Mídias Virtuais
Mídias Virtuais
Mídias Virtuais
Introdução
Nem sempre essas inovações tecnológicas alcançam o ambiente escolar, seja pela
falta de recursos, pelo interesse dos professores ou pela insuficiente formação destes. Mas, a
realidade nos mostra que a maioria dos estudantes tem acesso a estes recursos tecnológicos,
muitos se apropriam desses conhecimentos bem antes que nós adultos.
Neste sentido, este artigo relata a experiência da aplicação do projeto “O uso das
mídias informática e material impresso na aprendizagem dos alunos” realizado na
Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Antônio Bianco, localizada em Ji-Paraná,
estado de Rondônia, no ano de 2014. Vale ressaltar que a referida escola atende estudantes
do 1.º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Atualmente, a escola possui 726 estudantes o
projeto foi desenvolvido no primeiro e segundo semestre.
*
XII EVIDOSOL e IX CILTEC-Online - junho/2015 - http://evidosol.textolivre.org
1
2
Refletir sobre o papel das mídias hoje é remontar toda uma trajetória de inserção
dessas no contexto escolar, partindo inicialmente do ensino à distância - EaD que possibilitava
um estudo básico àqueles que não tiveram acesso aos meios de conhecimento da grande massa
popular no tempo adequado. Segundo Maia (2007), por volta do ano de 1934 foram instalados
aqui no Brasil os primeiros cursos a distância por correspondência, sendo o primeiro a atuar aqui
o Instituto Monitor, e anos depois surgiu o Instituo Universal Brasileiro.
O público alvo desses cursos eram pessoas que na grande maioria não tinham
disponibilidade de cursar as escolas regulares, por falta de tempo ou oportunidade. O Instituto
Monitor se especializou em ministrar cursos técnicos aos trabalhadores de empresas ou
autônomos que viam no curso a oportunidade de mudar de vida, já o Instituto Universal
Brasileiro tinha como ponto forte os cursos supletivos destinados àqueles que por algum
motivo não concluíram seus estudos no tempo adequado.
[...] a escola tem que formar cidadãos íntegros, comprometidos com o futuro do
planeta. Seres capazes de reconhecer as riquezas existentes nas diferentes
formas de ser, de pensar e de viver. Pessoas conscientes de que o crescimento
coletivo tem tanto significado quanto o seu crescimento pessoal e capazes de
interagir com a nova geração tecnológica (MERCADO, 2002, p.95).
2
3
Diante desse contexto, é preciso que a escola esteja preparada para utilizar as mídias no
processo de aprendizagem, para que possa inserir os estudantes no mundo mediatizado pelas
informações e inovações que surgem a todo o momento.
3
4
Os alunos estão cada vez mais dispersos, sem ânimo para as aulas, quando
propomos alguma atividade eles já dizem que não vão fazer, pois é difícil.
Pensando nisso comecei a inserir aos poucos as mídias nas minhas aulas,
comecei por levá-los ao LABIN para que eles tivessem acesso aos vídeos
disponíveis na página do MEC, mostrei jogos, vídeos e apliquei algumas
sugestões de aulas disponíveis na plataforma. Como estamos fazendo
oficinas de facebook e TV e vídeo temos realizados as tarefas que nos são
propostas com os nossos alunos. Isso nos permite abordar temas transversais
e outros assuntos do cotidiano dos alunos. (PROFESSORA A)
Foi proposto que os alunos pesquisassem sobre algum filme, eles escolheram o
filme “o Homem Aranha”, locamos o filme eles assistiram e depois eles
escreveram a sinopse do filme, agora na versão deles. Após o filme eles
observaram algumas cenas em que o Homem Aranha montava sua teia, depois
com barbante eles montaram a teia e observaram quais figuras geométricas
apareciam. Após essa primeira introdução ás figuras geométricas eles usaram
o draw para montarem as teias e depois fizeram um relato sobre a experiência
desenvolvida. (PROFESSORA B).
4
5
“No início o ano letivo trabalhou-se poemas com os alunos do 6º ano, primeiro
eles leram alguns livros de poema para que tivessem contato com o mundo da
literatura, após algumas aulas foram apresentado para eles textos que falavam de
grandes poetas brasileiros. Após esse contato com os poemas foi solicitado que
eles observassem a estrutura dos poemas e o que tinham em comum, após essa
análise começamos a selecionar materiais e informações para construirmos os
poemas que iriam concorrer na Olimpíada de Língua Portuguesa. O primeiro
passo para a construção dos poemas foi eles que escolherem sobre o que iriam
falar, por último foram levados ao LABIN para coletarem mais dados a respeito
do tema escolhido. Os alunos fizeram de quatro a cinco versões do poema ao final
a turma do 6° ano apresentou no momento cívico seus poemas e a comissão
escolheu três poemas para serem enviados a plataforma da Olimpíada de Língua
Portuguesa. O trabalho com a mídia impressa e com a informática foi de
fundamental importância para que os alunos tivessem acesso a outros poemas.”
Nem sempre o professor consegue atingir seus objetivos com o uso das mídias na
educação, seja por falta de recursos, seja pela falta de preparo é preciso ações governamentais
que subsidiem ao professor capacitação em serviço e material adequado e suficiente para se
trabalhar, mas há que se parabenizarem iniciativas exitosas de professores que mesmo em
meio a dificuldades têm desenvolvido um belíssimo trabalho.
Nesta turma, 42% dos estudantes e professores não tem nenhum contato com o
rádio, sendo que 35% usam todos os dias para estarem informados das notícias locais e 23%
usam de 2 a 4 dias, com isso percebemos que pouco se dá importância ao uso do rádio como
fonte de ferramenta pedagógica, há que se pensar em uma reformulação dos objetivos da
escola quanto a abordagem dessa mídia no âmbito escolar. Ao serem questionados sobre o uso
da internet, os estudantes relataram que 51% utilizam para pesquisas e trabalhos, 23%
utilizam para jogos e entretenimento e 25% não usam ou não tem contato com essa
ferramenta, mas percebemos que hoje a escola já tem utilizado bastante a mídia informática
para desenvolver as atividades desenvolvidas em sala de aula.
5
6
Diante dessa pesquisa podemos constatar que as mídias TV, material impresso e
informática são as que mais vêm sendo usadas no processo de aprendizagem dos alunos, mas
ainda necessita de mais direcionamento e capacitação dos professores quanto ao uso das mesmas.
Considerações finais
Com isso foi possível verificar que no âmbito da escola, os estudantes e docentes
utilizam com mais frequência a Tv a partir do uso do vídeo com fins didáticos para introduzir
ou aprofundar conteúdos, em relação à informática, os dados coletados permitem afirmar que
metade dos estudantes participantes evidencia que o uso desta ferramenta é direcionado
apenas para pesquisar temas solicitados pelos professores e a outra metade informou que
utiliza de forma aleatória.
Assim, foi possível verificar que há utilização de mídias na escola tendo em vista
as aprendizagens dos estudantes. No entanto, percebemos que há uma preponderância da
mídia material impresso, devido ao domínio do docente quanto a esta mídia.
Referências bibliográficas:
BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia – Educação. 2ª ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2005.
BRASIL. Ministério da Educação .Relatório da Comissão EaD. Brasília: MEC, 2002.
BRUNO; Almeida & Cristov.(org.). O coordenador pedagógico e a formação
continuada.11ª ed.São Paulo: Editora Loyola, 2009.
KRONBAUER & SIMIONATO. Formação de professores. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2008.
MAIA, C.; J. MATTAR. ABC da EaD: a Educação a Distância hoje. 1. ed. São Paulo:
Pearson. 2007.
MERCADO, Luís Paulo Leopoldo (org.). Novas Tecnologias na Educação: reflexões sobre
a prática. Macéio: Edufal, 2002.
FEILITZEN, Cecília Von; CARLSSON, Ulla (orgs.). A Criança e a Mídia: Imagem,
Educação, Participação. São Paulo: Cortez, UNESCO, 2002.
6
ISSN 2318-7085
Dossiê:
LITERATURA E DIÁSPORA
Organização:
Arlinda Santana Santos
Ivânia Nunes Machado Rocha
Luane Tamires dos Santos Martins
Selma Maria Batista de Oliveira
ISSN 2318-7085
Dossiê:
LITERATURA E DIÁSPORA
Organização:
Arlinda Santana Santos
Ivânia Nunes Machado Rocha
Luane Tamires dos Santos Martins
Selma Maria Batista de Oliveira
Fábrica de Letras
Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica)
Departamento de Educação do Campus II da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Ficha Catalográfica
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, do Programa de
Pós-Graduação em Crítica Cultural, da Universidade
do Estado da Bahia, Alagoinhas: Fábrica de Letras, v. 1, n. 1,
jan./jun. 2013.
Semestral
ISSN 2318-7085 online
Dossiê: Literatura e diáspora. Grau Zero: Revista de Crítica Cultural. Revista do Pro-
grama de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Alagoinhas, v. 4, n. 1, 2016.ISSN 2318-
7085 online.
Conselho Editorial:
Anna Paula Vencato (UNESP),
Arlete Assumpção Monteiro (PUC-SP)
Carla Moreira Barbosa (UFF)
Christina Bielinski Ramalho (UFS)
Dulciene Anjos de Andrade e Silva (UNEB)
Edil Silva Costa (UNEB)
Frank Nilton Marcon (UFS)
Juciele Pereira Dias (UFF)
Lauro José Siqueira Baldini (UNICAMP)
Lucília Maria Sousa Romão (USP)
Marcelo Alario Ennes (UFS)
Marilda Rosa Galvão Checcucci Gonçalves da Silva (UFMA)
Marildo Nercolini (UFF)
Maurício Beck (UFF)
Patrícia Kátia da Costa Pina (UNEB)
Paulo César Souza Garcia (UNEB)
Sônia Maria dos Santos Marques (UNIOESTE)
Pareceristas Convidados:
Ana Regina e Souza Campello (INES/UFSC)
Arivaldo de Lima Alves (UNEB)
Kátia Cilene do Couto (UFAM)
Maria Neuma M. Paes (UNEB)
Nícia Petreceli Eucolo (UFAM)
Orlando Luiz de Araújo (UFC)
Rafael Ferreira da Silva (UFC)
Roseli Barros Cunha (UFC)
SUMÁRIO
Apresentação 9
Arlinda Santana Santos
Luane Tamires dos Santos Martins
ENTREVISTA:
Carlos Moore: travessias de um pensador 239
engajado
14 | Literatura e diáspora
A DIÁSPORA SOB AS MARCAS DO NOVO ROMANCE
HISTÓRICO
1
Estudante de mestrado acadêmico na área de Literatura espanhola,
pela Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: dan.silva58@
gmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 15
of the new historical novel converge for representing
the diaspora, which corresponds to the long path
taken by Bento Teixeira in Ferreira’s narrative.
Keywords: New Historical Novel. Os rios turvos. Dias-
pora.
Introdução
Os rios turvos, romance de Luzilá Gonçalves Ferreira,
constitui-se numa narrativa em que as vidas do poeta brasi-
leiro Bento Teixeira, autor de Prosopopeia, e de sua esposa
Filipa Raposa são retratadas no primeiro século de coloniza-
ção brasileira. Nesse período, a Igreja Católica possuía emi-
nente influência sobre a colônia e é mediante tal contexto
que se constrói a biografia romanceada do poeta.
Bento Teixeira é um cristão-novo, ou seja, provém de
uma herança religiosa balizada na fé judaica e é convertido
ao catolicismo. A partir dessa condição, que rechaça qualquer
prática referente ao judaísmo, o poeta é julgado pelo Tribu-
nal da Santa Inquisição, acusado de cometer atos que condi-
ziam à crença do povo judeu. Atrelado a isso, a conturbada
vida do casal é narrada, em um enredo em que Bento e Filipa
estão em constante divergência. Apresentada como uma
mulher atraente, cobiçada e sedenta por satisfação carnal,
Filipa é acusada de adultério pelo próprio esposo até o ponto
em que ele comete uxoricídio.
O romance se desenvolve a partir da temática da do-
minação da igreja católica. Nele é possível se encontrar vá-
rios costumes do judaísmo que se estabelecem a partir de
práticas mantidas por Leonor Rodrigues, mãe de Bento. A
família do poeta imigra de Lisboa para o Espírito Santo, na
intenção de se distanciar da condenação da Santa Inquisição,
pois Leonor, ao contrário do marido, continua a seguir da
religião hebraica e
16 | Literatura e diáspora
[...] atravessando a linha equinocial, obliteravam-se
os antigos erros, e a lista imensa dos pecados mortais
e veniais ditada pela Santa Igreja de Roma se
apequenava e se afastava do olhar deles, até não ser
mais que um ponto perdido no horizonte.
— Nenhum pecado abaixo do Equador (FERREIRA,
1993, p. 67).
Mesmo inseridos em tal prerrogativa, atos e palavras
de Bento, considerados pecado pela Igreja Católica, não se
apagam com o tempo, ao contrário, constam no auto que o
condena à catarse, em Lisboa.
Com esse pano de fundo histórico em que é desenvol-
vida a narrativa de Luzilá, verifica-se o enquadramento de tal
romance no gênero de Narrativa Histórica (CUNHA: 2004).
Este gênero, segundo Milton e Spera (2001, p. 89) se consti-
tui por duas condições básicas: “A primeira é que se trate
realmente de romance, ou seja, de ficção, invenção. A se-
gunda é que a narrativa se fundamente em fatos históricos
reais e não inventados”. Assim, é possível corroborar a afir-
mativa de Cunha quanto ao gênero a que pertence Os Rios
Turvos, já que este é composto a partir da ação inquisitorial
da igreja católica no século XVI, além de narrar a biografia
romanceada de um poeta brasileiro.
No entanto, o Romance Histórico sofreu algumas mo-
dificações a partir da segunda metade do século XX, de acor-
do com MENTON (1993), assumindo um caráter inovador e
diferenciando-se como o Novo Romance Histórico, com seis
características peculiares: a representação mimética de de-
terminado período histórico que se subordina a apresentação
de algumas ideias filosóficas; a distorção consciente da histó-
ria; a ficcionalização de personagens históricos bem conheci-
dos; a metaficção sobre o processo de criação e a presença
de conceitos bakhitinianos de dialogia, carnavalização; paró-
dia e heteroglossia. Dentre elas, a intertextualidade é um dos
elementos que se apresentam de forma eminente na obra de
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 17
Luzilá — textos de Camões, Ovídio, Gil Vicente, entre outros
autores, estão inseridos no romance. Partindo deste princí-
pio, este estudo pretende discutir a questão da diáspora que
se representa no texto ficcional, com base nos aspectos ca-
racterizadores da Nova Narrativa Histórica existentes na obra
de Luzilá, buscando enfatizar a intertextualidade existente
no romance.
Intertextualidade
[...] nós os humanos só podemos retomar a matéria já
existente e transformá-la, emprestando a uns e a
outros seu engenho (Luzilá Gonçalves Ferreira, Os
Rios Turvos, VIII).
18 | Literatura e diáspora
A partir de determinados intertextos, as ações e pala-
vras de Bento Teixeira vão, paulatinamente, condenando-o
ao Tribunal da Santa Inquisição. O primeiro ato cometido
pelo poeta é fazer a tradução oral, do latim ao português, de
um excerto do livro do Deuteronômio. Traduzir textos bíbli-
cos era considerado uma heresia, contudo, Bento o fez sem
pensar que o feito poderia ser um agravante que viria a con-
dená-lo futuramente. Nesse caso a intertextualidade está
presente na fala de Leonor Rodrigues:
A frase ressoara na sala, o pai levantara a cabeça do
prato, a mão da mãe parou sobre um grão de lentilha.
Ela olhou com orgulho aquele mancebo saído do seu
ventre, que sabia traduzir os livros da Torá, que Javeh
ditara ao seu servo Moisés (FERREIRA, 1993, p. 29).
É relevante observar que a mãe de Bento, como segui-
dora do judaísmo, mesmo que de maneira velada, além de
considerar positivamente uma heresia cometida pelo filho,
faz com que ele, desde seus tempos remotos, seja influencia-
do pela crença judia, obrigando-o, por exemplo, a jejuar de
acordo com os preceitos da religião. É importante ressaltar
também como os nomes do excerto citado são transferidos
de uma fé a outra, construindo assim, uma maior coerência
no discurso indireto livre, já que o pensamento de Leonor se
confunde com a voz do narrador. Assim, o Deuteronômio não
é citado como um livro da Bíblia que Deus ditara a Moisés e
sim, é citado como livro da Torá — o principal texto do juda-
ísmo — ditado por Javeh.
Assim como a influência da mãe nos valores religiosos
de Bento são de extrema importância na obra, a remissão a
diferentes autores também se faz importante para que o
protagonista construa sua poesia. Bento deixa claro o seu
desejo de atingir o reconhecimento através de seus poemas e
várias remissões a distintos autores são feitas ao longo da
narrativa:
“Alma humana, formada
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 19
de nenhuma cousa feita.”
— Vês, Filipa, como em tão poucos vocábulos sugere
o poeta como nossa alma é completa em si mesma, e
se compõe do que antes não existia. [...] E Gil Vicente
o diz em sete vocábulos. [...] Um dia escreverei assim.
E as pessoas me lerão e respeitarão, com o respeito
com que lemos Gil Vicente (FERREIRA, 1993, p. 23).
Direta e indiretamente o romance de Luzilá alude a ou-
tros autores consolidando a constante presença da intertex-
tualidade na construção narrativa. É por meio dos textos de
Camões, Gil Vicente, Ovídio, que o drama se faz presente na
vida de Bento Teixeira. Este, quando está preso em Portugal,
ao ler os versos de Camões “Errei todo o discurso de meus
anos;/ dei causa a que a Fortuna castigasse/ as minhas mal
fundadas esperanças” faz uma reflexão sobre sua vida, como
filho, pai e esposo, concluindo que mediante suas atitudes e
palavras, ele se expôs às diversas pessoas presentes em sua
vida, de modo que seu discurso serviu de testemunho para
sua condenação — “Pela boca o peixe morre; por muito falar,
um homem se perde” (FERREIRA, 1993, p. 132).
Ademais, a utilização da intertextualidade ao longo do
enredo se mostra a fim de caracterizar a ideologia pertencen-
te à sociedade quinhentista brasileira no que diz respeito à
religiosidade. Não há simplesmente uma referência aos pre-
ceitos da fé católica. Atrelado a eles, a autora os torna explí-
citos nos diálogos das personagens para reforçar ao leitor e,
consequentemente, aproximá-lo do ponto de vista que se
tinha do judaísmo na época. Não havia espaço para os ju-
deus, eles pertenciam a uma classe fortemente rechaçada e o
preconceito a eles atribuído era repassado a outras gerações,
como fica ilustrado na fala de um amigo de Bento ao dizer “a
minha mãe disse que vosmecês são todos sujos. Que vosme-
cês mataram o Cristo. E que são todos porcos varrões, apara-
tos” (FERREIRA, 1993, p. 77).
20 | Literatura e diáspora
Sendo assim, ficam evidentes as mudanças de espaço
existentes ao longo do enredo, numa representação ficcional
da diáspora. Primeiramente Bento vem com sua família para
o Brasil, depois, em terras brasileiras, o poeta se desloca por
diferentes cidades para, ao fim da história, retornar a Lisboa,
preso pelos braços da Inquisição que “são como braços de um
polvo” (FERREIRA, 1993, p. 49):
A detenção não lhe fora uma surpresa. De fato,
aguardara por ela a vida inteira, e não só sua vida
inteira, mas nele dezenas de gerações habitavam que
haviam vivido sob o medo da prisão, de um castigo
qualquer. Porque eram uma diáspora, porque não
eram de país nenhum e aonde fossem carregavam o
peso do desenraizamento, da dispersão — o que os
tornava, no mais das vezes, unidos entre eles e se
reconheciam de longe, como abelhas (FERREIRA,
1993, p. 188).
A intertextualidade, então, torna-se elemento essenci-
al para o conjunto do contexto em que a vida de Bento Tei-
xeira se insere sendo ele um cristão-novo. Por meio das pas-
sagens bíblicas existentes no romance é possível
compreender os motivos que levam o autor de Prosopopeia à
condenação, já que tais excertos surgem na narrativa a fim
de salientar e explicitar os dogmas do catolicismo, que res-
tringia drasticamente o modo de vida dos cristãos.
22 | Literatura e diáspora
ao Quinhentismo brasileiro — o que nos remete à discussão
acerca da diáspora que se apresenta na obra.
Sabe-se que Bento Teixeira foi um poeta brasileiro, au-
tor do poema épico Prosopopeia, mas as informações a seu
respeito, contidas na narrativa de Luzilá, não devem consti-
tuir um estudo factual de sua vida. A partir dessa perspectiva,
evidencia-se o terceiro atributo acerca do Novo Romance
Histórico, indicado por MENTON (1993): “A ficcionalização
de personagens históricos bem conhecidos”.
