formas de organização social. Uma que lentamente desaparecia e baseava-se em
ordenações feudais de fundo teológico e militar. A outra, nascente, era marcada pelo
advento da indústria e da ciência (COMTE, 1983a).
De acordo com nosso autor, não eram as instituições, as relações materiais e estrutura
hierárquica que constituíam o núcleo da sociedade humana, mas sim o conjunto de idéias,
representações e crenças que formavam a maneira de pensar unanimemente partilhada por
todos no grupo, ou seja, que engendrava o consenso, unindo os homens em uma dada
ordem. E por ser assim, tanto a superação da crise como a reorganização da sociedade não
podiam ocorrer com a limitação das ações sobre as instituições, era preciso uma reforma
intelectual que atingisse o modo de pensar, de representar a vida social (COMTE, 1983b).
Sendo este modo de pensar construído a partir do conhecimento existente sobre o mundo,
Comte separava, em um primeiro momento, a teoria da prática, pois entendia que a
reforma necessária para sanar os males sociais da crise e diminuir os custos do
desenvolvimento devia começar pela teoria capaz de estabelecer a unidade consensual da
nova ordem, para que depois essa pudesse instruir a prática. E, portanto, para Augusto
Comte, não se tratava apenas de compreender a sociedade, mas de fazê-lo interferindo
diretamente na ordem social para seu melhor desenvolvimento.
Voltando-se para as disciplinas científicas, nosso autor percebia que estas haviam
sucessivamente passado por três estágios de desenvolvimento, assim como a própria
sociedade das quais elas constituíam o corpo de pensamento. O teológico, no qual as
explicações sobre os fenômenos eram dadas com base nas vontades arbitrárias de
divindades, o metafísico, que compreendia a realidade por meio de entidades abstratas,
ambos procurando apreender as causas primeiras e finais e ainda a essência dos
fenômenos. E por último, o estado positivo, no qual a observação dos fenômenos era
submetida às leis invariáveis e gerais da natureza.
Dessa forma entendia-se um saber como fazendo parte do estado positivo quando seu
método de investigação e construção das hipóteses subordinava os fatos observáveis a leis,
sendo estas as relações invariáveis entre a circunstância de produção dos fenômenos
naturais.
Tratava-se então, para Comte, de fundar a ciência dos fatos sociais, ou como ele próprio
denominou, a física social, bastando para tanto reter as máximas fundamentais do método
positivo, através do qual os fenômenos sociais observáveis seriam submetidos às leis
naturais que regem a sociabilidade humana, reconhecendo-as dessa forma, uma vez que,
“há leis tão determinadas para o desenvolvimento da espécie humana como para a queda
de uma pedra” (COMTE apud MORAES FILHO, 1989, p.12).
Tendo-se reconhecido as condições invariáveis próprias da sociedade, a reforma social se
viabilizaria, pois isso significaria o descobrimento da ordem essencial do desenvolvimento
humano.
Além disso, a fundação da física social permitia à ciência como um todo se constituir sob
uma unidade metodológica que homogeneizava, nesse aspecto, todas as disciplinas,
dotando-as de unidade lógica e realizando o caráter universal do espírito positivo sobre a
ciência que, com isto, ganhava ascensão definitiva sobre a unidade metódica teológico-
metafísica.
Segundo a análise comtiana, a fisiologia cerebral do homem revelava que este possuía uma
natureza de irresistível tendência social. Sendo assim, a história do homem seria a história
do desenvolvimento, do progresso, da natureza humana. E, portanto, o homem era um ser
histórico na medida em que era na história que ele realizava sua natureza invariável.
A história não alterava a natureza humana, uma vez que esta última não era criada e
recriada continuamente em relação consigo mesma, com a natureza e com as condições
sociais de existência, mas tinha inclinações essenciais que estavam presentes desde a
origem. E, para o seu completo desenvolvimento, a sociedade humana precisaria passar
por três fases, pois é preciso tempo para que o homem aprenda a utilizar plenamente sua
inteligência como guia de suas ações. Essas três fases seriam aquelas pelas quais teriam
passado as disciplinas, uma vez que estas formavam os princípios essenciais de suas
correspondentes unidades consensuais. Esta seria a primeira lei da sociedade humana
reconhecida pela física social, a lei dos três estados (COMTE, 1983b).
