Leitura Dialógica Na EJA - Tese
Leitura Dialógica Na EJA - Tese
Leitura Dialógica Na EJA - Tese
São Carlos - SP
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
São Carlos – SP
2016
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária UFSCar
Processamento Técnico
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
261 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2016.
Para minha mãe Célia, meu pai Mário, minha irmã Isabelle, meu cunhado Fábio, meu
sobrinho e afilhado André, meu irmão Mário e para o meu marido João Paulo. Com todo o
meu Amor.
AGRADECIMENTOS
São tantas as pessoas que colaboraram na minha formação pessoal, humana, acadêmica e
profissional que chegou o momento de agradecer a algumas delas pela importância que
tiveram na minha vida e na elaboração deste trabalho.
Agradeço a Deus, por seu amor incondicional e por me dar forças para prosseguir quando eu
pensei que não resistiria a tantas dificuldades.
À minha mãe, meu exemplo de fé e de perseverança, por apoiar os meus estudos desde as
primeiras letras, incentivando-me e lutando para que eu tivesse chance de estudar mesmo com
os problemas e fatalidades da vida.
Ao meu pai, que lá do céu olha por mim, intercede pelas minhas conquistas e é a doce
lembrança de um ser humano honesto e de um pai presente, mesmo durante o pouco tempo de
nossa convivência.
Ao meu irmão que eu amo tanto, por seu exemplo de superação e por mostrar-me que a
família é o nosso bem mais precioso e pelo qual vale à pena todos os sacrifícios.
À minha irmã, amiga e o suporte em tantos momentos de tensão. Pelo apoio emocional e
muitas vezes financeiro. Por ser uma presença permanente em minha vida, mesmo estando a
alguns quilômetros de distância.
Ao meu primeiro sobrinho e afilhado André, que veio ao mundo para alegrar nossas vidas.
Ao meu marido, pela paciência, pelo companheirismo e pelo amor dialógico que nos leva a
sonharmos juntos, por dividir comigo alegrias e choros de forma tão afetuosa.
Aos amigos Osmair, Alexandre, Rosana, Delmara, Fernanda, Maria Marta, Claudia, Ana,
Tania e tantos outros que trazem alegria para a minha vida e a tornam mais leve e divertida.
Em especial, ao Osmair e ao Lê por abrirem as portas da sala de aula e da escola Deriggi para
a realização desta pesquisa e à Claudia pelo Abstract deste trabalho.
À minha orientadora, por abraçar esta pesquisa comigo e por acreditar em mim (muitas vezes
mais do que eu mesma) desde o nosso primeiro encontro.
Aos estudantes da EJA com quem convivi e aos que aceitaram prontamente serem sujeitos
desta pesquisa, pelas vivências compartilhadas e por tantas aprendizagens que me
proporcionaram.
Machado de Assis
A leitura dialógica na EJA: contribuições de Bakhtin para a Tertúlia Literária Dialógica
RESUMO
Nossos objetivos para este trabalho são: 1) demonstrar, a partir da teoria de Mikhail Bakhtin,
como uma atuação educativa que promova a leitura dialógica proporciona formação crítica
coordenada entre oralidade e escrita, autoria do autor e autoria dos leitores em leitura
compartilhada e 2) evidenciar como leitura de mundo e leitura da palavra se dão ao mesmo
tempo em uma atuação educativa de êxito, como a Tertúlia Literária Dialógica. Trata-se de
uma investigação de natureza qualitativa, cujos procedimentos envolvem: a) a participação
em atividades de Tertúlia Literária Dialógica; b) entrevistas sobre momentos importantes na
vida dos sujeitos da pesquisa e com o professor que realiza as Tertúlias em suas aulas; c) a
identificação dos sentidos que emergem do encontro entre palavra e ideologias que circulam
durante a leitura. Para isso, amparamo-nos nos estudos de Mikhail Bakhtin para
entrecruzarmos e analisarmos os dados, discutimos uma nova concepção de leitura, refletimos
sobre as necessidades dos sujeitos da EJA em âmbito escolar e apresentamos a Tertúlia
Literária Dialógica como uma atividade educativa de êxito que proporciona conhecimento
instrumental de qualidade a todos os participantes envolvidos via aprendizagem dialógica.
Como resultados, mostramos o potencial da leitura dialógica para a produção de
conhecimentos, para a constituição de formas inovadoras de significar o texto, mais
conectadas com a realidade do leitor, salientamos a necessidade de discutir as práticas
educativas de êxito que acontecem na EJA e revelamos como o leitor amplia a sua própria
compreensão de mundo quando amplia a sua compreensão leitora.
ABSTRACT
Our objectives for this work are: 1) demonstrate, from Mikhail Bakhtin's theory, how an
educational activity that promotes dialogic reading provides critical formation coordinated
between orality and writing, the author authorship and the readers authorship in shared
reading and 2) evidence how the reading of world and reading of word are given at the same
time in an educational activity of success, such as Dialogic Literary Gatherings. It is a
qualitative research and procedures are: a) participation in Dialogic Literary Gatherings; b)
interviews about important moments in the life of the research subjects and with the teacher
who performs the Dialogic Literary Gatherings in their classes; c) identification of meanings
that emerge from the meeting between word and ideologies that are present during the
reading. So as to do that, our references were the studies of Mikhail Bakhtin to compare and
analyze the data, we discuss a new conception of reading, we reflect on the needs of the
subjects of Youth and Adult Education (YAE) in school context and present the Dialogic
Literary Gatherings as an educational activity of success that provides knowledge of quality
to all participants involved through dialogic learning. As a result, we show the potential of the
dialogic reading for the production of knowledge, for the constitution of innovative ways to
mean text, more connected to the reality of the reader, we emphasize the need to discuss the
educational practices of success that happen in YAE and reveal as the reader expands its own
understanding of the world when it expands your reading comprehension.
Keywords: Dialogic Reading. Bakhtin. Ideology. Dialogic Literary Gatherings. Youth and
Adult Education.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO
A investigadora – indícios de quem sou.................................................................................. 14
Tese e objetivos ....................................................................................................................... 22
Estrutura da Tese ..................................................................................................................... 23
ANEXOS............................................................................................................................... 248
ANEXO A: Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos –
UFSCar.................................................................................................................................. 249
ANEXO B: Modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .................... 253
ANEXO C: Termo de Autorização para Utilização de Imagem e Som de Voz para fins
de pesquisa............................................................................................................................. 258
INTRODUÇÃO
_________________________________________
José Saramago
14
1
Comunidades de Aprendizagem é um projeto voltado para a transformação educacional e social que envolve a
escola e o entorno. Integrando eficiência nas práticas educativas e equidade social, as Comunidades de
Aprendizagem visam melhorar tanto as aprendizagens quando a convivência respeitosa do grupo.
15
Ainda nesse sentido, situar o contexto social e cultural de onde parto enquanto
ser histórico é importante para o próprio campo da investigação, uma vez que o presente texto
reflete, polifonicamente, minhas experiências e vivências no mundo, conforme explica Freitas
(2003):
não permitia mais esse pagamento pela metade). Vivíamos, portanto, com essa renda (minha
mãe ganha um salário mínimo de pensão até hoje) e com o pouco dinheiro das unhas.
Com relação às ajudas que recebíamos, um dava uma roupa que não servia
mais, o outro doava um sapato já bastante gasto e uma tia fazia a compra do supermercado. E
assim levávamos a vida. Minha mãe era (e ainda é) uma guerreira! Com todas as dificuldades
ainda tinha que cuidar do meu irmão que ficou diabético aos 3 anos de idade, dependente de
insulina. E quem aplicava as doses diárias de injeção nele? Minha mãe, com toda a dedicação
e o pavor de agulhas que ela tinha!
Eu e meus irmãos (Isabelle e Mário) sempre fomos bons filhos e bons alunos.
Nunca demos trabalho para minha mãe. Aplicados, gostávamos de estudar, tínhamos
comportamento escolar exemplar e enchíamos nossa mãe de orgulho nas reuniões escolares.
Eu, particularmente, era apaixonada pela leitura (e continuo sendo!). Aprendi a ler sozinha,
com os livros de minha irmã mais velha, e todos os dias brincava de “escolinha” no quintal de
casa.
Da escola, tenho boas lembranças e outras nem tanto. Era uma menina muito
tímida e, por ser uma das melhores alunas da sala, sofria bullying (naquela época esse termo
nem existia da forma frequente como o utilizamos hoje). Fui crescendo como uma
adolescente normal, inclusive com os problemas dessa fase: achava-me feia, gorda, queria
arrumar namorado, mas a preocupação maior sempre foi com os estudos. Passava horas por
dia diante dos livros e cadernos e sentia prazer nisso.
Tive bons professores, mas alguns me davam certo medo: seja pela forma
enérgica como tratavam os alunos, seja pelas ameaças que faziam com relação às provas e
notas ou pela exigência da disciplina em sala de aula. Não que isso fosse um problema para
mim, pois sempre fui bem comportada, mas ficava tensa com algumas situações e atitudes dos
docentes.
Minha mãe sempre nos incentivou a estudar. Dizia que o estudo era a nossa
única herança e, por isso, ela fazia questão de nos manter na escola e não nos deixar trabalhar
antes de todos os filhos estarem formados na Universidade, mesmo com a pouca renda que
tínhamos em casa. Ver os filhos graduados era o sonho dela. Era também o meu sonho e o dos
meus irmãos, mas como alcançá-lo? Apesar de sempre termos sido bons alunos, havíamos
18
estudado em escola pública desde a primeira série e, naquela época, só passava no vestibular
quem tivesse estudado em escolar particular, raras exceções.
Sem desanimar, continuamos sonhando com a faculdade: após terminar o
terceiro ano do Ensino Médio frequentei um cursinho pré-vestibular popular. Uma professora
dava aulas na casa dela e cobrava uma mensalidade bem abaixo do mercado. O ritmo de
estudos aumentou muito. O dia começava para mim às 5 horas da manhã, mesmo aos finais de
semana, e estudava até o corpo e a mente não aguentarem mais.
Tinha dois cursos em vista: Biologia e Letras. Queria ser professora de uma
dessas disciplinas. A primeira porque eu gostava muito de estudar botânica e a segunda
porque adorava ler e havia me apaixonado pelas aulas de Literatura do Ensino Médio,
ministradas pela saudosa Professora Regina Helena Moraes (atual Supervisora de Ensino da
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo), com quem tive o prazer de ser aluna e,
depois, ser colega de profissão, já que trabalho na mesma escola em que estudei (aliás,
continuo até hoje dando aula nessa mesma escola em que me formei do Ensino Médio: Escola
Estadual Professor José Juliano Neto, em São Carlos – SP).
