Livro Maria Completo - 221001 - 144256

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INTRODUÇÃO

Voltando para casa


Na terra somos passageiros nesse
grande universo que nos acolhe e nos permite
evoluirmos nos tornando seres melhores, onde
cada um de nós pode escrever sua própria
história e deixar ensinamentos nas inúmeras
experiências adquiridas no tempo em que aqui
permanecemos.
Voltando para casa é um livro que
contem romances e narrativas que espero que
cheguem ao leitor com a mesma emoção que
senti ao escrevê-las. Que cada uma delas deixe
sua reflexão sobre o valor da vida e a
importância de viver bem cada momento com as
pessoas que amamos.
Cada um de nóstraz consigo um livro
Por Maria Isméria Rodrigues Machado em branco que vamos preenchendo no decorrer
de nossa vida em nossa passagem pela terra, e o
livro se encerra no momento da partida, quando
Deus nos chama para voltarmos para casa.
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ÍNDICE A SOMBRA DE UM HOMEM


A SOMBRA DE UM HOMEM ....................................................... 3
Passei grande parte de minha vida ao lado de um homem a
ALMA FEMININA .......................................................................... 6
quem eu acreditava amar profundamente. Meu amor cegou os
ARTUR O PESCADOR ................................................................. 13
SUPERAÇÃO ................................................................................. 20 olhos; eu não via a minha volta o quanto eu perdia em prol desse
O ENCANTADOR DE SERPENTES........................................... 30 amor. Os amigos foram aos poucos se afastando de mim, devido
OLHOS DA ALMA ........................................................................ 39 às atitudes de meu marido. Acho que preferiram se afastar
FILHOS DO CORAÇÃO .............................................................. 48 temerosos por mim e minha felicidade, até os bem próximos não
ALMAS GÊMEAS ......................................................................... 58 entendiam o que eu dizia ser amor.
O RETORNO .................................................................................. 62 Assim eu vivi por longo tempo, à sombra de um homem
A HISTÓRIA DE ROSÁRIO ........................................................ 68 possessivo e ciumento, que se sentia dono de mim, de minhas
YURI E O GOLFINHO ................................................................. 75 vontades, que me fazia acreditar que a sua forma de ser e agir era
LAÇOS DE AMOR ........................................................................ 82 por amor. Muitas vezes me fez sentir uma rainha com tudo o que
LARA ............................................................................................. 102
eu desejava ter, aos meus pés.
VÍTIMAS DO ÓDIO .................................................................... 106
Fiquei encantada por tudo, mas o tempo me fez ver o
O ANDARILHO ........................................................................... 113
O CAÇADOR DE BORBOLETAS............................................. 124 quanto eu perdi, pois a felicidade é um conjunto de fatores onde o
O LADO NEGRO DE MARIA ................................................... 150 material é apenas uma parte, não tão grandiosa como a
O MUNDO VISTO COM OLHAR DE UM IDOSO ................. 166 simplicidade de um sentimento puro e verdadeiro que sentem por
O SILÊNCIO DOS INOCENTES ............................................... 169 nós.
RECOMEÇO ................................................................................ 172 Foi-me mostrada uma forma diferente de amar, onde meu
A FORÇA DO AMOR ................................................................. 181 marido não apenas possuía meu corpo, mas, também desejava
O RESGATE ................................................................................. 186 possuir minha alma, me levando por caminhos que não eram
SONHO DE LIBERDADE .......................................................... 207 meus.
O CONTADOR DE HISTÓRIAS ............................................... 222 Na cama ele me completava nos prazeres da carne, onde
ORIGEM CIGANA ...................................................................... 239
nossos corpos ferviam na hora do sexo, mas depois um vazio me
possuía diante de algumas de suas atitudes.Em algum momento o
tempo nos faz repensar sobre a vida que levamos e nos
questionamos sobre o que foi deixado para trás.Às vezes podemos
perceber que fora deixado parte preciosa de nós, e nos damos
conta de que o tempo não retorna. Fica a angustia de ter perdido
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momentos que jamais voltaram.Um vazio forma em nós uma felicidade que todos nós podemos ter, mas me faltava a felicidade
lacuna não preenchida por algo que não fora vivido. interior, essa não se compra, se conquista durante nossas
O tempo me fez perceber o quão caro paguei o preço de existências por meio de nossas atitudes. E mais uma vez eu falhei
minha escolha. Fiquei tão encantada por aquele homem sedutor, como alma existente no corpo de uma mulher.
que usava o charme e o dinheiro para completar seu galanteio. Tive meios de crescer, evoluir, mas me deixei prender na
Encantada, me deixei envolver por aquela teia de possessividade teia da ambição da vida fácil.Deixei-me levar nas doces palavras,
em nome do que ele acreditava ser amor. nas juras de amor.
Eu era viúva, com três filhos. Depois de tantas tentativas Assim eu envelheci, com todas as regalias de uma
de encontrar um novo amor, quando acreditei ter encontrado, abri madame fútil e vazia, porque é assim que nos sentimos quando
mão de muitas coisas pra vivê-lo, e aos poucos fui percebendo percebemos que tínhamos tanto para fazer, para evoluir, e tudo foi
que o amor a mim oferecido, na verdade, era doentio, vindo de perdido no momento em que nos fechamos como ostras,
um homem possessivo e ciumento. guardando em nós o verdadeiro eu.
Percebi que não só meu marido, mas também eu Meus filhos cresceram tendo de mim amor, do padrasto,
precisávamos de ajuda. Ele por agir como agia, eu por aceitar a cobranças e um certo ciúmes por ter de me dividir com cada um
submissão a essa forma doentia e repressora de amar, tão deles. Muitas vezes sei que também agi como madrasta ao acatar
diferente do amor verdadeiro que nos permite ser livre. as decisões de meu marido, deixando algumas vezes os meus
Eu me sentia sufocada sem conseguir me expressar. Meus pequenos de lado. Sei que não me tornei a mãe de quem
filhos foram crescendo e preferiram se mudar. Muitas vezes pudessem se orgulhar, mas sim, apenas mais uma mulher fútil
pensei com eles seguir, mas faltou-me coragem e força para me vivendo a sombra de um homem. Mesmo assim, sinto que para
libertar. Eles seguiram e não mais quiseram com nós morar. Nas eles, nada mudou. Até o fim de minha vida pude sentir o amor
visitas que me faziam, eu sentia no olhar de cada um deles as que vinha de meus filhos, mesmo eu não sendo a mãe perfeita, me
mágoas, mas eu também percebia que mesmo longe eles não me viam com olhos de puro amor.
abandonaram. No abraço deles eu sentia a verdadeira forma de
amar, sem interesses nem cobranças, simplesmente um amor Rosário
incondicional e esse alimentava minha alma me dando força para 27-08-14
continuar.
Segui minha jornada ao lado de meu marido.Segui à
sombra de um homem como um bicho de estimação aceitando o
que fora imposto. Tive viagens, roupas lindas, perfumes caros,
carro importado. Hoje percebo que era tudo futilidades. Eu não
consegui ser realmente feliz. Tive, apenas, os momentos de
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ALMA FEMININA irmão, muitas vezes, se envolveu em brigas por minha causa,
pelas piadas e insinuações que ouvia.
Quando nasci, me deram o nome de Cristiano. Eu era o Algumas vezes peguei minha mãe chorando, e mesmo que
terceiro filho de Cristovão e Carmela. ela negasse, eu sabia que aquelas lágrimas eram por mim. Eu as
Desde pequeno eu percebia algo estranho em meu modo secava, em silêncio ela me abraçava bem perto de seu peito, como
de ser, eu adorava observar minha irmã, seu modo de se vestir e se quisesse me proteger de tudo que eu teria de enfrentar.
como arrumava seu longo cabelo.Sua vaidade feminina me Meu pai se mantinha calado, às vezes eu o pegava me
encantava. Eu me identificava entre suas amigas. observando, mas nunca escutei de sua boca nenhuma cobrança.
Minha maneira de ser preocupava minha mãe, ela percebia Sei que ele sabia que eu não tinha culpa de nascer assim. Eu
a cada dia que eu seria diferente de meu irmão. Notava o meu percebia que ele também sofria em silêncio.
desagrado no modo como ela me vestia.Eu desejava as mesmas Meu irmão Carlos, muitas vezes se revoltou comigo pelos
roupas de minha irmã, Júlia. comentários que ouvia na rua. Tentou até me agredir, mas fora
Com o tempo, meu modo de ser não mudou.Mantive o contido por nossa mãe e por Júlia, que sempre me protegiam.
meu jeito delicado. Passei a perceber que meu irmão, Carlos, e Na igreja - eu fazia questão de ir à missa aos domingos
também meu pai, sentiam vergonha de mim, pois nos lugares que com minha família - quando passávamos, eu escutava os
iam evitavam me levar junto. Sentia também, preocupação em comentários das pessoas que diziam: “Afinal, é um homem ou
minha mãe e minha irmã. Eu sabia que o amor delas por mim uma mulher?”.
sempre foi verdadeiro. Elas me viam internamente e nesse olhar Assistíamos a missa, sob os olhares preconceituosos dos
sei que viam minha alma delicada e feminina Percebiam que era fiéis que ali estavam. Após a missa, eu sempre pedia para falar a
além de minha própria vontade, eu não havia escolhido ser assim. sós com o padre, pois com ele eu abria meu coração.Ele me
Eu olhava para o meu corpo e via nele tudo tão delicado, escutava em silencio e dizia: “Meu filho, o que posso te dizer?
apenas o órgão sexual era masculino. Minha cabeça pensava Vejo que não tens culpa por ser como és, mas sabes o quanto será
como uma mulher, com todos os desejos femininos. Eu sabia que difícil tua vida. Para Deus somos todos iguais, mas, infelizmente,
não era fácil para meus pais, assim como não era para mim lidar para os homens não. No mundo as pessoas são preconceituosas,
com os preconceitos da época. não te aceitarão assim.” Falei ao padre que eu sabia.
Eu percebia que meu pai não conseguia me olhar nos No caminho para casa fomos abordados por um grupo de
olhos, que ele perguntava a si mesmo por que eu era assim. Eu jovens que nos cercaram e diziam: “São três homens e duas
sentia que ele fazia um grande esforço para me aceitar, e, de sua mulheres ou são três mulheres e dois homens?” Eles riam e
maneira, ele também me amava e sofria. repetiam: “Vamos ter que descobrir!” Meu irmão foi para cima
Tentei levar uma vida discreta, mas na escola tive de me deles, furioso. Meu pai sentiu-se mal e o levamos para o hospital,
acostumar com as piadinhas a respeito de minha aparência. Meu com forte dor no peito. Ele chegou a ser internado, mas faleceu
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horas depois. Nossa mãe nos abraçou ao darem a notícia. Meu me desejou boa sorte. No túmulo de meu pai levei flores, orei e
irmão me olhou nos olhos e disse que a culpa era minha, eu era o pedi que me perdoasse por tudo que lhe causei.Do padre
culpado pela morte de nosso pai. Nossa mãe interferiu, dizendo Francisco, amigo e confidente, eu também quis me despedir, ele
que ninguém tinha culpa, que foi uma fatalidade. me disse: “Vá meu filho, e seja feliz! Volte sempre que desejar e
A partir desse dia eu convivi com a saudade de meu pai e quiser conversar”.
o peso das palavras ditas por meu irmão. Segui meu caminho. Fui com Fred para a França. Lá,
No enterro os amigos compartilhavam nossa dor.O padre aperfeiçoei meus desenhos e me tornei mestre na arte de criar
encomendou o corpo, quando ficamos sós ele me disse: “Não te lindos vestidos, que foram usados por mulheres famosas da
culpes pelo ocorrido, Deus é que sabe o momento em que cada grande sociedade.
um deve partir”. Na França libertei meu lado feminino. Fred me deu apoio
Fiquei um pouco com minha família, mas as cobranças de ao saber de minha história. Tivemos um envolvimento afetivo,
meu irmão me fizeram tomar a decisão de partir para outro lugar. nasceu entre nós um sentimento forte e puro, que sabíamos que
Minha mãe me abraçou e pediu que não partisse, que precisavam era amor.
de mim. Resolvi ficar mais um tempo com elas, e passei a ajudar Quando nos viam juntos ninguém dizia que não éramos
no atelier de costura que elas montaram, pois ajudaria na renda da um lindo casal. Assumi o nome de Cristiane, me tornei famosa no
família. Minha mãe era uma excelente costureira e minha irmã era mundo da moda.
prendada na arte de bordar. Eu ajudava em tudo que podia, criava Eu sempre escrevia para minha mãe e minha irmã e
modelos que eram vendidos facilmente para as filhas das damas quando era possível enviava algum dinheiro. Através das cartas
da sociedade local. mantivemos contato, e foi através delas que soube que Carlos
Em uma visita à cidade conheci Fred, um empresário havia se casado e tinha um filho, que batizou com o nome
famoso ligado ao mundo da moda. Ao visitar nosso atelier ficou Cristovão, em homenagem ao nosso pai. Minha irmã manteve o
encantado com os modelos que viu, e ao saber que eram atelier de costura.
desenhados por mim, me fez uma proposta de trabalho fora do Na França eu vivi minha verdadeira identidade. A mulher
país. Eu sabia que seria a maneira de sair daquela cidade onde sufocada em mim, ali pode se libertar. Como meus traços eram
todos me olhavam com olhar crítico e preconceituoso. femininos, ninguém imaginava que entre as pernas eu tinha um
Conversei com minha mãe e minha irmã, lhes disse que órgão masculino. Uma falha da natureza que na época não pôde
chegara o momento de partir e seguir minha vida, mas que sempre ser corrigida. Fred se apaixonou por mim e me aceitou como eu
manteria contato. Falei o quanto eu as amava. Foi um momento era, mesmo sabendo que eu não poderia lhe dar filhos.
difícil a despedida. Meu irmão, eu sabia que se sentia aliviado por Surpreendeu-me ao me dizer que adotaríamos. Acabamos
minha decisão de ir morar longe. Eu não o sentia à vontade adotando um casal de órfãos que estavam para adoção após os
comigo por perto. Ao me despedir dele de um modo meio frio ele pais terem morrido em um acidente. Adotamos Pietro e Maria.
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Ficamos encantados com as crianças e elas gostaram de nós, orações acho que ele pode sentir o quanto se manteve vivo em
tínhamos o que elas precisavam, amor e atenção. minhas lembranças.
Passado um tempo, escrevi para minha mãe e lhe contei o Ao partirmos, disse a minha mãe que desejava que
ocorrido. Disse que iríamos visitá-las, que me apresentasse como conhecessem o lugar onde eu morava, mas ela não se sentia
uma parenta da família chamada Cristiane. Minha mãe ficou feliz animada para uma viagem tão longa, que já não tinha saúde para
com a notícia. Quando chegamos, elas nos esperavam isso, então me disse que quando pudéssemos, que voltássemos.
felizes.Minha mãe me abraçou com o mesmo abraço Ela nos esperaria de braços abertos. Foi a última vez que a vi e a
aconchegante e amoroso que sempre me acolheu. Apresentei-lhes abracei. Um ano depois eu soube por uma carta de minha irmã
a família que construí. que ela havia falecido.
Na cidade ficamos por uns dias.Mamãe ficou feliz com as Quando retornei para visitar minha irmã, estive em seu
crianças. Seu olhar não me julgava, apenas demonstrava alegria túmulo e chorei todas as lagrimas contidas. Fui tomado por uma
por me ver e saber que eu estava bem e feliz. Quis que ficássemos profunda saudade, mas eu sabia que só me restara orar por ela
com elas na casa. Com minha irmã troquei ideias de modelos que com a certeza de que estaria amparada por meu pai.
ela criou, lhe passei outros que faziam sucesso fora do país. Após ficar uns dias com minha irmã, quis levá-la comigo,
Nos dias que ali ficamos não vi meu irmão. Acho que mas ela não quis deixar o lugar onde sempre morou. Ali ficava
preferiu ficar longe de mim a ter que encarar o que eu realmente perto de nosso irmão Carlos. Na sepultura de nossos pais eu o vi
era. Minha mãe dava desculpas, mas no fundo eu entendia as após tantos anos, ele nem me reconheceu. Quando me aproximei
razões de Carlos, mesmo que não concordasse com ele. Já que ele percebeu quem eu era, mas me tratou de modo
havíamos sofrido muito pelo meu modo de ser e a condição como frio.Parecíamos dois estranhos.Conversamos um pouco.Ele não
vim ao mundo. Aproveitei o tempo em que ali tivemos e no fez questão de saber muito de mim nem de me apresentar sua
domingo pedi a minha mãe que fôssemos todos juntos a missa, família.
como sempre fazíamos. Na igreja nos olhavam com olhar curioso, Os dias que fiquei com nossa irmã, percebi que ela tinha o
mas sem desconfiarem que eu era Cristiano. desejo de seguir sua vida ao lado de Pedro, um viúvo morador da
No final da missa quis ficar um pouco as sós com o padre cidade e dono de um belo comércio, que por ela se encantou e lhe
Francisco e quando ele me olhou nos olhos me disse: “É você disse que desejava reconstruir sua vida ao seu lado e com ela criar
Cristiano?” Eu sorri. Ele seguiu: “Eu nunca esqueci esse olhar, os dois filhos. Ela estava feliz, eu também fiquei após conhecer
mas agora não vejo tanta tristeza nesses olhos”. Apresentei-lhe Pedro e saber de suas intenções. Ele me prometeu que a faria
Fred e as crianças e combinamos de almoçarmos todos juntos na feliz. Eu retornei aliviado porque ela não ficaria só.
casa de minha mãe. Vivi o resto de minha vida na França.Criamos nossos
Antes de partir, fiz questão, também, de visitar o túmulo filhos, demos a eles estudo, e quando adultos, contei-lhes minha
de meu pai, onde coloquei flores e por ele orei. Através das história e o quanto fui feliz ao lado de Fred. Pedi a eles que nunca
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julgassem ninguém pelas aparências, que procurassem ver sempre ARTUR O PESCADOR
o interior das pessoas, olhando com amor, pois é ele que vence os
preconceitos. Em nossa casa eu era o mais velho dos três filhos de
Construí com Fred um bom patrimônio, mas a maior César, duas meninas, Clara e Olivia e eu, Artur. Meu pai sempre
riqueza foi o amor que ele me presenteou nos anos que vivemos me levou com ele para as pescarias. Minha mãe, Maria, não
juntos, com sua maneira de ver a vida, me dando o direito de gostava, me achava muito novo para acompanhá-lo, mas meu pai
libertar a mulher que vivia presa em mim.Eu descobri a felicidade dizia que com a idade que eu tinha, ele quando criança, já
ao seu lado. acompanhava o pai, ele achava que eu deveria fazer o mesmo. Eu
Desde sua morte, em sua lápide eu sempre colocava uma gostava de acompanhá-lo, e grande parte de minha vida foi vivida
rosa vermelha, como ele sempre me presenteava dizendo ser o no porto de Varsóvia, onde nosso barco atracava para descarregar
símbolo de nosso amor. Foi sobre a pedra gelada de seu túmulo grandes cargas de peixes e abastecer o mercado. Era um trabalho
que eu adormeci e despertei ao seu lado. prazeroso, mas também cansativo.
Lembro-me das ruas estreitas de Varsóvia, dos grandes
casarões, do nosso barco atracado no porto. Para mim era o mais
lindo, se diferenciava dos outros por ter em sua proa três anjos
brancos esculpidos na madeira que adornavam sua proa. Era uma
linda obra de arte feita por meu avô. Ele dizia que eram anjos
pescadores que eles atraiam os peixes.
Eu tinha um grande amigo:Zervio filho também de
pescador. Ele sempre me acompanhava nas brincadeiras. Éramos
como irmãos. O mesmo amor que eu sentia por minhas irmãs eu
sentia por ele. Fomos crescendo ali, entre brincadeiras e trabalho,
mas posso dizer que éramos felizes. Andar pelo porto não nos
cansava, acho que era porque gostávamos do que fazíamos.
Quando chegávamos ao porto após a pescaria, se
comemorava a pesca farta porque sabíamos que o retorno
financeiro também seria melhor.
Eu sentia algo forte nas águas. Parecia que delas eu fazia
parte. Minha mãe me perguntava se eu não desejava uma vida
melhor e eu lhe respondia que aquela vida me bastava. Eu amava
o mar e o que ele me oferecia. Sentia que minha mãe queria uma
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vida melhor para mim e minhas irmãs. Eu a compreendia. O tempo passou, me tornei um pescador. Trabalhei muito
Sabíamos o quanto era difícil a vida de um pescador, e o quanto ao lado de meu pai e me tornei dono de vários barcos. Minha frota
era difícil para ela. Sabíamos que ela se sentia insegura cada vez era responsável pelo abastecimento do mercado e este também
que íamos para o mar. exportava uma parte da carga. Nossa vida melhorou bastante.
Muitas vezes a natureza nos surpreendeu com fortes Andando pelo porto com meu pai, eu sentia seu orgulho ao
tempestades. Foi assim que perdemos o pai de Zervio. Fazia dias olhar para todos os barcos atracados e entre eles o nosso antigo
que estávamos no mar quando fomos surpreendidos ao retornar barco que fizemos questão de manter. Ele nos trazia recordações
para casa por uma grande tempestade e Pedro fora jogado ao mar. de épocas difíceis, mas é tão bom olhar o que nos lembra o
Eu me lembro do desespero de meu pai quando não conseguiu começo de nossas conquistas sentindo orgulho em ainda mantê-lo
retirá-lo do mar. Naquele dia perdemos toda a pesca, mas a perda junto a nós.
maior fora do amigo Pedro. Minhas irmãs estudaram na cidade como minha mãe
Quando chegamos com o que restara do barco, todas as queria. Trabalhavam, era independentes. A mais velha havia se
mulheres esperavam ansiosas seus maridos.Zervio estava ao lado casado e morava em uma outra cidade, e a mais nova estava
de sua mãe. Meu pai teve de dar a notícia de que Pedro fora próxima a nós, sempre nos visitava e nos falava algo novo de sua
levado pelo mar. Foi um momento de muita tristeza para a família loja de roupas.
e para os amigos, perdíamos um grande homem. A partir desse Meu pai amava a vida que levava. Dizia que no mar se
dia todos os pescadores passaram a ajudar Zenaide e seu filho. sentia livre. Eu o entendia, acho que éramos muito parecidos.
Não tínhamos muito, mas fazíamos questão de ajudar lhes com o Minha mãe se preocupava com nossas idas para o mar. Sempre
que fosse preciso. ficava angustiada e só melhorava quando nos via no porto chegar.
Zervio e eu passávamos grande parte do tempo juntos, Corria ao nosso encontro com um lindo sorriso nos recepcionava.
menos quando eu ia para o mar com meu pai.Ele me aguardava Quando a perdemos foi como se parte de nós se fosse com ela.
ansioso no porto e sempre me dizia que não seria um pescador. Lembro-me do dia que chegamos ao porto e estranhamos
Acho que a perda do pai o fez não gostar mais dessa profissão, e ela não estar ali como sempre fazia. Fomos para a casa e a
foi ali no porto que eu o vi partir para uma nova vida. Queria encontramos caída na cozinha já sem vida. Meu pai a agarrou nos
conhecer outros lugares, estudar e seguiu com sua mãe, tinham braços e dizia que ela não podia nos abandonar, que ele a amava.
parentes em outra cidade e com eles desejaram ficar. Nos Senti a dor de meu pai misturada a minha. Perdíamos a pessoa a
correspondíamos, mas com o tempo perdemos contato. A última quem amávamos que sempre esteve ao nosso lado nos dando
vez que soube notícias ele havia viajado para fora do país a força para superar os momentos difíceis.
trabalho. O guardei no coração como o grande amigo que sempre Minhas irmãs foram chamadas, juntos compartilhávamos
foi e que desejo reencontrar algum dia. nossa tristeza. Não foi fácil a vida sem ela, principalmente para
nosso pai que entrou em estado de profunda tristeza desde que a
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perdemos. Eu procurava ser forte para animá-lo, mas parecia nada eles tive a família que sempre sonhei. Eu era feliz. Apenas
adiantar. Eu o vi definhar a cada dia. Tudo para ele parecia perder lamentava não ter mais os meus pais para dividir essa felicidade.
o sentido. Foi quando percebemos o quanto ele a amava. Dois Ao meu filho eu procurei ensinar o que eu aprendera com
anos depois da morte de nossa mãe o perdemos. meu pai. Quando saímos em nosso antigo barco para dar uma
Eu me sentia tão triste por não tê-los junto a nós no volta, eu lhe contei toda a história de nossa trajetória. Queria que
momento em que poderiam ter uma vida mais confortável e ele tivesse o que contar também a seus filhos quando os tivesse.
desfrutar um pouco mais de tudo que havíamos conquistado, mas O tempo passou e quando percebemos aquele menino se
não mandamos no destino e como dizia minha mãe: “Deus tornara um homem. Ele lembrava a mim na juventude, cheio de
sempre sabe o que faz”, que quando levava alguém é porque era o curiosidades, mas eu percebia que seus planos eram diferentes.
momento. Tinha desejo de estudar, sonhava ser engenheiro. Mesmo que sua
A vida continuava sempre nos lembrávamos de nossos decisão não me agradasse, pois eu tinha planos de tê-lo
pais com muita saudade. trabalhando ao meu lado, mas eu sabia que precisava deixá-lo ir.
Um dia, caminhando pelo porto de Varsóvia, conheci uma Não poderia impedi-lo de ir atrás de seus sonhos, do que ele
jovem chamada Natália, me encantei por ela à primeira vista. Ela acreditava ser o melhor para si.
estava acompanhada do pai. Buscavam flores, essas eram Quando ele partiu me pediu desculpas. Disse gostar do
vendidas na floricultura da família. mar, mas sentia também o desejo de estudar engenharia, que
Os dias em que descarregavam flores no porto, ali eu sempre que possível estaria ao meu lado nas pescarias. Eu o
estava porque sabia que a encontraria. Ela ficava ainda mais bela abençoei dizendo a ele que cada um precisava seguir seu destino
ao meio das flores. Trocávamos olhares, passado um tempo eu me eu não o queria infeliz ao nosso lado. Ele sorriu e me deu um
enchi de coragem e a convidei para um passeio. Percebi que ela abraço forte onde, eu senti todo o seu amor.
correspondia meus sentimentos quando ela aceitou passear Sentíamos sua falta em casa, mas era a escolha dele.
comigo. Após o passeio eu falei com seus pais e dávamos início a Minha mulher, Natália, tinha uma calma e um modo de ver a vida
um namoro. Passado um tempo, nos casamos. com sutileza e amor. Ela me transmitia uma paz e era o que eu
Com ela eu fui feliz. Tivemos dois filhos:Frantiesco e precisava, quando do trabalho retornava.
Fabíola. Minha mulher desejou seguir trabalhando na floricultura Minha filha algumas vezes me pediu para me acompanhar
da família. Era apaixonada por flores. Nossa casa ganhou mais ao porto. Eu sentia seu deslumbramento até que ela me disse que
vida desde o dia que nos casamos. Tínhamos um lindo jardim desejava me acompanhar em uma pescaria para ver o meu
cultivado por ela mesma. trabalho de perto. Eu sempre a achei delicada, mas percebi que se
Nossa filha Fabíola gostava de ajudar a mãe com as flores, tornara uma jovem forte e determinada.
e Frantiesco estava sempre comigo, gostava das pescarias. Com Segui fazendo o que eu gostava e deixei meus filhos
seguirem seu caminho. Natália tornou-se uma geóloga, se casou, e
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perto de nós quis morar. Teve um filho que colocou o nome de Em uma tarde saímos de barco para dar uma volta e fomos
César em homenagem ao seu avô. Fiquei tão feliz e sei que meu no antigo barco que eu conservava como uma relíquia. Eu sabia
pai também ficaria feliz e orgulhoso com o bisneto. que ele sentia o mesmo.
Meu filho Frantiesco sempre que podia vinha nos ver, mas Nesse dia conversamos muito. Eu lhe dizia que muitas
sempre apressado devido ao trabalho. Sua vida havia tomado um vezes pesquei naquele barco com meu pai e que eu tinha orgulho
outro rumo. Ele estava feliz e para nós era o que importava. de tê-lo mantido por todo esse tempo. Ele respondeu: “Eu sei meu
Algumas vezes eu saía com meu neto para passear e avô, também sinto orgulho”.
quando o levava ao porto seus olhinhos brilhavam. Com o passar Retornamos e chegamos em casa um pouco mais tarde que
do tempo ele demonstrava cada vez mais interesse pelo mar. Era o habitual. Natália me aguardava ansiosa. Eu cheguei
curioso. Quando lhe contei a história de nossa família ele me acompanhado de nosso neto e muito feliz com nosso passeio.
escutou em silêncio prestando muita atenção, e após me disse: Natalia entendera o motivo de minha alegria, eu recordara o
“Eu quero ser como o senhor”, as palavras dele me emocionaram. passado junto com quem eu amava, o neto querido.
Com o tempo ele foi se mostrando cada vez mais O inverno se aproximou e nos preocupava porque sempre
interessado, mas sempre fizéramos questão de que estudasse, e foi rigoroso em nossa cidade. Muitas vezes as tempestades
quando já adulto se formou advogado, passou a me ajudar na causaram alguns estragos nos barcos que ficavam atracados no
porto.
administração de meus negócios. Percebi que ele daria
Em uma tarde onde o tempo se fechava, tive medo de
continuidade a tudo que eu havia construído.
perder o meu antigo barco e fui ao porto para reforçar as cordas
Nosso filho se tornou um engenheiro importante. Aparecia
que o prendiam, mas o vento soprava forte eu não tive força para
sempre que podia para nos ver, mas aos poucos se afastou dos
enfrentá-lo. Fui jogado dentro do barco e ao bater com a cabeça
negócios da família, e seguiu sua vida. Eu passei a apostar em
fiquei desacordado. Senti toda minha vida passar como um filme
nosso neto, César. Sentia que ao meu lado ele estava por gostar do
em minha mente e após encontrei meus entes queridos que já
mar e de tudo que ele nos oferecia. Eu vi os negócios crescerem
haviam partido. Abracei minha mãe e meu pai e matei toda a
com sua boa administração.
imensa saudade da longa ausência.
Quando conversei com minha mulher eu lhe dizia do
Quis retornar, mas percebi que retornava apenas meu
orgulho que sentia de nosso neto e do amor que eu sentia por ele. espírito. Doeu ver o sofrimento dos meus em volta de meu corpo
Eu sempre o acompanhava ao trabalho, mesmo não estando a pálido estendido em um caixão. Tentei consolar minha mulher,
frente dos negócios eu gostava de observar e orientar quando minha filha, meu filho que há tempo não via, e meu neto o tempo
achava necessário, mas meu neto era de uma estrema todo alisando meus cabelos como um último carinho. Meu pai me
competência, parecia ter nascido com o dom de comandar. agarrou pela mão e nós retiramos. Encerrava se meu tempo na
terra.
Artur
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SUPERAÇÃO Beatriz acreditava nas terapias agindo junto à energia da


natureza, e dos animais em benefício do ser humano. Com o
Beatriz morava em um sitio com a mãe e o irmão. apoio de Celina, uma amiga também medica, criaram no sítio um
Adorava animais e sempre fez questão de estar perto deles. Ela lugar para tratar crianças com o mesmo problema de Nicolas. Ela
sempre dizia a mãe que os animais tinham uma energia especial e conversou com o marido que no início não concordou, mas foi
ela um dia provaria isso. Sua mãe apenas sorria e concordava com convencido por Beatriz a investir no lugar e poder fazer algo pelo
a filha. filho, e também por outras crianças. Ela não queria que seu filho
Beatriz estudou medicina. Acreditava também no poder se sentisse inferior a ninguém.
das terapias, e nelas se especializou. Quando sua mãe morreu, Vendo a melhora dos que ali chegavam, Beatriz tivera a
Beatriz herdou o sitio que tanto amava e o manteve mesmo após certeza de que fazia o melhor ao seguir seu trabalho e ao ter
ter se casado com um jovem empresário chamado Leônidas. criado a instituição “O Casulo”, ela sentia que muitas crianças
Ela era feliz no casamento. Era apaixonada pelo marido e precisavam aprender a se expressar, que muitas delas se sentiam
sentia que ele também a amava, mas após o nascimento do filho presas a um casulo. Ela sabia que essas tinham potencial para se
Nicolas, tudo passou a ser diferente. Ela sentia que Leônidas não mostrarem como borboletas livres para voar. Teve essa certeza
parecia o mesmo. Quando foi diagnosticado que Nicolas tinha quando via o filho despertar para a vida, interagir com o que tinha
certo retardamento mental, Leônidas se revoltou. Para ele Nicolas a sua volta, e assim ela resolveu apostar na recuperação dos que
era um sinal de fracasso.Como um homem jovem cheio de saúde, ali surgiam em busca de ajuda.
que se julgava tão superior, poderia ter concebido um filho que A instituição fora aprovada por alguns médicos amigos de
não fosse normal. Então Leônidas agiu de forma inconsequente e Beatriz, que mesmo sabendo que algumas terapias ainda não eram
egoísta, sua rejeição pelo filho era visível, mas Beatriz não via o reconhecidas pela medicina, acreditavam na seriedade de seu
filho como um fracasso, ela sentia no filho um grande potencial e trabalho ao ver a melhora de cada paciente.
o tratava com muito amor. O lugar crescera e crescera também a certeza de Beatriz de
E foi pensando no filho que ela resolveu construir no seu estar no caminho certo. Sua devoção ao lugar lhe trouxeram
sítio um local para que o filho se sentisse à vontade. Ali ele tinha benefícios, mas também problemas no casamento que aos pouco
a natureza e animais para brincar e interagir. Ela percebia o ela sentia acabar. Desde o nascimento de Nicolas, ela percebera
quanto o filho se sentia bem, e o quanto melhorava a cada dia em que algo havia mudado e seu casamento já não era o mesmo.
contato com os animais e a natureza. Leônidas saía muitas noites deixando-a só com o filho, retornando
Um dia, cavalgando com o filho pelos verdes campos de madrugada cheirando a bebida.
daquele lindo lugar, ela teve uma ideia: se fazia tanto bem ao Beatriz descobriu que Leônidas tinha outras mulheres.
filho, porque não usar aqueles métodos com outras crianças? Abalada, ela queria escutar dele que tudo era um engano, mas
Leônidas confirmou que passou a gostar de outras mulheres, que
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já não sentia o mesmo por ela e finalizou o casamento, deixando O tempo foi passando, e Nicolas se tornara um jovem
com ela o filho e meios para se manterem sem ele. calmo. Passou a ajudar em alguns trabalhos na instituição. Beatriz
No início, Beatriz parecia perdida, mas passado um tempo olhava para ele e sentia orgulho de todo o seu progresso, da
ela levantou a cabeça e seguiu sua vida. Não se deixaria abalar maneira carinhosa como ele lidava com todos, mas ela sabia que
pelo final de seu casamento. Seus planos eram bem superiores a no fundo ele sentia falta do pai que foi sempre tão ausente e há
uma traição. anos não o procurava.
Dedicou-se de corpo e alma ao seu trabalho e a sua Desde a separação Beatriz não soube mais nada sobre
instituição e com a ajuda de empresários conseguiu mais Leônidas, e já haviam passado vários anos. Ele nunca procurou
investimentos e mais credibilidade ao seu trabalho. saber do filho. Era como se ele não existisse e isso incomodava
A cada dia ela podia sentir e ver a melhora do filho e isso Beatriz, pois ela achava fundamental a presença dos pais na
lhe dava a certeza de estar no caminho certo. Nicolas já conseguia recuperação dos filhos. Ela sabia que se Leônidas fosse mais
ler e fazer várias coisas que antes não fazia. Conseguia interagir presente, tudo seria mais fácil para o filho se tivesse o pai ao lado.
com as pessoas e andar na cidade sem sentir medo. Todo o Nicolas aparentava um jovem normal, mas mantinha um
progresso do filho dava ainda mais certeza à Beatriz de que os lado infantil que já havia melhorado bastante com os tratamentos.
tratamentos davam o resultado esperado por todos que com ela Em uma tarde, Beatriz foi à cidade e o levou com ela.
trabalhavam. E assim surgiram várias crianças de diversas idades, Nesse dia ele conheceu Monique, uma menina sorridente que por
levadas por familiares vinham de várias partes indicadas por ele se encantou. Parecia que se conheciam há muito tempo, de
médicos amigos de beatriz que acreditavam em seu trabalho. repente a mãe lhe chama: “Monique, precisamos ir”, se
Beatriz percebeu que precisava de mais profissionais para aproximou e disse: “Desculpem, minha filha adora conversar. Se
trabalhar com ela, então convidou o seu irmão Pedro para lhe deixar ela fica o dia inteiro falando o tempo todo”. Beatriz lhe
ajudar na administração. Contrataram também mais gente para responde é uma menina adorável, meu filho gostou de conversar
ajudar e com o apoio de Celina seguiram o trabalho. com ela se despedem.
O que antes fora feito para ajudar o filho, ganhou uma Passado alguns dias, o destino os coloca novamente no
proporção maior do que Beatriz imaginava. Ela via no filho os caminho um do outro. Monique encontra Nicolas em uma
progressos a cada dia e sabia que tudo se devia às terapias e o sorveteria. Desta vez ela está com a empregada e fica mais tempo
contato com os animais, que a energia deles tinha o poder de conversando com Beatriz e Nicolas, mas quando a menina fala o
ajudar na recuperação de muitas doenças. nome do pai Leônidas, Beatriz percebe que os dois podem ser
Em suas palestras, ela sempre salientava a importância de irmãos e temerosa sente medo da aproximação. Ela sabia também
se usar animais para ajudar na recuperação de algumas doenças, que esse encontro seria inevitável já que estavam na mesma
que esse contato com a natureza e os animais lhe ajudava a chegar cidade, ela só queria que o filho não sofresse com a rejeição do
a seu objetivo que era a melhora de seus pacientes. pai.
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Um dia, Beatriz encontra Leônidas na cidade, ele se sentiu inferior ao próprio filho que tanto lhe ensinou com tão
aproxima após tanto tempo sem vê-la, se surpreende ao encontrá- poucas palavras. A partir daquele dia ele jurou não mais rejeitar o
la tão bem. Ela o cumprimenta e ao conversarem ela lhe diz: “Não filho. Sentia vergonha de suas atitudes no passado.
vai perguntar de nosso filho, mas vou lhe dizer, ele é um jovem Ao chegar à sua casa, ele conta a Lurdes, sua mulher, o
adorável que sempre perguntou pelo pai”. que aconteceu e diz a ela que se sentia bem melhor ao corrigir um
Leônidas fica sem jeito, no fundo ele sabia que errou ao erro do passado. Que gostaria que sua filha Monique conhecesse
rejeitar o filho, mas que o tempo lhe fizera mudar que ele havia se o irmão. O que ele não sabia era que o destino já havia se
arrependido do que fez e queria concertar seu erro e diz a Beatriz encarregado de aproximá-los. Quando são apresentados, ficam
que gostaria de falar com o filho se ela o permitisse. Beatriz lhe felizes por saberem que são irmãos. Leônidas observa os dois e
diz que tudo o que quer é ver o filho feliz e se a aproximação com percebe o quanto agiu errado ao rejeitar o próprio filho. Sente
ele não for para isso que deixe como está. Leônidas lhe fala que a vergonha de suas fraquezas A falta de paz na consciência o fizera
perda de seus pais, o fizeram mudar, que passou a ser menos reparar seu erro. Ele também percebeu o quanto Beatriz e seu
egoísta e orgulhoso, que gostaria de corrigir seu erro que trabalho foram importantes no desenvolvimento do filho.
prometera isso a sua mãe antes dela morrer. Nicolas sempre gostou de cavalos e a lida com eles
Beatriz convida-o a ir ao sítio e conhecer o seu trabalho e provava o quanto à interação com animais era importante. Os
diz que Nicolas lhe ajudava bastante. gestos, o carinho a interação faziam com que as diferenças se
Finalmente houve o encontro de pai e filho Leônidas se distanciassem. Foi percebendo isso que Beatriz usava os animais
preparou para o momento. Esperava encontrar um jovem como meio de tratamento. Aprincípio seu trabalho foi olhado de
dependente, mas não foi o que viu. Ao chegar ao sitio se forma duvidosa. Como animais poderiam ajudar, mas com a
emocionou ao ver Nicolas ajudando a mãe a lidar com as crianças evolução do comportamento das crianças que foram tratadas por
que ali chegavam. Caminharam pelo sitio e Nicolas lhe leva ao ela, tiveram de admitir que ela estava certa.
atelier onde faz seus quadros. Leônidas fica admirado pelo que vê A instituição “O casulo”, preparava as crianças para uma
nas telas. É nesse momento ele pede perdão ao filho por sua vida social. Crianças que ali chegavam retraídas, aprendiam a
ausência, dizendo: “Fui um fraco ao me afastar de você. Acho que interagir com o mundo a sua volta.
não mereço ser chamado de pai”. Nicolas agarra a mão de Beatriz se sentia feliz a cada evolução do quadro de seus
Leônidas e lhe mostra um quadro onde um leão tem na cabeça um pacientes. Ela usava também técnicas que passaram a vir em
beija flor. sonhos que surpreendiam com seus resultados. Assim ela seguiu
Leônidas fica olhando aquela imagem sem entender, até trabalhando e surpreendendo os que a ela confiavam seus filhos.
que Nicolas lhe diz: “Sempre é tempo para se entender as Com Nicolas ela passeava quase todas as tardes. Saíam
diferenças e ser um pai de verdade”. Naquele momento ele pelo campo a cavalo. Para ele era um momento especial. Beatriz
chorou com as palavras do filho e com o abraço que recebeu, se
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sempre o tratou de forma carinhosa, mas sempre exigindo dele, pacientes poderiam surpreender. Muitos deles mostravam uma
acreditava que ele fosse capaz, isso o tornou mais independente. superação que emocionava os profissionais, e Beatriz dizia que
Já adulto Nicolas mantinha ainda um lado infantil, mas era a energia da natureza e dos animais agindo beneficamente em
também tinha atitudes de um adulto. Demonstrava maturidade. seus pacientes. Assim, seu trabalho passou a ser respeitado por
Ele era a prova de que tudo poderia melhorar quando trabalhado médicos que a conheciam, mas havia também os que apenas
com amor. acreditavam no que os medicamentos poderiam fazer.
No sitio, Beatriz teve de fazer algumas reformas. O lugar Beatriz e sua amiga Celina não se deixavam abalar por
já era pequeno para tantos pacientes,a procura crescia, vinham críticas, mas sim preferiam mostrar na pratica o resultado do
pacientes de várias lugares. Beatriz teve de contratar novos trabalho que faziam.
funcionários. Nicolas lhe ajudava, era cuidadoso e quando tinha Em uma tarde, Beatriz fora surpreendida por Nicolas que
de colocar algum paciente em contato com os cavalos ele estava com ela queria conversar. Ele meio sem jeito lhe diz que está
sempre pronto para ajudar. gostando de uma moça da cidade chamada Isabel. Beatriz fica
Em uma tarde, Beatriz se surpreendeu com a visita de surpresa com o que escuta, e mais ainda quando ele diz que é
Leônidas a mulher e a filha. Elas foram levadas para conhecer o correspondido. Então ela fez questão de conhecer a moça. Agora
trabalho de Beatriz, e ela percebera que o tempo transformara ela entendia as saídas de Nicolas algumas tardes todo perfumado
Leônidas em um homem melhor, com maturidade, já não era e feliz. Naquele mesmo dia à tardinha, ele leva a moça para
egoísta como antes e demonstrava estar pronto para ajudar no que conhecer a sua mãe. Isabel era muito tímida, mas aceitou o pedido
fosse necessário. Beatriz passou a esquecer as magoas que foram de Nicolas. Nessa tarde tomaram chá. Beatriz simpatizou com a
dando lugar a uma amizade. moça ao perceber que era uma jovem recatada de boa família.
A nova família de Leônidas fora se aproximando de O namoro prosseguiu, mas Beatriz fez questão de
Beatriz e uma convivência harmoniosa se fez a cada dia. Beatriz conversar com os pais de Isabel sobre Nicolas e percebera que ele
sabia que esse contato era importante para Nicolas que ficou feliz já havia conquistado a família da moça. Eles não demonstravam
ao reencontrar seu pai e também ao saber que tinha uma irmã. nada contra o namoro. Nesse dia, Beatriz se sentiu feliz. O que
Assim, Beatriz esqueceu as magoas seu coração não guardava estava acontecendo provava que seu filho poderia ter sua própria
rancor. família, e que Nicolas já não era tão infantil quanto parecia. Ela
Após a separação de Leônidas ela optou por ficar só e percebeu também que fora o reencontro com o pai que contribuiu
preencheu o seu tempo com a dedicação ao filho e ao trabalho que para a evolução do filho. Desde que Leônidas apareceu se
tanto amava. Ela contava com a ajuda de seu irmão Pedro o qual mostrou bem presente na vida do filho. Era como se ele quisesse
ela tinha total confiança e também em sua amiga Celina. recuperar o tempo perdido e isso deixava Nicolas mais seguro e
Nicolas era a prova de que tudo era possível, quando se feliz.
acredita que possa melhorar e Beatriz e Celina acreditavam que os
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Em uma festa de família, Nicolas leva a namorada e fez sua amiga são avisados do ocorrido. Leônidas também é avisado
questão de apresentar ao pai e a sua irmã. Leônidas quando vê o ele vai até o hospital levando Nicolas com ele. É um momento
interesse do filho pela moça, sente que Nicolas vai precisar de difícil principalmente para Nicolas que é tão apegado a mãe.
ajuda para se tornar independente financeiramente, então resolve Beatriz é operada e seu estado de saúde é delicado. Celina
montar uma loja de decorações para o filho e junto a ela um permanece ao seu lado onde fazem de tudo para que se recupere,
atelier para que Nicolas produza seus quadros. A ideia de mas nem tudo acontece como se espera. Beatriz em um momento
Leônidas dá certo. Na loja, trabalha Isabel junto com Nicolas. de lucidez pede para ver o filho e também para conversar com
Passado um tempo se casam e conseguem se manter. Leônidas.
Quando ela vê o filho, ela diz a ele que o ama e que
Beatriz se surpreende com a atitude de Leônidas e percebe que
sempre estará por perto. Que ele nunca duvide disso, e quando
realmente ele se tornou uma pessoa melhor.Nicolas não consegue
fala com Leônidas ela lhe pede que tome conta de Nicolas. Que
abandonar os cavalos que tanto gosta e sempre arruma um
também ajude o irmão e Celina a manterem a instituição. Após a
tempinho para estar com eles e a mãe.
conversa e ter escutado de Leônidas que sempre olhara pelo filho
Quando está com Isabel, ela se queixa de enjoos e mal e ajudaria na instituição, ela parte deixando em todos profunda
estar e ele procura a mãe para conversar sobre isso. Beatriz saudade da grande mulher que acreditou na força do amor, na
percebe que será avó,e não consegue conter tamanha alegria. energia da natureza e dos animais em benefício do ser humano.
Nicolas fica sem entender porque a mãe ficou feliz com o mal
estar de sua esposa, e quando Beatriz lhe diz que ele será pai, ele
não sabe se sorri ou se chora. Quando a gravidez se confirma
Nicolas corre gritando: “Eu vou ser pai, eu vou ser pai”.
A gravidez de Isabel é tranquila e nasce Carolina. Nicolas
não consegue conter a alegria com a filha nos braços, chora e
mostrando-a para a mãe. Nesse momento, chega Leônidas com
sua mulher Lurdes e a filha Monique que fica radiante de
felicidade ao ver a sobrinha. Beatriz observa e fica feliz, ela sabia
que agora Nicolas tinha uma família completa.
Passado um ano, Beatriz diz ao irmão Pedro e a amiga
Celina que precisa fazer uma viagem para fazer um curso o qual
ela tem interesse, e será bom para o seu trabalho. Deixa tudo
organizado para o tempo em que estiver fora. Vai à casa do filho
antes da viajar, brinca com a neta e segue viagem. Nesse dia
chove muito e ocorre um acidente envolvendo o carro de Beatriz.
Ela fica gravemente ferida é levada para o hospital. Seu irmão e
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O ENCANTADOR DE SERPENTES seu leito de morte. Triste,Benjamim se despede da avó que