De acordo com essa lei o primeiro estado da sociedade humana foi o teológico, no qual as
explicações sobre o mundo eram fundadas na vontade de uma pluralidade de divindades,
num primeiro momento, e depois, com seu amadurecimento, na de um só Deus. Pois, não
tendo como basear suas explicações na razão, o espírito teológico alicerçava-se na fé
irracional. Tais explicações advinham da Igreja e de seus sacerdotes, formando um poder
espiritual que correspondia intelectualmente à ordem feudal e militar, base do poder
temporal dos senhores da guerra que aí ocupavam as primeiras posições sociais e políticas.
O espírito teológico oferecia, assim, tanto às investigações humanas quanto à organização
social uma primeira ideia de Ordem, de Sistema de concepções que correspondia,
explicava e justificava a ordenação do mundo social.
Com o progresso da natureza humana, os homens começaram a lançar dúvidas sobre esse
sistema, compreendendo novas formas de interpretação e, portanto, de organização, que
acabaram por dar vida aos germes de destruição contidos dentro da Ordem. Pois, o novo,
que é o devir histórico determinado por leis naturais, estava inscrito no velho e se realizava
com o desenvolvimento da sociedade humana. Era a dúvida que provocava o desmonte do
antigo poder espiritual, questionando seus dogmas essenciais e estabelecendo a crise na
sociedade.
O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele para o qual tende, por sua natureza,
continuamente e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele. O ceticismo nada
mais é do que um estado de crise, resultado inevitável do interregno intelectual que sobrevém,
necessariamente, todas as vezes que o espírito humano é chamado a mudar de doutrinas, ao mesmo
tempo em que é o indispensável empregado, quer pelo indivíduo, quer pela espécie para permitir a
transição de um dogmatismo para outro, o que constitui a única utilidade fundamental da dúvida.
(COMTE apud MORES FILHO, 1989, p.15).
Esse novo espírito, portador do Progresso da natureza humana nesse estágio de seu
desenvolvimento, era o metafísico, segundo estado de desenvolvimento. Nele, os dogmas
da fé eram questionados e, sendo estes o fundamento da ordem teológica, toda ela é posta
em questão, dissolvendo-se a organicidade de seu saber. No entanto, por ser
necessariamente constituído pela negação da Ordem, o espírito metafísico não consegue
uma outra sistematização, servindo apenas de transição para o estado positivo.
Embora o estado teológico tenha sido capaz de oferecer aos homens uma primeira ideia de
Ordem social, ele, por sua própria natureza de saber irracional, não conseguiu sobreviver
ao Progresso do espírito humano em direção à razão, desagregando-se frente aos assaltos
do pensamento crítico-metafísico. Todavia, este último, limitado à instância crítica do
progresso, gerou na sociedade uma crise de transição, somente superável pela conciliação
entre a Ordem e o Progresso. Segundo Giacóia, “Ordem e Progresso caracteriza de modo
exclusivo, um face ao outro, o método teológico e o metafísico” (GIACÓIA JR., 1983,
p.23).
A conciliação destas duas ideias, Ordem e Progresso, só era possível no último estado da
sociedade, aquele para o qual tendia naturalmente o espírito humano, o positivismo. Este
se afirmou plenamente quando seu método, depois de fundada a física social, passou a
coordenar universalmente todas as ciências, dando-lhes uma unidade lógica fundamental
para a explicação racional dos fenômenos naturais como resultado de um conjunto estável
e solidário de relações entre circunstâncias de produção, ou seja, de leis invariáveis, que
uma vez reconhecidas deveriam ser aceitas como dogmas. Nesse momento, o espírito
positivo podia oferecer os princípios essenciais para a constituição da unidade consensual
de uma nova Ordem, agora assentada na razão. Ordem essa que era capaz de engendrar o
próprio Progresso, na medida em que esse é fruto do desenvolvimento da natureza
humana, que se determina por leis que, só no estado positivo, são passíveis de
compreensão. E, portanto, só no positivismo a história era compreendida em sua
verdadeira base, ou seja, como a história determinada pelas leis invariáveis do
desenvolvimento intelectual e material da humanidade.
O sentido do devir social, a direção de seu caminho era o de levar o pensamento humano à
coerência racional à qual ele estava destinado. E essa coerência só pode ser realizada no
positivismo, que renuncia a qualquer explicação das causas dos fenômenos, limitando-se a
estabelecer as leis invariáveis que os determinam.
