Cadernos Do CNLF
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X I I I, N º 0 4
INTRODUÇÃO
O Português Brasileiro vem apresentando consideráveis mu-
danças no que concerne ao uso do tempo futuro. É claramente per-
ceptível, pelo menos na língua oral, que a forma verbal composta,
formada por IR + Infinitivo, tem substituído a forma de futuro sim-
ples, passando a expressar, em seu lugar, a futuridade. O futuro sin-
tético tem aparecido quase que, exclusivamente, em textos escritos.
Esse trabalho será construído sob a hipótese de que a forma
perifrástica IR + Infinitivo encontra-se em processo de gramaticali-
zação, tendendo a substituir a forma sintética até mesmo em contex-
tos de língua escrita. Com essa finalidade, será feito um levantamen-
to de dados, que serão submetidos à análise quantitativa, retirados de
um corpus dividido em dois períodos históricos: moderno e contem-
porâneo.
O estudo se estrutura da seguinte forma: na primeira parte, se-
rá apresentada uma definição de gramaticalização e dos processos a
ela inerentes. Em seguida, o tempo futuro ganhará destaque, sendo
abordado com a respectiva apresentação de suas características. A
partir daí, segue-se com um item referente à gramaticalização do
vergo going to, do inglês. Depois, será apresentada a análise do pro-
cesso que envolveu a gramaticalização do verbo IR, em português,
que servirá de base teórica para a gramaticalização da forma perifrás-
tica. Na seção seguinte, analisam-se os contextos de uso das constru-
ções de tempo futuro. E, finalmente, na última parte, será apresenta-
do o resultado da frequência das formas perifrásticas nos períodos de
tempo outrora citados.
23“Gramaticalization is the study of grammatical forms, however defined, viewed as entities un-
dergoing processes rather than as static objects” (HOPPER & TRAUGOTT, 1993, p. 18).
2. O tempo futuro
O tempo futuro é, dentre as três formas verbais existentes
(pretérito, presente e futuro), aquele que apresenta uma referência
menos precisa, pois se aplica a acontecimentos vindouros, incertos,
inexistentes na época em que se fala ou do que se fala, mas que se
espera que se efetuem. Ainda, pode servir-se referindo a fatos ou in-
tenções atuais que se pretende que aconteçam no porvir. Para Gon-
çalves, “o futuro, na sua verdadeira realidade, é muito mais um mo-
do. Designa os desejos incertos que o falante projeta no desconheci-
do. Em virtude do processo de gramaticalização, são olvidadas essas
atitudes psíquicas, originando-se a função temporal” (1987, p. 22).
Por apresentar incerteza sobre a realidade de um fato ou
verdade, o tempo futuro se polemiza quanto ao seu enquadramento
enquanto categoria de tempo, o que permite afirmar que, quando da
sua realização, há sempre um valor modal ligado ao valor temporal.
Segundo Fleischman (1982), a futuridade do verbo pode ser
percebida sob quatro perspectivas, as quais descritas abaixo:
(a) Formas paradigmáticas de futuro – amarei, will sing, amabo, je
chanterai etc.
2.1. Go-Futures
O go-future é um subtipo de futuro verbal da língua inglesa
que se apresenta como um futuro complexo, formando, com o futuro
simples (com will), os dois tipos de futuro dessa língua. O go-future
é formado pelo auxiliar GO e o verbo principal no infinitivo, análogo
ao uso de IR + Infinitivo no português brasileiro. Alguns autores
consideram as duas formas intercambiáveis nos diferentes contextos
em que são usadas, sendo apresentadas peculiaridades de sentido no
uso do go-future.
A forma verbal do go-future é produto da gramaticalização
por que passou o verbo lexical GO, que, cumprindo sua trajetória ao
longo do tempo, perdeu o conteúdo semântico de movimento para
assumir o perfil gramatical de verbo auxiliar (be going to),
empregado nas construções com futuro. Isso pode ser corroborado
nas palavras de Heine (1982, p. 11), quando afirma que o processo
metafórico explica a mudança do nível maior de uma fonte
3. Gramaticalização do verbo IR
Após visualizar o processo que envolveu a gramaticalização
do verbo to GO, no inglês, passaremos à análise do processo por que
passou esse mesmo verbo (IR), no português.