parecia apenas estar em um sono profundo.
No sul da Itália em uma tarde fria onde o vento soprava Com o passar do tempo tudo seguia seu curso, mas
tirando das árvores o ranger de seus galhos, nasce Benjamim, Benjamim percebera que seu pai não estava bem, andava cansado
filho de Beatriz e Benedito. e desanimado. Preocupado,Benjamim queria que procurasse um
O menino era frágil, nasceu muito pequenino. Sua avó médico, mas o pai teimoso dizia que tudo ficaria bem, que iria
Gema, fizera o parto e temia que ele não sobrevivesse, mas o tomar um chá que sua mãe lhe ensinara, mas mesmo com os chás
menino trazia consigo uma força interior e uma luz que o que sua mulher Beatriz lhe fazia, seguia com o mesmo mal estar.
iluminava. Benjamim aos poucos se mostrava forte, deixando a Benjamim fora pastorear as ovelhas, mas estava
todos admirados. Aquele ser tão frágil, demonstrava-se forte, era preocupado. Algo o inquietava, mas seguiu como sempre fazia.
o desejo de sobreviver. As ovelhas o seguiam ao som da flauta que parecia ser mágica.
O inverno aquele ano foi muito rigoroso como todos os Nesse dia ele se senta embaixo de uma árvore para
outros, e todos temiam pelo menino. A avó Gema aquecia panos descansar um pouco enquanto as ovelhas pastavam. Então pegou
para que a filha envolvesse o menino e o mantivesse bem perto de sua flauta e começou a tocar com os olhos fechados e viajou ao
seu corpo para que permanecesse quentinho. som da música. Nessa viagem ele vê Gema, sua querida avó, e ela
O inverno era rigoroso e Benedito sempre estocava lhe diz: “Meu neto querido, você precisa ser forte. Tua mãe e teus
alimentos porque sabia que com o frio tudo era mais difícil e os irmãos vão precisar de ti”, ele abre os olhos espantado com as
alimentos mais escassos. A família vivia do cultivo da terra e da palavras da avó e mais espantado ainda quando percebe que em
criação de ovelhas. sua volta várias cobras o cercavam, nesse momento ele sente que
Quando a primavera chegou, tudo se tornou mais bonito. precisa tocar. Pega a flauta e dá início a música. Ele lembrou que
Os campos verdes se misturavam ao colorido das flores que dava quando criança, escondido do pai, muitas vezes tocou e as cobras
uma beleza inigualável ao lugar. Foi nesse lugar que Benjamim se reuniam parecendo gostar da música.
cresceu. Ele era o primeiro dos cinco filhos de Benedito, e desde Ele aos poucos se retira pensando em uma maneira de se
criança ajudava o pai na lida com as ovelhas que o livrar das cobras. Não poderia chegar em casa com elas. Daria um
acompanhavam ao som de sua flauta que parecia encantá-las. Elas susto em sua família e também espantaria as ovelhas que próximo
o seguiam pelos campos verdejantes naquelas manhãs de dali pastavam.
primavera. Então ele segue tocando e se afastando do rebanho que
A flauta era presente da avó Gema e ele a guardava como pastavam calmamente e as cobras o acompanharam, quando
uma relíquia, pois essa pertencera a seu avô Josefe. Gema adorava estava bem distante ele silencia a música e retorna correndo para
vê-lo tocar, e seu último pedido antes de sua morte foi que recolher as ovelhas e seguir apenas com elas para a sua casa.
Benjamim tocasse para ela uma bela música. Assim ele o fez em
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Quando lá chega,Benjamim vê um movimento estranho. Ele se lembrou do festival que era feito na cidade de
Alguns vizinhos ao se aproximarem veem o seu pai sobre a cama Murato, próximo de onde moravam e que esse festival tinha
e todos muito tristes. Nesse momento ele se lembra das palavras vários espetáculos, reunindo turistas de vários lugares. Então ele
da avó Gema, abraça a mãe e chorando, vai ao encontro do pai. decidiu recolher algumas cobras como viu no sonho e treinou com
Com sua flauta, ele sentado ao lado da cama toca a música elas. Sua mãe temia não só por ter medo das cobras, mas por
preferida do pai. Em sua doce inocência Benjamim acreditava que achar que o filho corria perigo, mas Benjamim acreditava que
a música o conduziria em paz para o seu descanso. Ele tocara tudo daria certo.
como fizera com a avó. Foi para a cidade e se inscreveu no festival, onde se
Benjamim sentiu em seus ombros o peso da reuniam artistas de várias partes da região. Na hora de se
responsabilidade. Agora sendo o mais velho, era ele que precisava inscrever foi a ele perguntado: “Comodevemos apresentá-lo?”, e
ajudar a mãe a comandar tudo ali, assim como o pai fazia. Suas ele prontamente respondeu: “Benjamim o encantador de
irmãs Celina e Laura ajudavam a mãe, Ronaldo e Roberto ainda serpentes”. O homem fica meio espantado já que as cobras eram
eram crianças, precisavam dele. temidas por muitos da região.
O pai fora enterrado ali mesmo na propriedade ao lado de Benjamim em casa trata as serpentes com muito carinho,
Gema. Nos momentos difíceis,Benjamim se sentava em uma as alimenta para que fiquem calmas e faz a demonstração para a
pedra próxima à sepultura e com sua flauta tocava a música mãe e os irmãos. Eles ficam admirados com a dança das serpentes
preferida do pai. Ali ele ficava por algum tempo. Sua mãe o ao som da música. Pareciam nem acreditar no que
observava, mas o deixava quieto. Ela sabia o quanto estava sendo viam.Benjamim sorrindo lhes diz: “Vão ver. Vou conseguir
difícil para todos eles a falta do pai e mais ainda para Benjamim algum dinheiro com elas”.
por ser o mais velho. O festival se aproxima e ele estava ansioso, mas algo lhe
O inverno se aproximava e Benjamim sabia que era uma dava a certeza de que tudo daria certo. Ao sonhar com a avó ela
época difícil. Pensava como seria agora sem o pai. Antes já era lhe ensina um remédio caso aconteça algum acidente de alguém
tudo tão difícil. Ele olhava para as montanhas e sentia medo de ser picado por uma das serpentes. Ela também lhe diz: “Respeite
não conseguir fazer tudo o que o pai fazia, mas ele sabia também as serpentes e elas te respeitarão. Dê a elas amor e alimento e elas
que precisaria ser forte. retribuirão com a dança para o teu sustento”.
Em um sonho, ele se vê entre pedras com um grande No dia do festival,Benjamim foi apresentado: “E agora
cesto. Dentro, serpentes que dançavam ao som da música por ele com vocês, o encantador de serpentes”, os turistas ficaram
tocada em sua flauta. Ele pensa no sonho e se lembra que as admirados com o comportamento das serpentes que seguiam o
cobras lhe obedeciam ao som de sua flauta, então percebe que ritmo da linda música por ele tocada. A apresentação fora um
poderia ganhar algum dinheiro com elas e ajudar nas despesas da sucesso. Benjamim retorna a casa com dinheiro ganho, e leva
casa.
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também agrados para a mãe e os irmãos, e assim foram todos os Em uma tarde Benjamim teve de ir à cidade e Ronaldo
dias do festival que sempre reunia vários turistas. saiu com as ovelhas, e levou com ele o irmão mais moço,
Um dia seu Bartolo, o dono de um famoso restaurante da Roberto. Sua mãe lhe fizera várias recomendações, mas nesse dia
cidade, vendo o sucesso das apresentações faz a ele uma proposta um trágico acidente acontece. Roberto se afasta do irmão e sobe
de se apresentar algumas noites em seu restaurante, onde ele nas pedras que ficavam na montanha, escorrega e cai. O barulho
costumava receber vários turistas. Benjamim aceita a proposta e das pedras chama a atenção de Ronaldo que corre para ver o que
combinam com ele os dias de apresentação. O jovem Benjamim ouve e vê que o irmão está caído entre as pedras, vai ao seu
vê na proposta uma maneira de ganhar mais dinheiro e ajudar a encontro e percebe que ele bateu forte com a cabeça. No chão,
família. uma poça de sangue, Ronaldo se desespera ao perceber que o
Quando retorna para casa e fala da novidade, todos ficam irmão não respira Ele estava morto.
contentes. Sua mãe Beatriz, sente orgulho do filho, que desde a Nesse momento,Benjamim chega a casa e vendo a
morte de seu pai tem lhe ajudado no sustento da casa. Ele é preocupação da mãe, vai ao encontro dos irmãos. Quando lá
determinado e não se deixava abater. Sempre dizia que as coisas chega, vê Ronaldo chorando compulsivamente com o irmão no
iriam melhorar e assim iam vivendo. As ovelhas lhes rendera colo. Ao se aproximar, ele lhe conta o ocorrido.Benjamim tenta
também algum lucro. Tinham a terra, onde dela tiravam muitos consolar o irmão e com ele chora buscando forças para enfrentar
alimentos e todos na casa ajudavam no plantio e na colheita. O aquela tragédia. Ele sabia o quanto seria difícil chegar em casa
que faltava Benjamim levava da cidade. com o irmão morto, mas o pegou no colo e seguiu em direção de
Na lida com as ovelhas seu irmão Ronaldo o sua casa. Lá chegando, a mãe percebe que Benjamim carrega no
acompanhava, e com ele tudo aprendeu sobre elas. Como colo o irmão desfalecido. Todos choram juntos a perda. É um
conduzi-las com tranquilidade. Quando retornavam, a mãe lhes momento de profunda tristeza.
aguardava com uma simples, mas saborosa refeição. Após ser tudo providenciado para o enterro, Benjamim
Nas horas vagas,Benjamim tocava sua flauta e as toca para o irmão como fez com a avó e seu pai. Por alguns dias
serpentes dançavam. Era um momento mágico. Sua flauta parecia ele não fora se apresentar na cidade como sempre fazia, ficou em
tocar profundamente aquelas serpentes, também as ovelhas que se casa com a mãe e os irmãos, sabia que eles precisavam dele e que
tranquilizavam ao som daquela música, até os pássaros pareciam ele precisava ser forte.
mais alegres ao ouvi-lo tocar. Entoavam suas canções A morte do irmão não foi superada pela mãe. Ele sempre a
misturando-se ao som da flauta, era lindo de se escutar. encontrava pelos cantos chorando. Em um desses dias, ao se
Com sua flauta,Benjamim ajudou sua família. Tinha em aproximar ele chorou junto com ela e lhe disse: “Sei que é muito
sua vida momentos felizes e descontraídos junto a eles e também difícil pra senhora, mas também é pra nós. Precisa ser forte.
os momentos de profunda tristeza, como as perdas. Ficamos ainda mais tristes ao te ver assim”. Após esse dia Beatriz
se mostrou mais forte, escondendo um pouco sua dor.
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A vida prosseguia e Benjamim retornou as apresentações Celina aos cuidados da mãe dá a luz a um lindo menino, o
como encantador de serpentes que era um sucesso. Os turistas qual ela da o nome de Benedito, em homenagem ao seu pai.
ficavam encantados com o que viam. Nos dias da apresentação, Beatriz fica feliz com o neto e também pela homenagem que ela
ele ganhava várias gorjetas dos turistas, além do que era pago faz ao pai, e com o menino nos braços ela pensa no marido, o
pelo proprietário do restaurante. Com o dinheiro,Benjamim quanto estaria feliz com o neto tão lindo. Passado alguns dias,
ajudava nas despesas da casa e ainda comprava agrados para a quando a filha já estava forte, Beatriz retorna a casa, onde
mãe, as irmãs e o irmão. Benjamim e Ronaldo a aguardavam. Ela estava tão feliz com a
Passado um tempo, as irmãs pedem para ir à cidade chegada de seu neto querido.
comprar tecido para fazerem umas roupas. Elas eram jovens Mas, Passado um tempo, Benjamim percebe que sua mãe
vaidosas, gostavam de estar sempre arrumadas. Foi na cidade que não anda bem. Ela apresenta um mal-estar que deixa os filhos
Celina conheceu Pedro, um comerciante viúvo, que por ela ficou preocupados. Ele a leva em um médico na cidade, este faz
encantado. Ela também demonstrou interesse por ele. Uns dias, recomendações de repouso até que os exames fiquem prontos.
após a ida à cidade, Benjamim lhe entrega flores enviadas por Beatriz acostumada à lida, não quis ficar na casa da filha
Pedro e junto, um bilhete que dizia estar encantado pela jovem, aguardado os exames, preferiu retornar. Segue com o filho para
que se fosse de sua vontade, gostaria de lhe conhecer melhor. sua casa, onde escondida deles, fazia seus afazeres.
Benjamim sabia que Pedro era uma boa pessoa que suas Em uma tarde, Beatriz se sente mal e fica de cama.
intenções eram as melhores e não se opôs. Passado um tempo, se Benjamim andava preocupado cada vez que sonhava com a avó e
casaram. Ela foi morar na cidade com ele. Com a irmã morando ela lhe dizia para ser forte ele sabia que algo iria acontecer.
na cidade, Laura a visitava com frequência. Foi na cidade que O estado de saúde de Beatriz se agrava ela pede para ver
conheceu Cristiano, um turista que ficara ali por um tempo as filhas, mas apenas Celina chega. Laura estava longe em uma
tratando de negócios. O tempo que ali esteve, conheceu Laura e viagem com o marido e não chegara a tempo de pegar a mãe viva.
passaram a namorar apaixonado. Cristiano deseja que ela case Novamente o coração de Benjamim se enchera de tristeza.
com ele e o acompanhe, e assim ela o fez. Antes de preparar a mãe para o funeral ele toca para ela sua flauta
Um tempo depois, em casa, Benjamim percebe que a mãe como fez com todosos outros. O som da flauta também
anda triste e pensativa Ele fica preocupado, já fazia algum tempo expressava seu choro contido naquele triste momento. Quando a
que ele não via ela assim. Conversa com o irmão e resolvem falar mãe foi enterrada,Benjamim se sentou na pedra próxima a
com Celina, está leva a mãe para ficar uns dias com ela na cidade, sepultura e disse que sempre que se sentisse só e triste ali iria
já que estava preste a dar à luz. Beatriz concorda em passar um tocar porque ele sabia que estaria perto das pessoas que tanto
tempo com a filha até que ganhe o filho e tudo fique bem. amou.
Benjamim sempre a visitava, nos dias em que na cidade se Benjamim, junto ao irmão seguiram suas vidas. Ronaldo
apresentava. arrumou uma companheira que ali com ele ficou.Benjamim
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preferiu ficar só com sua flauta e seus animais, com eles ele OLHOS DA ALMA
encontrava tranquilidade e uma paz que o motivava a viver.
Por onde passava com sua flauta ele deixava essa paz e Em uma terra hostil, de lutas pelo poder, nasce Karolina,
por todos fora conhecido como “Oencantador de serpentes”. filha do soberano Cristofoli e de Katarina. Karolina era doce,
Quando já velho e cansado, caminhou pela propriedade e trazia consigo uma grande sensibilidade, talvez pelo fato de não
na pedra próxima as sepulturas dos pais, tocou para ele mesmo a ter a visão, ela tinha uma luz própria e um sentido aguçado que
música que o conduziria ao descanso do corpo e com a música lhe permitia caminhar pelo lugar onde morava percorrendo o
sua alma partia. caminho como se visse com os olhos da alma.
Quando criança, ao perceberem que Karolina não tinha a
visão, seus pais ficaram tristes, imaginando que a filha nunca
conseguiria ser feliz, pois não tinha o que achavam essencial que
era ver o que lhe cercava, mas Karolina lhes mostrou com o
tempo que a felicidade está dentro de nós. Ela não dependia do
que via, mas do que sentia em seu íntimo, e nesse Karolina era
feliz. Ela tinha o que muitos não tinham a pureza e a paz de
espírito.Seus pais aprenderam com ela o que nunca imaginaram
existir, a sensibilidade e o poder da mente humana.
Karolina também tinha um irmão chamado Ciro que
sempre a protegia e também com ela muito aprendeu. Ele que
achava que tudo sabia, se rendeu ao que sua irmã trazia consigo, o
poder do desconhecido que assustava, mas também encantava o
pressentimento futuro o dom da vidência. Ela tinha dons que
nunca imaginaram que poderia existir em alguém de sua família e
por isso eles a protegiam tanto, pois sabiam o quanto poderia ser
perigoso se tudo viesse à tona. Temiam por todos e
principalmente por Karolina.
Na época em que viviam, pessoas com dons especiais
eram consideradas bruxas e sempre eram punidas com a morte.
Morreram tantos inocentes que apenas desejavam o bem de todos,
mostrando o poder do desconhecido que poderia evitar tanto
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sofrimento, mas o lado sombrio das pessoas gritava mais alto e os exército para que o aguardem de vigia. Lucios que imaginava a
seres especiais eram perseguidos e mortos queimados ao fogo. todos pegar de surpresa fica admirado, e acredita ter entre eles um
Cristófoli, que a tantos havia mandado matar por serem traidor. Como o inimigo descobriria que ele se aproximava na
considerados bruxos, percebe que foram inocentes que perderam calada da noite? Fora uma longa batalha com muitos mortos e
a vida e não seres do mal como o fizeram acreditar. Ele percebe isso entristecia Karolina que sempre desejou paz para seu povo.
isso por ver na filha os mesmos sinais dos que foram mortos e se O exército de Lucios se retira e Cícero comemora junto a
pergunta: como poderia a sua filha sendo assim, fazer algum mal? seus homens. Mas seria o fim daquela guerra ou apenas uma
Sempre percebeu um excesso de bondade, pureza e amor, trégua do inimigo?
e fora isso que o fizera refletir sobre os tantos que foram mortos. Passado um tempo, é dada uma festa no palácio e chega ao
Foi então que ordenara a todos que não haveria mais mortes a não local Petrus, acompanhado de sua mãe Zoar. Homem simples,
ser aos que realmente fizessem mal ao semelhante. E os mesmo vivendo na realeza com sua mãe. Criado com todas as
curandeiros que antes se escondiam se sentiam livres para ajudar regalias de um nobre, mas com alma pura e simples. Foi ele que
os que sofriam sem ter medo de uma punição. despertou em Karolina o amor. Quando ele a viu, sentiu algo
Cícero se alegra com a atitude do pai. Ele sabia que assim diferente. Então pede a sua mãe que a apresente, deseja conhecê-
sua irmã estaria segura e que muito poderiam aprender com ela la. Ao ser apresentado, ela sente em sua voz doce algo que lhe
que se mostrava tão especial. toca profundamente como se aquela voz já lhe fosse familiar.
Karolina era uma jovem linda cabelos cacheados crescera Ao conversarem, aos poucos ele percebe que ela não tem
no palácio e ali se sentia feliz. Tudo parecia calmo, mas der visão, mas isso a ele não importava naquele momento em que por
repente Karolina passou a ter uma visão, onde muito sofrimento ela estava encantado. Ele fica surpreso quando ela lhe convida a
se mostrava. Lutas e disputa de terras. Era o ambicioso Lucios dançar aquela música que tocava.
que se aproximava com seu exército. Ele desejava uma aliança Era como se ela adivinhasse o pensamento de Petrus, que
com Cristofoli para que pudessem governar juntos aquelas terras, ficou com receio de convidá-la a dançar e no mesmo instante ele
e para isso a mão de sua filha seria o elo entre eles, mas Karolina lhe diz: É o que desejo, mas pensei que não fosse aceitar.” Ele a
ao conhecê-lo sentiu uma nuvem negra que o acompanhava. conduz ao centro do salão e se entregam a música, encantando a
Ela diz ao pai que não deseja Lucios como seu esposo e todos que admiravam o belo casal. A partir daquele dia ambos
seus argumentos convencem seu pai, mas não a Lucios que a trocam pensamentos como se aquele momento mágico
deseja perdidamente após tê-la conhecido, e o desprezo da jovem permanecesse em suas memórias.
aumenta ainda mais o seu interesse por ela. Então ele resolve Passado um tempo,Pietrus sente uma vontade louca de
tomar o reino e tela mesmo que a força. encontrar Karolina que lhe tocou tão forte o coração.
Karolina fala a seu pai e a sua mãe Katarina que vê a Incentivando pela mãe, ele a visita no castelo. Karolina não sente
imagem do inimigo se aproximando. Seu pai alerta todo o seu surpresa, pois já sabia que ele iria ao seu encontro, mas mesmo
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assim sente seu coração disparar quando escuta sua voz percebe Pietros nem imaginava o perigo que corria a cada visita
que se dá início a um amor puro e profundo como os dos contos que fazia ao palácio. Karolina temerosa pedia que ele tomasse
de fada. cuidado ao andar pela noite aos arredores do castelo. Ela conta a
Karolina já não consegue esconder o amor que sentia pelo ele da visão e ele diz: “Não tenha medo. Ninguém me afastara de
jovem rapaz. Seus pais ao descobrirem o motivo da alegria da você”.Nesse dia ela sentiu uma angústia e novamente a visão.
filha, resolvem falar com Petrus que ao conversar com Cristofoli Passado alguns dias, um mensageiro vai ao palácio.
fala de suas reais intenções para com sua filha. Após aquela Karolina sente como se parte sua fosse arrancada. O mensageiro
conversa, Petrus passa a frequentar o castelo e fazer a corte a sua faz a entrega e se retira. Quando Cristofoli abre a caixa, dentro
amada. A cada visita ele percebe o quanto a desejava e Karolina está a cabeça de Petrus e um bilhete que dizia: “Negaste a mim a
não consegue esconder também seu desejo por ele. mão de tua filha, pois ela não será de mais ninguém. Em breve
Em uma tarde onde a brisa soprava suave e os pássaros buscarei o que me pertence”, o bilhete era assinado por Lucios.
entoavam uma bela canção, Karolina se deixa possuir pelo Cristofoli enfurecido pede aos soldados que se reúnam e a
amado. Tudo era tão perfeito.Petrus era delicado e sua mulher Katarina que dê a triste notícia a sua filha Karolina
cuidadosamente a toma nos braços e se entregam ao amor, que a que não pode conter a dor que sentia por perder seu grande amor.
partir daquele dia parecia mais forte. Não era apenas desejo, era Ela diz à mãe que morrera com Petrus parte de sua alegria.
muito mais. Era algo que não conseguiam explicar, apenas viviam Karolina diz ao pai que Lucios vem com toda a sua fúria
aquele momento como se fora único e o mais importante. E assim para invadir o castelo. Ela podia sentir que vários homens
foi a cada encontro. morreriam pela ganância de apenas um homem. Nesse dia ela
Mas toda aquela felicidade estava perto de acabar. também sente uma luz em seu ventre e percebe que parte de seu
Karolina passou novamente a ter as visões. Ela via uma imensa grande amor permanece com ela.
nuvem que se aproximava do castelo e temia por todos. Nas Zoar ao saber que uma batalha iniciaria, reforça o exército
visões ela também viu Lucios com a cabeça de seu amado nas de Cristofoli, pois ela desejava vingar a morte de seu filho que
mãos. Desesperada, ela grita por sua mãe que corre ao seu covardemente fora morto. E assim formam uma fortaleza que
encontro e aos prantos ela diz que viu que perderia seu grande surpreende Lucios que, obcecado por Karolina,insisti em tomar o
amor. Sua mãe lhe escuta sem saber o que dizer apenas tenta castelo, mas percebe que não será fácil chegar ao seu objetivo e
acalmar a filha Todos ficam em alerta no castelo para se houver fica sempre pela volta como uma sombra, buscando o momento
novo ataque. certo de se aproximar. Não sabia ele que era a mulher que tanto
Lucios ao saber que Karolina se casaria, fica furioso e jura desejava que protegia o seu povo, com suas visões do perigo ela
que o casamento não irá acontecer, se ela não for dele não será de alertava o pai e foi assim por muitos anos.
mais ninguém. Quando Karolina deu a luz ao menino filho de seu grande
amor, Zoar fez questão de estar no castelo, pois a criança era o
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que restara de seu filho amado. Quando o neto nasceu, Zoar o onde Pietrus entregava ao filho uma espada dourada e dessa
agarrou emocionada e o apresentou à lua dizendo como era a espada saía uma luz forte, e que haveria o momento onde a
tradição de seu povo, esse é mais um filho seu que nasceu para nuvem negra precisaria ser contida e o seu filho precisava se
trazer paz para o nosso povo. Karolina feliz dá o nome Pietrus ao preparar. Seria ele que empunharia a espada que livraria seu povo
filho. da grande ameaça.
Cristofoli e Katarina dão a notícia ao povo do nascimento E assim o jovem rapaz se preparou, foi treinado por um
de seu neto e uma grande festa foi dada como era a tradição de amigo de seu avô que era considerado um dos melhores lutadores.
sua família, com muito vinho e comida. Ele percebera que Pietrus tinha uma grande agilidade com a
O tempo passou, e Pietrus se tornara um jovem forte muito espada e isso foi trabalhado. O rapaz se tornou o melhor lutador
parecido com o pai. Karolina se orgulhava do filho, assim como o do reino. Sua avó Zoar dizia que se o pai dele fosse vivo teria
avô Cristofoli que dizia: “Esse será o braço direito de Cícero orgulho do filho.
quando eu partir e governarão juntos essas terras com punho forte Pietrus era jovem de bom coração. Achava que tudo
como eu sempre fiz”. poderia ser bem melhor se não houvesse as guerras, mas nem
Ali, junto à mãe,Pietrus cresceu brincando entre as todos pensavam assim. Havia homens como Lucios, gananciosos,
muralhas do castelo. Ele sempre perguntava pelo pai e ela tentava que acreditavam que muita coisa poderia ser conseguida através
esconder a verdade, mas houve um momento em que ela sentiu das lutas e assim sempre havia disputas por terras e poder. Pietrus
que precisava lhe contar da morte do pai, de como fora morto e sabia que se não protegesse o seu povo haveria muito sofrimento.
por quem. Ele a escutou em silencio. Assim, junto ao seu tio Cícero resolveram dar fim as invasões de
Zoar desejava que o neto fosse governar ao seu lado o que Lucios.
fora de seu pai, mas Pietrus apegado a mãe temia ficar longe, pois Quando este chega novamente com os seus soldados, são
cresceu escutando as histórias de tentativa de invasão do castelo e esperados para nova batalha, e foi nessa batalha que Pietrus fica
temia que tudo retornasse como tempos atrás, onde seu pai fora frente a frente com o inimigo. Ao olhar Lucios nos olhos o rapaz
morto. Ele sentia em seu coração que um dia ficaria frente a frente se lembra do modo covarde como o pai fora morto. Ele se
com o inimigo que covardemente matou seu pai. Sentia também aproxima do inimigo e diz: “Olhe bem para mim. Eu darei a você
que seria o homem que cessará as tiranias de Lucios que por o mesmo fim que o senhor deu a meu pai”. Lucios dá uma
tantos era temido. gargalhada e diz: “Você vai me matar?Pois eu vou cortar sua
Pietrus sente uma força interior que o impulsiona e essa é cabeça e enviar a seu avô assim como eu fiz com o teu pai”.
reforçada nas noites de lua cheia. Ele sente na lua uma energia Eles descem dos cavalos e começam a lutar. O que Lucios
que não conseguia explicar, apenas guardava para si o que sentia, não esperava, era que aquele jovem fosse tão ágil no manuseio da
mas sua mãe Karolina sabia que seu filho tinha uma linda missão espada. Ele nunca havia enfrentado alguém assim. Enfurecido,
junto ao seu povo. Isso foi mostrado a ela em uma de suas visões, não querendo perder a luta para aquele jovem, ele age de maneira
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desonesta. Joga nos olhos do rapaz areia e o fere no braço. Nesse mãe, mas fica pensando será que a filha herdará da mãe o mesmo
momento, Karolina sente a dor do filho e ora para que ele tenha dom...
força para vencer o inimigo. Mesmo com a visão
embasada,Pietrus acerta Lucios que cai aos seus pés. A luta
acabara naquele momento. Os soldados se retiraram levando seus
mortos, o povo comemorou a vitória junto a Pietrus e Cícero.
Karolina sentiu seu coração aliviado quando viu o filho
retornar apenas com um ferimento no braço. Naquele momento,
ao abraçar o filho, ela sentiu também que agora teriam paz. A
nuvem negra fora retirada e o povo tinha razão de comemorar por
eles e pelo povo de Lucios que viviam oprimidos por sua tirania.
Como desejava Cristofoli e Zoar, as terras foram
governadas juntas por Cícero e por Pietrus. O povo se sentia livre
e feliz, nas terras haviam fartura.
Em uma outra visão de Karolina, ela vê seu grande amor
caminhar ao seu lado, agarrando sua mão. Quando ela fala aos
pais, eles sentem uma profunda tristeza. Pouco tempo depois, o
filho encontra Karolina caída no pátio do castelo. As poucas
palavras que ela lhe diz são: “Meu querido, não chores. Tive a
visão de que teu pai me buscaria. Eu estou feliz, estarei com meu
grande amor, e você precisa continuar ajudando teu tio e teu avô.
O povo precisa de ti. Eu estarei em teus sonhos sempre que
precisar de mim”. Pietrus chora a morte da mãe assim como
Cristofoli e Katarina que não imaginam como será suas vidas sem
a filha querida.
O tempo passa.Pietrus casa-se com uma moça da realeza
chamada Isabel. Com ela tem dois filhos: Ana e Pedro. As
crianças adoram brincar no jardim do castelo e a menina diz ao
seu pai que sempre conversa com uma mulher muito bonita e
sempre lhe dá uma rosa, sorri e vai embora.Pietrus se lembra da
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FILHOS DO CORAÇÃO situação sempre doavam um pouco do que tinham, e assim fomos
sobrevivendo.
Com a guerra, várias crianças órfãs foram levadas para o Era um momento difícil, mas Tereza nos ensinou a ter fé
lar do Peregrino. Fundado por freiras caridosas, eu fui uma dessas que um dia tudo aquilo passaria e aos poucos passou.
crianças. Vi meus pais morrerem na guerra e sozinho, vaguei Construímos nossa horta e todos faziam questão de ajudar. Até os
pelas ruas e por uma freira fui amparado. Ela se chamava Tereza. pequeninos acho que sabiam a importância daqueles alimentos.
Era bondosa e me tratava com muito amor. Fui levado por ela Com o tempo o lar passou a ter ajuda de voluntários, e
para o lar. Lá havia várias crianças todas órfãs como eu. uma nova luz ali passou a brilhar. Algumas crianças tiveram a
O local era simples. Tínhamos alimentos e um lugar para sorte de serem adotadas, mas eu não posso dizer que tive essa
dormir. A comida não era farta. Devido à guerra faltava quase mesma sorte. Aos nove anos fui levado do lar. Diziam que eu
tudo. Aprendemos a viver com o pouco que tínhamos. Vi muitas teria um novo e lindo lar; me despedi de todos no momento de
crianças chorarem por falta de seus pais. Eu acabava chorando partir senti algo estranho, era como se alguém me dissesse: “não
junto a elas. A falta dos meus também doía em meu peito. Era vá”, mas o homem me agarrou pela mão e me levou.
nesse momento que Tereza surgia como um anjo em nossas vidas, No início tudo parecia lindo, mas com o tempo aquele
nos contava histórias e nos insinuou a rezar, perto dela sentíamos homem que parecia dócil passou a se mostrar agressivo e cruel.
proteção, amor e paz. Eu não o podia contrariar que levava uma surra. A mulher lhe
Já não era o mesmo com Juana a madre superiora, ela era fazia todas as vontades, não sei se era por medo ou por que era
uma mulher enérgica se não a obedecêssemos éramos punidos igual a ele. Ela me tratava também de forma hostil, sem
com algum castigo, nos impôs várias regras que tínhamos de demonstrar carinho nem afeto.
cumprir. Ele se chamava Atílio e me ensinou a cuidar de seu cavalo
Em uma noite eu me lembro da mesa posta. Tereza nos que tinha de estar sempre bem escovado. Eu não me sentia feliz
servia uma sopa rala com pequenos pedaços de pão colocados naquela casa. Sentia profunda saudade do lar onde eu vivia, do
dentro para que o caldo não parecesse tão fino. Senti a carinho de Tereza e até do mau humor de Juana. Eu já estava há
preocupação de todos, já não tinham quase nada a nos servir. meses ali, mas não me sentia como um filho adotado Eu não era
Nesse dia escutei Joana falando com Tereza e Heitor que também levado a nem um lugar nem fazia as refeições à mesa junto a eles,
ajudava no lar. Ela dizia que não poderia nos ter mais ali, que não sempre ficava junto aos empregados.
tinha mais o que nos servir e que todos passariam fome. Em uma manhã Atílio estava irritado. Pediu para que eu
Foi quando Heitor lhes disse que daria um jeito que não preparasse o cavalo. Quando eu lhe trouxe a cela estava frouxa.
poderíamos sair dali porque morreríamos, e com ajuda de Tereza Ele furioso me pegou pelo braço e gritou: “Você é um inútil. Não
e outras freiras saíram as ruas e trouxeram alguns alimentos serve para nada”, pegou o relho me espancou sem piedade.
doados por moradores do local, que comovidos com nossa
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Meus gritos não o faziam parar, até que um dos dia ela nos pediu que ajudasse Tereza na administração do lar e
empregados veio e disse: “Agora chega, se não parar o senhor vai prometemos que faríamos isso.
matá-lo”. Eu estava caído ao chão. Meu corpo ardia. Fui levado E assim trabalhávamos juntos e cumpríamos o que fora
por uma empregada chamada Sara para o quarto e ela me disse: prometido a Juana. Com o tempo, passamos a receber doações de
“Assim que der, vá embora volte para o lugar de onde veio. Com alguns empresários, conseguimos fazer boas reformas e acolher as
certeza deve ser melhor. Aqui nessa casa tu não serás feliz, crianças que ali chegavam com mais conforto. Algumas não
menino”. Ela me orientou de como eu poderia fugir, me preparou tinham pais, outras eram abandonadas por suas mães.
uns alimentos e água para a viagem. Procurávamos dar a elas amor e o lar que precisavam.
Regressei para o lar, quando lá cheguei, corri para os Eu sentia em Tereza a mãe que eu não tive. Seu amor me
braços de Tereza. Ela me acolheu como uma mãe tratou minhas fazia sentir forte. Eu sabia que era isso que as crianças
feridas e ali permaneci. Senti que ao seu lado muito poderíamos precisavam: amor, e era com muito amor que administrávamos o
fazer por aquele lugar, e eu fiz. Fui crescendo e ajudando em tudo lar do Peregrino. Tínhamos alguns voluntários como o doutor
que me fora possível. Acolhíamos com amor todos que ali Ciro e a enfermeira Ana, também um professor de música
chegavam. chamado Alberto que alegrava o lugar com suas aulas.
O sofrimento pelo qual passei me tornou um homem forte A parte do jardim e da horta eram cuidados por Heitor.
e justo. Aprendi tudo que a vida podia me ensinar, e nos livros o Algumas crianças adoravam trabalhar com a terra e faziam
que eu precisava para ajudar na administração do lar. Dediquei- questão de ajudá-lo.
me a Deus assim como Tereza. Preguei a palavra do Senhor nas Todos tinham ali deveres a cumprir, isso fazia com que o
ruas, nos lares. Mostrei em meus sermões a importância da trabalho não fosse cansativo, por que todos participavam, mas
caridade, o quanto um gesto caridoso poderia ajudar os menos também tínhamos momentos de lazer e diversão. O lar se
favorecidos. mostrava harmonioso, tudo era feito em comum acordo.
Os anos passaram. Todas as crianças de minha época se Os momentos de oração eram sagrados. Na pequena
tornam adultas e seguiram seu caminho. Restara ali apenas Bianca capela Tereza organizava o horário para se rezar. Era um
e eu, que também não quis partir. Sabíamos que Juana e Tereza momento de encontro meditativo com Deus e muito importante
precisavam de pessoas mais jovens para lhes ajudar e nos para todos nós. Nesse momento, eu sentia algo maravilhoso que
propomos a isso. Não ficamos apenas por gratidão, mas por amor. me levava a pregar e meus sermões eram escutados por todos com
Sentíamos que poderíamos fazer por outros o que fora feito por muita atenção. Sentia que minhas palavras os tocava
nós. Sabíamos que ali seríamos muito úteis. profundamente e pessoas que não faziam parte do lar passaram a
Com o passar do tempo Juana adoece e a doença a leva a frequentar a nossa humilde capela.
morte, mas antes de partir nos chamou para uma conversa e nesse
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Tereza ao ver isso me disse: “Meu filho, sinto Deus em Com o tempo, Bianca conhece Artur e com ele construiu
tuas palavras. Deveria expandir mais tuas pregações do uma família, mas nunca se afastou do Lar Artur sabia o quanto
evangelho, para que outras pessoas possam também ouvir”. era importante para ela dar continuidade aquele lugar e fez
Pensando no que Tereza me falou, resolvi construir o questão de ajudá-la. Ele era um homem honesto e também um
templo da luz. Perguntavam por que desse nome, eu lhes dizia bom administrador. Em suas horas vagas, sempre procurava nos
que era o que eu sentia nos momentos de oração muita luz nos ajudar no que fosse preciso. Tínhamos mais um aliado em nosso
tocando. belo trabalho.
O templo era simples, mas acolhedor. Passou a ser Eu olhava Tereza e Heitor já velhinhos e sentia um amor
frequentado por várias pessoas. Muitas iam movidas pela fé, tão grande por eles, por tudo que haviam feito por mim e todas as
outras, apenas curiosidade. Algumas encontravam ali a cura de crianças que por ali passaram e pedi a Deus que os abençoasse.
seus males, outras permaneciam com ele. Talvez faltasse a fé. Sentia que os teria por pouco tempo ao nosso lado e isso me deu
Sei que não agradei a todos. Alguns viam em mim um uma profunda tristeza. Percebi o quanto eram importantes para
mensageiro do Senhor, outros, alguém que poderia ser um mim e para o Lar.
falsário, mas o que pensavam não me importava.Sentia apenas Em nossa última conversa com Tereza, ela nos falou do
que deveria pregar e fazer minha parte. Mantive sempre minha orgulho que sentia de mim e de Bianca, que ela partiria em paz
humildade e pedia a Deus para que sempre me iluminasse e me por que sabia que o Lar estava em boas mãos. Poucos dias depois
guiasse pelo caminho do bem. ela faleceu. Foi um momento muito triste para todos nós. Ela foi
Fui tentado em minha jornada por pessoas gananciosas enterrada ao lado da irmã Joana como havia pedido. Algum
que viam na maneira como as pessoas me procuravam e suas tempo depois também perdemos Heitor.
devoções que tudo aquilo poderia ser lucrativo, mas não era o que O lugar não parecia o mesmo sem eles, mas precisávamos
eu queria. Eu apenas aceitava doações entregues diretamente ao continuar. Contratamos um novo jardineiro, Luiz, que passou a
Lar do Peregrino. Era o que nos ajudava a mantê-lo, tudo que nos cuidar do jardim com o mesmo amor com que Heitor o cuidava.
era doado era ali que era investido. Em minhas orações eu conseguia sentir a energia de
Minhas pregações me tornaram conhecido e muitos Tereza e Heitor ao meu lado e isso me deixava feliz e me dava a
vinham até mim. Tive seguidores e também os que eram contra certeza de que algo existia após a morte. Na minha passagem pela
minha pregação. terra, não quis construir uma família. Sentia no Lar e todas
Na vida fazemos amigos e inimigos que muitas vezes nem aquelas crianças a minha família. Não senti falta do sexo pôr o
entendemos o porquê, mas existem no lado escuro do homem. qual tanto os homens corriam atrás, senti que vim a terra para
No lar, na cabeceira da mesa posta, eu tinha ao meu lado pregar a palavra do senhor e preferi me manter puro, sem as
Tereza e Bianca e todas as crianças que ali abrigávamos, nos tentações da carne, não que eu fosse contra a vida a dois pelo
sentíamos felizes em poder dar aquelas crianças o melhor de nós.
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contrário abençoava os casais que me procuravam e também aos Nossa conversa me deu certa tranquilidade, e segui para o
seus filhos, mas nem todos vem ao mundo para constituir família. templo da Luz. Tive vontade de meditar e nesse momento senti
Aprendi a amar o lar e todos que ali moravam. Via em que não estava só. Tereza estava ao meu lado. Ela não me disse
Bianca uma irmã, eu a admirava. Ela ajudava a administrar o lar nada, mas senti preocupação em seu semblante. Nesse dia fui
como se fosse sua própria casa e mesmo tendo sua própria família levado a um lugar lindo. Caminhei entre flores escutando o
se manteve fiel ao que havia prometido a Tereza. barulho da água que caía cristalina de uma fonte. Segui por aquele
Segui meu trabalho e minhas pregações nas quais eu sentia caminho e logo à frente, vi um homem com barba e cabelo
a muitos contrariar. Acreditava em Deus e em uma energia que branco, um semblante tranquilo. Ele me mostrava duas espadas
nos envolvia e nos permitia fazer pelo próximo algo de bom. uma negra a outra dourada.
Quando passei a falar do que nos aguardava após a morte, passei Retornei da meditação e fiquei pensativo. O que queria me
a ser por alguns criticado, mas mesmo assim, os que assistiam dizer?Porquê das espadas?
meus sermões sentiam em seus corações, verdade em minhas Com o passar do tempo, percebi o que queriam me dizer.
palavras. O país passava por nova crise. Lutas e morte. Em meus sonhos eu
Não quis transformar os incrédulos, quis apenas mostrar o via o barulho das espadas e suas cores. Parecia ser uma luta entre
porquê eu estava aqui. Acho que consegui, no meu modo de o bem e o mal. Andei em meio a todo aquele sofrimento e me
viver, ensinar um pouco do que vinha a mim em meditação. Era perguntava qual o sentido das guerras? O mundo poderia ser tão
nesse momento que eu buscava respostas e orientação. mais bonito se houvesse mais amor uns pelos outros. Cada vez
Fui por muitos considerado um louco, por outros, que eu encontrava corpos pelo chão, me vinha à mente as lutas do
respeitado. Os que me seguiam sabiam o que eu lhes falava, por sonho.
que já haviam encontrado a paz interior. Ao aprenderem a se Temi por minhas crianças. Tive medo que o Lar fosse
conhecer um pouco mais mergulhados em alguns minutos de invadido, mas em meditação algo me acalmava. Eu vi a minha
silêncio e oração. frente um guerreiro com espada dourada, luz e proteção. Senti que
Segui minha vida e no Lar, sentado no jardim, eu o lugar estava seguro.
observava as crianças interagindo umas com as outras. Elas Quando me aproximei de Bianca, percebi sua aflição.Eu
estavam felizes. Nesse momento, Bianca sentou-se ao meu lado, disse a ela que tudo ficaria bem, mas que mantivesse as crianças
conversamos por longo tempo. Eu lhe falei do quanto o lugar sempre em casa. As ruas estavam perigosas. As pessoas temiam
estava lindo que dava para sentir a felicidade das crianças. Nós por suas vidas e também a vida dos seus.
conseguimos compensar a falta de seus pais com carinho e amor. O templo que antes lotava, agora alguns poucos
Conversávamos se após nossa morte o lugar prosseguiria. Bianca, permaneciam fiéis. Parecia que as pessoas sentiam medo de
sorridente, me disse: “Se esqueceu que já tenho dois filhos? Vou expressar sua crença, mas eu sentia necessidade de continuar
ensiná-los a importância desse Lar”. minhas pregações e continuei orando, pedindo por todos. Segui
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meus sermões, mas esses foram interpretados como uma afronta estive com elas nesses momentos de oração, está me fortalecia e
ao governo. também a todas as crianças. Podíamos sentir a luz divina nos
Eu reunia o povo e de coração aberto lhes pregava a tocando com toda sua força e despertando mais forte em nós o
palavra do senhor, mas me queriam calar e fui abordado pelos amor.
soldados que me intimaram a sair do templo. Ele fora destruído e Em uma dessas vezes, Tereza esteve ao meu lado.
queimado. Senti o mal se alastrando. Disseram que se me Observávamos tudo em silêncio. Para a oração era o momento de
pegassem pregando pelas ruas acabariam comigo e com todos os uma linda ceia de Natal. A mesa era farta. Estavam juntas
que me seguissem. Comecei então a pregar escondido nas casas reunidas todas as crianças. Bianca, o marido e seus filhos já
dos que queriam minhas pregações, mas Bianca sempre me pedia adultos, todos interagindo como uma grande família. Nesse
que ficasse e não fosse para as ruas. Sentia que não poderia momento, víamos o carinho com que todas as crianças eram
guardar as palavras de conforto ao povo sofrido. tratadas. Sentimos amor, felicidade e muita paz.
Na noite em que eu orava para algumas pessoas que me
convidaram, a casa em que estávamos reunidos fora invadida e
queimada. Sentíamos nessa noite a fúria das espadas quando
vários homens foram derrubados e mortos e também algumas
mulheres. Senti a espada negra rasgar minha carne, mas antes de
meus olhos cerrarem, vi o guerreiro com grande espada dourada.
Este me resgatou dentre os que já estavam mortos. Senti a dor do
sangue derramado. A guerra havia acabado, mas deixou em mim
marcas tão profundas.
Fui levado ao orfanato onde fui cuidado. Tive ainda um
tempo para refletir sobre minha vida e Bianca estava ao meu lado
como uma verdadeira irmã. Agarrei sua mão e lhe disse: “Minha
querida, sabe que precisa ser forte. Todos aqui precisam muito de
ti, como já precisaram de mim um dia. A guerra acabou. É o
momento de recomeçar uma nova vida. Levarei comigo a certeza
de não ter errado ao buscar seguir o caminho que eu senti em meu
coração. Sinto-me e leve”.
Essas foram minhas últimas palavras. Fui enterrado
próximo a minha querida Tereza. Minhas crianças sempre nos
levavam flores e o mais importante, oravam por nós. Muitas vezes
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ALMAS GÊMEAS tive ao meu lado se mostrara a mim naquele instante no lindo
rosto daquela mulher. Eu tive a certeza de tê-la encontrado.
Morei e fui muito feliz em lugar chamado Córdoba, na Havia tantos impedimentos para nos separar, mas nem um
Itália. Lá vivi os melhores anos de minha vida e foi lá que deles fora o suficiente para acabar aquele amor que nos tocava tão
encontrei o mais puro e verdadeiro amor, Brenda, mulher linda de profundamente, e me fizera esquecer que eu era um simples
cabelos cacheados e olhos esverdeados de um verde camponês e ela de família conceituada e de posses, mas para ela o
encantador.Quando a vi algo me tocou profundamente, meu que importava era o que sentíamos. Eu não poderia dar-lhe tanto
coração disparou e tive a certeza que ela seria minha e foi como conforto como estava acostumada, mas lhe dei o que eu tinha de
uma parte que se encaixou perfeitamente em meu ser. Eu me melhor e mais importante: o amor que eu carregava em meu
sentia completo e feliz. coração, com a certeza de ser também correspondido por ela.
Brenda preenchia minha vida com amor e cuidados. Eu a Lutamos contra tudo e todos e vivemos na liberdade do
tinha como uma preciosidade que eu amava mais do que tudo eu campo, a felicidade plena e total desse amor.Vieram as
possuía. Com ela tive lindos filhos que completavam nossa dificuldades, mas nada era maior do que o amor que sentíamos
felicidade. Lembro-me da mesa farta no jantar, José, Mateus, um pelo outro e isso nos dava força para enfrentá-las.
Samuel e a pequena Mirna, nossos tesouros, fruto de nosso amor, Com o tempo, a família de Brenda percebeu o quanto eu a
e minha querida Brenda sempre doce como o mais puro vinho que fazia feliz e acabaram nos abençoando. Minha mãe sempre
tínhamos sobre a mesa. acreditou nesse momento. Ela sabia o quanto era importante para
Eu nasci em uma família muito católica, mas algo era tão nós a benção das famílias. O tempo passou, criamos nossos filhos.
estranho em mim. Eu tinha sonhos com lugares, pessoas, era tudo O mais velho, José, casou e seguiu seu destino. Fora morar em
tão real. Quando eu falava com minha mãe, ela me dizia que eu Genova com a mulher e com eles foi Mateus, que terminava seus
não deveria acreditar nos sonhos, mas foi neles que vi pela estudos. Mirna se tornara uma linda mulher, apaixonada por
primeira vez Brenda, uma jura de amor quando ainda criança. música conheceu um tenor, Justim, e com ele se casou e seguiu
Muitas vidas e o reencontro. Seu lindo rosto, o mesmo que eu sua vida.
encontrei aqui na minha querida Itália O encontro de almas. Comigo e Brenda ficou Samuel. Apaixonado pela terra e
Sempre tive a certeza que um dia eu encontraria aquela as coisas simples que essa oferecia. Eu me via nele e pedia a Deus
mulher que preencheria minha vida e seríamos felizes.E foi em que encontrasse uma companheira como eu encontrei que o
uma festa na colheita de uva em Genova, regada a muito vinho e fizesse feliz como eu era com sua mãe.
dança que eu a encontrei. Lá estava ela, como uma deusa em seu Com o tempo isso aconteceu. Samuel encontrou Laura,
lindo vestido azul. Eu a olhei e ela me correspondeu. Dançamos também em uma festa, em Genova. Passado um tempo se casaram
como se flutuássemos na leveza de nossos corpos e no e tiveram dois filhos: Mirela e Miguel.
encantamento que tocava nossas almas. Todas as vidas que eu a
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Quando a família se reunia à nossa longa e farta mesa, tenho certeza que também a nossa querida Brenda. Sei que muitos
regada de um bom vinho e muita alegria, eu os observava e de vocês acham que estou fraco da cabeça quando falo que
percebia que, mesmo que cada um tenha seguido o seu destino, encontro a mãe de vocês em sonhos, neles entendo que a morte
todos eles mantiveram a união como base de uma família feliz, não é o fim. O amor que eu sinto pela mãe de vocês sempre me
Brenda e eu nos olhávamos com o mesmo olhar apaixonado. deu uma certeza de que almas gêmeas existem e a minha me
Éramos muito felizes.Mas algo me perturbava em sonhos, Eu me buscará no momento certo e eu estarei feliz”.
via só, perdido em uma longa estrada, sentindo uma profunda dor Todos me escutavam em silêncio e minha querida Mirna
no coração. se aproximou de mim e carinhosamente me deu um beijo disse
Com o tempo, entendi que o sonho me mostrava uma que sabia o quanto a mãe me fazia falta. Que sempre tivera a
separação. Brenda adoece, e em uma manhã fria eu a perdi. Nossa certeza de que nosso amor era muito puro e lindo, e um amor
dor era profunda. Eu via a tristeza no rosto de cada um de meus assim permaneceria por toda a vida e também após a morte Eu
filhos e netos, mas nenhuma dor era maior do que a dor que eu senti que minha filha me entendia.
sentia em meu coração. Com o tempo e a saudade, me sentia Quando eu parti, todos choravam muito. Mirna em sua
definhar como uma planta que aos poucos murcha e seca quando prece silenciosa me dizia que eu fosse em paz e encontrasse o
parte de seus galhos são retirados. Assim eu me sentia desde que meu grande e verdadeiro amor. Ela sabia que a mãe me
Brenda partiu. Com ela fora toda a alegria que eu sentia, e por aguardaria e seguiríamos felizes. E assim foi. Quando eu estava
mais que eu sentisse o amor de meus filhos, esse não preenchia o em meu leito de morte, com todos os filhos reunidos, ela estava
vazio que me fora deixado com a morte de Brenda. ali os observando e sentindo a dor de cada um deles. Momento
Passei a ter novos sonhos onde eu a encontrava. À noite eu difícil para todos, assim como foi quando ela partiu, mas esse se
sempre deitava com essa esperança de vê-la em meus sonhos. faz necessário. É inevitável.
Quando isso acontecia, meu dia ganhava luz e me fortalecia. Eu a vi como que na primeira vez em um lindo vestido
Muitas vezes senti vontade de dar fim a minha vida e encontrá-la, azul, e este parecia envolto em luz. Ela se aproximou de meu
mas nos sonhos ela me dizia que tivesse paciência que em breve leito, me deu sua mão e me disse: “Agora é o momento. Venha
estaríamos juntos e que no momento certo ela me buscaria. comigo meu querido Frederico”. Eu a acompanhei sentindo
Meus filhos acreditavam que eu ficara fraco da cabeça ao leveza em meu corpo e uma grande felicidade por novamente com
contar a eles dos sonhos onde eu conversava com a mãe deles. ela estar. No meu rosto ficou um sorriso comentado por todos e
Apenas Mirna me escutava atenciosamente. Acho que no fundo entendido por Mirna.
ela me entendia. Eu fui enterrado junto a Brenda e na lápide fora escrito a
Em um almoço de domingo eu disse a todos: “Estou tão pedido de Mirna:“Almas gêmeas, Frederico e Brenda”.
feliz por estarem todos aqui reunidos e quero pedir que
mantenham sempre essa união. Alegrarão não só a mim, mas
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O RETORNO irmão. Falávamos de namoradas. Eu já tinha dezoito anos e ele