Nem sonhava com outros cursos, como Medicina, Engenharia, Direito, etc.
porque achava que estes eram destinados apenas aos filhos de pais ricos. Não era, nem de
longe, o meu caso. Além disso, tinha que passar em um curso em minha cidade ou próxima,
pois não teria condições financeiras de me manter longe (não tinha conhecimento, naquela
época, das moradias estudantis, das possibilidades de bolsa, não imaginava nem que existia
um restaurante universitário; esse universo era totalmente desconhecido para mim).
O curso de Biologia era oferecido pela Universidade Federal de São Carlos,
cidade de minha residência, e o curso de Letras era oferecido tanto pela UFSCar quanto pela
Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, cidade próxima a São Carlos. O vestibular
que realizava o primeiro era a FUVEST; já para cursar Letras na UNESP deveria ser aprovada
no vestibular da VUNESP. Depois de um ano de muito esforço e estudos, fui aprovada no
curso de Letras em Araraquara. Iniciaria a faculdade e realizaria o meu sonho e o de minha
mãe. Lembro-me da notícia da aprovação: entrei debaixo do chuveiro e comecei a chorar de
alegria, desesperadamente. Eu seria uma universitária!
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Destaco que meus irmãos também realizaram este sonho: minha irmã formou-
se em Letras, também pela UNESP, e meu irmão formou-se em Educação Física, pela
UFSCar, como o meu pai. Formamo-nos três professores na família e demos ainda mais
orgulho à minha mãe, que tanto batalhou para que isso se realizasse.
Apaixonei-me pelo curso de Letras. Dediquei-me a ele com o mesmo afinco
que já fazia desde o início de minha escolarização. Tinha um histórico escolar exemplar. E,
nos últimos anos de curso, já vislumbrava fazer um Mestrado. Havia tomado gosto pela
pesquisa quando fiz uma Iniciação Científica com o apoio da FAPESP. Estudava a
metatextualidade e a intertextualidade em poetas românticos com o respaldo de Mikhail
Bakhtin. Foi neste momento que conheci os trabalhos do teórico e tinha vontade de me
aprofundar nas questões sobre diálogo e interação social que ele abordava.
Terminei a faculdade em 2005 e, no mesmo ano, passei no exame para cursar o
Mestrado em Estudos Literários na mesma faculdade – UNESP/Araraquara, onde pude dar
continuidade aos estudos bakhtinianos.
Comecei a trabalhar como professora com contrato por tempo determinado na
escola em que hoje realizo a pesquisa de Doutorado, sendo que minha primeira experiência
como docente foi na Educação de Jovens e Adultos, ministrando aulas de Língua Inglesa na
EMEB “Arthur Natalino Deriggi”. Lembro-me bem do dia da atribuição de aulas e que
quando “sobrou” uma escola da periferia para eu trabalhar comecei a chorar de medo. As
aulas eram à noite e eu sempre ouvia dizer que o bairro era perigoso e que só tinha bandido
morando lá (hoje me envergonho de ter tido tanto pavor de iniciar a carreira docente na
periferia, tamanha a felicidade que esta escola me trouxe).
Todos os meus preconceitos caíram por terra quando eu comecei a lecionar
naquela comunidade. Como eu havia sido infeliz nos meus julgamentos! Passei os melhores
anos da minha vida atuando junto àqueles estudantes da periferia. Os alunos me adoravam!
Reconheciam e valorizavam o meu trabalho, davam-me singelos presentes no meu aniversário
(cartas, chaveiros, bibelôs, etc.), faziam festa surpresa para mim. E quantas aprendizagens tive
com aqueles alunos! Aprendi a ser professora, aprendi a ser gente! Aprendi que a felicidade
independe de condição financeira. Aprendi que a vida ensina tanto quanto os livros que eu
“devorava”.
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parar de trabalhar (o que eu não podia fazer) e poderia fazer um curso que me auxiliaria na
prática da profissão – era o curso de Pedagogia. Sempre gostei muito de lecionar e a
possibilidade de fazer essa graduação na modalidade ofertada pareceu-me bastante atrativa.
Entretanto, deveria passar no exame de vestibular novamente e, sem tempo para relembrar as
matérias exigidas, prestei sem qualquer estudo. Por fim, acabei passando no vestibular.
Então, no ano de 2007 ingressei na primeira turma do curso de Pedagogia, pela
UAB, curso apaixonante e modalidade igualmente fascinante! No final desta graduação,
surgiu a oportunidade de fazer um curso de Especialização em Educação de Jovens e Adultos
e, mesmo com tantos afazeres, não podia deixar essa formação de lado. Trabalhava com EJA
e agora poderia estudar e me aprofundar no campo, além de ter mais um diploma que me
ajudaria a continuar me movimentando na sociedade e cada vez mais dar condições para a
minha família viver bem.
Concluí o curso de Pedagogia, terminei a Especialização em EJA, mas ainda
me faltava o Doutorado e este sonho perseguia-me por muitas noites. No ano de 2012 prestei
o exame para o Doutorado na Universidade Federal de São Carlos motivada, principalmente,
pelas aprendizagens no curso de Especialização. Queria continuar estudando a EJA e com a
possibilidade de articular com minha área de formação em Letras. Pronto: decidi estudar a
leitura na EJA, mais especificamente, a leitura dialógica que conhecera por meio das
atividades de Tertúlia Literária Dialógica trabalhadas no curso de Especialização.
Fui aprovada neste processo seletivo e, no ano seguinte, iniciava mais esse
passo na trajetória acadêmica. Nesse meio tempo fiz um curso de formação de tutores, pela
UAB, e atuei como tutora virtual no curso de Pedagogia, o mesmo curso em que havia me
formado, ou seja, passei de estudante para tutora. A democratização do saber que essa
modalidade a distância proporciona me atraía muito e já estava apaixonada pelas tecnologias
educacionais.
Em 2013 fui convidada pela Profa. Fabiana Marini Braga para atuar junto à
Coordenação do Curso de Pedagogia à distância, trabalhando para o Reconhecimento do
Curso junto ao Ministério da Educação. O curso foi reconhecido e, até a presente data,
continuo trabalhando no apoio pedagógico aos docentes da Pedagogia. Além disso, prestei um
concurso para Professor Voluntário, fui aprovada e passei a atuar como docente no curso de
22
Pedagogia, assumindo a disciplina “Práticas de Ensino III: a escola como espaço de análise e
pesquisa”.
Mais um detalhe de minha vida, não menos importante do que os
acontecimentos já descritos, é que no Curso de Especialização em EJA conheci aquele que
hoje é meu marido, João Paulo, que me acompanha neste sonho de desenvolvimento da Tese
e obtenção do título de Doutora em Educação e em muitos outros sonhos que ainda pretendo
realizar no intuito de colaborar com uma educação de qualidade para jovens e adultos do meu
município.
Sonho, por exemplo, que as pessoas que ensino e com quem aprendo tenham as
mesmas chances que eu tive de ascender socialmente por meio dos estudos e, por acreditar no
potencial da educação e saber que ela é o caminho para tirar os menos favorecidos da pobreza
e da exclusão social, não deixo esse sonho esmorecer, mesmo que os desafios pareçam
intransponíveis. A força vem de Deus, a força vem do contato com a comunidade carente, do
diálogo com os estudantes e vem da própria certeza de que esses educandos e essas educandas
são capazes de aprender e de conduzir, para melhor, a própria vida.
É nesse contexto de esperanças e lutas que também justifico a presente Tese: o
que me move neste trabalho é o meu compromisso com esses estudantes da Educação de
Jovens e Adultos que vivem em situação desigual e a escolha de um filósofo – Mikhail
Bakhtin – que se propõe a fazer transformação, por isso, me acompanha e me embasa
teoricamente nesta investigação.
Tese e objetivos
Estrutura da Tese
forma de agir, pensar e falar no mundo é fruto da ideologia que nos constitui enquanto
sujeitos sociais.
No terceiro capítulo traçamos o perfil metodológico da nossa Tese,
descrevendo a forma como o estudo foi realizado: desenhamos o cenário da pesquisa,
relatamos os instrumentos de coleta de dados, traçamos o perfil dos sujeitos participantes do
estudo, indicamos as entrevistas que foram realizadas, assim como discutimos a forma como
os dados foram organizados e analisados.
No quarto capítulo, inserimo-nos na escola de Educação de Jovens e Adultos e
nos desafiamos a demonstrar a nossa tese a partir das análises dos dados articuladas à
discussão teórica. Mostramos sobre o que falam os educandos durante a leitura dialógica,
trazemos trechos destacados por eles, os quais são apresentados em categorias, e os
analisamos com base nas ideologias percebidas quando se expõem palavra e contrapalavra.
Nas considerações finais retomamos o percurso desenvolvido na Tese e
apresentamos indicações para a melhoria das práticas de leitura, pensadas ao longo de toda a
investigação, além de indicarmos a necessidade de continuidade dos estudos envolvendo
Bakhtin e a leitura dialógica.
26
Castro Alves
27
Uma nova concepção de leitura precisa adentrar nas escolas e fazer a diferença
junto aos estudantes. Decodificar palavras é uma etapa do processo de leitura, mas este
precisa ampliar-se e fazer sentido no mundo da vida2. Ler deve ser um ato de libertação, de
compreensão do entorno, de inspiração de ideias e de construção do pensamento crítico-
reflexivo. Para tanto, há que se buscar um conceito de leitura que verdadeiramente possa ser
aplicado nas salas de aula e que colabore para a formação de um leitor das palavras e da vida.
Quando se considera a leitura como um processo interpretativo, segundo os
entendimentos de cada leitor e os diferentes pontos de vista que emergem da leitura, exercita-
se a autonomia do sujeito que lê; autonomia essa fundamental para que ele elabore
pensamentos mais requintados, aprenda a olhar criticamente o objeto sobre o qual se detém e,
consequentemente, para que desenvolva a habilidade reflexiva que é capital para os processos
de transformação tanto cognitiva quanto social. Nessa perspectiva, a leitura dialógica é
propícia para a formação plena do educando ao pensarmos na constituição de um sujeito
participativo e que tem condições de argumentar e de inserir-se em sociedade com poderes de
transformação.
