Tradução e Modernidade
Tradução e Modernidade
Tradução e Modernidade
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Mestre em Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/UFPA
(2011). Fundação Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque
Professor Eidorfe Moreira, Professor e Pesquisador. Museu Paraense Emílio
Goeldi, Etnógrafo. brenoedai@yahoo.com.br
Introdução
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O termo frouxo é o que mais se aproxima da definição de Coumoult (2003) no que
se refere à maleabilidade do rito do noivado: “ritemou”. Cf. Avolio (2002):mou: adj.
mole, fofo, flácido, frouxo. n pop molenga.
afogamentos, agressões físicas e verbais. Numa vila, em particular,
ele é laçado por um coxo, geralmente celibatário. Segundo Lages:
3
Embora os registros de casamento civil sejam mais recentes, datando do período de
Proclamação da República, podem-se consultar os Livros de Casamento ou Livros
de Matrimônio das Igrejas, documento que se tornou obrigatório após o Concílio
de Trento (ver FERNANDES, 1995).
pompa (festas de noivado sempre se restringiram aos núcleos
familiares envolvidos), o imaginário em torno do noivado contribuiu
significativamente para elaborar o conceito de cônjuge que perdura
ainda nos dias de hoje. Assim, apesar da secularização da maioria
dos ritos católicos (recordados apenas em feriados) parte deles ainda
ostenta a imponência dos ritos do passado. No caso do casamento,
isso é ainda mais evidente.
Embora se tenha verificado, na pesquisa, que alguns dos casais
que se preparavam para casar na Igreja não eram frequentadores
assíduos desta, muitos deles afirmavam fazer questão de celebrar
os votos em frente ao altar e com consentimento sacerdotal. Mas,
afinal, quais as razões que levam as pessoas a noivarem? E por que ele
ainda é considerado entre muitos casais uma condição indispensável
para a união conjugal, se na atualidade o próprio casamento depende
muito pouco das regras e das tradições que o envolviam em épocas
anteriores?
Em primeiro lugar, o noivado é condição obrigatória para o
casamento religioso e, devido ao fato de que uma parcela significativa
de casais em primeiras núpcias deseja oficializar o compromisso
em cerimônias católicas, noiva-se para poder participar dos Cursos
de Noivos oferecidos nos centros paroquiais das inúmeras igrejas
espalhadas pelo Brasil. São cursos de curta duração que ocorrem
em um final de semana de cada mês. Neles, o casal paga uma taxa
de inscrição e é obrigado a participar de palestras sobre Código
Canônico, Reprodução Humana, Sacramento Matrimonial etc.
Todavia, embora seja obrigatório para o casamento católico, a maioria
dos casais não noivam com esse fim.
Por outro lado, como afirmam os noivos – mais especificamente 35
as noivas, não sem algum ressentimento –, alguns noivados ocorrem
após o parceiro ver suas inúmeras investidas sexuais frustradas.
Ocorre que geralmente o parceiro masculino pede “a mão da noiva
interessado”, segundo afirmou Samara, “no resto do corpo”. Para ela,
que se ressente de um noivado de longa duração, o noivado com o seu
parceiro significou acesso a relações sexuais consentidas pela família,
já que o noivado significava um passo mais sério que o namoro na
relação. Sua frustração com o noivado se deve, no entanto, não ao
interesse sexual do parceiro, mas ao tempo em que já se encontra
neste estágio de seu relacionamento (nove anos). E aí está outro
ponto importante da análise sobre o noivado.
Assumir o compromisso de casar não significa, portanto,
assegurar a realização da cerimônia de casamento. Assim, além de
noivar com interesse em relações sexuais consentidas, muitos casais
assumem tal compromisso movidos pelo interesse em garantir
estabilidade ao relacionamento, evitando, assim, possíveis investidas
de terceiros junto ao parceiro. De fato, a simples troca de alianças,
condição indispensável para assegurar o noivado tradicional, garante,
com certa margem de segurança, que as investidas sexuais de outros
interessados sejam atenuadas. Por outro lado, em se considerando a
situação socioeconômica do casal, o noivado pode se prolongar mais
do que o normal (um a dois anos em média)4, chegando a durar mais
que o próprio casamento. Nesses casos é muito comum observar
noivas insatisfeitas exercendo uma pressão considerável para que
o matrimônio se realize o quanto antes. E isto ocorre não porque
elas temam a opinião pública – tal como suas avós o fariam –, mas
porque se sentem contrariadas quando, em condição de fazê-lo, o
parceiro alega adiar o casamento por não estar preparado, econômica
e afetivamente, para oficializar a união, mesmo que ela própria, a
noiva, se ofereça para arcar com as despesas da cerimônia, da festa, da
lua-de-mel ou a compra da casa etc.