No dia em que Bento ousara [...] mostrar os primeiros
versos da Prosopopéia, que tantas horas insones lhe haviam
custado [...] haviam zombado:
— És mesmo um bom leitor de Luís de Camões
(FERREIRA, 1993, p. 122).
A desconfiança do leitor, Antonio Madureira, em rela-
ção à autenticidade na escrita de Bento, sugerindo a influên-
cia de Camões em seu épico, ocasiona um grande compro-
metimento ao poeta: este jura “pelas partes de Nossa
Senhora” (FERREIRA, 1993, p. 122) não ter lido Camões no
período próximo à escrita de Prosopopeia. Das diversas frases
pronunciadas por Bento, certamente essa foi a que lhe cau-
sou maiores danos em todo o enredo. Sua intenção era com-
provar que havia lido Camões em tempos antecedentes ao
seu escrito e não próximo à composição que realizou estan-
do, assim, isento de um suposto plágio. Após esse ocorrido,
um de seus amigos, Bartolomeu Ledo, fala sobre o risco que
o poeta corre ao não ter cuidado com as palavras que diz, e
expõe seu juízo a respeito da Inquisição:
— Bento, a Inquisição é insaciável, como uma raposa
sempre faminta. E mesmo quando saciada, não
hesita em apanhar um pinto como tu. Justo para
fazer lembrar seu poder sobre ti, sobre todos os
homens. Ou para que sirvas de exemplo para os
outros (FERREIRA, 1993, p. 125).
Conceitos bakhtinianos
Os pontos de vista de Bento e Filipa eram discrepantes
na maioria das vezes. Desde quando se conheceram a con-
cepção de Filipa sobre relacionamento se divergia da visão de
Bento. Ela desejava o envolvimento carnal com seu par antes
do casamento, já casada afirmava que era por direito seu que
o marido a satisfizesse sexualmente. Essas diferentes pers-
pectivas entre o homem e a mulher remetem ao conceito de
heteroglossia, pois o leitor tem acesso a percepções distintas
em relação ao fato:
— Homem é sempre homem, Filipa, nada não obsta.
Enquanto que a mulher é o vaso mais fraco, deve
prevenir-se, deve precaver-se de tudo.
— Não estás com a razão, Bento. Tu mesmo não
repetias que somos todos iguais diante de Deus?
— Diante de Deus, certamente. Diante dos homens,
os juízos são distintos em se tratando de varão ou de
varoa (FERREIRA, 1993, p. 107).
De acordo com essas distintas visões contidas ao longo
da história é possível, então, afirmar que a narrativa é dialó-
gica, já que este conceito se refere, de acordo com BARROS
e FIORIN (1994), a textos que resultam do embate de muitas
vozes sociais. Tem-se o olhar do homem perante o mundo
em que a mulher é o gênero condicionado, e que, naquele
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 25
período, devia por obrigação se sujeitar perante a sociedade
falocêntrica, devendo, assim, obedecer ao marido. Dessa
forma, o diálogo existente na concepção de Bento se compõe
de acordo com a fé que ele possui e com a sociedade patriar-
cal do século XVI: “E me autoriza a Igreja a te tomar como me
aprouver, e quando me aprouver” (FERREIRA, 1993, p. 114).
Essas perspectivas diferenciadas se evidenciam no ca-
samento de Bento e Filipa que, no enredo, foge às expectati-
vas acerca dessa celebração. Não há romantismo na noite de
núpcias, pois Bento ficou ébrio. Em contrapartida, o que o-
corre nesta noite de comemoração é “o carnaval [...] uma
existência que transcorre invertida, num mundo de ponta-
cabeça, em que se suspendem todas as regras, as ordens e
proibições que regem as horas do tempo de trabalho na ‘vida
normal’” (BARROS e FIORIN, 1994):
O homem saltou para ela, torceu-lhe um braço. A
chamada Brázia tentou apartar os dois, a mulher se
debatia, puxando o cabelo ao homem, puxando-lhe
as orelhas. A um certo momento, rolaram os três pelo
chão, sob o olhar indiferente dos demais convidados
(FERREIRA, 1993, p. 113).
Por fim, ainda tomando como base a conturbada rela-
ção entre Bento e Filipa, pode-se também perceber a paródia
existente no romance. O poeta acredita que sua esposa co-
mete adultério e em uma das brigas do casal o discurso de
Bento, “como num espelho de diversas faces, apresenta a
imagem invertida, ampliada, numa prática da jocosidade e
do ridículo” (BARROS e FIORIN, 1994) comparando sua mu-
lher à Arca de Noé. Ao questionar a forma como Bento a
chama, Filipa tem como resposta “Chamo-te tal porque não
fica animal que em ti não entre” (FERREIRA, 1993, p. 152).
26 | Literatura e diáspora
Considerações finais
Com base nos elementos estruturais que compõem Os
rios turvos, pôde-se abrir uma discussão acerca de uma pro-
blemática social relacionada ao período ficcionalizado na
obra e correspondente à diáspora. Isso ocasiona o constante
movimento do protagonista Bento ao longo da história, pos-
sibilitando, inclusive, que consideramos o não-lugar como
espaço constituinte da narrativa, visto que o poeta-
personagem está em constante movimento, a fim de se dis-
tanciar do julgamento da igreja.
Ademais, apresentaram-se os elementos recorrentes
na obra, visando relacioná-los com as características do Novo
Romance Histórico. Buscou-se ainda evidenciar as caracterís-
ticas encontradas em tal gênero, enfocando a Intertextuali-
dade que, na obra de Luzilá, é constantemente marcada e
também fundamental para o desenlace da narrativa, assim
como o momento histórico contido no romance, já que as
consequências sofridas pelas personagens principais — Bento
e Filipa — ocorreram, respectivamente, devido a hegemonia
da Igreja católica e da sociedade patriarcal quinhentista bra-
sileira.
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Org.). Dialogis-
mo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo:
Edusp, 1994.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem
de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.
CUNHA, Gloria. La narrativa histórica de escritoras latinoamerica-
nas. Buenos Aires: Corregidor, 2004.
ESTEVES, A. R.; MILTON, H. C. O novo romance histórico hispano-
americano. In: MILTON, H. C.; SPERA, J. M. S. (Org.). Estudos de
literatura e lingüística. Assis: FCL-UNESP, 2001.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 27
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Os Rios Turvos. Rio de Janeiro: Rocco,
1993.
MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina,
1979-1992. México: FCE, 1993.
MIGNOLO, Valter. Lógica das diferenças e política das semelhan-
ças da literatura que parece história ou Antropologia e vice-versa.
In: CHAPPINI, Ligia; AGUIAR, Fabio. Literatura e história na América
Latina. São Paulo: UNESP, 1993.
28 | Literatura e diáspora
DIÁSPORA, IDENTIDADE E DESLOCAMENTOS EM DANY
LAFERRIÉRE
1
Formada em Pedagogia, Mestranda em Estudos Literários na Universi-
dade Federal de Rondônia (UNIR), sob a orientação da Profa. Dra.
Marília Pimentel Contiguiba. Endereço eletrônico: ka_andrea14@
hotmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 29
Stuart Hall, Homi Bhabha, Bonnici and others, on cul-
ture, diaspora and cultural identity. The study aims to
understand the representation of the identity of the
black diaspora, of cultural expressions; the concep-
tion of the subject constructed and assumed that di-
asporic process. Thus this subject establishes a he-
gemonic values that he will share with this new
society, establishing parameters of interconnections
between their culture and the Other, we are talking
about a place from which according Bhabha (1998)
generates a discussion on identity and the space
where it subject speaks.
Keywords: Diaspora. Identity. Displacement.
Laferrière. Literature Haitian.
Introdução
Atualmente a temática da diáspora é amplamente dis-
cutida, isto deve-se ao fato dos estudos Pós-Coloniais abor-
darem essa escrita de diáspora, a resistência e os desloca-
mentos do sujeito na pós-modernidade, buscando referir-se
a esse sujeito diaspórico como um ser deslocado de sua cul-
tura, de sua língua e de sua identidade.
Com isso os estudos pós-coloniais vão explorar a visão
do colonizador sobre o colonizado, onde se pressupõe a ideia
de que o colonizador é um ser sem cultura ou identidade, que
necessita de uma nova cultura, de uma nova língua e necessi-
tam assumir uma nova identidade. Nesse sentido, a cultura
do sujeito diaspórico é entendida como retrógada, sem im-
portância e estática e deveria, portanto, ser exterminada
para dar lugar à cultura do Outro, para que assim este possa
fazer parte de uma comunidade.
Nesse contexto da diáspora a obra Como fazer amor
com um negro sem se cansar se destaca por ser uma literatu-
ra que evidencia a diáspora no seu sentido mais amplo, pois
retrata a visão do sujeito que vivencia esse processo.
30 | Literatura e diáspora
Diante de tais evidências do processo diaspórico,
Laferrière busca com sua obra transpor a visão que as pesso-
as têm do negro diaspórico e mostra o quanto esses foram
subjugados e sujeitados a todo tipo de atrocidades durante
os processos de colonização do Haiti e em meio às ditaduras
que o país vivenciou.
Como exemplo dessa sujeição do colonizado ao coloni-
zador, citamos a presença da sociedade francesa e americana
no processo de colonização do Haiti, a qual trouxe grandes
catástrofes à história da cultura haitiana. Pois para tornar-se
uma sociedade livre da França, o Haiti sofreu embargos polí-
ticos e ficou à mercê da própria sorte impossibilitado de ne-
gociar com outros países e vender o açúcar e arroz, que eram
as principais fontes de renda do país, com isso o país foi tor-
nando-se cada vez mais empobrecido.
A permanência de tropas americanas de 1915 a 1934
trouxe um estereótipo da visão do negro como um ser bárba-
ro, sem cultura ou identidade, é importante entender que, ao
mesmo tempo em que os haitianos tentavam se recuperar
economicamente, também sofriam com os pré-conceitos
estabelecidos por povos que colonizaram o país, e que de
alguma forma esses imaginários da cultura e crença haitiana
ainda são mal vistos, até hoje, por alguns haitianos e por pes-
soas que desconhecem a cultura haitiana.
Outro fator que trouxe muita opressão para o povo
haitiano foi à criação da guarda nacional, que acabou por dar
mais poderio político à ditadura Duvalier, que assolou o país
por muitos anos e fez com que vários escritores e partidários
contrários fossem exilados em outros países. Como bem re-
trata Laferrière (2012, p.17): “Bom, em resumo, esta é a situ-
ação neste começo dos anos 80 marcados por uma pedra
preta na história da Civilização Negra”.
Em meio à invasão de suas terras e as ditaduras impos-
tas os haitianos tiveram sua história silenciada e passaram a
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 31
incorporar a cultura e a visão do colonizador, no sentido de se
sentirem diferente do Outro, buscando assim, uma forma de
afirmação e ressignificação de sua identidade. Nesse sentido,
nos propomos analisar na obra de Laferrière, como essa rela-
ção do Outro com o negro diaspórico tem afetado a sua iden-
tidade e como esses processos diaspóricos são recorrentes
no Haiti, seja por causa da colonização, das ditaduras ou das
catástrofes sofrida pelo país.
O autor propõe em sua obra um jogo de relações entre
o branco e o negro, como forma de denunciar a sociedade
segregadora e racista do início da década de 80 na cidade de
Montreal. O enredo se passa num subúrbio da cidade, onde
dois jovens negros e diaspóricos dividem um quarto-sala, os
personagens Vieux e Buba passa a se relacionar com estu-
dantes de uma da mais conceituada universidade da cidade,
mas essas relações secretas jamais poderão ser anunciadas à
sociedade canadense. Para Laferrière (2012, p.28) estar exi-
lado em outro país traz certo entrave nas relações que se
estabelece com o Outro, como bem retrata o autor em um
dos encontros fortuitos de Vieux e Miz Literatura:
Miz Literatura pode se permitir ter uma consciência
limpa, clara e honesta. Ela pode. Quanto a mim,
aprendi bem cedo que era preciso acabar com esse
produto de luxo. Nada de consciência. Nada de
paraíso perdido. Nada de terra prometida. Diz aí: em
que uma consciência pode me ajudar? Só pode ser
motivo de chateação para um Negro entupido até a
boca de fantasias, de desejos e de sonhos frustrados.
É simples: eu quero a América.
Laferrière retrata a experiência de ser diaspórico, atra-
vés de um relato baseado em suas experiências enquanto
exilado na cidade de Montreal, durante a ditatura de Duvali-
er. Com isso, sua escrita se constitui como uma denúncia a
essa sociedade patriarcal e racista.
32 | Literatura e diáspora
Nesse novo lugar o sujeito tenta ter vez, de onde ele
busca ser ouvido, onde possa ter seus direitos e possa consti-
tuir-se nessa sociedade, como parte dela, mas não aniquilan-
do a sua cultura e a sua identidade, mas sim agregar valores a
essa.
Assim, busca-se nesse artigo tratar do conceito de i-
dentidades, deslocamento e diáspora desse sujeito que sai de
seu país e assume uma nova identidade, de acordo com a
bagagem cultural e social que este vivencia nesse “entre lu-
gar”, que nem é sua terra natal, nem é a terra em que este
sonha em construir sua vida.
Dany Laferriére
O autor recebeu o nome de batismo de Windsor Kléber
Laferrière, herança do pai, nasceu na cidade Porto Príncipe
no ano de 1953, capital do Haiti, seu pai era jornalista e con-
trário ao regime ditatorial de François Duvalier, que esteve
no poder durante 14 anos. No ano de 1959 seu pai exila-se
em Nova York e temendo represálias à sua família sua mãe
passa a chamá-lo de Dany Laferrière.
Já desde cedo Laferrière vive deslocamentos culturais
e geográficos, primeiro aos quatro anos quando vai morar na
casa da vó Ba, com sua mãe e suas tias em Petit Gôave, mas
após uma epidemia de malária retorna a Porto Príncipe. Essa
convivência só com figuras femininas marca a sua narrativa,
que passa a explorar o universo feminino em grande parte de
seus livros. Dando continuidade ao trabalho do pai torna-se
jornalista, escritor e luta contra a sucessão da ditadura Duva-
lierista.
Dany Laferrière era partidário a luta do povo haitiano,
pela reivindicação de seus direitos e contra as condições so-
ciopolíticas que o país estava passando, durante as ditaduras,
Diáspora e deslocamentos
Os processos migratórios são amplamente explorados
nas literaturas caribenhas, essa ênfase na diáspora permite
que outros circuitos literários tenham um novo olhar sobre a
escrita, à cultura e identidade caribenha, principalmente num
momento em que estas literaturas são amplamente discuti-
das e estudadas a partir do viés do Pós-Colonialismo.
O enfoque dado por estas literaturas ao sujeito da di-
áspora permite que várias vozes silenciadas pelo exílio ou
pelo horror da guerra sejam postas em evidência, mantendo
assim a identidade cultural desse sujeito.
Mesmo diante desse cenário de afirmação de uma cul-
tura, sabemos que se encontrar em situação de diáspora leva
34 | Literatura e diáspora
o sujeito assumir múltiplas identidades, a conviver com di-
versas culturas e tal processo acontece naturalmente pelo
contato com o outro (estrangeiro). Laferrière (2012, p. 25)
destaca em sua obra, que o negro diaspórico busca se espe-
lhar na imagem do Outro, como destaca na fala do narrador-
personagem:
Levo comigo para todo lado essa foto de Carole
2
Laure . Boca gulosa e olhos molhados ao lado do
rosto alongado e doce de adolescente refinado de
Lewis Furey. Ele tem muita cara de filhinho de papai,
inteligente, sofisticado, doce, esperto até não poder
mais, merda! Tudo o que eu adoraria ser.
O autor mostra com sua obra que o negro diaspórico se
encontra vulnerável frente ao Outro, destaca a necessidade
de afirmação da sua identidade frente ao branco, politizado,
refinado e visto como bem-sucedido.
Numa análise detalhada da diáspora haitiana, esse
processo de deslocamento era algo muito comum desde os
primórdios da colonização do Haiti, se deslocavam em busca
de novas terras para morarem, plantarem e para montar no-
vas nações, esse processo se constituía de muitas dificulda-
des, mas era necessária a sobrevivência de muitas nações
que tinham costumes e crenças diferentes.
Esse deslocamento, além das fronteiras de seu país,
cria um espaço de diferenças sociais, étnicas e culturais que
vão revelando a versão ao outro (outra pátria) pelo sujeito da
diáspora.
Hall (2003, p.35) afirma que: “O conceito fechado de
diáspora se apóia sobre uma concepção binária de diferença.
Está fundado sobre a construção de um “Outro” e de uma
oposição rígida entre dentro e fora”. Esse desejo do sujeito
da diáspora em se afirmar enquanto imigrante num país de
2
Atriz canadense casada com Lewis Furey, roteirista de cinema.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 35
culturas diversificadas faz com que ele busque resistir a do-
minação do “Outro” e passe a assumir uma identidade multi-
facetada e ambígua, criando uma nova forma de se impor
contra esse país novo, contra essa gente estranha, buscando
dessa forma se afirmar enquanto estrangeiro (o Outro), atra-
vés de sua língua e de sua cultura.
Bonnici (2009, p.133) corrobora com essa ideia ao res-
saltar que: “O outro pode ser definido como alguém diferen-
te de si próprio. O sujeito colonizado é o outro; o colonizador
se caracteriza pela naturalidade e pela universalidade de sua
cultura e de seu ponto de vista”. Dessa forma, o colonizador
tenta impor de maneira velada uma nova cultura e uma nova
língua ao sujeito da diáspora, e este se apropria de partes
desse conhecimento que lhe foi repassado, construindo um
processo de hibridização como forma de resistir a esse pro-
cesso de aculturação.
E tais formas de resistência são próprias do sujeito da
diáspora, essa busca por transgredir o que já vem ditado e
determinado, esse constante confronto entre as diversas
culturas traz à tona questões raciais e desigualdades vivenci-
adas em uma sociedade considerada diferente da do seu país
de origem.
Como bem destaca Bonnici (2009, p.30): “[...] diáspora
refere-se ao trauma coletivo de um povo que voluntária ou
involuntariamente saiu ou foi banido da sua terra e, vivendo
num lugar estranho, sente-se desenraizado de sua cultura e
de seu lar”. Tais percepções quanto ao processo vivenciado
na diáspora e o estranhamento do estrangeiro sob a visão do
país que o acolhe, nos mostra como é difícil para muitos acei-
tar o novo, o diferente e o subalterno, com isso percebemos
que muitas culturas estão sendo afetadas e suprimidas.
Diante de tais observações é possível perceber que as
desigualdades e as supressões de uma cultura estão intima-
mente ligadas às relações de poder entre os que se conside-
36 | Literatura e diáspora
ram maioria e uma “pequena minoria” que vivem à margem
da sociedade, sem voz, sem vez e sem poderem se assumir
enquanto sujeito dessa nova pátria.
38 | Literatura e diáspora
Até parece que o período da Negritude acabou, has
been, caput, finito, morto. Negro, out. Go home
Nigger. A Grande Era Negra, já era! Hasta la vista,
Negro. Last call, colored. Volta pra selva, Neguinho.
Faz um haraquiri naquele lugar que só você sabe.
Olha mamãe diz a jovem Branca, olha o Negro
capado. Negro bom, responde o pai, é um negro sem
bolas. Bom, em resumo, esta é situação neste
começo dos anos 80 marcado por uma pedra preta na
história da Civilização Negra.
Esse processo de sentir-se um ser que não pertence a
esta nova cultura, e que é subjugado por sua raça ou classe,
leva o sujeito da diáspora a viver em constante deslocamen-
to, buscando um lugar onde ele possa ser visto como sujeito
de uma comunidade.
Esses processos de deslocamento em Laferrière é re-
corrente na sua vida e em suas obras, e isso se constitui como
movimento de exílio voluntário ou involuntário desse sujeito
da diáspora, muitas vezes como uma forma de fugir dos hor-
rores da guerra, da crueldade das ditaduras ou para esquiva-
rem das assolações da pobreza e de desastres naturais em
seu país de origem.
O estudo sobre esse processo diaspórico é amplamen-
te discutido e estudado pelos estudos pós-coloniais, que ex-
ploram o negro na diáspora, suas identidades multifacetadas
e o olhar do outro (colonizador) sobre as culturas desses su-
jeitos e a resistência frente às imposições do colonizador.
Hall (2003, p.27) afirma que: “Na situação da diáspora,
as identidades se tornam múltiplas”. Com isso o negro assu-
me a identidade de sujeito da diáspora, mas mantém a sua
subjetividade frente à cultura dominante. Pois essa situação
de deslocamento de uma cultura para outra vai produzindo
uma cultura híbrida.