A concepção dialógica de Bakhtin é a grande contribuição do teórico para a
formulação de uma nova abordagem sobre os processos de leitura, embora o autor nunca
tivesse escrito especificamente sobre isso. Contudo, nos diversos domínios de estudo da
linguagem, o seu posicionamento filosófico influenciou grandes estudiosos e lançou as bases
para uma modificação na forma de tratar o interlocutor, o qual não é um elemento abstrato,
um ente linguístico, mas um ser que existe tanto no contexto discursivo quanto na própria
2
A expressão “mundo da vida” localiza-se na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. Para o teórico,
a ação comunicativa surge como uma interação de, no mínimo dois sujeitos, capazes de falar e agir, que
estabelecem relações interpessoais com o objetivo de alcançar uma compreensão sobre a situação em que
ocorre a interação com vistas a coordenar suas ações pela via do entendimento. Nesse sentido, o “mundo da
vida” seria, para Habermas, o contexto, o pano de fundo que propicia os processos de se alcançar esse
entendimento. Para aprofundamento na teoria da ação comunicativa de Habermas consultar HABERMAS, J.
Teoria de la Acción Comunciativa: racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1987. v.
1 e 2.
28
interpretações que tocam a mente e as emoções do leitor e, para tal, a leitura precisa ser mais
do que decodificação ou identificação dos elementos da narrativa (personagem, tempo,
espaço, ação, clímax, narrador, etc.). Isso porque leitura é produção e não reconhecimento de
sentido. É um ato dialógico que requer a compreensão ampla dos significados do texto para
além dos significados das palavras, sendo sempre uma reação ao que o outro disse,
implicando, então, uma resposta.
A produção do sentido, portanto, se realiza sob uma forma de diálogo que leva
à formulação de contrapalavras. Isso porque a leitura expõe as dimensões axiológicas,
propondo o afastamento de uma análise abstrata e meramente linguística da obra, mas
considerando que a sua forma composicional é a expressão de múltiplas vozes sociais que
estão constantemente solicitando respostas, uma vez que a palavra contextualizada não
conhece o acabamento:
Não existe a primeira nem a última palavra e não há limites para o contexto
dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites).
Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos
passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de
desenvolvimento subsequente, fruto do diálogo. (BAKHTIN, 1992, p. 410).
construção ideológica das consciências, ou seja, ainda segundo Bernardes (2003, p.81),
“somos tecidos numa rede de relações onde se entrelaçam e entrechocam as várias vozes
sociais de uma época. Fazemo-nos uns aos outros num fluxo ininterrupto, no movimento,
num território sem espaço definido, na passagem”. Uma vez que os sujeitos se constituem
continuamente pela língua que compartilham, é o que torna possível dizer, segundo a
concepção bakhtiniana de “excedente de visão”, que o homem é um sujeito inconcluso, que se
constitui pela visão do Outro e pela linguagem que permeia as interações sociais.
Não há sujeito pronto e acabado, assim como não há uma língua pronta e
acabada tão pouco o ato de ler pode ser entendido nessas condições. O autor não se apropria
de uma língua estática, portanto, o leitor também não pode fixar-lhe um sentido. A leitura
ainda pode ser entendida como o lócus de constituição: enquanto lemos nos deparamos com
enunciados repletos de conteúdos ideológicos que entram em acordo ou desacordo com
nossas concepções e visões de mundo e, nesse diálogo, nesse entrecruzar de palavras, também
compomos nossa subjetividade.
Somos afetados e afetamos o contexto artístico-literário. Na leitura, somos
coenunciadores, pois aquele que primeiramente enuncia antecipa, na própria escrita do texto,
as vozes daquele que virá a ser o seu leitor. Por sua vez, tendo o texto em mãos o leitor dá-lhe
tantos sentidos quanto sua imaginação e vivências permitirem. O leitor cria e não reconstitui
sentidos ao texto. O prazer de ler não se dá em desvendar o sentido que o autor imprimiu, mas
em confrontar esse sentido com o que ele próprio estabeleceu. O encontro entre a palavra
impressa e as contrapalavras do leitor torna a leitura um ato fascinante e rico:
como ele próprio denomina, que nos fazem refletir sobre os modos de ler mais eficientes e
sobre as possibilidades de renovação da leitura escolar à luz do pensamento bakhtiniano. Os
estudos em torno de Bakhtin apontam para uma poética sociológica para o tratamento do texto
literário, opondo-se a uma tradição na qual imperava o método formal, isto é, aquele que
considerava os emaranhados internos à obra como os únicos elementos a serem considerados
na elaboração dos sentidos do texto.
Propondo a superação do pensamento estético do formalismo russo, uma nova
forma de ler é aquela que não se desvincula dos diferentes elementos da cultura de modo que
sentidos de uma obra literária não sejam dados unicamente pela obra em si. Uma conexão
com a “realidade prática vivida” pode oferecer uma nova condição ao objeto artístico,
relacionando-o a diferentes âmbitos da vida, trazendo, portanto, mais significação aos leitores.
Nesse sentido, Faraco (2012) comenta sobre como deve ser uma análise de obra literária,
dando pistas sobre os caminhos a serem seguidos para a renovação da leitura em âmbito
escolar:
aula e que favorece atividades leitoras mais significativas aos educandos e menos pautadas no
mecanicismo linguístico. Para exemplificar do que estamos falando, o próximo tópico deste
capítulo discute as diferenças entre cultura oral e cultura letrada, enfocando nosso âmbito de
pesquisa – a Educação de Jovens e Adultos.
Se, por gerações, a transmissão da cultura pela via oral marcou a história da
humanidade uma vez que, para diversos povos, os conhecimentos eram repassados por meio
do testemunho oral e por outras manifestações verbais que prescindiam do registro escrito,
com o advento do cientificismo, no século XVII, seu valor passa a ser paulatinamente
questionado e a cultura letrada assume definitivamente sua hegemonia na sociedade. Nessa
passagem da cultura oral para a cultura letrada, muitas implicações de cunho social
emergiram, de forma que começamos por abordá-las no tocante às diferentes conexões entre
essas duas esferas perpassadas pelas relações de poder e clivagens, tal qual discute Geraldi
(2000).
O autor afirma que a construção do alfabeto pode ser compreendida como uma
aproximação com a oralidade, na busca de um registro gráfico capaz de representar a fala,
porém, paradoxalmente, no artefato produzido, distanciou-se da modalidade oral da
linguagem, uma vez que a escrita, exigindo aprendizagem formal, sofreu um processo de
apropriação social por certas camadas sociais que nelas imprimiram suas formas de apreciar o
mundo, excluindo não apenas outras formas discursivas que não se enquadravam nesse
artefato alfabético construído, mas excluindo também os sujeitos que não dominavam tais
formas discursivas registradas pela escrita. Assim, o alfabeto e seus desdobramentos na
escrita passaram a normatizar a fala, desviando sua função primeira de apenas registrá-la.
Os processos escolares, na visão de Geraldi (2000), deveriam justamente
combater essa normatização quando esta se torna impositiva, uma vez que qualquer unicidade
linguística, discursiva e, consequentemente, cultural é algo inalcançável. Nessa recusa, a
difusão da escrita (que se apresenta como o registro padrão das classes dominantes) abriria
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oral ficar deslocada dos processos educativos, a própria língua escrita e, mais
especificamente, a atividade de leitura, tornam-se meios para promover práticas
discriminatórias, como afirma Mello (2003):
excluídos pela imposição de uma cultura letrada, sim, para todos, mas distinta dependendo da
camada social a que se pertence.
Da forma como se vão delineando excludentes, as práticas escolares rejeitam
também o perfil dos estudantes, suas histórias de vida, as outras formas de linguagem que eles
utilizam em seus coletivos, seus conhecimentos e a relação destes com o mundo real. Sem a
compreensão de que a educação de adultos lida com pessoas que enfrentaram em suas
trajetórias uma série de processos de exclusão e que são indivíduos com características
peculiares, inclusive no âmbito linguístico e de expressão de ideias, a escola perde a
oportunidade de oferecer-lhes caminhos para a emancipação social. Sobre essas
peculiaridades que se encontram na educação de pessoas jovens e adultas, Oliveira (2005)
explica:
grupo. Zuin e Zuin (2010) exemplificam essa dinâmica na relação dialógica entre um grupo
de agricultores e os extensionistas, refletindo sobre o processo de ensino e aprendizagem no
campo. Cabe antes um esclarecimento de que o extensionista rural é comumente conhecido
como o técnico que, com seu conhecimento, traz inovações e auxilia o produtor, contribuindo
para o desenvolvimento no setor agropecuário.
Segundo os pesquisadores, a extensão rural tem difundido inúmeras
tecnologias, desconsiderando o saber dos agricultores, não ponderando o conhecimento que
eles possuem advindos tanto da cultura oral na qual estão imersos quanto da própria lida nos
sistemas produtivos e não os enxergando também como sujeitos que produzem a sua própria
história. Numa análise do diálogo freireano em que os autores aproximam os extensionistas
aos educadores e os agricultores aos educandos, Zuin e Zuin (2010) consideram que, assim
como há muitos processos formativos que subjugam os saberes discentes, no campo, o
difusionismo de tecnologias segue na mesma direção. Traz uma prática verticalizada de A
para B, na qual B (o produtor) é apenas um receptor que passivamente se apropria do
conteúdo ideológico emitido por A, conteúdo este que pode ser, segundo a pesquisa, a compra
de tecnologias que nem sempre condizem com aquilo que os agricultores necessitam, por
exemplo. Nesse sentido, as experiências dos agricultores são tidas como um “ruído” na
comunicação, caracterizando assim um rebaixamento da própria cultura desses homens do
campo.
O primeiro passo, contudo, para o diálogo efetivo entre A e B é que ele se
configure numa prática horizontal em que ambos os sujeitos têm a palavra. Em seguida, há
que se propor uma tentativa de compreender a leitura de mundo dos interlocutores a fim de
que não haja invasão cultural de nenhuma das partes que estão em diálogo, ou seja, que uma
cultura e uma visão de mundo não imperem sobre as outras. Para isso, é fundamental o
respeito às diferenças e a desmistificação de que há saberes melhores ou piores, saber mais ou
saber menos; a chave da dialogia é considerar apenas que cada um sabe algo de um ponto de
vista a partir das suas experiências enquanto ser no mundo e que todos têm direito de se
posicionar e de ter valorado o conhecimento que possuem.