Para as informações concernentes a essa seção, tomaremos
como base o estudo de Coelho (2006) que, em tese de doutorado,
propôs-se a analisar o processo de gramaticalização dos verbos TER,
HAVER, SER, ESTAR e IR.
Em estudo diacrônico que envolveu a investigação em um
corpus de língua escrita dos períodos arcaico, moderno e contempo-
râneo, Coelho constatou que o início do processo de gramaticaliza-
ção do verbo IR precede o período arcaico da língua portuguesa. Ao
proceder à análise quantitativa, averiguou que houve uma redução da
frequência desse item, como ocorrência gramatical, do período arcai-
co para o moderno, e que, apesar de aumentar a frequência novamen-
te da passagem do período moderno ao contemporâneo, ele não che-
gou a alcançar a frequência que apresentou no período arcaico. Para
resolver essa questão, passou à análise semântica do item, e concluiu
4.1. Os corpora
Os corpora a serem analisados são formados de oito textos,
sendo quatro pertencentes ao Período Moderno (séculos XVII e
XVIII) e quatro ao Período Contemporâneo (séculos XX e XXI). Há
de se ressaltar que a distância relativa ao tempo entre os dois perío-
dos (a partir do último texto do período moderno até o primeiro texto
do período contemporâneo) é de 189 anos, e que os textos que com-
põem cada período são de diferentes gêneros.
É importante, também, que se justifique que não foram acres-
centados ao corpus os textos relativos ao período arcaico, pois esses
não apresentariam, a não ser de forma consideravelmente reduzida,
os elementos que são relevantes a essa investigação. Preferiu-se, nes-
se caso, trabalhar apenas com esses dois períodos de tempo – moder-
no e contemporâneo.
4.2. A análise
Para iniciar o estudo dos textos que compõem os corpora, é
de suma relevância proceder à investigação de alguns fatores que
podem favorecer o uso das formas sintéticas e perifrásticas do tempo
futuro.
40
30
Perífrase Haver +
20 Infinitivo
10
0
Moderno
1 2 Contemporâneo
5. Conclusão
Ancorando-se nos estudos efetuados e nos respectivos resul-
tados obtidos, foi possível chegar às seguintes conclusões:
O verbo IR, como componente da perífrase denotadora de
tempo futuro, sofreu uma nítida alteração de conteúdo, caracterizan-
do a deslexicalização; com um aumento de uso cada vez mais gra-
matical, passou a assumir características aspectuais, caminhando ru-
mo a uma posição de configuração de futuridade.
Ao vislumbrar o seu uso em forma de perífrase junto a uma
forma verbal infinitiva, constatou-se um relativo aumento em con-
textos escritos, perceptível nos gráficos e tabelas apresentados.
Verificou-se que a forma perifrástica, pelo menos nos corpo-
ra analisados, é mais recorrente em contextos com modo indicativo.
O verbo IR forma perífrases com verbos principais com conteúdos
semânticos de menos movimento e deslocamento. Essa construção
perifrástica é característica do futuro comum (cf. ALI, 1931).
A frequência encontrada em nível mais elevado nos textos
com linguagem informal projetou a uma hipótese secundária de que
há mais ocorrência de forma perifrástica em língua falada. Essa hipó-
tese foi corroborada com a apresentação de análise da frequência
dessa forma em contextos orais.
Finalmente, fica claro e atestado que essa é mais uma inova-
ção no português brasileiro, que tende a se transformar em subsídio
para uma progressiva discussão acerca de posteriores mudanças ad-
vindas desse fenômeno.
26A análise dos corpora de língua falada constitui-se apenas de uma exemplificação, a fim de
confrontar os resultados com a frequência de língua escrita, e para corroborar a hipótese de
maior ocorrência na oralidade. O trabalho se fundamentou nos corpora de língua escrita.
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