A identidade na diáspora
A diáspora, seja ela dentro e fora do país, sempre, traz
um conflito quanto à identidade do sujeito e sua tradição
cultural, pois esse espaço de tempo em que o sujeito migra
ou imigra traz para ele novas experiências de vida, novos
contextos políticos e culturais, que de alguma forma influen-
ciam nessa nova identidade na diáspora.
Para Hall (2003, p. 260):
Os elementos da “tradição” não só podem ser
reorganizados para se articular a diferentes práticas e
posições e adquirir um novo significado e relevância.
Com frequência, também, a luta cultural surge mais
intensamente naquele ponto onde tradições distintas
e antagônicas se encontram ou se cruzam. Elas
procuram destacar uma forma cultural de sua
inserção em uma tradição, conferindo-lhe uma nova
ressonância ou valência cultural.
Mesmo tendo suas tradições, suas crenças e sua baga-
gem cultural formada, o sujeito diaspórico vai construindo
uma identidade multicultural, mas sem deixar que a sua cul-
tura seja negada pelo outro. Como forma de manutenção da
sua identidade cultural este utiliza da língua, dos costumes,
da dança e da escrita para propagar e hibridizar a cultura do
42 | Literatura e diáspora
Outro. Em meio as relações de alteridade vivenciadas no país
de exílio, Laferrière (2012, p. 43) destaca que nesse espaço o
negro diaspórico revive alguns traumas do passado:
Penso em minha cidadezinha no fim do mundo. Em
todos os negros que partiram em busca da riqueza
dos Brancos e voltaram gagos. Não sei por que — isso
não tem nada a ver com o que está acontecendo
agora — penso em uma música que ouvi a muito
tempo.
Assim, o negro diaspórico vai rememorando sua histó-
ria, as lutas que seu povo travou por uma vida melhor e a
visão do negro apenas como objeto de desejo. Esse processo
de recepção da cultura e da identidade do outro não é algo
bem visto pelo Colonizador, já que acaba por deturpar parte
de uma herança cultural “sólida”, patriarcal e segregadora,
que se diz moderna para os avanços tecnológicos, mas por
outro lado vê com maus olhos uma cultura que é diferente da
sua.
Sobre esta construção de cultura nacional por parte do
colonizador, Hall (2006, p. 58) diz que: “Devemos ter em
mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que consti-
tui uma cultura nacional como uma “comunidade imagina-
da”: as memórias do passado; o desejo por viver em conjun-
to; a perpetuação da herança”. Com isso o sujeito vai
assumindo diversas identidades de acordo com o ambiente e
a época em que está vivendo, a identidade agora deixa de ser
imutável e estática, repassada apenas pelo seu grupo famili-
ar, ela passa a se constituir das relações deste com outros
grupos de diferentes locais e países.
Esse choque de culturas faz emergir uma crise identitá-
ria nesse sujeito, que agora faz parte de inúmeras culturas,
mas que como revide ao colonizador não se sujeita a essas
culturas, porém as incorpora de uma forma hibridizada, ten-
tando dessa forma, se afirmar entre o mundo real e o cultu-
ral.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 43
Há que se questionar se todas essas identidades que o
sujeito assume podem torná-lo um ser dividido entre sua
cultura e outras culturas. Será que este consegue absorver
elementos de outra cultura que vão de encontro com seus
objetivos de vida, seu posicionamento político e suas cren-
ças?
Esses questionamentos trazem à tona um conflito que
o sujeito vive na diáspora, produto de um mundo pós-
moderno, que prevê uma identidade fixa e única, que molda
este sujeito de acordo com o que Hall (2006) chama de “iden-
tidade unificada”. Que para ele produz um choque de identi-
dades, já que dentro de nós projetamos e vivemos conflituo-
samente com inúmeras identidades. Essas identidades se
conflitam, mas também se hibridizam, formando uma iden-
tidade multicultural constituída de diversas faces.
Considerações finais
A escrita de Laferrière se constitui e cria um enredo
tensivo que subjuga a escrita dessa nova nação -o Canadá-, a
qual não demonstra certa receptividade a esta escrita de
migração. Ao mesmo tempo o autor cria um novo espaço
para escrita de fronteira, um lugar onde se pode descontruir e
reconstruir o discurso politicamente certo, o discurso que
tem uma carga histórica de discriminações e conflitos entre
ricos e pobres, negros e brancos, senhores e serviçais, entre o
diferente da cultura do Colonizador.
Laferrière tenta com este romance forjar ironias atra-
vés da maneira como as pessoas brancas se relacionam com
um negro, pobre e diaspórico, fazendo com que esta nova
nação vivencie uma miscigenação de sua cultura e de suas
crenças, mesmo que indiretamente esta não seja a vontade
expressa desse povo.
44 | Literatura e diáspora
Desta forma, este tipo de escrita, mediante um proces-
so de apropriação de elementos de várias culturas — ameri-
cana, haitiana e francesa — vai reconstruindo a identidade
cultural desse sujeito da diáspora, trazendo elementos do
passado para presente, buscando assim recriar um novo pre-
sente.
Com isso a escrita de Laferrière vai construindo outra
história diferente da que fora imaginada antes de vivencia-
rem o processo de diáspora, onde pleiteavam uma nação
utópica, onde todos os seus problemas seriam resolvidos,
aonde todo o sofrimento de guerras e ditaduras, vai dessa
forma reconstruindo a identidade cultural sem deixar de lado
elementos da sua cultura, traduzindo o passado para o pre-
sente, questionando o ver do colonizador sobre o colonizado.
Para Hall (2003, p.28) a identidade cultural faz parte de nosso
ser, se constitui no nosso gene, não pode ser transmutada
por uma nova vivência ou uma nova cultura:
Essencialmente, presume-se que a identidade
cultural seja, fixada no nascimento, seja parte da
natureza, impressa através do parentesco e da
linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu
mais interior. É impermeável a algo tão “mundano”,
secular e superficial quanto uma mudança temporária
de nosso local de residência. A pobreza, o
subdesenvolvimento, a falta de oportunidades — os
legados do Império em toda parte — podem forçar as
pessoas a migrar, o que causa o espalhamento — a
dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a
promessa do retorno redentor.
Entende-se assim, que a experiência do sujeito da di-
áspora nesse constante deslocamento é algo traumático que
traz à tona fantasmas do passado, quando sua terra natal
fora invadida e colonizada por europeus e americanos, quan-
do boa parte da sua identidade cultural fora roubada, onde
novas culturas foram construídas e impostas pelo Coloniza-
Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. Car-
los Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
BONNICI, Thomas. Resistência e intervenção nas literaturas pós-
coloniais. Maringá: Eduem, 2009.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad.
Adelaine Laguarda Resende. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
LAFERRIÈRE, Dany. Como fazer amor com um negro sem se cansar.
Trad. Heloisa Moreira e Constança Vigneron. Rio de Janeiro: Ed. 34,
2012.
46 | Literatura e diáspora
ORALIDADE E DIÁSPORA AFRICANA
1
Mestre em Crítica Cultural pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). Endereço eletrônico: leandrorujo@hotmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 47
even vulnerable to changes imposed by time, can still
be perceived through the memories, performances,
orality (clipping of this article) and varied cultural
events that although reinvented and / or reworked,
bring in its core aspects of African ancestral uncons-
cious as synthesizes Paul Gilroy (2002), saying: “we
were never merely muscles because we brought with
us our traditions”. The purpose of this article is not in-
tended to exhaust and / or try to complete, somehow
this theme. Both orality as the black Diaspora are
dense fields of study with valuable productions in
several areas of knowledge. If an attempt is made
here to discuss some important aspects of the un-
iverse of African orality and possible intersections di-
asporic; and to stimulate new studies, productions
and discursive immersions.
Keywords: Orality. African Diaspora. Critical-Cultural.
Oralidade africana
“A herança dos ouvidos é o cerne da história africana”
(Hampâté Bâ).
Ao falarmos das primevas2 tradições orais do continen-
te africano, não podemos deixar de pontuar o nosso lugar de
fala — pesquisadores arraigados sob a epistemologia ociden-
tal das letras. Entender este lugar é factual, pois todo esfor-
2
Alguns pesquisadores adotam o termo primais (GAARDER, 2005),
primitivas, tribais, não-letradas (GOODY, 2006) referindo-se à tradição
oral africana. Embora concorde com Gaarder, preferi adotar o termo
primevas — relativo à primeira idade ou aos primeiros tempos do
mundo —, pois reafirma e empodera as descobertas sobre a
antiguidade do continente africano. Embora até concorde, em parte, e
entenda a designação empregada por Goody, acompanho, em alguma
medida, as críticas dirigidas a ele quando da discussão sobre o que vem
a ser entendido como letra, uma vez que sinais gráficos variados e
decodificados já existiam, no continente africano, em um período que
o ocidente, indevidamente, classificou como “Pré-História”.
48 | Literatura e diáspora
ço, empreendido por nós, na tentativa de melhor compreen-
der este universo estrutural e geracional3, indubitavelmente,
produzirá apenas possíveis imagens do referido sistema.
Com uma rasa imersão na bibliografia histórica produ-
zida sobre a tradicional4 oralidade africana, podemos perce-
ber as tendenciosas associações — primitiva, emotiva, involu-
ída — que lhe foram imputadas pelo pensamento europeu.
Esta ideologia, arquitetada sob uma lógica etnocêntrica, ins-
tituiu um modelo binário (nós/eles) de estratificação do co-
nhecimento, em que o ocidente (nós) seria o detentor do
conhecimento racional e científico, além de portadores dos
valores morais/éticos e dos padrões de civilidade, engessan-
do as civilizações africanas (eles) numa espécie de taxonomia
social embrionária, rudimentar.
Há uma gama de tratados e estudos que tentam per-
petuar, ao longo do tempo, tal ideologia, mediante uma hie-
rarquização entre culturas civilizadas e não civilizadas. Esta
dicotomia, engendrada nos moldes eurocêntricos, opera,
3
Walter Ong (1998) defendeu o conceito de oralidade geracional,
adotando como “oralidade primária” a oralidade de uma cultura
totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita ou da
impressão. Para Ong, a utilização do termo “primária” se dá por
oposição a “oralidade secundária”, da atual cultura de alta tecnologia,
em que uma nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio,
pela televisão ou por outros dispositivos eletrônicos, cuja existência e
funcionamento dependem da escrita e da impressão. Segundo ele,
atualmente, a cultura oral primária, no sentido restrito, praticamente
não existe, uma vez que todas as culturas sem conhecimento da escrita
sofreram alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes graus, muitas
culturas e subculturas, até mesmo num meio de alta tecnologia,
preservam muito da estrutura mental da oralidade primária (ONG,
1998, p. 19).
4
Estou denominando tradicional o que é originário. Deste modo, à
oralidade originária africana denomino oralidade tradicional africana,
sem, contudo, perder de vista o fato de que o contato com outras
sociedades provocou, como não poderia deixar de ser, mudanças
significativas nas partes envolvidas.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 49
ainda em dias atuais, com conceitos interpretativos do que
seria de fato o moderno, a sociedade, a cultura, a nação etc.
Léopold Sédar Senghor foi um político e escritor sene-
galês de importante envergadura. Ao lado do poeta antilha-
no Aimé Césaire, contribuiu diretamente na construção do
conceito de negritude. Uma frase de Léopold Senghor, gera-
da no contexto de seu ativismo político, serve para ilustrar o
recorrente pensamento que se formou e perpetuou ao longo
da história: “A emoção é completamente negra como a razão
é grega”.
Ao comando político-econômico e científico das na-
ções europeias muitas desconexões foram avivadas. O colo-
nialismo estabeleceu uma metodologia de violência cultural e
religiosa nas diversas conquistas territoriais do continente
africano. As consequências deste processo de dominação,
incluídas as teorias científicas que emergiam desta ideologia
racista e etnocêntrica, contribuíram para que as culturas de
tradições orais fossem diminuídas e repelidas no contexto
social, uma vez que não detinham o arcabouço da escrita —
condição sine qua non para a legitimação de erudição e civili-
dade “puritana”5 ocidental. Com a ampliação conceitual e
5
A professora da Universidade de Nova York, Ella Shohat Habiba, com
profícuas pesquisas no campo dos Estudos Culturais, suscita críticas à
visão “puritana” ocidental de tentar compreender a África —
diminuindo o poder da oralidade em detrimento da escrita, dizendo:
“Ainda que o discurso triunfalista do eurocentrismo — de Platão à
OTAN — equipare a história ao avanço da razão ocidental, a própria
Europa é na verdade uma síntese de diversas culturas, ocidentais e
não-ocidentais. A noção de uma Europa “pura” nascida na Grécia
clássica se apoia em claras exclusões, que vão desde as influências
islâmicas e judaicas que tiveram papel crucial na Europa durante a
chamada Idade das Trevas (uma designação eurocêntrica para um
período de supremacia oriental) e também durante a Idade Média e o
Renascimento. Como aponta Jan Pieterse, todas as festejadas “etapas”
da evolução europeia — os impérios grego e romano, o Cristianismo, a
Renascença, o Iluminismo — são “momentos de mescla cultural”. A
50 | Literatura e diáspora
metodológica experienciadas pelas ciências sociais, sobretu-
do a partir de meados dos anos 30 do século XX, o famigera-
do discurso do “inatismo da diferença cultural” começara a
ser desmontado. Neste afã, a antropologia desempenha um
papel fundamental no sentido de perceber melhor as nuan-
ces da alteridade que trazia em seu bojo a ideia de diversida-
de cultural. Nesta direção, as diversas teorias vigentes —
evolucionismo, determinismo cultural e biológico, embran-
quecimento, racismo científico, etc., começaram a ser des-
construídas.
Segundo o historiador Joseph Ki-Zerbo (2010), há um
hiato na história sobre as civilizações africanas que não se
pode mais invisibilizar. Um silêncio continental, proposital-
mente amordaçado e que serve aos interesses hegemônicos
dos que reescreveram a história. Nas palavras dele:
A África e a Ásia, atualmente na periferia do mundo,
tecnicamente desenvolvido, estavam na vanguarda
do progresso durante os primeiros quinze mil séculos
da história do mundo... a África foi o cenário principal
da emergência do homem como espécie soberana na
terra, assim como do aparecimento de uma
sociedade política. Mas esse papel eminente na pré-
história será substituído, durante o período histórico
dos últimos dois milênios, por uma “lei” de
desenvolvimento caracterizada pela exploração e por
sua redução ao papel de utensílio (KI-ZERBO, 2010, p.
21).
6
O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas
nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram
de maneira mais difícil de localizar num período limitado e
determinado de tempo — às vezes coisa de poucos anos apenas — e se
estabeleceram com enorme rapidez (HOBSBAWM, 1984, p. 9-10).
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 53
Dessa forma, o nascimento de uma tradição pode a-
contecer pela repercussão de fontes de testemunho ocular e
boatos, criados por uma seleção de textos orais pactuados e
assimilados. A eleita deve atender um critério de valor imedi-
ato que equacione probabilidades e credibilidade. No afã
desta discussão, Hobsbawm aprofunda, pontuando que:
A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente
diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades
ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das
“tradições”, inclusive das inventadas, é a
invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas
se referem impõe práticas fixas (normalmente
formalizadas), tais como a repetição. O “costume”,
nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de
motor e volante. Não impede as inovações e pode
mudar até certo ponto; embora, evidentemente, seja
tolhido pela exigência de que deve parecer
compatível ou idêntico ao precedente. O “costume”
não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a
vida não é assim nem mesmo nas sociedades
tradicionais. O direito comum ou consuetudinário
ainda exibe esta combinação de flexibilidade implícita
e comprometimento formal com o passado. Nesse
aspecto, aliás, a diferença entre “tradição” e
“costume” fica bem clara. “Costume” é o que fazem
os juízes; “tradição” (no caso, tradição inventada) é a
peruca, a toga e outros acessórios e rituais formais
que cercam a substância, que é a ação do magistrado.
A decadência do “costume” inevitavelmente modifica
a “tradição” à qual ele geralmente está associado
(HOBSBAWM, 1984, p. 10).
O medievalista, antropólogo e africanista Jan Vansina,
desconstruindo os modelos metodológicos vigentes até en-
tão, e reformulando outros7, buscou — na década de 60 do
7
Segundo Xavier (2004, p.41), Vansina (2010) estabeleceu a sua
metodologia definindo a tradição ora como um sistema de transmissão
54 | Literatura e diáspora
século XX — uma metodologia que pudesse ver a oralidade
por outro ângulo, ampliando o horizonte das suas inquieta-
ções discursivas, estabelecendo outros conceitos e perspecti-
vas, ante a oralidade, que desmontam a ideologia de que as
civilizações africanas eram despojadas de saberes, de história
e arcabouço cultural simplesmente por não pautarem os seus
registros culturais e sociais em conformidade com a lógica
vigente do mundo ocidental.
Para Vansina (2010, p. 146), toda tradição possui uma
superfície social, que garante sua transmissão. Tal tradição,
por cumprir uma função, existe e, se não a cumpre, sua exis-
tência perde sentido e é abandonada pela instituição que a
sustenta. Este é um dos muitos pontos que ratificam o poder
de perpetuação da palavra nas tradições orais africanas. Ain-
da segundo Vansina, todo texto oral, desde que se trate de
uma elocução importante, deve ser escutado, cuidadosa-
mente examinado e com ele deve-se conviver internamente,
como um poema. Somente assim podem ser alcançados seus
múltiplos significados.
Uma citação muito conhecida e recorrente entre os
pesquisadores da tradição oral africana, diz o seguinte:
A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a
fotografa do saber, mas não é o saber em si. O saber
é uma luz que existe no homem. A herança de tudo
aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que
10
Na realidade, a linguagem é tão esmagadoramente oral que, de todas
as milhares de línguas — talvez dezenas de milhares — faladas no curso
da história humana, somente cerca de 106 estiveram submetidas à
escrita num grau suficiente para produzir literatura — e a maioria
jamais foi escrita. Das cerca de 3 mil línguas faladas hoje existentes,
apenas aproximadamente 78 têm literatura (EDMONSON, Apud ONG,
1971, p. 323, 332).
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 57
homem, de seu lugar e de seu papel no conjunto da realida-
de. Para situá-la melhor no contexto global é necessário con-
siderar seu significado. Tomada como elemento de origem
divina, força fundamental emanada do próprio Ser Supremo,
é, ela própria, instrumento de criação.
Como já foi dito anteriormente, é preciso desautoma-
tizar o olhar para tentar compreender os mecanismos de
constituição e transmissão do conhecimento oral africano.
Sobre este ponto factual, Hampâté Bâ (2010)11, nos revela:
“O “sábio” não é jamais um especialista. É um generalista.
[...] Portanto, podemos falar de uma “ciência da vida”: a vida
sendo concebida como uma unidade onde tudo está interli-
gado, interdependente e interagindo”.
O poder da palavra
“A tradição africana, portanto, concebe a fala como
um dom de Deus. Ela é ao mesmo tempo divina no
sentido descendente e sagrada no sentido
ascendente” (Hampâté Bâ).
A partir de tudo que foi discutido, podemos afirmar
que falar em tradição africana é falar de tradição oral. Não se
pode mensurar a primeira, descartando a segunda. Por isso,
antes de mais nada, precisamos compreender a importância
e o valor que as palavras alcançaram nestas civilizações.
Um adágio africano, bastante conhecido, adverte: “A
palavra compromete o homem, a palavra é o homem”. Nas
civilizações orais africanas, a palavra é sagrada e consagrada.
Na primeira acepção, acredita-se que a divindade suprema —
‘Deus’ (salvaguardando os seus variados nomes e diferencia-
11
Texto originalmente editado em francês como capítulo do livro Aspects
de la Civilization Africaine, Paris, ed. Présence Africaine, 1972. Traduzido
para o português por Daniela Moreau e publicado na revista THOT n.
64, 1997).
58 | Literatura e diáspora
ções) — criou o mundo e tudo o que nele existe através da
palavra. Portanto, a palavra que habita o interior do ser hu-
mano é uma extensão de ‘Deus’, concomitantemente, o ho-
mem é um ser divino e tem a obrigação de zelar deste dom
sagrado que habita dentro de cada um. Outro fato que mere-
ce atenção neste contexto é o poder que a palavra possui:
poder de criação, animação (no sentido de vivificar o inani-
mado) e nomeação sobre todas as coisas. A segunda acepção
— consagrada — faz menção a utilização da palavra na esfera
humana do cotidiano. Aqui faz-se mister regular os usos da
mesma, corroborando, neste sentido, para o estabelecimen-
to de uma doutrina interna de caráter ético, moral e social.