Em alguns casos, os noivados podem durar anos, deixando
de ser uma fase para se transformar em um estado permanente do
36 relacionamento. Assim ocorre quando os noivos não querem ou não
4
Entre conhecidos de meu círculo social conheci o caso interessante de uma irmã de
minha colega de mestrado que está noiva há cerca de 10 anos. Alegando “esperar a
situação econômica do parceiro melhorar” para poderem casar, considera que sua
relação é séria e, mesmo com as brigas e desentendimentos em torno do assunto,
prefere esperar seu “namorido do que morrer na praia”.
têm condições de organizar um casamento e arcar com suas despesas5.
Esses noivados geralmente são um prelúdio à intenção de “se juntar”,
muito comum entre noivos que ora desejam sair da casa dos pais
para adquirir liberdade pessoal, ora procuram nessa experiência uma
alternativa para avaliar se estão fazendo a escolha certa. Em todo caso
são alternativas que fogem ao padrão socialmente instituído por esse
rito em que normalmente se exige dos noivos o estabelecimento de
um vínculo oficial propriamente dito. Para eles, mais do que ir morar
junto, esse vínculo, tão comum quanto casar no cartório ou na igreja,
é uma alternativa aos nossos costumes que atuam impositivamente
na vida de um casal. A rigor, noivos que passaram a morar juntos ou
mantêm tal vínculo por vários anos, consideram que “não é preciso
casar de papel passado para ser feliz”.
A leitura que se depreende das características destes noivados
de “longo prazo”, seja por interesse ou contingências afetivas e/
ou econômicas, se revela ajustada à ideia aqui proposta acerca da
maleabilidade do noivado, de tal modo que para ele ser um ritualizado
deve, primeiramente, atender às expectativas pessoais dos diversos
atores evolvidos.
Como afirmado anteriormente, o uso da aliança tem papel
fundamental neste processo, não apenas porque sinaliza a existência
de um compromisso, mas também porque marca e institucionaliza
uma alteração de status, permitindo e obrigando o sujeito a encenar
um novo papel social. Para os noivos, ela é considerada, aliás, um
objeto indispensável no processo de oficialização do compromisso.
Por essa razão, normalmente se considera que a intenção de trocar
alianças está condicionada à situação socioeconômica dos noivos e ao
tempo de namoro. Essa observação leva em conta o fato de que há –
37
5
As despesas com o casamento variam de acordo com a posição social do casal. De
todo modo, há valores fixos como, por exemplo, o aluguel da Igreja. Em Belém os
valores desse aluguel variam de paróquia para paróquia. Assim, um casamento na
Igreja de Santo Alexandre, na Cidade Velha, chega a custar mais de R$ 4.000,00;
na Basílica de Nazaré cerca de R$ 3.000,00. Em Nossa Senhora da Conceição, na
Pedreira, e São Pedro e São Paulo, no Guamá, cobram mais barato, mas, mesmo
assim, uma celebração não sai por menos de R$ 500,00. (Observação: todos os
valores excluem despesas com decoração, ornamentação e, obviamente, a festa –
recepção).
segundo afirmam as noivas – um momento certo e oportuno em que
o pedido de noivado é coerente com a situação6 do casal.
Fora o noivado condicional, geralmente ocasionado por uma
gravidez não planejada, o casal estabelece o momento ideal para
noivar cerca de quatro anos após o início do namoro, conforme atesta
a tabela abaixo:7
6
Não encontrei entre os noivos uma definição objetiva do que seria esta “situação”.
Boa parte deles, sem distinção de gênero, relaciona este termo à situação financeira,
outros à situação afetiva – intensidade do sentimento, qualidade do relacionamento
38 – destacando sempre que o mais importante é não estarem brigando e se envolvendo
em desentendimentos ocasionados por traição ou mentiras. O carinho e a atenção
dedicados ao/a parceiro/a são sempre o “termômetro” – nas palavras de uma noiva
– dessa situação do casal.
7
Alguns dos noivos contatados não preencheram o formulário utilizado nesta
pesquisa. Outros responderam, mas não o devolveram. Na tabela em questão
encontram-se os dados referentes aos casais ou noivos que, individualmente,
fornecerem dados para a pesquisa. Ou seja, quando aparecem os nomes do casal é
porque ambos preencheram o formulário. Caso contrário, quando aparece apenas
um dos nomes, seja masculino ou feminino, é porque somente um dos parceiros
devolveu o formulário preenchido.