dezesseis, nossa irmã tinha cinco anos. Quando chegamos, o
Vim de uma família muito católica. Meu pai se chamava tempo não estava muito bonito, mas estava quente. Arrumamos
Afonso e sempre dizia que todos tinham de ter uma religião, que tudo e resolvi sair de barco. Tiago foi comigo, me afastei do
isso era muito importante. Nós já estávamos acostumados a ir aos porto. O tempo foi ficando feio, se armava um temporal.
domingos à missa com nossos pais e após sempre passeávamos Lembro que Tiago disse para eu que colocasse o colete
um pouco. Íamos almoçar na casa de nossa avó, que sempre nos salva vidas, mas eu teimei e lhe disse: “Para que se eu sei
esperava com várias guloseimas. Para nós, tudo era muito nadar?”. Nosso pai fazia sinal para que voltássemos, mas o barco
prazeroso. Minha avó acreditava na vida após morte, mas evitava se afastava cada vez mais devido ao vento forte, até que eu perdi
o assunto já que sabia que éramos católicos e isso sempre foi o controle e o barco virou. Meu irmão se agarrou ao barco e ali
respeitado por ela. Éramos uma família unida e feliz. permaneceu. Eu lembro que, quando o barco virou, eu bati forte
Meu pai era um homem bom, correto e justo, assim como com a cabeça e afundei.
minha mãe. Ela se chamava Márcia, e Tiago era meu irmão Não consegui retornar. Após um tempo o céu tornou a
casula. Minha mãe aguardava mais um filho, que por sua intuição clarear e eu vi Tiago, ali, agarrado ao barco muito assustado, e
ela dizia que seria uma menina, e que daria o nome de Madalena. nosso pai desesperado gritando: “Meu Deus, onde está Gabriel?”.
Quando o médico confirmou que seria uma menina, me Meu irmão foi retirado da água e meu pai me procurava
lembro da felicidade de nossa mãe, pois sempre quis ter uma aos prantos. Junto a ele estavam nossos amigos, e vieram também
filha. Dizia que seria a sua companheira, já que gostávamos de outros pescadores que ajudaram na procura. Quando fui
sair com nosso pai para as pescarias. encontrado, o dia quase amanhecia. Eu tinha um ferimento na
Ao nascer, a menina nos encheu de alegria. Era tão cabeça devido a pancada ao cair.
delicada que tínhamos medo de agarrá-la. Éramos tão felizes. Meu pai e meu irmão se agarraram a meu corpo e
Alguns anos se passaram. Eu sentia uma angústia no peito. choravam muito. Vi meu corpo ali estendido, e entendi que já não
Não entendia o que era. Brinquei muito com minha irmã. Almocei estava mais entre eles. Sentia a profunda dor que sentiam e pensei
com minha avó e ela me disse: “Tive um sonho estranho com teu em minha mãe, o quanto também sofreria.
avô e ele conduzia você”. Após escutá-la, a beijei e segui, pois Quando fui levado até ela não suportei ficar ali, escutando
meu pai me aguardava. Íamos a uma pescaria como fazíamos seus gritos e seu clamor, sem nada poder fazer nem dizer, pois
sempre e junto foi meu irmão Tiago. Quando saímos, eu senti minhas palavras parecia que eram sopradas ao vento sem que
vontade de voltar e dar um beijo em minha mãe e minha irmã. ninguém escutasse apenas eu mesmo.
Quando sai gritei: “Amo vocês”. Vi todos os parentes e vizinhos chorando por mim, e
Seguimos para a pescaria com nosso pai, onde alguns percebi o quanto eu era querido por todos. Vi também meu corpo
amigos já nos aguardavam. No caminho, eu brincava com meu ali, estendido, com vestes brancas, e minha mãe desesperada junto
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ao meu pai, consolados por minha avó. Tentei novamente lhes permanece e é capaz de ultrapassar as barreiras do tempo e se
falar, mas minhas palavras não chegavam a eles. Sai dali pois me manter vivo mesmo a longa distância. Poderão estar com os que
doía profundamente vê-los sofrer tanto, meu irmão sofria calado, amam nos sonhos, quando sintonizadas na mesma frequência as
parecia ainda estar em estado de choque. almas se encontram e matam a saudade”.
Fui me afastando e percebi que entrava em um túnel Oramos pelos que ficaram na terra e também por todos
escuro. Senti medo. Sentia próximo a mim gemidos, mas após um nós. Deu-se início a uma linda oração, onde todos estavam
tempo percebi que havia uma luz no final. Por ali não passava só sintonizados na mesma energia. Após aquele momento a luz foi
eu, mas vários jovens e criança, todas com roupas claras. Quando ficando fraca até sumir, e foi quando perguntei a Pedro quem era
saímos daquele túnel, vi um lugar bonito como eu nunca havia aquela senhora e ele respondeu: “Seu nome é Tereza. Ela se
visto, um tipo de vegetação diferente das que eu conhecia, e dedica ao amparo de almas que chegam. Temos assim como ela
também várias flores muitas eu nem conhecia. muitos outros. Esse lugar é imenso. Aqui é uma pequena parte.
Alimuitas crianças brincavam e uma linda música tocava e Todos trabalham com amor com a missão de amparar, e
nos dava uma profunda paz. Quando olhei a minha frente, vi encaminhar quando for o momento certo”.
outro jovem que me chamava. Quando cheguei perto ele me Mesmo já me sentindo parte daquele lugar, ainda sentia
disse: “Seja bem-vindo Gabriel. Esse é o seu novo lar”. Eu lhe saudade de minha família, e uma vontade de revê-los, só os
disse: “Mas eu tenho um lar, minha família. Eles sofrem por sonhos não me bastavam. E quando me foi dito por Pedro que
mim”. O jovem me respondeu: “Tudo ficará bem. Acredite, havia permissão para ir até a casa de meus pais, mas que não
confie”. Andamos muito. Ele me disse seu nome, Pedro, e que poderíamos ficar por muito tempo, eu senti uma imensa alegria.
sempre estaria comigo. Eu não precisava sentir medo, que ali Precisava daquele momento.
todos também formavam uma família. Quando chegamos à casa de meus pais, tudo estava
O lugar era lindo, nos reuníamos para orar, e eu sempre arrumado com muitas flores. Subi as escadas e vi minha mãe.
me lembrava das orações com minha família. Sentia que eles Perto dela, uma linda jovem vestida de noiva. Percebi o quanto o
sempre oravam por mim. tempo havia passado. Era minha irmã. Era o dia de seu
Em uma tarde, fomos todos para perto de um lago que casamento, momento feliz para todos e também para mim que
havia no centro do jardim, e Pedro nos disse: “Hoje, oraremos pude vê-los tão felizes.
com Tereza”, de repente no centro do lago se forma uma grande Senti orgulho de ter feito parte daquela família. Eu ainda
janela de luz azul. Nela o rosto de uma senhora, cabelos grisalhos me sentia vivo no coração deles, e fortalecido nas orações que
e curtos, olhos claros, e rosto angelical. Sua voz nos tocava sempre faziam por mim. Vi que na parede ainda estava meu
profundamente, nos falava de amor e dizia: “Meus queridos não retrato junto aos meus irmãos, fiquei feliz. Olhei meu pai já
se preocupem com os que ficaram para trás, vocês os tem dentro grisalho, estava tão alegre ao lado de minha mãe. Senti vontade
de seus corações por que existia amor, e esse quando é verdadeiro de abraçá-los.
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Meu irmão sempre sorridente, já tinha dois filhos lindos, respondeu: “Gabriel”, e minha bisavó chorou e disse: “Seja bem-
minha avó tão velhinha olhou para mim sorriu e derramou uma vindo, meu querido Gabriel”.
lágrima, senti que havia me visto. Nesse momento sorri para ela e Senti que ela percebera que eu retornara e quando ela viu
partimos. Levei comigo a sensação de que retornaria. ao lado do berço meu bisavô sorrindo, teve essa certeza, que
Quando eu caminhava próximo ao lago, perguntei a Pedro guardou em seu coração amoroso de avó, que sempre acreditou
que estava ao meu lado: “Porque eu senti que retornaria a minha que a morte não fosse o fim.
família?”, ele sorriu e me disse: “Alguns têm permissão de A grandiosidade da vida está em seus valores infinitos,
retornar no momento certo e reencarnar na mesma família se onde a paz e a felicidade dependem de cada um fazer a sua parte,
assim for necessário e for da vontade divina. Você está sendo com a certeza de que somos partículas que formam o grandioso
preparado para isso”. Senti uma profunda alegria, poderia estar universo que rege a vida, e que após cada ciclo nos permite
novamente com a família que eu tanto amava. regressar e reescrever nova história, sem nunca esquecer que é o
Passado um tempo fui chamado por Tereza e Natan. amor a base de nossa existência.
Conversamos e ele me disse: “Meu querido Gabriel, tens uma
linda missão junto a tua família e a teu novo pai. Poderás voltar a Gabriel 04/05/ 2013
terra como filho de tua irmã”.
Decorrido algum tempo, minha avó disse a minha mãe:
“Sonhei com teu pai e com ele estava o Gabriel. Ele estava tão
lindo e me dizia que em breve estaria conosco”, minha mãe ficou
pensativa e falou para minha avó: “É apenas um sonho mamãe,
deve ser saudade. Eu também sinto”.
Naquele mês, minha irmã sentia as dores do parto e foi
levada para o hospital. Após várias contrações eu nasci. Na sala
do parto estavam Tereza e Natan, olharam para mim sorrindo e
desapareceram envoltos em luz azul.
Minha nova mãe me olhou emocionada e disse: “Ele é
lindo. Estou tão feliz”, e meu pai, olhava para mim todo
orgulhoso e radiante por minha chegada.Na maternidade, meus
avôs me olhavam pelo vidro no berçário. Senti tanto amor.
Quando chegamos a casa, a família estava toda reunida
aguardando nossa chegada. Minha bisavó me agarrou nos braços
e perguntou a minha mãe: “Como será o nome dele?”, minha mãe
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A HISTÓRIA DE ROSÁRIO homem rico, pensei que muita coisa poderia mudar em minha
vida, eu já estava cansada de trabalhar de não ter tempo para mim
Chamo-me Rosário, casei bem jovem, com apenas e meus filhos.
dezessete anos. Meu marido se chamava Antônio. Conhecemo- Aceitei as investidas e fomos aos poucos nos conhecendo
nos em uma festa. Nossos olhares se cruzaram e algo nos tocou o melhor. Ele sempre galanteador e sedutor. Dizia sentir amor por
coração. Ele era adorável. Homem sensível e amoroso. Com ele mim. Fui me deixando envolver encantada por tudo o que ele me
vivi momentos inesquecíveis. Existia um amor puro. Um oferecia.
transmitia ao outro tranquilidade, segurança e paz. Fomos Meus filhos ele dizia criar como seus. Eu acreditei em
planejando os filhos e vieram Antônia, Henrique e Mateus. todas as suas promessas. Fomos morar com ele. Aos poucos ele
Tínhamos a família perfeita. Meu marido comemorou o foi se mostrando como realmente era. Eu fui conhecendo aquele
nascimento de cada um deles como se fosse o primeiro filho. Ele homem que dizia sentir amor por mim, mas às vezes suas atitudes
nos amava e podíamos sentir a paz desse amor que nos preenchia. me faziam pensar se realmente era amor. Ele passou a me tratar
Tivemos anos felizes até o momento em que uma tragédia como propriedade sua. As visitas a minha família era
aconteceu. sempre acompanhada dele. Tudo tinha de passar por sua
Em uma viagem de negócios, meu marido sofreu um autorização. Minha filha já mocinha era revoltada. Augusto tinha
acidente e veio a falecer. Senti-me perdida ao meio de tanto certa implicância com ela, já Henrique e Mateus ele tratava de
sofrimento. Insegura, eu pensava como eu conseguiria sustentar modo diferente com mais afeto. Percebi que a implicância com
nossos filhos. No início, tive ajuda de familiares. Minha querida Antônia era por que ela lembrava o pai. Eu sempre comentei que
mãe, Amélia, me deu grande suporte para me sentir fortalecida. eram parecidos.
Falei com minha mãe que iria trabalhar e arrumei um emprego em Nas muitas viagens que fazíamos meus filhos não estavam
um consultório de um médico amigo da família. incluídos. Apenas eu era sua prioridade. Ele adorava mostrar aos
O tempo foi passando. Eu sentia falta de Antônio. Com ele outros a mulher linda que tinha e também mostrar o quanto eu
eu conheci o amor tranquilo que me dava segurança e paz, com o dependia dele.
passar do tempo comecei a pensar: será que algum dia eu Tive tudo o que o dinheiro pode comprar. Dei a meus
conseguiria recomeçar minha vida com outro homem? filhos tudo que julgava ser importante, mas não percebi que eles
Dediquei-me ao meu trabalho para conseguir manter a precisavam era me ter mais ao lado deles. Augusto era ciumento e
casa e sustentar meus filhos. Foi no trabalho que conheci um até com os carinhos que eu fazia em meus filhos ele implicava.
homem chamado Augusto. Ele foi ao consultório, queria fazer uns Dizia que eu tinha de tratá-los com firmeza para que se tornassem
exames de rotina. Notei que ele me olhava com olhos de desejo. homens de verdade.
Até que um dia ele se declarou encantado por mim, demonstrando Eu era proibida de receber em nossa casa a família por
a vontade de me conhecer melhor. Ao perceber que era um parte do pai. Ele dizia que tudo era passado e com ele não
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precisaríamos da família do falecido, mas Antônia nunca quis contornar a situação com as crises de ciúmes de Augusto, mas
perder esse vínculo. Acho que isso era um dos fatores para que com o tempo parece que tudo foi piorando ele passou a ser
ele implicasse tanto com ela. agressivo.
A festa de quinze anos ela não quis ter, pois sabia que não Eu senti sua fúria em uma festa que fomos da sua empresa
poderia ter ao seu lado os parentes de seu pai e isso ela não abriria onde um dos convidados me elogiou e Augusto ficou furioso,
mão. Preferiu então deixar a festa de lado e ter apenas uma nesse dia me levou cedo para casa. Ao chegarmos à residência
viagem. discutimos. Ele queria saber o porquê dos elogios. Nesse dia ele
Eu fiquei tão submissa a Augusto que acatava todas as me bateu e disse: “Se eu souber que está se insinuando para
suas decisões. Antônia quando me afrontava me fazia cobranças, outros homens eu mato você”.
dizia que eu precisava me impor mais em minhas decisões. Com a discussão, meus filhos se acordaram e vieram até
O tempo foi passando e as crises de ciúmes de Augusto mim. Eu estava caída no chão. Eles se agarraram em mim me
pareciam aumentar a cada dia. Ele tinha ciúmes de meus filhos e convidando para irmos embora. Augusto os fez sair do quarto
de qualquer um que se aproximasse de mim. Muitas vezes eu dizendo que era apenas uma briga de marido e mulher e que
tentava conversar e ele me dizia que o que ele fazia era normal, ninguém tinha de se meter.
que apenas gostava de cuidar do que era seu. No outro dia ele se arrumou para trabalhar como se nada
Meus amigos foram se afastando. Lembro-me quando tivesse acontecido. Deu-me um beijo e disse que voltava para o
Ricardo, um amigo de infância fez uma brincadeira comigo em almoço. Na hora do almoço ele apareceu com flores e um lindo
uma festa, tínhamos liberdade para isso já que nos conhecíamos colar. Disse: “Me perdoe por ontem. Eu bebi demais e me
desde criança, mas Augusto não quis explicações foi para cima de descontrolei. Isso não vai mais acontecer”.
Ricardo como uma fera. Mas, as crises de ciúmes seguiram acontecendo. Eu tinha
Todos ficaram chocados com sua atitude, nesse dia ele me um homem maravilhoso quando estávamos sós. Era carinhoso na
pegou pelo braço e me levou para casa dizendo que mulher dele cama, nos completávamos na hora do sexo. Ele sempre dizia que
não ficava se oferecendo para outro homem. Assim ele foi me eu era dele de corpo e alma e que ele faria qualquer coisa para que
afastando das pessoas que eu conhecia. Sua intenção era me sempre fosse assim.
inserir apenas em seu mundo doentio. Em uma tarde, Antônia veio me visitar, com ela estava
Antônia me disse em uma de nossas conversas que ia minha mãe. Eu fiquei tão feliz. Minha filha falava da faculdade,
morar com sua avó Que fora convidada por ela. No fundo eu que faria medicina. Sua avó lhe apoiava dizendo que o pai teria
sabia que minha filha não suportava aquela situação. Muitas vezes orgulho de Antônia, que ele sempre quis que um de seus filhos
ela me disse que eu não precisava viver assim submissa e fosse médico.
sufocada nas vontades de Augusto, mas eu já havia me Augusto esse dia chegou mais cedo e demonstrou não ter
acomodado àquela vida fácil, onde eu imaginava sempre ficado contente com a visita, mas se manteve calado.
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Enquanto tomávamos um chá, Antônia me falou que sua sentindo uma profunda paz. Percebi que eu nunca deixei de amá-
avó Mariana, após receber uma herança, guardou parte do lo. Tentei colocar em seu lugar um novo amor, mas fora um
dinheiro para lhe bancar a faculdade de medicina, que ela sabia profundo engano, o que encontrei e me foi oferecida era uma
que também era a vontade do pai e ela havia aceitado a ajuda da
forma doentia de amar.
avó. Após tomarmos o chá elas foram embora. Eu fiquei feliz por
minha filha, mas Augusto demonstrava irritação. Isso sempre Quem como eu já havia vivido um amor tão profundo e
acontecia todas as vezes que os meus me visitavam. Meus filhos, verdadeiro, deveria de saber que um amor não substitui o outro,
também crescidos, falavam em estudar fora. Augusto fez questão quando esse já foi tão grandioso. Os anos foram me mostrando
de ajudá-los, eu sentia que ele ficara feliz, pois assim minha isso e eu fui perdendo aquela ambição que me cegou os olhos e
atenção seria voltada toda para ele. tudo passou a se mostrar de forma clara. Augusto passou a
Passei a me sentir só. A casa era enorme. Eu sentia falta perceber que eu estava mudando. Acho que o medo de me perder
do contato com as pessoas, então fui dar uma volta, mas quando o deixou ainda mais inseguro.
cheguei em casa, Augusto estava furioso por não me encontrar. Os presentes caros já não me alegravam tanto quanto
Eu lhe contei que senti vontade de andar um pouco, de ver antes. Os sonhos que eu tinha com Antônio me faziam ver o
pessoas diferentes, que eu me sentia muito só, que eu apenas quanto o amor puro e verdadeiro era mais importante e superior a
havia ido visitar minha mãe. tudo que era material, porque esse nos alimentava a alma coisa
Ele gritava descontrolado: “Será que foi sua mãe mesmo que o dinheiro não conseguiria fazer.
ou saiu com outra intenção?”, me pegou pelos braços me sacudia Na cabeça doentia de Augusto, minha mudança era porque
e gritava: “Fala a verdade”, eu chorava e gritava que estava eu deveria estar interessada em outro alguém. Nossa convivência
falando a verdade. Ele me largou e disse: “Eu já falei, só quero estava ficando cada dia mais difícil. Eu me sentia sufocada com
que saia comigo. Não quero que ande só por aí, entendeu?”. sua obsessão.
Nesse dia, senti falta da minha liberdade, de me sentir Quando estive com minha filha em sua formatura,
livre. Eu tive tudo que desejei de material, mas eu não me sentia Augusto me acompanhou. Eu não poderia deixar de estar com ela
feliz. A liberdade me fazia falta. Entendi o que minha filha me nesse momento tão especial. Meus filhos Henrique e Mateus
falou em uma de nossas conversas, que não se pode ser feliz se também estavam lá, orgulhosos da irmã e felizes por ela realizar o
não tivéssemos liberdade para voar, eu sabia que essa liberdade desejo do pai de que um de seus filhos fosse médico. Minha mãe
eu não tinha. estava toda orgulhosa da neta e também a avó paterna Mariana
Uma noite eu sonhei com Antônio. Estávamos em um que, emocionada, lembrou-se do filho e comentou que se ele fosse
lugar lindo. Corríamos por um campo florido. Ele me falava ao vivo estaria todo orgulhoso.
ouvido com sua voz macia o quanto ele me amava, eu Augusto após escutar o comentário ficou irritado. Após a
correspondia aquele amor, e ali na grama macia nos entregávamos cerimônia, ficamos um pouco na festa. Ele bebeu e estava meio
um ao outro como se fôssemos parte de um só corpo. Acordei alterado. Na hora de ir embora eu quis levar o carro, mas ele não
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permitiu, disse ter condições de dirigir. Durante a viagem YURI E O GOLFINHO


discutimos, ele perdeu o controle do carro, acabamos batendo em
um barranco. Fiquei zonza. Vi meu corpo ao meio das ferragens e
Em uma aldeia de pescadores moravam Yuri e seus pais,
ao meu lado Augusto. Pessoas se aproximaram do local e logo a
ambulância chegou, no meu corpo fizeram massagem, mas nada Marcos e Cecília. Nesse lugar, as famílias dependiam da pesca,
pode ser feito, que sempre quando farta era comemorada com música alegre ao
Augusto foi colocado nos aparelhos e levado para o clarão da lua.
hospital. Meu corpo estava na maca ao lado do dele. No hospital Yuri andava sempre junto ao pai, atento a tudo. Era um
vi quando meus filhos chegaram chorando muito e minha querida menino esperto. Ir às pescarias para ele era uma diversão. Sempre
mãe ao lado deles tentando ser forte. Nesse momento Antônio que possível seu pai o levava. Foi em uma dessas pescarias que
estava comigo, me senti amparada por ele que esteve ao meu lado um filhote de golfinho fora tirado do mar. Ele estava ferido e
enquanto eu assistia meu próprio funeral. Vi nossos filhos ficou preso a rede. Marcos falava em devolvê-lo ao mar, mas Yuri
velando meu corpo. Senti o quanto sofriam por mim e o quanto olhou nos olhos do golfinho e sentiu no olhar um pedido de ajuda,
me amavam, minha mãe estava em profundo sofrimento. então ele pediu ao pai que o deixasse ficar com ele até que
Senti através deles o verdadeiro sentido da palavra amor. estivesse curado. Marcos vendo a aflição do filho concordou
Fiquei tão perturbada, mas Antônio estava ao meu lado. Ele pensando que o filhote também não sobreviveria se retornasse ao
agarrou minha mão e me disse: “Venha. Tudo ficará bem”. Antes mar seria devorado por tubarões.
de segui-lo, eu quis ir ao hospital onde vi Augusto em estado Durante a viagem de volta, Yuri procurou não deixar faltar
grave, mas seu tempo na terra ainda não chegara ao fim. água para o golfinho. E de modo cuidadoso e carinhoso, o menino
Terminava apenas nossa história. Nessa hora eu me senti livre e jogava água sobre o golfinho durante o percurso da viagem. Seu
pode partir junto a Antônio meu verdadeiro e único amor. pai o observava, dizendo aos amigos que o acompanhavam: “Esse
Augusto era apenas uma parte de uma de minhas animal não vai resistir”, mas não era o que o menino pensava algo
existências, onde havia pendências nossas a serem resolvidas e foi lhe dizia que tudo ficaria bem.
na oportunidade de retornar a terra que nos reencontramos com o Ao chegar, Yuri foi logo retirando o novo amigo do barco
propósito de concluir o que ficara pendente. e o levou para sua casa. Lá havia uma pequena piscina natural que
Ninguém cruza nosso caminho sem que haja um porquê. se formou entre as pedras, onde ele costumava se banhar. A água
Nas inúmeras idas e vindas de nossa existência, podemos ser o era calma e se renovava com a subida da maré. Ali seu amigo
irmão, o pai, a mãe o amor de alguém, a desilusão ou as almas estaria seguro. Yuri o alimentou com pequenos peixes que trouxe
gêmeas que sempre se cruzam para continuar vivendo o que com ele. Os dias se passaram e milagrosamente o golfinho se
nunca se acaba o verdadeiro amor.
recuperava ficando apenas uma sequela, uma de suas nadadeiras
Rosário ficou um pouco menor que a outra, mas não o impedia de se
movimentar e ser ágil.
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Marcos quando conversou com o filho lhe explicou que ali que Yuri se criou e era ali que ele tinha certeza que queria
não poderia o manter ali, que ele precisava retornar ao mar. O estar.
menino concordou, mas pediu ao pai para ficar mais um pouco até Na escola suas boas notas o destacavam entre os colegas.
ele ficar mais forte.O tempo fora passando e uma linda amizade Era um jovem muito inteligente. Sua atração pelo mar o levou ao
surgiu e permaneceu com o decorrer dos anos.Nas pescarias o interesse em saber mais sobre tudo que nele habitava. Estudou
balaio para colocar os peixes que selecionava para o seu amigo, para ser biólogo marinho.
não era esquecido. Quando se formou, ganhou do pai um terreno nas terras da
Em uma tarde Yuri percebeu que golfinhos se família, ali ele construiu sua casa e seu instituto de pesquisas.
aproximavam da praia, foi nesse momento que ele resolveu que Próximo a casa havia uma rampa onde o barco que usava para seu
seu amigo poderia acompanhá-los, pois já estava forte, mas o que trabalho era amarrado. Essa rampa ficava perto das pedras onde
o menino não imaginava era que mesmo liberto o golfinho não Yuri gostava de estar com seu amigo golfinho, que já não morava
quis ir embora. só, Tufi tinha companheira e filhotes.
Todos os dias Yuri ia próximo ao lago, se sentava em uma Nas saídas de barco, o golfinho o acompanhava parecia ler
pedra e o golfinho se aproximava sacudindo a cabeça e emitindo seus pensamentos.Nos mergulhos, Yuri percebia que Tufi
sons, como se quisesse conversar. Yuri alisava sua cabeça e ao chegava bem perto como se quisesse acariciá-lo.
olhar em seus olhos ele sentia sua gratidão, sua amizade, então o Os anos foram passando e aquela amizade permaneceu
menino pensou em lhe dar um nome e escolheu Tufi. provando que entre os seres pode sempre existir algo a mais, que
Seus pais comentavam que fora um milagre o golfinho ter a natureza, os seres humanos, os animais e tudo que existe no
sobrevivido, que a amizade do menino com o animal causava planeta, podem viver em harmonia e equilíbrio quando existir
comentários na aldeia. respeito e amor por o que nos rodeia.
O menino nadava com o golfinho o acompanhando, Yuri dedicou-se ao estudo marinho. Tudo que via lhe
fazendo acrobacias que deixava os moradores admirados e as encantava. Sua felicidade era plena quando no mar ele estava
crianças encantadas com a possibilidade de também se banharem nadando entre os peixes e com ele seu amigo que o rondava com
no mesmo lugar em companhia do golfinho. Era uma linda sua companheira e seus filhotes.
amizade e amor entre o menino e o golfinho. Tufi sabia que No instituto marinho que construiu, Yuri ensinava aos
estava livre para partir, mas o que sentia por Yuri não o deixava ir alunos a importância da vida marinha, das pesquisas. Quando
embora. Assim o tempo fora passando o menino fora crescendo e levava os alunos para conhecer seu amigo, era uma grande festa.
também seu amigo se tornou adulto. Tufi não era nada tímido, se mostrava alegre e brincalhão fazendo
Yuri era apaixonado por aquele lugar. Tudo ali lhe suas acrobacias e deixando a todos encantados.
encantava. A simplicidade misturada à beleza da natureza que se Aos que ali passavam, Yuri ensinou tudo que sabia sobre o
mostrava presente, tornava o lugar um paraíso para se morar. Fora mar e seus habitantes. Mostrou também que era possível a
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amizade e afeto entre o ser humano e outros seres do planeta, sua Após casados, muitas vezes Sandra teve de viajar a
amizade com o golfinho provava isso. trabalho, mas estava sempre ansiosa para regressar ao seu lar, sua
Em sua pesquisa Yuri estudou o comportamento dos felicidade ao lado de Yuri era visível.
golfinhos e ficou encantado com a inteligência da espécie.Seu pai, Yuri seguia suas pesquisas. Eram recebidos em seu
Marcos, sempre lhe deu total apoio nos estudos.Assim como Yuri, instituto vários alunos de diferentes escolas, muitos deles iam
ele também adorava o mar e tudo que ele podia oferecer. com interesse nas pesquisas desejavam conhecer um pouco mais
Em casa com os pais, Yuri comentava o quanto era feliz sobre os peixes e animais marinhos.
ali, que para ele era o paraíso, que não seria feliz em outro lugar Os golfinhos eram atração no lugar sempre estavam por
se não fazendo o que gostava, que o mar o encantava. Marcos ali. Os pescadores comentavam que eles ajudavam na pesca, os
entendia o filho, pois era assim que ele sempre se sentiu. conduzindo aos cardumes de peixes. O alimento farto os
Na rampa de sua casa, Yuri sentava à tardinha para mantinham sempre por perto.
admirar o pôr do sol, que se mostrava lindo ao desaparecer sobre Yuri confirmava o que fora dito pelos pescadores: Muitas
o mar. Esse momento não era só dele. Seu amigo Tufi sempre vezes Tufi os acompanhou em pescarias indicando o lugar onde
surgia se aproximava tocando os pés de Yuri com a cabeça. Yuri os cardumes de peixes se encontravam.
sempre levava alguns peixes em um balde, nesse momento Ao falar da inteligência dos golfinhos ele também lhes
também vinha o restante da família de Tufi, um momento relatou quando seu amigo não deixou que um menino se afogasse
harmonioso para todos eles. o trazendo a superfície após ele ter caído ao mar e quase se
O tempo foi passando e no instituto Yuri conheceu Sandra afogado.
uma geóloga admiradora de seu trabalho. Entre os dois muitas Já havia se passado mais de 20 anos desde que Yuri
afinidades. Yuri pela primeira vez sentiu seu coração ser tocado encontrou seu amigo. Ele ficava triste quando pensava que pouco
por um sentimento diferente, esse sentimento também fora tempo poderia lhe restar com seu amigo, já que a média de vida
correspondido. Tinham a sintonia perfeita. dos golfinhos era de vinte a trinta e cinco anos. Yuri tentou
Quando a levou com ele para ver o pôr do sol, ele também desfrutar cada momento da companhia de seu amigo, que já não
queria lhe apresentar seu amigo. Sandra ficou encantada com a demonstrava tanta disposição quanto antes, mas sempre se
amizade entre os dois. Nesse mesmo dia, Yuri a apresentou aos manteve carinhoso.
seus, em um jantar com a família. Em uma tarde quente, Yuri convidou a esposa para nadar
Passado um tempo, se casaram. A cerimônia foi na aldeia, um pouco. Tufi se aproximou como sempre fazia se mostrando
onde Yuri fez questão de convidar todos os pescadores amigos da feliz, quando perceberam vários golfinhos com eles estavam. Tufi
família. Ele queria que todos participassem desse momento tão chegou bem perto de Sandra e lhe acariciou a barriga várias vezes
especial. com a cabeça. Ela comentou com Yuri a estranha atitude do
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golfinho, que mais tarde fora compreendida por ambos: Sandra cercado de pedras com abertura de acesso ao mar formava uma
estava grávida e antes que soubessem o golfinho sentiu. piscina natural, Era ali que os golfinhos costumavam chegar nas
Sandra deu a luz, era um menino que chamaram de Otávio tardes se mostrando e fazendo acrobacias, deixando os visitantes
em homenagem ao pai de Sandra já falecido.Quando o menino encantados. Principalmente as crianças. Era nesse momento que a
nasceu, passado alguns meses Yuri o levou a rampa onde se imagem do pai sempre lhe vinha à memória. Otávio sentia que a
sentou e apresentou o filho ao amigo Tufi. Quando o menino energia de Yuri permanecia no lugar, assim como a energia de
completou dois anos, Yuri o levou pela primeira vez para banhar- Tufi.
se com ele. Nesse momento,Tufi se aproximou e com eles
interagiu como se fizessem parte da mesma família. O golfinho
acariciou com a cabeça pai e filho e se afastou para águas
profundas. Era o momento da despedida.
A partir desse dia Yuri não mais o viu. Muitas vezes se
sentou na rampa de sua casa aguardando o amigo que não mais
apareceu. Vinham outros golfinhos, mas não ele. Yuri sentiu em
seu coração a tristeza de tê-lo perdido. Tufi já havia atingido a
média de vida de um golfinho e escolheu morrer longe do amigo.
Deixou ali outros golfinhos que seguiram visitando Yuri, mas
nem um deles lhe era tão especial quanto Tufi.
Todas as vezes que falava aos alunos sobre o mar, citava o
golfinho e toda a trajetória de vida e amizade entre os dois. Os
alunos o escutavam em silêncio. Nos relatos, a emoção fazia
transparecer o amor que sentia por tudo que havia construído no
seu paraíso.
Assim Yuri envelheceu, fazendo suas pesquisas e
ensinando tudo que sabia sobre o mar e seus habitantes.
Seu filho se tornou homem, desfrutando das belezas do
lugar e manteve consigo o amor pelo mar. Seguiu trabalhando
com o pai e após a morte de Yuri, Otávio deu continuidade ao seu
trabalho. Não só manteve o instituto, como construiu um ponto
turístico que era bem procurado por visitantes, o Lago dos
Golfinhos. No lugar onde costumava se banhar com seu pai, um
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LAÇOS DE AMOR mágoas em teu coração para que elas não te tornem um homem
rancoroso”, me beijava carinhosamente a face. Eu acordava
Guardo em minha lembrança os momentos felizes com sentindo seu perfume e a paz que aquele momento me trazia.
meus pais. O sorriso de minha mãe correndo comigo no vasto No outro dia me acordava tranquilo. Eu sentia Julia
jardim que ela tanto amava. A tive por pouco tempo. Foram os incomodada por não conseguir me desestabilizar emocionalmente
anos mais felizes de minha vida. A grande tristeza foi perdê-la tão e ter motivos para argumentar com meu pai e me afastar dele.
jovem deixando em mim um grande vazio por sua ausência. Seu Quando ele chegava do trabalho, me colocava em seu colo
nome era Cristina. perguntando como foi meu dia. Ela ficava atenta, cuidando o que
Com o tempo, tive a certeza de que ela sempre esteve ao eu ia responder. Olhava com olhar ameaçador. Eu dizia que
meu lado nos momentos difíceis. Eu sentia sua presença como estava tudo bem. Ele me respondia: “Eu fico feliz que esteja se
mãe amorosa afagando meus cabelos. dando bem com Julia e agora você tem um irmão”.
Meu pai, Augusto, após dois anos da morte de minha mãe Meu pai pegava também o pequeno Bernardo no colo, esse
conheceu uma mulher chamada Julia e com ela se casou. Ela era era o contato que eu tinha com meu irmão, pois grande parte do
dissimulada e falsa, perto dele ela me tratava de uma forma dia ela não me deixava chegar perto dele. Era como se ela não
carinhosa e longe, com desprezo.Eu sentia seu desagrado com quisesse que Bernardo se apegasse a mim nem eu a ele.
minha presença, esse cresceu com o nascimento de Bernardo. Mas quando saíamos para ir à missa aos domingos ela fazia
Administrando seus negócios, meu pai passava grande questão de demonstrar aos outros que éramos uma família feliz.
parte do dia fora. Eu me sentia tão só. Julia me tratava com Um dia me senti triste e conversei com meu pai. Pedi para
desprezo, muitas vezes me agredia fisicamente, outras, com morar com minha avó. Ele me respondeu: “Nem pense nisso.
palavras me chamava de inútil, dizia; “Não adianta se queixar Quero meus filhos ao meu lado. O que te falta nessa casa?”Não
para teu pai, ele não vai acreditar em ti, mas sim em mim”. consegui nem seguir a conversa.
Ela o envolvia de tal forma que ele parecia não enxergar No outro dia Julia estava furiosa, me tirou cedo da cama e
os erros que ela cometia, mas eu não posso negar o pai carinhoso disse: “O que tu pensas que vai colocar coisa na cabeça do teu
que ele tentava ser. Quando ele chegava do trabalho sempre pai?”, eu respondi que não havia feito nada, que eu apenas pedi
perguntava como estávamos, ela logo dizia que estava tudo bem para morar com minha avó. Ela me agarrou pelo braço, me bateu
que ele não precisava se preocupar que dos assuntos da casa e dos e disse: “Pois vai ter que ficar aqui, e se contar para teu pai que te
meninos ela cuidava. bati, vai se arrepender”. Na hora do almoço, meu pai percebeu um
Meu pai não percebia minha tristeza, mas minha mãe sim hematoma em minha perna e perguntou o que houve. Ela logo foi
em sonhos ela vinha a mim, era tudo tão real eu a abraçava e falando: “Ele caiu hoje cedo. Foi um tombo feio, mas já coloquei
chorava todas as lágrimas contidas. Ela me dizia: “Tenha compressa. Logo estará bom”.
paciência meu filho, você precisa passar por isso. Não guardes
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Meu pai quis me levar no médico para ver se estava tudo concordou. Julia o apoiou, pois eu iria para uma escola de padres
bem. Júlia imediatamente disse: “Não se preocupe meu bem, foi e estaria longe deles.
apenas arte de criança. Eu cuido dele, se preciso eu mesma o Quando me preparei para ir meu pai me perguntou se
levarei ao médico”. realmente era o que eu queria, eu respondi que sim. Tive essa
No domingo, fomos à missa. O padre Xavier veio logo nos certeza quando em sonho, me vi já adulto no altar com vestes de
cumprimentar me dizendo: “Você está a cara de sua mãe”, Julia padre e a igreja repleta de fiéis. Foi um sonho lindo e parecia tão
pareceu não gostar da comparação. O padre demonstrava um real, assim como os sonhos com minha mãe.
grande afeto por mim. Sei que também foi grande amigo de Ao me despedir de meu irmão ele se agarrou em meu
minha mãe. Nesse dia ele me convidou para ser coroinha de sua pescoço. Senti tão forte o seu amor por mim, assim como eu senti
igreja, dizendo que percebia o quanto eu gostava de estar nas a frieza de Julia e sua alegria por eu ir para longe. Eu não entendia
missas. Fiquei feliz e também meu pai que era muito católico. o porquê de tanto desprezo por mim. Segui com meu pai, no
Julia pareceu não gostar muito, mas não contrariava meu pai em caminho quis também me despedir de minha avó, que sorrindo
suas decisões. me abraçou me dizendo: “Vá com Deus meu querido”.
Passei a frequentar mais a igreja e a conversar mais com o Com doze anos fui para a escola do seminário, lá éramos
padre Xavier. Foi em uma dessas conversas que eu falei de minha tratados com amor, mas também com rígidos ensinamentos e
vida após a morte de minha mãe. O padre me escutou em silêncio, muita disciplina. Pela manhã, às cinco horas, tínhamos de levantar
admirado com minha maturidade para um menino de apenas dez para orar e dar início aos afazeres do dia.
anos. Também lhe falei dos sonhos com minha mãe, de como eu Nos dias de visitas eu me alegrava com a visita de meu pai
me sentia bem após eles. e do padre Xavier. Algumas vezes minha avó também ia me
A vida em casa passou a ser cada vez mais difícil. O padre visitar. Tínhamos também durante o ano duas semanas de férias
escutava meus desabafos. Como eu o fazia em confissão ele não que poderíamos estar com nossos familiares para as festas de final
poderia falar com Julia a respeito, mas sempre pregava nas missas de ano. Todos ficavam tão felizes ao retornar ao lar. Eu sentia
em que ela estava o amor ao próximo e o quanto ele era receio e um pouco de medo de como seria recebido por minha
importante aos olhos de Deus, porém suas palavras não tocavam o madrasta.
coração frio daquela mulher, eu ficava feliz por ver que meu Quando esse dia chegava meu pai ia cedo me buscar e
irmão ela tratava com amor e parecia sentir também algo bom por muitas vezes minha avó Amália o acompanhava e me abraçava
meu pai. cheia de saudades, no abraço dela eu sentia o mesmo amor com
O bem-estar que eu sentia quando estava na igreja, me que minha mãe me abraçava. Feliz minha avó sempre me dizia:
levaram ao desejo de me tornar padre. Conversei com Xavier e “Tu está cada vez mais parecido com Cristina”.
depois com meu pai, que no início ficou receoso. Acho que tinha Seguimos para casa de meu pai, ao chegar lá, Bernardo foi
planos para mim junto a ele em sua empresa, mas depois ele logo correndo me encontrar feliz, se abraçou em meu pescoço
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como sempre fazia. Julia me cumprimentou com um sorriso Vovó me perguntou o que eu achava de Julia, meu silêncio
forçado, minha avó percebia o modo como ela me tratava, muitas lhe respondeu. Ela logo disse: “Não precisa dizer nada, eu sei que
vezes fui convidado para com ela morar, mas meu pai nunca ela nunca se esforçou para ser uma boa mãe para ti só teu pai não
permitiu. percebe isso”.
No outro dia fui conversar com o padre Xavier que feliz O tempo passou e com 22 anos me tornei padre. No dia
logo veio me cumprimentar, e já foi me convidando para que rezei a primeira missa, minha família estava presente. Minha
participar das missas festivas que realizaria. Conversamos e ele avó estava sentada no banco da frente e mais atrás meu irmão
me perguntou se eu ainda tinha certeza da escolha que eu havia Bernardo, meu pai e minha madrasta. A missa foi linda e
feito, eu lhe respondi que sim, que cada dia que passava eu sentia emocionante. Foi a primeira vez que rezei como padre ao lado do
que estava no caminho certo. meu amigo Xavier, que se emocionou ao me ver conduzir a
Eu sempre aproveitava as duas semanas que eu tinha com missa. Lembrei de meu sonho onde no altar eu me via com vestes
minha família, procurava não deixar os maus sentimentos de Julia de padre e a igreja repleta de fieis.
me atingir. Ela fazia um grande esforço para me agradar na frente Após a missa e os cumprimentos, meu pai e meu irmão
de meu pai, mas quando estávamos a sós não demonstrava estavam ansiosos para seguirmos para o almoço em família. O
nenhum afeto por mim, mas Bernardo gostava tanto de mim que padre fora convidado. Eu fiz questão que minha avó estivesse ao
eu conseguia ver em seus olhos o brilho de felicidade quando meu lado. Senti que desagradou Julia, mas eu não liguei para seu
junto estávamos, isso Julia não conseguiu mudar, era um laço egoísmo. Aprendi a guardar da vida os bons momentos e aquele
forte de amor e afeto. para mim era um deles, estar junto das pessoas que eu amava.
Fiquei um dia com minha avó. Ela era adorável, alegre, de O tempo de preparação no seminário me tornou um
bem com a vida. Mesmo carregando a tristeza de não ter mais homem mais forte, convicto de minha fé e minha missão. Eu
minha mãe ao seu lado, nem meu avô que eu não cheguei a estava preparado para lidar com pessoas como Julia, sua energia
conhecer, ela falava tanto dele que parecia que eu já o conhecia. ruim já não me afetava como quando criança.
Ela mostrava fotos. Nesse dia ela me deu um presente especial, Padre Xavier durante o almoço me falou que se sentia
era uma corrente com um broche onde estava a foto de minha mãe cansado para conduzir sozinho sua paróquia. Já estava velho que
com um bonito sorriso, como se mostrava para mim em sonhos. precisaria de alguém para lhe ajudar e gostaria que fosse eu.
Eu disse isso a minha avó, ela me respondeu: “Tu pode ter certeza Pediria a seus superiores que me transferissem para sua paróquia
meu querido, que tua mãe estará sempre olhando por ti. Tua mãe se eu também o desejasse, eu lhe disse que seria um prazer estar
era mulher de muita fé, deve estar orgulhosa de tua escolha em ao lado dele trabalhando para a comunidade.
seguir o caminho religioso. Deus me levou ela tão cedo gostaria O almoço foi harmonioso. Meu irmão Bernardo me falou
tanto que tu tivesses convivido mais com ela”, eu lhe disse que de sua vida de seus estudos. Ele era um jovem estudioso, queria
ela me fazia muita falta. ser advogado como nosso pai que ficou todo orgulhoso, pois teria
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alguém para lhe ajudar nos negócios da empresa. Após o almoço, infância quando com ele eu abria meu coração, ele me dizia com
acompanhei minha avó até sua casa e Xavier também nos voz tranquila: “Cristovão meu filho, tu és uma pessoa muito
acompanhou. especial. Deus te deu esse dom tenho certeza que com algum
No caminho cruzamos por um campo florido, minha avó propósito, um dia tu descobrira o porquê.”
parou e me disse: “Você adorava vir aqui com tua mãe passear Após nossa longa conversa, retornei à casa de meu pai que
nessa época em que as flores colorem o campo”, não sabia ela que me aguardava para o jantar e fez questão que com eles ficasse.
as lembranças de minha mãe correndo comigo entre as flores Durante os dias em que estive na cidade, meu irmão Bernardo
estava em meu pensamento naquele momento. Por instantes eu estava sempre junto a mim, parecia querer recuperar o tempo em
senti a presença dela. que ficamos longe. Após o jantar, ele me mostrou fotos, me
Deixei minha avó em casa e segui com o padre Xavier até confidenciou assuntos íntimos seus. Nosso pai estava feliz por eu
a igreja. Lá conversamos como nos velhos tempos. Eu lhe falei de estar ali junto a eles, nos dias em que ali fiquei Julia tentava
tudo que aprendi e disse a ele o que me perturbava e me deixava demonstrar-se feliz, mas eu sabia que minha presença a
confuso. Falei de minhas visões, das muitas vezes que os padres incomodava. Eu podia sentir seu desagrado por eu estar ali, mas
tentaram me fazer acreditar que eram frutos de minha imaginação, não deixei que me afastasse de meu pai nem de meu irmão.
mas eu sabia que não eram. Acho que eles também, pois muitas Antes de partir, fiquei uns minutos a sós com ela.Eu lhe
delas se concluíram se mostrando verdadeiras. Contei de Fabio, falei que nunca entendi o porquê que minha presença a
um menino que fora para o seminário na mesma época que eu, do incomodava tanto, que eu gostaria muito de entender. Nesse
aperto no peito quando com ele eu estava, da visão que tive de sua momento meu pai chegou onde estávamos. Julia ficou sem jeito e
morte repentina deixando o bispo intrigado e preocupado. mudamos de assunto.
Ele convocou uma reunião com todos os outros padres e Conversei um pouco mais com meu pai e nos preparamos
cardeais que ali estavam. Após essa reunião passaram a me tratar para dormir. No outro dia eu tinha de viajar cedo para outra
de modo diferenciado, se reuniam e oravam para mim como se eu cidade onde ficaria um tempo até que o padre destinado chegasse.
tivesse algo ruim me acompanhando. Então resolvi me calar. Não Após dois anos finalmente o pedido do padre Xavier foi
fiz mais comentários de minhas visões. Eu sabia que não me aceito eu fui transferido para sua paróquia. Fiquei muito feliz de
entenderiam e poderiam me afastar do seminário. poder estar todos os dias com meu amigo que além de conduzir
Sofri por ver o que me era mostrado sem ter com quem sua paróquia fazia um belo trabalho social junto à comunidade
dividir então eu orava para que a angústia que eu sentia fosse carente. Eu passei a ajudá-lo com muita satisfação, porque era
embora, era nesse momento que minha mãe muitas vezes vinha a algo que eu gostava de fazer, ajudar o próximo. Eu estaria
mim em sonho aquietar minhas angústias. Nesse momento eu também perto de meu pai, meu irmão e minha querida avó.
sentia o quanto era forte o laço de amor que nos unia. Xavier me Na região eu era o padre mais jovem. Muitos foram à
escutava com muita atenção como sempre fazia desde minha missa por curiosidade, outros movidos pela fé. Ao ouvirem meu
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sermão, percebiam que eu havia encontrado minha vocação no Nas missas eu sentia uma energia maravilhosa nos tocar.
modo como eu conduzia a missa e na fé que eu demonstrava ter. Essa mesma energia eu sentia quando orava para os enfermos nas
Ao lado do padre Xavier, procurei fazer um bom trabalho visitas que fazíamos após a oração os relatos eram de um grande
junto à comunidade, me tornei conhecido e respeitado, mostrei bem estar e logo a melhora.
que era possível levar a palavra de Deus a todos independente da Minha mãe em sonhos me dizia: “Siga teu coração. Nos
religião. momentos meditativos, escute com atenção a voz que te guiará no
Em nossas visitas, cheguei a uma casa humilde onde o caminho de tua missão”.
dono estava de cama. Seu grave problema de coluna o impedia de Alguns acontecimentos se mostravam contrários ao que eu
trabalhar, se locomover. Sua esposa meio sem jeito veio nos havia aprendido no seminário, mas tudo que vinha a mim me
atender, em sua volta, dois meninos sempre agarrados a ela. fazia crer ainda mais na força divina que me dava paz e me
Percebemos a triste situação pôr a qual passavam, orei pelo permitia ajudar as pessoas com a energia que eu sentia vir a mim,
doente. No caminho, Xavier e eu conversávamos como essa me emocionava me dava certeza de estar no caminho certo,
poderíamos ajudar. Na missa de domingo preguei sobre a os encontros com minha mãe em sonhos me faziam crer que a
caridade, falei das visitas que fazíamos, do quanto era triste ver morte não era o fim como me fora ensinado.
pessoas em situação tão precária. Pedi que todos os fiéis que Ao pregar o evangelho eu me sentia como um pastor
fossem caridosos e nos ajudassem nos doando alguns alimentos, conduzindo suas ovelhas, tentando resgatar as que se perdiam na
para que unidos ajudássemos a família que necessitava. falta de humildade, de amore fé.
Durante a semana foram recolhidos alimentos, fomos fazer Eu via que muitas pessoas estavam nas missas todos os
a entrega. Assim fazíamos sempre que alguém necessitava aos domingos, mas não faziam uso do que era ensinado. Pareciam
poucos fomos despertando o lado caridoso dos fiéis. estar ali apenas para mostrar à sociedade que eram cristãos. Eu
Ao lado da igreja tinha uma casa simples e aconchegante, queria deles muito mais que aparências, eu queria deles a
ali ficava o padre Xavier. Essa casa também passou a ser meu lar. verdadeira fé que desperta caridade, humildade e amor. Mas eu
Contávamos com a ajuda de dona Almerinda, mulher admirável, também tinha nas missas uma grande quantidade de fiéis que se
nos tratava com cuidados e algumas regalias como um belo mostravam como verdadeiros cristãos seguindo os ensinamentos
almoço e deliciosos bolos que costumava nos levar. Ela junto a de Deus.
outras beatas nos ajudava nos trabalhos voluntários. Em uma das visitas que fazíamos fomos a casa de Aurélio
O tempo foi passando, com o padre Xavier muito eu que logo foi dizendo: “Não somos cristãos. Não temos religião”,
aprendi me sentia feliz na sua companhia, ele era alegre sempre eu lhe respondi: “Todos somos filhos de Deus independente da
bem humorado éramos muito parecidos, acho que por isso nos crença. Estou aqui como homem que serve ao senhor nosso Deus,
compreendíamos tão bem. vim visitar a doente e se me permitir, farei por ela uma oração”.
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O dono da casa concordou, orei com minha mão sobre a festas, eu podia sentir o orgulho de nosso pai e também de Julia
cabeça da mulher que estava em seu leito, senti minha mão arder por aquele momento. No salão, Bernardo nos apresentou Cecília,
como se estivesse sobre fogo. Dias depois recebi em minha igreja sua colega de aula, ao apresentá-la ele me disse: “Essa é a mulher
essa mesma mulher acompanhada de seu marido, ela me disse: da minha vida”, naquele momento eu pude ver a luz harmoniosa
“Desde o dia em oraste por mim não senti mais nada. Meu mal que os envolvia.
estar desapareceu. Quero assistir tua missa, tuas orações e passar Dois anos depois com ela, ele se casou e fez questão que
a frequentar tua igreja”, eu sorri para ela dizendo que eram bem eu lhes desse a benção de sua união.
vindos a nossa humilde igreja. Todos os domingos eles estavam Cecília era filha de um grande empresário. Bernardo fora
ali. A mulher se chamava Maria e parecia outra pessoa com convidado para trabalhar com o sogro em sua empresa, mas ele
aspecto saudável. recusou a proposta para não abandonar nosso pai. Ela ganhou de
O padre Xavier se mostrava feliz por me ter ao seu lado, seus pais uma bela casa onde moraria. A residência ficava perto
me dizia que sua paróquia ficou mais alegre com minha presença da empresa de seu pai, onde ela trabalhava. Bernardo seguiu seu
e mais cheia de fieis. Nesse dia ele me disse que padres também trabalho ao lado de nosso pai na cidade vizinha.
eram colocados a prova através das tentações, me mostrou as Algumas vezes nos reuníamos para o almoço aos domingos e em
jovens que se aproximavam do altar dizendo: “Elas não perdem um desses almoços Julia teve um mal estar, nesse dia vi uma
uma missa desde que você aqui está”. Eu lhe respondi que eu sombra negra ao seu lado. Quando conversei com Bernardo ele
saberia me cuidar, me proteger que eu já havia feito minha me falou que ela já havia tido esse mal estar outras vezes e que
escolha. nosso pai estava preocupado, que a levaria para uma consulta.
Meu irmão Bernardo sempre me procurava para conversar Antes de irem embora, Bernardo me pediu que a visitasse
desde que fui transferido para a igreja local. Estávamos mais mais seguido, que agora casado já não estava tão presente, já que
próximos, o laço de amor, de amizade, parecia ter se fortalecido sua casa não era muito próxima da casa de seus pais, eu disse a
com o decorrer do tempo. Julia nunca conseguiu nos afastar, nem ele que faria as visitas. No outro dia cedo, Julia foi com nosso pai
diminuir o amor de irmão que nos unia. ao médico. Foram feitos alguns exames, após alguns dias o
Bernardo foi me fazer um convite, gostaria que eu fizesse resultado. Bernardo foi encarregado de retirar os exames e
uma oração no dia de sua formatura, eu aceitei orgulhoso por ele aproveitou para falar com o médico. Nesse dia eu me assustei ao
e sua atitude. vê-lo tão cedo na igreja me procurando, ele estava pálido parecia
No dia da formatura todos os amigos estavam presentes, assustado. Conversamos e ele me falou do resultado dos exames,
era uma bela cerimônia. Quando passaram a palavra a mim, fiz da gravidade da doença de sua mãe. Era um tipo de câncer
uma breve oração, abençoei os formandos e todos os presentes na agressivo, lhe restara pouco tempo de vida.
cerimônia. Após, foram liberados para as comemorações com os
amigos e familiares. Quando nos direcionamos para o salão de
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Eu o acompanhei para falarmos com nosso pai, após a Almerinda que era viúva e muito nos ajudava nos serviços
conversa ficou decidido que nada seria contado a Julia sobre a comunitários. A solidão acabou aproximando os dois.
gravidade de sua doença. Em uma manhã, Bernardo me procurou feliz. Nascia seu
Quando eu os via nas missas, era visível a cara de filho Gustavo. Ele estava ansioso, queria que eu fosse com nosso
preocupação de meu pai e o abatimento de Julia. Passei a pai para conhecê-lo. Naquele mesmo dia fomos era um belo
frequentar mais a casa como havia me pedido Bernardo. Julia não menino nosso pai o agarrou emocionado. Aquela criança parecia
me tratava mais com aquela indiferença, acho que me via mais lhe trazer novo vigor e alegria.
como o padre que tentava lhe ajudar do que o enteado que ela A vida prosseguia, os anos se passaram e um dia à
tanto rejeitou, mas com o tempo e vendo os meus cuidados com tardinha recebi a visita de meu pai para conversarmos. Nesse dia
ela um dia ela me falou: “Sabe que fui muito má contigo. Nunca ele me perguntou o que eu achava de Almerinda, eu lhe disse o
te tratei com carinho e amor que toda a criança precisa. Hoje quanto nos era solidária nos trabalhos voluntários, que era uma
percebo o quanto eu errei e o quanto tu és bom, me tratas com grande amiga, mulher admirável. Ele foi logo dizendo:“eu
cuidado e carinho, acho que não mereço”. Eu lhe respondi que também acho isso”, e prosseguiu falando. Eu conversei com ela
todo o ser humano é capaz de errar, reconhecer os próprios erros é que também é uma mulher só e decidimos morar juntos, mas ela
um sinal de arrependimento, sempre é possível mudar para se me pediu que antes eu falasse com meus filhos para ver se
tornar uma pessoa melhor. estavam de acordo.
Com os olhos rasos de lágrimas ela me respondeu: “Tu és Fiquei feliz porque sabia o quanto Almerinda faria bem ao
bondoso. Acho que Deus te colocou em meu caminho para me meu pai, que desde a morte de Júlia estava tristonho e meio
testar. Creio que eu falhei, fui má. Será que um dia vai conseguir depressivo, mas ao conhecer Almerinda sua vida ganhou um novo
me perdoar?” eu respondi, que em meu coração não havia lugar sentido. Almerinda era positiva, sempre alegre, de bem com a
para mágoas, eu já havia lhe perdoado. vida, com inúmeras qualidades que a tornavam uma mulher
Em um momento de reflexão, me perguntei por que apesar especial. Eu tinha certeza que Bernardo também ficaria feliz por
de tudo que Julia já me havia feito eu não conseguia sentir raiva nosso pai ter encontrado tão boa pessoa. Em um almoço de
dela. Eu sabia queum dia eu teria essa resposta. família a união se concluiu, nosso pai refez sua vida.
Em menos de um ano Julia faleceu. Rezei por sua alma, Em uma conversa com padre Xavier falávamos sobre a
para que descansasse em paz. Meu pai ficou abalado e Bernardo vida e a morte, como tudo era passageiro, foi quando ele me disse
ainda mais triste por perdê-la sem que ela conhecesse o seu filho que já estava se sentindo cansado, que a idade já lhe pesava, mas
que iria nascer após alguns meses. que estava feliz porque sabia que quando partisse eu seguiria
Com a morte de Julia, meu pai me procurava com mais conduzindo sua paróquia como sempre fazíamos, com amor e
frequência. Quando eu menos esperava, ele aparecia para humildade.
conversar. Com essa aproximação ele também se tornou amigo de
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Senti aquele dia um aperto no peito, angústia e tristeza. maravilhosa que eu sentia fluir de minhas mãos, sensação
Após alguns meses eu entendi o porquê de forma repentina inexplicável. Meus relatos sempre eram ouvidos por meu querido
Xavier nos deixou. Rezei por sua alma com profunda tristeza, Xavier, sua ausência me entristecia como ele me fazia falta meu
tantos anos em sua companhia eu me vi só para conduzir nossos amigo confidente.
fiéis, mas eu sabia que precisava seguir minha missão de padre. Em uma noite sonhei com ele e minha mãe, os vi felizes
Continuei com minhas visitas aos doentes como sempre fazíamos, em um lugar muito bonito. Senti a paz que os envolvia, acordei
mas ao chegar à igreja como eu sentia falta das conversas com sentindo essa paz que me acompanhou por todo aquele dia.Muitas
meu querido amigo Xavier. vezes com eles sonhei e percorri lugares lindos, eram momentos
Em um domingo após a missa, fui para um almoço na casa únicos de profunda paz.
de meu pai. Comigo eu sempre levava minha avó. Estava também Nos meus momentos de solidão, me entregava de corpo e
lá Bernardo e a família. O contato com o neto Gustavo fazia alma às minhas orações. Nesse momento eu sentia que não estava
muito bem ao nosso pai. Eu o sentia mais jovem, interagindo nas só, que anjos me acompanhavam em minha jornada. Nos
brincadeiras com o menino, tudo ali era tão harmonioso, momentos de cansaço pela longa caminhada na visita aos
Almerinda transparecia bondade, nos tratava como uma enfermos, sentia-os acariciar meus pés amenizando as bolhas que
verdadeira mãe. Eu via nos olhos de meu pai um novo brilho, se formavam no longo caminho percorrido.
acho que a companhia dela estava lhe fazendo muito bem. Percebi Conduzi minha vida de forma simples, sempre disposto a
que a vida nos tirava, mas também nos presenteava com algo servir os que vinham a mim buscar uma benção ou uma palavra
novo. Que a felicidade pode estar em coisas tão simples, como de conforto. Procurei ensinar que a dor nos fortalece, nos faz
um almoço em família, quando nessa existe harmonia e amor. refletir sobre a vida, e o caminho que escolhemos seguir, sem
Esse foi o último almoço com minha avó presente. Pouco tempo esquecer que tudo na vida é passageiro, que era importante saber
depois ela faleceu. desfrutar cada momento com plenitude e amor.Orei por os que
Nos meus sermões eu sempre pregava o quanto era partiram, também orei pelos que chegavam em busca da água
importante a união das famílias, que essa formava laços de amor benta da pia batismal.
para toda uma vida. Em uma tarde, sentado na praça da cidade, eu observava
Em minha paróquia, muito procurei fazer pelos que meu pai que ali também estava com Almerinda aquecendo-se ao
vinham a mim. As missas eram sempre repletas de fiéis, muitos sol. Os dois já velhinhos, ela sempre alegre e sorridente. Nele eu
deles aguardavam o momento da bênção que eu sempre fazia pela percebi que a chama da vida se apagava, senti meu coração
saúde e várias pessoas me relatavam o quanto era milagrosa apertado. Alguns meses depois ele faleceu. Eu rezei por sua alma,
minha oração agindo em seus males. Eu percebia a força desse após dois anos pela alma de Almerinda. Esse era o momento mais
momento, nele eu sentia o calor de minhas mãos, a energia que doloroso para mim, mesmo sabendo que fazia parte da vida que
tocava os fiéis que aguardavam aquele momento. Era uma energia era inevitável.
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Nas minhas missas eu observava que no banco bem à especial para mim nesse dia. Por instantes eu senti nosso pai e
frente, um menino sempre estava atento a tudo que eu falava, Almerinda presentes na festa.
fazendo questão de participar das missas, um dia lhe perguntei se Passado um tempo, sonhei com minha mãe ela sorria para
queria ser coroinha de minha igreja, ele sorridente correu e foi mim e me disse: “Cristovão meu filho, em breve estará aqui ao
falar com seus pais, logo retornou dizendo que sim, vi naquele meu lado. Tua missão está chegando ao fim”.
menino a missão do sacerdócio. Francisco era seu nome. Em Em minhas caminhadas ao encontro dos enfermos, percebi
todos os domingos ele estava ao meu lado orgulhoso por algo estranho em mim, um cansaço que antes não sentia, mas
participar das missas. mesmo assim sempre procurei atender meus fiéis e fazer minha
Um dia ele veio a mim e disse: “Eu quero ser como o caridade. Era prazeroso levar a palavra de Deus para aqueles que
senhor, quero ser padre”. Foi como se eu voltasse no tempo me eu sabia que não podiam ir à igreja por motivos de saúde.
lembrei de quando eu cheguei para o padre Xavier e lhe disse que Irmã Marta me acompanhou em uma dessas visitas. Senti
gostaria de ser padre, me vi naquele menino, senti que algo que tudo rodava. Paramos, bebi um pouco de água. Quando
especial nos uniria. melhorei, prosseguimos de volta a igreja. Quando cheguei, me
Com o passar do tempo percebi que estava certo. sentia cansado. A irmã Marta me disse que deveria procurar um
Francisco fora para o seminário. Nas visitas a sua casa, ele médico e fazer alguns exames. Brinquei com ela dizendo que não
sempre me procurava e expressava o desejo de ficar na mesma morreria sem antes deixar alguém em meu lugar.
paróquia. Em uma missa de domingo fiquei muito feliz ao ver
Em uma tarde eu preparava o altar para a próxima missa Francisco já consagrado padre no altar ao meu lado. Nesse dia a
quando percebi um casal que se aproximava. Quando olhei o missa foi especial para mim. Naquele momento eu senti que
rosto vi que era meu sobrinho, Pedro, e sua noiva Lurdes. Foram aquele jovem seria meu sucessor.
me convidar para o casamento. Nesse dia percebi o quanto o Tudo se encaminhou para isso. Francisco conseguiu ficar
tempo havia passado e aquele menino que corria brincando com em minha paróquia para me ajudar, minha saúde frágil não me
meu pai se tornara um homem responsável. permitia fazer tudo como antes, procurei botá-lo a par de tudo. Eu
No dia do casamento, uma bela cerimônia feita por um tinha pressa.Ele sempre me dizia:“Teremos tempo para isso”, mas
rabino seguindo as tradições da família da noiva. Pedro também eu sabia que meu tempo não seria tão longo.
fez questão que eu lhes desse a bênção de nossa igreja. Meu Nas visitas Francisco se mostrou humilde, prestativo e
irmão também tinha uma filha chamada Laura, jovem muito atencioso fora bem acolhido na comunidade, suas atitudes
encantadora, meiga e carinhosa com todos a sua volta. Durante a me mostravam o quanto éramos parecidos, tive a certeza de que
festa conversei com meu irmão, relembramos tantas coisas, ele era a pessoa certa para ficar em meu lugar, em nossa paróquia.
desfrutei daquele momento em família, que também se fez Quando com ele conversei eu lhe falei de minha satisfação ao
fazer o que eu gostava pregar a palavra de Deus e ajudar ao
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próximo. Ele sorrindo me disse, somos parecidos farei o mesmo e alegre como de costume me disse: “Deus é quem sabe o momento
pregarei a palavra de Deus com humildade e amor seguindo os de cada um de nós partirmos, mas pedirei a ele que o deixe mais
teus ensinamentos. um longo tempo ao nosso lado”. Senti-me feliz por saber que,
Convivi pouco tempo com Francisco, mas era como se eu o mesmo velho, eu ainda era importante naquela paróquia.
conhecesse a muito tempo. O inverno aquele ano se mostrava rigoroso, os campos
Em um domingo após a missa almoçamos e saímos para amanheciam brancos pela neve que caía durante a madrugada,
andar um pouco. Era uma tarde de primavera. Olhei o campo assim como as árvores mostravam em seus galhos os desenhos
florido e por instantes me vi correndo por ele junto a minha mãe, esculpidos pela neve, uma bela paisagem iluminada pelos raios de
senti uma profunda paz. sol.
Nesse dia também tive a visita de meu irmão que na antiga Com o rigor do inverno nos era mais difícil fazer as
casa de nosso pai me aguardava junto à família para um jantar, habituais visitas aos enfermos. Eu já não tinha ânimo de
levei comigo Francisco. Foi um jantar agradável. acompanhar o padre Francisco e Marta. Minha saúde estava
Em uma conversa com meu irmão, recordávamos um frágil.
pouco a infância quando ele me disse que sabia que sua mãe não Um dia Francisco e Marta foram visitar um doente. Eu me
fora para mim a mãe que eu precisava ter, e mesmo assim eu agi sentia indisposto, mas não demonstrei isso a eles, não queria que
como um verdadeiro filho, nos momentos finais dela, não guardei se preocupassem comigo. Fui até o altar de nossa igreja, me sentei
rancor e completou: “Eu te admiro por isso”, lhe respondi que o bem próximo a ele e fiz minhas habituais orações. Enquanto
rancor é uma bagagem muito pesada que se carrega quando não orava senti um suave cheiro de flor, fechei os olhos e nesse
se consegue perdoar, que eu havia escolhido servir a Deus. momento meditativo em minha frente se mostrou um belo jardim,
Quando fazemos essa escolha precisamos ter o coração livre sem senti vontade de percorrê-lo, conforme eu o percorria mais beleza
o peso dos maus sentimentos. Francisco me escutava atento seus nele eu via e mais agradável o perfume das flores. Uma sensação
olhos brilhavam, senti sua admiração por mim. de leveza foi se apossando de mim. Eu vi que para trás ficou meu
Nos dias em que meu irmão permaneceu na cidade corpo velho e cansado sobre o banco estendido. No jardim se
procurei com ele estar. Eu sentia que eram momentos preciosos formou um caminho onde eu avistei minha mãe de braços abertos,
que precisavam ser vividos por nós. Fora a última vez que me aguardando sorrindo como fazia quando eu era criança. Fui
estivemos juntos antes de minha morte. envolto por sua luz, senti grande emoção e a certeza de que laços
Em uma tarde fria de inverno tomei um chá com Francisco de amor não se rompem com a morte por que sempre existiram os
e a irmã Marta, que tanto nos ajudava nos trabalhos voluntários. reencontros.
Nessa tarde eu disse a eles que meu tempo se encerrava na terra, Cristovão.
mas onde quer que eu estivesse olharia por eles e pelos fiéis.
Francisco me olhou com olhar de tristeza. Marta sorridente e
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LARA seu caminho. Marta ficou admirada com a rapidez com que o
pássaro se recuperou. Nesse dia ela teve a certeza de que Lara
Na França do século XV nasceu Lara filha de camponeses. tinha também o dom de curar. Preocupada, ela fala com Pietro seu
Era noite de lua cheia quando a menina despertou para a vida, seu marido e os dois fazem de tudo para proteger a filha.
nascimento foi comemorado pela família. O pai a apresentou a lua Lara previa a época de semear para terem boa colheita.
como era tradição da família. Em seu coração sentia à vontade de ajudar os que sofriam e
Lara cresceu correndo pelos campos ao meio das flores, sempre que alguém estava doente ela ia com suas ervas. Seu dom
misturando-se as borboletas que sobre essas voavam. Do jardim, se fortalecia a cada dia. Em suas mãos ela podia sentir a força
sempre colhia lindas flores e as levava para casa, as colocava em dessa energia.
um vaso que adornava a sala simples da cabana em que moravam. Já moça, fora levada pela primeira vez à cidade, pois
Dos pais recebia amor sentido nos gestos e nos cuidados. sempre insistiu para ir com o pai, mas ele evitava levá-la, sempre
Com eles, Lara aprendeu que o amor era o mais importante de lhe dava uma desculpa. Finalmente ele concorda que ela o
tudo, quando se tinha amor no coração tudo era visto com beleza acompanhe. Ao chegar à cidade, Lara ficou encantada com tudo
desde a mais singela espécie existente na terra. que viu, mas achou estranho viu riqueza e pobreza se misturarem
Lara trazia consigo um dom especial, a vidência e o dom pelas ruas movimentadas próximas ao castelo que lhe pareceu um
de curar. Esse dom era herdado de tempos em tempos por uma gigante vigiando o povo.Nesse palácio vivia Gian filho do rei
mulher da família. Marta se preocupava com a filha, pois muitas Marcel e da rainha Brigit.
mulheres da família já haviam sido chamadas de bruxas e foram Nas suas idas à cidade, muitas vezes Lara tocou enfermos
mortas por terem esse dom. nas ruas aliviando suas dores. Sua mãe sempre lhe pedia que não
O sofrimento passou a tocar o coração de Marta, que não fizesse isso para não chamar a atenção, mas Lara não conseguia
suportava imaginar sua filha sendo perseguidae chamada de conter o desejo de ajudar.
bruxa, temia por sua vida. Nas noites perdia o sono pensando em Em uma dessas idas à cidade Lara segue em direção ao
como proteger Lara. castelo. Era como se algo lhe chamasse. Ao chegar ao grande
Ao andar pelo campo, Lara encontra um pássaro ferido por portão, esse se abre dando- lhe passagem. Meio temerosa, ela
caçadores. Era um filhote de águia. Cuidadosamente ela o agarrou segue em frente percorre grandes corredores até que chegar aos
e o levou para casa. Ao chegar, mostra para a mãe e diz como os aposentos do jovem Gian. Esse, febril, agonizava a dias
caçadores são cruéis, é apenas um filhote. “Vou cuidar dele”, esperavam apenas seu desencarne. Lara colocou as mãos sobre a
disse. Passado alguns dias e o pássaro batia asas firme mostrando cabeça do jovem e fez uma breve oração. Nesse momento entra
sua força. Lara percebeu que ele já podia voar e o soltou, mas por no quarto a rainha e Lara lhe diz: “Permite-me ajudá-lo?”.
instantes ele ficou no ombro da menina como se quisesse Brigit já havia tentado de tudo para ajudar o filho. Nesse
agradecer os cuidados que ela teve com ele. Logo voou e seguiu momento lembrou-se das palavras de uma velha vidente que lhe
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disse: “O mal que fora lançado sobre teu filho, será retirado por há muito tempo. Gian pediu permissão aos pais de Lara para
uma linda jovem com dons de cura, essa terá o coração de teu cortejá-la e assim o fez até o dia que a levou para com ele morar.
filho e o povo acolhera o casal com idolatria e amor”. No castelo onde ela foi acolhida como a uma filha pelos
Com a permissão de Brigit Lara prossegue. Pediu uma pais de Gian, Lara manteve a simplicidade mesmo vestindo caros
bacia com água. Retira de seu bolso três folhas de uma erva as vestidos, ajudava os pobres, pois sabia o quanto era difícil a vida
quais molhou na água e colocou no peito e na cabeça do jovem. dos menos favorecidos. Conquistou a devoção do povo que
Passado um tempo, a febre sumiu. Gian abre os olhos e lhe diz: clamava seu nome pelas ruas por onde passava. Gian se sentia
“Morri e estou no céu, você é um anjo?” Lara sorri e após diz a feliz ao lado da mulher que trouxe luz aos dias sombrios.
rainha: “Ele ficara bom. Agora preciso ir.” A rainha pergunta: No castelo fora feito um vasto jardim onde Lara passava
“Quem é você? como posso recompensá-la?” Lara diz: “Seja horas admirando as flores e as borboletas que sobre elas voavam.
uma boa rainha para teu povo.” Saiu rápido do palácio ao O reino se fez próspero e feliz. Lara seguiu sua existência
encontro de seus pais que a procuravam por toda parte aflitos com fazendo o que gostava distribuindo amor, sendo o que sempre foi
seu sumiço. Lara lhes disse que precisou ajudar um jovem. uma bruxa do bem.
A partir daquele dia Gian se recuperou deixando todos no
reino muito felizes.
Os pais de Lara temerosos não permitiram que ela voltasse
à cidade.
Gian procurou Lara por todos os lugares não conseguia
tirá-la de seu pensamento. Sentiu quando a olhou nos olhos algo
tocar sua alma, junto ao sopro de vida que ressurgia em seu corpo.
Após muita procura, quando a encontrou ele surgiu em um
lindo cavalo branco, que misturado ao verde destacava uma
branca luz. Lara o avistou de longe e seu coração disparou. Era o
jovem de seus sonhos, o mesmo que ela ajudou. Esse se
aproximou e lhe disse: “Te procurei por vários lugares e aqui
estas como uma flor nesse belo jardim. Sonho contigo todas as
noites desde o dia em que em teus olhos olhei e meu coração
disparou. Devo-te minha vida e quero contigo dividi-la por toda
minha existência”.
Lara sentiu algo mágico naquele encontro e não quis fugir
da magia daquele momento. Conversaram como se conhecessem
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VÍTIMAS DO ÓDIO não a encontrou, mas pode sentir a rivalidade das famílias ainda
tão forte quando cruzaram frente a frente e pode sentir no silêncio
No meio de uma guerra de famílias, os Fontes e os e no olhar de seu pai Lorenzo o ódio que ele sentia de Augusto.
Amarais, nasce um amor Puro e lindo entre Lúcia e Júlio. Já havia passado tanto tempo e ele não entendia por que
Por disputas de terras as famílias se tornaram grandes aquele ódio tinha de permanecer. Júlio sentia o mal que aquele
inimigas, mas o que não imaginavam era o que o destino lhes sentimento fazia a ambos.
reservava. Ao chegar em casa, Júlio conversa com o pai sobre todo
Júlio era um jovem estudioso, passou grande parte de sua aquele ódio, o porque não tentavam as famílias se entenderem e a
vida fora do país, se tornou advogado e agora retorna a cidade de resposta de seu pai foi que não perdoava seus inimigos, que só
Santa Fé, onde moravam seus pais. Quando retornou percebeu teria descanso quando os visem no chão caídos. Ninguém mexia
que muito havia mudado no lugar menos o ódio que seu pai sentia com um Fontes e saía ileso. E não importava o tempo que for eles
pelos Amarais. Júlio acreditava que com o tempo eles se pagariam. Era tudo uma questão da hora certa. Naquele momento,
entenderiam, mas percebeu que tudo prosseguia igual. Júlio sentiu todo o ódio de seu pai pelo inimigo, mas mesmo
Nessa época Lúcia também chegou a cidade para ficar um sendo seu filho, tinha a certeza que não herdará dele aquele
pouco com os pais, após passar grande parte de sua vida sentimento tão ruim.
estudando também fora do país. Lúcia era apaixonada por música. Sua mãe Maria apenas escutava o marido. Júlio sabia que
Tocava piano com grande habilidade e delicadeza, e foi na igreja a mãe era submissa a ele, que muitas vezes quando criança ela
que conheceu Júlio. O padre sabendo de sua aptidão pela música tentou impedir as punições que seu pai lhe fazia e acabava sendo
lhe mostrou o piano e pediu-lhe que o tocasse em alguns punida também. Ela tinha respeito e medo dele.
momentos. Aquela missa fora a mais bela que todos haviam Na casa dos Amarais, Lúcia fala com a mãe sobre o jovem
assistido. Cada música sacra tocada por Lúcia parecia elevar que conheceu na igreja. Eugênia sentia nas palavras da filha
todos ao céu inclusive, Júlio que ficara encantado não só por a interesse e encantamento pelo jovem. O que não imaginavam era
música, mas por aquela linda mulher que fez disparar seu coração que aquele seria um amor impossível pela rivalidade das famílias.
o fazendo sentir o que nunca havia sentido antes por nenhuma Eugênia tinha mais dois filhos já casados, mas que mantinham a
outra mulher. mesma opinião do pai sobre o inimigo. Essa inimizade iniciou há
Sentia o pulsar de seu coração cada vez mais forte ao se anos atrás, o motivo: a propriedade dos Amarais que fora
aproximar da jovem, no final da missa fez questão de conhecê-la, invadida pelos Fontes, na briga por as terras o avô de Júlio,
conversaram sem saberem de suas origens familiares. Naquele Frederico, fora morto, o que fez crescer o ódio dos Fontes pelos
momento, Júlio apenas queria conhecer aquela mulher que o fez Amarais.
sentir no céu. Júlio foi para casa, mas não conseguia tirá-la do Em um domingo lindo de sol, Lúcia fora passear com o
pensamento. No outro domingo retornou a missa, mas nesse dia irmão Rodrigo e a cunhada Eulália e nesse passeio ela encontra
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Júlio, que sorridente vem cumprimentá-la. Até então não sabiam entregasse a Júlio. Assim passaram a se comunicar e foi através
que eram filhos de famílias inimigas. Nesse dia, Lúcia lhe diz que dos bilhetes que tramaram um modo de fugirem juntos.
tocaria novamente na igreja a pedido do padre, e Júlio fez questão Durante a madrugada, Lúcia sai pela janela e vai em
de lhe ver tocar. Nesse dia se declarou, dizendo tê-la sempre em direção a um lago onde se encontraria com Julio que a aguardava
seu pensamento. Lúcia sorri e confessa também pensar nele. Os ansioso para fugirem. Andaram horas a cavalo. Quando o dia
dois combinam de se encontrar na festa de São Lorenzo onde amanhece, Eugênia não tinha um bom pressentimento. Foi ao
costumam se reunir todos os moradores da cidade, e foi nesse dia quarto da filha e não a encontrou. Olhou no guarda-roupa e viu
que descobriram que o amor que sentiam um pelo outro seria que faltavam algumas roupas. Sentiu uma angústia que lhe tocou
proibido pelas famílias que se odiavam. o coração. Ela sentia que algo ruim iria acontecer, mas não pode
Quando ficaram frente a frente, o pai de Lúcia já sabendo esconder o sumiço da filha, teve de contar ao marido que ficou
que o rapaz era filho de seu inimigo, grita para que a filha se furioso, chamou os empregados e os filhos para que saíssem atrás
afaste do rapaz e lhe diz o porquê, mas Lúcia e Júlio não achavam de Lúcia.
justo terem de pagar por as desavenças dos pais. E seguiram se E na casa dos Fontes, um dos empregados também chegou
encontrando às escondidas. Apenas quem sabia era o padre, pois contando que avistou Júlio a cavalo com uma jovem. Logo o pai
os encontros eram muitas vezes na igreja e foram descobertos de Júlio deduziu que era o filho que roubara a filha de seu
pelo padre Francisco que sabendo do amor dos jovens nada fez inimigo. E ali naquele momento dava-se início a uma nova
para impedir os encontros. guerra. Ele não iria admitir a mistura se sangue.
Com o tempo, Eugênia a mãe de Lúcia também descobre e Cansados, Júlio e Lúcia resolvem descansar um pouco em
teme por os dois. Sente em seu coração de mãe um aperto no uma caverna que Júlio costumava brincar quando criança. Ele lhe
peito cada vez que a filha sai de casa. dizia que ninguém conhecia aquele lugar tão bem quanto ele. Ali
Os encontros prosseguiram e cada vez mais eles tinham ficaram durante a noite para descansar e foi ali que se entregaram
certeza do quanto se amavam. Faziam planos de fugirem juntos e ao amor. Lúcia naquele momento sentiu que Júlio lhe
construírem uma família longe de todo aquele ódio entre suas completava, que o amor que sentia por ele parecia já existir em
famílias. Eles sabiam que não conseguiriam ficar juntos se não seu coração e apenas aguardava o momento de despertar
fossem para longe da cidade, as famílias não aceitariam a união novamente. Júlio ao possuí-la, percebera que ela era a mesma
dos dois e tiveram essa certeza quando o pai de Lúcia desconfiou jovem que vinha em seus sonhos e por qual ele sentia um amor
que a filha encontrava-se às escondidas com o rapaz e a impediu puro e verdadeiro.
de sair de casa. Somente saía acompanhada de seus irmãos com Júlio estava feliz com Lúcia em seus braços, mas ao
ordem de não deixá-la sozinha. Lúcia cada vez que ia a igreja com mesmo tempo sentia uma angústia e bem cedo antes que o dia
os irmãos deixava no confessionário um bilhete para que o padre amanhecesse, acordou Lúcia para seguirem viagem até a cidade
vizinha, onde pegariam o trem, mas antes de chegaram a estação
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foram surpreendidos pelos capangas do pai de Lúcia e também os raiva sentiam dos Fontes. No enterro da filha Augusto jurou que
de seu pai, e novamente ficaram frente a frente os inimigos, que não ficaria assim, que os Fontes pagariam por aquela perda.
naquele momento não pensaram nos sentimentos que existia entre A partir daquele dia, Eugênia ficou fora de si, não era mais
os filhos, o que prevalecia era apenas aquele ódio que os cegava. a mesma, muitas vezes ia ao túmulo da filha, levava roupa e
Quando Júlio gritou que queria se casar com Lúcia seu pai comida como se a filha estivesse viva. Ela não conseguia perdoar
lhe responde: “Jamais aceitarei a filha de meu inimigo misturada o marido por aquela tragédia. A vida passou a ser insuportável
a minha família”, naquele momento formou-se uma discussão e para ela, tudo perdera o sentido com a morte de Lúcia.
Lúcia falou em voz alta: “Eu amo Júlio. Sou e serei sempre sua Na fazenda dos Fontes, Júlio também se encontrava em
mulher”. sofrimento. Ele não conseguia tirar aquela triste cena de seu
O pai de Lúcia, furioso, pede a um de seus capangas que pensamento. Com Lúcia fora enterrado todos os seus sonhos e
agarre a filha e a leve para sua casa. Nesse momento, Júlio planos a dois. Seu pai tentou mandá-lo para fora da cidade, mas
interfere e Augusto saca a arma para ele e Lúcia se joga na frete não conseguiu. Júlio sentia que estaria com Lúcia em breve.
no momento em que a arma dispara. Ela é atingida no peito. Júlio Em uma noite ele teve um sonho onde ela lhe pedia que
em desespero agarra a jovem e grita: “O que o senhor fez?” Ele ficasse longe, que sua vida corria perigo, no sonho ele viu o local
chora agarrado ao corpo de Lúcia. Sentia naquele momento uma onde ela fora enterrada.
dor como se o seu peito também fosse atingido por aquela bala. O Em uma tarde ele sai em seu cavalo, andou por vários
pai de Júlio o retira do local e o leva para casa em estado de lugares da fazenda e foi até o local onde eles se encontravam,
choque. Sua camisa fica toda suja do sangue da amada. colheu lindas flores e no caminho sentiu vontade de colocá-las
Em casa, Júlio inconformado, não consegue aceitar o que sobre a sepultura da mulher que tanto amou e que ainda era dona
aconteceu e diz ao pai: “Eu preciso me despedir dela. Eu a amo de seu coração. Não sabia ele que aqueles eram os últimos
tanto”. Seu pai mesmo vendo o sofrimento do filho é firme e lhe minutos de sua vida. Ao atravessar as terras dos Amaral assinou
diz: “Você não vai a lugar algum. Se aparecer na frente dos sua sentença de morte. Quando ele avistou a sepultura e viu a foto
Amaral te matarão. Tu vais ficar aqui e não permitirei que saia”. de Lúcia, seu coração disparou e uma profunda tristeza o invadiu.
Lorenzo dá ordens aos seus homens que não deixem o filho sair Nesse momento ele sentiu a dor profunda de não tê-la ao seu lado
da fazenda. e não poder mais tocá-la. Ajoelhou-se aos pés da sepultura após
Nesse momento, Augusto chora ao juntar o corpo da filha colocar ao lado da foto o buquê de flores do campo que ele havia
e o leva em seu colo para casa, ao chegar em casa, Eugênia grita colhido, mas de repente o som de uma arma que dispara. Júlio cai
ao ver o corpo da filha: “Meu Deus!O que fizeram com a minha sobre a sepultura de sua amada.
menina?Por que meu Deus?Por que?” Nenhuma das explicações Ali se encerra sua jornada na terra, naquele momento ele
que lhe deram amenizou aquela dor tão profunda. Augusto e o também teve a certeza de estar com Lúcia que surge lhe
filho Gustavo sentiam ainda mais revolta pelo ocorrido e mais
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estendendo a mão. Os dois seguem campo a fora sentindo o O ANDARILHO