Neste sentido, o homem restitui ao seu ‘Deus’, o entendi-
mento da primazia oral comprometendo-se em fazer bom
uso do mesmo entre si. Bâ explica este fato melhor, quando
diz que:
Como provinham de Maa Ngala para o homem, as
palavras eram divinas porque ainda não haviam
entrado em contato com a materialidade. Após o
contato com a corporeidade, perderam um pouco de
sua divindade, mas se carregaram de sacralidade
(HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 171).
Deste modo, percebe-se o respeito arraigado pelas
narrativas tradicionais legadas pelos seus respectivos ances-
trais, nas quais é permitido o ornamento na forma ou na a-
presentação poética, mas onde a trama permanece imutável
através dos séculos, veiculada por uma memória prodigiosa
que é um traço peculiar dos povos de tradição oral. Neste
contexto, a primeira voz/palavra — divina —, gerou o homem
e este os filhos dos homens que, por sua vez, gerou os filhos
dos filhos dos homens. Nesta cadeia cíclica, a voz de ‘Deus’
permanece viva a cada nascimento e a cada geração formada
pelos ensinamentos orais. É por isso que os de maior idade
no seio desta cultura tradicional, gozam de prestígio indiscu-
tível. Eles estão ouvindo e transmitindo a voz divina por mais
12
Para imersões discursivas maiores, ver a Coleção de História Geral da
África — UNESCO (História Geral da África: I metodologia e pré-história
da África. São Paulo: Ática, 1982).
62 | Literatura e diáspora
o que fica em entrelinhas, para os africanos, tem um peso
determinado, dando as limitações da tradição oral.
Ainda sobre a dicotomia da valorização da fonte escri-
ta em detrimento da fonte oral, o sociólogo Fábio Leite
(1992) aprofunda a discussão, dizendo:
Ao tratar da questão da palavra em sociedades
negroafricanas que adotaram a não-utilização da
escrita para fins de apreensão e transmissão do
conhecimento e que desenvolveram dispositivos
civilizatórios para essa finalidade, enfatiza que
ausência de escrita não deve ser confundida com
analfabetismo. Tal confusão, que ocorre ainda hoje,
advém principalmente da postura adotada pelo
pesquisador. Posicionado de modo a observar a
realidade com visão periférica, ao apreciar a África-
objeto, o pesquisador pode ser levado a considerar a
não-utilização da escrita como sério entrave ao que
se costuma chamar de progresso ou
desenvolvimento. Por outro lado, adotando a visão
interna, que lhe permite observar a África-sujeito,
não ocorre o mesmo, pois assumida essa postura,
pode o pesquisador perceber que a palavra alcança a
dimensão de elemento vital, componente da
personalidade, da cultura e da história, constituindo-
se em processo que se desdobra de instâncias muito
abstratas às práticas sociais. O importante é, como
diz o adágio africano, olhar as coisas pela janela certa
(LEITE, 1982).
A palavra é, por excelência, o grande agente moral e
ético da sociedade africana. Podemos considerar este o mo-
tivo pelo qual, Hampâté Bâ (2010) afirma que “o testemunho,
seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho hu-
mano, e vale o que vale o homem”.
Outro fator importante a ser observado no contexto
das diversas contribuições que a tradição oral foi e é capaz de
nos transmitir, é o levantamento de registros históricos rele-
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 63
vantes para compreensão e atualização de dados imprecisos
da arqueologia e/ou história, como nos mostra a seguir,
Sàlámì:
Como lembra Obenga (1982), a oralidade integra
uma extraordinária variedade de fontes usadas para a
construção da história da África, prestando ainda
valiosa contribuição ao documento escrito e à
pesquisa arqueológica. Do mesmo modo, constitui
fonte fundamental de estudos sociológicos. Entre
outros, na área das ciências humanas e sociais, sendo
a multidisciplinaridade o caminho inevitável para a
construção desse conhecimento (OBENGA apud
SÀLÁMÌ, 1999, p. 29).
Os estudos empreendidos por Hampâté Bâ (2010) a-
pontaram para o fato de que a tradição transmitida oralmen-
te é tão precisa e tão rigorosa que se pode, com diversas con-
firmações, reconstituir os grandes acontecimentos dos
séculos passados nos mínimos detalhes, especialmente a
vida dos grandes impérios ou dos grandes homens que ilus-
traram a história africana.
Seguindo a lógica da análise introduzida por Hampâté
Bâ encontraremos ligações com outros estudos já publicados
de pesquisadores que apontam a capacidade mnemônica dos
povos de tradição oral. Walter Ong (1998) ocupou-se das
análises efetivadas através do som para melhor compreender
este fenômeno. Diz o pesquisador:
Algumas comunicações não-orais são extremamente
ricas — a gestual, por exemplo). Contudo, num
sentido profundo, a linguagem, o som articulado, tem
importância capital. Não apenas a comunicação, mas
os próprios pensamentos estão relacionados de
forma absolutamente especial ao som. Todos nós
ouvimos dizer que uma imagem vale mil palavras. No
entanto, se essa afirmação é verdadeira, por que ela é
feita com palavras? Porque uma imagem vale mil
palavras apenas em certas condições especiais — que
64 | Literatura e diáspora
comumente incluem um contexto de palavras em que
está situada a imagem. [...] Toda sensação ocorre no
tempo, mas o som possui uma relação especial com
ele, diferente da que existe em outros campos
registrados na sensação humana. O som existe
apenas quando está deixando de existir. Ele não é
apenas perecível, mas é essencialmente evanescente
e percebido como evanescente. Quando pronuncio a
palavra “permanência”, no momento em que chego a
“-nência”, “perma-” desapareceu e tem de
desaparecer. Não há como deter e possuir o som.
[...] Numa cultura oral primária, para resolver
efetivamente o problema da retenção e da
recuperação do pensamento cuidadosamente
articulado, é preciso exercê-lo segundo padrões
mnemônicos, moldados para uma pronta repetição
oral (ONG, 1998, p. 42, 45).
Se para Hampâté Bâ (2010), os cânticos rituais e as re-
citações das fórmulas encantatórias, são exemplos de como
as palavras materializam a cadência; na mesma direção, Ong
vai dizer que a palavra tem música, a escrita, uma partitura. E
que a linguagem é a articulação do som e, em si, um valor
capital. Logo, o som e o pensamento, estariam correlaciona-
dos.
A escrita dá um desenho espacial das palavras
podendo ampliar a potencialidade da linguagem e
reestruturar um pensamento. Ainda assim, a palavra
falada subsiste, uma vez que, todos os documentos
escritos são antecedidos por um som, artifício natural
da linguagem para o comunicado dos significados
(ONG, 1998).
Em consonância com a capacidade mnemônica e esta
característica rítmica, inerente à oralidade africana, Hampâté
Bâ vai dizer que tudo isto é possível porque a oralidade na
África é considerada um dom do pré-existente e serve de
instrumento à materialização e exteriorização de forças vi-
Reflexões finais
Como já foi dito na introdução, não é objetivo deste ar-
tigo esgotar e/ou tentar concluir, de alguma maneira, este
tema. Tanto a oralidade quanto a Diáspora negra (ou africa-
na), são densos campos de estudos com valiosíssimas produ-
ções nas mais diversas áreas do conhecimento. Este trabalho
almejou discutir alguns aspectos factuais do universo da ora-
lidade africana e possíveis intersecções diaspóricas; como
também, fomentar novos estudos, produções e imersões
discursivas.Como fora esboçado ao longo do texto, cada tra-
dição corresponde a um tecido social. Cada grupo social tem
uma identidade trazendo consigo representações coletivas
que é suficiente em explicá-la e justificá-la. Podemos dizer
que essa função serve para revitalizar e firmar uma institui-
ção que dela depende reforçando que tradições cunhadas
como oficiais são legitimas e universais para uma sociedade.
Assim, cartas e genealogias, que listam as dinastias de reis e
suas histórias, são consideradas verdadeiras constituições
não-escritas. Tendo em vista que essas categorias abrangem
apenas assuntos públicos e legais, a oficialização dessas tra-
dições tem serventia somente para o grupo que a transmite.
13
Ser supremo, equivalente a Deus, na tradição Bambara do Komo
(HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 171).
14
Primeiro homem criado por Maa Ngala (Ibidem, p.172).
66 | Literatura e diáspora
Muitos grupos sociais têm tradições oclusas e verdades se-
cretas, que são regalias restritas.
Não se pode olvidar o fato de que há uma dívida — no
mínimo: histórica, moral, política e econômica — do Ociden-
te com as civilizações africanas e o seu arcabouço científi-
co/cultural afro-diaspórico. Estabelecer a escrita como marco
inicial da História humana e/ou classificar como Pré-
História/Pré-Históricos (leia-se: bárbaros, selvagens, tribais
e/ou incultos) todo o espólio de saberes, práticas e modos de
vida — incluindo, obviamente, a oralidade — é, sobretudo,
etnocentrismo. Pois, como bem destacou Ki-Zerbo (2010,
p.21), há um hiato na história sobre as civilizações africanas
que não se pode mais invisibilizar. Um silêncio continental,
propositalmente amordaçado e que serve aos interesses he-
gemônicos dos que reescreveram a história. Nas palavras
dele:
A África e a Ásia, atualmente na periferia do mundo,
tecnicamente desenvolvido, estavam na vanguarda
do progresso durante os primeiros quinze mil séculos
da história do mundo... a África foi o cenário principal
da emergência do homem como espécie soberana na
terra, assim como do aparecimento de uma
sociedade política. Mas esse papel eminente na pré-
história será substituído, durante o período histórico
dos últimos dois milênios, por uma “lei” de
desenvolvimento caracterizada pela exploração e por
sua redução ao papel de utensílio (KI-ZERBO, 2010, p.
21).
Destarte, percebe-se que se para o conhecimento oci-
dental a escrita confere poderes, dentro de uma sociedade
oral, a tradição concebe a palavra como poder. Esse poder
consagrado à palavra assume duas funções: socializadora,
pertencente aos mais velhos da sociedade oral, que fazem a
transmissão de saberes; e, a mítica-religiosa, pela materiali-
zação das coisas ditas. Deste modo, somente através de uma
Referências
CERQUEIRA, Wagner de. As duas Áfricas. A divisão das duas Áfri-
cas. In: Equipe Brasil Escola. Disponível em:
<http://www.brasilescola.com/ geografia/as-duas-africas.htm.
Acessado em 4 abr. 2015.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das
religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
GOODY, Jack; WATT, Ian. As consequências do letramento. São
Paulo: Paulistana, 2006.
HAMPATE BÂ, Amadou. A tradição viva. História Geral da África:
Metodologia e Pré-História da África. São Paulo: Ática; UNESCO,
2010, p. 167-212.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence Ranger (Org.). A invenção
das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9-23.
KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In: História Geral da África.
São Paulo, Ática; UNESCO, 2010.
LEITE, F.A questão ancestral. São Paulo, Tese de Doutorado em
Sociologia (FFLCH/USP), 1982.
ONG, Walter Jackson. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização
da palavra. Campinas: Papirus, 1998.
SALAMI, Sikiru. Poemas de Ifá e valores de conduta social entre os
Yoruba da Nigéria (África do Oeste). Tese (Doutorado em Sociologi-
a). Orientador: Fábio Rubens da Rocha Leite. Faculdade de Filosofi-
a, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1999.
68 | Literatura e diáspora
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J.
coordenador. História Geral da África: I metodologia e Pré-História
da África. São Paulo: Ática; UNESCO, 2010.
XAVIER, Juarez Tadeu de Paula. Versos Sagrados de Ifá: núcleo
ordenador dos complexos religiosos de matriz Ioruba nas Américas.
329 f Tese (Doutorado em comunicação). Programa de Pós-
Graduação em Integração da América Latina, USP, São Paulo,
2004.
1
Doutorando em Letras — História da Literatura, pela Universidade
Federal do Rio Grande (FURG). Endereço eletrônico: rrpereira83@
gmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 71
revisited from the etymology to the current discus-
sions traced by scholars on the subject. Secondly, the
notion of diasporic literature in the contemporary
Western world is discussed as a result of the produc-
tion of diasporic individuals, highlighting the main
features of this subject that will be responsible later
for a diasporic critical and self-reflexive conscious-
ness.
Keywords: Diaspora. Literary history. Diasporic litera-
ture. Diasporic subject.
2
http://www.bibliaonline.com.br/acf/dt/28.
72 | Literatura e diáspora
ropeu. Paul Gilroy (2001, p. 382) associa esses contextos à
“ideia de exílio, dispersão e escravidão”. Essas discussões
foram um importante recurso para o mesmo pensar os pro-
blemas identitários da diáspora no Atlântico “negro”. Para
ele, tal fenômeno promove experiências ambivalentes dos
negros, como dos judeus, dentro e fora da modernidade.
Inspirado na desterritorialização deleuziana e na não lineari-
dade da física contemporânea, Gilroy define o Atlântico negro
como uma formação rizomática e fractal, posicionando-se
contra as ideias de integridade e pureza das culturas, como o
absolutismo étnico. Assim, a presença do sujeito diaspórico
pode quebrar o discurso determinante de uma cultura que se
considera homogênea, porque questiona a relação entre
identidades e pertencimento.
Outros teóricos, assim como Gilroy, estudam a mani-
festação e o silenciamento das culturas africanas no mundo
de hoje a partir dos movimentos diaspóricos. Nei Lopes, por
exemplo, na Enciclopédia brasileira da diáspora africana, a-
crescenta que o termo serve também para designar, por ex-
tensão de sentido, “os descendentes de africanos nas Améri-
cas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram”
(2004, p. 236). Nessa concepção atual do termo, a diáspora
evidencia o fluxo e o refluxo intercontinental existentes.
Hoje, é possível perceber que os trabalhos acadêmicos
sobre a diáspora constituem uma longa e interessante traje-
tória. O início da teorização em torno da diáspora está inti-
mamente ligado à história do tráfico de escravos da África
para as Américas. A esse respeito, Linda Heywood (2010) traz
uma contribuição significativa, dedicando-se ao estudo da
diáspora africana nas Américas. A primeira observação da
estudiosa que se faz interessante para a presente reflexão é
que, diferentemente da História da África, os primeiros tra-
balhos acadêmicos sobre a diáspora foram escritos por afro-
americanos ou publicados em periódicos fundados por eles.
Nesse contexto, o acadêmico e teórico das relações raciais
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 73
W. E. B. Du Bois pode ser considerado um dos fundadores
desse campo de estudo, com a publicação de The supression
of the slave trade to the United States, publicado em 1896,
como o primeiro volume da série Harvard historical studies.
Duas décadas depois, o fundador do Journal of negro history
(1916), Carter G. Woodson, organizou o primeiro fórum aca-
dêmico para estudos sobre a história dos africanos e seus
descendentes. Woodson, editor do Journal até 1950, fez um
esforço concentrado para publicar e promover todos os as-
pectos das experiências africanas e afro-americanas nas A-
méricas do século XVI até o século XX. Na verdade, antes do
surgimento do Slavery and abolition (1979), o Journal of negro
history era o único periódico acadêmico dedicado exclusiva-
mente a pesquisar a diáspora africana. Ele veiculava contribu-
ições de acadêmicos de etnia e nacionalidade variadas e in-
troduzia uma grande diversidade de textos que destacavam
as vibrantes tradições culturais das populações afrodescen-
dentes nas Américas, atesta Heywood.
Além disso, ainda de acordo com Heywood, o exemplo
da Universidade Howard de ministrar cursos, desde 1920,
sobre o negro nas civilizações antigas e o negro na civilização
moderna também ajudou a institucionalizar o campo da his-
tória da diáspora africana. Apesar de pioneira em encorajar
essas pesquisas, a Escola da História Negra acabou se con-
centrando mais na experiência dos Estados Unidos, e mais
tarde não teve um impacto visível nas tendências de pesqui-
sas e modelos teóricos que vieram a definir o campo de estu-
do da diáspora africana. Uma geração posterior de acadêmi-
cos, muitos trabalhando em campos que não o da história e
representando várias nacionalidades e etnias, tiveram um
papel mais direto em formatar os conceitos e questões que
vieram a dominar os escritos da história da diáspora africana.
Os trabalhos dessa nova geração de acadêmicos começaram
a surgir durante os anos 1930 até o início dos anos 1950. No
entanto, o que a crítica nos ajuda a ver é que esses estudos
74 | Literatura e diáspora
tiveram grandes falhas pelo fato de muitos dos pesquisado-
res serem etnógrafos e antropólogos, possuindo pouco ou
nenhum conhecimento de história do tráfico de escravos
africanos ou de história africana; por isso, deixam de consul-
tar trabalhos disponíveis sobre esses temas.
É somente a partir dos anos 1960 que as publicações
acadêmicas revolucionam o campo de estudos da diáspora
africana, prosseguindo pelos 1980, apesar de focarem quase
exclusivamente no comércio de escravos. O estudo pioneiro
de Philip Curtin, The Atlantic slave trade: a census, foi a pri-
meira tentativa séria de dar uma estimativa aproximada do
número de africanos escravizados que foram para as Améri-
cas. Seguindo a argumentação de Heywood, esse foi na ver-
dade o primeiro trabalho que revelou a forte presença cen-
tro-africana. Todavia, isso não contribuiu para o surgimento
de mais pesquisas sobre as tradições culturais da África Cen-
tral, já que os historiadores econômicos, interessados no
estudo do comércio de escravos e seu impacto nas economi-
as da Europa e das Américas, dominaram o campo das inves-
tigações. Assim, conforme os estudos empreendidos por
Curtin, outros trabalhos do gênero destacaram a organização
econômica do tráfico, padrões de investimento e lucro, a
demografia escrava, mortalidade e impacto econômico do
comércio na África, Europa e Américas. Os melhores estudos
forneceram tabelas e gráficos sofisticados que calculavam o
número de escravizados africanos que vieram para as Améri-
cas, discutiam a lucratividade do comércio (ou sua inexistên-
cia) e incluíam um leque de tabelas demográficas, descre-
vendo a degradação e morte associadas à “passagem do
meio” (travessia do Atlântico) e os sistemas de plantações
nas Américas. Outros estudos, cobrindo vários aspectos da
organização e administração das fazendas, focalizando mais
a história social do que cultural, também surgiram durante os
anos 1970 e 1980.
76 | Literatura e diáspora
pensamento descentrado como consubstancial à alta mo-
dernidade” (BOLAÑOS, 2010, p. 168).
Quanto aos clássicos da diáspora, para pensá-la no
mundo contemporâneo, notável contribuição realiza Caren
Kaplan, ao teorizar a diáspora com base em Edward Said e
James Clifford. Said ocupa um lugar principal por sua con-
cepção pós-moderna de diáspora que identifica o intelectual
cosmopolita como uma figura do mundo transnacional, op-
tando pelo uso do termo diáspora a partir dos anos 1980 no
lugar de exílio pelo seu “manto inclusivo”, capaz de aludir à
multiplicidade de identidades em trânsito. Na sua opinião, a
cultura tem o poder de dominar, validar, interditar, marcan-
do-se uma expressiva diferença entre pertencer na conformi-
dade ou no criticismo; neste último caso, o artista e intelec-
tual encarna uma energia migrante e tem uma missão
libertadora nascida da sua oposição às forças devastadoras
do imperialismo (SAID, 1983, p. 9). Por sua dinâmica descen-
trada, constitui uma figura entre domínios, entre formas,
entre lares, entre linguagens, perspectiva desde a qual se
torna original (SAID, 1993, p. 332). Com base na distinção
entre filiação e afiliação, Said aponta para este último como
sendo diretamente relacionado ao sentido da diáspora no
contexto contemporâneo, dado que tem a ver com as cone-
xões entre culturas em dispersão, sendo compensatória, cria-
tiva e desalienante.
Por outro lado, Clifford (1992, p. 101) parte de estudos
acerca de identidades comunitárias para se perguntar como
o discurso da diáspora representa as práticas de construção
de lares longe do lar. Interessado na dimensão diaspórica e na
não reprodução do nacionalismo decorrente desse fenômeno
contemporâneo, Clifford celebra o dinamismo das poéticas
do deslocamento de tal modo que supera o binarismo de cen-
tro/periferia, pois não está interessado em fazer da margem
um novo centro, mas em estudar de forma comparativa as
dinâmicas específicas de deslocamento e de viagem nos
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 77
marcos das práticas interculturais, pensando que o lugar da
experiência diaspórica é sempre intermediário. Com perspec-
tiva histórica, Clifford estuda a diáspora como comunidades
transnacionais, transregionais e desenvolve sua crítica das
teleologias do regresso das interpretações tradicionais de
diáspora. Seu discurso pode articular tanto a generalizada
migração quanto os sítios específicos da hibridez do transna-
cionalismo pós-moderno. Nos seus trabalhos mais recentes,
o conceito de diáspora se enriquece na diferenciação não
excludente com outras formas de deslocamento, tais como
exílio, expatriação e a própria migração, referindo-se a histó-
rias de habitabilidade e relocalização, à criação de identida-
des na dispersão e a partir de escombros históricos. Assim,
observamos que o teórico apresenta a diáspora como um
termo desestabilizador que fala de roteiros e raízes, em trans-
formação nas condições do mundo globalizado.