É após esse período que eles se sentem “preparados” para passar
de fase, ou seja, para assumir um compromisso mais sério. A noção
de seriedade numa relação envolve geralmente a maturidade do casal,
a idade, a aceitação seguida da cobrança por parte dos familiares, e,
sobretudo, as conquistas pessoais que, segundo afirmam os noivos,
têm a ver com o nível de instrução e a estabilidade financeira. Após o
noivado o casamento demora cerca de um ano para ocorrer.
Constatou-se que a origem do pedido de noivado se da quando
a parceira questiona o parceiro sobre seus objetivos pessoais e sua
percepção em relação ao futuro do casal. Esta afirmação leva em conta
o fato de que as noivas declaram haver um “tempo de vida útil” do
namoro, algo como “validade” (outro termo utilizado pelos casais)
do relacionamento e que, portanto, exige dele uma superação de fase,
referendando a noção de ritual presente neste fenômeno.
Até o casamento é possível afirmar, resumidamente, que as
fases do relacionamento entre duas pessoas que desejam casar se
subdividem em três: 1. Flerte ou “fica”, em que ocorrem os primeiros
contatos e um período de avaliação ou reconhecimento do parceiro8;
2. Namoro, em que pode ou não haver o pedido de namoro seguido
de um longo processo de convívio e aproximação sócio-afetiva; e 3.
Noivado.
O namoro é a mais longa das três fases e é nele que se define
o tipo de cônjuge ideal (ou cônjuge preferencial), portanto é a partir
dele que se origina o noivado. Segundo Azevedo (1986), o namoro
pode ser considerado como a manifestação inicial da tendência
biológica à formação de pares por atração sexual, que se desenvolve
no homem a partir das mudanças orgânicas da adolescência e da 39
8
Ficar é, segundo Heilborn (2006), uma forma de não-compromisso codificado e
agregado à classificação das formas de engajamento das pessoas no aprendizado
da sexualidade, que começa a ser instituída no final dos anos de 1980. Para Lago
(2002), seria a menor forma possível de relacionamento amoroso entre duas
pessoas.
puberdade9. A tomada de consciência acerca das diferenças físicas e
de personalidade entre as pessoas de um e outro sexo ocasionariam,
por essa razão, as primeiras tentativas de sedução e de estimulação
afetiva recíproca. Contudo, essa é uma divisão meramente didática,
posto haver uma sobreposição entre o namoro e o noivado, que pode
ser denominada como fase de compromisso. É nessa fase que o anel de
noivado surge como tema central do relacionamento.
Na fase de compromisso, embora seja a mulher quem dá
início à discussão sobre os “objetivos” do relacionamento – entenda-
se futuro da relação –, é o homem quem deve assumir o papel de
pedi-la em noivado. Neste sentido, a fase que estou denominando
como compromisso é entendida pelos noivos como um momento
de noivado extraoficial em que os noivos dão início ao processo de
constituição do noivado que se concretizará com a troca de alianças.
A fase de compromisso não deve ser confundida com a já difundida
troca de anéis de compromisso, pois do ponto de vista dos frequentadores
dos cursos de noivos, a relação estabelecida neste contexto faz parte
do namoro.
A fase de compromisso pode significar uma fase dramática na
vida dos homens, pois é costume se afirmar que eles são os principais
responsáveis pelo noivado acontecer. São eles que devem cumprir
com o protocolo de comprar a aliança, convidar as famílias para fazer
o anúncio – quando isso se faz necessário, pois muitas das vezes o
pedido é feito privativamente, em celebrações de datas que marcam
o relacionamento (aniversário de namoro, aniversário da mãe de
algum dos namorados, casamentos de familiares etc.).
Os preparativos para o noivado começam com a escolha do
40 anel, que, segundo as noivas, deve ser metálico, a rigor, dourado
– seja ele maciço ou folheado – ou de um tipo que está na moeda
9
O padrão “moderno” de namoro, tal como o conhecemos hoje – o contato íntimo
e, bem mais recentemente, a paquera e o “fica” – se acentuou com a crise nos
costumes, instalada depois da Segunda Guerra Mundial e com a divulgação
ocasionada pelas rádios, cinema, por viagens, pelo contato com outros povos e
costumes, pelo modo de vida urbano mundial (ver LEVY, 2009, p. 122).
em diferentes joalheiras, o “ouro branco” (obviamente mais caro).