Mas, isso só podia acontecer com a fundação da física social, que se propunha ao estudo
das leis que regem a sociedade. Assim, também nesse aspecto o estado positivo do
desenvolvimento humano só ganhava plena maturidade com a sociologia.
Esta ciência, para compreender toda a história da humanidade – que era entendida como
una, vista como o desenvolvimento da mesma natureza humana –, se subdividia em
estática e dinâmica. A estática tomava por objeto a ordem social. Ela analisava as
condições existenciais, o todo estrutural da sociedade e seus laços de solidariedade, pois só
era possível compreender os elementos sociais considerando o conjunto do qual eram
partes constituintes. Contudo, a noção central, sobre a qual se detinha à estática, era a do
consenso que tornava a pluralidade de indivíduos e instituições uma unidade social. E,
dessa forma, ela apreendia os princípios formativos de toda sociedade. Com a dinâmica, o
estudo se voltava para o progresso evolutivo da sociedade, procurando determinar as leis
deste e seu percurso sucessivo e inalterável.
Em concordância com Raymond Aron, “A estática social trouxe à luz a ordem essencial de
toda sociedade humana; a dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa
ordem fundamental, antes de alcançar o termo final do positivismo” (ARON, 1993, p.95).
A formação da nova unidade consensual através da ciência positiva que permitia aos
filósofos e cientistas exercer o poder espiritual sobre a sociedade conduziria a superação
da crise e a organização definitiva do estado positivo. Neste estado, o poder temporal,
equivalente material da ordem espiritual positivista, seria exercido pelos industriais.
Porque, para Comte, era natural que estes detivessem a autoridade econômica e social
indispensável para o conjunto da coletividade, uma vez que constituíam o topo na
hierarquia das capacidades. Entretanto, a propriedade privada, fonte da qual lhes advinha
sua autoridade temporal, devia ter uma função social. Segundo a perspectiva comtiana, a
propriedade, que tinha raízes na constituição biológica do homem, era inevitável, e, além
disso, socialmente indispensável. Pois, foi devido à sua virtude de concentração de capitais
que a civilização material se desenvolveu. Ou seja, foi porque os homens foram e são
capazes de gerar e acumular riquezas maiores do que as consumidas pela coletividade e de
as legarem à geração posterior, que a civilização progrediu materialmente. Contudo, como
bem observa nosso autor, essa riqueza concentrada sob a forma de propriedade privada de
alguns foi construída por todos em conjunto, tendo origem social e devendo, portanto, ser
esta a sua destinação (COMTE, 1983a).
Assim, não se tratava de eliminar a propriedade privada, mas de transformar o seu sentido.
Ou seja, de mantê-la nas mãos de particulares, mas tornando-a comum por meio do uso
que dela se fizesse, o que consiste em imprimir à gestão do capital “o caráter relativo e
social que lhe impõe a sua origem” (LINS, 1965, p.147).
O imposto cobrado pela coletividade seria uma das formas de participação desta sobre a
fortuna particular, além de um meio legítimo de intervenção da organização política do
corpo social para subordiná-la às suas finalidades sociais.
De acordo com Aron, para Comte: “O objetivo supremo de todos deve ser alcançar o
primeiro lugar, não na ordem do poder, mas na ordem dos méritos” (ARON, 1993, p.83).
Na concepção comtiana, o desenvolvimento da ordem industrial, com base no movimento
de expropriação e organização científica do trabalho, com sua consequente concentração
de capitais e meios de produção nas mãos de um determinado segmento social,
relacionava-se positivamente com o progresso material e espiritual da natureza humana. A
crise e a oposição de interesses entre operários e empresários eram, a seus olhos, resultado
da má organização da sociedade e poderiam ser superados com reformas.
Isso seria possível, segundo Comte, à medida que o conjunto social, orientado pelo poder
espiritual positivista formasse um forte movimento de opinião pública no sentido de
mostrar aos detentores do capital a sua origem e o seu objetivo social, não permitindo que
a riqueza social fosse gestada em prejuízo da massa proletária, cabendo a esta última
limitar suas pretensões às possibilidades econômicas de cada período. Diante dessa
proposição, Comte pregava a instituição do salário-mínimo, que tomaria a forma de um
subsídio devido pela sociedade a cada um de seus membros, que trabalhou para o seu
desenvolvimento, pois o trabalho em si não comportava equivalente em dinheiro.