Ao lado da africana, a diáspora cubana parece ser a
mais significativa no contexto das teorizações contemporâ-
neas a respeito do fenômeno e o desenvolvimento do concei-
to. Reconhecidamente uma estudiosa da diáspora no mundo
ocidental, Bolaños (2010, p. 173-76) contribui ainda mais para
este debate teórico ao debruçar-se de modo especial sobre a
diáspora cubana. Dentre os inúmeros achados significativos a
esse respeito, acredito ser de grande valia a sua percepção do
fato de que, na experiência cubana, ao serem ultrapassados
os esquemas dicotômicos (neste caso, de Ilha e diáspora/
exílio), assim como as classificações e periodizações exclu-
dentes, ganha visibilidade, sobretudo a partir dos anos 1990,
a ideia da cultura cubana como uma só, com diferentes luga-
res de enunciação. O foco se desloca da origem fixa à forma-
ção de identidades transcultural, processo no qual a memória
imaginária tem um papel fundamental. O interessante dessa
constatação, é que de uma noção fechada de diáspora a teo-
ria vai elaborando o entendimento dinâmico, não exclusiva-
mente territorial, de transação.
78 | Literatura e diáspora
Com base nessa argumentação, torna-se possível per-
ceber que se nas suas trocas vernaculares cosmopolitas as
culturas se fertilizam, criando um espaço simbólico, a estéti-
ca da diáspora é de reutilização de matérias-primas, de tra-
dução entre dois mundos, e sua disseminação não pode ser
entendida nos marcos dos modelos que estão desabando,
tais como centro/periferia, cultura-nacionalista-nação, ainda
menos recuperação nostálgica, pois nas práticas artísticas da
diáspora, a cultura não é apenas uma viagem de redescober-
ta, mas uma produção. Conforme demonstra Bolaños (2010,
p. 185), na teoria atual da diáspora, os topos discursivos re-
correntes referem-se a viagem, origem, memória, migração,
exílio, expatriação, nação, regresso, tradição, mitos fundado-
res, habilidade, localização, fronteira, zonas de contato, entre-
lugar, sendo o tema da identidade/alteridade a maior referên-
cia. Vinculados ao conceito, aparecem termos compósitos de
teor teórico-operativo que o matizam, fazendo possível uma
trama analítica mais apurada e diversificada, como dimensão,
imaginação, espaço, sujeito cosmopolita, experiência, que une
reflexão e vivência, todos diaspóricos.
Do ponto de vista histórico-literário, na década de
1960, com o advento da Teoria Literária, a História da Litera-
tura — configurada enquanto campo do saber, ao final do
século XIX, em meio ao movimento de definição das literatu-
ras nacionais — passa a ser atravessada por ondas de contes-
tação, decorrentes sobretudo por razões políticas. O fato é
que, até recentemente, poucos percebiam como impositivos
e hierarquizantes os processos totalizadores e universalizan-
tes que sustentam a base epistêmica de representação, signi-
ficado e valor da cultura no mundo ocidental. Foi somente na
segunda metade do século XX que novas teorias propiciaram
noções culturais de descentramento do poder e abriram cami-
nho para políticas da diferença. É a partir daí que teorias como
a Crítica Pós-colonial e os Estudos Culturais vêm constituído
instrumentos valiosos para o processo de descolonização em
Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana
Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1998.
BOLAÑOS, Aimée. Diáspora. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário das
mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis,
2010, p. 167-87.
BRAH, Avtar. Cartographies of Diaspora: Contesting Identities. Lon-
don; New York: Routledge, 1998.
88 | Literatura e diáspora
CLIFFORD, James. Travelling cultures. In: GROSSBERG, Laurence
et al (Ed.). Cultural Studies. New York: Routledge, 1992, p. 96-112.
CURY, Maria Z. F. Uma luz na escuridão: imigração e memória. In:
BAUMGARTEN, Carlos A.; VAZ, Artur E. A.; CURY, Maria Z. F.
(Org.). Literatura e imigração: sonhos em movimento. Belo Horizon-
te: Faculdade de Letras da UFMG; Rio Grande: FURG, Programa de
Pós-Graduação em Letras: História da Literatura, 2006. p. 9-34
DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Trad. Heloisa Toller
Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência.
São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes —
Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2004.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: UFMG, 2003.
HEYWOOD, Linda M. (Org.). Diáspora negra no Brasil. Trad. Ingrid
de Castro. 1. ed. 2. reimp. São Paulo: Contexto, 2010.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo:
Selo Negro, 2004.
SAID, Edward. Culture and Imperialism. New York: Alfred A. Knopf,
1993.
SAID, Edward. The world, the text and the critics. Cambridge: Har-
vard University Press, 1983.
1
Mestrando em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas,
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
Colaborador da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil
(SECNEB). Escritor da obra: Afrocontos: Ler e ouvir para transformar.
Endereço eletrônico: marcoscaje8@ gmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 91
The motivation that prompted the construction both
this article and the underlying research was the inter-
est in relation to the elements of the stories in the
popular actions of oral traditions that emerge as
reading, the narrative discourse of the Master Didi
work. The symbolic system allows encompass epis-
temological looks and common sense by which these
symbols and signs bring representations of the collec-
tive unconscious of a people.
Keywords: African-Brazilian culture. Symbols. His-
tory. Tradition.
Introdução
Todos os povos sempre narraram suas histórias pelos
contos e pelos mitos, mesmo quando não havia escrita. No
entanto, havia a oralidade como mecanismo substancial que
agregava valores ao movimento social de cada povo, e suas
memórias eram preservadas. E essas histórias guardam a
cultura. Discutiremos, no presente artigo, os símbolos e sig-
nos presentes nas narrativas literárias dos contos de Mestre
Didi, de modo genérico, uma vez que existem noventa e qua-
tro contos do referido autor, distribuídos nos livros: Contos
crioulos da Bahia (sessenta e cinco contos); Contos negros da
Bahia e contos de Nagô (vinte quatro contos); Porque Oxalá
usa Ekodidé; História da Criação do Mundo; Autos Coreográfi-
cos Mestre Didi (dois contos); A chuva de poderes.
A compreensão da palavra símbolos tem sua origem no
Latim Symbolum, que significa “marca, símbolo”. Este, por
sua vez, é derivado do grego clássico Simbolon, “senha garan-
tia”. Esta palavra grega é formada por SYN, que significa jun-
to, e BALLEIN, que tem o significado de “lançar, arremessar,
atirar”, sua tradução literal seria “atirar junto”. É algo que
representa uma ideia, uma entidade física ou um processo. Já
o signo indica alguma coisa, e representa o próprio símbolo
como marca. Diante dessas compreensões sucintas a respeito
92 | Literatura e diáspora
dos termos símbolos e signos, será feita análise dos mesmos
nos contos de Mestre Didi. No entanto, este exame será mui-
to mais amplo, mais denso, já que diante dos contos existe a
história cultural que carrega percepções de um povo africano
e dos afrodescendentes, pois os contos contam muito mais
que fábulas: eles contam a historiografia e a diáspora.
Analisar os contos literários de Mestre Didi possibilita
ampliar a cultura e descortinar os elementos da história com
a junção da literatura, com proporção de multirreferenciali-
dades históricas dos saberes ocultos e às vezes silenciados
nas narrativas dos contos. Sendo que muitas dessas literatu-
ras narradas nas escritas e na oralidade guardam os símbolos
e signos que se manifestam como acervo da cultura e seus
personagens literários retratam parte do real e do imaginá-
rio.
Os contos, enquanto material histórico, mescla reali-
dade e invenção enveredando por um caminho fantástico, ao
tempo em que absorvem a história e cultura através de tradi-
ções orais e de sujeitos como autores e atores. A interpreta-
ção simbólica dos contos permite perceber, pelo viés da lite-
ratura, uma estrutura que ultrapassa o ato de simplesmente
ler, propiciando a construção de uma interpretação histórica.
Compartilhando com o ponto de vista de Robert Darn-
ton (2014, p. 26), ouso transcrever uma longa citação:
A generosa visão do simbolismo que tem Bettelheim
fornece uma interpretação menos mecanicista do
conto do que a resultante do conceito de código
secreto que tem Fromm, mas também decorre de
algumas crenças não questionadas quanto ao texto.
Embora cite comentaristas de Grimm e Perrault em
número suficiente para indicar alguma consciência do
folclore como disciplina universitária, Bettelheim lê
“Chapeuzinho Vermelho” e os outros contos como se
não tivessem história alguma. Aborda-os, por assim
dizer, horizontalizados, como pacientes num divã,
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 93
numa contemporaneidade atemporal. Não questiona
suas origens nem se preocupa com outros
significados que possam ter tido em outros
contextos, porque sabe como a alma funciona e como
sempre funcionou. Na verdade, no entanto, os contos
populares são documentos históricos. Surgiram ao
longo de muitos séculos e sofreram diferentes
transformações, em diferentes tradições culturais.
Longe de expressarem as imutáveis operações do ser
interno do homem, sugerem que as próprias
mentalidades mudaram. [...]
Diante do exposto acima, os símbolos nos contos co-
municam a história cultural de uma nação ou de uma etnia.
Nos contos de Mestre Didi, a ancestralidade do povo nagô
está implícita pelos contos de procedência “do sagrado, se-
jam eles escritos ou orais, que são relatos vivos dos deuses se
relacionando com o indivíduo em todas as esferas interpes-
soais e místicas” (CAJÉ, 2014). Os símbolos e signos articu-
lam-se de maneira sublime, tanto na escrita como na orali-
dade, como é possível perceber na assertiva abaixo:
A interpretação do símbolo, uma vez descoberto seu
nexo ontogenético, seu ou seus referentes, permite-
nos tornar explícita a realidade fatual. Já dissemos
que não entendemos o símbolo com um significado
constante; sua interpretação está sempre em relação
a um contexto. Sua mensagem está em função de
outros elementos (SANTOS, 2008, p. 23).
Os símbolos nos contos possuem fins peculiares e per-
tinentes ao homem, pois mesmo que ora estejam ocultos,
ora desvelados, manifestam-se como dinamizadores da cul-
tura, tornando-se mecanismos de evidências e sinais para a
história. Como afirma Ginzburg “poderíamos comparar os
fios que compõem esta pesquisa aos fios de um tapete. Che-
gando a este ponto, vemo-los a compor-se numa trama den-
sa e homogênea” (GINZBURG, 1989), já que os símbolos e
signos encontrados nos contos fazem o indivíduo observar
94 | Literatura e diáspora
suas necessidades, caso existam, e distinguir variantes cultu-
rais e ao mesmo tempo (re)construir uma identidade. A pró-
pria concepção do conto por si só já pode ser compreendida
como símbolo-signo — uma unidade completa — e quando
nos deparamos com a leitura e suas interpretações, usamos
esse objeto como unidade simbólica ou uma representação
simbólica.
O nível da interpretação simbólica permitiu-me
penetrar, abarcar e tornar inteligível certos aspectos
dos dados fatuais que não poderia ter apreendido de
outra forma. É particularmente frutuoso, quando
aplicado a uma disciplina consagrada ao estudo das
“ações não-poéticas”, de ritos, formalizações,
dramatizações... artes não aplicadas (LANGER apud
SANTOS, 2008, p. 25).
Como foi comentado no início deste texto, lançaremos
um olhar epistemológico dos símbolos e signos nos contos de
Mestre Didi, sendo que utilizaremos mais adiante dois contos
para revelar alguns elementos revelados. Como é do conhe-
cimento de todos, as culturas africanas foram encaminhadas
para o Brasil pelos escravizados que foram arrancados e mas-
sacrados desde a chegada dos portugueses, a partir da des-
coberta do país.
Na sua transatlântica viagem feito animais, os negros
trouxeram consigo valiosos bens que proporcionaram ao
Brasil a cultura como é hoje; e nessa diáspora vigiada, acor-
rentada, humilhada, eles também possibilitaram a constru-
ção da memória imaterial das narrativas orais, que possuem
signos e símbolos. E a partir da dinâmica dos contos, passa-
mos a conhecer o sistema cultural deste homens e mulheres;
suas guerras; seus reis com suas nações; sua religião de ma-
trizes africanas e seu panteão; seus mitos; enfim, tudo isto
está presente nos contos de Mestre Didi.
96 | Literatura e diáspora
Em reposta, ela prontamente, de muito bom grado,
mandou todos se sentaram e começou a servir um
por um.
Terminada a refeição, Ogun que não tinha dinheiro
nenhum para pagar o almoço, pois devorara com os
companheiros tudo o que foi de comer da velhinha,
pontual como era, dividiu com ela de tudo o que
trazia de saques da guerra, ficando assim a
vendedora de acaçás e mingau riquíssima, de
surpresa. Esta transferência foi divulgada por todos
os lugares do mundo (SANTOS, 2008, p. 111).
A análise do conto acima levando-se em consideração
os símbolos e signos nos remete à perspectiva da literatura
pela história, já que possui elementos culturais bastante rele-
vantes. Observa-se que o sagrado está simbolizado pelo orá-
culo Ifá, que pelo axé (energia dinâmica) possibilita à velhi-
nha uma vida melhor. No entanto, essas energias ou Asé (axé
— energia dinâmica elementar da vida) precisam ser doadas
para serem recebidas, neste caso, pela oferenda, pois os sig-
nos do acaçá e do mingau são elementos genéricos que ali-
mentam a vida, ou seja, o indivíduo.
É possível também observar no contexto do conto a
posição social que simboliza força e hierarquia, quando Ogun
aparece como general e não como Orixá, e os soldados sur-
gindo de um conflito que é a guerra.
Metaforizando as inúmeras possibilidades que este
conto oferece no bojo de sua narrativa, ao ser lido por cada
pessoa, seus símbolos e signos contribuem como um elo es-
sencial e necessário para as relações sociais e culturais, como
a relação da velha com o sagrado e com a generosidade; e a
recompensa no final: a riqueza.
Os contos populares, como diz Darnton (2014, p.26)
“são documentos históricos”. Surgiram ao longo de muitos
séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes
tradições culturais”. Observando o conto de Mestre Didi aci-
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 97
ma, nota-se que a vivência com o mundo místico era algo que
estava presente constantemente na vida dos homens e mu-
lheres; e seria como algo propulsor na sociedade, como um
seguro social que alimenta a fé.
Assim como o mingau e o acaçá alimentam o corpo, a
fé alimentava ou alimenta ainda hoje a ideia de cosmovida,
enquanto ser humano e divino se entrelaçam através do sig-
no que é o jogo oracular. A velhinha representa a ancestrali-
dade do povo africano e dos afrodescendentes, evidenciando
a dicotomia do mágico/real. O fio condutor deste conto é a
relação do imaginário com a tradição dos acontecimentos na
sociedade.
Os personagens dos contos com suas múltiplas face-
tas, destacando-se a literária e a histórica, possuem uma
função que é guardar os signos e símbolos culturais dos afro-
descendentes. Assim sendo, essa simbologia nutre as mais
variadas formas de comunicação que compõem os variados
matizes da diversidade e riqueza da cultura afro-brasileira.
Podemos entender que a função simbólica dos contos
está velada e se manifesta no processo de sociabilidade; fun-
cionando, assim, o entendimento pela comunicação. Os con-
tos de Mestre Didi são constituídos de variados elementos,
desde a sua formação religiosa, como Asipá, Alapini, sacerdo-
te supremo do culto aos Baba-egun. Como artista plástico e
homem negro, seus contos trabalham com a diversidade
humana, pois são escritos que se baseiam nos símbolos do
sincretismo, nos contos fabulados e cosmogônicos (contos
baseados nos mitos), nas próprias relações sociais, pois mui-
tos contos possuem visões da história cultural, seja da Bahia
(principalmente do recôncavo baiano), seja dos contos afri-
canos da diáspora.
Como alguns dos principais alicerces da cultura, temos
os símbolos e signos; a linguagem e os costumes; e outras
composições axiológicas que também, obviamente, alimen-
98 | Literatura e diáspora
tam o sistema dinâmico das relações humanas. É através dos
símbolos e signos, que compreendem a ideia central do arti-
go, que somos direcionados a uma magnífica compreensão
da cultura. Por exemplo, retomando o personagem do conto
acima — Ogun — que simboliza o homem forte que traz con-
sigo a vitória e a força, pois na tradição cultural do panteão
ioruba, expressar símbolos é conotação de existência, tantos
para os ancestrais quanto para os que vivem.
A cultura é o movimento da ancestralidade, e a
ancestralidade é como um tecido produzido no tear
africano: na trama do tear está o horizonte do
espaço; na urdidura do tecido está a verticalidade do
tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço
cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a
urdidura da existência. A ancestralidade é um tempo
difuso e um espaço diluído. Evanescente, contém
dobras. Labirintos desdobram-se no seu interior e os
corredores se abrem para o grande vão da memória.
A memória é precisamente os fios que compõem a
estampa da existência (OLIVEIRA, 2007, p. 245).
Na citação acima, nota-se claramente a importância de
tecer nossa ancestralidade como cultura que se processa no
tempo e espaço: no conto, a personagem da Velhinha é a
personificação da mulher como elemento que simboliza a
ancestralidade feminina que trabalha, que manuseia o ali-
mento que, por sua vez, é fonte para a vida humana; ade-
mais, a comida é a ponte para o diálogo com Ogun, já que
sacia sua fome e dos seus soldados.
A ancestralidade está representada neste conto e em
vários outros de Mestre Didi, pois é na mesma que se encon-
tra a força das histórias da tradição oral e também a história
como fonte literária e documental de um povo ou de uma
nação: é essa ancestralidade que alicerça a cultura iorubana e
outras do continente africano.
Considerações finais
O conto “A vendedora de acaçá” tem símbolos e signos
que se desvelam para tecer a cultura e, a um só tempo, im-
pulsionam com veemência o imaginário fantástico pela lite-
ratura. Sem esquecer que eles também empregam a história
como ferramenta que torna os contos como documentos
históricos, ou seja, os contos populares de Mestre Didi não
somente distraem, provocando alegria quando são lidos, eles
são também mecanismos historiográficos que possibilitam a
compreensão da diáspora e da cultura dos povos negros.
É importante salientarmos que a literatura dos contos
de Mestre Didi ressalta com peculiaridade um estilo que vai
do fantástico ao sagrado: uma combinação essencial da in-
terpretação de uma cultura e, principalmente, os contos ana-
lisados pelos caminhos dos signos e símbolos proporcionam
uma visão da cosmovisão da cultura negra.
Utilizar a lógica e a epistemologia conjugadas com o
senso comum dos contos populares, é um modo de formar
um sistema dinâmico genérico; é comunicar e apresentar a
cultura afro-brasileira como é e como pode ser. A obra literá-
ria de Mestre Didi é uma poderosa síntese de impulsos e idei-
as diversas. Em seus contos encontramos símbolos de intera-
ção social, coletivo e cultural.
Referências
CAJÉ, Marcos. Afrocontos: ler e ouvir para transformar. Salvador:
Quarteto, 2014.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 103
DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos: e outros episódios
da história cultural francesa. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
DIDI, Mestre. Contos crioulos da Bahia: Creole Tales of Bahia:
ÁkójopòÍtànÁtenudénuÍran Omo OdùduwàniIlè Bahia (Brasíì). Salva-
dor: Núcleo Cultural Níger Okàn, 2004.
DIDI, Mestre. Yorubá tal Qual se Fala. Tipografia Moderna, Bahia,
1950.
DIDI, Mestre. Porque Oxalá usa Ekodidé. Salvador: Ed. Cavaleiro da
Lua, 1966.
DIDI, Mestre. Xangô, el guerrero conquistador y otros cuentos de
Bahia. Buenos Aires: Ediciones Silva Diaz, 1987.
DIDI, Mestre. História da Criação do Mundo. Olinda Ilustração Adão
Pinheiro, 1988.
DIDI, Mestre. Ancestralidade Africana no Brasil, Mestre Didi: 80
anos. Org. Juana Elbein dos Santos. SECNEB, Salvador, Bahia,
1997, CD-ROM — Ancestralidade Africana no Brasil.
DIDI, Mestre. Contos negros da Bahia e contos de Nagô. Salvador:
Corrupio, 2003.
DIDI, Mestre. Autos Coreográficos Mestre Didi, 90 anos. Org. Juana
Elbein dos Santos. Salvador: Corrupio, 2007.
DIDI, Mestre. História de um terreiro Nagô. São Paulo: Carthago &
Forte, 1994.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e Histó-
ria. Trad. Federico Caroti. SP: Companhia das Letras, 1989.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.
