Ii Cinab, Vii Siala E Iv Cnab: Direitos Humanos e Políticas Públicas GT1 Africanidades e Brasilidades em Literaturas e Linguística
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Meu contato com a poesia de Ana Paula Tavares – ou, simplesmente, Paula
Tavares, como tantas vezes se prefere chamá-la – se iniciou num episódio de natureza
quase que absolutamente circunstancial: em vista da necessidade de abordar o contexto
literário africano na última disciplina de literatura da Licenciatura em Letras do Ifes,
consultava o valioso apanhado que Maria Nazareth Soares Fonseca e Terezinha Taborda
Moreira oferecem em “Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa” (2007)
quando, no deslindar dos comentários acerca da produção literária angolana, dei com “O
mirangolo” – um dos poemas que virão a ocupar a medula deste ensaio:
Testículo adolescente
purpurino
corta os lábios ávidos
com sabor ácido
da vida
encandesce de maduro
e cai
submetido às trezentas e oitenta e duas
feitiçarias do fogo
transforma-se em geleia real:
ILUMINA A GENTE.
1
Doutor em Letras; Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória; lucasdospassos@hotmail.com.
2
Mantive, propositalmente, a transcrição feita pelas autoras no referido texto, que ignora os recursos
espaciais da edição analisada a seguir.
de Tavares do conjunto de versos que vinham sendo apresentados pouco a pouco. De
imediato, chamou-me a atenção o fato de não haver a marcação nítida de uma primeira
pessoa do discurso (tampouco a primeira pessoa do plural, como acontece com o “nós” de
“Subpoesia”3, poema de José Luís Mendonça citado, no referido artigo, páginas antes); o
apelo ao material concreto e o acabamento plástico dos versos passou a me lembrar,
também, os ideais estéticos que regem a poética de João Cabral e acabaram influenciando
o design de palavra operado pelos concretistas. Tudo isso, diga-se – e isso dizem muito
bem as responsáveis pelo “Panorama” –, sem abandonar a natureza telúrica de uma trama
textual versificada que, com maior ou menor evidência, é depositária dos aludidos
“costumes da terra angolana” (idem, p. 48). Nesse sentido, o apagamento gramatical da
primeira pessoa do discurso mal esconde a “coletivização da voz” que Fonseca e Moreira
identificam, fazendo coro a observações de Inocência Mata (2001), na literatura de Angola.
À parte isso, o que se ressalta é que a urgência de um posicionamento ideológico do
discurso convive, lado a lado, com elementos de alta sofisticação estética – e, assim, o
impacto do poema não se dilui no ímpeto discursivo que poderia reificar a potência dos
versos transformando-os apenas em veículo de uma questão ética (não menos premente,
porém, que a informação estética).
Paula Tavares já tinha, portanto, ganhado inteiramente minha atenção quando fui à
cata de sua poesia reunida, que se publicou, em solo brasileiro, sob o título de Amargos
como os frutos – dado que por si só reforça a importância da metáfora frugal (assim como
o aspecto sensorial) para a poética da autora. A expectativa da leitura de Ritos de passagem
– obra em que se estamparam, pela primeira vez, os versos de “O mirangolo” – foi tanto
satisfeita quanto superada: aliados às ilustrações de José Luandino Vieira, que
acompanham os poemas na edição brasileira, os versos lapidares de Tavares não só se
desenvolvem integralmente segundo a natureza plástica notada no poema comentado há
pouco como se embebem de erotismo e dos tais costumes angolanos, de modo que o que se
tem em mãos é um grande livro de poesia – uma obra de estreia de monta. Contudo, com a
chegada da página seguinte à última de Ritos de passagem, em O lago da lua (volume
quinze anos distante do inaugural, que é de 1985), a contenção do estilo do primeiro livro é
parcialmente abandonada, abrindo espaço para poemas de aspecto mais caudaloso, versos
mais distendidos e, inclusive, para o surgimento de traços mais comuns ao texto lírico
3
“Subsarianos somos / sujeitos subentendidos / subespécies do submundo / subalimentados somos / surtos de
subepidemias / sumariamente submortos / do subdólar somos / subdesenvolvidos assuntos / de um sul
subserviente” (MENDONÇA apud FONSECA, MOREIRA, 2007, p. 45).