Nos processos educativos formais (como os propostos nas escolas) ou
informais (como os propostos no campo), a elaboração do conhecimento deve partir das
40
extensão entendida como uma substituição de uma forma de saber sobre outra daria espaço
para a ação e a transformação da realidade.
Os processos de hierarquização social não precisam e não devem repercutir nas
escolas. Qualquer projeto educativo pode posicionar-se em prol da transformação da realidade
ou pode optar pela aceitação e manutenção de uma sociedade excludente. Podemos desejar e
lutar pela mudança da realidade, algo “difícil, mas possível” (FREIRE, 2000, p. 55), ou
podemos deixar de sonhar e entregarmo-nos às condicionantes históricas, econômicas e
sociais, tornando-nos seres determinados por elas e que aceitam passivamente as
circunstâncias, sendo essa segunda possibilidade inexistente nas teorias de Paulo Freire. O
autor argumenta a favor da necessidade de nos colocarmos contra as ideologias fatalistas que
querem nos convencer de que não há mais o que fazer a não ser nos contentar com uma
realidade excludente e opressora.
De acordo com Freire (2003) é preciso escolher a favor de quem e contra quem
queremos estar. Eles nos alerta que:
(...) não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não
poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de
posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo.
Não posso ser professor a favor de quem quer seja e a favor de não importa o
quê. (ibid, p. 102).
Para Freire (2000), a inversão desse quadro passa por uma educação crítica,
que leva o educando a se posicionar, a decidir, a sonhar. Paulo Freire expõe em toda sua obra
e em seus estudos com educação de pessoas adultas que um dos possíveis caminhos para isso
é promover o diálogo em sala de aula, ouvindo a voz dos que não tiveram muitas
oportunidades durante a vida de falar, decidir e se posicionar. Eis que temos mais uma vez a
importância da cultura oral também como forma de superação de processos de exclusão.
Pensando em formas de transformação da educação de pessoas adultas com
base na inserção da cultura oral nas práticas pedagógicas, Souza e Mota (2007) também
refletem sobre o espaço da língua falada na EJA por meio da comparação entre a cultura
escrita e a oral a partir dos estudos sociolinguísticos. Vygotsky, Mikhail Bakhtin, Paulo Freire
e Foucault são os principais teóricos que embasam o estudo das autoras e os conceitos
42
fundamentais a que elas se referem são: linguagem como forma de interação social e
constituição do ser humano, proposto por Vygotsky e Mikhail Bakhtin; discursos sociais
organizados historicamente por processos dialéticos e dialógicos, também segundo Bakhtin;
mediação como importante competência docente, conceito de Vygotsky; diálogo, de Paulo
Freire e ordem do discurso, conceito teórico de Foucault.
As pesquisadoras nos fazem refletir sobre o fato de não serem muitas as
ocasiões em que as práticas pedagógicas reconhecem a dimensão social do discurso,
manifestada pela fala individual, e afirmam que em ambiente escolar a escrita é
acentuadamente valorizada, deixando de lado aspectos ricos advindos da língua oral e das
experiências de vida dos educandos. Nesse sentido, muitas vezes, as estratégias em sala de
aula resumem-se a reproduzir saberes historicamente construídos, ignorando as trajetórias
pessoais dos estudantes e, com isso, perpetuam-se por gerações verdades “incontestáveis” e
também ideologias, preconceitos e discriminações.
Segundo Souza e Mota (2007), a própria ausência de práticas dialógicas entre
docentes e estudantes traz prejuízo para os processos de transformação social, uma vez que,
por meio de uma interação mediatizada pelo mundo, homens e mulheres podem transformá-
lo, como acredita Freire. Além disso, não havendo espaço para o diálogo, a própria formação
da identidade subjetiva é comprometida, já que o sujeito se forma na relação com o Outro.
Assim, se por um lado os estudantes adultos têm uma competência comunicativa com base
predominante na cultura oral, por outro, quando chegam à escola, deparam-se com textos
infantilizados e com assuntos que não condizem com suas experiências de vida. Aliados a
isso, as próprias variedades linguísticas que os professores utilizam dificultam a interação
dialógica, pois a fala do docente é distante das formas que os estudantes utilizam.
Além do preconceito que existe com relação à língua falada, uma vez que o
educando domina a forma menos prestigiada da língua, ele possui poucas chances de se
posicionar em sala de aula enquanto cidadão falante. O educando cala-se porque tem medo de
ser corrigido e, consequentemente, humilhado, sendo inibido no não privilégio de seus falares
regionais e sociais. Por isso, é possível afirmar que a ausência da cultura oral na educação
formal acarreta problemas de ordem pessoal (subjetiva) e social, não contribuindo para o
sucesso nos processos educativos.
43
hierárquico, de modo que o ler com o outro (e não a leitura solitária e silenciosa) passa a
agregar conhecimentos necessários aos processos de alfabetização e letramento. Além de
potencializar a aprendizagem da língua materna, essa leitura partilhada é vista como um
momento de prazer, diferente das lições escolares tradicionais tidas como enfadonhas por
muitos, como percebemos na fala de um dos sujeitos da pesquisa de Galvão (2002) que
desfruta desse tipo de leitura:
Ah... Matuto não passa muito tempo na escola. Passa mais na porta da
escola. Aprendi pouco. Eu vi só a carta de ABC e talvez nem toda. (...)
Eu...foi quem me desenvolveu. Porque eu aprendi na escola... a carta de
ABC num versa, versa? É só aqueles dizerzinhos (como se estivesse
recitando:) “é meu pai, eu vou ler (...) vou ler mais” (voltando a falar
normalmente), essas coisinhas, né? Dali aprendi, aprendi a juntar as duas
sílabas, as duas letras pra fazer a sílaba, depois nome, pronome, não sei o
quê, não sei o quê, não sei o quê, e fui juntando e o cinema me imprensou
mais, me ajudava a desenvolver. (...) E foi isso minha vida. Eu aprendi ler
quase no folheto. O folheto foi meu professor. (...) Na escola só fazia
aprender bobagem. (GALVÃO, 2002, p. 126).
Nos espaços em que aconteciam essas leituras dos folhetos de cordel não
circulavam hierarquizações entre o oral versus escrito e, até entre as camadas poucos
escolarizadas, vivenciavam-se práticas de letramento. Elas ocorriam mesmo que os
participantes não frequentassem a escola, ou ainda que a tenham frequentado por poucos
anos, tratando a cultura oral e a escrita como dois aspectos de uma mesma dimensão.
Em nossa pesquisa, também recusamos essa bipolaridade entre cultura oral e
cultura escrita, no sentido de se tratar uma (a escrita) como melhor do que a outra (a oral).
Além disso, também afirmamos ser a leitura um momento importante de aprendizagens, não
apenas acerca da língua materna, mas também uma ocasião de aprendizagens sobre o mundo,
sobre a vida. Na leitura, essa aprendizagem é potencializada na medida em que ela permite
que experiências e saberes alheios componham a gama de conhecimentos partilhados, mas,
para que isso aconteça, há de ser uma leitura dialógica.
Nossos estudos referem-se, portanto, à importância de se abrir espaço para a
cultura oral, principalmente na Educação de Adultos, e indicar a necessidade de se criar
condições para falar e ouvir (de forma igualitária) em sala de aula. Isso porque acreditamos
45
1.3 Leitura dialógica dos clássicos: Tertúlia Literária Dialógica e cultura oral no
contexto da EJA
3
Projeto que implica transformação social e cultural na escola e no entorno porque envolve mudanças de hábitos
e atitudes das famílias, profissionais da educação, alunos e alunas e de toda a comunidade, com o objetivo de
construir uma escola onde todas as pessoas possam ter máxima qualidade de aprendizagem. Tem também como
objetivo responder de forma igualitária, as necessidades da atual sociedade e atuar em direção às transformações
sociais que estão sendo produzidas.
46
Diálogo igualitário: numa situação de diálogo, considerar o que está sendo dito
pela validade do argumento e não pela posição de poder dos interlocutores, de forma que
nenhum pronunciamento seja desprestigiado; além disso, no diálogo igualitário preserva-se o
igual direito de fala de todas as pessoas, independente de classe social, escolaridade, etnia,
gênero, idade, etc. Numa Comunidade de Aprendizagem, todos, incluindo estudantes e
comunidade, têm direito de se posicionar e requerer o que é melhor para a escola, assim como
também podem argumentar sobre suas aprendizagens.
4
Tradução livre do trecho: En las comunidades de aprendizaje se parte de la ideia que todas las personas tienen
capacidad de transformación. A través del diálogo intersubjetivo es posible crear un nuevo sentido en la vida de
las personas implicadas, logrando crear canales para superar situaciones de desigualdad y/o de exclusión. Las
comunidades de aprendizaje se convierten en un proyecto comunitario de formación, en el que los y las
profesionales de la educación dejan de tener todo el poder de decisión sobre la mejor educación para los niños
y niñas, y pasan a cooperar de forma entusiasta con otros agentes educativos de la comunidad para maximizar
los aprendizajes de todas y todos. Con este mismo objetivo, la oferta educativa se amplía a toda la comunidad,
las puertas del centro se abren a la formación de los familiares en respuesta a sus propias demandas
formativas. (ELBOJ SASO et al, 2009, p. 95).
5
Flecha é professor da Universidade de Barcelona e coordenador do CREA.
47
que elas suscitam; estimular o acesso a diferentes conhecimentos e modos de vida, como
ampliação da solidariedade e da possibilidade de convívio entre as pessoas; explicitar a
existência da inteligência cultural como capacidade de se aprender diferentes coisas ao longo
de toda a vida; auxiliar na criação de sentido para a leitura como atividade cultural, de direito
de todos.
Vemos que a ideia é quebrar as barreiras culturais que ditam quais são as
pessoas que têm capacidade de ler obras clássicas e coloca-se o acesso aos meios de cultura
elitizada como caminho para se promover a igualdade de direitos de todos a lidar com os bens
culturais que circulam entre a classe dominante. Além disso, esse acesso faz-se no diálogo
entre pessoas com diferentes graus de escolaridade, das mais altas às mais baixas, reunindo
todos os participantes em volta de uma literatura de qualidade academicamente reconhecida.