LUZ, Marco Aurélio. Cultura negra e ideologia do recalque. Salvador:
EDUFBA, 2011; Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
OLIVEIRA, Eduardo David. Filosofia da ancestralidade: corpo de
mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica
Popular, 2007.
SANTOS, Elbein J. dos. Os Nagôs e a morte. Rio de Janeiro: Vozes,
2008.
1
Mestre em Letras/Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL),
com bolsa CAPES e membro do Laboratório de Estudos Avançados de
Linguagens (LEAL/UCPEL). Endereço eletrônico: fernandabage@
hotmail.com.
2
Doutoranda em Letras/Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e
bolsista CAPES. Endereço eletrônico: cadrives@hotmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 105
THE IDENTITY-ALTERITY CONSTRUCTION IN AIMÉE E
JAGUAR FILM ADAPTATION: A BAKHTINIAN ANALYSIS
Introdução
O sujeito busca sua individualidade, busca conhecer-
se, saber-se como ser no mundo. Mesmo antes do nascimen-
to somos identificados como menino ou menina, recebemos
um nome, que nos individualiza. Aos poucos a criança, ainda
pequena, vai experimentando a vida, testando seu próprio
corpo, seu gênero, identificando cada parte que o compõe
(cf. BAKHTIN, 2010, p. 46). Cada sujeito é singular, individual,
designado como Eu, mas, para existir, este Eu necessita do
Outro que o constitui. Nas palavras de Sobral, “Só me torno
eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina a par-
tir do outro, ao mesmo tempo o define, é o ‘outro’ do outro:
eis o não acabamento constitutivo do Ser [...]” (SOBRAL,
2013, p. 22, Grifos do autor).
106 | Literatura e diáspora
Os primeiros contatos da criança com o mundo já a
põem em contato com outros sujeitos. Sobre isso, Bakhtin
(2010, p. 46) afirma que “dos lábios da mãe e das pessoas
íntimas a criança recebe todas as definições iniciais de si
mesma [...] a criança ouve e começa a reconhecer o seu no-
me, a denominação de todos os elementos relacionados ao
seu corpo”.
A concepção de linguagem a partir da ótica bakhtinia-
na encontra sua base teórica calcada no dialogismo, isto é, na
compreensão ativa dos interlocutores e responsiva na lin-
guagem. Assim, sabemos que as relações entre sujeitos e as
construções de sentido, através das quais as identidades so-
ciais são constituídas, são essencialmente dialógicas.
Para Bakhtin, o sujeito é constituído socialmente, atra-
vés das relações sociais com outros sujeitos. Dessa forma,
construímos nossa consciência a partir das nossas experiên-
cias no mundo e das relações que estabelecemos com os
outros. Essas relações nem sempre se apresentam de forma
harmoniosa, podendo ser conflituosas e até mesmo contradi-
tórias.
Sobral (2009, p. 47) busca “corrigir uma impressão que
por vezes se tem de que o Círculo vê só o social e nunca o
sujeito”. Sobre isso, o autor afirma que “[...] o Círculo teoriza
precisamente sobre a individualidade, o sujeito, mas, realisti-
camente, em suas relações com outros sujeitos que o consti-
tuem e que são constituídos por ele”. Do mesmo modo, a
sociedade é constituída na relação entre sujeitos e os consti-
tui, já que a forma como interpretamos o mundo faz vir à
tona nossas vivências e experiências a partir da sociedade e
do contexto sócio-histórico em que estamos imersos/as.
As relações dialógicas que se estabelecem entre os su-
jeitos sócio-historicamente constituídos encontram apoio
nos conceitos de recursividade e de responsividade, uma vez
que o enunciado, apesar de ser um evento discursivo único e
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 107
irrepetível, traz consigo diversas vozes de discursos anterio-
res e futuros que o constituem. Dessa forma, o nosso discur-
so atualiza discursos passados e antecipa discursos futuros.
Nosso dizer está constituído do dizer do outro e também o
constitui.
É nesse contexto, à luz da Análise Dialógica do Discur-
so (ADD) e a partir de uma perspectiva de gênero que pre-
tendemos, neste artigo, refletir sobre a constituição do sujei-
to e a construção da identidade-alteridade das protagonistas
do filme Aimée e Jaguar, baseado na obra da escritora alemã
Erica Fischer.
Considerações finais
A partir do momento em que nascemos socialmente,
buscamos nos reconhecer como seres no mundo, buscando
nossa individualidade. Contudo, só é possível saber-se como
um Eu, através das relações com os outros. Conforme consi-
dera Bakhtin (2010), não há Eu sem o Outro, portanto, a i-
dentidade do sujeito não é algo acabado, fechado, mas vai se
construindo ao longo de toda sua vida, a partir de sua partici-
pação nas mais diversas esferas da vida social.
Assim como a palavra, que não possui um sentido em
si mesma, é também a identidade. Só é possível pensar a
identidade se esta for vista como fluida, que se constitui
na/pela alteridade, pois, através de suas relações sociais, o
sujeito desempenha diferentes papéis de acordo com a posi-
ção social assumida em diferentes contextos de comunica-
ção.
Com a análise do filme Aimée e Jaguar foi possível per-
ceber que a identidade das protagonistas foi se construindo a
partir dos diversos papéis sociais assumidos por elas e das
diferentes posições enunciativas de onde falavam durante a
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 125
narrativa fílmica. O filme mostrou que Lilly e Felice não são
sempre as mesmas, pois suas identidades sociais se apresen-
tam de diversas formas ao logo da história.
Lilly desempenha o papel de mãe, de esposa e de a-
mante, mas se realiza emocionalmente no papel de Aimée
que assume ao lado de Felice. Já Felice vive em conflito tendo
que se esconder atrás de uma identidade falsa de viúva ale-
mã. Esta personagem mobiliza uma posição enunciativa que
a faz calar quem realmente é. Apesar de — conforme a define
sua amiga Ilse — parecer ser várias pessoas, conforta-se na
identidade de Jaguar.
Assim, o filme Aimée e Jaguar mostra que as identida-
des sociais são fluidas e não consistem em algo acabado. A
cena final vem corroborar com tal percepção, uma vez que
Lilly e Ilse anos depois dos acontecimentos, no jardim da casa
de repouso onde vivem, ainda se questionam sobre o passa-
do e sobre o presente, construindo sentidos sobre as suas
ações e as daqueles/as que com elas conviveram, tentando
compreender — enquanto existir vida, enquanto existir signi-
ficado — quem foram, quem são, como agiram e agem no
mundo.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2010.
CARRIÈRI, J. C. A linguagem secreta do cinema. Trad. Fernando
Albagli e Benjamin Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
FREITAS, M. T. A. Identidade e alteridade em Bakhtin. In: Luciane
de Paula; Grenissa Staffuza. (Org.). Círculo de Bakhtin: pensamento
interacional. São Paulo: Mercado de Letras, 2013, volume 3.
MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin — Criação de uma
prosaística. São Paulo: Edusp, 2008.
Referência cinematográfica
ROHRBACH, G.; HUTH, H.; FÄRBERBÖCK, M. Aimée e Jaguar. [Fil-
me-vídeo]. Produção de Günter Rohrbach e Hanno Huth, direção
de Max Färberböck. Adaptação da obra de Erica Fischer. Alemanha,
Senator Film Produktion, 1999. DVD, 125 min.
1
Máster en Teatro y Artes Escénicas por la UVIGO/España; Doctorando
del Programa Interuniversitario de Doctorado en Estudios Literarios de
la UVIGO/España; especialista en Arte y Educación por la FAG;
graduado en Música por la Anhanguera; graduando en Artes Visuales
por la Anhanguera; integrante del Proyecto de extensión “Literatório: a
prática da literatura na escola”, vinculado al Programa PELCA —
Programa de Ensino de Literatura e Cultura da UNIOESTE/Cascavel;
Colaborador do Projeto de pesquisa “Ressignificações do passado na
América: leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e
ficção — vias para a descolonização”, coordenado pelo Prof. Dr. Gilmei
Francisco Fleck. Endereço eletrônico: cj_lopez2@hotmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 129
VISIONS ABOUT GALICIA AND ITS HISTORY IN ROSALÍA
DE CASTRO’S WORK: A BANISHED SOUL AND HER OWN
LAND
II
142 | Literatura e diáspora
Vexo contigo estos ceos,
vexo estas brancas auroras,
vexo estes campos froridos
onde se arrullan as pombas,
i estas montañas xigantes
que aló cas nubes se tocan
cubertas de verdes pinos
e de froliñas cheirosas;
vexo esta terra bendita
donde o ben de Dios rebota
e donde anxiños hermosos
tecen brillantes coroas;
mais, ¡ai!, como tamén vexo
pasar macilentas sombras,
grilos de ferro arrastrando
antres sorrisas de mofa,
anque mimosa gaitiña
toque alborada de groria,
eu podo dicirche:
non canta, que chora.
III
Falas, i o meu pensamento
mira pasar temerosas
as sombras deses cen portos
que ó pe das ondiñas moran,
e pouco a pouco marchando
fráxiles, tristes e soias,
vagar as naves soberbas
aló nunha mar traidora.
I ¡ai!, como nelas navegan
os fillos das nosas costas
con rumbo á América infanda
que a morte co pan lles dona,
desnudos pedindo en vano
á patria misericordia,
anque contenta a gaitiña
o probe gaiteiro toca,
eu podo dicirche:
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 143
non canta, que chora.
IV
Probe Galicia, non debes
chamarte nunhca española,
que España de ti se olvida
cando eres, ¡ai! tan hermosa.
Cal si na infamia naceras,
torpe de ti se avergonza,
i a nai que un fillo despresa
nai sin corasón se noma.
Naide por que te levantes
che alarga a man bondadosa;
naide os teus prantos enxuga,
i homilde choras e choras.
Galicia, ti non tes patria,
ti vives no mundo soia,
i a prole fecunda túa
se espalla en errantes hordas,
mentras triste e solitária
tendida na verde alfombra
ó mar esperanzas pides,
de Dios a esperanza imploras.
Por eso anque en son de festa
alegre á gaitiña se oia,
eu podo dicirche:
non canta, que chora.
V
“Espera, Galicia, espera.”
¡Cánto este grilo consola!
Páguecho dios, bon poeta,
mais é unha esperanza louca;
que antes de que os tempos cheguen
de dicha tan venturosa,
antes que Galicia suba
ca cruz que o seu lombo agobia
aquel difícil caminho
que ó pe dos abismos toca,
144 | Literatura e diáspora
quisáis, cansada e sedenta,
quisáis que de angustias morra.
Págueche Dios, bon poeta,
esa esperanza de groria,
que de teu peito surxindo,
á Virgen-mártir coroa,
i ésta a recompensa sea
de amargas penas tan fondas.
Págueche este cantar triste
que as nosas tristezas conta,
que soio ti..., ¡ti entre tantos!,
das nosa mágoas se acorda.
¡Dina voluntad dun xenio,
alma pura e xenerosa!
E cando a gaita gallega
aló nas Castillas oias,
ó teu corazón pregunta,
verás que che di en resposta
que a gaita gallega
non cata, que chora.
En el poema “A gaita Gallega” tenemos nuevamente el
anhelo de la tierra expresado por medio de la evocación de la
naturaleza campestre: //Vexo contigo estos ceos,/vexo estas
brancas auroras,/vexo estes campos froridos/onde se arrullan
as pombas,/i estas montañas xigantes/que aló cas nubes se
tocan.
Una vez distanciados del lugar querido es en la memo-
ria que se buscan imágenes de la tierra amada, añorada y
distante. El yo-lírico, en un momento de contemplación junto
al ser querido, evoca imágenes de la exuberante naturaleza,
en un espacio mágico-mítico, en el cual el cielo y la tierra casi
se funden, se tocan, se hermanan dando acogida a paisajes
de “campos froridos”, abrigo seguro a las “pombas que se
arrullan”. Se produce, en estos versos, imágenes de Galicia
como una tierra bendecida que cobija a hombres y a animales
bajo su protección y amparo. El sujeto diaspórico exalta el
Referências
CASTRO, R. Obra poética. Madrid: Espasa-Calpe. 1972.
CASTRO, R. de. Poesía. Madrid: Alianza. 2009.
LÓPEZ, A.; POCIÑA, A. Rosalía de Castro — Estudios sobre a vida e a
obra. Noia: Laiovento. 2000.
ODRIOZOLA, A. [Introducción]. In: CASTRO, R. de. Poesía. Madrid:
Alianza. 2009.
ODRIOZOLA, A. Rosalía de Castro: Guía bibliográfica. Pontevedra:
Universidad Nacional Menéndez Pelayo. 1981.
PARDO AMADO, D. Rosalía de Castro-A luz da ousadia. Noia: Laio-
vento. 2009.
RODRIGUEZ, F. Análise sociolóxica da obra de Rosalía de Castro.
Vigo: A nossa terra. 1988.
1
Mestranda em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Enderço eletrônico:
babimarcal@yahoo.com.br.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 153
Reis, since he seeks himself in his verses. Therefore,
this paper will cover the cited novel in order to ex-
amine Ricardo Reis and his poetry from these dis-
tanced looks.
Keywords: Exile. Poems. Ricardo Reis. Fernando Pes-
soa. José Saramago.
3
Em março de 1935 foi criada no Brasil a Aliança Nacional Libertadora
(ANL), organização política cujo presidente de honra era o líder
comunista Luís Carlos Prestes. Inspirada no modelo das frentes
populares que surgiram na Europa para impedir o avanço do nazi-
fascismo, a ANL defendia propostas nacionalistas e tinha como uma de
suas bandeiras a luta pela reforma agrária. Embora liderada pelos
comunistas, conseguiu congregar os mais diversos setores da
sociedade e rapidamente tornou-se um movimento de massas. Muitos
militares, católicos, socialistas e liberais, desiludidos com o rumo do
processo político iniciado em 1930, quando Getúlio Vargas, pela força
das armas, assumiu a presidência da República, aderiram ao
movimento. Citação retirada de: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/
FatosImagens/RevoltaComunista (PANDOLFI, [199-].
160 | Literatura e diáspora
mortos, é a gestação de morte do poeta. Assim como ele nos
explica:
[...] ainda tenho uns oito meses para circular à
vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses
porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa
esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em
média, são nove meses, tantos quantos os que
andámos na barriga de nossas mães, acho que é por
uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda
não nos podem ver mas todos os dias pensam em
nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e
todos os dias nos vão esquecendo um pouco
(SARAMAGO, 2013, p. 77).
Ao colocar a morte do poeta e a morte simbólica de
Reis como um dos centros das discussões não permitem seu
esquecimento e faz, do mesmo modo, que revivamos seus
poemas, é a possibilidade de olhar novamente. Portanto, o
romance passa a ser o lugar de permitir olhar para a morte
desses poetas e juntamente com eles revisitar suas criações
literárias.
Maurice Blanchot, em seu texto O espaço literário
(1987), em especial no capítulo intitulado, “A obra e a fala
errante”, teorizou sobre essa possibilidade do romance em
falar daquilo que não tem espaço na vida cotidiana, a esse
respeito ele assegura:
Essa fala é essencialmente errante, estando sempre
fora de si mesma. Ela designa o de fora, infinitamente
distendido que substitui a intimidade da fala.
Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas
em voz alta o que é primeiramente murmurado mas
confunde-se com a imensidade, é o silêncio
convertido no espaço repercutente, o lado de fora de
toda a fala (BLANCHOT, 1987, p. 45-46).
Esse eco a que Blanchot se refere é o que entendemos
como a retomada desses poetas. Ao revisitar essa poesia
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 161
continuamos a escutar o eco de Pessoa e o de Camões. Do
mesmo modo, isso também nos parece servir como forma de
transformação do personagem principal, afinal ao remontar
esses poemas, que são rearticulados na prosa, outros poemas
surgem, portanto, estão fora de seu lugar comum, com ou-
tros objetivos, portanto, exilados na prosa de Saramago.
Vejamos no romance como o narrador articula a poesia de
Reis em sua prosa.
Ricardo Reis rebusca na memória fragmentos de
versos que já levam vinte anos de feitos, como o
tempo passa, Deus triste, preciso talvez porque
nenhum havia como tu, Nem mais nem menos és,
mas outro deus, Não a ti, Cristo, odeio ou
menosprezo, Mas cuida não procures usurpar o que
os outros é devido, Nós homens nos façamos unidos
aos deuses, [...] e há um momento em que duvida se
terão mais sentido as odes completas aonde os foi
buscar do que este juntar avulso de pedaços ainda
coerentes, porém já corroídos pela ausência do que
estava antes ou em depois, e contraditoriamente
afirmando, na sua própria mutilação, um outro sentido
fechado, definitivo [...] (SARAMAGO, 2013, p. 62,
Grifos nossos).
Saramago dá novos traços a essa poesia, exila a poesia
métrica e regular de Reis na sua prosa, ao fazer isso constrói
novos poemas, lhe oferece novos sentidos. Observemos a
cena em que Ricardo Reis, depois de ter lido algumas de suas
odes, dorme e o narrador confirma o que antes tínhamos
afirmado:
[...] está uma folha de papel em cima da mesa e nela
foi escrito, Aos deuses peço só que me concedam o
nada lhes pedir, existe pois este papel, as palavras
existem duas vezes, cada uma por si mesma e em
terem-se encontrado neste seguimento, podem ser
lidas e exprimem um sentido [...] (SARAMAGO, 2013,
p. 46).
4
Apesar da discussão não se deter em questões identitárias,
acreditamos que exilar um sujeito é também uma forma de reconstruir
sua identidade, tendo por base o conceito de Bauman quando esse
afirma: “as ‘identidades’ flutuam no ar, algumas de nossa própria
escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e
é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em
relação {s últimas” (BAUMAN, 2005, p. 19).
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 165
[...] está há tão pouco tempo em Lisboa, menos de
três meses, e já o Rio de Janeiro lhe parece uma
lembrança de um passado antigo, talvez doutra vida,
não a sua, outra das inúmeras, e, assim pensando,
admite que a esta hora mesma hora esteja Ricardo
Reis jantando também no Porto, ou no Rio de Janeiro
almoçando, senão em qualquer lugar da terra, se a
dispersão foi tão grande (SARAMAGO, 2013, p. 212).
No trecho acima percebemos também que o narrador
trata Reis como vários, já que ele é uma recriação, e sua re-
criação não é mais aquele poeta racional e métrico que anda-
va a correr de revoluções, esse acaba se tornando um homem
do povo, ganha como já dissemos novos contornos, ele agora
é alguém que vai à festa de carnaval e assiste a comícios,
como nos é contado, porém não podemos nos esquecer de
que todas essas modificações são conduzidas pelo narrador:
Em toda a sua vida Ricardo Reis nunca assistiu a um
comício político. A causa desta cultivada ignorância
estará nas particularidades do seu temperamento, na
educação que recebeu, nos gostos clássicos para que
se inclinou, um certo pudor também, quem os versos
lhe conheça bastante encontrará fácil caminho para a
explicação (SARAMAGO, 2013, p. 406).
Percebemos que o processo de reconstrução de Portu-
gal como pátria de Reis se dá simultaneamente à sua recons-
trução como sujeito. E como percebemos pelas leituras dos
trechos da obra, temos um sujeito perdido diante do quipro-
quó organizado por Saramago. Assim, há no romance uma
constante busca pela estabilidade que se tinha no heterôni-
mo e ela se dá sempre na leitura de seus poemas, é neles que
Reis tenta encontrar suas características já assinaladas. É,
ainda, em sua poesia que ele tenta se refugiar.
Desse modo, o exílio de Reis provocado por Saramago
caminha em paralelo à procura pelo refúgio que se encontra
na poesia daquele.
166 | Literatura e diáspora
Assim, o asilo não se concretiza, uma vez que Reis é
sempre entendido ou descrito de fora, mesmo quando ele
busca na sua poesia traços de si, é no distanciamento que ele
se busca, portanto, é sempre um discurso do outro sobre ele,
tornando-o sempre um exilado.
Foucault baseando-se na teoria de Maurice Blanchot
analisa “o pensamento do exterior” e nesse estudo afirma
que “o fora tem o novo da interioridade”, segundo Foucault:
“[...] na densidade das imagens, às vezes na simples transpa-
rência das figuras as mais neutras ou as mais apressadas, ele
(o vocabulário da ficção) arrisca colocar significações intei-
ramente prontas que, sob a forma de um fora, tecem de novo
a velha trama da interioridade” (FOUCAULT, 2000, p. 224,
Grifos nossos).
Percebemos que Reis é esse que tenta se encontrar ao
se olhar de fora, já que suas odes são narradas por outro,
primeiro por Pessoa e depois pelo narrador do romance, em
terceira pessoa, sendo assim, ao se enxergar, em um olhar
distanciado, consegue entender um pouco daquilo do que era
e o que está, ao longo da narrativa, se transformado.