tradicional, como o que já se chamou de função emotiva – lembrando a definição de
Jakobson, lida por José Guilherme Merquior: “a lírica é a primeira pessoa do singular, no
tempo presente” (MERQUIOR, 1972, p. 11). Não é meu objetivo, aqui, avançar num
panorama crítico da obra de Tavares, mas essa última observação, confirmada nos
trabalhos seguintes da poeta (que viria, inclusive, a flertar com a prosa, nas crônicas de A
cabeça de Samolé), mais do que indicar um aprendizado poético ou uma mudança de
tendências estéticas, dá relevo ao primeiro livro – no qual me concentro nas seções
seguintes, embora, de início, precise me ancorar em outras vozes que puseram a poesia de
Paula Tavares em perspectiva.
II
4
“Frágil vagina semeada / Nela se alargam as sedes / Pronta, útil, semanal / no meio / cresce / insondável / o
vazio...” (TAVARES, 2011, p. 31).
parte do corpo [no caso, a vagina] traz uma pluralidade de leituras”; delas, destaca-se “o
aspecto visual, sensorial que o alimento desperta”, do que se passa “à outra instância da
imagem: a vagina, tal como o mamão, pode ser vista, tocada, provada – para irmos ao
limite, recuperando o termo vulgar, comida” (idem, p. 87). Isto é, na abordagem erótica do
corpo feminino, segundo a pesquisadora, existe a “presença oblíqua” de um outro,
responsável por instaurar uma atmosfera de tensão – fato que leva o poema, em verso
antilírico (e por isso mesmo prenhe de acidez crítica), a referir-se enfim à vagina-mamão-
mulher como “Pronta, útil, semanal”.
Se, para fechar a equação proposta por Carreira, mulher é poema, então poema é
corpo – e com isso retorno à questão inicial, que encontra eco em quase toda a crítica da
autora: a materialidade da escrita em Paula Tavares. O apreço da poeta pela arquitetura
textual, aliás, se depreende inclusive da própria estrutura de seu primeiro livro, que pode
ser lido como um projeto: “um caderno”, nas palavras de Inocência Mata (2011, p. 9),
“organizado em três andamentos (‘De cheiro macio ao tacto’, ‘Navegação circular’,
‘Cerimônias de passagem’), precedidos de um poema, ‘Cerimônia de passagem’, que lhe
impõe o ritmo iniciático”. Observa-se, assim, algo como um “processo de aprendizagem”:
são “ao todo vinte e quatro poemas, em que da percepção sensorial se passa à
contemplação conscienciosa e, até, à palavra performativa” (idem, ibidem). A alta
consciência da escrita, na concretude do (seu) corpo, é, portanto, patenteada pelos vários
níveis do livro – da macroestrutura à análise micrológica dos poemas, passando por sua
leitura topográfica, que abusa da espacialização como recurso visual por excelência 5 – e
pelas palavras da autora, no prefácio à antologia italiana de seus poemas (Cerimonia di
passaggio):
Não tenho muito o hábito de falar da poesia mas desde o início mantenho
com a terra e as coisas uma relação que passa pela palavra. Escuto as
vozes antigas que falam línguas muito belas cujos sons não entendo mas
que se gravam dentro de mim. Transporto-as durante um certo tempo até
passar para o papel e deixar espaço para que se gravem na pele outros
sons, outras palavras. O corpo é assim central no meu trabalho, é suporte
da leitura das águas, envelhece com os tempos de sofrer, permite o
espanto. (TAVARES, 2006, p. 6).
5
Comentando “Alphabeto”, poema também de Ritos de passagem, Laura Cavalcante Padilha (2000, p. 293)
toca a questão: “Ao brincar assim com o silêncio do branco, incorporando vazios às palavras escritas, a poeta
parece querer retomar um antigo preceito angolano, por ela resgatado em uma das crônicas e que diz: ‘Pode
ser que o silêncio seja a mãe da própria origem’”.
É assim – e por isso – que faço, a seguir, a leitura de “O mirangolo” e “A manga”,
dois poemas da seção “De cheiro macio ao tacto” de Ritos de passagem.