Nesse processo, todas as pessoas podem expressar suas ideias e seus
sentimentos com relação à obra lida. Incentivados a se posicionar e a argumentar segundo a
leitura que fizeram e partindo de suas experiências de vida, cultural, escolar, etc., os
participantes da Tertúlia interpretam coletivamente o texto, dando sentidos a ele e chegando a
consensos sobre seus significados. Dialogicamente, explicam a obra sem considerar que
apenas o professor é capaz de fazê-lo e não deixam de se posicionar por vergonha ou por
estarem ainda incluídos numa posição social menos prestigiada. Assim, as possibilidades de
ensinar e aprender se redimensionam e todos compartilham saberes.
Essas práticas consideram que ao longo da existência as pessoas aprendem
coisas diferentes, de maneiras distintas e relativas aos mais diversos âmbitos da vida. À
medida que elas vivenciam o diálogo igualitário, essas aprendizagens tornam-se instrumentos
para outras pessoas num processo de mútuas influências. Desse modo, essas pessoas
vivenciam também processos de transformação pessoal, pois passam a enxergarem-se como
seres atuantes no mundo, capazes de promover transformações culturais no seu entorno.
As Tertúlias Literárias Dialógicas encurtam as distâncias entre a cultura letrada
e os conhecimentos via tradição oral dos estudantes. O que cada um e cada uma aprende ao
longo da vida, interagindo, experimentando e vivenciando é estimado e considerado fonte
inovadora de conhecimentos acumulados pela sociedade. Além disso, as aprendizagens em
torno da leitura de livros da literatura clássica desmistificam a crença de que alguns grupos
53
8
Tradução livre do trecho: diríamos que ante una misma obra (literaria, pictórica, etc.) se prestaría más
atención a la opinión que generaría una persona académica que a una persona sin estudios. (PULIDO; ZEPA,
2010, p. 296).
56
mesmo valor é dado às contribuições de pessoas diferentes, independente de qual seja seu
nível acadêmico e de instrução, de modo que as interações dialógicas predominem sobre as
interações de poder. Neste sentido, o papel do moderador é fundamental, pois ele é o
responsável por criar o ambiente de atos comunicativos dialógicos frente aos de poder, que
superem as desigualdades impostas socialmente.
Quanto à necessidade das Tertúlias utilizarem livros da literatura universal,
cabe algumas reflexões: os denominados “clássicos”, além de sua qualidade estética ímpar,
têm a capacidade de expressar o universo social e reorganizar sentimentos, tensões, anseios de
todo ser humano, ampliando assim as possibilidades de criarmos sentidos à nossa existência,
pensarmos nas dinâmicas sociais e subjetivas e ancorarmos novas aprendizagens. A leitura de
livros clássicos permite a representação do homem e do mundo circundante, fomentando sua
reinvenção e dando forças para que se pense em transformações da própria realidade.
A literatura clássica, seja ela universal ou nacional, tem um refinamento que dá
um instrumental de leitura e escrita que os outros textos não dão. É uma literatura universal
porque marca um registro discursivo, funda uma forma narrativa, estrutura formas de pensar e
de se relacionar politicamente. Os clássicos possuem uma complexidade filosófica, histórica e
linguística única, provocam novas leituras e fazem com que os sujeitos se encontrem como
sujeitos no mundo.
De certa forma, a cultura oral propaga, de forma semelhante, a expressão dos
sentimentos, das tensões e dos anseios do ser humano retratados nos clássicos, ou seja, essas
obras captam a subjetividade humana expressas nas falas cotidianas, o que nos faz pensar que
os livros de literatura universal são também uma resposta à própria cultura oral. Nesse ponto,
temos um singular encontro entre cultura oral e cultura letrada de caráter universal; entre
clássico e popular; entre conhecimento supostamente das elites e conhecimento das classes
baixas; entre língua escrita e língua falada; entre conteúdos escolares e saber de mundo.
Vemos, portanto, que a forma grafada, contida num livro de literatura clássica,
não neutraliza as potencialidades da cultura oral, a qual é transmitida de geração para geração
por meio da memória ou pelas experiências de cada um. Pelo contrário, a expressão oral pode
estar inserida nas próprias páginas de um livro consagrado, sendo suas interpretações, por sua
vez, também pautadas na expressão da cultura oral de cada leitor.
57
exposição, já que são fundamentais para a formação dos sujeitos. Por isso, fortalecer a cultura
oral e criar espaços para aprendizagens dialógicas são de capital importância para a
valorização das identidades dos sujeitos da EJA e para a luta pela liberdade da palavra,
contribuindo para que eles saiam da “invisibilidade” em que por tanto tempo se encontraram e
saltem do apagamento para o lugar de direito nos processos de humanização, expressão e
superação de desigualdades.
Há que se destacar que as Tertúlias Literárias Dialógicas foram selecionadas
como uma das atuações educativas de êxito no Projeto Europeu Integrado INCLUD-ED
(2006-2011)9. Por meio de projetos com o intuito de superar a exclusão social, foram
identificadas práticas educativas de êxito que diminuem o fracasso escolar, sendo que de uma
extensa revisão bibliográfica de artigos científicos, assim como de 20 estudos de caso em seis
países europeus, a Tertúlia Literária Dialógica foi reconhecida como uma prática de sucesso
para a superação da exclusão social em diferentes contextos. Centenas de pessoas em
diferentes países estão lendo Joyce, Kafka, Tostoi e outros grandes clássicos da literatura,
superando a crença em suas “incapacidades” provenientes de seus lócus de origem, ampliando
sua capacidade crítica de interpretação das obras e demonstrando que qualquer pessoa,
independente de sua classe, pode transformar as limitações sociais através do diálogo.
As atuações educativas de êxito (AEE) são assim consideradas por terem seus
resultados comprovados em diferentes contextos, com diferentes pessoas, em lugares distintos
(foram validadas em 14 países distintos com resultados de sucesso). A Tertúlia Literária
Dialógica tem evidências de que a melhora na aprendizagem instrumental e na convivência
ocorrem em diferentes escolas e bairros em diversos países e, em todos os casos, repercutem
positivamente no entorno. Assim, a Tertúlia Literária Dialógica não depende de um local
específico para ser bem sucedida.
A partir daqui trazemos algumas das pesquisas mais recentes em torno da
Tertúlia Literária Dialógica de acordo com artigos produzidos nos últimos anos (2013-2016),
9
Para saber mais sobre o projeto INCLUDE-ED:
INCLUD-ED (2006-2011). Strategies for Inclusion and Social Cohesion in Europe from Education. 6th
Framework Programme. Citizens and Governance in a Knowledge-Based Society. CIT4-CT-2006-028603.
Directorate-General for Research, European Commission.
INCLUD-ED Consortium (2011). Actuaciones de éxito en las escuelas europeas [colección Estudios CREADE,
n.º 9]. Madrid: Secretaría General Técnica, Ministerio de Educación.
59
os quais justificam a inserção dessa atividade entre as atuações educativas de êxito descritas
no projeto INCLUD-ED.
Iniciamos com o artigo intitulado “Transferencia de tertulias literarias
dialógicas a instituciones penitenciarias”, de Flecha; García e Gómez, publicado na Revista
de Educación (Madri, 2013). Nessa pesquisa, temos justamente um exemplo de que a
Tertúlia Literária Dialógica não depende de um contexto pré-determinado para acontecer com
eficácia. Os resultados obtidos nas Tertúlias realizadas em um centro penitenciário
demonstram o potencial transformador dessas atividades para a reinserção social dos presos
participantes, uma vez que enfatizam a dimensão instrumental, aceleram a aprendizagem, são
criadoras de sentido e estabelecem laços de solidariedade. Os autores explicam que a
universalidade é uma das características mais importantes que diferenciam uma AEE (atuação
educativa de êxito) de boas práticas10 ou das melhores práticas educativas. Assim, as mais de
200 Tertúlias Literárias Dialógicas espalhadas pela Europa e América Latina são uma
evidência de que essas atividades podem ser aplicadas em quaisquer coletivos com sucesso,
daí seu caráter universal.
Os pesquisadores realizaram um estudo longitudinal, de 2001 a 2012, em um
centro penitenciário e os resultados demonstraram uma melhora cognitiva e social promovida
pela Tertúlia, sendo que os pesquisadores se valeram dos relatos das pessoas participantes
para mostrar o impacto que essa atividade teve/tem na vida das pessoas e em suas trajetórias
de inclusão social.
O fato de os participantes lerem livros da literatura clássica universal na
Tertúlia Literária Dialógica, e não outro tipo de livro, contribuiu para modificar tanto a
imagem que os carcereiros e demais funcionários do presídio tinham das possibilidades de
aprendizagem dos internos quanto a própria imagem deles enquanto pessoas. As barreiras
culturais se destituíram graças à leitura dialógica dos clássicos em um grupo formado por
10
Oriol Rios (2013) faz uma importante distinção entre “boas práticas” e “atuações educativas de êxito”. O autor
desenvolve a ideia de que as políticas públicas devem se basear no conhecimento científico, como ocorrem nas
AEE, e que deve haver um diálogo com as pessoas afetadas diretamente por essas políticas. Além disso, as
atuações educativas de êxito veem acompanhadas de indicadores que mostram avanços significativos na melhora
social dos coletivos. Para saber mais sobre a distinção entre “boas práticas” e “atuações educativas de êxito”,
conferir artigo: RIOS, O. Transformacion Sociocultural y Desarrollo. Buenas Practicas o Actuaciones de Exito.
Multidisciplinary Journal of Educational Research, 3(2), 173-199. doi: 10.4471/remie.2013.11.
60
pessoas com diferentes níveis educativos e de grande diversidade cultural. Além disso, os
próprios participantes foram interiorizando as expectativas positivas, melhorando a sua
autoestima e transformando seu comportamento. Graças ao diálogo, começaram a se perceber
como pessoas capazes de ler e entender obras de grande natureza e complexidade, como os
clássicos.
A Tertúlia é criadora de sentidos e representou uma experiência positiva dentro
da penitenciária, permitindo que os encarcerados refletissem sobre suas próprias vidas e
alcançassem uma transformação pessoal. As relações familiares também foram afetadas pela
atividade, de modo que se faziam presentes nas conversas telefônicas, nas visitas que os
reclusos recebiam e mesmo nas saídas com autorização. Configurou-se um espaço de
humanização e liberdade em meio aos muros da prisão.