Alguns casais afirmam ter usado anéis de prata ou de outros materiais,
mas a grande maioria quer ter uma aliança de ouro. É desejável que
o mesmo possua as características da aliança que será utilizada na
cerimônia de casamento, uma vez que essa deve ser a finalidade da
troca de alianças no noivado: servir de fase preliminar para a troca de
alianças na cerimônia do casamento.
Escolher o material que compõe a aliança, contudo, é apenas
detalhe neste processo que pode durar dias ou meses. É necessário
ainda saber a circunferência dos dedos anelares, o peso e formato
do anel, que varia em gramas e espessura, podendo o mesmo ser
quadrado, curvo, enfeitado ou simples, além, é claro, o seu preço.
Segundo os joalheiros, o peso do anel compromete o formato do
mesmo e, consequentemente, seu tempo de vida útil, uma vez que
quanto mais leve o mesmo for menos resistente será a choques e
eventuais deformidades. Porém o seu peso também determina o
formato e o preço. Atualmente existem diversos formatos de aliança,
desde as que possuem brilhantes até as compostas, nas quais várias
alianças são entrelaçadas ou sobrepostas. Contudo, a tradicional segue
sendo a mais utilizada entre os noivos. Esse tipo de aliança não
recebe preenchimento de nenhum tipo de brilhante e se destaca na
preferência dos noivos pela simplicidade e elegância. Ela também é
a mais barata.
Para uma das entrevistadas, a aliança tem um significado
especial. Glayce considera que as características da aliança – forma e
peso – além de indicarem o status social da noiva, indicam a condição
de classe do noivo. Segundo ela, podemos saber com “quem” a noiva
está se casando pelo tipo de aliança que ela usa. Seu prestígio, poder 41
e a posse de recursos financeiros podem ser identificados em alianças
largas, boleadas e grossas, de ouro (ou ouro branco) cravejado de
diamantes. Para Glayce, a posse desses tipos de alianças e o perfil
social de quem a usa servem também como referência para identificar
o que ela chama de “golpe”. Seria um tipo de análise que chama
atenção para a redefinição de uma nova posição de classe por meio
do casamento. Nesse cenário, são identificadas mulheres jovens com
baixo poder aquisitivo, dotadas de corpos vistosos e “sexualmente
atraentes” que usam destes elementos para ascender socialmente
por meio de união com homens mais velhos, cujo padrão de vida e
situação financeira são um “trampolim” para uma vida melhor. Para
a entrevistada, as mulheres que apresentam esse perfil são também
conhecidas como “pistoleiras”10.
Entre os homens, a aliança adquire outro significado, visto
caracterizá-los como sujeitos ambíguos: não se é namorado/a, mas
ao mesmo tempo não se é esposo/a. No mercado matrimonial, do
ponto de vista masculino, isto significa sair de circulação (embora na
avaliação de um considerável público isso predisponha o noivo ou
a noiva a outro tipo de relação: o desafio, que na concepção e certas
pessoas se caracteriza em romper o obstáculo que a aliança impõe).
Disto resulta que muitos noivos veem a aliança como uma algema
e consideram as convenções em torno do seu uso um verdadeiro
cárcere.
Esta representação está relacionada ao conjunto de valores e
comportamentos a que se submetem, impedindo-os de agir conforme
o padrão corrente anterior ao noivado: frequentar espaços públicos
desacompanhados da parceira, como festas, boates, shows etc., andar
em companhia de parceiros do sexo oposto, isoladamente ou em
grupo, sem o consentimento da noiva, desde que faça parte do círculo
de amigos, familiar e profissional de ambos. Entre os noivos, é muito
comum e convicta a interpretação de que usar a aliança, no caso dos
homens, indica sua posse e controle por parte da parceira. “Virou
42
10
Infelizmente não foi possível obter de forma precisa, na pesquisa de campo, o
significado do termo “pistoleira”, mas foi possível notar, a partir de discussões
com as namoradas e noivas de amigos, que essa personagem não se confunde com
o serviço prestado por homens visando ao assassinato de desafetos políticos ou
comerciais. A pistolagem para os homens é um serviço ainda largamente solicitado
por comerciantes, fazendeiros e políticos em cidades do sul e nordeste paraense,
aliás, bastante retratados nos diversos meios jornalísticos em razão do alto índice
de assassinatos no campo. Entre as mulheres, este não é um serviço muito comum,
mas não deixa de ocorrer em casos de infidelidade conjugal ou vingança familiar.
canoa”, “agora tá usando um bambolê de otário”, “tá amarrado”,
“tá na coleira”, “ei teleguiado”, “game over pra ti”. Aliás, nas grandes
cidades, são muito comuns camisetas contendo frases ou desenhos
representando a posição do homem em frente do casamento.