aroma das flores do campo naquela tarde de primavera.
A maioria das pessoas não sabem, e os que sabem Sinto dentro de mim uma inquietude como que uma
esquecem, que tudo o que temos nessa vida nos é emprestado. O necessidade de buscar algo mais. Foi essa inquietude que me
que realmente é nosso está em nossa bagagem, é o que não tornou um andarilho, e como um andarilho vi tantas coisas e
vemos, mas podemos sentir em nosso coração. Os sentimentos tantos lugares, enfrentei sol, chuva, preconceito, mas também
esse fazem parte de nossa bagagem e nos acompanham nas idas e encontrei compaixão, caridade e amor.
vindas de nossa existência em busca da evolução. Tornei-me um andarilho ao perder o que eu tinha de mais
Muitos sentimentos precisam ser trabalhados, são eles que precioso minha mãe. Com ela suportei as dificuldades e as
nos permitem progredir ou regredir tudo depende de nós.Quando malvadezas de meu pai que a cada bebedeira nos agredia. Muitas
buscamos o conhecimento espiritual, passamos a perceber que já vezes tive vontade de sair, ir embora de casa, mas não o fiz por
temos o mais importante. Ao nos conhecermos interiormente, minha mãe e minha irmã.
descobrimos que a verdadeira felicidade não está nas coisas As bebedeiras de meu pai o levaram a morte ainda jovem.
materiais, ela está sim onde houver paz de espírito. Fora atropelado ao retornar para casa bêbado, após uma noite de
Muitos brigam por bens materiais desperdiçando assim o orgia. Eu olhei para o seu corpo no caixão, senti tristeza, mas
tempo que poderia ser gasto em coisas mais importantes na vida, também senti alivio teríamos paz em nosso lar. Minha mãe
mas a ganância humana pode cegar os olhos, e tudo ser feito em chorava por aquela situação, sei que também pela
benefício próprio. Os atropelos são vistos como parte essencial responsabilidade de nos criar sozinha. Fiquei firme ao seu lado,
para se chegar à onde quer, mas ao passar por cima de passamos por dificuldades, mas ao final de cada dia podíamos
tudo,passamos também por cima de nossos valores e princípios, deitar tranquilos e descansar.
esquecendo a verdadeira razão de se estar aqui. Minha mãe se chamava Rosa, saía cedo todo o dia para
Quando vemos a vida com olhos de quem partiu, percebe- trabalhar, deixava minha irmã Luiza em uma vizinha que,
se o quanto o tempo é perdido na busca do material sem perceber comovida com nossa situação, se ofereceu para ficar com ela. Eu
que esse fica na terra, pois é apenas um empréstimo, e só também trabalhava para ajudar, ia de porta em porta oferecendo
percebemos quando a chama da vida se apaga deixando para trás meus serviços.
o que julgávamos nos pertencer tola ilusão. Nosso é apenas o que O tempo foi passando, me tornei um homem. Minha irmã,
levamos na alma. uma bela jovem e minha mãe, a mulher guerreira de quem eu
tanto me orgulhava, sempre firme ao nosso lado como nosso
porto seguro.
Cristofoli. Em uma tarde, minha irmã Luiza nos surpreendeu ao nos
apresentar seu namorado, Bernardo, que meio sem jeito a pediu
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em namoro. Bernardo era um bom moço estudioso e trabalhador. Minhas inquietudes me faziam seguir como pássaro de
Após um tempo se casaram. Luiza passou a ter uma vida mais galho em galho. Perguntavam se eu era feliz assim, minha
confortável, onde pode também terminar seus estudos. resposta era que, ao meu modo eu procurava ser feliz e deixar um
Com o passar do tempo, eu consegui um bom emprego em pouco de alegria por onde eu passava com minha fiel
uma oficina. Passei a ganhar bem, tinha condições de dar uma companheira, minha gaita de boca. Sua música alegrava meus
vida mais confortável para nossa mãe e compensá-la por tudo o momentos de tristeza me levando a momentos felizes como os
que fez por nós, mas quando tudo parecia bem nossa mãe ficou que guardei em minha memória Os que eu tocava para minha mãe
doente, com uma séria enfermidade que a levou a morte em pouco e minha irmã alegrando aquele ambiente tão tenso.
tempo. Nossa alegria durava pouco quando meu pai chegava eu
A perda abalou minhas estruturas. A vida em nossa casa escondia a gaita para que ele não a destruísse como já havia feito
perdeu o sentido tudo me lembrava ela e o desejo de sair de com uma anterior. Seu som o irritava. Uma vez bêbado, ele me
conhecer novos lugares ficou mais forte em mim. pegou tocando. Levei uma surra. Foi quando minha gaita foi
Em uma manhã, arrumei minhas coisas e resolvi partir. destruída. Minha mãe, com sacrifício, comprou outra para mim e
Conversei com minha irmã que tentou de todas as maneiras me me fez jurar que a esconderia e não tocaria na presença de meu
convencer a ficar. Eu lhe disse que um dia retornaria, que sempre pai.
lhe enviaria cartas. Assim eu fiz, por todos os lugares por onde Quando ele não estava minha mãe adorava ouvir seu som
passei eu lhe enviava uma carta contando de minhas aventuras. assim como minha irmã. Era um momento de alegria. Eu tocava e
Lembro-me quando cheguei em uma pequena cidade dançava para as duas. Essa alegria procurei levar comigo.
chamada San Miguel, os olhares desconfiados por onde eu No final de mais um dia, segui a procura de um lugar para
passava e a abordagem policial perguntando quem eu era e o que passar a noite. Cheguei a um posto de gasolina, falei com o
fazia por ali. Mostrei meus documentos e após um tempo fui atendente se poderia ficar por ali. Ele, com pena, mostrou-me um
liberado. Nessa cidade arrumei um emprego de mecânico em uma banco onde eu poderia descansar. Comprei um café e fiz uma
oficina, fiquei ali por um tempo até arrumar um dinheiro e parti. refeição. Ele me permitiu usar o banheiro e tomar um banho.
O desejo do dono era que eu ficasse, mas eu lhe disse: Repus minhas energias, toquei minha gaita e adormeci.
“Gosto de andar meu amigo, ver novas paisagens. Acho que nasci No outro dia bem cedo, agradeci ao moço e segui meu
para ser livre, preso apenas a minhas lembranças.” Segui sentindo caminho. Já era tardinha quando cheguei a cidade de São
o sol escaldante tocar meu corpo e a paisagem trêmula da estrada Francisco. Na rua, música, era o circo Marabalis que chegava para
que parecia não ter mais fim. Assim fui por várias cidades. Cada ali se instalar. Seus artistas desfilavam pela rua animando o
lugar que eu passava algo novo se mostrava, em algumas pessoas ambiente e divulgando seu trabalho. Foi ali que avistei Sofia, uma
receptividade, em outras frieza e desconfiança, mas quando me linda jovem de pele clara, cabelos cor de mel. Senti algo quando a
conheciam tinham a certeza de que eu era um andarilho do bem.
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olhei nos olhos era como enxergar sua alma iluminada como a lua como integrante do grupo. Sofia também criou um número de
que aquela noite se mostrou tão bela. dança onde, com ela eu dançava. Nossa sintonia era perfeita, a
Procurei um lugar para passar a noite e quando o dia plateia vibrava a cada apresentação.
amanheceu andei pela cidade a procura de um trabalho. Foi Seguimos por várias cidades enfrentando dificuldades,
quando encontrei seu Manolo, ele me ofereceu um serviço. mas superando a cada uma delas como família unida e feliz.
Precisava de ajuda para montarem o circo, mas me disse que não Em uma tarde, eu escrevia uma carta para minha irmã.
poderia pagar muito. Eu aceitei por que sabia que seria a Sofia se aproximou e ficou em silêncio me observando. Acho que
oportunidade de reencontrar aquela mulher que fez disparar meu ela conseguia sentir minha emoção e o amor com que eu escrevia
coração. cada palavra.
Meu trabalho agradou e também o meu jeito alegre e Nesse dia, falamos de nossas dores, da falta que as pessoas
divertido. Sabendo de minhas aventuras como andarilho, seu que amávamos nos fazia. Ela me falou da perda de sua mãe,
Manolo me convidou para ser integrante do circo. Pensei em não Consuelo, que em uma noite trágica caiu do trapézio e faleceu. O
aceitar, mas nesse momento a jovem que me encantou se quanto foi difícil para todos continuar sem ela; que ela sentia
aproximou, era Sofia filha de seu Manolo. Algo dentro de mim presença da mãe nos momentos de dificuldades, que também
me não me deixou partir. Ela trabalhava como dançarina seu sentiu a presença dela quando nos conhecemos aprovando nossa
modo delicado de dançar deixava a todos encantados. Parecia união.
flutuar ao embalo da música. O tempo foi passando, nos casamos no palco onde um
Quando fomos apresentados eu senti que ela seria minha. padre fez a cerimônia a pedido de Sofia, que nesse dia estava
Fomos aos poucos nos conhecendo melhor e nos envolvendo cada ainda mais linda e eu o homem mais feliz por tê-la ao meu lado.
dia mais. Surgiu em mim um amor que não imaginava um dia Fora um dia de festa, eu só lamentava minha irmã não estar
sentir por uma mulher eu sabia que era correspondido, parecia presente, mas com o tempo, passamos pela cidade onde
que nos conhecíamos há muito tempo. Tudo nela me era familiar, morávamos. Lembro-me da felicidade de encontrá-la no meio da
era como a parte que me faltava. plateia. Ela estava sentada com seus filhos Tiago e João. Na
Segui com o circo e a certeza que aquela seria a minha apresentação ela me reconheceu pelo toque da gaita.Fui até ela,
família.Seu Manolo quando soube de minhas intenções para com levei uma flor, nesse momento ela me abraçou dizendo: “Lázaro,
sua filha aceitou-me como mais um membro de sua família. que saudade”.
No circo eu ajudava em tudo que podia, meu modo de ser No final do espetáculo lhe apresentei a minha esposa
brincalhão fez com que eu participasse do grupo dos palhaços, Sofia, conheci meus sobrinhos, fiquei feliz por encontrá-la e ver
usei minha fiel companheira a gaita de boca para alegrar ainda que estava tão bem. Havia estudado, se tornou professora.
mais o espetáculo, com ela fiz o toque alegre e cômico da Enquanto ficamos na cidade fui com ela e Sofia a nossa casa que
apresentação que agradou a plateia e fez com que eu continuasse
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permanecia conservada. Minha irmã me disse: “Sempre tive a apresentações como o pequeno palhaço e também no trapézio
esperança de que retornasse e mantive a casa de nossos pais”. como sua avó Consuelo.
Entrei pela porta recordando todos os momentos desde a Em uma noite quando eu apresentava o espetáculo,
nossa infância, não consegui conter a emoção. Minha irmã me percebi que na cadeira bem a frente uma mulher sorridente me
abraçou e seguimos até sua casa onde estava seu marido Bernardo abanava. Fiquei tão feliz quando vi que era minha irmã Luzia e
e os meus sobrinhos, Tiago e João. Nesse dia visitei também o bar seu marido Bernardo. Já haviam se passado oito anos desde
de dona Augusta que, sabendo de nossa situação, sempre minha ida a cidade onde morávamos.
arrumava algo para eu fazer, me dava algum dinheiro e alimentos. No final do espetáculo conversamos até altas horas
Ela ficou muito feliz ao me ver e conhecer minha esposae matando a saudade. Ela ficou encantada com Miguel que tinha
agradeceu à Sofia por cuidar tão bem de mim. traços de nossa mãe. Falamos também de nosso pai, não tínhamos
Ficamos por um tempo na cidade, quando partimos, falei boas lembranças, mesmo assim eu lhe disse que não guardava
com minha irmã que eu seguiria lhe enviando cartas e dando raiva apenas a tristeza por não ter tido a boa convivência entre pai
notícias, que meu espírito aventureiro não me deixava ficar fixo e filho. Minha irmã me contou que sonhava várias vezes com ele
em nenhum lugar, mas que eu estava muito feliz no circo com pedindo perdão.
minha nova família. Disse que foi com uma amiga em um centro espírita onde
Seguimos viagem. Cada lugar que passávamos recebeu uma mensagem dele direcionada aos dois. Ficamos por
deixávamos alegria com a magia do circo que a tantos encantava. um instante a sós, ela leu para mim enquanto Sofia nos fazia um
O tempo fora passando, meu sogro ficou doente e café. Na carta dizia; “Meus filhos queridos, sei que não fui o pai
faleceu.Com sua morte, eu tive de assumir o circo junto com que desejaram, não soube aproveitar a oportunidade de evoluir
Sofia. Mantivemos as apresentações sentindo muita falta de junto a vocês, fui fraco me deixando levar pelo vício que tanto fez
Manolo que com seu jeito alegre anunciava cada espetáculo. mal a mim e também a vocês. No lugar do amor foi raiva que se
Passado um tempo, Sofia engravidou. Minha alegria foi instalou nos momentos em que mergulhei na bebida, essa cegou
imensa. Eu seria pai.Quando meu filho nasceu, senti a grande meus olhos não me deixando ver o quanto eu perdia e o quanto os
responsabilidade que eu teria nas mãos.Procurei ensinar tudo que momentos em família são importantes. Sei que dão aos meus
eu aprendi. Dei amor de pai que tanto me fez falta, que eu sabia, netos o que eu neguei a vocês.
era muito importante para que se tornasse um adulto seguro e “Perdoem por o tanto que lhes fiz sofrer, eu também sofri
feliz. Sofia lamentava não ter o pai vivo para conhecer o neto que entre a luz e a escuridão. Foi no arrependimento que a luz se
tanto desejava. mostrou na mão que se estendeu para me ajudar, essa mão
Miguel encheu nossa vida de alegria, era uma criança delicada era de vossa mãe que na luz permaneceu e por mim tanto
inteligente e criativa. Em pouco tempo começou a participar das fez para me resgatar do sofrimento em que eu permanecia.
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“Hoje ao seu lado percebo que sempre temos uma Lázaro era alegre e divertido, o que fora mantido por toda
oportunidade de nos tornarmos melhores. Sei que um dia a sua vida, onde ele passava arrancava sorrisos com seu modo
retornarei a terra para seguir buscando a evolução de minha alma. brincalhão.
“Orem como sempre fizeram e mantenham o coração puro Miguel puxou ao pai era um menino alegre e divertido. E
é esse o caminho para o crescimento interior. Saudades Gustavo”. assim ele cresceu tendo como exemplo o pai que tanto ele
Não pude conter a emoção ao escutar as palavras de nosso admirava.
pai. Minha irmã me abraçou e disse: “Fique com a carta. Sei que é O circo havia crescido, se tornando requisitado por onde
importante pra ti, eu fiz uma cópia para guardar comigo”. Quando passava, o público era garantido, as viagens seguiam uma
percebemos o dia estava quase amanhecendo. Combinamos de temporada em cada lugar.
passar um dia juntos com as famílias reunidas. Foi nesse dia que Luzia sempre que possível ia ao encontro do irmão. Cada
Miguel conheceu os primos que já estavam crescidos, eu já não os encontro era comemorado com alegria e emoção. Em um desses
reconhecia. encontros Luzia lhe falou dos filhos, Tiago se tornara médico e
Tiago já um rapaz robusto como o pai e João um João engenheiro, como o pai. Já estavam casados, seguiram suas
adolescente inquieto. Eu me vi nele com essa idade. Passamos um vidas. Lázaro ficou feliz por saber que estavam bem e com uma
dia maravilhoso com as duas famílias reunidas. Miguel mostrou bonita profissão.
aos primos o circo, como tudo funcionava, lhes mostrou o Nesse dia, Lázaro apresenta os filhos adotivos, Júlia e
trapézio onde, orgulhoso dizia: “Sabiam que minha avó Consuelo Pedro. As crianças foram deixadas no circo com uma carta que
foi uma grande trapezista, mas infelizmente em um acidente ela dizia: “Não posso sustentá-los, padeço de grave enfermidade,não
caiu do trapézio e faleceu?”. Os primos logo lhe perguntaram: posso contar com a ajuda do pai, sei que cuidarão deles com
“Tu não tens medo?” O menino respondeu aos primos: “Gosto de amor. Senti a alegria de meus filhos quando no circo estivemos, o
estar lá em cima. Essa vontade é mais forte que o medo, e meu pai brilho nos olhos deles e a alegria me fizeram tomar essa decisão.
coloca uma rede embaixo, se eu cair não vou me machucar”. Não quero que sofram ao me verem definhar a cada dia sendo
Enquanto os primos andavam pelo circo encantados com o levada pela grave enfermidade que possuo. Sei que cuidarão delas
que viam, Sofia preparava uma farta refeição. O almoço naquele dando amor que é o que precisam para se tornarem adultos bons e
dia fora diferente, a grande mesa farta onde as famílias estavam felizes”.
era dividida com os integrantes do circo. Todos interagindo com As crianças foram acolhidas com amor, cuidadas por
harmonia que dava leveza e paz ao ambiente, de repente a música Lázaro e Sofia como filhos legítimos e aceitos por Miguel como
alegre tocada por Lázaro e alguns integrantes do circo tornou o irmãos. Sofia ficou feliz, pois a gravidez de Miguel fora difícil e o
ambiente festivo e Luzia com ele dançou, recordando a infância médico lhe disse que não seria aconselhável uma nova gravidez,
quando juntos dançavam. que seria de risco. Sendo assim, tomaram os devidos cuidados
para que outra gravidez não acontecesse. Mas ambos tinham o
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desejo de ter mais filhos e quando as crianças surgiram esse Miguel apresentou a tia, a mulher Sara que aguardava seu
desejo se concluiu ao serem acolhidos como seus. primeiro filho. No ambiente feliz, tivemos o almoço em família e
Lázaro, brincalhão como sempre lhe diz: “O que achou de como não poderia faltar a música e a dança para relembrar os
meus filhos? Não são lindos?” Luzia concordou com ele. Assim velhos tempos. Foi uma tarde agradável. O tempo em que
como aquele momento harmonioso muitos outros aconteceram. permanecemos na cidade procurei estar sempre com minha irmã,
Sempre que possível, Lázaro e Luzia estavam juntos o amor de pois viajaríamos para longe e ficaria um bom tempo sem vê-la
irmãos laço forte que mesmo à distância permanecia.As cartas de novamente. Quis aproveitar cada momento. Quando parti, lhe
Lázaro eram guardadas por Luzia e sempre que possível disse que seguiria dando notícias pelas cartas para que ela
procuravam estar juntos. concluísse seu livro.
Os anos foram passando e o Gran Circo Marabalis se E se foram mais quatro anos distante de nossa cidade. Eu
apresenta na cidade onde nascera. Caminhando pela rua, Lázaro me olhei no espelho e percebi o quanto o tempo havia passado e
percebe que tudo havia mudado com o passar dos anos. O antigo eu já não tinha aquela vitalidade de antes. Após uma queda, tive
bar da dona Augusta dava lugar a um luxuoso restaurante. Seguiu de ficar em uma cadeira de rodas. Nela eu observava tudo em
aquela mesma rua e no final dela, chegou até a casa de Luzia. nossa volta, tudo que havíamos construído, aquele enorme circo
Quando ela me viu no portão se emocionou, me abraçou e me que tanta alegria levava por onde passava. Meus filhos queridos e
convidou a entrar, eu lhe disse que havíamos chegado a cidade minha querida Luzia e nossos netos Lucas e Sofia. Eu era feliz
um dia anterior que ficaríamos por alguns dias. mesmo limitado aquela cadeira de rodas, não deixei a tristeza me
Conversamos por longo tempo, falamos da família, das vencer, mesmo nela eu alegrava os pequenos como o palhaço
tristezas e das alegrias. Minha irmã veio com uma caixa, nela plimplim que entrava no picadeiro com sua cadeira enfeitada
continha todas as cartas que eu havia lhe enviado no decorrer de arrancando gargalhadas das crianças e adultos que ali estavam.
todos aqueles anos, me surpreendeu quando disse: “Vou escrever Foi levando alegria que me despedi da vida com os meus
um livro. Nele terá todas as histórias que me contaste dessa tua 75anos. Antes de partir, pedi que quando eu partisse, não queria
vida de aventuras”. Com meu jeito brincalhão lhe disse: “Então tristeza, que seguissem levando alegria por todos os lugares por
ficarei famoso. E como será o nome desse livro?”Ela sorriu e onde passassem e me mantivessem na lembrança como homem
disse: “O andarilho”. feliz que não dava lugar pra tristeza.
Foi uma tarde divertida, combinamos o almoço em Sofia mesmo sentido minha falta conduziu nossa família
família. Nem todos puderam comparecer devido aos sem mim. Nossos filhos mantiveram o circo como a tradição da
compromissos, mas Luzia e o marido lá estavam. Minha irmã família. Para minha irmã fora entregue a última carta. Foi ela que
ficou encantada com Júlia e Pedro que já eram adultos. Eles finalizou o livro. O diário de um andarilho.
faziam a apresentação de dança que Lázaro e Sofia faziam quando
jovens e tinham a mesma leveza e elegância encantando a plateia.
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Nitério muitas vezes fora pego falando com um amigo que