A sociedade pensada pelo positivismo teria então uma outra visão sobre o mundo do
trabalho. Pois, procurava torná-lo parte organicamente harmoniosa de uma ordem na qual
o poder e a riqueza se concentravam nos detentores do capital, na classe contraditória à do
trabalho.
Mais uma vez esta relação era possível porque dentro da ordem moral, que o poder
espiritual positivista tentava estabelecer, o proletariado se erigia como a classe destinada a
compreendê-la e, sobretudo a senti-la. Era com base nesta classe que o positivismo
realizaria seu destino moral e político, fazendo do operariado o auxiliar decisivo dos
filósofos para a regeneração social (COMTE, 1934). Isso porque, segundo Comte, a classe
proletária era superior a todas as outras no que diz respeito ao sentimento social. Esse
sentimento era fundamental para a ação, pois esta, mesmo quando política, não se
determina pela inteligência, é preciso que o homem a sinta. Uma vez que ele é, ao mesmo
tempo, sentimento, atividade e inteligência, e o que determina a ação é o sentimento, a
razão apenas controla essa ação. De acordo com a máxima comtiana:“Agir por afeição e
pensar para agir”.
Portanto, na interpretação de nosso autor, “a ordem supõe o amor e a síntese não pode se
realizar a não ser pela simpatia; a unidade teórica e a unidade prática são, pois, impossíveis
sem unidade moral” (COMTE apud COSTA, 1959, p.79).
Esse amor, necessário à ordem social, nascia na família, na qual o homem é iniciado na
educação moral e aprendia o devotamento aos seus. Pois, era na educação doméstica que
se ordenavam os instintos egoístas, fazendo a necessária ligação entre a existência pessoal
e a social, tendo em vista que “o verdadeiro caráter da educação moral dependia da
submissão do indivíduo à sociedade”. Era com o amor deste que a Humanidade renovaria
a conduta moral, e, portanto, era através da moralidade, do sentimento, contido no
positivismo, que Comte pretendia regenerar a sociedade humana.
Tal amor e submissão estavam presentes principalmente entre os proletários, classe para a
qual o positivismo se dirige. De acordo com a concepção positiva, o destino indicado ao
proletariado é moral.
A principal melhoria a que deve logo desenvolver e consolidar todas as outras, consiste no nobre
ofício social conferido diretamente aos proletários, doravante erigidos em auxiliares indispensáveis do
poder espiritual. Esta mesma classe, que desde o seu nascimento na Idade Média ficara exterior à
ordem moderna, aí toma então a verdadeira posição que convém a sua natureza própria e ao bem
comum (COMTE apud COSTA, 1959, p.84).
Essa pretensão se ligava a uma percepção da sociedade como um organismo, no qual cada
parte dependia e existia em função do todo social, que em seu estado normal era
harmônico. Cada cidadão aí se constituía como um funcionário público, no sentido de que
suas ações se referiam à coletividade, desempenhando uma função social. Assim, a
propriedade e seu detentor destinavam-se a formar e a administrar o capital social, tendo
em vista o bem coletivo das gerações presentes e futuras. Aos proletários cabiam o
trabalho digno e o salário a eles devido pelo conjunto social por sua colaboração para o
progresso geral.
Esse Estado envolvia, então, todo o conjunto social, ele era a nação politicamente
organizada determinando a direção do conjunto. Era ele o cérebro do organismo social.
Sua formação dependia e ao mesmo tempo proporcionava a incorporação do proletariado e
sua ligação com os filósofos para a constituição da opinião pública, a garantia da
propriedade privada e seu uso social, a acumulação de capital e a manutenção, por meio
deste, do progresso material. O que significava que tal Estado nascia da sociedade e
simultaneamente tornava-se o provedor e garantidor de sua ordem social e política.
Ele se subordinava, assim como todo o corpo social, ao estado atual de desenvolvimento
intelectual e moral, ou, por outras palavras, ao estado cultural da humanidade. Pois, como
vimos, o que determinava a unidade social era o conjunto de ideias, de representações e
crenças que formavam a cultura da sociedade, criada pelo homem vivendo em conjunto,
mas determinado por leis. Era sobre essa cultura que a ordem social se formava e se
desenvolvia com o progresso da natureza humana. E, portanto, “o estado de cultura é que
determina o restante do corpo social, e não o contrário” (MORAES Filho, 1957, p.173). O
que nos leva a concluir que cada estágio de desenvolvimento determinava um tipo
diferente de Estado.