Considerações Finais
11
De acordo com dados do IBGE e IPEA, de 1999 a 2008, observou-se o aumento
das taxas de nupcialidade legal. Em 1999, para a população de 15 anos ou mais de
idade, as taxas variaram de 6,6% a 5,6%; de 1999 a 2002 e, a partir daí, cresceram
até 6,7%, em 2008, a maior taxa registrada no período. Em 2008, o total de
casamentos registrados foi de 959.901, cerca de 5% superior ao número observado
em 2007.
ocupa um papel fundamental neste cenário, visto ser um rito
elementar no processo que leva um casal ao altar. Em parte movidos
pelo ideal de consumo, esses novos casais passaram a adotar estilos de
vida antes comuns a uma parcela de nossa sociedade, o que os tornou
conhecidos como a “nova classe média” brasileira.
Herdeiros de um período de disciplina econômica, cuja
poupança e crédito são referências de conquista pessoal, esses
novos personagens sociais se caracterizam por uma mentalidade
de planejamento e avaliação, a médio e longo prazo, de suas vidas
pessoais. Neste cenário, os afetos que se julgam adequados para uma
vida estável estão fortemente atrelados a valores que se materializam
na pessoa por meio do seu grau de instrução, da posse de um plano
de saúde, do tipo de emprego ou mesmo do número de lugares que
conhecem ou pretendem conhecer.
Desse modo, a concepção de escolha e noivado presentes em
nossa sociedade, longe de ser resultado de um dado objetivo, é fruto
de um processo sociológico que se baseia em trajetórias individuais
culturalmente inculcadas pelo advento de um novo modelo social de
casamento. Portanto, o noivado contemporâneo se caracteriza por
uma autodeterminação pessoal em decidir para si o destino sobre sua
vida conjugal, sem deixar de considerar em sua avaliação do parceiro
o tipo ideal que se encontra determinada pelo sistema de gostos,
perfis e valores produzidos e reproduzidos por nossa cultura.
O noivo em potencial12 é, pois, resultado de gostos e
preferências e, mais que um ideal de classe, é a representação de
práticas sociais indicativas das escolhas coletivas e individuais que
fazemos, tal como sistemas de disposições (e pré-disposições)
à prática, nos mesmos termos de um habitus condicionado por 45
12
A concepção de cônjuge preferencial à qual me refiro se fundamenta na análise
de Lévi-Strauss, ou seja, baseada no princípio de reciprocidade, a noção de
escolha presente em seus escritos é delimitada automaticamente por um grupo de
parentes (“classe de parentes”) ou pela “determinação de uma relação, ou de um
conjunto de relações, que permitem dizer em cada caso se o cônjuge considerado
é desejável ou excluído” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 159). Para mais detalhes ver
Alencar (2011).
condutas regulares (BOURDIEU, 1986). Ou seja, os indivíduos,
na singularidade de suas experiências, se servem de aparelhos de
produção e reprodução simbólica que os ajudam a constituir suas
linguagens e representações amorosas, de modo que elas possam,
assim, ganhar uma realidade própria por meio de escolhas bem
acertadas e segundo procedimentos performativos característicos de
determinados grupos.
Alguns dos noivos interrogados na pesquisa se admiravam
com o caráter performativo dos seus noivados. O casal Ana e Erick
destacou, por exemplo, ter percebido que muita coisa havia mudado
no intervalo de algumas semanas entre dois casamentos realizados
pela família da noiva – que à época ainda era namorada. Erick, o até
então namorado, não havia sido convidado para o primeiro casamento,
uma vez que até o presente momento eles ainda não estavam noivos,
mas foi convidado para o segundo, já que haviam noivado dias antes
do mesmo ocorrer. Para Erick o noivado foi uma “entrada” na família
de sua noiva, e o convite a participar da cerimônia de casamento era
a prova.
Em parte, a legitimação dos noivos como casal é um aspecto
muito importante no processo de escolha do cônjuge, e ser aceito
é algo fundamental. Uma rejeição ou manifestação de desagrado
por parte dos familiares dos pretendentes pode comprometer
seguramente o relacionamento. Em nossa sociedade, todavia, homens
e mulheres diferem quando da aceitação pelos parentes do noivo. A
pesquisa realizada comprovou que ainda é um padrão desejado que
46 o homem assuma o papel de pedir a mulher em namoro, noivado
e casamento e, a partir desse ato, a avaliação de sua proposta pelos
parentes da noiva vai depender do grau de envolvimento e do tempo
de relacionamento dos noivos.
REFERÊNCIAS
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