O CAÇADOR DE BORBOLETAS ele afirmava existir. Joaquim preocupado lhe perguntava:
“Porque eu não vejo seu amigo? Como é mesmo o nome
No sítio das flores morava Nitério, menino sapeca criado dele?”Nitério logo foi explicando: “Ele vê o senhor e a vovó. Ele
pela avó Laura e o avô Joaquim com toda a liberdade que a vida abana para vocês. O nome dele é Elias”.
no campo oferecia. Seus avós conversaram com a filha que quis levá-lo para
Quando pequeno,à beira da morte, sua mãe Suzana fez passar um tempo na cidade e para uma consulta médica, mas na
uma promessa que, se o menino sobrevivesse, seria criado pelos cidade o menino não se adaptava. Acostumado a vida no campo,
avós junto à natureza no sítio da família, onde ele teria o ar puro demonstrava tristeza. Na consulta nada indicava doença.
que tanto necessitava para sua saúde frágil. Foi ali que Nitério A psicóloga disse que fora um amigo imaginário criado
aprendeu com o avô Joaquim a importância da natureza para uma por Nitério, já que não tinha convivência com outras crianças.
vida feliz. Como os exames não mostraram nenhuma doença o menino fora
Em uma tarde, vasculhando o porão da casa, o menino levado de volta para o sítio. Ao chegar lá, o menino se sentiu em
encontrou uma vara com um saco de tela na ponta. Ficou curioso casa, abraçou os avós e foi logo correr pelo campo ao meio das
com aquele objeto que nunca havia visto antes. Foi até seu avô flores buscando as borboletas.
Joaquim e lhe perguntou: “Para que serve isso?” Joaquim sorriu e As conversas com o menino que Nitério jurava existir
lhe disse: “Isso é para caçar borboletas. Pertencia a teu prosseguiram, mas além do menino, ele relatou para o avô que
bisavô,Antônio. Venha comigo vou lhe mostrar algo”. outro senhor que sorriu para ele e o acompanhava na caça as
Os dois retornaram ao porão onde havia uma caixa com borboletas. Joaquim ficou espantado quando o garoto olhando um
um livro dentro. Nesse livro tinha o desenho de várias espécies de álbum de fotos lhe disse: “É esse o homem que me acompanha
borboletas, o menino ficou encantado. Então ele disse ao avô: quando caço borboletas”. Laura logo olhou para Joaquim e os
“Vou ser um caçador de borboletas como meu bisavô”. dois ficaram assustados. Como explicar para o menino que aquele
Toda manhãNitério levantava cedo e dizia para o avô: era seu bisavô já falecido?
“Vou caçar borboletas”. Sua avó Laura dizia ao marido: “Esse Conversando com a vizinha Ana, ela diz a Laura que o
menino agora inventou isso, caçar borboletas”. menino deve ter o dom de ver os mortos. “Já li sobre isso. Tenho
O garoto saía pelo campo ao meio das flores, pegava as uma amiga que é médium na casa espírita. Ela me disse que
borboletas, mas logo as soltava. Quando seu avô lhe perguntou alguns médiuns podem ver os mortos”. Laura logo foi dizendo:
por que as soltava, o menino logo respondeu; “Se eu as prender “Mas isso é contra o que acreditamos. Somos católicos. Joaquim
não vão voar e enfeitar nosso jardim”. Nesses gestos o menino não acredita nisso que me contaste”. Mas depois dessa conversa
mostrava sua inocência e ao mesmo tempo sua preocupação com Laura passou a observar o neto. Quando o viu conversando, se
a natureza a sua volta.
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aproximou e disse: “Meu querido, seu amigo esta ai o menino falava ter. Para Nitério tudo era normal, já estava
contigo?”Nitério disse que sim. acostumado com as conversas que tinha com o menino que lhe
Em uma tarde, os dois estavam a sós. Laura lhe preparou acompanhava em vários lugares no sítio.
um lanche e levou até o local onde o menino estava. Nesse dia, O padre disse àNitério que viesse outras vezes para
Joaquim havia ido a cidade onde demoraria, pois tinha muitos conversarem. Depois desse dia o menino viu no padre um amigo e
assuntos a resolver e ficaria posando na casa da filha. também um conselheiro.
Conversando com o neto, Laura descobriu que o menino Todas as vezes que os avós iam a missa ele os
realmente via os mortos. Ela chegou a essa conclusão quando o acompanhava feliz. Em casa, o menino percebia que falar do
neto lhe disse: “A senhora tem foto de meu amigo”. Laura diz: “E amigo deixava os avós preocupados. Preferiu se calar. Não fazia
onde está a foto desse teu amigo?” O menino pega a mão da avó e mais comentários sobre as conversas com o amigo invisível.
a leva até a cômoda onde estão os álbuns de família. Ele pega o Quando foi colocado na escola, Joaquim pensou que o contato
álbum e mostra: “Aqui está ele”. com outras crianças seria muito bom para o neto, mas ele preferia
Laura leva um susto. O amigo do neto é o filho que ela ficar quieto, em seu canto. Nem todos os dias ele brincava. Muitas
perdeu há anos atrás. Quando morreu tinha a idade de Nitério. vezes preferiu só observar.
Laura ficou pálida e o menino se assustou: “O que foi vovó? A Sua mãe ia com frequência ao Sitio, procurava sempre
senhora está bem?” Ela respondeu: “Estou sim. É só um mal estar presente nos momentos importante da vida do filho, mas o
estar”. trabalho a mantinha mais tempo na cidade. Nos finais de semana
Joaquim retornou da cidade, Nitério foi correndo feliz ela procurava estar com os pais e o filho.
encontrá-lo. Joaquim percebeu que algo estava preocupando O tempo foi passando e o menino se tornou um rapaz meio
Laura. inquieto como todo o adolescente. O que parecia ser coisa de
Quando o menino saiu para brincar ela teve uma conversa criança, as visões, o acompanharam e o deixavam confuso. As
com o marido, lhe contou o ocorrido. Joaquim lhe diz: “Isso é conversas com o padre aliviavam seu coração angustiado, mas
coisa da cabeça de vocês. Tu fica dando ouvidos para as histórias não lhe davam as respostas que desejava.
da vizinha, mas para que fiques descansada vamos na missa Foi na escola que conheceu Dalva, uma professora que o
mandaremos rezar pelos que já se foram para que descansem em observara em uma tarde na escola. Vendo-o sentado afastado dos
paz”. outros jovens, ela se sentou ao seu lado e com ele conversou. Nas
No domingo foram todos à missa na pequena capela palavras de Dalva,Nitério encontrou alento ao seu coração
próxima ao sítio. Laura conversou com o padre Alfredo que angustiado.
dedicou a missa ao menino já falecido e após a missa o padre Dalva lhe disse: “Eu o observo há algum tempo, vejo que
ficou a sós com Nitério, que lhe pareceu normal como toda a não te misturas muito aos outros jovens. Porque te isolas dos
criança. Falaram sobre várias coisas, inclusive sobre as visões que demais?” Nitério lhe responde: “Prefiro ficar quieto em meu
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canto. Eles zombam de mim, me chamam de louco”. Ela sorriu apareceu na aula. Na escola foram avisados que o avô de Nitério
para ele e lhe disse: “Eu sei que não és louco. Já passei pelo havia falecido.
mesmo. Um dia tu vai descobrir que o que eles chamam de No velório, tristeza. Joaquim era querido por todos da
loucura é um dom maravilhoso que te acompanha chamado vizinhança.Nitério mesmo com sua dor, tentava consolar a avó e a
espiritualidade. Tua aura é linda e iluminada”. Nesse momento o mãe, abraçados, dividiam a dor da perda.
sino toca para que retorne a aula, Nitério guardou consigo as Sua mãe deixou a loja aos cuidados de uma funcionária de
palavras de Dalva. confiança e permaneceu um tempo no sitio junto à mãe e ao filho.
Ao chegar em casa, os avós o esperavam como sempre Ela sabia que era um momento difícil, onde precisariam estar
faziam com alegria e amor. Após o jantar e a habitual conversa unidos. Nitério ficou mais tranquilo o tempo em que a mãe com
eles se recolheram e Nitério ficou mais um tempo acordado. eles permaneceu. Os dias foram passando e tudo lembrava o
Sentia uma angústia e não sabia o porquê. Nessa noite ele teve avô.Nitério tentava tirar de seu peito aquela tristeza que lhe
uma visão, era o bisavô lhe dizendo que ele teria de ser forte, que corroía por dentro.
em breve Joaquim partiria e sua avó precisaria muito dele. Nitério Em uma tarde, sentado observando a paisagem, ele sentia
aquela noite quase não dormiu. No outro dia saiu cedo da cama, a uma brisa e um arrepio. Logo percebeu o vulto que se
avó estranhou,Nitério sempre dormia até mais tarde, nesse dia aproximava, era o avô e parecia preocupado.
tomaram café da manhã juntos. A noite em sonho, o avô lhe visita e lhe diz: “Eu te pedi
Nitério andou pelo sítio com o avô que lhe pareceu um que fosse forte, não quero que fiques chorando pelos cantos. Eu
pouco cansado, nesse dia Joaquim lhe disse: “Meu neto, já estou estou bem, apenas orem por mim”. Quando acordou, ele falou
velho e cansado. Sei que não estarei por muito tempo junto a com a avó e ela lhe respondeu: “É o que precisamos fazer. Vamos
vocês. Quero te pedir que cuides bem da tua avó e desse sítio que a missa, vou mandar rezar uma missa para Joaquim”. No domingo
tanto amamos. Lembro-me quando o comprei tua avó ficou tão foram à igreja. Lá,Nitério vê o avô que sorri e abana para ele.
feliz, sempre foi nosso desejo ter um lugar onde pudéssemos ter Após a missa,Nitério conversa um pouco com o padre
contato com a natureza. Tua avó sempre me disse que se ela Alfredo. Na conversa, o padre lhe pergunta: “Como está a vida
pudesse faria desse lugar um abrigo para crianças e idosos que sem Joaquim?”Nitério lhe conta da visão que teve e do sonho e
não tivessem um lugar para ficar, mas já estamos velhos esse diz: “Ele estava aqui na missa de hoje”. O padre escuta em
desejo foi ficando para trás”. silêncio e responde: “Quando tu eras criança, eu dizia que era
Nitério o escutou em silêncio, depois lhe disse: “Quem coisa de tua imaginação. Hoje posso te dizer que já não és uma
sabe um dia meu avô, eu consiga realizar o desejo de vovó”. criança, é um homem inteligente, sabe o que diz e o que vê. Acho
Passado uns dias, na escola Nitério estava inquieto, Dalva que tens o dom de ver o que os outros não conseguem. A vida é
percebeu sua inquietação e sua angústia. No outro dia ele não um mistério muito maior do que podemos imaginar. Para nós os
católicos a morte é o descanso onde tudo termina, para os
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espiritualistas a vida não é o fim. Sigo minha crença respeitando “O menino Elias de quem tanto falavas é teu anjo da
também os que acreditam na vida eterna. Vejo que não consegui guarda, companheiro de tantas jornadas e que no teu lado
te tornar um padre como eu, nossos pensamentos diferem, mas eu permanece para te guiar nos caminhos dessa vida e concluir a
sempre oro para que tu encontres um bom caminho”. bonita missão de ajudar os que necessitam com amparo e amor.
Nitério seguiu sua vida. Quis ficar no sitio com a avó, Minha querida Laura estará ao teu lado no tempo em que
contrariando a mãe que os queria junto a ela na cidade, mas permanecer na terra te ajudando nessa missão que também é dela.
Nitério sabia o quanto o sítio era importante para a avó e ele Tens tanto a fazer e o fará determinado como és seguira teu
também que não se importava de viajar todos os dias para caminho semeando e acolhendo com amor as borboletas perdidas
concluir seus estudos. nos jardins da vida. Saudades Joaquim.”
Uma noite quando retornava, encontrou a professora A mensagem do avô e as palavras do médium deram a
Dalva da escola em que estudou quando criança. Os dois certeza de que retornaria outras vezes, e que ali encontraria as
conversaram, falaram de vários assuntos, um deles era respostas que tanto buscava desde a infância. Nas reuniões, ele
espiritualidade. Nesse dia, vendo o interesse de Nitério, ela o não se sentia um peixe fora d’água, mas sim alguém
convida a participar de uma reunião espírita. Ele lembrou-se que compreendido em suas aflições. Quando a reunião acabou, Dalva
no dia da reunião não teria aula. Combinaram de irem juntos. o apresentou a Cézar que se colocou à disposição de Nitério para
Em casa, ele falou com a avó que fora convidado pela esclarecimentos sobre espiritualidade.
professora e que iria tinha curiosidade de ver como funcionava. Em casa, ele comenta com a mãe e a avó sobre o ocorrido
No dia combinado ele se arrumou e Dalva o esperava. na casa espírita, diz a elas que se sentiu bem e que retornaria
Quando chegou, o ambiente era tranquilo. Nitério sentiu uma paz outras vezes.
inexplicável. A palestra era sobre a transição, passagem após a No domingo ele as acompanha na missa com sempre fazia
morte para o mundo espiritual. Ele ao lado de Dalva escutou com e no final conversou com o padre como de costume. Contou da
atenção. As palavras do palestrante lhe davam algumas respostas reunião que assistiu, do quanto se sentiu bem. O padre Alfredo
de dúvidas que trazia consigo. lhe diz: “O que posso te dizer se não que existe várias maneiras
Nessa noite ele viu seu avô que parecia feliz e tranquilo, de se buscar Deus. Quem sou eu para dizer o que é certo ou
ele deixara com um dos médiuns uma mensagem para o neto: errado? Tu és um bom rapaz, sei que tua escolha sempre será
“Meu menino, hoje entendo tantas coisas que antes eu não visando o bem. Que Deus te abençoe meu filho”.
entendia. Acho que pelo modo como fui criado, muitas vezes Com o decorrer do tempo Suzana percebeu que o filho estava
achei bobagem o que me falavas de tuas visões. Hoje sei que não mais tranquilo, parecia mais feliz, sua avó também havia
eram frutos de tua imaginação, mas sim o dom que carregas percebido isso.
contigo.
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Nitério termina os estudos e se forma em direito como era Em casa,Nitério comentava sobre o trabalho e sua
seu desejo e também o do avô.Na formatura a mãe e a avó satisfação. Apenas a viagem que era cansativa, mas ele fazia
estavam orgulhosas, ali também estava Dalva e o padre Alfredo. questão de ir para o sítio dos avós. Algumas vezes ficava na
Quando chegaram em casa após a festa,Nitério diz a mãe: cidade onde a casa da mãe estava à sua disposição.
“Sempre que pergunto de meu pai tu foges do assunto. Eu queria Um dia, após o trabalho, ele anda um pouco pela cidade e
saber mais sobre ele. Hoje vi os pais de meus colegas senta em um banco. O menino de sua infância aparece para ele,
comemorando com eles, senti falta disso”. Sua mãe lhe diz: “Hoje sorri, e lhe aponta um lugar. Nitério o segue e ao chegar ao local,
foi um dia tão especial. Não queria estragar essa alegria. Teu pai encontra uma mulher enferma e três crianças. A porta estava
me abandonou quando eu estava esperando você. Éramos muito entreaberta. Ele pediu licença e entrou. Aquele ambiente de
jovens, ele era ambicioso, falava em estudar fora do país e quando miséria o tocou profundamente. A mulher acamada lhe diz: “Foi
teve a oportunidade seguiu mesmo sabendo que eu estava grávida. um anjo que te trouxe aqui”, agarrou sua mão e lhe pediu: “Cuide
Ele nunca mais me procurou, não quis saber se estávamos bem. de minhas crianças. Elas só tem a mim, e sei que não terão por
Eu resolvi que teria você sozinha com o apoio dos meus muito tempo”.
pais. Sei que teu avô procurou também fazer o papel de pai, te Nitério olhou tudo em sua volta, as crianças pareciam
deu amor.” bichinhos assustados sem entender o que acontecia. O maior tinha
Nitério escutou a mãe e entendeu o porquê seus avós nos braços a irmã e ao lado o outro irmão.
nunca lhe falaram sobre seu pai. Após aquela conversa ele não Ele diz a mulher: “Vou trazer um médico e alguma coisa
mais tocou no assunto. para as crianças comerem”. Saiu e logo retornou com o médico.
Depois de se formar na faculdade, fora indicado por um de Enquanto o doutor examinava a enferma, Nitério dava alimentos
seus professores para estagiar em uma grande empresa. O tempo para as crianças que pareciam famintas. Após examinar o médico
em que nela permaneceu foi o suficiente para destacar seu lado lhe diz: “Precisamos levá-la ao hospital”. Antes de ser levada, ela
profissional. Foi convidado a trabalhar na parte jurídica. novamente pede que ele tome conta de suas crianças e entrega a
Empolgado ele foi dar a notícia a mãe e a avó. ele uma pasta onde estão as certidões de nascimento de cada um
Na empresa ele cresceu trabalhando ao lado de advogados deles.
experientes que lhe ensinaram muito. Ele contava também com a Diante daquele pedido,Nitério acabou levando com ele as
simpatia de Áureo o dono da empresa. Com o passar do tempo crianças para o sítio até a mãe deles se recuperar. Quando chegou
devido a sua dedicação e tendo seu trabalho reconhecido fora ao sítio, sua mãe Suzana ficou espantada ao ver o filho entrar em
promovido e passou a ganhar mais casa com três crianças tão pequenas. Logo a avó também surgiu
Áureo tinha grande afeto por Nitério, algo que ele não perguntando: “Que crianças lindas. Quem são?”Nitério lhes
conseguia explicar. explicou o que havia acontecido. As crianças foram acolhidas
com amor por Laura e Suzana.
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O sítio parecia o paraíso para aquelas crianças tão e disse: “Deus também te abençoe meu filho, por esse gesto de
carentes. Elas foram alimentadas e colocadas para dormir. amor”.
No outro dia,Nitério retornou ao trabalho conversou com o Aquela noite, Nitério sonhou com a mãe das crianças.
senhor Áureo e lhe contou o motivo de seu atraso, lhe pediu Sônia era seu nome. Ela lhe agradeceu pela decisão de amparar
desculpas pelo ocorrido. Áureo nesse momento viu o quanto era seus filhos e que ela ficaria em paz.
bondoso aquele jovem, o qual ele passou a admirar cada dia mais. No sítio foi providenciado uma reforma para a família que
No horário do almoço ele foi ao hospital. Ao chegar lá, a mulher aumentou. Suzana diz a mãe: “Não sei se estamos fazendo a coisa
havia falecido. O médico lhe aguardava com a triste notícia. certa”. Laura logo lhe diz: “Claro que fazemos o certo. Ajudar os
Conversaram sobre as crianças e o médico lhe disse:“Como ela que necessitam sempre será o certo. Tenho muito orgulho de meu
não tem ninguém, as crianças serão encaminhadas para adoção, neto, tão jovem e tão generoso”.
mas se quiser ficar com elas como foi o pedido da mãe, não Quando Nitério chegava, as crianças o aguardavam ansiosas pelas
precisará separá-las”. Nitério nesse dia não conseguiu nem guloseimas que ele sempre lhes trazia e por ele sempre brincar
almoçar. Quando retornou ao trabalho, Áureo notou sua com elas. Aos finais de semana ele as ensinou a caçar borboletas,
preocupação e quando lhe perguntou o que o preocupava ele lhe mas sem machucá-las como fazia quando criança.
conta o que aconteceu e que a mulher lhe pediu que tomasse conta Sentada na varanda da casa, Suzana e a mãe os observam
de seus filhos e ele não sabia o que fazer. tudo. Ali parecia ter ganhado mais vida. Foi nesse dia que Laura
Áureo lhe responde: “Sei que és um jovem de bom falou pela primeira vez à filha que sempre teve o desejo de tornar
coração, e que fará o que for melhor. Como ela não tem ninguém, o sítio da família um lugar de amparo aos que precisassem. Que a
providencie o enterro. A empresa assumirá as despesas, depois tu atitude do neto realizava o seu sonho, por isso ela se empenhara
decides o que fazer com as crianças”. tanto a ajudar o neto.
Em casa, Nitério chegou abatido. Logo a menina veio para No outro dia a tarde, Dalva vai ao sítio fazer uma visita.
seu colo como que em busca de um carinho. Nesse momento ele Nitério a recebe com alegria, lhe apresentou a mãe, a avó e as
diz a mãe e a avó: “Vamos ficar com eles”. Quando as crianças crianças. Dalva esse dia viu uma luz forte sobre o sítio e a energia
foram dormir, ele contou do falecimento da mãe delas e concluiu: boa que de Nitério emanava. Ela sentiu ali um lugar especial, com
“Eu não posso deixar essas crianças desamparadas”. Laura diz ao amparo espiritual. Fora uma tarde agradável para todos. À noite
neto que o ajudaria e cuidaram delas. Nitério viu nos olhos da avó combinaram de irem à reunião espírita. Mesmo sendo criado
um brilho e se lembrou do que o avô lhe havia dito, que era o frequentando a religião católica,Nitério sentia uma atração pelo
sonho de Laura fazer do sítio um lugar de amparo aos que mundo espiritual. Suas visões e previsões lhe dava a certeza de
necessitavam. que existia algo além da morte.
No domingo todos foram à missa e Nitério apresentou ao
Padre suas crianças Nicolas, Rosa e Romeu, o padre os abençoou
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Na reunião, se sentia em paz. Sempre no final conversava Comovidas elas disseram: “Pois fique aqui com a gente o tempo
com Cézar e Dalva sobre suas dúvidas, e ali ele encontrava que for necessário”. Nitério lhes dá bom dia, toma rápido seu
algumas respostas. café, pois já estava atrasado para o serviço.
Em uma noite ele saiu do trabalho, estava frio, o dia fora Aos poucos as crianças foram levantando, tornando o
longo e cansativo, mas preferiu caminhar um pouco. Seguiu pela ambiente da casa mais movimentado.
rua escura, era como se algo o conduzisse por aquele caminho. No trabalho tudo decorria muito bem. O chefe de Nitério
Foi quando escutou um choro que lhe chamou a atenção. Quando tinha por ele um grande apreço e também muita confiança. Como
se aproximou, viu que sentada no banco da praça uma mulher ele já estava há um bom tempo na empresa, Áureo resolveu lhe
chorava muito. Tinha com ela uma menina, uma sacola com umas dar uma promoção, onde passaria a ganhar bem melhor. Quando
peças de roupas e uma barriga enorme. Faltava pouco tempo para chegou ao sítio foi logo dar a notícia a mãe e a avó.
ganhar outro filho. No final de semana, providenciou um almoço para
Nitério se aproximou e perguntou o porquê de tanto comemorar, e brincou com as crianças pelo vasto jardim, onde as
choro? Ela respondeu não tenho para onde ir. Não sei o que fazer. borboletas a eles se misturavam. Ele lembrou de sua infância, das
Minha família é de longe,abandonei meu marido devido às brincadeiras com o avô, também lembrou do bisavô que lhe
agressões. Sua vida era entregue ao vício da bebida, passava acompanhava na caça as borboletas. Nesse dia, ele disse a avó:
vários dias fora de casa e quando retornava, nos agredia “Esse lugar é tão lindo e grande, poderíamos fazer aqui um
constantemente. Estou cansada, não quero essa vida para meus orfanato. O que a senhora acha?” Laura encheu os olhos de
filhos. lágrimas e respondeu: “Meu neto querido, esse sempre foi o meu
Ele, comovido pela história, lhe convida a acompanhá-lo, sonho”. Ele sorri e concluiu: “Então vamos realizá-lo. Já temos
dizendo que vai ajudá-la. Ela o agradece e fala que seu nome é algumas crianças e outras com certeza virão, e se Deus quiser
Cristina e a menina se chama Clara.Nitério agarrou a menina no conseguiremos meios para sustentá-las, encontraremos pessoas
colo e também a sacola, pediu que Cristina o acompanhasse. dispostas a nos ajudar”.
Seguiram para o carro e logo em direção ao sítio. Quando A mãe quando soube, lhes disse: “A intenção de vocês é
chegaram, Suzana os atendeu e a sós falou com o filho: “Não bonita, mas como vamos sustentar um lugar com tantas
temos lugar para tanta gente”, ele sorriu e disse: “Eu não poderia crianças?Teremos uma enorme despesa”. Nitério prontamente lhe
deixar elas na rua nessa situação”. Laura surge sorridente e diz: diz: “Mas também produziremos alimentos. Vamos fazer hortas,
“Daremos um jeito. Acomodaremos a todos”. vou atrás de doações nas empresas, sei que tudo vai dar certo se
No outro dia cedo, Cristina já estava de pé se mostrando acreditarmos e se tivermos união”.Quando Dalva soube das
prestativa, disposta a ajudar no que fosse preciso para retribuir a intenções de Nitério foi junto a Cézar oferecer o serviço
ajuda que recebeu. O café fora preparado por Laura e Suzana. voluntário.
Enquanto tomavam café, Cristina lhes contou sua história.
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Aos poucos na propriedade foram construídos quartos e desejo de ficar com elas, eu tive a certeza de que tu conseguiria
tudo o mais que fora necessário para que o lugar funcionasse. Os tornar meu sonho realidade, e hoje vejo que conseguiste. Acho
voluntários foram chegando, assim como as crianças. que posso morrer agora que morrerei feliz”. Nitério lhe diz: “Pois
Na empresa em que trabalhava,Nitério teve a ajuda de trate de ficar um bom tempo aqui na terra, pois preciso muito da
Áureo que fez questão de contribuir para as obras do orfanato. senhora ao meu lado”.
Sua avó Laura estava tão feliz. Sua empolgação era Nitério na empresa colhia os frutos de seu trabalho. Era
visível. Ela cuidava de cada detalhe com disposição, e com a dedicado e admirado pelos colegas por ser um homem honesto e
ajuda de Cristina que sempre fez questão de ajudar demonstrando justo. Áureo tinha nele grande confiança e cogitava lhe colocar na
sua gratidão à família que lhe acolheu com seus filhos. presidência ao seu lado, já que o filho estava cuidando dos
Cristina deu à luz a um menino que chamaram de Pedro. negócios fora do país. Áureo sentia um afeto especial por Nitério,
No sítio ela se sentia feliz e sabia que seria útil, poderia prestar algo nele lhe parecia familiar.
seus serviços ajudando no que fosse possível e quis com eles Na cidade, Suzana retorna ao seu trabalho como
permanecer. Com a ajuda de voluntários ela tomou conta do empresária, dona de uma loja requintada no centro da cidade,
refeitório,pois com o tempo a quantidade de crianças foi sempre que possível ela ia ao sítio ver se estava tudo bem.
aumentando e ela já não dava conta de preparar as refeições. Através do filho ela sempre ficava a par de tudo que acontecia no
Na varanda da casa, Suzana e Laura observavam todo o sítio. Nos finais de semana procurava estar com a mãe, o filho, e
movimento do lugar, antes tão pacato, agora as crianças davam com todas as crianças acolhidas.
mais vida ao sítio. Ali tinham espaço suficiente para brincarem Sempre que possível ela e Nitério almoçavam juntos. Em
correndo livre por aquele vasto jardim. Além das um desses almoços, conhece Áureo que lhe fora apresentado por
brincadeiras,Nitério também as ensinou a cultivarem a terra. Nitério, ele lhe dá os parabéns pela educação e o caráter do filho,
Muitos alimentos eles mesmos produziam. Todos participavam e seus elogios deixam Nitério sem jeito, mas feliz pela consideração
ficavam empolgados com o plantio e mais ainda com a colheita. que o chefe lhe tinha.
Dalva fazia questão de participar como voluntária, ela Em uma tarde no escritório,Nitério conversando com
buscava doações junto à casa espírita na qual trabalhava e Áureo lhe faz uma pergunta: “Vi algumas vezes uma mulher em
também buscava voluntários para ajudar no orfanato. sua sala, é uma senhora clara, cabelos cacheados, ela me parece
Em pouco tempo, o sítio que iniciou com três crianças já preocupada”. Áureo com os olhos cheios de lágrimas abre a
abrigava vinte e cinco. O lugar fora batizado de “Recanto das gaveta e lhe mostra uma foto. Nitério lhe diz: “É essa mulher que
Borboletas”. Na varanda da casa,Nitério sentado com a avó, eu vi”, Áureo responde: “É minha esposa. Faleceu há três anos.
observava tudo com braço sobre os ombros dela e lhe diz: “Então Sinto imensa falta dela”.
minha avó, o que acha do que construímos?” Laura emocionada Nitério lhe diz: “Eu entendo sua dor. Quando perdi meu
diz ao neto: “Quando tu apareceste com aquelas crianças e com o avô que era como um pai para mim, a dor da perda foi imensa. É
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difícil de superar, mas Deus nos dá força para prosseguir a vida, lugar. A harmonia que se fazia presente, um ambiente de paz e
levando os que perdemos guardados no coração. Lembro o quanto amor. Ele olhava Nitério rodeado de crianças e diz a Suzana:
foi difícil a vida sem meu avô. Amenizei essa dor ao frequentar “Você tem um filho muito especial, um espírito iluminado, deve
um centro espírita levado por uma amiga. Nas palestras e nas ter muito orgulho dele”. Suzana sorri e responde: “Ele foi um
conversas com os membros da casa encontrei alento amenizando presente de Deus na minha vida. Eu o tive muito jovem e o criei
minha dor. Também tive algumas respostas do que ocorria com a ajuda de meus pais. O pai dele quando soube de minha
comigo, visões que eu tinha desde a infância. Adquiri um gravidez nos rejeitou preferiu seguir sua vida aproveitando a
conhecimento maior sobre espiritualidade. Se o senhor quiser me oportunidade de estudar e seguir carreira no exterior, mas meu pai
acompanhar em uma dessas reuniões, tenho certeza que vai se Joaquim fez o papel de pai e avô dando a ele todo o amor que o
sentir bem melhor”. tornou esse homem íntegro e generoso que tanto nos orgulhamos.
Naquele dia foi combinado que Áureo o acompanharia. Na O dia no sitio foi muito agradável para todos. Áureo se
hora combinada ele esperou Nitério e os dois foram juntos. Ao sentiu tão bem que antes de ir embora disse a Laura e Suzana que
chegar no centro,Nitério o apresentou a Dalva e a Cezar. Áureo com certeza voltaria outras vezes se elas o permitissem. Nitério
após a palestra e os passes relatou que se sentiu muito bem e mais sorridente diz: “Meu chefe e amigo, não precisará de convites
disposto, que desejava retornar outras vezes. para nos visitar. Sempre que quiser as portas estarão abertas e
Nas reuniões mediúnicas em que passou a frequentar, faço questão que retornes para ver as reformas que serão feitas
Áureo teve mensagens da esposa e se sentia liberto das angústias com a ajuda financeira de sua empresa”.
que sentia por não ter a esposa junto a ele. Se tornou um Com o dinheiro que fora doado por Áureo Nitério fez do
frequentador assíduo. Nas palestras sentia seu coração mais leve e sitio um lugar aconchegante, onde as crianças se sentiam em casa
uma paz que há muito não sentia. com todo o conforto necessário. E também tinham o carinho de
Em uma tarde no escritório, ele diz a Nitério; “Tenho que Laura, Suzana, Cristina, e dos amigos Dalva e Cezar que sempre
te agradecer por ter me apresentado teus amigos que muito me o ajudaram.
ajudaram, me sinto um novo homem. Sinto também que preciso Na entrada do sítio fora colocado uma enorme placa com o
fazer mais pelo próximo. Graças a Deus sou abençoado por tudo nome “Recanto das Borboletas”. Quando Laura pergunta ao neto
que tenho e tudo que adquiri nessa minha vida. Eu quero te ajudar o porquê desse nome ele respondeu: “Lembra quando eu corria
na reforma de teu sítio onde abrigas tantas crianças, te ajudarei a por esses campos caçando borboletas? Pois é assim que me sinto
fazer do lugar um belo orfanato. Tudo que precisar conte em relação às crianças, um caçador de borboletas abandonadas,
comigo”.Nitério se emociona e lhe convida a conhecer o sítio e que faço questão de recolher para o meu jardim”. Laura com os
sua grande família. olhos rasos de água abraça e beija o neto e lhe diz: “Que Deus te
No domingo, foi marcado um almoço onde o seu Áureo abençoe meu menino, que essa missão seja iluminada e que essas
foi recebido por todos e ficou encantado com a organização do
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borboletas possam voar livres enfeitando e alegrando nosso respondeu: “Achei todos muito simpáticos. Flávio ficou de passar
jardim e nossa vida”. na empresa para conversarmos sobre negócios”.
Na cidade, Suzana segue seus negócios e sempre que No final da semana no sítio, Suzana conversa com a mãe
possível almoça com o filho. Em um desses almoços,Nitério lhe sobre a coincidência e Laura lhe diz: “É o destino minha filha.
conta que seu Áureo está muito feliz com a chegada do filho que Nada acontece por acaso. Um dia Nitério terá que saber quem é
vem com a família passar uma temporada no país. Ele faz questão seu pai. Deixe o tempo se encarregar de colocar tudo em seu
de dar um jantar e gostaria que fossem jantar com eles. lugar”.
Foi nesse jantar que Suzana reencontrou o seu amor do No trabalho,Nitério chegou cedo como de costume logo
passado, Flávio. Ao serem apresentados ela sentiu seu coração foi procurado por Áureo e Flávio, depois do expediente iriam
disparar. O reencontro lhe trouxe dolorosas recordações do almoçar juntos. Flávio olhou Nitério e seu pai juntos e se lembrou
passado. Flávio a cumprimentou e quando a reconheceu ficou do passado, sentiu o peito apertado, um sentimento de culpa e
meio sem jeito e surpreso. Sua mulher e as filhas foram arrependimento por um instante se apossou dele. Ele se
apresentadas a Suzana e Nitério. perguntou: “Seria aquele jovem o filho que rejeitou e o destino
Quando Flávio ficou frente a frente com Nitério uma colocou em seu caminho?” No almoço, Flávio quis saber mais
dúvida lhe atormentou, se lembrou da gravidez de Suzana e de sobre Nitério, mas quando lhe perguntou sobre o pai ele
seu ato covarde e inconsequente. respondeu: “Só tive um pai, meu avô, Joaquim, que me criou
Suzana tentou não demonstrar seu desconforto, se manteve como a um filho, a ele devo muito do que sou”. Seguiram
firme ao lado do filho que fora elogiado por Áureo, que lhe conversando sobre outros assuntos, mas Flávio sentiu que Nitério
apresentou como um de seus melhores funcionários, deixando era o filho que ele rejeitou em sua juventude e precisava ter essa
transparecer a amizade e confiança que havia entre os dois. resposta de Suzana.
Durante o jantar, Flávio, pensativo, observa Suzana e Passado um tempo ele a procurou em sua loja para
Nitério. No final do jantar quando se despedem, Flávio diz a conversarem. Suzana tentou ser fria, mas Flávio usou argumentos
Suzana: “Precisamos conversar a sós”. Suzana lhe diz “Acho que que a convenceram a escutá-lo. Ele falou da tenra idade que
não temos o que conversar. O que existiu entre nós é passado e tinham, que mesmo longe pensava nela e na criança que deixou
você fez sua escolha”. Nesse momento Áureo se aproxima com para trás, mas que era ambicioso e o desejo de concluir seus
Nitério, se despedem e seguem para a casa de Suzana. estudos e seguir sua carreira fora mais forte. Dizia que estava
No caminho ela está pensativa e quieta, o filho lhe disposto a corrigir os erros do passado. Desejava apenas que ela
pergunta: “Não gostou do jantar?” Ela responde: “Estava tudo lhe falasse a verdade, se Nitério era o filho que ela esperava.
maravilhoso. Eué que estou com um pouco de dor de cabeça. E Suzana diz: “Sim, ele é o filho que você rejeitou o qual foi
você meu filho o que achou da família de Flavio?”Nitério sorriu e criado com a ajuda dos meus pais, e como você vê não
precisamos de você agora, mas não sou egoísta é um direito de
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meu filho saber quem é seu pai. Até o momento ele sabe que o pai daquele grande homem que se mostrou superior em sua
nos abandonou quando ele ainda estava em meu ventre, mas se humildade. Decidido, conversou com a mulher e as filhas, lhes
queres corrigir o passado cabe a ti dar a ele argumentos falou do passado e do filho e que estava disposto a corrigir seu
convincentes. Seja sincero e aprenda com teus próprios erros. A erro.
única certeza que eu tenho é que meu filho ficará feliz por saber Quando chegou a empresa pediu para falar com Niterio e
que Áureo é seu avô, o destino os aproximou e laços de foram para um lugar mais reservado. Quando estavam a
confiança, respeito e admiração os unem”. sós,Flavio lhe falou da juventude de seu desejo de estudar fora e
Flávio disse a Suzana que primeiro conversaria com o pai que na época teve um envolvimento com uma jovem e que foi
e depois iria procurar Nitério. inconsequente e covarde ao saber que ela estava grávida. “Calei-
A conversa com Áureo foi naquele mesmo dia. Flávio me, não contei aos meus pais e segui meu caminho a deixando
disse ao pai que tinha um assunto sério para lhe falar. Na para trás. Hoje, já maduro, me arrependo e queria muito concertar
conversa Flávio lhe conta sobre o romance da juventude de seu meu erro e pedir perdão. A jovem a quem eu abandonei era a tua
ato covarde e inconsequente e diz que Suzana era a jovem com mãe e tu és o filho que ela esperava e que o destino colocou em
quem manteve um romance, fala sobre a gravidez e que Nitério é meu caminho me dando a oportunidade de concertar meu erro”.
o filho que ele rejeitou. Áureo escuta em silêncio e fica espantado Nitério ficou parado, a voz não lhe saía. Passado o susto,
com o que ouve do filho. Logo, revoltado, diz: “Tu não podia ter ele respondeu: “O que quer que eu te diga? Muitas vezes te
nos escondido isso. Sabe que te apoiaria eu não deixaria um neto procurei entre os pais de meus colegas e era sempre meu avô
meu ficar sem auxilio”. Joaquim que eu encontrava. Tudo que hoje sou devo a ele, minha
“Eu era muito jovem meu pai, tive medo. Hoje sei que fui mãe e minha avó, mas que bom que reconheces teu erro”. Flávio,
irresponsável e ambicioso. Coloquei minha carreira a frente de emocionado, diz a Nitério:“Espero que um dia possas me perdoar
tudo, mas quero concertar meu erro”. e que possamos ser amigos.”Nitério lhe diz: “Vamos deixar o
Áureo lhe diz: “Concertar? Tem coisa que não se pode tempo se encarregar disso”.
concertar. Pensa no que foi perdido, o que poderia ter vivido ao Após a conversa, Áureo os espera ansioso. Quando
lado de teu filho. Deus queira que ele te perdoe. Estou espantado, chegam, Áureo abraça Nitério e diz: “Eu sempre vi em ti algo
mas confesso que estou feliz. Desde a primeira vez que vi Nitério, familiar que eu não conseguia entender, hoje eu sei, o destino foi
senti algo familiar nele, lamento não termos convivido mais generoso comigo te colocando no meu caminho meu neto”.
juntos e tua mãe não o ter conhecido. Agora tu precisa encontrar Nitério dá um abraço em Áureo e diz: “Eu estou feliz por ter o
uma maneira de falar com ele”. senhor a quem em tanto admiro como meu avô”.
Flávio procurou o momento certo, se aproximou mais do Flávio, em sua casa, conta a mulher e as filhas sobre sua
filho e ficou encantado com tudo que descobriu sobre ele. Sua descoberta, e antes de retornarem ao exterior lhes diz que deseja
generosidade na ajuda ao próximo o fez se sentir pequeno diante que as filhas conheçam melhor o irmão e um almoço é marcado.
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No sítio,Nitério conversa com a avó sobre o pai, que ele o despertava nelas admiração. Laura e Cristina prepararam um
procurou e lhe pediu perdão. Laura beija o neto carinhosamente e lanche para as visitas. A mesa farta fora posta, Nitério estava
diz: “Meu querido, o destino sempre nos surpreende, ele se muito feliz com a presença de todos. Suzana preferiu observar
encarrega de colocar tudo em seu lugar. Sei que é difícil e tudo de longe.
novopara ti ter um pai, irmãs e um avô. Deixe para trás as mágoas Quando se retiraram,Nitério diz a mãe: “Senti tua falta ao
e procure o lado bom, é isso o que importa, se teu pai te pediu meu lado”, Suzana respondeu: “Preferi não estar junto. Temi que
perdão é por que reconheceu seu erro. Isso não vai te trazer tudo o ficassem constrangidas com minha presença”. Nitério lhe diz:
que você perdeu ao não conviver com ele, mas pensa que ele “Pois da próxima vez quero que estejas ao meu lado, aí eu estarei
também perdeu a oportunidade de te ver crescer. O tempo não mais feliz do que estou”.
volta atrás, mas dá oportunidade de um novo recomeço”. Passado um tempo, Flávio precisou retornar ao exterior.
Nitério lhe beija e diz: “Minha avó, sempre tão Os negócios o aguardavam, antes de viajar combinou com o pai
compreensiva e sábia”. Laura lhe pergunta: “E tua mãe o que que Nitério estaria à frente da empresa, ao seu lado na
disse de tudo isso?”Niterio respondeu: “Quando conversamos ela presidência. Nitério quando soube agradeceu a confiança que o
me disse que preferiu que Flávio me contasse tudo e que a decisão pai e o avô depositavam nele.O trabalho ao lado de Áureo os
de perdoá-lo ou não seria minha.” deixou ainda mais próximos um do outro.
Na reunião espírita,Nitério encontra Dalva e Cézar. A Áureo aos finais de semana ia para o sítio do neto onde
palestra da noite falava de perdão. Ele escutou atento cada palavra ficava feliz no meio das crianças que o chamavam de vovô. O
e sentiu a importância do perdão para ter uma vida mais feliz. lugar e a companhia delas lhe fazia muito bem.
Decidido a perdoar o pai, já sentia seu coração mais leve. Em uma manhã, Laura acordou cedo como sempre fazia
No trabalho,Nitério conversou com Flávio e é convidado para ajudar Cristina a preparar o café, mas um mal estar a fez
para um jantar para que conheça melhor as irmãs. sentar. Cristina percebeu que Laura não estava bem e chamou
No jantar todos procuraram deixar Nitérioà vontade. Ele Suzana que ainda não havia saído para trabalhar, ela havia
conversou bastante com as irmãs, Cláudia e Flora, e as convidou passado a noite no sítio e retornaria a cidade pela manhã com
para conhecerem seu sítio e o orfanato que fora fundado por ele e Nitério. Os dois foram rápido ao chamado de Cristina, Laura
a avó. estava branca e suava frio. Imediatamente Suzana e o filho a
No dia combinado elas foram com Flávio e Áureo e colocaram no carro e foram procurar um médico que a examinou
ficaram encantadas com a organização e o carinho com que as e disse a Niterio para levá-la ao hospital na cidade para fazer uns
crianças eram tratadas, e a maneira carinhosa como tratavam a exames e descobrir a causa do mal estar.
Nitério, retribuindo o que ele fazia por elas. Nitério fez questão de Antes de irem, Laura pediu a Cristina e Dalva que
lhes mostrar como funcionava tudo por ali. Cláudia e Flora cuidassem de tudo no orfanato. Nitério as deixou no hospital e
ficaram orgulhosas ao ver o trabalho do irmão, sua bondade seguiu para a empresa onde o avô o aguardava. Áureo percebeu
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que o neto estava preocupado, se aproximou e disse: “Vai ficar bem e se me permitir, gostaria de levá-lo para o sitio”. Flávio
tudo bem, deve ter sido apenas um mal estar”. Nitério diz a sabendo que o pai não o acompanharia na viagem para o exterior,
Áureo: “Eu sei que terei minha avó por pouco tempo ao meu lado, concorda com Nitério em que ele fique no sitio.
encontrei meu avô Joaquim em sonho ele me disse que a Áureo caminha no sítio com o neto e lhe diz: “Tenho
aguardava e que eu não ficasse triste que ele cuidaria dela. sonhado com tua avô. Ela aparece em meus sonhos, eu sei que
Lembro como foi dolorida a perda de meu avô, sei que terei a estaremos juntos em breve, mas aprendi a não ter medo da morte
mesma dor, mas preciso ser forte e dar força a minha mãe que e foi graças a você e tua espiritualidade que me fizeram ver que a
precisará muito de mim quando o momento chegar’. morte não é o fim”. Ele permaneceu ao lado do neto até o final de
Áureo abraçou o neto e disse: “Pois você não estará só, sua vida. No testamento ele deixa parte da empresa no nome de
sempre que precisar estarei ao teu lado, só lamento ter te Nitério, Flavio achou justo e concordou com o pai.
descoberto agora e termos perdido tanto tempo de convivência”. Na varanda do sitio,Nitério conversa com Cristina,
Passado um tempo, Laura partiu. Em sonho,Nitério a viu ir relembram quando ela ali chegou e não mais quis ir embora.
junto ao avô, cumpria-se sua missão na terra. Ele sabia que Nitério lhe diz: “Tu foste e és muito importante nesse lugar, para
caberia a ele dar continuidade à o trabalho caridoso da avó. essas crianças”, Cristina lhe diz: “Eu sou grata por tudo que foi
No orfanato, todos estavam muito tristes. Suzana era feito por mim e meus filhos, e se depender de mim, morrerei aqui
consolada por Cristina e Dalva. Sentado na varanda estava trabalhando por esse lugar”. Nessa conversa ela pergunta: “Por
Nitério, com ele Nicolas, Rosa e Romeu, todos já haviam crescido que você nunca quis casar?” e ele responde: “Casei-me com esse
e tinham muita gratidão por tudo que fora feito por eles que jardim e com todas as borboletas que mantivemos aqui, e tudo
cresceram rodeados de amor. Nesse dia, eles abraçaram Nitério, e isso me completou. Não me sinto um homem só, tenho essa
Nicolas disse: “A vovó Laura se foi, mas faremos de tudo para grande família, meus filhos de coração. Muitos cresceram e
manter esse lugar que ela dedicou tanto amor”. seguiram seu rumo, outros chegam para aprenderem a voar, e nós
O tempo passou, Nicolas foi trabalhar na empresa com minha amiga, vamos ensinar acho que essa é nossa missão
Nitério. Ele era um jovem inteligente, fazia direito, era dedicado e recolher as borboletas perdidas cuidar e deixá-las voar livres ao
de confiança, ajudava Nitério nos assuntos da empresa. Rosa encontro de seu destino”.
estudava para ser professora e Romeu fazia enfermagem. Clara,
filha de Cristina e Pedro, gostava de lidar na terra. Era ele que
cuidava do jardim e da plantação.
Flávio sempre que possível vinha ao país visitar o pai e o
filho, em uma dessas viagens, ele percebe que Áureo precisa de
mais atenção de sua parte, quando conversa com o filho ele lhe
diz: “Eu também estou preocupado, noto que Áureo não anda
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pouco com elas. Ao chegar perto Maria Helena, lhe acariciava o