III
Os dois poemas que aqui analiso distam poucas páginas um do outro na obra em
que originalmente se publicaram (há, apenas, três poemas entre eles, como “O mamão”,
analisado por Lasevicius). Do cotejamento de ambos, numa rápida mirada, se confirmam,
evidentemente, os aspectos já ressaltados na poética de Paula Tavares. Todavia, a leitura
cerrada de um e de outro lança luz ainda sobre outras questões – como, no caso do
primeiro, a observação do corpo (adolescente) masculino, que mal oculta a voltagem
erótica com que a poeta tantas vezes apresenta também o feminino. Transcrevo novamente
o poema, agora mantendo o jogo espacial com que figura em Amargos como os frutos:
O MIRANGOLO
Testículo adolescente
purpurino
corta os lábios ávidos
com sabor ácido
da vida
encandesce de maduro
e cai
A MANGA
Fruta do paraíso
companheira dos deuses
as mãos
tiram-lhe a pele
dúctil
como, se, de mantos
se tratasse
surge a carne chegadinha
fio a fio
ao coração:
leve
morno
mastigável
o cheiro permanece
para que a encontrem
os meninos
pelo faro.
Figura 1 – A manga
6
Mesmo quando se insinua uma primeira pessoa em “O mirangolo”, ela é ambígua e plural: “ILUMINA A
GENTE”.
Não há uma divisão estrófica, nem marcações que indiquem passagem de tempo e
idade, como no primeiro poema; o processo é, aqui, de desnudamento em direção à carne,
e nisso se operam algumas aproximações prenhes de significação. Se o tratamento visual
do poema é patente, evidentes também são as referências aos outros sentidos –
respectivamente, tato, paladar e olfato – cada qual com sua própria trilha nos dezessete
versos. O primeiro, na imagem de mãos e mantos, é o que ocupa maior espaço, resgatando
o som central do título (“A manga”) e se desenvolvendo como o contato inicial com a fruta
(excetuando-se, lembre-se, o lance de olhos sugerido pelo aspecto divino descrito nos dois
primeiros versos do poema). Dedilhados os fios que compõem o manto da manga, alcança-
se o coração, e o tato cede, brevemente, lugar ao paladar (“leve / morno / mastigável”);
assim, em sutil alusão, volta à pauta a relação entre comer e sexo, que logo é completada
pelo apelo ao olfato: “o cheiro permanece / para que a encontrem / os meninos / pelo faro”.
Os caminhos de sedução da fruta são redesenhados pelo poema, que percorre o corpo da
manga induzindo a percepção do leitor. É assim que, com “O mirangolo” e “O mamão”,
“A manga” completa uma sequência de poemas em cujo título o [m] ressoa7, no miolo da
seção “De cheio macio ao tacto” de Ritos de passagem.
IV
Se, em Paula Tavares, como mulher é fruta e poema, poema também é corpo, o
corpo dos versos se delineia em carne, cheiro e imagem de frutos, de modo que se adensa a
configuração dessa dicção poética que Tania Macêdo (2011) já anunciou nova – inclusive
por não abandonar o dado local, que ponteia as páginas de Ritos de passagem tanto na
menção a costumes angolanos quanto na intensa referência vegetal. É esse detalhe, a
propósito, que leva Laura Cavalcante Padilha (2000, p. 297), em “Paula Tavares e a
semeadura das palavras”, a afirmar que, na obra em questão, “são os elementos da natureza
os significantes convocados para criar o quadro do desejo amoroso, e isso, é claro, pelo
fato mesmo de, em África, a natureza ser como o homem, dentro das regras do animismo”.
O desejo amoroso, em sua matéria concreta, é o que movimentaria, segundo Padilha, o
próprio poema, como se “quisesse, ao mesmo tempo, penetrar o sentido das coisas e ser
por ele penetrado, expandindo, assim o conhecimento de si próprio e delas” (idem,
ibidem). A poesia, para isso, se alia a seu aspecto mágico – para não dizer alquímico –,
7
Há, ainda, na mesma seção, “O matrindini” e “O maboque”, para não falar em “A abóbora menina”.
submetendo versos e leitores à prova de fogo dos olhos, dos ouvidos, do toque e do gosto,
com o que se experimenta alimento tão prodigioso quanto real.
Referências