O Estado intervinha como ordenador, determinando sua ação pela necessidade do conjunto
social, colocando-se, portanto, em uma posição supraclassista, uma vez que os interesses
que defendia são os do organismo como um todo e não os de partes determinadas. Ao
impulsionar o progresso industrial da sociedade, agia sobre o conjunto, provendo o
interesse de todos no desenvolvimento da riqueza.
O governo era exercido, então, em nome de todos e sua ação se dava pela força material,
impondo-se coercitivamente. O que implicava em ser todo o conjunto submetido a suas
determinações independentemente da vontade das partes. O fato de se impor de forma
coercitiva, o que, aliás, era característica de todo Estado, marcava, de acordo com Comte,
o aspecto intrinsecamente ditatorial do governo. Para ele, governar equivalia a ditar as
regras de coordenação do conjunto social e, nesse sentido, todo governo era uma ditadura
(COMTE, 1929).
No estado positivo, o governo, reconhecido como ditatorial, devia, além disso, proclamar a
plenitude do mando concentrando a execução e a regulamentação legal em uma idêntica
personagem, de forma que esta pudesse intervir sobre a realidade toda vez que era
chamado a fazê-lo pelas necessidades circunstanciais. Assim, o Poder Executivo tornava-
se de fato o verdadeiro núcleo governativo, interferindo materialmente e legislando sobre
sua própria intervenção.
O órgão legislativo extinguia-se, pois extinta estava sua função. Mantinha-se, entretanto,
um colegiado eletivo de funções estritamente financeiras, que devia disciplinar
rigidamente a ação administrativa com relação ao erário público, para que o governo fosse
exercido dentro de um ideal de equilíbrio orçamentário, no qual não houvesse “nenhuma
despesa sem receita”.
A formação dessa opinião pública estava na base do próprio Estado, reconhecido como a
sociedade politicamente organizada, e tinha como pré-condição a incorporação do
proletariado e a educação moral positiva. Contudo, sua atuação e existência supunham
plena liberdade de pensamento e expressão a todos os cidadãos, que deviam exercê-la
abertamente de acordo com o princípio de “viver às claras”. Assim a sociedade era livre
para discutir, criticar e participar de todas as questões que lhe dissessem respeito ou não, o
que inclui o próprio Estado. A este último cabia apenas coibir os abusos que pudessem
lesar a liberdade alheia, os interesses coletivos ou a ordem material da sociedade. A
plenitude do mando tinha, então, como contrapartida, a plenitude da expressão.
A base desse novo regime era estritamente prática e dizia respeito aos interesses materiais
da sociedade. Sendo assim, era-lhe vedada toda e qualquer interferência no domínio
espiritual. O Estado tornava-se laico.
O governante, nesse contexto, assumia sua função como principal servidor público,
submetido às leis existentes e cônscio de que sua investidura se justificava pela sua
utilidade e enquanto fosse merecedor da confiança da sociedade. O que o tornava sensível
a manifestações dos governados, os quais, se fossem submetidos a abusos, deviam impor-
lhe resistência, inviabilizando sua ação e investidura. Tais situações, contudo, tinham
caráter excepcional de patologia social.
Com base nessas considerações, retém-se que a proposta política de regeneração social,
presente na filosofia de Comte, assume dois aspectos centrais. O primeiro gira em torno da
necessidade de reformulação moral e científica dos princípios teóricos fundamentais da
ordem nascente, uma vez que são esses princípios que formam a maneira como os homens
pensam o mundo social e aí desempenham suas funções. Trata-se, então, de reformular
moralmente as representações sociais e, por consequência, as ações dos indivíduos, através
da fundação de um poder espiritual capaz de “regular os sentimentos dos homens, uni-los
com vistas a um trabalho comum, consagrar os direitos daqueles que governam, moderar o
arbitrário ou o egoísmo dos poderosos” (ARON, 1999, p.85).
Bibliografia.
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 3ª ed., São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 1993.
________. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. (Os
Pensadores)
________. Discurso Sobre o Espírito Positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1983b. (Os
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________. Apelo aos Conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899.
LINS, Ivan. Perspectivas de Augusto Comte. Rio de Janeiro: Ed. Livraria São José, 1965.
MORAES Filho, Evaristo de (org.). Comte. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São
Paulo: Editora Ática, 1989.