O LADO NEGRO DE MARIA rosto demonstrando muito amor, esse mesmo carinho ele não
sentia em Maria Eugênia que lhe parecia fria e arredia a seus
Em uma tarde fria nasceram as Marias, filhas de Leonor e agrados.
Juvenal moradores de uma pequena cidade chama Porto do Sol. Amélia também percebia algo diferente em Maria
Leonor já tinha um menino chamado Antônio e desejava ter uma Eugênia, já dava para perceber o quanto seriam diferentes.
filha, se essa fosse a vontade de Deus. Mesmo sendo irmãs gêmeas não tinham a mesma semelhança
Quando engravidou, para a sua surpresa ao dar à luz eram nem física nem interiormente.
duas meninas, o nome escolhido era Maria Helena, homenagem à O tempo passou, e as meninas já estavam com sete anos.
avó paterna, e logo pensaram no nome da outra menina, e Maria Helena era delicada e doce com todos, demonstrava afeto
escolheram Maria Eugênia. A felicidade de Leonor era plena por tudo que lhe rodeava, amava a natureza, os animais, adorava
tinham duas Marias para alegrar ainda mais o seu lar. ajudar a avó a cultivar as flores do jardim e sempre colhia a mais
Juvenal quis levar Antônioao quarto, que todo cuidadoso, bela e levava para sua mãe.
se aproximou do berço onde estavam as meninas. Leonor lhe Juvenal viajava muito a trabalho, e sempre que retornava
disse: “Filho, essas são tuas irmãzinhas. Deus nos presenteou com trazia consigo vários presentes para a família. Maria Eugênia
duas meninas”. Antônio ficou observando as duas em silêncio. ficava sempre atenta para ver se o seu presente era o mais bonito
Seu pai chegou perto e lhe perguntou: “Então, o que achou de que o da irmã, ela não gostava de usar roupas iguais àsde Maria
tuas irmãzinhas?Não vai falar nada? Quando forem maiores vai Helena, detestava quando a mãe lhes comprava vestidos do
poder agarrá-las no colo”. O menino sorriu expressando mesmo modelo, isso chamava atenção da família.
felicidade. Já Maria Helena, não se ligava a detalhes para ela tudo
A família de Leonor era bem estimada por todos na estava bom. Era muito agarrada ao irmão Antônio que sempre a
cidade, e tiveram várias visitas para conhecer as meninas. Leonor tratou com carinho por ela sempre retribuído. A relação de Maria
contava com a ajuda da mãe, Amélia, que morava próximo de sua Eugênia com o irmão não era tão afetuosa. Antônio era vítima de
casa e lhe ajudava a cuidar das meninas. Amélia era mulher muito suas armações. Com seu modo manipulador, sempre aprontava
religiosa, devota de nossa senhora, muito ajudou a filha na lida alguma coisa para culpar o irmão e a irmã. Seu modo de ser
com as crianças. Juvenal passava grande parte do dia fora sempre fora observado pela avó, Amélia, que sentia na neta algo
administrando uma pequena empresa na área da construção, ruim, desde que ela era bem pequena. Suas atitudes mostravam
várias vezes tinha de viajar para tratar de negócios, mas ficava um caráter duvidoso que passou a deixar sua avó preocupada.
tranquilo, porque sabia que tinha a ajuda da sogra. Suas armações para prejudicar os irmãos mostrava desde cedo seu
Assim o tempo foi passando, e as Marias foram crescendo. lado mal e sombrio.
Antônio sempre que chegava da escola ia até as irmãs brincar um
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Quando saíam para se divertir nas festas, Maria Eugênia pequenos, orava e pedia para afastar a energia ruim que sentia vir
gostava de ir bem vestida, sempre se destacando da irmã, parecia de Maria Eugênia.
que fazia questão que a observassem, mas Maria Helena tinha seu Com o tempo, Juvenal prosperou em seus negócios,
brilho próprio, simples e carismática sempre era notada nos ampliou sua empresa de construção civil. Com a situação da
lugares por onde passava. família equilibrada, podia bancar os estudos dos filhos. Antônio
Antônio se tornou um homem bonito e cobiçado por as desejava ser médico, Maria Helena fazia administração,
jovens da cidade, nos bailes, era disputado. Quando dançava com trabalhava com o pai e Maria Eugênia foi para Paris fazer um
as irmãs, se faziam notar por todo o salão. curso ligado à moda, desejava ter sua própria loja. O tempo em
Maria Eugênia sentia ciúmes da irmã, mesmo que tentasse, não que esteve fora foi o suficiente para dar um novo rumo a sua vida.
conseguia se mostrar superior à Maria Helena, que com seu jeito Em Paris, conheceu Richerd, empresário famoso no ramo
simples, estava sempre rodeada de amigos, o que despertava uma da moda. Com ele Maria Eugênia se envolveu, usando artimanhas
raiva incontrolável em Maria Eugênia. para conseguir o que queria, se mostrou doce e ingênua,
Já adulta, Maria Helena não era tão ingênua como quando encantado,Richerd se deixa envolver. Ambiciosa ela deseja
criança, quando tantas vezes fora prejudicada pela irmã, mas sempre mais, com o passar do tempo ela convence Richerd a
sempre teve o irmão Antônio a lhe proteger. largar a família e com ela ficar.
Leonor e Juvenal tratavam os filhos com o mesmo amor Nas cartas que envia a os pais, ela fala com empolgação
sem distinção, não entendiam o porquê da má índole existente em que conheceu um homem, que quando retornar ele a acompanhará
Maria Eugênia. Suas atitudes, a forma como tratava os irmãos. O para conhecer a família.
tempo passou, os filhos já eram adultos e os entristecia ver que o Na empresa do pai, Maria Helena segue seu trabalho, se
modo de ser de Maria Eugênia permaneceu, uma índole má que mostra uma boa administradora, competente e responsável. Seu
os assustava. pai comenta com a esposa Leonor o quanto os negócios vão bem
Muitas vezes Antônio discutia com a irmã ao perceber o e o orgulho que sente em ter a filha trabalhando junto a ele.
que ela armava para prejudicar Maria Helena, e se perguntava por Na hora do jantar, Antônio fala a família da proposta que
que Maria Eugênia era tão diferente, porque trazia consigo recebeu para trabalhar em um grande hospital na cidade vizinha.
sentimentos tão ruins. Todos ficam felizes, nesse jantar também fora apresentada a
Amália morava perto da filha, Leonor, adorava os netos, família, Márcia, sua colega, que ele apresenta também como
mas ficava sempre temerosa quando estava perto de Maria namorada.
Eugênia. Sentia nela algo sombrio que não conseguia explicar, Sua avó Amélia coloca na mesa a sobremesa preferida do
orava e pedia em suas orações sempre proteção para toda a neto, sua famosa torta de maçã. Ela diz a ele: “Então vamos
família.Essas orações eram feitas desde que os netos eram comemorar com o seu doce preferido”. Nessa noite, Maria Helena
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a pedido da avó, toca uma bela música ao piano, essa é apreciada Eugênia tratava a irmã, que para ele, parecia encantadora, meiga e
por todos ali presentes, momento de harmonia e paz. humilde, humildade essa que ele não encontrava em Maria
Passado alguns dias, Maria Helena sai mais cedo, vai à Eugênia.
casa da avó que se encontra indisposta devido a um resfriado. O dia do casamento chega. Antônio, nervoso no altar,
Sempre carinhosa, se mostra preocupada com a avó. Ao chegar lá, aguarda a noiva que é conduzida pelo pai ao som de uma bela
Amélia lhe diz que está bem, que é apenas um resfriado, prepara música tocada ao piano por Maria Helena.
um chá para tomarem e diz a neta: “Você e Antônio são tão Após a cerimônia os convidados se dirigiram para o salão
diferentes de Maria Eugênia, sempre tão preocupados comigo de festas. Tudo fora organizado com muito carinho pelos pais da
enquanto que a irmã de vocês não me enviou uma carta sequer em noiva para que fosse uma festa inesquecível. No final da festa, os
todo esse tempo que está fora”. Maria Helena vendo a mágoa da noivos foram para uma viagem de lua de mel, presente de Juvenal
avó lhe diz: “Mas Antônio e eu estamos aqui. Sempre poderá ao filho que sempre desejou conhecer a Itália.
contar com a gente”. A avó lhe diz: “Eu sei disso minha querida”, Em casa, Leonor comentava com as filhas que tudo estava
se despedem e Maria Helena segue para seu trabalho. perfeito na festa, Maria Helena concorda com ela, mas Maria
Mais tarde, Leonor chega à casa da mãe demonstrando Eugênia ironicamente diz: “Mas o meu será bem mais requintado.
também preocupação por ela morar ali, só, e insiste em levá-la Farei uma festa que jamais esquecerão”. Leonor lhe diz: “Você e
para morar em sua casa, mas Amália diz gostar de estar em seu tua mania de grandeza, pois para nós estava perfeita”.
canto que tem suas flores, suas manias. Quando a mãe se retira, Maria Eugênia, com ar de
No jantar, Leonor conversa com o marido e a filha que não superioridade, se aproxima da irmã e lhe diz: “Fica longe de
convenceu sua mãe de morar com eles, que ela insiste em ficar Richerd. Vi o modo como ele te olhou e tu correspondeste com
em sua casa. Então Maria Helena diz à mãe que vai morar um esse jeito de sonsa”. Maria Helena se irrita com a irmã e sua
tempo com a avó, que assim todos ficarão mais tranquilos. insinuação, se retira dizendo: “Tu estás louca”. Quando chega
Maria Eugênia retorna ao Brasil para o casamento do perto da avó ela percebe sua irritação, ao conversarem, ela conta a
irmão, traz com ela Richerd que é apresentado a família como seu avó das insinuações da irmã.
noivo. Em um jantar onde toda a família está reunida, ele Amélia percebe que Maria Eugênia permanecia como
oficializa o pedido de noivado. Richerd é um homem educado, sempre foi: má com a irmã, sempre procurando um pretexto para
muito atencioso, seu modo de ser agrada a todos. Quando ele é prejudicá-la. Nesse dia Maria Helena diz a avó: “Somos gêmeas,
apresentado a Maria Helena, fica surpreso ao saber que são mas nunca senti afeto de minha irmã, ela sempre me tratou com ar
gêmeas, pois Maria Eugênia em nenhum momento lhe revelara de superioridade, só me tratava bem quando havia interesse por
esse detalhe. algo que eu pudesse lhe dar, sinto que minha alegria a incomoda.
A convivência com a família da noiva lhe fez perceber Não entendo o porquê”.
várias coisas as quais achava estranho o modo como Maria
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Amália contém as lágrimas da neta, lhe dizendo: “Minha dissimulada, demonstrou ter apenas um descontrole por ciúmes,
querida, o ser humano é muito complicado, tem coisas que fogem se desculpa com o noivo que lhe diz: “Não é a mim que tens de
ao nosso entendimento, mas pode ter certeza que um dia pedir desculpas, mas sim a tua irmã e teus pais”. Maria Eugênia
entenderemos o porquê de tua irmã agir assim e ser como ela é, vendo a reação do noivo lhe diz que se desculpará. Ao retornar a
mas não deixe que tua irmã te faça sentir inferior, porque tu não sala pede que os pais a perdoe que no outro dia pedirá desculpas a
és, tens um coração puro, ela que tem muito a aprender contigo, irmã.
com teu modo de ser”. Amélia beijou-lhe a testa com carinho e Antônio fica na casa dos pais com sua esposa, no quarto,
Maria Helena sentiu uma paz que lhe tocou o coração após ouvir conversam sobre o que acontecera. Antônio diz a esposa que
as palavras da avó. Maria Eugenia sempre foi diferente deles, que ela tem algo ruim
Passado alguns dias, Maria Helena fora com a avó a casa consigo, desde criança ele sempre protegeu Maria Helena de suas
da mãe que preparou um jantar para comemorar o aniversário de maldades. Hoje percebe que o tempo não a fez mudar.
Juvenal. Todos estavam felizes. Antônio estava com a esposa, No outro dia, Maria Eugênia foi ao serviço da irmã e lhe
Maria Eugênia com Richerd. Tudo estava bem até o momento em pediu desculpas, mas antes de saírem sem que o noivo que lhe
que Maria Helena foi tocar ao piano uma música a pedido do pai. acompanhava a ouvisse, falou a Maria Helena: “Só vim porque
A música emocionou todos, principalmente a Richerd que foi Richerd insistiu”.
cumprimentá-la. A reação de Maria Eugênia deixou os pais Na casa da avó Amália, Maria Helena fala do ocorrido e a
constrangidos, ela insultou a irmã dizendo que ela queria se avó lhe diz: “Minha querida, tua irmã sempre foi diferente de
mostrar para o noivo. vocês, eu quisera que a vida lhe tornasse uma pessoa melhor, mas
Antônio, vendo a atitude da irmã, fez o que sempre fazia acho difícil que isso aconteça. Vamos orar para que um dia ela
desde criança, proteger Maria Helena. Nesse dia ela que sempre consiga mudar”.
foi calma reagiu aos insultos da irmã dizendo: “Respeite a casa de O tempo fora passando, Maria Helena conheceu Cristiano,
nossos pais e respeite-me também. Pensa que sou como tu, um ser apaixonado, após um tempo, em um jantar onde as famílias
desprezível, como sempre se mostrou, sem sentimentos nem amor estavam reunidas, ele a pede em casamento. A resposta foi sim.
por os que te rodeiam? Eu jamais desejo o que tu julgas ser teu Antônio ficou feliz pela irmã e porque conhecia bem o noivo seu
porque não somos iguais, pensamos diferente e principalmente amigo e colega no hospital.
temos caráter diferente”.Foi até os pais, lhes deu um beijo e se Maria Eugênia quando soube do pedido, estava fora do
retirou com sua avó Amália, pois já se fazia tarde o outro dia saía país, não demonstrou felicidade com a notícia. Em sua cabeça
cedo para o trabalho. doentia, a irmã não seria capaz de encontrar alguém e com ele ser
Richerd pediu licença a Juvenal e aos demais presentes e feliz, era como se a felicidade da irmã a incomodasse.
foi ter uma conversa com Maria Eugênia. Chateado com a atitude Cristiano era um homem correto e bom, suas virtudes
da noiva, tentava entender o que acontecera. Maria Eugênia, encantaram Maria Helena e deixaram Amália feliz por saber que a
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neta havia encontrado a pessoa certa que com certeza lhe faria Paris. Maria Eugênia se despediu de todos com ar de
feliz. superioridade.
Passado um tempo, Amália se sentiu mal e foi levada ao A casa que Richerd montou para ela foi toda decorada
hospital, ali permaneceu por uns dias e faleceu. Todos ficaram conforme seu gosto, ela esbanjou requinte e luxo, mostrando seu
muito tristes. Maria Eugênia fora avisada, mas não chegou a lado nada modesto. Os filhos de Richerd não se conformavam
tempo para o enterro. Todos demonstravam muita tristeza, com a atitude do pai de largar a mãe deles.
principalmente Maria Helena que era muito apegada a avó. O tempo fora passando e Maria Eugênia se mostrava como
Quando Maria Eugênia chegou com o noivo a casa dos sempre foi, uma pessoa ambiciosa, fria, disposta a tudo para
pais, eles foram apresentados a Cristiano. Todos estavam muito atingir seus objetivos. Teve tudo que quis, mas parecia que tudo
tristes com a perda de Amélia. Maria Eugênia se mostrou fria ainda era pouco, ela desejava sempre mais. Richerd fora
como sempre foi, suas palavras foram: “Vovó já estava velha, envolvido por Maria Eugênia, fazia lhe todas as vontades, parecia
todos temos de morrer um dia, então temos que nos conformar e ter em seus olhos uma venda que não lhe permitia ver o lado
não ficar chorando pelos cantos”. Maria Helena se retirou para negro de Maria Eugênia.
não ter de brigar com a irmã. Leonor disse: “Minha filha, respeite Na casa de Maria Helena era tudo tão diferente, havia
nossa dor”. harmonia e amor. Seu modo meigo deixava seu noivo cada vez
Nos dias que ali ficaram,Richerd se mostrou solidário ao mais encantado e certo de que encontrara a pessoa certa para
momento, enquanto que a noiva parecia não se importar com o formar sua família. Já fazia um ano que estavam noivos, e
que a família sentia. Seu modo de se comportar deixou Richerd finalmente se casaram. Foi uma linda cerimônia com toda a
pensativo, será que havia feito o certo ter deixado sua família por família e amigos presentes. Juvenal e Leonor estavam orgulhosos
aquela mulher que se mostrava tão sem sentimentos?Mas ela o e felizes. Tinham certeza de que Maria Helena e Cristiano seriam
havia encantado de tal forma que o encanto parecia cegar seus muito felizes.
olhos aos erros que cometia. No casamento estava Maria Eugênia e o marido, ela como
Passado alguns meses, retornaram e marcaram a data do sempre bem vestida olhava a todos com ar de superioridade.
casamento.Richerd queria uma cerimônia simples, mas Maria Quando cumprimentou a irmã, ironizou dizendo: “Achei
Eugênia queria uma grande festa. Por fim, concordou, meio que seria a solteirona da família”.Richerd logo interferiu dizendo:
contrariada, que seria uma cerimônia simples, com sua família e “Desejo muita felicidade a vocês”. Maria Helena agradeceu e
uns poucos convidados. Tudo aconteceu conforme o combinado, foram cumprimentar os demais convidados. Após se
a maioria dos convidados eram da noiva, o que causava certa retirarem,Richerd diz a mulher: “Não entendo porque implicas
estranheza a todos, pois apenas dois amigos de Richerd estavam tanto com tua irmã”. Nesse momento os pais dos noivos se
presentes.Após a cerimônia e a recepção eles retornaram para aproximam e eles mudam de assunto.
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Após a festa, Cristiano e Maria Helena foram para o concordar. Em nenhum momento lhe passou pela cabeça que
aeroporto para a viagem de lua de mel, presente de Antônio aos Maria Eugênia fosse uma mulher ambiciosa e perigosa.
noivos que seguiram para a França. Nos lugares por onde andavam, ela demonstrava ser a
O tempo passou, Leonor e Juvenal estavam felizes com mulher feliz e fiel ao marido, mas às escondidas matinha um
seus filhos encaminhados na vida, mas ainda se preocupavam relacionamento com Jackson.
com Maria Eugênia, que há tempo não dava notícias. Mesmo com Tudo saía como haviam planejado. Após ter acesso as
a convivência sempre difícil, amavam Maria Eugênia e gostariam contas de Richerd, onde uma fortuna era guardada, planejavam
de tê-la por perto, mesmo sabendo que ela não demonstrava falta dar fim a Richerd e ficar com o que lhe pertencia. Tudo teria de
da família, pois raras vezes dava notícias. ser feito com muito cuidado para parecer um acidente. O carro
Vendo a preocupação da mãe, Maria Helena convence o fora sabotado, mas no dia, um imprevisto,Richerd não usou o
pai a levar Leonor em uma viagem e passarem por Paris para carro como de costume, saiu com o filho Édersonàs pressas para
visitar Maria Eugênia. Tudo fora organizado para a viagem. resolver assuntos de família, e saíram no carro do filho.
Maria Helena tomou conta da empresa do pai, nos dias em que Maria Eugênia precisa sair e o motorista a leva. Sem saber
ficariam fora. Maria Eugênia fora avisada, e quando seus pais ela usa o carro. Quando Jackson vê Richerd chegar fica nervoso e
chegaram foram recebidos por ela, que demonstrou surpresa por tenta avisar Maria Eugênia para que ela não use o carro do
eles estarem ali. Mostrou-lhes sua casa, tudo muito luxuoso. marido, mas não consegue avisá-la. No caminho para a cidade o
Richerd se mostrou feliz com a visita e procurou deixá-los à motorista percebe que os freios do carro não respondem, ele perde
vontade. Os dias em que ali ficaram lhes fora mostrado a cidade. o controle, cai em um penhasco e explode. O corpo de Maria
Quando partiram foram mais tranquilos, sabiam que a filha estava Eugênia é jogado para fora, arremessado entre as pedras.
bem e seu marido parecia ser uma boa pessoa. No escritório,Richerd é avisado e entra em desespero, não
O que eles não imaginavam era que na cabeça doentia da podia acreditar que a mulher que deixara em casa, linda, no leito
filha, um plano era tramado. Maria Eugênia desejava se apossar adormecida, agora estava morta.
da fortuna do marido. Ela fez com que vários bens de Precisava encontrar forças para dar a notícia a família de Maria
Richerdfossem colocados em seu nome, usando o pretexto de que Eugênia. O que dizer de tamanha tristeza? O filho,Éderson, vendo
sua família a prejudicaria se algo acontecesse ao marido. Ela o estado do pai, se esquece dos ressentimentos e resolve
contava com a ajuda de Jackson, um advogado com quem teve acompanhá-lo nesse momento difícil solidário em sua dor.O local
um envolvimento. Ele trabalhava na empresa do marido. onde o carro caiu era de difícil acesso, os corpos não poderão ser
Richerd era um homem bem mais velho que Maria retirados.
Eugênia, mas era um homem conservado, não aparentava a idade Richerd sabia que, mesmo sendo difícil, precisava viajar e
que tinha. Maria Eugênia lhe despertara o vigor da juventude. Seu pessoalmente dar a notícia à família de Maria Eugênia, o filho fez
modo de ser o encantava, apesar de algumas coisas ele não questão de acompanhá-lo.
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No escritório,Jaquison, assustado, não sabe o que fazer. O No mundo espiritual Maria Eugenia percebe o quanto é
plano não poderia ser concluído, se o dinheiro fosse transferido da sombrio o lugar onde se encontra, os gemidos e a dor se fazem
conta de Richerd ele seria o suspeito, então resolveu desistir. constantes, sua mente atordoada a faz estar entre os vivos e os
Ao chegar ao Brasil,Richerd fora para um hotel com o mortos.
filho, se encheu de coragem e foi procurar os pais de Maria Na casa dos pais, a vida prossegue seu ritmo, o amor da
Eugênia. Quando lá chegou, fora recebido com surpresa, pois não família se mostra presente nas orações. A irmã que tanto tentou
o esperavam. Leonor logo foi perguntando pela filha: “Onde está prejudicar tenta ajudá-la através das orações.
Maria Eugênia?”Richerd ficou pálido. Logo, Leonor percebeu Com o tempo, Maria Eugênia percebe que perdera a
que algo havia acontecido.Richerd falou do acidente, Leonor fica oportunidade de evoluir junto à família que tanto a amou, mesmo
aos prantos, Juvenal tenta consolar a mulher, mas também precisa ela se mostrando tão má em seus atos. Tantas oportunidades
ser consolado. Um momento de dor observado pelo espírito de foram lhe dadas para que sua vida seguisse um rumo diferente.
Maria Eugênia, que se encontrava em um canto da sala. Ela percebera isso no desencarne.
Maria Helena e Antônio foram avisados, e imediatamente Os sonhos de Maria Helena só cessaram após, por
foram à casa dos pais. Ao saberem do ocorrido, choraram a perda orientação da sogra, Regina, que a levou a um centro espírita
da irmã. As lágrimas da família tocaram o coração de Maria onde em tratamento pode ajudar a irmã. No centro, passado um
Eugênia a fazendo perceber o quanto era amada por eles, mesmo tempo, Teresa recebe uma mensagem de Maria Eugênia
sendo como sempre foi desapegada da família. direcionada à família. Suas palavras emocionam a irmã. Na
Após alguns dias,Richerd retorna a seu país, em seu rosto mensagem dizia: “Minha querida família, sei que não fui a pessoa
era visível o abatimento. que desejavam, meu modo de ser, meu egoísmo cegaram meus
Maria Helena ficou uns dias com os pais, O marido e seu irmão olhos não me deixando perceber a família maravilhosa que tinha,
seguiram para seus compromissos no hospital onde trabalhavam. o quanto me amavam e o quanto eu poderia ter sido uma pessoa
À noite, Maria helena sonha com a irmã, que se aproxima com o melhor. Deixei meu lado negro ser mais forte que meus
rosto desfigurado parecendo atordoada. Leonor escuta o grito da propósitos de evolução, me tornei uma pessoa fútil, egoísta,
filha e corre ao quarto onde ela dorme. Maria Helena, aos prantos, ambiciosa, nem meu marido eu soube valorizar.”
conta a mãe do sonho com a irmã. Leonor lhe prepara um chá “Sempre me senti superior, hoje, percebo que jamais o fui,
para que se acalme. minhas atitudes, minhas escolhas me mostraram o quanto eu
Os sonhos com a irmã passam a ser frequentes o que deixa ainda tenho que aprender com pessoas como vocês. Minha irmã,
a família e o marido preocupados. imensa bondade em teu coração em nenhum momento senti vir de
Em Paris,Richerd tenta se recuperar da perda. Sente muita ti ódio nem ressentimentos, nascemos do mesmo ventre, geradas
falta de Maria Eugênia que perambula pela casa e pelos com amor, esse amor que tu soubeste compartilhar aos que te
pensamentos de Richerd, que tenta se conformar. rodeiam, sei que não fui a irmã que tu e Antônio desejaram ter.
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Sei que não foram apenas diferenças que nos distanciaram, mas Após alguns anos, ela retorna como filha de sua irmã e
sim a má índole que me acompanhou em minha existência, deixei novamente vem em uma gestação de gêmeos. Pedro e Antônia.
essa ser mais forte que eu. Hoje percebo meus erros e rogo a Deus
uma oportunidade de concertá-los.”
“Vaguei no vale das sombras, ciente de meus erros e foi
ali que descobri a força do amor e da oração em benefício dos que
amamos, pois foi através de tuas orações minha irmã e de meu
arrependimento que pude ver a rosa branca, que em luz, me
colocou em um lugar de paz junto à nossa avó Amélia.
Sigo em tratamento e aguardo o momento de uma nova
oportunidade. Saudades. Maria Eugênia.”
Emocionada, Maria Helena enxuga as lágrimas, e com ela
leva a mensagem para ler para a família. Ela estava feliz,
finalmente sentia que a irmã estava amparada.
Richerd após um tempo retorna a sua casa onde pede
perdão à esposa que ele abandonara essa lhe dá mais uma
oportunidade lhe perdoa. Ele teve essa atitude após descobrir os
planos de Maria Eugênia. Jaquison confessa toda a armação em
uma carta que deixou para Richerd antes de sair do país.
Jaquison se sentia atordoado, tinha vários sonhos com
Maria Eugênia onde ela pedia que a verdade fosse revelada,
assim,Richerd sairia da depressão em que se encontrava devido ao
sofrimento por sua morte.
Após a revelação,Richerd ficou decepcionado ao perceber
que Maria Eugênia não o amava, ela queria apenas o seu dinheiro.
Ao retornar para casa após o perdão da família, ele se
sentiu novamente feliz em paz e passou a valorizar mais a família
que tinha.
O tempo passou, Maria Eugênia se preparava para nova
oportunidade, precisava retornar ao seio da família e concluir sua
missão de evoluir.
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O MUNDO VISTO COM OLHAR DE UM IDOSO boneca de pano que eu chamava de princesa, fora feita por minha
avó. Meus irmãos ganhavam carinhos de madeira feitos por nosso
Olho-me no espelho, minha pele envelhecida me mostra o avô. Aqueles presentes nos enchiam de alegria além do delicioso
quanto o tempo passou. Meus movimentos são lentos, já não jantar em família.
tenho mais a agilidade de antes, sei que com a idade tenho Guardo minhas preciosas lembranças, ao tocar meu rosto,
limitações, a memória às vezes me falha, mas não me deixa me ponho a pensar no quanto o tempo mudou, as pessoas parecem
esquecer momentos de minha vida que guardo de forma preciosa mais apressadas, as crianças já não tem aquele contato com a
em meus pensamentos, estes me levam muitas vezes ao que fora natureza como antes, estão mais interessadas nos brinquedos
vivido por mim, as brincadeiras de infância com os irmãos, eletrônicos e jogos de vídeo game. Histórias já não são escutadas
primos e alguns amigos, os banhos de cachoeira na mais pura como antes com a mesma atenção, parece que o simples não
inocência onde, tudo nos era natural. desperta tanto interesse, dando lugar ao modernismo.
Enquanto aguardávamos o jantar, escutávamos as histórias Sei que não me veem com a mesma utilidade que eu sentia
contadas no cair da noite por nossa avó, e todos em silêncio, em nossa avó, que até o último instante esteve presente em nossas
prestando muita atenção, não queríamos perder nenhum detalhe. vidas nos deixando linda lição e o vazio por não tê-la mais por
No jantar que era servido em uma mesa farta, o silêncio e uma perto.
prece feita por nosso pai abençoando os alimentos, após o Senti-me meio abandonada pelos meus, cada um com seu
delicioso jantar todos se preparavam para uma tranquila noite de compromissos, até as crianças levadas desde cedo à escola, me
sono. restara a empregada que, por ordens da família, não me deixava
Ao amanhecer, uma linda melodia de pássaros. É o fazer nada. Não queriam que eu me cansasse, mas não sabiam
momento de acordar, já sentindo o cheiro do café e das broas eles que eu precisava me sentir útil, mesmo que por uns instantes.
feitas por nossa mãe, a mesa novamente farta, o café é saboreado Dentro de minha compreensão, eu sabia que os tempos
de forma reforçada pelos homens que enfrentariam longo dia de haviam mudado assim como o ritmo de vida, com mais cobranças
trabalho no campo, enquanto as mulheres se encarregam dos exigindo mais de cada um. Sei que minha filha também havia
afazeres domésticos. Vida simples e feliz. guardado boas lembranças de nosso antigo sítio, deixado para trás
Eu sempre escutava a minha avó que ao ralar o milho para com a morte do seu pai. Casada e adaptada à vida na cidade
extrair a farinha me contava histórias de sua vida. Eu adorava seguia seu ritmo. Eu que nunca me adaptei, sentia falta da
escutar. liberdade que ali eu não tinha sair pelo campo, molhar os pés no
No Natal, tudo era preparado para a ceia em família, um riacho, escutar o cantar dos pássaros e o cheiro maravilhoso da
galho de pinheiro era colhido por nosso pai e nós o enfeitávamos terra molhada pela chuva repentina das tardes de primavera.
com laços de fita. Embaixo da árvore, nossa mãe colocava
embrulhos simples, com algo feito por elas. Nunca me esqueci da
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Sabemos que precisamos nos adaptar com as mudanças, O SILÊNCIO DOS INOCENTES
mas para um idoso não é fácil entrar em um ritmo que já não é
seu. Na Alemanha nazista sentimos a paz se acabar, a
As lembranças passam a ser a companheira na luta contra perseguição aos Judeus deu fim a famílias inteiras que, levadas
a solidão, porque podemos senti-la, mesmo que a casa esteja cheia aos campos de concentração, deixaram nele seus sonhos que
o idoso pode estar vazio de carinho, atenção, não se sentido útil foram dilacerados pela fúria dos soldados comandados por um
na vida dos que o rodeiam. Ao perder a utilidade, encontra-se a anjo do mal.
certeza de que não fará falta na vida dos que tanto ama, Lembro-me da manhã fria em que fomos retirados de
entregando-se ao momento de partir e finalizar sua história. nossa casa, soldados a invadiram e nos tiraram à força sem deixar
Mas, ao pensar que tudo terminou, observa-se seu próprio que pegássemos nenhum pertence, quando olhamos para trás
funeral, onde tantos choram demonstrando seu amor e percebe-se nossa casa estava em chamas.
que esse existia em formas diferentes de amar. Ao olhar para os Vi as lágrimas de meus pais, e pude sentir o medo que
que já partiram, sabe-se que acabara aquela existência, mas sentiam por nós. Meu irmão se agarrou à minha mãe sem entender
prosseguia a energia que levaria a outras dando continuidade ao o que estava acontecendo. Fomos levados para junto de outras
ciclo da vida, que nos permite evoluir nas inúmeras mudanças que pessoas que, como nós, também foram retiradas de suas casas.
vamos sofrendo, o antigo dá lugar ao novo e o novo se torna Um homem que comandava, gritou aos soldados: “Levem-
antigo, dando lugar ao futuro, o ir e vir moldando nossa alma, nos ao trem para irem ao novo lar, onde aprenderão que somos
aprimorando nosso ser para nos tornarmos melhores e uma raça superior a eles”. Fomos conduzidos ao trem e jogados
alcançarmos nossa verdadeira essência. dentro do vagão onde já havia várias pessoas, mulheres, crianças.
Após horas de viagem, chegamos a um lugar feio, um
grande campo de concentração, ali pude sentir cheiro de morte e o
sofrimento que jamais imaginei presenciar.
Muitas vezes eu me perguntei: onde estava o meu Deus
que permitia aqueles atos tão bárbaros?Qualquer gesto que
fazíamos era observado e, se houvesse revolta, éramos punidos ali
mesmo. Não podíamos fazer nada a não ser assistir o nosso povo
ser humilhado e morto.
Vi grupos serem levados e não retornarem. Sabíamos que
não retornariam. Vi minha mãe e meu irmão serem levados em
um daqueles grupos e nada podemos fazer, fiquei ali no campo
com meu pai e sentia o esforço que ele fazia para não chorar, ali
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trabalhávamos muito a água era controlada e a comida era uma consegui chorar, acho que todas as lágrimas eu já havia
ração de gosto desagradável, servida em canecas, os dias eram de derramado. Senti que ele estaria em paz e sabia que em algum
terror e a noite muitos nãosobreviviam ao frio que fazia. momento eu teria o mesmo fim que ele. Os soldados
Ficávamos bem próximos uns dos outros para nos aquecer imediatamente o tiraram dali, levaram-no de arrasto como se leva
com as poucas cobertas que tínhamos. Os dias foram passando e algo que não é mais útil, os corpos eram amontoados em valas,
longos meses se passaram e a cada dia eu via mais tristeza nos pois quase todos os dias tinham alguém para enterrar, aquilo já
olhos das pessoas que ali estavam, algumas desorientadas nos era comum, e sempre pensávamos se ali teria alguém de nossa
pareciam fora de si, magras desnutridas esperando apenas o família.
momento de partir. Passado um tempo, parecíamos mortos vivos, roupas
Parecia que todo o sofrimento que passávamos dava prazer rasgadas, cabeças raspadas e todos esqueléticos, alguns com
aos soldados, eu sentia desprezo no olhar deles, nunca senti muita tosse. As crianças, mesmo ao meio de todo aquele terror,
compaixão, eles não respeitavam as mulheres nem as crianças, ainda encontravam força para brincar e nos alegravam. Era a
muitas eram abusadas por eles, algumas eram mortas outras única alegria que tínhamos, mas parecia que eles sabiam disso e
devolvidas para que visemos. um dia, os soldados entraram no campo de concentração,
Eu sentia dentro de mim uma revolta tão grande por cada reuniram todas as crianças, e elas, em sua inocência, não
ato de terror que eu presenciava, mas me continha e segurava meu imaginavam o que as aguardavam. Foram levadas e não
pai para que não reagisse, eu sabia que qualquer reação que retornaram. Foram mortas na câmera de gás.
tivéssemos iríamos ter o mesmo fim de nossos companheiros que Eu senti uma profunda revolta. Vi meus companheiros
se revoltaram e foram mortos. chorarem baixinho para não serem escutados, e quando vi no
Passado um tempo, meu pai ficou transtornado, pensava rosto dos soldados um sorriso, gritei para que todos escutassem:
muito em minha mãe e meu irmão. Eu também sentia falta deles, “Assassinos malditos!” e nesse momento todos atiraram em mim.
no fundo sabíamos que não os veríamos mais. Caí ao chão com o corpo crivado de balas. Meu sofrimento
O que nos alegrava um pouco era as crianças que ainda havia ali, chegara ao fim junto ao silêncio dos inocentes.
e que, sempre juntas, corriam e brincavam naquele lugar sem
brilho, mas que ainda mantinha um pouco de alegria naqueles
sorrisos inocentes.
Em uma tarde em que o sol se escondia, meu pai caiu aos
meus pés, já sem força, quase não respirava, olhou para mim
agarrou a minha mão e antes de morrer me disse: “Acho que vou
para junto de tua mãe e teu irmão, eu não queria te deixar, mas
não tenho mais forças” e naquele momento ele partiu. Não
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RECOMEÇO envolvendo em um lindo lençol branco que fora bordado por


minha mãe, nos despedimos após orarmos por ela. Esse momento
Caminhando sobre folhas amareladas, caídas ao chão, foi tão difícil, senti uma profunda tristeza quando as águas
sentindo o barulho de minhas pisadas quebrando as folhas secas, à levaram o corpo, mas algo dentro de mim dizia que eu precisava
minha mente me vem esse mesmo caminho percorrido por mim ser forte por meu pai e minha irmã.
quando criança. As pequenas pegadas eu podia sentir a maciez Guardei as palavras de minha mãe que, antes de morrer,
das folhas como um tapete acariciando meus pés. pediu para falar comigo e com voz baixa me sussurrou que
Chegávamos à nova terra que nos acolhia após longa cuidasse bem de Maria e de meu pai, que ela sempre estaria
viagem de navio acompanhado de meus pais, minha irmã e um olhando por nós e que eu nunca perdesse a fé perante as
grupo de amigos. Fugíamos da guerra deixando para trás a nossa dificuldades.
Itália. No novo país recomeçávamos a nova vida. Tentei ser forte mesmo sendo ainda uma criança, eu tive
Lembro-me da longa viagem de navio, os sonhos de uma muitas vezes que agir como adulto, meu pai ficou deprimido
vida melhor impulsionava a todos e dava força para suportarem as depois da morte de nossa mãe, parecia que tudo para ele perdera o
dificuldades do trajeto. Eram dias intermináveis, de inverno sentido. Contávamos com a ajuda de amigas que me auxiliavam a
rigoroso. Alguns não suportaram a viagem, assim como minha cuidar de Maria, que sentia muita falta de nossa mãe e às vezes
mãe, Giovana, que contraiu uma pneumonia. Lembro-me de meu ficava meia febril.
pai tão preocupado tentando de tudo para salvá-la, mas a febre Finalmente a viagem chega ao fim. Chegamos à nova
alta não cessava. Meu pai sempre junto dela, eu tomava conta de terra, era tudo tão diferente, senti um pouco de ânimo em nosso
minha irmã, Maria, ainda tão pequena. pai quando no porto encontrou um amigo que nos aguardava e
O médico do navio a examinava e todos os medicamentos este nos conduziu a uma colônia de italianos que se formou no sul
que tinham disponíveis meu pai comprou, mas minha mãe não do país. Lá meu pai comprou um pedaço de terra e nela foi
resistiu. Quando minha irmã dormia, eu fui até meus pais e o que construída nossa casa, exatamente como havia planejado com
vi tocou profundamente meu coração, vi meu pai com minha mãe nossa mãe, mas eu conseguia sentir sua tristeza por ela não estar
nos braços, ele chorava muito e dizia entre soluços o que seria de ali conosco.
sua vida sem ela. Senti o profundo amor que ele sentia por ela. Ele trabalhava muito, parecia que o trabalho amenizava a
Naquele momento sofri com meu pai aquela imensa perda, nossa falta que ela lhe fazia. Nossa casa era simples, não tinha o mesmo
vida não foi mais a mesma. conforto de nossa casa na Itália, mas tínhamos paz, não havia
Não podíamos enterrá-la como gostaríamos e recebemos a guerra, a vida recomeçava para nós, mas sem o carinho de nossa
ordem do comandante de jogá-la ao mar, pois falava muitos dias mãe. Eu procurava compensar a falta dela na maneira carinhosa
para chegar ao porto. Nossos amigos consolavam meu pai que como eu tratava Maria e meu pai. Nas minhas preces, eu
estava inconformado. Enquanto as mulheres preparavam o corpo lembrava das palavras de minha mãe que me dizia que em
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nenhum momento eu perdesse a fé, e eu sempre me reunia aos O tempo passou e me tornei um homem bom e justo,
outros da colônia para rezar e sempre levava comigo Maria. aprendi nas dificuldades da vida a encontrar força para continuar
Nosso pai não nos acompanhava. Acho que a morte de nossa mãe e isso me tornou um homem forte.Nossa família já havia
abalou um pouco sua fé. aumentado, tínhamos mais dois irmãos: Luiz e Lúcio. Eram
Muitas vezes eu o vi com o olhar perdido no horizonte. A gêmeos. Lembro a felicidade de nosso pai quando eles nasceram,
vida não era fácil sem nossa mãe. Em uma noite, sonhei com ela, e uma grande festa na colônia foi dada por meu pai. Éramos um
estava tão linda e me dizia que surgiria alguém para nos cuidar. povo unido, feliz e cheio de sonhos de uma vida melhor.
Foi quando conhecemos Laura, filha também de italianos recém- Trabalhávamos muito e produzíamos na colônia o vinho mais
chegados da Itália. Havia uma festa na colônia, era dia de São gostoso da região.
Miguel e se comemorava também a boa colheita de uva que nos Crescemos na terra que nos acolheu, mantendo nossas
rendia um bom vinho que vendíamos na cidade. tradições, nossa cultura. Minha irmã se tornou uma linda mulher,
Nessa festa, pela primeira vez após a morte de nossa mãe, lembrava muito nossa mãe, ela casou com um rapaz da colônia,
eu vi meu pai brincar e dançar junto aos outros e todos João, e com ele teve dois filhos: Vicente e Vitória. Quando nos
perceberam o interesse dele por Laura. reuníamos à mesa farta, eu sempre lembrava de nossa mãe, do
Com o tempo ele a pediu em casamento e ela aceitou. Sua quanto estaria feliz ao nosso lado.
família não se opôs, gostavam de meu pai e sabiam o quanto Sempre senti muito sua falta, sei que ela sabia disso em
precisávamos de uma mulher na casa e Laura passou a ser a mãe meus momentos de aflição ela sempre vinha em meus sonhos e
que nos faltava. Ela lembrava nossa mãe no jeito carinhoso e despertava em mim ânimo para continuar.
meigo como nos tratava, a felicidade retornou a nossa casa, o Meu interesse pelos estudos me tornou um bom
toque feminino que faltava. administrador, era eu quem sempre viajava e negociava os vinhos
Senti que poderia cuidar um pouco mais de mim, pois com que fabricávamos na vinícola da colônia, era dali a renda nossa e
a morte de minha mãe, me dediquei a cuidar de Maria como havia de muitas outras famílias.
prometido. Agradeci a Deus por ter enviado Laura a nossa vida. Conheci em minhas viagens várias mulheres, mas o fato
Meu pai estava feliz e minha irmã também. Podíamos ir para o de eu não poder ter filhos fazia com que eu me afastasse delas. Eu
trabalho tranquilos, pois Laura cuidava de Maria como se fosse sabia que a maioria das mulheres tinha o desejo de ter seus
sua própria filha, e era uma ótima cozinheira. Formávamos uma próprios filhos e isso eu não poderia lhes dar. Tive quando criança
família feliz, eu agradecia a Deus por isso e em minhas orações uma doença que me deixou estéril, mas minha mãe sempre me
também agradecia minha mãe que eu sentia nunca ter nos disse que eu poderia ter os filhos de coração. E eu entendi isso
abandonado, pois nos momentos difíceis ela sempre vinha em quando em uma de minhas viagens encontrei na rua um menino
meus sonhos e acendia em mim uma luz de esperança. franzino chamado Pedro, que dormia na calçada.
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Eu o observei, fui até ele com um copo de café e pão. Ele alegre e comunicativa, adorava fazer perguntas.Procuramos dar a
comeu o que lhe dei com muita vontade, percebi que estava eles estudo, e ensinei o trabalho na vinícola, onde aprenderam
faminto. Perguntei sobre seus pais e ele me disse que haviam tudo sobre vinho. Pedro sempre do meu lado, dizia que queria ser
como eu, era atencioso e gentil, eu sentia sua gratidão por eu o ter
morrido em um acidente, que a mulher que ficou com eles para
acolhido como filho e junto seus irmãos. Ele tinha também um
cuidar lhe batia muito e ele fugiu, preferiu morar na rua. carinho muito grande por Amélia que os tratava como uma
Quando eu ia embora ele gritou para mim: “Quer ser meu verdadeira mãe.
pai?”, aquela voz de criança me tocou o coração e me deixou Aos domingos, nos reuníamos com meu pai, e na mesa
emocionado, foi quando me lembrei das palavras de minha mãe, longa e farta a harmonia entre todos nos dava a certeza de que
os filhos de coração. tínhamos uma família feliz, mesmo sabendo que os meus filhos
Naquele mesmo dia procurei a justiça para ficar com o não eram legítimos, toda minha família os tratava como se fossem
e isso deixava a mim e Amélia feliz.
menino e também com seus irmãos. Consegui adotá-los. Vi o
Com o tempo e a ajuda de meu pai, consegui ter minha
brilho nos olhos de Pedro quando eu lhe disse que ficaria também própria vinícola e Pedro passou a ajudar na administração. Mateus
com seus irmãos. Pedro não se conteve de alegria. também tomou gosto pelo trabalho que fazíamos, estudou sobre
Os criei junto à minha família, seguindo a tradição de meu vinhos para que produzíssemos com grande qualidade nosso
povo. Eles tinham de mim o carinho de pai, mas eu sabia que isso próprio vinho. Com o tempo, ampliamos a vinícola, passamos a
não seria suficiente, que eles precisariam de uma mãe e foi em exportá-los para outros estados e também para fora do país.
uma de minhas viagens à cidade que encontrei Amélia, uma viúva Minha mulher, Amélia, tinha grande talento para costura e
incentivou Josefa a se dedicar a moda, e após alguns cursos sobre
solitária que tocou meu coração. Quando a olhei, senti que seria
moda, Josefa, com a ajuda de Amélia montaram um lindo atelier
ela a mãe de meus filhos. Sentimos no primeiro olhar que um de costura, onde eram procuradas por damas da alta sociedade
completaria o outro. Ela acolheu meus filhos com carinho de uma que se encantavam pelos vestidos e pelo bom gosto com que eram
verdadeira mãe, ela não havia tido filhos com o marido que confeccionados.
morreu muito jovem, eu lhe expliquei que também não poderia Em uma tarde, andei por nossas terras acompanhado meu
dar-lhe filhos e ela me disse sorrindo, já temos três. pai, já velhinho, e percebi que eu também já havia envelhecido.
Meus filhos cresceram e já não dependiam de mim, nossos
Minha família ficou muito feliz quando trouxe Amélia
negócios iam muito bem, meu pai me disse que estava feliz, meus
para morar em minha casa. Meu pai morava próximo a nós, as irmãos comandavam a vinícola que ele fundara na colônia, Maria
crianças o chamavam de avô, ele me dizia que eu precisava estava bem casada e morava próximo a nós e eu havia conseguido
encontrar uma boa companheira para me ajudar a criá-los e fundar minha própria vinícola.
quando lhes apresentei Amélia tiveram a certeza que ela era a Tudo parecia bem, mas eu sentia uma angústia em meu
pessoa certa. pai, e foi quando ele me falou que andava sonhando com minha
Criamos os três com muito amor, Pedro era dedicado e mãe, e que tudo parecia tão real, que ela esteve em sua frente e
muito inteligente, Mateus era meio tímido reservado, e Josefa era que ele pode sentir seu perfume e me disse que sentiu muita
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saudade e que nunca deixou de amá-la. Recordamos a vida na teriam partido assim como meus pais, preferi apenas guardar as
Itália e o quanto éramos felizes, nossa situação financeira era boa, lembrança na memória como uma parte importante de minha
mas as opiniões de meu pai sobre a política e a forma de governo, vida, sem esquecer que na nova terra que me acolheu eu também
acabaram o colocando em uma situação delicada. era feliz com tudo o que conquistei.
Com a guerra, os opositores foram perseguidos e ele temia E todas as manhãs, eu caminhava com minha querida
por nossa família, por isso precisávamos fugir para que ele não Amélia e não cansava de admirar tudo o que eu havia conquistado
fosse preso, ele me confessou que se pudesse voltar o tempo seria com ela ao meu lado, disse a ela o quanto ela me fazia feliz, e ela
apenas um italiano velho com sua amada Geovana. me respondeu que, quando perdeu o marido, pensou que jamais
Após um tempo, meu pai faleceu, e alguns dias depois eu encontraria alguém que pudesse ocupar o lugar dele, mas que ao
me sentia triste, acho que era saudade dele. Nessa mesma noite eu me conhecer percebeu que a vida continuava e lhe dava uma nova
sonhei com ele feliz junto a minha mãe e percebi que ele estava oportunidade de ser feliz, e ela era muito feliz comigo e nossos
bem. Fiquei pensando se um dia eu os encontraria quando eu filhos, e agradecia sempre a Deus por isso.
partisse. Lidar com a morte sempre mexeu muito comigo, quando Nossa casa era alegre, sempre tínhamos visitas e a família
perdi minha mãe, eu sofri tanto, mas eu pensava que aquela sempre se reunia aos domingos. Pedro já havia se casado com
imensa dor era por que eu era ainda uma criança, mas percebo que Olga e tinha uma linda filha. Mateus pensava também em se
a idade não importa, a mesma dor me tocou ao perder meu pai e casar, mas dizia não ter encontrado a pessoa certa, e Josefa
conclui que não dependente da idade, perder quem amamos conheceu um empresário francês e com ele se casou, tornando-se
sempre será uma dor profunda amenizada apenas pelo tempo, e uma dama da alta sociedade. Era proprietária de uma grande loja
que ficará sempre aquele vazio insubstituível deixado por quem na zona nobre da cidade, mas ela sempre nos visitava, parecia
partiu. também sentir falta daquele modo mais simples como fora
Guardo de meus pais as mais lindas lembranças, e mesmo criada,manteve humildade em seu coração e isso para mim era
em uma época difícil tive deles grandes ensinamentos, com minha uma grande virtude de Josefa.
mãe aprendi a acreditar no que a vida nos reserva surpresas e ter Pedro era sempre atencioso e carinhoso comigo e com
sempre fé, com meu pai, aprendi a ser um homem forte que não Amélia, fez questão de morar perto de nós e sempre que podia
se deixa abalar pelas dificuldades, mas encontra nelas força para estava em nossa casa com a mulher e nossa neta, a pequena
continuar e isso eu passei a meus filhos. Valentina, que tanto nos alegrava com seu jeito sorridente.
Muitas coisas haviam mudado na colônia, mas as tradições Amélia tinha verdadeira adoração por ela e estava muito feliz,
de nosso país permaneciam fortes. Era nossa cultura e pois Olga ia dar à luz a mais um filho e Pedro não se continha de
precisávamos passar aos nossos descendentes, e os mais velhos se alegria. Nascia o pequeno Inácio. Amélia cuidou de Olga e do
encarregavam de ensinar aos jovens tudo sobre a Itália, e mesmo menino até que ficassem fortes. Eu estava tão feliz por a família
que os meus filhos não fossem italianos respeitavam e admiravam linda que Pedro construiu, eu o observava com o filho no colo e
nossa cultura, nosso modo de viver. Eu sentia que meus filhos sentia seu amor no brilho dos seus olhos.
tinham vontade de conhecer a Itália, principalmente Pedro, eu Senti na chegada de meu neto uma nova fase na vida de
confesso que cheguei a pensar em retornar a Itália, mas pensei Pedro, mas algo também me fazia sentir que meu tempo com eles
que não encontraria todos os que lá ficaram com vida, muitos já não seria muito longo. Fiz questão de aproveitar cada momento.
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Passado um ano do nascimento de Inácio, nos reunimos para o


tradicional almoço em família e também porque era meu A FORÇA DO AMOR
aniversário. Eu fazia setenta e nove anos, estavam todos reunidos
eu agradeci a Deus pela linda família que eu havia construído, me Meu pai se chamava Antônio, era um homem influente na
sentia feliz, mas ao mesmo tempo senti um aperto no peito.
cidade onde morava. Seu sonho era ter um filho homem e na
Duas semanas depois após almoçar eu senti um cansaço
me deitei um pouco para descansar e quando me levantei senti última gravidez eu vim ao mundo.
vontade de caminhar por aquelas terras, e à tardinha eu resolvi Ele ficou vibrante de alegria. Minha mãe, Lúcia, já havia
andar um pouco. Fui exatamente ao local onde eu havia pisado lhe dado duas filhas e agora o tão esperado filho homem, mas
pela primeira vez, ao chegar lá tirei os sapatos, quis sentir nos pés essa alegria não durou muito tempo. Ele passou a perceber que
a maciez das folhas caídas ao chão. Nesse momento, me veio à havia algo errado e dizia para minha mãe: “Esse menino é
mente a cena de nossa chegada àquele lugar que nos acolhia, a
estranho, não age como as outras crianças” e aos poucos passou a
esperança nos olhos de meu pai e de todos os demais que ali
chegaram, era o recomeço uma nova vida, senti emoção e uma me rejeitar. Deu-se início as brigas, os gritos de meu pai e as
forte dor no peito. Caí sobre as folhas que acolheram meu corpo discussões com minha mãe, tudo aquilo me atordoava e me fazia
como um tapete, tudo silenciou após o som de uma música de sentir como um bicho acuado com medo de tudo em sua volta.
ninar que minha mãe costumava cantar para que eu dormisse, era Uma noite ele chegou bêbado em casa, me agarrou pelos
o momento do sono profundo. braços, me sacudiu e gritava: “Fale!Seja uma criança normal. Eu
não quero um filho que não seja normal”.Nesse momento, minha
mãe me pegou no colo. Eu tremia de pavor.Tinha quase quatro
Lúcio. anos de idade. Foi quando minha mãe conversou com meus avós,
e eles vendo o quanto seria difícil a vida na cidade com meus
pais, me assumiram como se eu fosse destinado a eles.
A vida no sitio era tranquila. Meus avós eram
maravilhosos. Não sei o que seria minha vida sem eles. Minha
avó era uma mulher espiritualizada e acreditava que tudo na vida
tinha um porquê, com ela aprendi a pronunciar as palavras e não
só me comunicar por gestos. Ela era uma professora aposentada e
tinha o que eu precisava: paciência. Com meu avô aprendi a
interagir com o mundo que me cercava.
Ali com eles eu não tinha apenas o carinho de avós. Eu
tinha alguém que me permitia ser apenas o que eu era: um menino
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diferente, que precisava apenas de amor. Aos poucos fui tornaram moças lindas. Em meu aniversário me levaram presentes
crescendo e aprendendo a lidar com minhas limitações. e muitas folhas e tintas, eu gostava de pintar, os desenhos me
Minha mãe sempre nos visitava com minhas irmãs, mas faziam expressar um pouco do mundo em que eu vivia.
meu pai nunca aparecia. Acho que foi um alívio para ele meus Em um passeio pelo sítio, meu avô me disse para mostrar
avós terem me levado, assim não se frustraria ao me olhar e a minhas irmãs o presente que ele havia me dado, era um lindo
perceber que eu não era o filho que desejou ter. Eu sentia em cavalo de pelo amarelado que batizamos com o nome de sol. Eu
minha mãe e minhas irmãs amor. Ficava tão feliz com a visita sentia uma energia tão boa vinda dele, ela me acalmava, essa
delas e, quando partiam, minha mãe levava com ela os olhos mesma energia eu encontrava nas árvores, nas flores.
cheio de lágrimas, porém ela sabia que ali seria o melhor lugar Fisicamente eu havia me tornado um homem, mas não
para mim. mudou quase nada em meu modo de ser, no fundo sabíamos que
O contato com a natureza e a calma do lugar me deixava seria assim até o fim de minha vida.
tranquilo. Eu podia caminhar pelo sítio acompanhado de meu cão, Minha avó se preocupava comigo, muitas vezes eu a
Bob, ele foi presente de minha mãe. No início eu sentia medo encontrei pensativa. Essa preocupação aumentou com o tempo e
dele, mas depois ele se tornou um companheiro que ia comigo por com a morte de meu avô. Quando ele morreu, eu o vi no caixão,
vários lugares, era um amigo fiel. Aprendi a interagir com ele e deslizei minhas mãos em seu rosto, eu queria que acordasse e
muito brinquei, rolando pela grama. Parecia que ele entendia meu fosse comigo tratar o meu cavalo sol como fazíamos todos os
mundo e dele sempre fez questão de fazer parte. dias. Minha avó vendo minha agitação me levou para fora do
Quando eu o perdi, muitas vezes o procurei nos lugares local onde velavam o corpo, e foi comigo tratar o cavalo e quando
por onde andávamos, mas não o encontrei. Tentaram me dar outro eu já estava mais calmo ela retornou, mas antes pediu ao
cão, mas eu rejeitei. Senti muitas vezes como se vivesse em um empregado do sitio Osvaldo que me fizesse companhia, ela não
mundo paralelo e confuso. A vida não é fácil para os autistas. É permitiu que eu assistisse o enterro acho que temia minha reação.
tão difícil ser incluído no mundo dos que se dizem normais. As Para ela foi muito difícil a perda de meu avô e ter de
pessoas olham e se afastam, parece que sentem medo de serem responder minhas perguntas também não era fácil, mas ela era tão
agredidos ou até mesmo de se contaminar por algo que ninguém calma e serena que, mesmo sofrendo, não deixava transparecer
conhece. Acabamos sendo excluídos da sociedade, mas como para mim seu sofrimento. Ela passou a ser o que eu tinha de mais
entender o porquê de sermos assim só o tempo nos dirá. precioso. Tínhamos uma ligação muito forte, eu podia sentir que
Aprendi que Deus não coloca nada em nosso caminho que duraria o tempo que restara a ela e foram mais dez anos. Lembro
não seja para o nosso bem e mesmo que o fardo pareça pesado dela tão frágil, seu rosto envelhecido, sua voz baixa, mas ainda se
sempre teremos força para carregá-lo, e tudo tem um por quê. mantinha lúcida e determinada.
As visitas de minha mãe e minhas irmãs prosseguiam, mas Minha mãe tentava levá-la para a cidade, mas ela se
meu pai eu não vi mais. O tempo passou, minhas irmãs se recusava a ir, sei que era por mim que ali permanecia.
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Quando ela ficou de cama, eu entrava no quarto várias Na queda, senti uma forte pancada na cabeça, meu corpo
vezes. Sentia uma inquietação, uma angústia, minha mãe tentava ficou no chão estendido enquanto o sangue escorria entre as
me acalmar, mas era mais forte que eu. Osvaldo foi chamado e pedras, mas ao mesmo tempo senti também uma leveza. Era como
conseguiu me levar para dar uma volta no jardim, ele sabia que o se continuasse minha viagem no lombo de meu cavalo sentindo
contato com a natureza e com meu cavalo me acalmava. Fomos uma brisa tocar meu rosto. O caminho percorrido tinha uma luz
até o jardim, eu tocava as flores sentindo o perfume e a energia azul que o iluminava, conforme eu o percorria, mais leve eu
de cada uma delas e ao andar em meu cavalo minhas angústias se sentia meu corpo e também um cheiro suave de flor. Fui tomado
aquietavam. por uma profunda paz que aumentou ao avistar minha querida avó
Naquela mesma semana, minha avó morreu. Não quiseram de mãos dadas com meu avô, eu voltei a ser feliz.
me levar até ela. Eu queria tanto vê-la pela última vez, mas Os autistas precisam apenas de amor, atenção e paciência,
Osvaldo foi incumbido de cuidar de mim. Ele apenas me disse: mesmo que não aparentamos normais, somos uma pequena parte
“Tua avó foi para um lugar lindo”, eu falava a ele que queria ir ao desse mundo que tanto nos ensina. Eles trazem consigo
seu encontro e ele me dizia que não era possível, que ele cuidaria ensinamento e não deve ser considerado castigo ter um filho
de mim. autista, mas sim através deles um meio de se atingir um
Tudo perdeu a graça sem minha avó. Eu não tinha mais o conhecimento que está bem além da percepção humana.
carinho daquelas mãos macias acariciando meu rosto, me restara Deus pode nos ensinar, mesmo que por linhas tortas, que o
apenas meu cavalo sol, mas eu só podia andar nele quando amor nos torna iguais, que ao percorrer o mesmo caminho não
Osvaldo me acompanhava. será as diferenças que impedirá a jornada, mas a ignorância
Eu expressava nos desenhos que fazia meus sentimentos. humana é que dificultará seu percurso.
As cores perderam o brilho, os desenhos não expressavam mais É possível voar como pássaro, como uma borboleta, ou
alegria, eu me sentia como uma borboleta que retornava para o uma simples libélula por que somos parte da criação divina do
casulo. universo que se transforma e transforma os seres, permitindo que
Em uma tarde, me sentia estranho, senti vontade de sair mantenham guardada sua verdadeira essência. A condição em que
livre pelo campo e assim eu fiz. Saí sem que Osvaldo cada ser vem à terra são apenas formas de se evoluir ou ensinar os
percebesse,peguei meu cavalo e fui campo a fora sem que me que precisam encontrar o caminho para o crescimento e evolução.
vissem. Eu podia sentir o vento em meu rosto enquanto meus Vicente
olhos percorriam aquele lindo lugar, como um pássaro a voar de
um lado para o outro sem conseguir pousar em nem um lugar. Por
horas fiquei dando voltas pelo sítio até o momento em que o
cavalo se assustou me derrubando ao chão.
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poderia dar lhe, mas por insistência de Cecília, acabei aceitando e