No romance esse olhar de fora, que entendemos como
o provocador do exílio de Reis, se dá, entre tantos outros
momentos, como nessa cena quando Reis depois de ler al-
gumas notícias de jornal procura suas odes e as lê todas
fragmentadas
[...] Ricardo Reis [...] sabe enfim o que procura, abre
uma gaveta da secretária [...] e retira uma pasta de
atilhos que contém as suas odes [...]. Mestre, são
plácidas, diz a primeira folha, e neste dia primeiro
outras folhas dizem, Os deuses desterrados, Coroai-
me em verdade de rosas, e outras contam, O deus Pã
não morreu, De Apolo o carro rodou, uma vez mais o
conhecido convite, Vem sentar-te comigo, Lídia, à
beira do rio, o mês é junho e ardente, a guerra já não
tarda, Ao longe os montes têm neve e sol, só o ter
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 167
flores pela vista fora, a palidez do dia é levemente
dourada, não tenha nada nas mãos porque sábio é o
que se contenta com o espetáculo do mundo. Outras
e outras folhas passam como os dias são passados
[...] Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, esta é a
página, não outra, este o xadrez, e nós os jogadores,
eu Ricardo Reis, tu meu leitor, ardem casas,
saqueadas são as arcas e as paredes, mas quando o
rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o
osso nosso penedo convertido, mudado em jogador,
e de xadrez (SARAMAGO, 2013, p. 306-307).
As odes são intercaladas ao estado emocional do pro-
tagonista. Como dissemos no início deste trabalho, podemos
analisar o romance por um prisma histórico, já que é a partir
desse contexto turbulento de ditadura e de sussurros pré-
guerra que o romance se configura. Logo, as notícias que
chegam a Reis são sempre vinculadas a esse panorama, e
como já mencionamos, Saramago o insere nesse período
para que Reis possa experienciá-lo. Ao fazer isso mostra todo
o drama psicológico de Reis, moldando-o do lado de fora
para, como assegurado pelas palavras de Foucault, igualmen-
te, o moldar por dentro. E é pela tentativa de se olhar, ler
aquilo que falava de si, de quem era, que ele busca por seus
versos, isso na tentativa de encontro consigo. Acerca disso,
Blanchot atesta:
Na obra, o artista não se protege somente do mundo
mas da exigência que o atrai para fora do mundo. A
obra doma e submete momentaneamente esse ‘lado
de fora’, restituindo-lhe uma intimidade, ela impõe
silêncio, confere uma intimidade de silêncio a esse
lado de fora sem intimidade e sem repouso que é a
fala da experiência original. Mas o que ela encerra é
também o que ela abre sem cessar, e a obra em curso
expõe-se ou a renunciar à sua origem, esconjurando-
se mediante prestígio fáceis, ou a reverter cada vez
para mais perto dela, renunciando à sua plena
Considerações finais
“As frases, quando ditas, são como portas, ficam
abertas, quase sempre entramos, mas às vezes
deixamo-nos estar do lado de fora, à espera de que
outra porta se abra, de que outra frase se diga [...]”
(José Saramago).
Tentamos com esse estudo sobre o romance de O ano
da morte de Ricardo Reis, analisar a poesia exilada de Reis na
prosa de José Saramago, entendendo que aquele sempre
fora um exilado, uma vez que sua poesia sempre foi escrita
de fora e é com esse mesmo olhar que buscou encontrá-la
para poder, do mesmo modo, se encontrar, buscando nela,
ao invés de exílio, seu asilo, porém tentamos demonstrar que
esse asilo não se concretizou, uma vez que ele é conduzido à
sua poesia transformada em prosa, sendo sempre colocado
em situações alheias à sua vontade.
O exílio de Reis não foi apenas poético, houve também
a preocupação em entendê-lo como um exilado geográfico,
isso porque ele volta a Portugal dezesseis anos após sua par-
tida, encontrando nesse retorno outro país, que perdeu seus
traços de lar. Além disso, o período é produtor de exilados,
Portugal vive na ditadura de Salazar e a Europa se prepara
para a segunda guerra mundial.
170 | Literatura e diáspora
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi.
Tradução de Carlos Aberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política — Obras escolhi-
das, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 10. ed. São Paulo: Brasiliense,
1996.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Rocco, 1987.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra
Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema.
Coleção Ditos & escritos, v. 3. Trad. Inês Autran Dourado. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000.
PESSOA. Fernando. Carta a Adolfo Casais Monteiro, 1935. Disponí-
vel em: http://arquivopessoa.net/textos/3007. Acesso em: 6 dez.
2015.
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Ricardo Reis. Org. Manuela
Parreira da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PANDOLFI, D. C. Revolta comunista. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/RevoltaComun
ista. Acessado em 7 dez. 2015.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro
Maia. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
1
Cristina Rosa Santoro. Argentina, Buenos Aires. Tradutora literária e
técnico-científica ES<>FR. Doutoranda em Literatura e Culturana
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista da CAPES dentro dos
acordos internacionais. Endereço eletrônico: crissan2002@gmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 173
disséminant le long de l´histoire de l´être humain
dans la terre. C´est ainsi que la littérature latino-
américaine n´est pas indifférente à la réalité
historique et sociale dont elle provient. Lors des
dernières décennies, on observe des productions
littéraires sur les différentes expériences de la
violence politique vécues au continent américain dès
les années 60 et 70, depuis le Mexique jusqu´au Cône
Sud. Il s´impose de réfléchir sur la connaissance des
représentations littéraires des violences politiques au
continent, spécifiquement concernant à l´Argentine,
sous l´empire des dictatures, de l´horreur.
Mots-clé: littérature, langage, violence,
représentation, traduction.
2
La Patria Prisionera
Patria de mi ternura y mis dolores, Patria de amor, de
primavera y agua, hoy sangran tus banderas
tricolores sobre las alambradas de Pisagua
Existes, Patria, sobre los temores y arde tu corazón
de fuego y fragua hoy, entre carceleros y traidores,
ayer, entre los muros de Rancagua.
Pero saldrás al aire, a la alegría, saldrás del duelo de
estas agonías, y de esta sumergida primavera,
libre en la dignidad de tu derecho y cantarás en la luz,
y a pleno pecho, tu dulce voz, patria prisionera.
3
GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. Buenos
Aires: Siglo XXI, 1974
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 175
Piglia, no livro La Argentina en pedazos4, coletânea de textos-
traduções referentes paradigmáticos argentinos: La
Argentina en pedazos, ou uma alegoria das fragmentações
sob a extrema opressão e a impunidade.
La Argentina en pedazos. Una historia de la violencia
argentina a través de la ficción. ¿Qué historia es esa?
La reconstrucción de una trama donde se pueden
descifrar o imaginar los rastros que dejan en la literatu-
ra las relaciones de poder, las formas de la violencia.
Marcas en el cuerpo y en el lenguaje, antes que nada,
que permiten reconstruir la figura del país que aluci-
5
nan los escritores .
Com estas palavras, Ricardo Piglia abre a primeira
publicação da série La Argentina en pedazos, aparecida no
número inicial da revista Fierro, em setembro de 1984, em
momentos da abertura democrática argentina. Cada capítulo
desta série terá duas partes: a primeira, um ensaio de Piglia e
uma história em quadrinhos, cada um com uma estética
particular, girando ao redor de uma narração: conto,
romance, peça de teatro, letra de tango; a segunda parte:
ilustração em quadrinhos dos textos da primeira parte. Não é
casual que esta reflexão sobre a história argentina apareça só
um ano depois do final da brutal ditadura militar argentina.
Os longos anos de autoritarismo obrigam a buscar novas
leituras dessa história. O título da série, neste sentido, é
revelador. “Pedazos” (fragmentos, ruinas) são o material com
o qual conta o crítico para a sua tarefa de reconstrução.
“Pedazos” também, fios narrativos, são os quadrinhos das
histórias em quadrinhos. Tanto os ensaios quanto os
quadrinhos desta série seguirão a pista dessa violência que
4
PIGLIA, Ricardo. La Argentina en pedazos. Buenos Aires: Ediciones de la
Urraca, 1993. In: http://es.scribd.com/doc/23895330/Ricardo-Piglia-La-
Argentina-en-Pedazos#scribd.
5
PIGLIA, Ricardo. La Argentina en pedazos, p. 3. Grifos meus.
176 | Literatura e diáspora
percorre a literatura argentina, porém sempre, se baseando,
relendo, traduzindo a história argentina.
Os quadrinhos seguem estratégias de adaptação muito
variadas que servem para localizar e visibilizar a violência nas
narrações originais. Observa-se assim que “La Argentina en
pedazos” se depara com os núcleos mais violentos da
literatura argentina (descobre que a violência é um clássico
argentino), e os desenha. Esta violência se apoia sobre dois
fatores: 1) a construção de um “outro” quase sempre
monstruoso, e 2) a distância entre os mundos confrontados
que, como no livro “El Matadero” de Esteban Echeverría6,
pode chegar até a mútua ininteligibilidade.
As adaptações de La Argentina en pedazos trazem a
violência da literatura argentina para o presente, já que se
trata de textos “refeitos”, repensados e adaptados-
traduzidos durante os inícios dos anos oitenta. Assim,
narrações escritas ao longo de um século e meio são lidas em
La Argentina en pedazos como contemporâneas do leitor,
pertinentes para entender seu presente e, daí, refletir sobre o
passado. Nestes quadrinhos encontram-se as mesmas
perguntas chave que Beatriz Sarlo percebe na literatura
argentina de finais da ditadura: “¿Cómo fue que llegamos a
este punto? Y: ¿qué es lo que hay en nuestro pasado que
pueda explicarlo? [preguntas] que atraviesan la sociedad y
que, tal vez, seguirán buscando respuestas en los años que se
avecinan …” (SARLO, 2007, p.331). Os quadrinhos são um
meio privilegiado para esta reflexão. O tempo de leitura que
exigem os textos originais e suas diferentes formas de
consumo (romances, contos, cancões, dramas, etc.)
aparecem sob o formato de um novo meio que — sem
simplificá-los– permite a leitura dos dois simultaneamente:
6
ECHEVERRIA, Esteban. El matadero. IN: Obras Completas de D. Esteban
Echeverría, edición de Juan María Gutiérrez. Buenos Aires: Carlos
Casavalle Editor, 1870-1874.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 177
textos originais e quadrinhos. Assim, nessas massas textuais-
icónicas piglianas podem-se ler como se fossem
contemporâneos entre eles, vários textos referentes
paradigmáticos hoje da literatura argentina, e que pertencem
a diferentes épocas da história da República Argentina, como
mencionado. Podemos citar entre eles: “Cabecita Negra”, de
Germán Rozenmacher e “El Matadero”, de Esteban Echeverr-
ía7, “Operación Masacre”, de Rodolfo Walsh e “Los dueños de
la tierra”, de David Viñas.
Com o intuito de esclarecer as colocações de Ricardo
Piglia, abordaremos sucintamente o livro El Matadero,
considerado o primeiro romance do Río de la Plata, texto de
partida ou fonte, texto origem da prosa ficcional da
Argentina. Poder-se-ia afirmar que trata-se de uma origem
escura, desviada, quase clandestina. O seu autor, Esteban
Echeverría, morreu na miséria, na clandestinidade, no exílio,
sem poder publicar este texto porque este género não era
aceito pelos paradigmas literários vigentes na época. El
Matadero é só ficção. E por ele ser uma ficção, Echeverría não
conseguiu publicar uma história que fazia alusão ao mundo
dos “bárbaros” e lhes dar um lugar e deixar ouvir aquela voz
“bárbara”.
A ficção como tal na Argentina nasce na tentativa de
representar o mundo do inimigo, do diferente, do outro
(chame-se bárbaro, gaúcho, índio ou imigrante). Pode-se
dizer que se trata de uma história da violência argentina
através da ficção, da reconstrução de uma trama onde se
podem decifrar ou imaginar os rastos que deixam na
literatura as relações de poder, as formas da violência.
Marcas no corpo e na linguagem, principalmente, que
permitem reconstruir a figura de um país que alucina os
7
ECHEVERRIA, Esteban. El matadero. In: Obras Completas de D. Esteban
Echeverría, edición de Juan María Gutiérrez. Buenos Aires: Carlos
Casavalle Editor, 1870-1874.
178 | Literatura e diáspora
escritores. Essa história a contraluz da história verdadeira
aparecendo como o seu pesadelo.
Quanto à origem, poderia se afirmar que a história da
narrativa argentina inicia-se duas vezes: em El Matadero, de
Esteban Echeverría (escrito 1838-1840), e em Facundo o
Civilización y Barbarie (escrito 1845), de Domingo Faustino
Sarmiento. Dupla origem, duplo início para uma mesma
história. De fato, os dois textos narram o mesmo
acontecimento e a literatura argentina se abre com uma cena
básica, uma cena de violência contada duas vezes.
Corrobora-se que a atualização dos textos segundo as
criações de Ricardo Piglia permite novos encontros entre
eles, sendo assim, sem dúvidas, um dos aportes
fundamentais da série.
Assim sendo, observa-se e sustenta-se a teoria da
literatura como tradução e ilustração da história: literatura,
ponte e massa textual dialógica das histórias da História.
Afirmações presentes ao longo das reflexões de muitos
pensadores, entre outros: Henri Meschonnic, Jacques
Derrida, Valéry Larbaud, Paul Ricoeur; autores que se
debruçaram sobre a problemática do ato tradudório.
Trazemos Beatriz Sarlo fazendo alusão e ilustrando as
nossas colocações: “Delante de un monólogo […] cuyo efecto
era fijar sentidos para una sociedad que debía ser reeducada
en ellos, el discurso del arte y de la cultura propone un mode-
lo formalmente opuesto: el de la pluralidad de sentidos y la
perspectiva dialógica” (SARLO, 2007, p. 328).
Queremos salientar o traço discursivo focado por
Beatriz Sarlo no parágrafo acima, já que sustenta uma das
colocações que temos a intenção de abordar e de pesquisar,
vale dizer, de tentar demonstrar que a literatura, o discurso
literário é representação do autor-escritor; mas também, que
esse discurso pode se tornar ato tradutório do universo
profundo do autor.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 179
E nessas reflexões, caminhadas textuais, esses atos
tradutórios tentando explicações, procurando causas,
consequências, vivências e sempre mais além, perguntamo-
nos se é possível transmitir o real e verdadeiro horror
acontecido nas terras latino-americanas. Nossas
inquietações nos levam a pesquisar sobre as possibilidades
desse ato tradutor, dessa metamorfose do autor — escritor
nos traços textuais que ele desenha fazendo-os tornar
escritas de si.
E perguntamo-nos também se podem os atos-textos,
as escritas tradutórias, os ícones-massas textuais nos falar.
Pode a literatura e toda a sua força criadora nos falar e nos
narrar esse horror ancestral?
E assim nas nossas ideias, inquietações e perambula-
ções literárias, voltamos para Ricardo Piglia, para outros
textos deste escritor, que nos permitirão reflexões múltiplas
partindo das nossas meditações perante tamanho espanto, o
nosso espanto latino-americano.
Ricardo Piglia propõe-se uma análise quanto às Seis
propostas para o próximo milênio8, de Ítalo Calvino. A partir
daquelas propostas calvinianas, Piglia desenvolve considera-
ções às quais temos acesso a partir de dois textos: um deles,
trata-se de uma conferência sob o título de “Tres propuestas
para el próximo milenio (y cinco dificultades)”, e o outro texto,
resumido, mas abordando o conteúdo fundamental das Tres
propuestas seria: “Una propuesta para el próximo milenio”9.
Piglia nos introduz no texto do célebre escritor italiano
Ítalo Calvino, quem em 1985 preparou uma série de
conferências para ser lidas em Harvard. Nessas propostas,
Calvino enumerava alguns dos procedimentos da literatura
8
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
9
PIGLIA, Ricardo. Una propuesta para el próximo milenio. Revista
Cuadernos Lírico. 2013. http://lirico.revues.org/1101.
180 | Literatura e diáspora
que era preciso conservar no futuro. Segundo Calvino, esses
valores eram: a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a
multiplicidade. Contudo, das seis propostas previstas, só
cinco foram encontradas escritas depois da morte de Calvino.
Observa-se assim que Ítalo Calvino deixou como testamento
literário essas seis propostas que caracterizariam a literatura
do “próximo milênio”, mas não teve tempo de redigir a sexta
dessas propostas, justamente a “consistência”.
Assim sendo, o escritor Ricardo Piglia, na conferência
“Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades)
“, proferida na Casa de las Américas, Cuba, em 2000, propõe
escrevê-la, mas não a consistência, senão o “deslocamento, a
distância”, para equacionar o problema do futuro da literatu-
ra e sua função na sociedade, vista, entretanto, a partir da
margem, das bordas das tradições centrais da América
Hispânica.
As palavras de Piglia, no seu texto “Una propuesta para
el próximo milenio”, ilustram a intenção à qual as reflexões do
escritor italiano o encaminharam, e que vão no sentido das
nossas pesquisas:
Propuesta entonces como consigna, puntos de parti-
da de un debate futuro o si se prefiere de un debate
sobre el futuro, emprendido desde otro lugar. Tal vez
el hecho de escribir desde la Argentina nos enfrenta
con los límites de la literatura y nos permite reflexio-
nar sobre los límites. La experiencia del horror puro
de la represión clandestina, que a menudo parece es-
tar más allá de las palabras, quizá define nuestro uso
del lenguaje y por lo tanto el futuro y el sentido. Hay
un punto extremo, un lugar — digamos — al que pa-
rece imposible acercarse con la literatura. Como si el
lenguaje tuviera un borde, como si el lenguaje fuera
un territorio con una frontera, después del cual está el
silencio. ¿Cómo narrar el horror? ¿Cómo trasmitir la
experiencia del horror y no sólo informar sobre él?
Muchos escritores en el siglo XX han enfrentado esta
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 181
cuestión: Primo Levi, Ana Ajmatova, Paul Celan. La
experiencia de los campos de concentración, la expe-
riencia del Gulag, la experiencia del genocidio. La lite-
ratura prueba que hay acontecimientos que son muy
difíciles, casi imposibles, de trasmitir, que suponen
10
una relación nueva con el lenguaje de los límites .
Ao analisarmos as considerações propostas por Piglia
no parágrafo acima, poderíamos abandonar as nossas
inquietações quanto a demonstrar e salientar o rasto do
autor no texto, as possibilidades de uma literatura de
testemunho, ou teríamos que tentar outros caminhos a
serem percorridos para atingir o alvo nosso tão prezado.
No texto mencionado, Piglia analisa os escritos de
outro autor argentino: o jornalista, escritor Rodolfo Walsh,
vítima do terrorismo de Estado, assassinado em 1977 pela
ditadura militar argentina de 1976, logo depois de ter
publicado em 24 de março de 1977, a um ano do início da
ditadura, um texto tristemente célebre pela injusta e trágica
morte do autor (porém de um extraordinário valor histórico e
literário) Carta Abierta de un escritor a la Junta Militar.
Rodolfo Walsh perdera sua filha Vicky em 1976 assassinada
também pela ditadura militar, fato que traz como resultado
os escritos e as reflexões de Walsh sobre o horror dessa perda
e sob o peso da conjuntura política daquele momento de sua
amada pátria.
Assim sendo, tendo dado fim ao parêntese explicativo
walshiano, voltamos para nosso autor Piglia que no intuito de
ilustrar suas análises sobre a função e os limites da
linguagem, serve-se dos escritos de Rodolfo Walsh e tenta
analisar as estratégias de um escritor na clandestinidade para
contar uma experiência extrema, e transmitir um
acontecimento que parece de antemão inenarrável.
10
. Idem: http://lirico.revues.org/1101.
182 | Literatura e diáspora
[…] Walsh escribe: [...] “Anoche tuve una pesadilla to-
rrencial en la que había una columna de fuego, pode-
rosa, pero contenida en sus límites que brotaba de al-
guna profundidad”. Una pesadilla casi sin contenido,
condensada en una imagen casi abstracta. Y después
escribe: “Hoy en el tren un hombre decía “Sufro mu-
cho, quisiera acostarme a dormir y despertarme de-
ntro de un año”. Y concluye Walsh: “Hablaba por él
pero también por mí”. Quisiera detenerme en ese
movimiento, ese desplazamiento, darle la palabra al
otro que habla de su dolor, un desconocido en un
tren, que dice “Sufro, quisiera despertarme dentro de
un año”. Es casi una elipsis, una pequeña toma de dis-
tancia respecto a lo que está tratando de decir, un
deslizamiento de la enunciación, alguien habla por él y
expresa el dolor de un modo sobrio y directo y muy
conmovedor. Hace un pequeñísimo movimiento pro-
nominal para lograr que alguien por él pueda decir lo
que él quiere decir. Una lección de estilo, un intento de
11
condensar el cristal de la experiencia .