Outro estudo de caso longitudinal (2006-2010) empreendido como parte do
projeto INCLUD-ED que passamos a descrever está presente no artigo “Turning difficulties
into possibilities: engaging Roma families and students in school through dialogic learning”,
de Soler e Flecha (2013). Os pesquisadores estudaram uma escola espanhola para
compreender como escolas e comunidades têm um papel fundamental da inversão do ciclo de
desigualdade que os ciganos sofrem na Europa e como a aprendizagem dialógica contribui
para a redução dessa desigualdade, assegurando ainda elevados níveis de aprendizagem
acadêmica para todas as crianças.
A escola pesquisada chama-se La Paz e está localizada em um bairro muito
carente da cidade de Albacete, na Espanha, onde os ciganos constituem 90% da população. A
maioria das famílias tem alfabetização limitada (ou seja, cerca de 50% tem alguma educação
básica e 25% são analfabetos) e com uma situação econômica muito precária. A escola tinha
elevadas taxas de abandono e muitos conflitos nas salas de aula, bem como conflitos entre
professores e famílias. Com isso, a matrícula da escola foi diminuindo e cerca de 300
estudantes evadiram ao longo de 10 anos. Entre 2005 e 2006, apenas 40 alunos frequentavam
regularmente a escola. As crianças tinham rendimento escolar muito precário e baixa
competência linguística para leitura e escrita. As avaliações mostravam que as habilidades de
matemática também eram muito pobres, difundindo o mito de que os ciganos eram
desinteressados e não gostavam de estudar.
61
foi que as taxas de evasão foram consideravelmente reduzidas: enquanto que em 2006-07
houve uma taxa de 30% do absentismo, em 2007-08 esta já tinha sido10% e em 2008-09
houve apenas absentismo ocasional.
Esses resultados sugerem a importância de se criar espaços para o diálogo onde
todos possam aprender juntos e se envolver em interações cujo objetivo é alcançar a máxima
qualidade da educação para todos, tanto no que se refere ao instrumental quanto em nível de
convivência respeitosa e valorização das identidades culturais. Esse é, portanto, um exemplo
de atuação educativa de êxito (AEE) baseado no diálogo igualitário e na aprendizagem
dialógica que tem promovido equidade social e acadêmica a diferentes pessoas em contextos
diversos.
Em outro artigo, agora publicado na Revista Criatividad y Sociedad, as autoras
Martín e Jiménez (2013) discutem sobre as Tertúlias Literárias Dialógicas no contexto da
Segóvia, onde se comprova que essas atividades são importantes para o desenvolvimento da
criatividade como competência cognitiva e como competência socioemocional, permitindo o
desenvolvimento global dos participantes.
As Tertúlias foram realizadas em uma escola na zona rural, dentro de uma
província de Segóvia, entre os anos de 2012 e 2013, quando esta se transformou em
Comunidade de Aprendizagem e passou a desenvolver as atuações educativas de êxito com
base nos princípios da aprendizagem dialógica.
Durante a pesquisa, as autoras constataram que as Tertúlias Literárias
Dialógicas permitem a aceleração da aprendizagem da leitura e são uma ferramenta para
melhorar a proficiência na língua, o progresso de habilidades como falar, entender e escrever,
numa situação grupal que permite diferentes trocas. Além disso, comprovou-se que a leitura
de textos clássicos, além de promover o conhecimento de obras fundamentais da literatura,
permitiu aos alunos uma reflexão sobre diferentes aspectos do ser humano a partir de um
modelo de educação literária que possibilitou o gosto pela leitura, a expressão de sentimentos,
argumentos e interpretação compartilhados por meio da igualdade de diálogo que encoraja a
transformação pessoal e social.
O moderador teve um papel fundamental nas Tertúlias de Segóvia. Como nas
primeiras sessões a argumentação era um tanto empobrecida, com discursos que não
63
permitiam grandes debates, o moderador redirecionava os discursos sem impor a sua verdade,
mas cuidando para que todos que quisessem pudessem expor a sua palavra (dando prioridade
aos grupos alvos de exclusão), discutindo sobre o assunto até que se chegasse a um consenso,
mesmo que provisório.
As práticas nesta Tertúlia geraram um blog, criado por uma aluna participante:
http://tertuliasliterariaslapradera.wordpress.com/?s=literarias+la+pradera. Tal ferramenta,
bastante atraente aos estudantes, trouxe os comentários das Tertúlias para o formato digital.
Essa iniciativa foi motivada pelo desejo de que todos que quisessem pudessem saber o que foi
discutido nas Tertúlias e tivessem a oportunidade de também contribuir com suas ideias.
Além disso, essa estratégia incentivou os participantes a quererem ser os responsáveis por
escrever as memórias/atas de cada sessão para posteriormente publicá-las no blog, na
categoria “Crônicas”. O blog ainda permanece ativo e conta com a sessão “Aproximación a
las tertulias literarias dialógicas”, que traz os fundamentos teóricos da Tertúlia Literária
Dialógica.
Com esse trabalho, os alunos sentiam-se protagonistas de suas aprendizagens e
expressavam suas opiniões e conhecimentos de forma bastante criativa. Os resultados foram
avaliados a partir do registro de observações sob diferentes ângulos e pelo depoimento dos
participantes, o qual foi gravado e está disponível no endereço:
http://www.youtube.com/watch?v=oXN5shuVnk8
Nesse vídeo, os alunos falam que as Tertúlias Literárias Dialógicas permitiram
encontrar argumentos para que eles justificassem suas opiniões e lhes deram a oportunidade
para refletir sobre o que liam, tendo mais condições de expressar seus pensamentos e
emoções. Além disso, eles afirmam que os encontros os possibilitaram conhecer obras antes
desconhecidas, permitiram a eles aprender alguns aspectos históricos e literários e, acima de
tudo, foram uma boa oportunidade para que eles se conhecessem uns aos outros em uma
situação de liberdade de expressão e respeito por todas as opiniões.
Já em 2014 foi publicado o artigo “Moroccan mothers’ involvement in
dialogic literary gatherings in Catalan urban primary school: Increasing educative
interactions and improving learning”, dos autores De Botton, Girbés, Ruiz e Tellado, que
analisa um estudo de caso sobre o envolvimento das mães marroquinas na Tertúlia Literária
64
encontros, as mulheres leram livros como Mil e uma noites, peças de Shakespeare e clássicos
espanhóis, como Lorca. Nas palavras de uma mãe, podemos ver como tem sido possível
superar as barreiras impostas pela reprodução das teorias que bloqueiam o acesso a este tipo
de cultura por pessoas de baixo nível socioeconômico:
11
Tradução livre do trecho: “I really encourage other mothers to take part in these circles. I tell them not to
throw away an opportunity. Reading the classics of world literature isn’t difficult. Everybody can read them. The
themes which these books deal with are profound but we connect them with our everyday experience. It’s very
easy: everybody choose a paragraph which they have read at home and says why they have chosen it. Sharing
our paragraphs with each other gets us into a debate. The classic themes of world literature help the whole of
humanity to move forward, whatever our country or religion might be, the themes are common to all” (DE
BOTTON et al, 2014, p. 5).
67
acadêmicas participam das Tertúlias Literárias Dialógicas elas criam novas práticas de leitura,
funções culturais e modelos de interação que influenciam a aprendizagem de seus filhos e,
portanto, seu desempenho acadêmico.
Os autores concluem o texto afirmando que pela primeira vez, naquela escola,
as mães e as crianças tiveram novas expectativas sobre como a escola pode melhorar suas
vidas.
Em mais uma publicação internacional sobre as Tertúlias Literárias Dialógicas,
García-Carrión (2015) traz a narrativa pessoal de um menino de 11 anos de idade, participante
das atividades de Tertúlia em uma comunidade rural na Inglaterra. O artigo intitula-se “What
the Dialogic Literary Gatherings did for me: the personal narrative of an 11-year-old boy in
a Rural Community in England”. Segundo a pesquisadora, as narrativas organizam a estrutura
da experiência humana e permitem a explicação dos momentos-chave na vida do indivíduo.
No caso, a Tertúlia Literária Dialógica expandiu a percepção de mundo de Connor, um garoto
de 11 anos de idade, residente em uma comunidade rural e o ajudou a ter sucesso em um
momento crítico de transição entre a escola primária e a secundária. García-Carrión utilizou a
metodologia comunicativo-crítica para examinar a construção dialógica da experiência de
vida de Connor e relatou a jornada transformadora desse menino durante sua participação nas
atividades.
As Tertúlias Literárias Dialógicas começaram a acontecer uma vez por semana
na escola onde Connor estudava. No fim de cada sessão, a classe acordava o número de
páginas a ser lido durante a semana e cada aluno se comprometia a selecionar um parágrafo
relevante a ser compartilhado com o grupo. Durante as sessões, todos os participantes
respeitavam sua vez de falar. Os estudantes levantavam suas mãos e partilhavam os seus
parágrafos e impressões de leitura. O diálogo permanecia aberto para que outros estudantes
pudessem fazer seus comentários e observações. Connor era bastante ativo nessas interações
dialógicas e, após cada sessão, contava à pesquisadora sobre como se sentia nas Tertúlias e
como essas atividades criavam novas possibilidades educacionais e apresentavam-lhe outros
mundos possíveis.
Connor desenvolveu formas eficazes para canalizar o conhecimento produzido
nas Tertúlias dentro de outras matérias curriculares. Além disso, antes das Tertúlias ele se
68
achava fraco nas atividades de leitura e agora já se sentia bastante animado, tanto em relação
ao ler quanto ao escrever, como observamos em suas palavras:
É uma espécie de um esquema, então você pode. . . você tem essas ideias em
sua cabeça quando você está escrevendo, então, em seguida, você pode
apenas repensar o que estava no livro que você realmente gostou e, em
seguida, [usá-lo em sua escrita]. . . é muito bom na verdade falar sobre um
único livro junto com uma classe inteira, e nós podemos compartilhar
qualquer ideia, e ela pode nos dar outras ideias. (GARCIA-CARRIÓN,
2015, p. 4) 12.
Connor obteve também uma compreensão mais profunda acerca da mente das
outras pessoas: “Outra coisa que a Tertúlia Literária Dialógica fez foi me fazer perceber que
mesmo que algumas pessoas pudessem não saber certas coisas, elas podem conhecer muitas
outras coisas além do que apenas aquelas que eu acho que elas sabem”. (GARCIA-CARRIÓN,
2015, p. 4)13, o que mostra que Connor passou a adquirir a leitura da palavra e do mundo, nos
termos de Paulo Freire. Ele ainda compartilhou conhecimentos e questões sobre o livro com
sua mãe, transformando seus diálogos em casa também.