O RESGATE também fui convidado a trabalhar com meu sogro Joaquim, ele
tinha uma rede de confeitarias e o negócio crescera muito. Ele
Éramos em três irmãos, filhos de poloneses: Vinicius, precisava de alguém de confiança para ajudar na administração,
Carlos e Maisa. Aprendemos desde criança a amar a vida e amar eu como advogado poderia fazer isso.
o próximo. Joaquim também tinha outras duas filhas já casadas e cada
Havia uma grande união de todos em nossa casa.Tudo era uma delas cuidava de uma confeitaria próximas de onde
feito em comum acordo entre meu pai e nossa mãe, sempre moravam.
visando o que seria melhor para todos nós. Nosso pai Petrosk nos Cecília preferiu dedicar se aos estudos se formou
ensinou que uma família feliz só teria essa felicidade se soubesse professora e adorava escrever romances. Com ela fui feliz;
caminhar juntos, um protegendo o outro e tendo como base a tivemos três filhos, o pequeno Joaquim, nome dado por Cecília
união, o amor e a fé. para homenagear seu pai que ficou todo feliz com a chegada do
Todos os domingos íamos a missa. Nossa mãe Ewa nos neto e a homenagem. Minha sogra Laura me disse que Joaquim
arrumava e íamos todos juntos a igreja orar. Esse momento era estava radiante, pois todas as vezes que uma de suas filhas
sagrado para todos nós. engravidava ele ficava na expectativa se seria um menino, pois só
Crescemos, cada um seguiu seu caminho e ficou em nós tivemos filhas e netas.
os ensinamentos de nossos pais que partiram e deixaram muita Tivemos além de Joaquim mais dois meninos: Cícero e
saudade. Manuel.
Sempre orávamos por eles conforme nos fora ensinado Fui ensinando os meninos como me fora ensinado por meu
quando criança, que era a maneira de manter vivos em nossos pai, eu queria que se tornassem homens de bem, mas existia certa
corações os que amávamos e que já partiram. rebeldia principalmente nos mais moços que eu não conseguia
Carlos construiu sua família e Maisa também. Eu mesmo quase controlar e muitas vezes tive de ser enérgico,
sendo o mais velho fui o último a me casar. Com a morte de meus principalmente quando brigavam. Eu sentia uma raiva quase que
pais senti que precisava ter minha própria família. incontrolável neles e muitas vezes tive de interferir para que não
Fui convidado por minha irmã para ir a uma festa na se machucassem. Eu não encontrava neles aquela tranquilidade
cidade e foi lá que conheci Cecília. Trocamos olhares, a tirei para que havia entre meus irmãos e eu.
dançar e demos início a um namoro. Eu sempre me dei bem com Cecília, mas algumas vezes
Passado um tempo fui falar com os seus pais. Namoramos, acabávamos discutindo pelo modo como ela educava os meninos
noivamos e finalmente nos casamos. Seu pai um empresário Eu sentia que precisava ser enérgico algumas vezes e Cecília não
português, fez questão de nos dar uma casa para morarmos.Senti- agia como eu. Ela acabava não dando limites aos meninos. Isso
me meio constrangido, pois a casa não era simples como a que eu com o tempo fora agravando e acabávamos discutindo por
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divergências, não tínhamos aquela cumplicidade que deveria ter Naquele dia eu parti daquela casa e segui minha vida, me
em um casal e isso me deixava infeliz. dediquei a confeitaria que estava em meu nome.
Com a morte de meu sogro os bens foram divididos entre Meus outros dois filhos nunca souberam do motivo de
as filhas e eu passei a administrar o que ficara para Cecília. nossa separação, e se revoltaram comigo. Acabamos nos
Tentei despertar o interesse de nossos filhos pelos distanciando mais ainda; eu nunca concordei com a forma sem
negócios da família, mas apenas o mais velho Joaquim seguiu limites como eram criados por Cecília.O único que seguiu meus
trabalhando comigo. Cícero e Manuel não demonstravam nenhum ensinamentos fora Joaquim que era trabalhador e responsável.
interesse, apenas queriam curtir a vida como diziam. Cícero era irresponsável e Manuel seguia o mesmo caminho.
Esse era um dos motivos de minhas brigas com Cecília. Com a separação tudo parecia piorar. Eu mesmo longe,
Ela dizia que eram jovens tinham de aproveitar a vida e eu achava sempre procurei saber como estavam através das visitas de
que deveriam também ser responsabilidades assim como o irmão Joaquim. Ele também demonstrava preocupação pelos irmãos, e
mais velho. me dizia estar cansado de ter de cuidar de tudo sozinho. Ele
Com o passar dos anos fui percebendo que o amor que eu entendia todo o temor que eu sentia em relação ao modo como os
senti por Cecília se acabara a cada dia, restando apenas o respeito irmãos conduziam suas vidas; que eu tinha medo que se
que eu mantinha por ela, mas que ela não teve por mim, pois um perdessem nas más companhias. Acho que Joaquim era o único
dia eu a encontrei nos braços de outro homem. filho que saiu parecido comigo não só no físico, mas também em
Senti uma profunda dor e muita raiva. Entendi naquele sua forma de ser. Ele tinha caráter e um bom coração, mesmo
momento o porquê de sua rejeição cada vez que eu a procurava sabendo dos erros da mãe não conseguiu abandoná-la. Eu senti
para fazermos amor. Tive vontade de matá-los, mas me contive. que com minha saída ele se tornara o alicerce daquela família e
Foi como se algo me controlasse, senti as mãos de meu pai me acabou percebendo que todas as brigas que eu tive com sua mãe.
contendo, sai dali desorientado caminhei e refleti muito e nesse Eu sempre tive razão, eu só queria que os irmãos se tornassem
momento procurei meu filho Joaquim e lhe contei o que ouve e homens responsáveis assim como ele se tornou. Um tempo depois
que eu partiria daquela casa e assim eu fiz. Joaquim era o único isso também fora percebido por Cecília.
de meus filhos que eu sentia amizade e respeito e eu me Mesmo com o que ela me fez eu não consegui sentir ódio
perguntava onde eu havia falhado com os outros dois. dela. A raiva que existiu no momento de sua traição deu lugar a
Quando Cecília chegou a casa eu a esperava com as malas um sentimento chamado compaixão. Senti que tanto ela quanto
prontas e Joaquim estava comigo, tivemos uma séria conversa, Cícero e Manuel não se encontravam em nada, faltava algo
onde fora resolvido que a confeitaria que tínhamos em outra interiormente, eu tentei moldar nossos filhos os fazendo ver a
cidade e que fora comprada por mim ficaria comigo e isso fora vida de outra forma, com mais maturidade, mas percebi que só o
colocado no papel, e Joaquim passaria administrar os bens da tempo poderia fazer isso.
família.
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Um dia Joaquim me procurou e disse que gostaria de Cícero gostava de bebida e muitas vezes chegou
casar; que conhecera uma jovem chamada Clara, e que estava embriagado em casa Isso sempre me preocupou e sua mãe sempre
encantado por ela. Com o passar do tempo se casaram eu fui ao o defendia dizendo que aquilo não ia mais acontecer, mas com o
casamento. Estava tudo perfeito, eu sentia a felicidade estampada tempo as bebedeiras aumentaram.
no rosto dos dois, ela era de uma boa família me identifiquei com Em uma festa ele fez todos passarem vergonha, pois a
eles, me lembrei de meus irmãos, de como fomos criados tive bebida o deixava fora de si, e nessa festa eu estava presente. Era o
certeza que seriam felizes. Na festa, meus outros filhos mal batizado de meu neto Pedro, filho de Joaquim, e Cícero chegou
chegaram perto de mim, parecia que minha presença os alterado demonstrando sinal de embriaguez. Ao me ver me
incomodava. Cecília me cumprimentou de maneira fria e meio encheu de insultos e fora contido pelos irmãos. Essa cena se
surpresa por ver o quanto eu estava bem e feliz. tornara comum para os que o conheciam. Nesse dia me senti mais
Após o casamento de meu filho segui meu caminho e próximo de Manuel, percebi que já estava mais ajuizado, parecia
deixei para os noivos um presente: uma viagem para Portugal. Era mais maduro acho que Joaquim fora um pouco responsável por
o sonho de Joaquim conhecer o país de seu avô. Vi que ele ficou isso eu senti orgulho por saber que ele ajudava o irmão a
emocionado, me abraçou e escutei dele o que sempre esperei administrar os negócios da família e que já não participava das
escutar de meus outros filhos, pai eu te amo. noitadas com o irmão como fazia antes.
Quando Joaquim retornou de viagem me procurou junto com sua O tempo passou e conheci Cristina, uma viúva e com ela
esposa. Contava de tudo o que conheceram, os lugares que o avô vivi e conheci uma família adorável que me acolheu como se a ela
lhe falava e me disse que quando tivesse condições queria eu pertencesse a muito tempo, ali eu encontrei novamente a
também conhecer a Polônia, isso me alegrou muito senti a felicidade.
importância que ele dava a suas origens. Quando levei Cristina para conhecer minha irmã ela
Um dia fiquei sabendo que Joaquim fizera uma reunião percebeu o quanto eu estava feliz com a nova companheira, o
com os irmãos e a mãe. Ele queria que os irmãos participassem quanto Cristina me fizera bem com o seu jeito simples e doce; era
mais dos negócios da família, que ele precisava que o ajudassem a mulher perfeita para mim.
pois, não estava dando conta de cuidar de tudo sozinho e que Tudo parecia perfeito quando me veio a notícia de que
também não achava justo já que ágora tinha uma família, tinha de Cícero sofrera um acidente e que não resistiu. Fui imediatamente
ter mais tempo para se dedicar a sua esposa que estava grávida. para o hospital e quando cheguei encontrei Joaquim, Manuel e
Manuel concordou com Joaquim, mas Cícero estava irredutível Cecília arrasados. Sofri junto com eles, mas no fundo eu sempre
não demonstrava nem um interesse e ainda lhe falou que eu o senti que o fim de Cícero seria trágico devido a vida que estava
influenciava, e acabaram discutindo e Cecília fora atrás dele. Ela levando.
o protegia e sempre o tratou de modo diferente de Joaquim e Passado uns dias de sua morte falei com Manuel e ele me
Manuel. disse o quanto a mãe estava abalada e me pediu que eu a
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procurasse e conversasse com ela. Algo me dizia que fosse até ela Deixei que o destino se encarregasse e Manuel a cada dia
e quando lá cheguei, ela realmente estava muito abatida, parecia estava mais encantado por Katarina e ela por ele. Então tive uma
não dormir a dias. Quando me viu, me disse:“sei que eu errei na séria conversa com ele e foi quando me falou de suas intenções
forma como o criei, não escutei você, eu sempre achei que ele que amava Katarina e que queria construir com ela uma família.
mudaria agora é tarde”.Senti que ela se culpava e sofria muito. Então eu disse a ele que procurasse o irmão mais velho reunisse a
Conversamos, ela prosseguiu falando:“não errei só com nosso família e falasse de suas intenções, tudo como deveria ser feito e
filho, mas também com você”. Hoje percebo o quanto você é assim ele o fez. Vi em sua atitude que ele se tornara um homem
melhor do que eu, tudo o que te fiz e aqui está como um amigo responsável.
me escutando sem cobranças, não sinto ódio em teu coração. Com o passar do tempo casara-se. No dia do casamento eu
Senti que ela teria mais a me falar, mas fomos interrompidos por observava Cecília, desde a morte de Cícero parecia que parte dela
a visita de sua irmã e acabei indo embora. morrera com ele. Sentia a profunda tristeza que ela carregava
Quando retornei à casa de minha mulher Cristina, me senti consigo por nosso filho não estar ali naquele momento tão
leve, pois a vida com ela era harmoniosa e feliz ela tinha também especial para todos nós.
três filhos: Osvaldo, Joel e Katarina. Ela os criou sozinha após a Dei a Manuel também uma viagem, e para minha surpresa
morte do marido e só agora refez sua vida. Eu nunca quis ocupar ele quis conhecer a Polônia. Quando retornaram Manuel quis
o lugar do pai deles, mas a forma carinhosa como me tratavam me morar perto da mãe, pois se preocupava muito com ela.
fazia sentir como se fossem também meus filhos Acho que Seguimos nossas vidas os negócios cresciam muito eu já
percebiam o quanto eu fazia a mãe deles feliz, fomos criando um havia aberto mais duas confeitarias. Os filhos de minha mulher
laço de amizade e respeito neles eu sentia a união e o amor de que Cristina trabalhavam nelas, eram honestos e responsáveis eu os
meu pai sempre nos falava que essas eram a base para uma admirava por serem assim, mesmo sozinha Cristina soube criá-los
família feliz. muito bem.
Eu nunca guardei segredos de Cristina. Ela sabia o porquê Passado um tempo, Manuel adoece e precisa fazer uma
de minha separação, confiava em mim, não se sentia incomodada cirurgia urgente, mas houve algumas complicações e deveria ser
com minhas visitas aos filhos, mesmo sabendo que eu acabaria feito uma transfusão de sangue. Eu como pai me prontifiquei a
encontrando Cecília, e fazia questão que eles nos visitassem em doar, mas para o meu espanto o sangue não era compatível e a
nossa casa. Foi em uma dessas visitas que Manuel conheceu conversa que tive com o médico confirmava que Manuel não
Katarina e se encantou por ela. Eu senti seu interesse, se fosse poderia ser meu filho legitimo, e isso eu quis confirmar e tive a
algum tempo atrás eu seria contra, mas o tempo me mostrou que certeza que realmente ele não era meu filho.
nem tudo é perdido, que pessoas podem mudar eu tinha aminha Fiquei em silêncio naquele momento, mas passado um
frente um homem responsável que pensava em construir uma tempo quando tudo já estava bem e Manuel não corria mais risco
família. de vida, procurei Cecília e tive com ela uma conversa e quando
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lhe falei da doação de sangue e da conversa que tive com o minha nova família. Cecília saiu do país por um tempo após a
médico, ela não negou e me disse:“Sei que não merecia o que te morte de sua mãe, e soubemos por Joaquim que fora do país ela
fiz talvez nunca me perdoe, mas te peço que não diga nada a encontrou um novo amor e tentava ser feliz.
Manuel ele não me perdoaria, ele te ama”. Ela passou a me contar Li seu último livro “Desencontro”, e percebi que era nossa
que o pai de Manuel era um turco chamado Nagib que ela o história. Ao ler pude entender um pouco o coração de Cecília e o
conhecera a muitos anos atrás, que eles se apaixonaram, mas que esforço que ela fez para esquecer seu Nagib. Sei que ele nunca
as famílias eram contra e fizeram de tudo para separá-los e que ficou sabendo do filho e o titulo de pai permaneceu comigo. Eu
Nagib fora pressionado pela falia a retornar a Turquia, que nunca consegui sentir ódio de Cecília. Acho que eu também
acontecera um pouco antes de me conhecer, mas que passado desejava que ela fosse feliz assim como eu estava sendo em meu
alguns anos ela o reencontrou e mantiveram um relacionamento novo casamento.
escondido, pois ambos estavam casados e mesmo sabendo que Percebi que o livro fora a maneira que ela encontrou de
isso era contra tudo o que lhe fora ensinado por seus pais, ela não abrir seu coração e falar tudo o que sentia, mesmo usando outros
conseguiu resistir ao reencontro e manteve com ele um nomes sabíamos que era de nós que ela se referia, abrindo seu
relacionamento, mas que passado um tempo Nagib retornou a seu coração contando sua história, seus erros seu amadurecimento
pais e ela não o viu mais. através da morte do filho e o quanto ela errou na maneira de criá-
Eu a escutei sentindo uma mistura de raiva e piedade, los. Senti também que o livro era um alerta para que as mães não
mesmo com tudo o que ela me confessara eu não conseguia sentir repetissem o seu erro no modo de criar seus filhos e que ela
ódio dela. Também nunca tive coragem de dizer a Manuel que eu aprendera com todo o sofrimento da perda que amar também é
não era seu pai e me perguntava se Cícero também não era meu dizer não.
filho.Eu os sentia tão diferentes de mim a não ser Joaquim que Após ler o livro entendi um pouco mais Cecília e suas
herdara os olhos claros de minha família e mantinha traços meus lutas interiores após a morte de nosso filho.
em seu rosto e também no modo de ser. Em uma visita a casa de Joaquim eu a encontrei. Minha
Eu amava tanto meus filhos que mesmo sabendo que mulher Cristina estava comigo conversamos, lhe demos os
Manuel não era meu filho, o amor que eu sentia por ele parabéns pelo sucesso de seu livro e conhecemos o homem com
permaneceu igual. Em nenhum momento eu o tratei diferente. quem ela refez sua vida; parecia feliz. Eu percebi naquele
Senti vontade de conversar com alguém. Eu me sentia momento uma nova fase de nossas vidas. Vi a minha frente uma
sufocado com tudo o que escutei, e foi minha querida Cristina nova Cecília, mais madura e segura de si, acho que o tempo se
quem escutou minhas confidencias como uma verdadeira amiga e encarregou de transformá-la.
companheira adorável. Meu relacionamento com meu filho Manuel fora
Cecília se tornara uma escritora famosa. A maioria dos melhorando com o tempo, percebi o quanto a jovem Katarina lhe
livros eram romances. Seguimos nossas vidas, eu estava feliz com fizera bem. O casamento o tornou mais responsável
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principalmente com a chegada de seu primeiro filho, Artur. Fiquei morte me deixou uma dor tão profunda que desperta com as
emocionado quando Manuel me procurou e disse: “Pai, quero que lembranças como uma ferida que ainda sangra e não cicatriza,
me acompanhe e esteja ao meu lado quando meu filho mas o tempo nos ensina a conviver com a dor da perda.
nascer”.Senti o quanto aquele momento era especial para ele e Minha mulher Cristina acreditava na reencarnação, eu
fora um momento de grande aproximação para nós, percebi amor católico acreditava que a morte era o fim. Tínhamos maneiras
em seu gesto. Ele estava inquieto e ansioso até que lhe chamaram diferentes de ver as coisas, mas respeitávamos um a crença do
para ver o filho, me lembro de seu sorriso emocionado. outro, ela tentava me dar explicações sobre meus sonhos, eu a
Após conhecer meu neto fui a igreja orar e em minhas escutava, mas nem tudo me convencia, me sentia mais
orações lembrei de Cícero, de como ficamos felizes quando ele confortável indo as missas como sempre fiz desde criança levado
nasceu, pensei que poderia estar ali dividindo aquela alegria com por meus pais.
o irmão, pedi que Deus o amparasse. Mas Cristina insistia que os sonhos que eu estava tendo
Ao chegar a casa comentei com Cristina da alegria inúmeras vezes com Cícero poderia ter uma explicação. Eu
daquele momento e o quanto era lindo o nosso neto, e que quando comecei a prestar atenção nos sonhos e em um deles eu vi uma
fui a igreja orar me lembrei de Cícero.Conversamos um pouco e jovem e uma criança, ela chorava com o filho nos braços e esse
eu a levei ao hospital, pois ela passaria a noite com sua filha sonho se repetiu por várias noites, até que em uma delas Cícero
katarina. me mostrava uma rua, uma casa, e o número 420. Quando acordei
Naquela noite eu sonhei com Cícero, me acordei apontei o número e a rua eu conhecia era a rua das flores.
angustiado, no sonho ele não parecia bem, havia sofrimento em Comentei com Cristina e ela me disse: “Vamos até lá e
sua expressão. saberemos quem mora nesse lugar e o porquê de teus sonhos”.
Quando Cristina retornou falei com ela do sonho e ela me Segui com minha mulher a procura do endereço. Ao chegar lá
convidou para orarmos juntos por ele. Cristina era uma mulher encontramos uma casa bem simples, bati a porta e uma senhora
espiritualizada, acreditava que os sonhos eram meios de nos atendeu e nos convidou a entrar nos disse seu nome Lucia.
comunicação dos que já partiram. Após um tempo, surge na sala uma jovem e uma linda menina. Eu
Desde que Cícero se foi sinto um aperto no peito e muitas fiquei arrepiado e disse a Cristina e a jovem do meu sonho,
vezes me acordava escutando o seu pedido de ajuda.Eu entendia quando eu olhei no rosto da menina parecia que eu enxergava
que a única maneira de ajudá-lo era rezando por ele e isso eu Cícero quando criança. Conversamos, ela me disse que chamava
sempre fiz desde que nos deixou. Antônia e sua filha se chamava Cecília.
Apenas lamentava não ter lhe dito o quanto eu o amava, Eu lhes contei do porquê de estar ali, lhes falei do sonho
pois ele sempre se manteve tão distante e rebelde Talvez pensasse que tive e nessa conversa descobrimos que Cícero tinha um
que por minhas atitudes eu não o amava, mas era o contrário, era relacionamento com aquela jovem e que quando ele morreu ela
por amor, eu sempre quis o melhor para ele e seus irmãos. Sua estava grávida da menina, que ficou abalada quando soube da
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morte de Cícero, mas que não quis procurar a família pois minha neta o que pude para que ela fosse feliz e fosse inserida em
imaginava que pensassem que ela estava se aproveitando daquele nossa família.
momento, e que o nome Cecília fora escolhido por ele caso fosse A partir de tudo o que aconteceu passei a ver o lado
uma menina ele queria botar o nome da mãe. espiritual com admiração e a certeza de que a vida nos surpreende
Vimos que elas passavam por um momento difícil, pois a cada momento; que tudo nos vem como aprendizado. Minha fé
nos contaram que a pouco tempo Lucia perdera o marido e era ele continuava imensa, mas algo mudara dentro de mim. Acho que
quem sustentava elas; que com a doença dele tiveram muitos era forma de ver a vida e a morte.
gastos e passavam por dificuldades. Antônia trabalhava, mas o Antônia passou a trabalhar conosco na confeitaria e sua
pouco que ganhava mal dava para se sustentarem. Eu agarrei a mãe lhe ajudava a cuidar da pequena Cecília já com cinco anos.
menina no colo, me emocionei minha neta, era meiga e Eu a observava e conforme crescia me lembrava mais seu pai na
sorridente, eu senti em meu coração que precisava ajudá-las e me aparência, mas na forma de ser Cecília era tranquila e conquistou
propus a fazê-lo. Minha mulher me deu todo o apoio, eu me a todos com seu jeito meigo e carinhoso.
apresentei como o pai de Cícero. Foi um momento revelador e Com o tempo Antônia refez sua vida, eu apenas pedi que
emocionante para todos nós. nos mantivessem pertos de Cecília, e assim foi feito vi minha neta
A partir daquele dia, não deixei faltar nada a elas. Eu quis crescer assim como meus outros netos.
manter o contato com minha neta, que com o tempo passou a me Quando conseguíamos reunir todos era uma grande alegria
chamar de avô. para mim e Cristina, porque sabíamos que conseguíamos manter a
Minha mulher organizou um almoço em nossa casa, onde família unida e feliz e isso para nós era o mais importante, vê-los
eu fiz questão que meus filhos estivessem e lhes apresentei a interagindo uns com os outros e percebíamos que para eles aquele
jovem Antônia e sua filha Cecília. Quando lhes falei que a menina também era um momento especial, pois tantos os meus filhos
era filha de Cícero, eles ficaram surpresos com a novidade. quanto os de Cristina tinham um bom relacionamento e sempre
Cecília quando soube da neta quis logo retornar ao país que um precisava o outro estavam dispostos a ajudar.
para conhecê-la, e quando a conheceu ficou muito emocionada, Nesse dia Cristina pela primeira vez me falou do sonho de
pois ela lembrava muito nosso filho quando criança. seu filho mais moço Joel, de se tornar medico, mas que devido as
Percebemos que a vida nos dava um presente, aquela dificuldades para criá-los nunca pode custear os estudos do filho.
menina era parte de Cícero que nos faltava, ela nos encheu de luz Pedi a ela que mandasse Joel conversar comigo, eu senti que
e alegria. poderia e deveria ajudá-lo.
Eu as levei onde Cícero fora enterrado e senti naquele Lembro que quando tudo estava calmo, as crianças
momento, como se ele nos observasse, senti um alivio em meu brincavam no jardim e as mulheres preparavam o chá da tarde, ele
coração, uma sensação de paz. A partir daquele dia eu não tive chegou meio tímido para conversarmos, eu lhe disse que gostaria
mais os sonhos angustiantes com meu filho e passei a fazer por que retornasse aos estudos que sabia de seu sonho de se tornar
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um médico, que eu gostaria muito de ajudá-lo, que os negócios curso de administração, e assim ele o fez.Katarina estava muito
iam bem e poderíamos pagar o seu curso de medicina. Ele ficou feliz casada com o meu filho Manuel e aguardavam o segundo
emocionado me deu um abraço e procurou dar início ao seu curso. filho. Joaquim também estava feliz com sua mulher e seus três
Osvaldo me ajudava na confeitaria, ele sabia o quanto era filhos, pois a última gravidez eram gêmeos, Marcus e Mateus.
importante para o irmão realizar aquele sonho que ele carregava Eu sempre tinha a visita de minha neta Cecília, ela era tão
desde criança, mas que as dificuldades faziam parecer impossível, carinhosa parecia que queria me compensar, pela distância que
porém sua mãe sempre lhe dizia que confiasse em Deus e o que sempre existiu entre seu pai e eu. Eu tinha por ela um amor muito
tivesse de ser aconteceria, que cada um tem um destino e uma grande, e percebia que minha neta já se tornara uma bela moça.
missão e se a dele fosse ajudar os enfermos os caminhos se Planejávamos uma linda festa para comemorar os seus quinze
abririam. anos.
Joel se dedicou aos estudos e me surpreendia a cada dia O tempo passou e Joel conclui seu curso de medicina.
com sua inteligência, dedicação e o amor que demonstrava ter por Reunimos a família e na formatura podíamos sentir a alegria de
aquela profissão. E isso me deixava orgulhoso e certo de que eu Joel e também de Cristina por ele ter realizado seu sonho. Fiquei
fizera o melhor por aquele jovem e por todos nós, pois eu tinha a muito emocionado quando Joel em um pequeno discurso disse
certeza que ele seria um grande medico eu podia sentir sua que oferecia aquele diploma a mim seu pai de coração, e sua mãe
bondade a vontade que ele sentir de fazer algo pelo próximo. que acreditaram nele e o ajudaram a realizar seu sonho.Joel
Eu sentia os filhos de Cristina como se fossem também passou a trabalhar em um hospital próximo de nossa casa, era um
meus filhos. Aos finais de semana sempre vinham para o médico dedicado e atencioso e isso sempre nos orgulhou muito.
tradicional almoço aos domingos e todos reunidos nos deixava Um dia conversando com Cristina eu lhe disse que
muito feliz. Meus filhos também sempre participavam, e também precisaríamos organizar a festa de quinze anos de Cecília e
Cecília minha neta querida, para nós era o almoço perfeito. Cristina, foi maravilhosa já estava com tudo encaminhado, e com
Nossa casa era bem ampla, sempre gostei de espaço e muita gente a ajuda de Katarina já planejavam a festa, tudo como Cecília
em minha volta. Acho que não conseguiria morar só, sempre sonhara.
gostei de interagir com as pessoas. Quando conheci Cristina eu No dia da festa estávamos todos reunidos, minha neta
senti que ela preencheria minha vida, o espaço vazio de minha parecia uma princesa, quando olhei para a sua avó Cecília,
casa com os seus filhos e agora também com nossos netos. percebi que ela pensava em Cícero assim como eu estava
Alegrávamos ver as crianças correrem por aquele vasto jardim pensando, mas sabíamos que a passagem de Cícero pela terra não
enquanto os observávamos. fora em vão, nos deixou parte sua, nossa querida neta.
Os negócios cresciam a cada dia e podíamos dizer que Procurei fazer tudo o que fora possível para manter minha
tínhamos uma vida confortável. Osvaldo tinha jeito com o mundo família unida e feliz, acho que consegui.
dos negócios e percebendo isso eu insisti para que ele fizesse um
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Aprendi com os desencontros que o amor sempre vence os da chuva caindo, o cheiro da terra molhada, eu sentia que tudo
obstáculos, e com Cristina aprendi a aceitar a espiritualidade, aquilo era tão perfeito pena que a maioria das pessoas não
mesmo sendo católico algo havia despertado em mim e isso me encontravam tempo para observar toda a beleza que nos cerca.
fazia crer que uma energia nos regia e que a morte não era o fim. Ao ficarmos velhos, percebemos que perdemos grande
Passado um tempo fui visitar minha irmã, conversamos parte de nosso tempo preocupados com as coisas materiais e
muito, recordamos coisas de nossa infância, lembrávamos de esquecemos que coisas simples também são importantes e nos
nossos pais e percebemos que o tempo havia passado tão rápido, fazem feliz.
mas que nos deixara boas recordações e sempre nos mantivemos Eu sentia que minha missão estava no fim e que Cristina
unidos, só lamentávamos Francisco já não estar entre nós, pois ele também sentia isso, pois a algum tempo eu percebia que ela me
morreu em um acidente fora do país, deixou a mulher e dois preparava para enfrentar a morte quando fosse o momento e não
filhos que a muito tempo não víamos, pois com a morte de nosso sentir medo.
irmão eles raramente nos procuravam. Com o tempo meu coração passou a dar sinais de que
Após visitar minha irmã, passei na casa de meu filho estava fraco e isso se refletia em meu corpo, o cansaço já não me
Joaquim brinquei com meus netos e fui ao encontro de Cristina permitia fazer o que antes eu fazia até as caminhadas me
que me aguardava em nossa casa, ela estava indisposta e não pode cansavam. Joel me pediu que ficasse uns dias internado eu o
me acompanhar. atendi, percebi que estava preocupado comigo, eu sentia também
Quando cheguei em casa fui logo ao seu encontro, ela a preocupação de Cristina e de meus filhos.
estava na cama descansando, já havia sido medicada por Joel e Quando fiquei a sós com Cristina lhe falei que vivi com
Katarina cuidava dela com muito carinho, foi quando eu percebi ela os melhores anos de minha vida, ela agarrou minha mão e
que não conseguiria viver sem ela ao meu lado.Passei a pedir a com lágrimas nos olhos me disse que sempre soube e que eu
Deus em minhas orações que me levasse antes de Cristina. também a fazia muito feliz.
Quando conversei com ela sobre isso ela me disse:“Nunca estará Quando me senti melhor pedi para ir para casa e Joel
só mesmo que eu parta antes eu estarei sempre por perto cuidando concordou, desde que ele fosse me visitar todos os dias e eu
de você”. seguisse suas orientações.
Quando Cristina já estava bem eu passei a sentir muita Fui para casa. Eu queria estar em meu lar; sentia que me
vontade de desfrutar a vida e tudo que ela oferecia com ela ao faltava pouco tempo e queria aproveitar cada momento junto à
meu lado.Era como se algo dentro de mim me dissesse: família que eu tanto amava. Fiquei tão feliz ao chegar em casa.
“Aproveite que seu tempo já está perto do fim”, passei a observar Todos me aguardavam eu os olhei e percebi que deixaria uma
coisas simples que antes passavam despercebidas como aguardar linda família unida e feliz.
o nascer do sol, caminhar no parque, observar as flores, a dança Foi um lindo almoço em família, nesse dia eu lhes disse
das borboletas sobre elas, escutar o canto dos pássaros, o barulho que sentia tanto orgulho da família que eu havia construído que
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permanecessem sempre assim unidos e isso me deixava muito fome, todas as angustias possíveis. Ali fique por algum tempo e
feliz. sempre procurava por Cícero, mas não o encontrei.
Passado alguns dias eu me sentia fraco, almocei e disse a Já me sentia tão cansado, mas busquei forças dentro de
Cristina que descansaria um pouco. Fui para o quarto e passado mim para rezar e humildemente me ajoelhei e pedi a Deus que
um tempo, Cristina entra no quarto agarra minha mão, acho que amparasse meu filho, que eu não me importava de ficar ali se
ela sentiu que aquele dia seria nossa despedida. Ela olhou nos assim tivesse de ser, mas que levassem Cícero para um lugar
meus olhos e ali permaneceu ao meu lado. Senti tanto amor em melhor e nesse momento se aproximou de mim um homem
seu gesto, em seus olhos eu via o brilho da lágrima contida. Era a envolto em luz azul, este me disse:“Levanta te e venha comigo”,
nossa despedida. Em minha frente vi um grande túnel de luz e eu lhe disse: “É meu filho eu preciso ajudá-lo”, ele me respondeu
esse me convidava a seguir, era uma luz muito clara conforme eu que no momento certo eu iria ajudá-lo. Segui aquele homem
a percorria sentia mais leveza em meu corpo, já não tinha aquele conforme caminhávamos escutávamos gritos, gemidos, pedidos
cansaço, me sentia muito leve parecia flutuar. de ajuda.
Quando Joel chegou Cristina ainda permanecia ao meu Quando saímos, o lugar para onde fomos era tão lindo,
lado, chorando disse ao filho que eu havia partido. seguimos por um lindo jardim tudo era tão perfeito e belo,
Eu percorri aquele túnel e no final percebi que estava borboletas de várias cores voavam sobre as flores que exalavam
sendo aguardado por meus pais eu os abracei e matei toda aquela um perfume agradável, senti uma profunda paz. Fui conduzido a
saudade que guardava comigo, e entendi o que Cristina me disse um quarto onde, foi tirado de mim toda aquela sujeira que eu
quando falou que eu aguardasse, no momento certo estaríamos trazia comigo. Me senti renovado dentro de roupas limpas e
juntos. perfumadas, nesse momento, se aproximou de mim um homem
Segui com meus pais, passamos por um enorme jardim e com cabelos grisalhos e barba baixa bem aparada, ele sorriu para
me disseram agora você precisa seguir, eu perguntei e vocês eles mim e me disse agora se sentira melhor. “Beba essa água, ela irá
me deram um beijo e seguiram até desaparecer. Andei por um te ajudar”, falou. Me chamo Natan sempre que desejar conversar
tempo observando tudo e pensei em Cícero e meus pensamentos pode me procurar e foi quando eu lhe perguntei de meu filho
me levaram a ele. Cícero. Porque ele permanecia naquele lugar tão sombrio ele me
O lugar não era bonito tudo era meio sombrio. Quando me respondeu que só dependia dele sair de onde estava, que ele
aproximei de Cícero ele estava abatido meio arredio, mas precisava ter humildade e querer ser ajudado.
surpreso ao me ver ali senti que ficou feliz eu o abracei e disse: Aprendi ali tantas coisas algumas já estavam guardadas
“Que bom que te encontrei”, falei de sua filha do quanto ela em minha mente, mas com a lei do esquecimento eram contidas
estava linda e pela primeira vez eu o vi chorar. Desorientado ele para que não atrapalhassem minha evolução nas vidas que eu
saiu correndo tentei alcançá-lo, mas não consegui. Percorri aquele precisava viver.
lugar tão feio tentando achá-lo, tudo ali era tão triste, senti frio,
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Foi quando entendi as revoltas de Cícero. Em uma vida SONHO DE LIBERDADE


passada eu o rejeitei e toda a rejeição que eu sentia dele ainda era
pequena perto do que eu fizera a ele em outra vida. Ali percebi Na fazenda dos Algozes, um esporte cruel era praticado
que existe a lei do retorno, que tudo o que recebemos é a colheita uma vez por ano. Nele não eram caçados animais, mas sim
do que fora por nós plantado. escravos, que eram inseridos na mata e depois caçados como
Passei a orar muito e em minhas orações pedia por Cícero, bichos. Os que conseguissem escapar com vida, eram libertos.
que ele me perdoasse e algo dizia a meu coração que eu seria Havia uma parte da fazenda onde precisavam chegar, se o
atendido. Senti que a força de minhas orações tocava o coração de caminho fosse concluído a liberdade era certa.
Cícero, e um dia humildemente ele se ajoelhou e pediu a Deus Nessa caçada cruel, muitos escravos foram mortos, sem
que lhe desse mais uma oportunidade de se tornar um ser melhor. chance alguma de escapar. Apenas um negro chamado Tião foi o
Nesse momento ele fora atendido e retirado daquele lugar único que conseguiu sobreviver.
sombrio, foi tratado e ficamos frente a frente desarmados sem Tião era um negro forte, foi trazido da África em um navio
magoas, rancor e sem a raiva que eu via em seus olhos. Pela negreiro, ele fora o único que sobreviveu às maldades do coronel
primeira vez senti amor em meu filho. Augusto Algozes e seus amigos.
Passado algum tempo de estudo e aprendizado, passamos Esse tipo de caçada fora inventada pelo coronel Augusto e
a trabalhar juntos em prol dos que ali chegavam tão perdidos agradou outros coronéis tão cruéis quanto ele. Os escravos
como nós quando ali chegamos. escolhidos, não tinham chance de sobreviver por muito tempo,
No longo jardim, caminhávamos escutando o som de uma muitos por não conhecer as armadilhas da mata e os animais
música agradável que nos dava profunda paz, passamos a selvagens que nela viviam, e também havia os cães ferozes que
entender o sentido das diferenças entre os seres e a importância acompanhavam os coronéis farejando os pobres escravos.
do perdão para a paz interior. Tião fora arrancado de sua terra natal e trazido para o
Brasil em um barco negreiro. Na difícil viagem, foi jogado no
porão do navio e acorrentado com outros negros. Isso lhe
Vinicius mostrava o quanto seria difícil a vida na terra distante do seu país.
A saudade da família lhe pesava, sentia angústia, uma dor no
coração ao pensar como ficariam sem ele e sua proteção. Ele
deixava para trás a companheira e três filhos.
No longo caminho de viagem, nada viam, apenas
pequenas frestas da porta do porão que vez que outra era aberta
para receberem a ração e a água escassa que lhes era oferecida.
Quando o porão era aberto, podiam sentir a brisa do mar que se
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misturava ao cheiro desagradável do lugar. Fora um longo tempo o que fazer pelos seus. Suas revoltas eram castigadas no chicote
de viagem até chegarem ao porto.Os que resistiam a viagem que rasgava sua carne, dor profunda que lhe atingia a alma, foi ali
chegavam desnutridos. Enfileirados, seguiam para a terra firme que Tião entendeu que era um escravo como todos os outros. Sua
onde, no solo quente dessa terra tropical, pisavam pela primeira revolta fez com que o coronel o indicasse a ser o próximo escravo
vez. Tudo que viam era tão diferente das terras africanas. jogado na mata para diversão de seus convidados.
Eles foram conduzidos a um salão, onde vários coronéis Quando Tião soube que seria o próximo escolhido para a
aguardavam suas encomendas. Foi ali que Tião fora entregue ao caçada implacável não ficou triste, pensou que seria melhor
coronel Augusto. Tião era um negro forte apropriado para seus morrer livre do que preso como bicho cativo à espera do abate.
propósitos. Na fazenda, Tião fez amizade com Bento, um velho
Após os escravos serem negociados, os coronéis seguiam escravo que lhe ensinou o idioma do país e os costumes daquele
para as suas fazendas, onde os escravos eram preparados para a povo tão diferente do seu. Bento ao saber que o amigo fora
lida e um era escolhido para as apostas feitas uma vez ao ano na escolhido, sentiu um aperto no peito, ele sabia que ninguém havia
fazenda dos Algozes. O escravo que sobrevivesse daria grande sobrevivido a tão cruel caçada, mas ele sentiu também uma força
lucro ao seu dono e seria liberto como o combinado podendo interior vinda de Tião. Era essa força que o tornara tão diferente
viver livre na terra dos brancos. dos outros escravos, seu olhar firme nos olhos de seu dono dava
Na fazenda tudo era diferente para Tião, a comida, a ao coronel a certeza de que ele não era submisso como os outros
língua que ele não entendia, mas ele era esperto, em pouco tempo escravos que tinham medo de lhe olhar nos olhos. Foi essa
passou a entender um pouco dos costumes daqueles homens de imponência que fez com que o coronel lhe observasse melhor.
pele branca que tão mal os tratava. Em uma conversa com o capataz, Ramiro, o coronel lhe
Tião fora mantido por um tempo na fazenda para servir de diz: “Vou tirar a pose desse negro e domá-lo, ele vai ver como as
reprodutor, como era forte e saudável, fora escolhido para coisas funcionam por aqui. Acho que será uma bela caçada”, os
engravidar as escravas da fazenda. dois dão altas risadas.
Cada vez que se deitava com uma delas, ele se lembrava O tempo vai passando, e Bento, em uma conversa com
de sua companheira que ficara na África. Tião também sentia Tião lhe diz: “Tu tem de se preparar, ninguém sobreviveu a essa
profunda tristeza ao saber que as crianças geradas não iam lhes caçada, tem os perigos da mata, os animais selvagens que nela
pertencer, seriam propriedades do coronel, muitas eram retiradas habitam. Atravessar essas terras e sobreviver seria um milagre de
dos braços de suas mães e negociadas com outros fazendeiros, Deus”, Tião escuta o amigo em silêncio depois lhe diz: “Se eu
conforme interesse de seu dono. sair vivo serei livre”, Bento lhe responde que é o trato entre os
Ele se perguntava por que tanta crueldade com os negros? coronéis, mas até hoje ninguém sobreviveu para desfrutar dessa
Ele era tão importante em sua tribo como líder de seu povo ao liberdade.
qual protegia dos inimigos, mas ali se sentia tão impotente sem ter
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O sonho de liberdade fez Tião buscar forças, e procurou O escravo seguiu, e junto a ele o escravo João assustado
saber mais sobre as terras. Com Bento, conheceu ervas comuns na com tudo o que via. Quando a noite chegou, ainda escutavam os
região e os benefícios de cada uma delas, o que poderia comer cães, mas passado um tempo apenas o barulho assustador da
retirando da terra, e o que seria venenoso. Bento lhe ensinou tudo mata, mas eles sabiam que se parassem poderia ser pior, seguiram
que sabia, todo o conhecimento adquirido durante sua vida na na noite escura meio sem rumo, mas Tião se lembrou das palavras
fazenda. do amigo que se guiasse pelas estrelas e assim ele o fez.
Tião se preparou física e espiritualmente para o momento O dia já amanhecia, depois de longa caminhada, pararam
de enfrentar a tão temida mata e os caçadores. para descansar próximo a umas pedras onde a água fresca
O tempo passou, e Tião sabia que o tão temido dia se escorria. Ali poderiam matar a sede, Tião quis descansar um
aproximava, podia sentir no amigo Bento a preocupação por sua pouco antes de seguir e o seu companheiro saiu para ver se
vida. arrumava algo para comerem. Passado um tempo, Tião escuta um
Na fazenda, o coronel Augusto se reuniu com amigos para grito, correu para ver o que acontecia, quando chegou perto levou
tratar dos acertos finais para o dia da caçada, e todos foram andar um susto com a cena que viu, João estava sendo atacado por uma
a cavalo pelas terras onde os negros seriam soltos. Se houvesse onça ele nada pode fazer.
um vencedor, todos teriam de pagar um alto valor ao dono do Tião, chocado com a cena que viu, saiu correndo. Seu
escravo e esse teria de cumprir o combinado de alforriar o coração parecia bater fora do peito. Ao passar por uma palmeira,
vencedor. colheu umas folhas, tramou umas nas outras e fez uma proteção
No dia da caçada, os negros tiveram uma farta para seu corpo, para que ficasse protegido dos espinhos e insetos
alimentação, em um de seus pés foi colocado um anel de ferro que encontraria pelo caminho. As horas foram passando, e Tião
com as inicias de seu dono. Bento deu ao amigo Tião um colar de escutou novamente os tiros e o latir dos cães. A cada tiro ele sabia
proteção, ele o levou junto ao peito. que um escravo caía.
Na mata, os escravos teriam de procurar seu próprio Cansado, Tião se deita um pouco para recuperar as forças,
alimento, quando soltos, seguiam assustados sabendo que a fome lhe doía o estômago, deitado, ele avistou uma árvore com
precisariam ser fortes para sobreviver. alguns frutos que os pássaros comiam. Após descansar um pouco,
Tião guardou com ele as palavras do amigo Bento, que subiu na árvore e os colheu. Alimentou-se com eles e seguiu, no
acreditasse em Deus e usasse seu extinto de caçador para não caminho, encontrou água, mas também escutou os cães latindo
servir de caça. Tião seguiu com os outros escravos mata adentro. próximo a ele. Pensou em uma maneira de despistá-los,
Após um tempo, escutavam o latir dos cachorros que mergulhou na água, se misturou aos arbustos, sentiu os cães
acompanhavam os caçadores, vez que outra os tiros e o grito de farejarem bem próximo a ele e viu os coronéis se aproximarem a
algum negro que tombava alvejados pelos caçadores e os seus cavalo.
cães ferozes.
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O coronel Augusto dizia ao capataz: “Ramiro, onde esse Ao conversar com o amigo Bento, Tião lhe diz: “Não sei o
negro se meteu?Vamos ter que encontrá-lo vivo ou morto”. que fazer, nem para onde seguir”, Bento lhe diz: “Siga tua
Seguiram em frente com os cães os acompanhando. Tião saiu da intuição, a de encontrar alguém que te ajude a retornar a tua
água quase sem fôlego. terra”.
O dia se fechava, se aproximava uma forte tempestade, os Tião seguiu, mas nada foi fácil. Onde passava todos
caçadores decidiram parar um pouco, mas Tião seguiu mesmo olhavam desconfiados, e se perguntavam de quem seria esse
com a forte chuva. Após horas caminhando, seu corpo chegou a escravo?Pelas ruas da cidade ele seguiu, sentindo o racismo. O
exaustão, encostou-se em uma árvore para descansar e ali ele modo como tratavam os negros lhe causava profunda tristeza.
pediu aos espíritos da floresta que lhe dessem força e guiassem Caminhou pelas ruas da cidade, sentiu fome e sede. Em frente de
seu caminho.Por instantes ele adormeceu, a chuva já havia uma casa parou e pediu ajuda. O homem que o atendeu lhe olhou
passado, enquanto dormia teve um sonho onde, se via livre, mas firme e perguntou: “Fugiste de algum lugar, negro?” Tião
ainda cativo em seu pé o anel permanecia. Quando acordou se respondeu: “Fui liberto pelo coronel Augusto”, a carta foi
perguntou o que significado teria o sonho que lhe pareceu tão mostrada ao homem, após ler, lhe deu água e alimento. Tião
real. agradeceu a água e os alimentos e seguiu viagem.
Passado alguns dias, Tião que acreditavam estar morto, Caminhou por horas, levando com ele um cantil com água
surgiu no ponto onde fora marcado. Ele foi o único escravo que que lhe fora dado para viagem. No caminho, cansado, sentou-se
sobreviveu, um dos empregados do coronel o encontrou e gritou embaixo de uma árvore, já era noite, olhando as estrelas, ele se
para os outros: “Tem um escravo ali”. Todos que ali estavam se lembrou de sua terra, e uma profunda saudade lhe doía no peito.
aproximaram e comentaram entre si como ele conseguiu Ali, Tião adormeceu, em sonho, correu pelas matas de sua terra
sobreviver. natal, sentindo a liberdade e felicidade que a muito não sentia.
Tião fora levado à fazenda. Quando Bento vê o amigo, Quando acordou, viu que o dia já estava amanhecendo, resolveu
ficou feliz e disse baixinho: “Deus ouviu minhas preces”. seguir viagem, no caminho, encontrou água farta, onde se banhou
Na frente de todos os participantes da caçada a aposta fora e encheu seu cantil, colheu umas raízes que lhe serviram de
paga, e Tião poderia ser liberto e partir. Ele descansou, e teve alimento.
uma farta refeição. Logo foi levado até o Coronel Augusto, a ele Após longos dias de caminhada, ele encontrou uma casa
foi dito: “Vou cumprir minha palavra”, disse Augusto. “Tu estás bem afastada da cidade. Quando se aproximou, um homem gritou,
livre, vou mandar retirar o anel de teu tornozelo, não sei o que tu lhe apontando uma arma: “Pare onde está ou atiro”. Tião levantou
fizeste para sobreviver, mas tu conseguiste.”A aposta foi paga e as mãos para cima e disse: “Não atire, só estou procurando um
será cumprido o combinado, essa é a carta de alforria carregue trabalho”. Após conversarem ali, Tião ficou sabendo que dono da
contigo e diga que foi meu escravo. pequena propriedade se chamava João, era o mesmo nome do
escravo que o acompanhou na mata. Ele mostrou a carta que
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trazia consigo. João lhe disse que não poderia lhe pagar, ele quis dedicação. João não queria ser injusto e disse a Tião: “Agora
ficar por alimento e abrigo. posso te pagar com os mantimentos que vendemos na cidade,
João tinha esposa, Eulália, e dois filhos, Mateus e a consigo dinheiro”, mas Tião não se preocupava com dinheiro, já
pequena Olívia. A vida ali não era fácil, mas tinham alimento que aprendera a viver sem ele.
produziam, e carne da pequena criação. Era tudo que Tião Com as vendas dos mantimentos na cidade, João retornava
precisava. Ele era trabalhador, seu modo de ser agradou a João feliz, tudo que levavam era vendido. Na cidade, Tião muitas
que lidava só na terra contando apenas com a ajuda do menino vezes sentiu o preconceito na maneira como lhe tratavam, o que
Mateus. Ali ele permaneceu acolhido por aquela família, que também deixava João incomodado.
passou a ser a sua. Com a ajuda de Tião, o serviço de João rendia Ao retornarem, João pergunta a Tião porque está tão
e todos estavam felizes. calado, e Tião responde: “Fico triste com o modo como tratam os
O tempo foi passando, e o sonho de retornar a sua terra negros, parece que não somos gente, quando andei pela cidade
fora se distanciando. Ele imaginava como estariam sua antes de encontrar a casa do senhor, vaguei por essas ruas, só
companheira, seus filhos, o quanto já deveriam ter crescido. Doía encontrei um homem que me ajudou, me deu água e alimento, os
no peito a saudade. Os anos foram passando, e Tião levava demais me enxotavam como um bicho. Foi-me dada liberdade por
consigo as lembranças de sua terra natal. que eu sobrevivi a uma caçada onde vi na mata os escravos como
A família de João, com a convivência e a confiança que eu serem perseguidos e mortos de modo cruel. Deram-me a falsa
passaram a ter nele, o viam como um membro da família. liberdade. Eu só seria livre se estivesse junto ao meu povo, a
A pequena Olívia aguardava o pai e Tião virem para minha terra que está lá, distante, guardada agora nas minhas
almoçar. Todos os dias ia ao encontro dos dois com um belo lembranças, assim como minha família”.
sorriso no rosto, a alegria da menina dava ainda mais beleza ao João comovido lhe diz: “Tudo isso também me deixa
lugar. triste, saiba que tenho muita consideração e respeito por ti, mas
Tião muitas vezes entrava na mata e ali ficava em silêncio não posso falar pelos outros, já vi muita injustiça nessa vida e não
por algum tempo. Quando João lhe perguntou por que sumia na me agrada a maneira como os coronéis tratam seus escravos.
mata,ele respondeu: “Gosto de falar com os espíritos da mata, eles Deus deve ficar triste por ver tudo isso falta amor e compreensão
aquietam minha alma que tanto sofre longe de casa”. João e a no coração do homem branco”.
família respeitavam sua crença, sentiam que era a maneira de Tião Ao chegarem à casa de João, Eulália estava nervosa. A
procurar Deus. Os momentos meditativos de Tião lhe davam menina Olívia estava com febre alta, ela não sabia o que fazer.
força, serenidade, e a paz interior para seguir sua jornada. Tião pediu permissão para examinar a menina, foi até a mata,
Com o passar do tempo, a propriedade de João prosperou, colheu algumas ervas que o amigo Bento lhe ensinou, fez um chá,
e Tião fora um dos responsáveis por essa prosperidade, pois desde pediu que banhassem a menina com o chá, e lhe dessem também
que ali chegou trabalhou ao lado de João com empenho e um pouco para beber. Naquela noite, Tião e Eulália cuidaram da
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menina, a febre baixou. Quando o dia amanheceu a menina mantinha consigo o racismo herdado de seus pais, tratava Tião
parecia melhor, seguiram dando um chá que Tião indicou. com certa frieza, que incomodava Olívia,
O conhecimento das ervas fez com que ele ajudasse Em uma conversa com Olívia, Tião lhe falou: “Sei que teu
muitos camponeses a se curarem das enfermidades, além das marido não gosta de mim, mas não brigue com ele por isso, talvez
ervas, Tião contava com a ajuda dos espíritos amigos que um dia os homens branco consigam ver os negros de uma outra
moravam na mata junto com a natureza. forma. Já vi meu povo sofrer tanto nas mãos dos brancos, e
Tião passou a ser procurado pelas pessoas humildes, que sempre me perguntei o porquê, talvez um dia eu tenha resposta”.
não o viam como escravo, mas sim como um homem bom que As palavras de Tião emocionaram Olívia que o abraçou
trazia consigo o dom de curar. demonstrando seu amor.
O sofrimento o tornou um homem forte, aprendeu em suas Em uma noite, Tião teve um sonho onde, viu dona Eulália
meditações a controlar sua revolta e a usar seu dom espiritual para sendo levada em uma cama coberta de rosas branca. Ao acordar,
ajudar os que necessitavam, assim passou a sentir mais paz em Tião guardou com ele o sonho, não comentou com o amigo, mas
seu coração. lembrou-se que às vezes dona Eulália se queixava de uma dor no
O tempo fora passando, Tião sentiu nos filhos de João peito. Passado uns dias, Tião percebeu que João estava
amor e preocupação com ele, os cuidados de Olívia o fazia sentir preocupado com a mulher que não se sentia bem. Ele pediu a Tião
como um pai amado por sua filha. que a examinasse, foram juntos até Eulália, ao olhar para ela, Tião
Ali, Tião viu o tempo passar, os filhos de João e Eulália sentiu tristeza profunda e o sonho que teve lhe veio à mente.
haviam crescido, Olívia se tornara uma bela mulher. Mateus, Quando conversou com João, Tião lhe disse: “Tem coisas,
homem feito, trabalhava na terra como o pai, tinha jeito para os meu amigo, que não podemos evitar. Eu sempre faço o que sou
negócios, era inteligente e fez a renda da família aumentar orientado pelos espíritos da mata, e eles me disseram que o amigo
vendendo além de mantimentos, carne de animais criados na precisa ser forte”.
propriedade. Preparava a carne seca e vendia junto com os Eulália permaneceu de cama por alguns dias, se sentia
mantimentos. Foi na cidade que ele conheceu uma jovem fraca. João, sempre muito cuidadoso, permanecia ao seu lado,
chamada Rita, com o tempo construiu uma casa próximo a casa tentando disfarçar a preocupação. Quando tudo parecia bem, João
dos pais e a levou para morar com ele. Olívia também havia se precisou ir à cidade levar uma encomenda, Tião o acompanhou,
casado morava na cidade. Mateus cuidou dos afazeres e sua mulher Rita ficou encarregada
Mateus tratava Tião com o mesmo respeito e consideração de fazer companhia a Eulália, que naquele dia parecia disposta.
com que tratava seu pai, ele via em Tião o amigo que tanto lhes Foi até a horta para colher umas verduras para o jantar, como
ajudou na lida da terra. demorou para retornar, Rita foi ao seu encontro. Quando se
Olívia quando visitava os pais, sempre procurava Tião aproximou, viu Eulália caída ao chão, correu para socorrê-la, e
para conversar, ouvir suas histórias, mas o marido Nicolau logo gritou por Mateus que estava próximo a casa.
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Ele a levou para dentro, tentou animá-la, pensou em levá- O tempo foi passando, era visível a falta que João sentia
la à cidade, mas a viagem era longa. Temia que ela não de sua esposa, conversando com Tião, ele fala sobre isso e Tião
suportasse, aguardou então o retorno do pai e de Tião, mas lhe diz: “Eu sei o que o senhor sente. Quando fui afastado de
agoniado sentia a respiração de sua mãe cada vez mais fraca, minha companheira, senti essa dor e a saudade que me doía por
baixinho ela lhe diz: “Cuide de seu pai”. Essas foram as últimas dentro, mas o tempo amenizar”.
palavras de sua mãe antes de partir. Mateus se desesperou e foi João pergunta a Tião, se na crença dele a morte é o fim, e
consolado pela mulher, que com ele chorou a dor por a perda de Tião lhe responde: “Sigo a tradição de meu povo, meus ancestrais
sua mãe. acreditavam no espírito que sai do corpo e segue seu caminho,
Na cidade, Tião sentiu uma grande tristeza, e a imagem de mas esses podem retornar e ajudar quando precisamos de ajuda.
Eulália lhe veio à mente, ele sentiu que algo havia acontecido. No Se eles seguem e podem voltar temos que acreditar que a morte
caminho de volta para casa, Tião estava quieto, pensativo, e João não é o fim.”
lhe perguntou: “Porque está calado?” Ele responde: “Estou As palavras de Tião deram alento ao coração de João, e
pensando no que a vida reserva para cada um de nós, me lembro força para continuar sem Eulália. Ele dedicou-se ainda mais ao
de minha chegada a sua propriedade e o modo como fui acolhido trabalho, era uma maneira de ocupar seu tempo.
pelo senhor e pela dona Eulália, e o quanto eu gosto da família de Tião, em uma tarde, convidou João para lhe acompanhar,
vocês, que me fizeram sentir gente de novo, depois de ser tão seguiram para a mata, quando lá chegaram, Tião lhe disse:
escorraçado pelos brancos, eu tinha todos os motivos para sentir “Sente-se, feche os olhos e sinta a energia, os espíritos da mata
ódio, mas não sinto. É porque tu és um homem bom melhor que vão te ajudar, nesse momento difícil”.
muitos brancos que conheço”. O tempo que permaneceram ali João sentiu seu corpo ser
Foram horas de viagem,à noitinha, chegaram, João tocado por uma profunda paz, lhe veio à mente a imagem da sua
estranhou o movimento na casa, e o jeito abatido com que Mateus mulher, e sua voz suave que lhe dizia: “Siga tua vida, estou bem,
foi ao seu encontro. João logo se lembrou de Eulália, correu em estou em paz, cuide dos nossos filhos, no momento certo
direção da casa, quando nela entrou, viu a mulher na cama sem estaremos juntos novamente”. João não conteve as lágrimas e
vida. Nesse momento, ele não teve vergonha de chorar. Tião se disse a Tião: “Eulália esteve aqui”.
aproximou e disse: “O senhor tem que ser forte”. Quando retornaram, João estava mais animado. Aquele
O enterro de Eulália fora providenciado, Olívia fora momento fora importante para que ele entendesse que um dia
avisada por um empregado do irmão, uma enorme tristeza tocou a estaria com a mulher novamente.
todos naquele dia de despedida. Tião sentiu a dor da família, que O tempo passou, Mateus teve dois filhos com Rita, o
naquele momento passou a ser também a sua. Tinha por dona menino Pedro, e a menina Eulália, nome colocado em
Eulália grande consideração, ele orou e pediu aos espíritos da homenagem a avó.
floresta que levassem sua alma para o descanso.
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Olívia também teve dois filhos, seguia morando na cidade. Ali, próximo a Mateus, Tião permaneceu acolhido por
Quando o pai ia entregar mercadorias, sempre a visitava, e Tião o aquela família até o final de sua vida, quando esse momento
acompanhava, mas ficava receoso de entrar na casa, ele sentia o chegou, Tião foi colocado ao lado de João e Eulália como se fosse
modo frio como era recebido por Nicolas, o marido de Olivia, que um membro daquela família que lhe acolheu com amor.
devido a sua criação, acreditava que os negros eram inferiores aos
brancos.
Tião preferia ficar aguardando na carroça, mas Olívia
sempre levava as crianças para que ele as vise e ao seu modo ele
as abençoava.
Passaram alguns anos, no trabalho, João não se sentiu
bem, e Tião o levou para casa. No caminho, ele diz a Tião: “Já
estou cansado, não tenho a mesma força”. Tião lhe prepara um
chá e pede para que descanse. Mateus não vê o pai na lida como
de costume, e vai até sua casa para saber o que aconteceu. Ao
saber da indisposição do pai ele fica preocupado e diz ao pai: “O
senhor não precisa trabalhar tanto, já temos empregados para nos
ajudar na lida, precisa descansar, deixa que cuido de tudo”.
Ele pediu a Tião que cuidasse do pai. Tião em um
momento de silêncio sentiu que o tempo do amigo se aproximava
do fim. Sua previsão se confirmou em uma manhã, quando João
não saiu cedo da cama como sempre fazia. Tião vai até o quarto e
vê que o amigo estava morto. Mateus foi chamado e o enterro de
João foi providenciado, ele fora enterrado ao lado da mulher
Eulália.
Tião sempre colhia flores no campo, colocava nas
sepulturas, e ali orava pelas almas dos amigos. A perda deles lhe
doeu tanto quanto a distância de sua família.
Mateus quando o via orando pelos pais, se lembrava de
uma conversa que teve com o pai, onde ele pediu um pouco antes
de morrer que, se algo lhe acontecesse, que ele sempre cuidasse
de Tião que lhe fora um amigo leal.
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O CONTADOR DE HISTÓRIAS a alma despertando um pouco de felicidade em seu coração tão