E nós, em nossa tentativa de receber a lição de estilo,
de condensar o cristal da experiência, de entrar nesse
enunciado tradutor, nesse deslizamento da enunciação,
seguiremos nosso percurso discursivo reflexivo para atingir
também nosso tão precioso e prezado alvo: o enunciado
tradutor, o discurso carregando o rasto, a voz falante do
subalterno.
E assim sendo, e segundo o objetivo que tentamos
atingir, encerramos as nossas reflexões e inquietações, nos
sustentando mais uma vez nas análises que Beatriz Sarlo faz
dos textos de Ricardo Piglia, e que já temos mencionado
(Una Argentina en pedazos), nos oferecendo sua voz
11
PIGLIA, Ricardo. Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco
dificultades). Disponível em: http://jorgealbertoaguiar.blogspot.
com.br/2007/02/ricardo-piglia.html /http://www.casa.cult.cu/publica
ciones/revistacasa/222/piglia.htm. Grifos meus.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 183
autorizada e nos propondo uma nova via para a entrada no
discurso da arte segundo “la pluralidad de sentidos y la
perspectiva dialógica” (SARLO, 2007, p. 328).
Referências
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
ECHEVERRIA, Esteban. Obras Completas de D. Esteban Echeverría,
edición de Juan María Gutiérrez. Buenos Aires: Carlos Casavalle
Editor, 1870-1874.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. São Paulo,
Editora Paz e Terra, 1971.
GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. Buenos
Aires: Siglo XXI, 1974
NERUDA, Pablo. Poema: La patria prisionera. Periódico Unidad,
Santiago, n. 60, dezembro de 1947.
PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Barcelona: Anagrama, 2001.
PIGLIA, Ricardo. El último lector. Barcelona: Anagrama, 2005.
PIGLIA, Ricardo. La Argentina en pedazos. Buenos Aires: Ediciones
de la Urraca, 1993.
PIGLIA, Ricardo. Luis Scafati y Pablo De Santis. La ciudad ausente.
Barcelona: Libros del Zorro Rojo, 2008.
PIGLIA, Ricardo. Política, ideología y figuración literaria. In: Ficción
y política. La narrativa argentina durante el proceso militar. Buenos
Aires: Alianza Estudio, 1987.
PIGLIA, Ricardo. Tres propuestas para el próximo milenio — y cinco
dificultades. In: http://jorgealbertoaguiar.blogspot.com.br/2007/02/
ricardo-piglia.html / http://www.casa.cult.cu/publicaciones/ revista-
casa/222/piglia.htm.
PIGLIA, Ricardo. Una modernidad periférica: Buenos Aires: 1920 y
1985. Buenos. Aires: Nueva Visión, 1988.
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade de Brasília (UnB). Bacharela em Letras Português e
respectivas literaturas na Universidade de Brasília (UnB). Endereço
eletrônico: quiangala@gmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 187
the plot: present, flashback and the colonial narrative
she is writing. In the last one, we meet the character
of the Black woman, enslaved and without a name
through her “deceased” report which suggests the di-
alectic which involves the speech of the subaltern
subject was completed (she can talk, but she needs to
be heard). In truth, she is being determined from the
exteriority of her body, from a colonialist standpoint
thus, once Ana is performing the voice of the Other in
the place between being Black and being white
(which embodies the hierarchy). Levy represents
Blackness from the authorized place to represent
everything: whiteness.
Keywords: Representation. Whiteness. Otherness.
3
Assim como os X-men (LEE; KIRBY, 1963) podem ser analisados nesse
sentido. Ver: KAMEL, Cláudia; DELAROQUE, Lucia. X-men e a
dimensão do preconceito nas histórias em quadrinhos. (paper) Ruídos
nas representações da mulher: preconceitos e estereótipos na
literatura e em outros discursos. ST13.
4 The queen is an interesting metaphor. It is a metaphor for power. It is
also a metaphor of the idea that certain bodies belong to certain
places: a queen naturally belongs to the palace (“of knowledge”),
unlike the plebeians, who are sealed in their subordinate bodies. Such a
hierarchy introduces a dynamic in which Blackness signifies “being out
of place” while whiteness signifies “being in place [….] Within racism,
190 | Literatura e diáspora
Essa ordem colonial é parte do sistema de representa-
ção da realidade que diz respeito às funções sociais, acessos
e lugar de negros e brancos na sociedade. Cabe ressaltar que
me refiro a branco não como cor/biologia, mas como uma
definição política (identidade) que se inscreve nos corpos que
representam/performam cotidianamente privilégios históri-
cos (KILOMBA, 2013). Por performance entendemos que se
trata da atuação de determinada plataforma biológica (cor-
po) marcada por relações históricas, afetivas e intelectuais as
quais definem seus desejos, interesses e poder (BHABHA,
1998). O racismo, por exemplo, é performado por indivíduos
não-negros de modo a criar/reiterar a ideologia de suprema-
cia branca tida como neutra, transparente e objetiva (KI-
LOMBA, 2010). Enxergá-lo, neste caso, é a possibilidade de
reconhecer violências e interesses envolvidos. O que pode
criar um (tema) ponto de negociação (BHABHA, 1998) do
espaço ideológico, social, político e econômico, mas não é
sinônimo de criar espaço de discussão.
Assim, aquela brancura no olhar (cuja causa é desco-
nhecida) dentre as várias problemáticas que embasam na
metáfora da visão, é a nódoa que interessa para estabelecer a
relação entre local de fala, branquitude e representação da
mulher Negra escravizada. Esses três pontos, que explicarei
em seguida, constituem os eixos de discussão do conceito
performance de branquitude na terceira obra da escritora
judia luso-brasileira Tatiana Salem Levy: Paraíso (2014).
Hipótese de leitura
O romance tem um tom de chiste em relação à ideia
do artista fracassado, que não é artista, mas investe em ser,
querer ser e viver performando, a todo custo, como se fosse.
5
A maioria das leituras as quais tenho conhecimento , partem
da metalinguagem do romance de Ana, em construção, den-
tro do romance de Tatiana e, também, do fato de Ana ser a
terminação de Tatiana como base das hipóteses de leitura;
nesse sentido, o romance mistura vozes narrativas e memó-
rias, deixando a estrutura e as técnicas visíveis, então passa a
ser metaficcional. Embora concorde com a possibilidade de
Ana ser uma espécie de alterego de Tatiana, meu ponto de
interesse na obra (racismo) não é tratado como uma questão
personificada e moral, porque o imaginário colonial é uma
realidade coletiva que transborda como sensação e não reco-
nhecimento das causalidades — como a cegueira do Ensaio.
Focando o que ela (Ana) tinha de belo “[...] o nariz
comprido, a boca carnuda, os olhos levemente puxados. E
aquele cabelo que achava lindo, tão preto, tão liso” (LEVY,
2014, p. 14) e “[...] liso demais para se segurar sem um pren-
dedor” (LEVY, 2014, p. 67) podemos depreender que o corpo
de Ana resulta de uma contradição colonial: embora não seja
branca (é possivelmente marcada por traços diacríticos indí-
genas) ela é muito mais marcada pelo fato de não ser negra.
5
O romance ainda não tem muitos estudos, mesmo porque, a mídia tem
divulgado o caráter menor dessa obra em relação às anteriores. As
leituras as quais me refiro, foram compartilhadas no Grupo de estudos
em literatura brasileira contemporânea da Universidade de Brasília
(2015).
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 193
“Tinha as olheiras acentuadas, deixando mais escuro seu
rosto mulato”6 (LEVY, 2014, p. 19). Esse último ponto que
oculta o estigma colonial e a lança num lugar de hibridismo,
autoriza a encarnação de uma “grande narrativa”7 pontuada
por silêncios sobre o que não lhe interessa. Primeiro, o hibri-
dismo que o corpo dela sinaliza é resultado da contradição
racial (miscigenação) que possibilita escolher um dos polos
(dominador ou dominado) para performar identidade.
A multiplicidade de representações do Outro reflete as
inúmeras tramas que se desenvolvem em diferentes tempos,
lugares e incidem nos corpos de diferentes personagens.
Uma delas é a performance de poder através da violência
racial engendrada que se dá em duas temporalidades distin-
tas, ambas relacionadas ao silenciamento. Temos a relação
de Ana com Rosa que é uma atualização do cotidiano coloni-
al, porque Ana enxerga tudo branco e, nisso, Rosa é aquela
que, repetidas vezes, “[...] ouvia sem dar atenção” (LEVY,
2014, p. 15), aquela que carrega sua mala e mantém seu coti-
diano em ordem. Rosa é aquela que exerce uma função es-
sencial, cujo foco é a performance, deste modo, a função é
fixa e o indivíduo é intercambiável. Há uma espécie de “não-
dito” discursivamente que torna visível a continuidade entre
o poder da mulher do barão (Mariana) de torturar e matar a
Negra (tornando-a ausente) e da invisibilidade de Rosa, no
sentido de que é subalternizada e pode até falar, mas precisa
que o um, encarnado por Ana, a ouça (KILOMBA, 2010).
6
“Mulata” (“The M Word”) é um termo ofensivo que designa um lugar
racial entre preto e branco e revela a hierarquia da cor epidérmica.
Segundo Kilomba (2010), o termo deriva do vocábulo português
“mula”, resultado do cruzamento do cavalo com um burro, o que
identifica o fruto de uma relação inter-racial, o mestiço, o sem lugar.
Essa é, sem dúvidas, uma forma que parte da branquidade como lugar
de norma e ignora o caráter político do pardo como parte da categoria
negro conforme o censo brasileiro e os movimentos negros.
7
NERI, 2001.
194 | Literatura e diáspora
Vemos a importância de Ana como sujeito diegético à
medida que sua personalidade é revelada. Sua sensação de
vulnerabilidade como fragilidade que faz dela um ser único é
marcada pela necessidade de estar a sós com a própria sen-
sação e o horror de pedir ajuda já que “ninguém acreditaria
na concretude do seu medo tanto quando ela [mesma]”
(LEVY, 2014, p. 15). Essa carência de laços além dela mesma
(que descobrimos mais tarde, vir da perda de sua irmã, Bel)
gera uma visão de mundo baseada na autorreferência (narci-
sismo), traço mais marcante de Ana que pode ser entendida
como cegueira branca, quando centralizamos a relação se-
nhora-escravizada.
Sua necessidade de examinar e memorar a história de
sua família desde o século XIX constrói imagens ausentes do
Outro (representa) sobrepondo discursos do senso comum,
que fantasia aquela virtualidade numa narrativa prenhe de
exotismo (sacerdotisa de alto grau) e primitivismo (KILOM-
BA, 2010, p. 68). O olhar branco que Ana performa têm dese-
jo de domesticar/homogeneizar o seu oposto a ponto de
encenar a história duma escravizada, em primeira pessoa,
(blackface) sem a consciência do horror que marca sua visão
(branca/cega) do Outro: desejo, interesse e poder de enunci-
ar um lugar (usurpar) e, assim, reafirmar o seu próprio triunfo
enquanto categoria política. Voyeurismo da catástrofe.
Conhecemos a personagem Negra escravizada (sem
nome) pela descrição, em primeira pessoa, de sua vida pouco
antes da captura até a experiência colonial e postmortem.
Embora seu relato “defunto” em primeira pessoa (qual um
Brás Cubas) possa sugerir que foi cumprida a dialética que
envolve a fala do/a sujeito/a subalternizado/a (ele ou ela pode
falar, mas precisa ser ouvido/a), ela está sendo determinada
de fora, da exterioridade do corpo dela, isto é, desde o colo-
nialismo, já que Ana está performando a voz do Outro no
lugar entre ser Negra e ser branca (desde a hierarquia). A pro-
posta do romance, no ponto que selecionamos, é de repre-
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 195
sentar a negritude, o que se dá sob o olhar transparente
(porque despercebido) e naturalizado desde o lugar autoriza-
do (encaixado) a falar sobre tudo: a branquitude.
Temos a condição colonial do sujeito negro figurada
pelo inconsciente e pelas alienantes fantasias de poder do
sujeito branco (FANON apud BHABHA 1998, p.74) que articu-
la seu pertencimento desde a negação/objetificação do Ou-
tro (negro). Eis um mecanismo de defesa do ego disponível
aos sujeitos brancos para alienarem-se da branquitude con-
ceitual, mantê-la na ordem do desconhecido (inconsciente).
Nesse sentido temos a situação maniqueísta do agente e do
objeto, a senhora e a escravizada. Dentro da psique da pri-
meira, a violência tem que ser elaborada de modo a manter a
personificação de si como humano (sujeito), empático e bom
(KILOMBA, 2010). Essa percepção de si cria um antagonista
que representa a sombra do que a personagem branca, isto é,
tudo que ela rejeita em si. Essa experiência positiva do ego
inverte os fatos fantasiosamente (KILOMBA, 2010):
Embora o sujeito Mulher Negra tenha sido raptada,
desumanizada e explorada, a baronesa interpreta
perversamente que
O barão que violou a escravizada foi roubado pela
última, assim,
A baronesa nega que houve violência sexual; ignora a
colonialidade da relação afetiva (Síndrome de
Estocolmo) e nega o direito à fala e, em última
instância, à vida, ao sujeito mulher Negra.
Como atesta Dutra (2015), Paraíso é um romance em
que são representadas diferentes formas de violência contra
a mulher. Embora concorde com Dutra (2015) que enxerga
nessa representação uma crítica, até mesmo ao conceito
feminista (branco) de sororidade, acredito que a contraparte
dessa crítica, no que diz respeito à raça é construída como
dispositivo de alienação duma tecnologia de gênero raciali-
8
O conceito de Tecnologia de Gênero cunhado por Teresa de Lauretis
(1994) se refere ao papel das mídias na construção e reiteração
arbitrária de normas de gênero. Se tomarmos a epistemologia do
Feminismo Negro de Patricia Hill Collins (2000) perceberemos que a
tecnologia de gênero tem sido naturalizada junto aos pressupostos
raciais, o que torna o conceito de “tecnologia de gênero racializada”
mais adequada para tratarmos da representação de mulheres Negras.
9
O Voyerismo da catástrofe é um conceito usado por Tiburi (2008)
para descrever o impasse de gozar o sofrimento alheio (sabendo-se
fora dele) e saber-se não solidário/a.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 197
vocábulo “escrava” em vez de “escravizada” que
enfatiza a condição monolítica e essencializada do
ser.
Arrancar a língua é tão metonímico quanto impor o
uso da máscara de ferro que obstrui a fala, pois é
exercício do poder autorizado ao lugar do branco; A
imagem vingativa de uma Mariana gozando a
canibalização dessa língua toma a parte como todo
(metonímia) para congelar a Negritude engendrada
no lócus do desejo fetichista. Ana não pode performar
a violência plenamente, porque os tempos são
outros: o vínculo com Rosa atualiza a relação de
senhora/escravizada; Ela pode não ouvir o que Rosa
tem a dizer e mesmo não enxergá-la como sujeito,
mas o desejo de objetificar é fortemente marcado na
sua performance literária de Mariana.
Aporte Teórico
Em seu Black Feminist Throught, Patricia Hill Collins
(2000) nos alerta que confiar numa intelectual negra torna a
nossa pesquisa tão suspeita quanto ela. Ciente disso, como
experiência acadêmica, proponho embasar a minha leitura
do romance Paraíso no feminismo negro como epistemologi-
a, paradigma e método. Confio, também, na descrição da
experiência colonial que Angela Davis (2013 [1982]) se propôs
a redigir, assim como na concepção psicanalítica de Grada
Kilomba (2010; 2013; 2014) que lê Frantz Fanon e Paul Gilroy
pensando o gênero como categoria analítica para a compre-
ensão da experiência de raça e racismo pós-colonial.
Em segundo lugar, abordar o conceito de Tecnologia
de Gênero (Lauretis, 1994) que, desde o imbricamento com o
conceito de raça, possibilita desmontar os blocos de norma-
tização que naturalizam o senso comum de performance de
negritude como lugar do mal. O sujeito produtor da narrativa
diegética direciona a leitura para reiteração de violência sim-
198 | Literatura e diáspora
bólica e material que alija o negro, em especial a mulher Ne-
gra, de seu lugar de sujeito. Assim, nossa leitura se propõe a
descrever as estratégias retóricas, questionar os pressupos-
tos, cumplicidades ideológicas e locais de fala que estão sen-
do performados na diegese primária (a vida de Ana) e secun-
dária (a narrativa da escravizada). Desse modo, (tributária de
Kilomba, 2010) contribuiremos para desacortinar novas
consciências e autoconsciências, isso é, para a descoloniza-
ção do conhecimento e do self.
Fortuna crítica
Dado o curto espaço de lançamento e a recepção ne-
gativa por parte da crítica especializada, através da mídia, a
fortuna crítica é escassa. Até o momento, temos a análise de
jornal escrita pelo professor Amâncio (2015), da Universidade
de São Paulo, e o artigo (em vias de publicação) da douto-
randa Paula Q. Dutra (2015) da Universidade de Brasília. En-
quanto Amâncio (2015) não se detém às questões referentes
às violências, Dutra (2015) faz uma leitura panorâmica das
várias modalidades de violência observadas no romance,
dentre elas, a que me proponho a desenvolver aqui: violência
racial. Diferente de Dutra (2015) opto pela designação “raça”
(em detrimento de étnico) sendo subsidiada pelo artigo de
Appiah (1995) que entende o conceito de “raça” como cate-
goria identitária que reconhece o racismo como fato social.
Neste sentido, raça é uma crença compartilhada na realidade
empírica que consiste no apagamento de traços culturais e
fenotípicos (étnicos) e na homogeneização de expectati-
va/pressupostos sobre indivíduos cuja epiderme é escura ou
que apresentem traços diacríticos que são entendidos como
presença de negritude na plataforma biológica independente
da cor da pele.
10
FANON apud BHABHA, 1998.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 205
Referências
Corpus
LEVY, Tatiana Salem. Paraíso. Rio de Janeiro: Foz, 2014.
Fortuna Crítica
AMANCIO, Moacir. Análise: Novo livro de Tatiana Salem Levy traz
temas previsíveis [2015]. Disponível em: <cultu-
ra.estadao.com.br/noticias/literatura,analise-novo-livro-de-tatiana-
salem-levy-traz-temas-previsiveis,1623985>. Acesso em 14 dez. 15.
DUTRA, Paula Queiroz. O paraíso não é aqui: a violência contra a
mulher no romance Paraíso, de Tatiana Salem Levy. (No prelo).
Outras Referências
APPIAH, Kwame Anthony. Race. In LENTRICCHIA, Frank;
MCLAUGHLIN, Thomas. Critical Terms for Literary Stidy. Chicago:
The University of Chicago. 2.ed. 1995. 14p.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1998.
COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Con-
sciousness, and the Politics of Empowerment. New York: Routled-
ge, 2000. 2.ed.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e classe. Tradução Livre. Platafor-
ma Gueto, 2013[1982].
GIPSON, Grace D. Performance of Blackness/Whiteness and Du-
Bois’ Double-Consciousness in the film Bamboozled. Disponível
em:
<www.academia.edu/3674715/Performance_of_Blackness_Whiten
ess_and_DuBois_DoubleConsciousness_in_the_film_Bamboozled>
. Acesso em 6 dez. 15.
HERKENHOFF, Paulo; NERI, Louise (org). Adriana Varejão. Trad.
Ricardo Quintana, Veronica Cordeiro. São Paulo: o Autor, 2001,
112p.
1
Doutoranda em Estudos Literários e Mestra em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Mato Grosso, graduada em Letras-
Inglês/Português pela Universidade do Estado de Mato Grosso.
Endereço eletrônico: soraya.albuquerque@hotmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 209
in Ana Maria Gonçalves's Um defeito de cor (2014).
The two writers feature in their works what we
believe are reflections of Black slaves' forced
displacements. By a going back and forth in their
memoirs, these hybridized characters give us clues
that there is a search attempt for the origins of
African ancestry. This quest moves by African novels,
as well as by Afro-descendants, keeping a link with
cultural traditions. We will use for this analysis the
studies made by Bhabha (2003), Leite( 2003), Chaves
(2005), Hall (2000), Clifford (1994), Walter (2009),
Spivak (2010), Candido (2004), entre outros., among
others.
Keywords: Diáspora. Hybridization. Identity
Introdução
Considerações finais
Referências
AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano — Escritas pós-
coloniais. Lisboa: Caminho, 2004
Webiografia
1
Mestranda do Programa de Mestrado em Critica Cultural, UNEB,
Campus II, Alagoinhas (BA). Bolsista CAPES. Endereço eletrônico:
selmamboliveira@hotmail.com.
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 1, 2016 | 239
Leitora e leitor, sintam-se à vontade para adentrar o
texto.