Em 2014, quando Connor já estava na universidade – Faculty of Education at
the University of Cambridge – ele proferiu um discurso em que relatou as experiências tidas
com a Tertúlia Literária Dialógica quando era menino, relatando não apenas suas vivências de
forma particular, mas trazendo as vozes de seus colegas e argumentando a favor da postura
dialógica e da importância das redes de solidariedade.
A possibilidade dada aos participantes de expressar suas próprias ideias,
compartilhar opiniões e emoções também foi registrada pela pesquisadora que demonstrou,
via entrevista com Connor, como a Tertúlia Literária Dialógica contribuiu para reforçar o
12
Tradução livre do trecho: “It’s kind of a scheme, so you can . . . you have those ideas in your head when you
are writing, so then, you can just think back to what was in the book that you really liked and then [use it in your
writing] . . . it’s just nice to actually talk about a single book as an entire class, and we can just share any idea,
and it can give us other ideas”. (GARCIA-CARRIÓN, 2015, p. 4).
13
Tradução livre do trecho: “Another thing that the DLGs did was it made me realize that even though some
people might not know other things, they can know many other things than just what I think they know”.
(GARCIA-CARRIÓN, 2015, p. 4).
69
clima de união entre os estudantes, promovendo a amizade entre eles. São palavras de
Connor:
Algumas das pessoas que nunca seriam amigas começaram a falar umas com
as outras nas TLD, começaram a partilhar as suas ideias e chegavam à
mesma conclusão e, em seguida, depois da escola ou na hora do almoço, elas
geralmente saíam e conversavam e, então, se tornavam mais sociáveis umas
com as outras. (GARCIA-CARRIÓN, 2015, p. 5).14
14
Tradução livre do trecho: “Some of the people I would never be friends with, they started to talk to each other
in the DLGs, they started to share their ideas, and they came to the same conclusion, and then, after school or at
break or at lunch, they usually just hung out and talked about it, and then, they were a lot more social to each
other”. (GARCIA-CARRIÓN, 2015, p. 5).
70
15
Para conferir as pesquisas na íntegra:
CREA. Habilidades comunicativas. Barcelona, DGICYT, (1998) (Relatório de pesquisa).
CREA. The creation of new occupational patterns for cultural minorities: the Gypsy case – Workaló. Final
report, 2004.
CREA. FINAL INCLUD-ED REPORT. Strategies for Inclusion and social cohesion in Europe from
education. 2012a.
CREA. REPORT 9: Contributions of local communities to social cohesion. In: INCLUD-ED REPORT.
Strategies for Inclusion and social cohesion in Europe from education. 2012b.
73
conhecimento não podem ser feitos individualmente, mas devem acontecer de forma coletiva
e dialógica dentro das Comunidades de Aprendizagem. Seguindo essa linha de pensamento, é
fundamental que a comunicação seja parte dos estágios iniciais do processo de leitura em
língua estrangeira. Além disso, as habilidades de comunicação são aquelas que permitem que
os parceiros possam resolver muitos problemas e situações que não poderiam ser resolvidos
individualmente.
Apesar de não se estender muito na discussão das Tertúlias Literárias
Dialógicas, o artigo afirma que as técnicas de leitura coletiva, desde que aplicadas
adequadamente, permitem que o prazer pelo diálogo, o debate argumentativo e o intercâmbio
social gerem gosto pela leitura e pela reflexão profunda e o respeito pelas distintas
sensibilidades leitoras, favorecendo a apreciação pela literatura universal independente da
língua e da cultura.
Como se viu na discussão das publicações dos últimos três anos, a Tertúlia
Literária Dialógica já alcançou reconhecimento internacional, estando entre as atuações
educativas de êxito que permitem melhora efetiva na aprendizagem, favorecendo também a
reflexão e formação humana em profundidade, gerando transformação e mudança de
comportamento pessoal e nas relações familiares. As Tertúlias Literárias Dialógicas não
potencializam apenas os hábitos de leitura, mas incrementam o vocabulário, melhoram a
expressão oral e escrita, ampliam a compreensão leitora e a capacidade de argumentação,
além de serem uma forma prazerosa de refletir criticamente sobre a obra literária e sobre a
vida em momento de interação dialógica e séria elaboração de conhecimento instrumental,
impactando diretamente na superação das desigualdades sociais.
75
___________________________________________
Mikhail Bakhtin
76
formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 2010, p. 128). O
que significa dizer que toda enunciação faz parte de um processo ininterrupto de comunicação
e que, além daquele que enuncia e do enunciatário, há enunciados que o antecedem e outros
que o sucederão, formando uma grande cadeia dialógica.
Com isso, a concepção de leitura renova-se. Ler um texto literário passa a ser
percorrer um fascinante labirinto. E não estamos falando de uma estrutura que almeja
desorientar aqueles que se propõem a percorrer seus caminhos, pelo contrário, trata-se de uma
construção que desafia a capacidade de interpretação dos leitores, que os colocam diante de
diversos trajetos pelos quais podem trilhar no intuito de atribuir sentidos a determinado texto.
Assim como Teseu, que teve de escolher, dentre os vários caminhos, aqueles que o levariam
até o Minotauro, os leitores deparam-se com a escolha das muitas maneiras de se ler uma
obra, e é esse o principal desafio a que os praticantes da leitura são levados a enfrentar quando
optam por percorrer os labirintos do texto literário.
O leitor ocupa uma posição ativa: é o responsável pela escolha do trajeto no
labirinto, sem que se rompam totalmente os “contratos” estabelecidos pelo autor no momento
da escrita, ou seja, sem desconsiderar também as escolhas de sentidos do próprio autor. Essa
importância do leitor advém de mudanças nas concepções acerca da produção e recepção do
texto que ocorreram nos estudos literários; não se tem mais a valorização apenas do autor
como o único produtor de sentido de uma obra, como queria a estética romântica, nem há uma
centralização exacerbada no texto, conforme propunha a estética formalista. O sentido de uma
obra de ficção manifesta-se por meio de uma construção dialógica, pela interação entre
produtor e receptor, interação esta que compõe o ato de enunciação, e pela observação dos
sinais, das pistas deixadas pelo próprio texto (daí a importância de uma técnica de construção
textual) para que se possa dar-lhe diferentes significados.
Deixa de prevalecer a concepção de leitura como um sistema fechado de
decodificação de palavras e frases e passa-se a interessar as inúmeras leituras que decorrem de
um mesmo texto, o desfecho inconcluso, o reler de modo diferente mesmo que leitor e texto
sejam os mesmos. A obra torna-se plural e revela-se, a partir das concepções de mundo do
leitor, sua bagagem literária, suas experiências de vida passadas ou presentes no momento da
leitura, uma diversidade de interpretações a cada nova leitura. Por isso, o leitor torna-se
79
sujeito do processo criativo e interage com o autor, com outros textos, com outros discursos e
com a sua própria leitura anterior.
Da vertente estruturalista passa-se à vertente dialógica e, junto dela, surgem
novas concepções sobre autoria, os paradigmas para definir o bom leitor deixam de ser
pautados apenas na capacidade de transpor para a oralidade, sem hesitar ou vacilar, o material
escrito e uma nova visão de sujeito configura-se a partir da própria linguagem, um indivíduo
que se torna mais atuante na sociedade quanto mais dominar as formas cultas da língua,
quanto melhor compreender o que lê e quanto mais for capaz de interpretar criticamente o
mundo que o cerca. Nesse ponto, surgem também as teorias que opõe alfabetização e
letramento16, sendo a primeira, nos últimos anos, voltada para a decodificação, para a
compreensão silábica e de palavras e de frases isoladas, enquanto a segunda dirige-se aos usos
da língua e aos contextos discursivos em que ela é empregada.
Um dos maiores expoentes da linguística do diálogo é Mikhail Bakhtin,
filósofo que enxergou a linguagem como um constante processo de interação. Para ele, a
língua deve ser conhecida e estudada por meio de enunciados concretos presentes na
comunicação, ou seja, a língua existe em função do uso, estando neste ponto a grande virada
da importância do sujeito, que passa de passivo e mero decodificador para agente das relações
sociais e da composição de discursos, valendo-se de enunciados anteriores para formular suas
falas e redigir novos textos.
Nessa perspectiva, a linguagem instaura-se como um processo contínuo. Não
existe uma língua acabada da qual um sujeito se apropria para constituir um discurso também
acabado. Trata-se de um fenômeno vivo, dinâmico, uma vez que os recursos linguísticos são
flexíveis, tomam formas distintas em cada enunciado. Sobre essa mobilidade, Geraldi (2002,
p. 3-4) descreve o ato de ler “como uma oferta de contrapalavras do leitor que, acompanhando
os traços deixados no texto pelo autor, faz estes traços renascerem pelas significações que o
encontro das palavras produz”. A palavra lida é, nessa perspectiva, o disparador para muitas
16
Achamos desnecessário arrolar as diferenças entre alfabetização e letramento devido aos inúmeros estudos
sobre o assunto e por não ser este o foco deste estudo. Deixamos indicado o nome de Angela B. Kleiman e
Magda Soares como referência para o aprofundamento na questão. Ressaltamos apenas que, para Paulo Freire, o
conceito de alfabetização já pressupõe a leitura de mundo e da leitura de palavra, sendo que o autor não coloca
os termos de forma dicotomizada (ver FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo e leitura da
palavra. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006).
80
outras palavras do leitor, ou seja, o sentido do texto não se dá apenas pelo reconhecimento da
palavra escrita, mas do encontro desta com diversas outras contrapalavras, de modo que seja
impossível determinar quais são as contrapalavras que emergem da leitura, uma vez que cada
leitor é único, possui uma história particular e lê em determinado momento de sua existência.
Em síntese, é impossível determinar quantos e quais sentidos uma leitura produz.
Um novo paradigma sobre leitura e linguagem está, portanto, constituído. A
principal obra de Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem, escrita nos anos 20 do
século passado, sistematiza com consistência esse paradigma e ainda apresenta notável
atualidade, fundamentando a teoria semiótica e textual mais utilizada nos dias de hoje, além
de ter aberto espaço para profundas discussões sobre ideologia, sujeito e signo e de ter
introduzido o materialismo dialético no campo linguístico.