sofrido.
Em uma casa simples morava Manoel, Maria, Antonio e a Um dia caminhando com a mãe e a pequena Julia
pequena Julia, a vida era difícil Manoel trabalhava na construção encontram Juvenal e o menino lhe apresenta a mãe e a irmã, sua
civil, Maria fazia costura para fora mesmo diante das dificuldades mãe Maria quis conhecer melhor o amigo do qual o filho tanto
tinham o que julgavam ser muito importante que era o amor que lhes falava e a pedido do filho o convidou a ir a sua casa para o
sentiam um pelo outro e esse os mantinha unidos e felizes mesmo jantar, Juvenal meio sem jeito disse que não queria incomodar,
com as dificuldades que a vida lhes mostrava. Antonio era um mas diante a insistência do menino acabou aceitando o convite.
menino alegre e muito inteligente, tinha um coração bondoso. Eles combinam tudo. Ao chegar em casa Maria diz a
No caminho para a escola o menino muitas vezes Manoel que convidou o vizinho para o jantar diz ao marido que
encontrava sentado a sombra de uma arvore um homem com precisavam conhecer melhor esse senhor de quem nosso filho
olhar perdido então o menino um dia se aproximou e se tanto gosta. Na hora combinada Juvenal bate a porta e trás com
apresentou me chamo Antonio, vi que o senhor parece estar triste ele alguns alimentos e uns doces para as crianças, Manoel lhe
o senhor esta bem? O homem sorriu para o menino e lhe disse seu convida a entrar e Maria pega o que o vizinho havia levado e sem
nome me chamo Juvenal, gosto de vir aqui para pensar na vida, e jeito diz a ele que não precisava ter levado nada, Juvenal logo diz
ali Antonio ficou por um tempo conversando e naquele instante é meu costume sempre levar algo quando me convidam para
iniciou uma linda amizade. Aquele menino deu um pouco de luz jantar não me leva a mal, meu pai tinha o mesmo habito acho que
na vida de Juvenal que se tornara um homem solitário morava em herdei isso dele. Durante o jantar conversam, mas ainda segue um
uma cabana na companhia se seu cachorro chamado Faísca. mistério sobre sua vida. Após ir embora Manoel diz a esposa, o
A partir daquele dia o menino sempre que via Juvenal se que um homem tão culto faz ali naquele lugar morando só
aproximava e ficava escutando historias que Juvenal lhe contava naquela cabana.
as quais ele escutava com atenção tudo que ouvia. Em sua casa O vilarejo São Cristovão era um lugar pequeno vida
falava sempre de seu novo amigo, mas seus pais preocupados simples e pacata era o que Juvenal buscava naquele momento, e
diziam ao menino, você não pode confiar em estranhos, o menino passou a gostar de contar historias e com o tempo Antonio reunia
lhes escutou e respondeu, mas ele é homem de bem senti isso nos varias crianças do vilarejo e os levava com ele após as aulas para
seus olhos, e seu pai insiste, mas nada sabemos desse vizinho, escutar as historias contadas por Juvenal..
mas Antonio sentia algo que não conseguia explicar sentia que No vilarejo havia um campo florido era época de
precisava estar próximo a Juvenal e aquele homem de olhar primavera e embaixo de uma arvore Juvenal costumava se sentar
perdido passou a ter um grande afeto por aquele menino que lhe e observar toda aquela natureza e a paz que lhe tocava
despertara algo que muito tempo não sentia e uma paz lhe tocava profundamente, com ele o cão faísca, nessa tarde o menino
Antonio surge com varias crianças queriam escutar as historias
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contadas por Juvenal, aquele momento passou a ser um momento trás aqui? Esta tudo bem? Manoel lhe responde quero conversar e
de descontração onde, Juvenal esquecia seus problemas e toda a gostaria que fosse sincero, quero entender o porquê de tanto
tristeza que carregava consigo, aquele momento lhe fazia muito mistério sobre sua vida, o que você esconde? Meu filho me
bem e ele percebe que fora muito bom sair da cidade e dar um contou do sonho que teve e de sua reação, Juvenal lhe diz; se
tempo longe da correria da cidade grande, toda aquela sente vou lhe contar minha história que para mim é dolorosa é
simplicidade do vilarejo estava lhe fazendo muito bem. Ali ele como mexer em uma ferida que ainda sangra, nesse momento ele
passou a ser conhecido como o Contador de Historias. abre seu coração. Eu tinha uma família feliz meu filho tinha a
A aproximação com a família do menino Antonio lhe idade do seu e se chamava Gustavo e minha mulher se chamava
trazia aconchego familiar que tanto lhe fazia falta. Juvenal nunca Luíza era linda, mas tudo me foi tirado assim como um pedaço de
falava de sua família e isso preocupava Manoel e Maria. mim. Após um dia de trabalho ao chegar a casa tínhamos um
Em uma tarde após a aula o menino Antonio vai ao encontro de jantar na casa de amigos, nos preparamos e fomos, aquela noite
Juvenal e lhe conta de um sonho que teve com ele onde havia um chovia muito eu estava um pouco estressado eu e minha esposa
menino e uma mulher e eles diziam que o senhor não teve culpa e acabamos discutindo e der repente eu perdi a direção do carro que
que estavam bem, Juvenal posse a chorar e Antonio sem entender se chocou com outro veiculo, quando acordei no hospital meu
lhe diz o que eu fiz? Por que o senhor esta chorando? Juvenal irmão Carlos estava ao meu lado quando perguntei por minha
tentou conter as lágrimas e não assustar o menino e logo lhe diz, esposa e meu filho, Carlos me deu a triste noticia que haviam
estou bem só me emocionei, mas por que diz Antonio e Juvenal morrido, desde aquele dia não tenho mais paz a culpa me
lhe diz, você é tão jovem e me lembra muito alguém que me foi atormenta, quis sair da cidade e dar um tempo fora deixei meu
muito importante, mas que já não esta mais entre nós, um dia te irmão a frente dos negócios, preciso me sentir bem para
contarei essa história, agora precisa ir teus pais vão ficar retornar,mas sei que nada mais será como antes, há se eu pudesse
preocupados já se faz tarde. voltar o tempo talvez não tivesse acontecido o acidente se eu não
Quando o menino vai embora Juvenal fica pensativo e se estivesse tão estressado não teria discutido com minha esposa,
pergunta será que quiseram me mandar uma mensagem ou foi teria prestado mais atenção a direção do carro me sinto tão
apenas coincidência de um sonho. culpado. Manoel comovido com a historia tenta consolar Juvenal,
Em casa o menino conta a seus pais do sonho e da emoção agora entendo suas atitudes e tua tristeza, mas sempre que
que causou em Juvenal e Manoel diz a esposa vou ter uma precisar de um ombro amigo estarei aqui e minha casa esta de
conversa seria com Juvenal e entender o porquê quer ficar longe porta aberta para o amigo.
da cidade não sabemos nada da vida dele, parece esconder alguma Ao chegar em casa Manoel diz a esposa que teve uma
coisa. conversa com Juvenal e agora compreendo as atitudes de dele,
A noite Manoel vai até a cabana de Juvenal que estranha a conta a esposa toda a historia que escutou e diz vamos ajudá-lo no
visita de Manoel, mas o convida a entrar e lhe pergunta o que o
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que for possível para que ele supere a tragédia que se abateu sobre costumavam escutar as histórias, nesse lugar ele orou para Deus e
sua família lhe pediu que olhasse por eles que ajudasse sua irmã para que
A partir daquele dia Manoel não implicou mais com a ida ficasse boa, nesse momento se aproxima Juvenal e lhe pergunta o
do filho ao encontro de Juvenal. A aproximação da família de que faz aqui só? O menino lhe responde, eu estava orando
Manoel fez com que Juvenal percebesse das dificuldades daquela fazendo um pedido para Deus pedi que ajudasse minha irmã que
família para sobreviver, eram muito humildes a casa era bem esta doente. O menino conta o que escutou em casa.
simples sem muito conforto, mas o amor que havia ali tornava Estando a par de tudo Juvenal procura o pai de Antonio e
mais leve todas as dificuldades. oferece ajuda e diz a Manoel vou ajudar vocês já fiquei um bom
A vida no vilarejo era pacata, as crianças adoravam tempo por aqui é hora de retornar para acidade e enfrentar meus
escutar as historias contadas por Juvenal, todas se sentavam a sua problemas eu quero que me acompanhem na cidade poderá tratar
volta e atentos ficavam prestando atenção a todos os detalhes era sua filha, tenho amigos médicos, minha casa é grande e nos
um momento esperado por todos. fundos tenho outra casa onde poderão ficar e trabalhar para mim
Juvenal vendo as dificuldades da família de Manoel pagarei os dois por os serviços prestados se não gostarem poderão
pensou em uma maneira de ajudar então falou com Maria que retornar ao vilarejo após o tratamento da menina, fale com sua
precisava de alguém que cuidasse de suas roupas e também desse esposa, ficarei feliz em lhes ajudar. Em casa Manoel fala com a
uma ajeitada na cabana que pagaria pelo serviço, se Manoel não esposa Maria da proposta feita por Juvenal e Maria lhe diz, aceite
se opor, após esse dia Maria passou a cuidar das roupas e da se ficarmos aqui não teremos como ajudar nossa menina.
cabana de Juvenal o dinheiro que recebia passou a ser importante No outro dia Manoel procura Juvenal e diz que aceita sua
para ajudar nas despesas da casa. ajuda dizendo, não sei como lhe agradecer, mas saiba que terá em
Passado um tempo na escola Julia passa mal e a professora mim um amigo fiel.. Juvenal diz a Manoel que diga a Maria que
manda chamar imediatamente a Maria e Manoel e eles levaram a peguem apenas seus pertences pessoais a casa para onde vão esta
menina ao medico o diagnóstico deixou os pais da menina toda mobiliada e assim que arrumam tudo seguem para acidade lá
preocupados e os exames foram conclusivos e mostraram que chegando Maria fica encantada com tudo que vê a casa de Juvenal
Julia tinha um problema no coração e precisava de tratamento e era enorme a empregada Marta os aguardava já estava sabendo
no vilarejo não seria possível. Quando conversa com a mulher que Juvenal levaria com ele uma família a qual iria ajudar, na casa
Manoel desanimado diz a ela o que vamos fazer? O medico disse também estava Carlos irmão de Juvenal.
que Julia precisa de cuidados e de mais exames e talvez uma Marta pede que Maria e sua família a acompanhe e os
cirurgia, essa vida miserável que levamos como vamos ajudar leva até a casa a eles oferecida nela tinha o conforto que Maria
nossa menina. Antonio em casa escuta a conversa dos pais e triste não imaginou que poderia ter. A pós a família de Manoel se
foi ao encontro da irmã lhe deu um beijo e saiu para andar um acomodarem Juvenal foi conversar com o irmão e lhe diz o
pouco, no caminho se sentou em baixo da árvore onde quanto aquela família o ajudou no tempo em que esteve fora e que
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queria retribuir no momento em que eles mais precisavam, contou Passado um tempo na varanda da casa Juvenal conta uma
ao irmão os motivos pelo qual os levou com ele para a cidade e história a Antonio e Julia e após Antonio lhe diz que sente
pede ao irmão que providencie o melhor especialista de saudades dos amigos do vilarejo, que eles devem estar sentindo
cardiologia e marque uma consulta para que levem a menina falta das historias e Juvenal lhe diz, pois vamos visitá-los e tu vai
Julia. reunir todas as crianças e lhes contarei uma linda história. O
No outro dia Juvenal mostra a Manoel toda a casa o menino ficou feliz e foi correndo contar para os pais e no dia
enorme jardim e diz quero que cuide dele e também algumas combinado foram todos ao vilarejo, a família de Manoel estava
arrumações que preciso fazer na casa e conto contigo te pagarei feliz, pois iriam rever os amigos. Ao chegar lá Ana lhes
um salário justo e Maria pode ajudar Marta nos afazeres da casa e aguardava fora ela quem mantinha a casa da amiga cuidada para
também será remunerada pelo serviço. Manoel comovido diz a que quando voltasse a encontrasse em ordem, Maria deu um
Juvenal não sei como poderei retribuir toda essa ajuda, mas farei abraço na amiga lhe agradeceu por manter sua casa tão bem
o possível para lhe servir e serei com certeza seu fiel criado e cuidada. Quando conversam ela fala a amiga o quanto a vida
Juvenal lhe diz você é um grande amigo e estou feliz por ter deles melhorou com a ida para acidade do quanto o amigo
vocês aqui comigo. Juvenal fez por eles que não sabe se um dia vai poder retribuir
Após a conversa Juvenal segue caminhando pelo vasto tudo que por eles fora feito, que moravam em uma casa
jardim relembrando momentos felizes com o filho e a esposa seu confortável e trabalhavam para Juvenal com uma boa
coração se encheu de tristeza e as lágrimas voltaram a escorrer em remuneração, que Julia fez a cirurgia por ele paga e que agora
seu rosto naquele instante melancólico o sentimento de culpa lhe estava bem, enquanto elas conversam Antonio segue com
atormentava nesse dia ele vai ao cemitério orar por eles e pede Juvenal para o encontro com seus amigos que quando os vê vem
perdão. todos ao encontro de Antonio e matam a saudade e Juvenal os
Quando chega em casa, o menino Antonio vai ao seu encontro e observa e sente que precisa fazer algo por aquelas crianças e antes
lhe da um abraço que para Juvenal foi um acolhimento que lhe de retornar a cidade ele procura a professora Helena que o recebe
acalmou o coração sofrido, Antonio passou a ocupar um espaço na escola, ao conversarem Juvenal pergunta o que poderia fazer
importante na vida de Juvenal que se apegou aquela família para ajudar aquela escola e aquelas crianças? e ela lhe diz que
humilde a qual ele fez questão de ajudar. sempre desejou criar um Centro cultural onde as crianças
A menina Julia foi levada ao medico e fora dado inicio ao poderiam aprender coisas novas alem de ler e escrever poderiam
tratamento e uma cirurgia que fora necessária e Juvenal também ter outras atividades como aula de musica, e outras
providenciou para que tudo fosse feito e as despesas por ele foram atividades, despertar o interesse das crianças em aprender algo
pagas e tudo correu bem e a menina se recuperava. novo. Juvenal gosta da idéia e diz a professora Helena que vai
Em casa Manoel fala com a esposa que Juvenal fora um anjo que apoiá-la e que uma vez na semana será o contador de histórias e
Deus colocou no caminho deles e que sentia profunda gratidão.
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foi a partir dali que junto a escola nasce o Centro Cultural casam e vão morar na cidade, mas Helena não queria se afastar
Andorinhas mantido por Juvenal e seus amigos empresários . totalmente da escola e algumas vezes na semana ela ia ao vilarejo
Antonio abraça Juvenal e diz que esta muito feliz por tudo na escola que tanto amava estar com as crianças, e foi em uma
que ele esta fazendo pelo vilarejo e Juvenal lhe diz, eu me dessas idas que ela sente um mal estar e quando retorna para casa,
comprometi a ser o contador de historia e você será meu ajudante ela fala com Maria que lhe prepara um chá, e lhe diz minha
e assim uma vez na semana eles iam a escola do vilarejo e as querida acho que esse mal estar pode ser algo bom eu sentia esse
crianças aguardavam ansiosas pelo contador de histórias. Helena mesmo mal estar na gravidez de meus filhos. Quando Juvenal
observa aquele momento encantada por aquele homem tão soube do mal estar da esposa a levou ao medico da família ao ser
generoso. Com o passar do tempo Juvenal sente despertar em seu examinada o medico lhes diz tenho quase certeza que sua esposa
coração um novo sentimento Helena o faz sentir o que a muito esta grávida, mas vou pedir um exame e confirmar, mas creio que
não sentia e o que jamais imaginou sentir novamente por outra estou certo. Juvenal fica muito feliz com a noticia ao chegarem
mulher, aquele sentimento da um novo sentido a sua vida. em casa contam a família de Manoel a novidade.
Antonio percebe o interesse de Juvenal pela professora e fica Quando o exame confirma a gravidez, passado um tempo
muito feliz. descobrem que é uma gravidez de gêmeos Clara e Mateus. No dia
No Centro Cultural chega um piano e alguns instrumentos do parto os pais de Helena fazem questão de estar presente e se
que foram doados por empresários e se inicia as aulas de musica e hospedam na casa filha que no outro dia baixa o hospital para
também de dança e Helena não se contem de tanta alegria seu ganhar os filhos. No hospital após a cesariana Juvenal se
sonho se realizava. emociona ao olhar para os filhos seu coração parecia saltar do
Quando Juvenal fala com o irmão sobre a professora peito de tanta felicidade, os pais de Helena dão os parabéns a
Helena seus olhos brilham e Carlos percebe o quanto aquela Juvenal também envoltos por grande emoção e felicidade, quando
mulher é importante para o irmão e diz a ele que refaça sua vida estão com Helena falam que as crianças são lindas que é um
meu irmão e forme uma nova família e seja novamente feliz. presente de Deus para alegrar suas vidas, Helena era filha única e
Quando Juvenal retorna ao vilarejo procura a professora Helena e seus pais não se continham de tanta felicidade com a chegada dos
lhe fala do que senti por ela e ela o retribui dizendo que esperava netos. Carlos também vai ao Hospital conhecer os sobrinhos.
aquele momento, a partir daquele dia uma nova historia se dava Helena fica us dias no hospital e com ela fica sua mãe
inicio . Juvenal é convidado por Helena para jantar em sua casa e Sandra e quando vão para casa a família de Manoel os aguarda
conhecer seus pais, no jantar ele é apresentado a Sandra e Pedro, ansiosos, nesse dia Juvenal diz a Manoel estou tão feliz meu
nesse jantar ele fala das intenções para com a filha deles, fala de amigo, Deus é generoso ao colocar em meu caminho Helena e
seus sentimentos e gostaria de com ela se casar e refazer sua vida. agora nossos filhos a felicidade novamente em minha vida.
Antonio quando soube ficou muito feliz, pois tinha Manoel lhe da um abraço e lhe diz; o senhor merece é um homem
adoração pela professora e por Juvenal. Passado um tempo eles se bom e ainda vai ser muito feliz com sua nova família. Juvenal fica
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uns dias em casa com a mulher e depois retorna ao trabalho seu Os anos se passaram e na varanda de sua casa Juvenal
irmão Carlos o aguarda na empresa para tratarem de negócios. observa os filhos brincando no vasto jardim o cão faísca já velho
No outro dia Juvenal se comprometeu de levar os sogros os acompanha junto com Leca a nova cachorrinha presente do tio
de volta ao vilarejo e após deixar os sogros em casa, ele vai ao Carlos. Helena senta ao lado do marido e conversam ela diz;
Centro Cultural Andorinhas que ficara aos cuidados da professora nossos filhos já estão crescidos como o tempo passa rápido, e
Rita amiga de Helena que havia sido encarregada de cuidar para Juvenal lhe diz; parece que foi ontem que os agarrei tão frágeis,
que tudo seguisse como fora combinado. E Juvenal ficou feliz ao eu tinha até medo de pega-los no colo.
ver que tudo seguia bem. Nesse mesmo dia na casa de Maria os filhos já moço Antonio
Após um tempo quando retornam ao vilarejo Helena fez questão falava a mãe sobre a formatura e como seria a cerimônia, e Julia
de levar os filhos para mostrar a amiga e também as crianças que dizia que na festa ela iria tocar uma musica linda para o irmão. No
ficaram todas em volta admirando os gêmeos. Juvenal diz a todas dia da formatura Antonio era o orador da turma suas palavras
hoje trouxe nova historia que tal se sentarem para escutar, tocam profundamente a todos e finaliza falando do quanto era
enquanto isso Helena fora visitar os pais e Antonio lhe grato a seus pais e também a Juvenal que o ajudou a realizar seu
acompanhou levando uma das crianças ao chegar lá Sandra vai ao sonho de ser advogado.
portão encontrar a filha e grita para o marido venha ver quem esta Na festa de formatura Julia toca ao piano a musica
aqui e Pedro vai imediatamente ao encontro delas. A felicidade preferida de seu irmão, os pais de Antonio orgulhosos e gratos a
fazia parte daquele momento e assim era sempre que Helena os Juvenal que logo é abrasado por Antonio que lhe diz, foi graças a
visitava. tua ajuda que me formei quero um dia poder te retribuir e Juvenal
O tempo fora passando e tudo se transformava o Centro lhe diz só quero que trabalhes comigo na minha empresa e me
Cultural Andorinhas se tornou um lugar de muito aprendizado ajude nos negócios. E assim fora feito Antonio passou a ser um
tinham professores voluntários que iam dar as aulas de musica, dos homens de confiança de Juvenal e o ajudava na parte de
dança e teatro. exportação. Carlos também confiava muito em Antonio os
Na cidade Juvenal fez questão de pagar os estudos de negócios prosperavam cada vez mais e a vida que antes era tão
Antonio que desejava cursar direito e trabalhar com ele, Julia difícil passou a ser mais leve a família de Antonio poderiam
adorava musica aprendeu a tocar piano e dizia que queria ser desfrutar mais a vida sem tantas preocupações em relação ao
professora como Helena. futuro os seus filhos estavam bem e se encaminhavam para uma
Manoel e Maria seguiam fiel ao amigo ao qual eram gratos vida melhor e a gratidão de Manoel por tudo que por ele fora feito
por tudo que por eles fora feito, A ajuda de Juvenal nunca fora o manteve sempre perto e fiel ao amigo Juvenal.
esquecida e a gratidão era o que sentiam daquele homem integro e Na varanda da casa Juvenal se senta como sempre fazia e
generoso. ali ele e Manoel ficam conversando enquanto as crianças corriam
brincando pelo vasto jardim. Juvenal os observa e diz ao amigo
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olha como meus filhos já estão crescidos é através deles que vejo Sandra fica morando com a filha definitivamente e Juvenal fica
que já estou ficando velho, estive pensando e acho que vou ficar feliz porque assim ficam mais tranqüilos.
mais por casa já trabalhei tanto, quero desfrutar um pouco mais a O tempo dedicado a família deixa Juvenal mais feliz é
companhia de minha família, agora tenho Antonio para me ajudar como se quisesse aproveitar cada momento.
no trabalho. E assim Juvenal fez, deixou em seu lugar na empresa Em uma festa da empresa Carlos apresenta a Antonio a
Antonio a quem ele tinha total confiança.. filha Cristina que estava estudando economia no exterior, a jovem
Era também na varanda de sua casa que ele muitas deixou Antonio encantado e ele não conseguia disfarçar seu olhar
histórias contou a seus filhos, nesse momento ele se sentia mais de admiração e Juvenal ao perceber o interesse de Antonio lhe diz
próximo dos filhos. Helena estava feliz pela decisão do marido. minha sobrinha é uma bela mulher, percebi que ficou interessado
Algumas vezes ele ia a empresa, mas a maioria das vezes ficava acho que formariam um belo casal. Em um outro dia na empresa
por casa com a esposa e os filhos. Antonio e Cristina se encontram e saem para almoçar juntos nesse
Em uma tarde Helena recebe a triste noticia da morte de dia percebem suas afinidades e de ambas as partes o desejo de se
seu pai, ela e o marido vão ao vilarejo para providenciar o funeral conhecer melhor e Antonio fala com os pais de Cristina e deram
de Pedro, as crianças Helena preferiu deixar em casa aos cuidados inicio ao namoro e mais tarde o casamento.
de Maria, ela queria que elas ficassem com as boas lembranças do Julia se dedicou a musica e foi em uma apresentação que
avô. Após o funeral Helena diz a Juvenal que vai ficar uns dias conheceu Roberto e também acabou se casando e morando em
com a mãe, que ele cuide das crianças, com a mãe ela ficou nesse uma outra cidade, onde mais tarde se formou professora como
momento tão difícil, os dias em que ali ficou ela convenceu a mãe Helena.
a ficar um tempo com ela na cidade. Manoel e Maria seguiram morando na casa cedido por
Quando chegam a casa na cidade as crianças correm ao Juvenal ali quiseram permanecer como parte daquela família que
encontro da mãe e da avó e logo perguntam pelo avô, as duas se tanto os ajudou, Manoel tinha grande consideração por Juvenal e
olham e Helena lhes diz que o avô não pode vir com elas, depois sua família e quis ali permanecer por gratidão servindo ao amigo
ela explica aos filhos que o avô não vai mais estar entre eles que como sempre fez.
ele está no céu com as estrelas e que sempre que sentirem Juvenal andava demonstrando um certo cansaço e Helena
saudades rezem por ele que ele estará escutando. insistiu para que fosse ao médico de sua família investigar, após
Clara pergunta ao pai porque as pessoas vão para o céu e alguns exames o doutor Vicente pede para falar com Helena antes
viram estrelinhas? Vendo a curiosidade da filha Juvenal pensou de falar com Juvenal ele diz a ela que o coração de Juvenal esta
como poderia explicar o que para ele fora tão difícil de superar as fraco por isso o cansaço, as recomendações e para que não faça
perdas. Então ele diz a filha que as pessoas são chamadas por esforços, receita remédios e uma dieta que precisa ser seguida,
Deus quando for a hora de partir, mas que elas ficam vivas no quando chega em casa ela não deixa transparecer sua
nosso pensamento e elas sabem disso quando oramos por elas. preocupação. No outro dia Helena fala com Manoel e Maria e
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lhes conta da conversa que teve com o doutor Vicente e que No Centro Cultural Andorinhas ela não ia com a mesma
escondera do marido a gravidade de sua doença. freqüência não queria ficar longe do marido nem dos filhos.
Sandra estando a par de tudo tenta tranqüilizar a filha, mas Juvenal por ordem médica ficava só por casa seguindo as
Helena seguia preocupada. orientações do médico. Passado um tempo Juvenal pede que
Na varanda da casa Juvenal observa os filhos que estão no Manoel chame Antonio que ele gostaria de conversar com ele,
jardim com amigos eles já iam fazer quinze anos a festa já estava quando Antonio chega Juvenal pede a Helena que os deixe a sós e
programada tudo organizado por Helena com a ajuda de Maria e com ele começa a falar , eu me sinto cansado e sei que de uma
Sandra, o jardim foi decorado por Manoel. E tudo estava como foi hora para outra posso partir eu queria te fazer um pedido, se algo
programado. Clara e Mateus estavam realizados com eles todos os acontecer comigo que olhe sempre por minha família depois que
amiguinhos preenchiam aquele enorme jardim e Julia se eu não estiver mais aqui, cuide dos negócios da família eu tenho
encarregou de alegrar a noite, onde ela tocou e cantou como total confiança em ti, Antonio diz a Juvenal que sempre será grato
sempre gostou de fazer. Antonio estava presente com a Mulher por tudo que ele fez por sua família e que sempre poderá contar
Cristina e seu filho Artur já com três anos. com ele, que o tem como sua própria família.
Carlos se aproxima do irmão e lhe diz; a festa esta linda Antonio quando fala com seus pais deixa transparecer sua
teus filhos crescidos eu e Sonia já somos avós, o tempo passa preocupação com o estado de saúde de Juvenal.
rápido e nos surpreende. Juvenal concorda com o irmão e diz eu No jardim com os filhos Juvenal também conversa
que pensava que era o fim para mim com a perda de Luiza e recordando o tempo em que lhes contava histórias assim como
Gustavo tive nova oportunidade de amar e ser feliz novamente fazia com as crianças da Centro Cultural Andorinhas diz; a eles, o
com Helena e meus filhos Clara e Mateus, Deus é generoso e tempo passa e as crianças crescem e buscam outras histórias, mas
também colocou em meu caminho a família de Manoel que fora no fundo eu sei que plantei uma semente. Ser um contador de
muito importante para o meu retorno a cidade por isso sempre fiz historias é como semear a semente na mente dos pequeninos e
questão de ajudá-los e gosto e confio muito em Antonio ele esta essas vai lhes despertar o gosto pela leitura lhes mostrando novos
se mostrando muito importante para a empresa junto com horizontes, Juvenal da um beijo em Clara e Mateus e lhes diz amo
Cristina, acho que agora podemos descansar e ter mais tempo tanto vocês nunca se esqueçam disso. Helena os observa e sente
para nós. Carlos concorda com o irmão a empresa tem prosperado um aperto no peito e uma angustia.
na parte de exportação com Cristina e Antonio a frente dos Passado uns dias Antonio vai lhes visitar e diz a Juvenal lhe
negócios. trouxe um presente e sei que vai gostar era um belo livro, Antonio
A festa ocorreu como fora planejada e todos estavam fica um pouco com ele e segue para a sua casa onde sua família o
muito feliz. Helena ficava sempre atenta ao marido sua saúde aguardava.
frágil a preocupava. Pela manha Juvenal diz a Helena vou me sentar no jardim
pegar um pouco de sol e ler o livro que ganhei de Antonio,
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sentado no jardim Juvenal ao ler algumas páginas se lembra de ORIGEM CIGANA


seus momentos de tristeza e também os momentos felizes uma
emoção lhe invade o peito ele observa tudo em sua volta e uma Na França ciganos foram perseguidos e mortos, após o rei
brisa gelada toca seu corpo, um aperto no peito e tudo silencia. acreditar que eles traziam o mal para seu povo, em praticas de
Após Helena mandar os filhos para a escola ela vai até o feitiçarias.
marido levar seus remédios e o encontra já sem vida, em suas Era uma tarde como outra qualquer os ciganos dançavam
mãos o livro que fora presenteado por Antonio intitulado O em volta de uma fogueira quando ao anoitecer foram
Contador de Histórias. surpreendidos por homens a cavalo com armas, eram comandados
por um homem com vestias negras e também uma mascara que
lhe cobria o rosto.
A cigana Marta pega no colo a neta Sara e corre para
protegê-la, entra na mata e se esconde, Marta sente a dor de seu
povo, cada corpo que caia ao chão era como se o seu também
fosse ferido. Após toda aquela matança Marta chora andando ao
meio dos corpos caídos ao chão, onde encontra a filha Mara
também morta, Marta recolhe alguns objetos antes de serem
consumidos pelo fogo e segue com a pequena Sara.
Marta vagou pela cidade, muitas portas se fecharam para
ela que já exausta carregava a menina que chorava muito de fome,
nesse momento uma mulher chamada Loise, comovida lhe da
alimentos e leite para a menina.
Marta vagou pelas ruas, algumas pessoas lhe olhavam com
compaixão, outros com desprezo, mas Marta não se deixou abalar
seguiu firme, ela sabia que tudo estava em seu destino e que não
iria fraquejar, precisava cuidar da neta, era o que restara de sua
filha Mara.
Passado alguns dias Loise a encontra novamente naquela
triste situação, Loise então a convida a ir a sua casa, chegando lá
lhe diz que podem tomar banho e depois se alimentar, da roupas
limpas e diz vista esse vestido os ciganos não são bem vistos por
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aqui, vestida assim não te reconhecerão, será melhor para a Loise era mulher boa e sensata, não gostava de injustiça,
senhora e a menina. Marta lhe agradece e pergunta por que nos ela e o marido tinham diferenças no modo de pensar, mas essas
ajuda se sabes que não somos bem vindos, podes ser punida por diferenças não abalavam o amor que Felipe sentia por ela, suas
isso, Loise lhe diz: não tenho nada contra teu povo, não fui a vontades eram feitas, Loise passou a ter tudo o que desejava, mas
favor de tanta morte, sei que morreram muitos inocentes, acho todo aquele luxo não era o que julgasse ser o mais importante, ao
que ninguém tem o direito de tirar a vida do outro sem que tenha passear com o marido ela observava as pessoas, sentia pena da
feito mal algum. pobreza, sentia em seu coração que algo poderia ser feito para que
Marta agarra a mão de Loise e lhe diz: tem um bom todos tivessem uma vida melhor, e usou a influencia do marido e
coração e Deus te recompensara com coisas boas em tua vida, e criou uma sociedade, onde foi proposto ao povo do campo que
prevê que após uma viagem ela se tornaria importante, que sementes seriam fornecidas para que fossem plantadas e após a
surgiria um homem poderoso que por ela iria se apaixonar e a colheita fosse devolvida com uma pequena porcentagem a mais a
tornaria sua esposa, e após sua morte toda a fortuna que ele seu investidor, assim ninguém sairia perdendo e ela dava a
possuísse a ela pertenceria. Loise apenas a escuta em silencio e se oportunidade de o povo ter sua renda através do plantio. Felipe
lembra que realmente fará uma viagem. deu apoio a idéia da mulher e percebera a admiração que o povo
Após se despedirem Marta lhe agradece a hospedagem, passou a ter por ela, sua iniciativa de acabar com a pobreza a
Loise lhe dá moedas para que compre alimentos e lhe diz: tenho deixou mais perto do povo que passou a admira-la, por onde
uma propriedade no outro lado da cidade, lá tem uma pequena passavam seu nome era clamado.
cabana, acho que é seguro se quiser lá ficar com a menina. Loise Enquanto isso na pequena cabana cedida por Loise estava
lhe entrega a menina que esta em seu colo dizendo, espero que Marta com suas lembranças do acampamento, das festas
fiquem bem. Marta não tendo onde ficar aceita ir para a cabana promovidas por seu povo, tudo vinha a mente de Marta, a filha
com a neta, então um empregado de confiança de Loise a leva até Mara dançando em volta da fogueira, tanta alegria, e naquele
o local. Ao chegar lá Marta ajeita tudo, ali ela tinha água em momento só lhe restara as lembranças de uma época feliz. Marta
abundancia e poderia cultivar alimentos, alguns mantimentos o se sentia triste por ter de se esconder, como se tivesse feito algo
empregado de Loise fora encarregado de levar para que nada lhes de errado, mas o que seria errado manter a cultura de seu povo,
faltassem. ela se conteve para proteger a neta, mas dentro de si, seu coração
Loise faz a viagem e o tempo em que esta fora conhece cigano não renegaria seu povo, algumas vezes ia a cidade com a
Felipe, homem poderoso e influente na Espanha, dono de grandes pequena Sara, fazia pequenos serviços por algumas moedas, nos
propriedades de terra, ele se apaixona por ela e lhe propõe lugares por onde passava, ela também fazia a leitura das mãos e
casamento. Nesse momento ela se lembra das palavras de Marta. previsões por dinheiro, mas tudo escondido para que não fosse
O que fora previsto se confirma, Loise se torna uma dama da auto pega, também receitava chás e com eles muitas pessoas se
sociedade, o poder do marido lhe abriram portas. curaram de seus males. Marta tentava seguir os conselhos de
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Loise de não se vestir como cigana, mas seu modo de ser revelava darem um banho na menina e que providenciem roupas limpas,
sua identidade. nesse dia Sara se sente acolhida e percebe que o anjo branco de
Na cabana onde moravam, Sara vivia livremente ao meio suas visões poderia ser Loise.
da natureza, em sua volta sempre muitos pássaros e borboletas, e Ao retornar a Espanha Loise convence o marido a levar
no lago de água cristalina ela se banhava enquanto seus amigos da junto com eles a menina e criá-la, Sara passa a ser tratada como se
natureza a observam. fosse uma filha. Algumas vezes Sara fez previsões que deram a
Sara herdara da avó o dom da vidência, muitas vezes via Loise a certeza de que ela herdara da avó o dom da vidência, mas
imagens da cabana sendo invadida, onde sua avó era morta, essas Loise temia que algo ruim pudesse lhe acontecer se alguém
imagens a atormentavam, ela via também um anjo de branco que descobrisse esse dom.
lhe acolhia. O tempo passa e Sara se torna uma linda mulher, ela tinha
Em uma tarde ela tomava seu banho como sempre fazia, tudo o que desejava junto a família que lhe acolheu, mas algo não
mas ao escutar barulho de cavalos, sai da água e vai até a cabana e a deixava ser feliz.
ao chegar próximo ela encontra avó no chão ferida, Corre até ela e Loise após a morte de seu marido Felipe, resolve passar
avó lhe diz: se esconda não deixe que te peguem e nunca esqueça, um tempo na França e leva com ela Sara que ao percorrer as ruas
a magia viaja no tempo, esta em mim e em você, e permanecerá da cidade recorda do tempo em que ali viveu com a avó, uma
nos dias que fazem os anos se tornarem séculos, na eterna energia tristeza toma conta de seu coração, as lembranças doloridas lhe
que rege a vida e a morte. Nesse momento os homens retornam e vem a mente e a antiga ferida se abre. Em uma conversa com
Sara se esconde, eles gritam matem a bruxa, nesse momento Loise ela fala de tudo que sentiu ao percorrer as ruas da cidade,
cortam a cabeça de Marta e gritam ela está só, queimem tudo e ela Loise lhe abraça e diz: tudo precisa ficar no passado agora você é
também, Sara chora observando tudo. Esse dia deixou em Sara minha filha e para sua segurança que continue sendo assim.
marcas profundas. Sara sentia muita gratidão por tudo o que Loise havia feito
Loise chega à cidade a passeio e quando conversa com seu por ela, mas algo dentro dela gritava como se quisesse se libertar,
criado ele lhe conta, que a cabana fora invadida por homens era o sangue cigano percorrendo suas veias e despertando a
encapuzados e que tudo fora queimado. Loise pede que ele a leve liberdade contida. Nesse momento Sara pega seu cavalo e sai
ao local sem que o marido saiba. Ao chegarem lá ela vê tudo cavalgando por a propriedade de Loise, sentindo o vento tocar
destruído, triste ela percorre o lugar nesse momento ela avista a seu rosto e seus lindos cabelos negro. Foi em um desses passeios
menina assustada tentando se esconder. Loise se aproxima com que Sara encontra um acampamento de Ciganos que chegaram a
calma se mostrando amiga e pergunta por Marta, Sara chorando pouco tempo, acampados próximo a cidade, ela os observa e se
lhe responde que homens a cavalo mataram sua avó e lembra das histórias que sua avó Marta lhe contava de seu povo, e
queimaram junto com a cabana. Loise abraça a menina e lhe diz: suas origens se mostravam no encantamento em que ela os
cuidarei de você a leva junto para sua casa, ao chegar lá pede para observava. Ao chegar em casa Sara conta o que houve e Loise lhe
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diz: fique longe dos ciganos eu não quero que nada de mal te E quando Sara e Loise vão a França um jantar é oferecido,
aconteça. Frederik apresenta o pai Fredinan, Sara o olha nos olhos e vê uma
Os ciganos permanecem acampados por algum tempo escuridão e a imagem de seu povo sendo mortos, ela percebe que
próximos as terras de Loise, e Sara mesmo contrariando o pedido ele era o homem que comandou a perseguição aos ciganos, Sara
de Loise, sempre que pode observa os ciganos sentindo um passou aquela noite pensativa e distante, Frederik percebe que
encantamento difícil de controlar, em um desses dias ela é algo perturba sua amada, mas ela diz a ele que esta tudo bem,
surpreendida por uma cigana velha que sorri para ela e lhe diz: apenas uma pequena indisposição.
porque nos observas tanto, sei que aqui já veio outras vezes, sei Em casa Sara fala com Loise sobre o que viu e Loise sente
também que teu coração dispara no momento que nos observa. A medo da reação do pai de Frederik se souber que Sara é uma
cigana agarra a mão de sara e lhe diz: tu sabes e eu sei o porquê, cigana.
tu tens nas veias nosso sangue, um dia estarás na frente de nosso O tempo em que fica na França, Frederik faz questão de
inimigo, mas cuidado poderá morrer por ser como nós, um povo desfilar com Sara pela cidade e a cada dia se sente mais
livre com sua crença e tradição, com o direito de ir e vir, devendo apaixonado por ela, Sara também passa a amá-lo como nunca
ser respeitado por todos e não visto como uma ameaça. Sara imaginou amar alguém, com Frederik ela viveu um amor livre,
guardou com ela as palavras da cigana. pois era assim que ela se sentia, e era justamente o que encantava
Ao retornar para a Espanha segue sua vida e com o passar Frederik o jeito rebelde e livre que Sara demonstrava, esse era o
do tempo se transforma em uma linda mulher que aos homens diferencial das outras mulheres que ele conheceu, ele se sentia
encanta. completo ao seu lado, muitas vezes com ela cavalgou pelos
Em uma festa ela conhece um jovem que visita a cidade campos se sentindo livre e feliz.
ele vem da França, seu nome Frederik. Quando ele a viu por ela Em um desses passeios ela o levou a antiga cabana onde,
se apaixonou, ele a tira para dançar e desejava que a musica não viveu com a avó e nas águas do riacho em que se banhava quando
chegasse ao fim para tela por mais tempo em seus braços. criança com ele se banhou, e a ele se entregou de corpo e alma, o
Quando retorna para França, não consegue tira lá do deixando ainda mais encantado ao ver seu corpo nu envolto
pensamento. Algum tempo depois ele retorna a Espanha, e a ela apenas pela água cristalina que destacava suas curvas, sua pele
se declara um homem apaixonado, Sara passa a sentir também morena.
algo a mais por Frederik que aos poucos a conquista, o jeito Em outro passeio Sara e Frederik encontram ciganos é um
rebelde e encantador de Sara deixa Frederik ainda mais dia de festa, eles são convidados a participar, Sara encantada diz
apaixonado, e quando ela dança para ele, seus olhos ficam fixos que aceita, Frederik não querendo contrariá-la concorda e aceita o
na amada, nesse dia ele a pede em casamento, mas Sara lhe pede convite, dançam misturando-se aos ciganos, nesse dia Sara se
um tempo para que se conheçam melhor. E Frederik as convida a sente em casa, ao anoitecer a festa parecia ainda mais alegre, no
conhecer sua família. clarão da lua e a luz da fogueira, deixava tudo mais encantador,
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quando vão embora agradecem e são convidados a voltar em um ela sempre o aguardava linda e perfumada e para ele dançava,
outro dia. No caminho para casa resolvem parar, é uma noite Frederik a observava encantado se sentindo o homem mais feliz
quente sentam-se e observam a lua, que naquela noite parecia daquela terra. Sara sentia que precisava aproveitar cada momento
ainda mais linda abraçados fazem amor e aguardam dia com seu amor, algo dentro dela lhe dizia que tudo acabaria em um
amanhecer. curto tempo, mas jamais o amor que sentiam.
Sara se sentia uma mulher feliz, nunca havia sentido por Novamente ciganos eram perseguidos no país, e Sara se
ninguém o que sentia por Frederik, mas algo lhe inquietava o lembrara de sua avó, tudo lhe vinha a mente os pensamentos a
coração, ela sentia sempre uma sombra a rondando e temia não só atormentavam. Nesse dia Frederik chega em casa preocupado e
por ela, mas pelos que amava. pensativo. Ele acabara de descobrir que seu pai era quem
Quando Sara chega em casa, Loise a espera bastante comandava a perseguição aos ciganos. Que o fantasma negro que
preocupada com seu sumiço, mas sara chega feliz e lhe conta o eles tanto temiam era seu próprio pai, ele descobriu isso ao ver o
que aconteceu, Loise sente um aperto no coração toda vez que pai colocando as vestias negras e também a mascara. Frederik
Sara diz, ter encontrado os ciganos. ficou chocado e com o pai falou que era contra tudo aquilo, que
Loise sente que devem voltar para a Espanha, mas Sara os ciganos tinham sua cultura, sua tradição, eram um povo livre e
diz que não ira acompanhá-la que deseja ficar, tem planos de isso deveria ser respeitado, mas Fredinan não deu ouvidos as
viver com Frederik e quer que ela os abençoe. No fundo de seu palavras do filho, tinha ódio em seu coração, ele acreditava que os
coração Loise sabia que não poderia mudar o destino, só lhe ciganos traziam o mal e a destruição para seu país, mas na
restara abençoar Sara e Frederik assim ela o fez. realidade o mal estava com ele e não com quem ele julgava
Sara sentia que precisava contar a Frederik de sua origem, inimigo.
e para ele abriu seu coração lhe contou tudo sobre sua vida, ele a Fredinan era um homem amargo, passou a odiar os
abraçou forte e lhe disse, não me importo amo você, mas não diga ciganos desde o dia em que a sua mulher o deixou por um deles,
a mais ninguém o que me contou agora entendo porque me levou ele acreditara que eles usaram a magia para encantá-la e fazer o
até os ciganos. Eu não penso como os outros admiro o modo livre mal, ele amava a mulher e não suportou perde-la para um cigano.
como vivem, espero que um dia isso seja respeitado. Então ele colocou as roupas negras, e atacou o acampamento com
O que Frederik não imaginava era que um dos seus homens com a ordem de matar a todos inclusive a mulher
responsáveis pela perseguição aos ciganos fosse seu próprio pai. que tanto amava. Depois desse dia ele passou a ser chamado pelos
Com o passar do tempo ele descobre isso. ciganos de o fantasma negro da morte. Também fora ele que
Sara quis morar com Frederik no mesmo lugar onde, matou Marta a avó de Sara.
morou com sua avó Marta, ali foi feita uma linda cabana, presente Frederik temia contar a Sara tudo o que descobriu sobre
de Loise e foi ali que Sara e Frederik viveram a mais linda seu pai, ele tinha medo de perdê-la. Não sabia ele que Sara já
história de amor. Ele contava as horas para chegar em casa,onde havia percebido que fredinan era o inimigo de seu povo ao
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enxergar sua alma negra. Nesse momento ela se aproxima de


Frederik, uma luz os envolve, um momento de paz toca seus
corações e Sara lhe diz: não importa o que aconteça te amarei
eternamente, Frederik a abraça apertado junto a seu peito. O amor
e a bondade de Sara aquietara o coração de Frederik, e Sara
também quando com ele estava conseguia esquecer mesmo que
por instantes, a revolta por tudo que fora feito ao seu povo. Ela
queria apenas com ele ficar e ser feliz.
Frederik temeroso diz a Sara que quer morar na Espanha
perto de Loise, Sara concorda, mas antes de irem pede a Frederik
que a leve a uma festa de casamento que os ciganos darão onde
eles foram convidados, Frederik vendo a empolgação de Sara não
consegue dizer não. Ela se arruma coloca um lindo vestido e vai
com Frederik a festa. Ao chegar lá são recepcionados com
musica, dança e muita alegria em volta da fogueira, mas der
repente o acampamento é invadido, por homens a cavalo atirando
em tudo o que viam pela frente, Sara é atingida e cai nos braços
de Frederik que grita não façam isso, nesse momento ele vê seu
pai, que fica espantado ao ver o filho ali, seus homens também
nele atiram pensando ser um cigano, ele cai sobre o corpo de
Sara, Fredinan fica sem entender o que eles faziam ali.
Uma luz azul envolve os corpos de Frederik e Sara é o
momento de partir. Com Fredinan ficou a dor pela morte do filho.
Com Loise a saudade e a certeza de que não poderia mudar o
destino.

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