Para uma compreensão mais ampla sobre o novo paradigma de leitura pautado
na dialogicidade temos de abordar a questão da autoria, a qual é discutida na academia em
diferentes vertentes epistemológicas. Para Bakhtin (1992), o autor é aquele que participa da
obra literária e nela enxerga para além daquilo que cada personagem vê e conhece. O autor é
parte integrante do objeto estético; ele sabe o que é inacessível às personagens, pois, devido à
sua posição “exotópica”, isto é, por estar fora da obra, possui um excedente de visão. O
conceito de “exotopia”, muito caro à obra de Bakhtin, exprime seu pensamento de que há uma
distância entre o vivido pelo herói e o criado pelo autor.
Esse distanciamento permite que o autor tenha uma percepção do todo e sua
posição exotópica é fundamental para que ele dê o acabamento à obra artística. Sendo o autor
um componente da obra, e não simplesmente o escritor, ele não é uma instância narrativa
abstrata, mas uma consciência que engloba a consciência do herói e lhe dá, por ora, um
acabamento. A atividade estética necessita da alteridade, nisso está um dos princípios
bakhtinianos: o fato de que apenas o Outro pode nos dar acabamento, assim como só nós
podemos dar acabamento ao Outro, ou seja, aquele que completa o que falta em nosso próprio
81
Mas como se define o locutor? Com efeito, se a palavra não lhe pertence
totalmente, uma vez que ela se situa numa espécie de zona fronteiriça, cabe-
lhe contudo uma boa metade. Em determinado momento, o locutor é
incontestavelmente o único dono da palavra, que é então sua propriedade
inalienável. É o instante do ato fisiológico de materialização da palavra. Mas
a categoria da propriedade não é aplicável a esse ato, na medida em que ele é
puramente fisiológico. (BAKHTIN, 2010, p. 117).
17
Utiliza-se os termos materialismo histórico, materialismo histórico-dialético ou materialismo, indistintamente,
no presente texto.
84
terminar. Durante sua vida, foi publicado somente o primeiro volume; os outros dois foram
compilados e revisados por Engels com base nos manuscritos deixados.
Os últimos anos de vida de Marx foram ocupados por diversas enfermidades,
levando-o a falecer aos 65 anos, no dia 14 de março de 1883.
idealismo e, por conseguinte, não admitindo que as concepções ideais e subjetivas sejam
compreendidas como elementos organizadores da totalidade social.
Segundo Lénine (2013), Marx enriqueceu o materialismo do século XVIII com
as aquisições da filosofia alemã, especialmente a partir de Hegel, sendo que a principal
aquisição foi a dialética, referente à doutrina da relatividade do conhecimento humano. Marx
aprofundou a questão do materialismo filosófico, estendendo-o do conhecimento da natureza
até o conhecimento da sociedade humana:
E do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa
de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela
sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência
pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção (MARX, 2008, p. 48).
É importante ressaltar que Marx utilizou o método dialético, mas deu novo
enfoque à lógica hegeliana, desconstruindo qualquer sistemática idealista. Pelo contrário, a
dialética marxista está pautada na realidade.
A teoria marxista procura explicar a evolução das relações econômicas nas
sociedades humanas ao longo do processo histórico. Haveria, segundo a concepção marxista,
uma permanente dialética das forças entre poderosos e fracos, opressores e oprimidos, de
modo que a história da humanidade seria constituída por uma permanente luta de classes. Para
88
por fim a tal desigualdade, a proposta do filósofo é a inversão da pirâmide social, conferindo
poder à maioria, ou seja, aos proletários, única forma pela qual a sociedade capitalista poderia
ser desconstruída em favor de uma nova sociedade de cunho popular, a socialista.
Para Karl Marx, paira sobre a classe trabalhadora uma ideologia, apregoada
pela classe dominante, que impede o rompimento da sociedade de classes. Para ele, em todas
as sociedades em que a propriedade é privada existem lutas de classes (senhores x escravos,
nobres feudais x servos, burgueses x proletariados), de modo que seria necessária uma luta
ideológica e política para tomada do poder da classe dominante.
Marx tentou demonstrar que no capitalismo sempre haveria injustiça social e
que o operário produz mais para o seu patrão do que para si. É por isso que considera o
capitalismo como um regime econômico de exploração, sendo a mais-valia a lei fundamental
desse sistema.
A venda da força de trabalho e a separação entre trabalhador e produto do seu
trabalho constitui o que Marx denomina de processo de alienação. Para ele, todo trabalho é
alienado, na medida em que se manifesta como produção de um objeto que é alheio ao sujeito
criador. Segundo o raciocínio de Marx, ao criar algo fora de si, o operário se nega no objeto
criado, por isso, a relação estabelecida implica em uma completa separação entre o homem e
a natureza.
Por todas as contradições do capitalismo, Marx, e também Engels, defendiam
que a ruptura com o sistema capitalista seria alcançada pelo processo revolucionário no qual
os trabalhadores tomariam o poder frente ao Estado. Esse novo regime por eles estabelecido
assumiria os meios de produção e socializaria igualmente as riquezas, visando à constituição
de uma sociedade igualitária.
Leite (2011), levando em consideração que a trajetória de vida desse pensador reflete muitas
das suas escolhas teórico-filosóficas. Assim, faz-se necessário saber que Mikhail
Mikhailovich Bakhtin foi um filósofo russo que nasceu em 1895 em Orel, Moscou, que
morreu em 1975, na capital da Rússia, e que pertencia a uma família nobre que valorizava
muito a educação, sendo em Odessa, cidade para onde sua família mudara, que ele iniciou sua
vida acadêmica, em 1913. Foi, contudo, em Petrogrado que Bakhtin firmou-se nos estudos
clássicos na Faculdade Filológico-Histórica. Nesse período, começou a se envolver em
círculos intelectuais, os quais seriam determinantes para sua vida e para o desenvolvimento de
sua filosofia.
As principais influências que Bakhtin sofreu naquela ocasião foram a do
pensamento de Kiekgaard e de um professor, Fadei F. Zielinsk, que era um dos principais
expoentes da onda do “Helenismo do Terceiro Renascimento”, na qual se pretendia um
retorno radical aos estudos helenísticos, mas também se via no helenismo uma filosofia de
vida contemporânea, diferente da apregoada pelo catolicismo.
Ao formar-se, Bakhtin mudou-se para a pequena cidade de Nevel, onde foi
professor em uma escola secundária e se envolveu com um círculo de intelectuais de alto
nível que tinha como principais objetivos o projeto de “ilustração das massas” e a criação de
uma Escola de Filosofia de Nevel. Teoricamente, os projetos estavam voltados para a
constituição de uma teoria marxista que desse conta de suas concepções filosóficas. Em 1921
o círculo de Nevel fechou, mas outros foram criados em diferentes cidades, onde novos
membros, que participavam em áreas distintas (engenharia, música, filosofia, etc.), foram se
agrupando. A existência desses círculos de acadêmicos que discutiam múltiplas questões
fundamentava o principal conceito de Bakhtin, o dialogismo, uma vez que neles ninguém era
proprietário de nenhuma das ideias que circulavam, todas eram frutos de diálogo, portanto
tinham uma gênese comunitária. Essa configuração levava também a uma intrigante questão
em torno da autoria das obras produzidas pelo círculo, muitas vezes difícil de ser definida
com precisão, sendo mais importante do que o nome da pessoa que as escreveu as ideias
difundidas.
As reuniões cessaram com o crescimento da repressão por parte do governo
russo e Bakhtin foi condenado ao exílio por envolvimento em grupos de discussão suspeitos,
90
como era o caso de três grupos de discussão de filosofia da religião que ele possivelmente se
envolvera. Apesar da condenação de Bakhtin estar relacionada com questões religiosas, os
estudiosos do autor argumentam que ele era adepto da “intelligentsia”, filosofia que se
baseava em relacionar a teologia com diferentes disciplinas, sobretudo, as ciências exatas, o
que prova que os movimentos nos quais Bakhtin estava envolvido não viam oposição entre
religião e ciência, ou religião e revolução.
Bakhtin passou quinze anos no exílio, de 1930 a 1945 e duas de suas obras
foram produzidas nesse período: Cultura popular na idade Média e no Renascimento no
contexto de François Rabelais e alguns textos sobre teoria do romance que seriam reunidos
e editados sobre o título Questões de Literatura e de Estética.
Com o fim do exílio, Bakhtin partiu para Saransk onde se tornou chefe do
Departamento de Literatura Geral. Após sua aposentadoria ele se dedicou a escrever, porém
nenhum de seus textos desse período chegou ao término. Alcançou popularidade dentre os
alunos e seu livro Problemas da poética de Dostoievski atraiu discípulos, mesmo quando
sua atividade acadêmica havia cessado oficialmente. Seus seguidores foram os responsáveis
por tornar Bakhtin conhecido internacionalmente.
Bakhtin terminou seus dias lutando contra graves problemas de saúde e morreu
em 1975, em Moscou.
nas interações sociais. Na esteira de Marx, a interação se dá entre indivíduos reais, sob a
dinâmica do materialismo histórico.
É importante destacar que a classe dominante confere ao signo ideológico um
caráter intangível e acima das diferenças de classe, visando abafar outras visões de mundo e
tornar o signo monovalente. Em outras palavras, a classe dominante apresenta o seu próprio
interesse como interesse de todos os membros da sociedade, conferindo universalidade às
suas ideias.
O conceito de signo ideológico e o entendimento de que a interação verbal
constitui a realidade fundamental da língua são as bases da teoria sobre a filosofia da
linguagem de cunho marxista de Bakhtin. Trata-se da interação de indivíduos históricos,
socialmente organizados em condições concretas e materiais de existência e que vivem
imersos em uma estrutura econômica que define suas ações e falas no mundo, entendimento
este em consonância com a compreensão epistemológica de Marx sobre o ser humano e sobre
a realidade.
que o segundo foi influenciado pelo primeiro e traz para suas formulações alguns aspectos
centrais da vertente marxista de pensamento.
Nesse sentido, objetivamos delinear os traços epistemológicos que competem a
cada um dos autores, mostrando os elementos sob os quais se aproximam. Com esse intuito,
procuramos demonstrar que para Marx o mundo se move pelas contradições, especialmente a
diferença de classes estabelecida entre homens reais em condições históricas reais. Por sua
vez, Bakhtin também parte da compreensão de que a linguagem é originária da interação entre
homens igualmente reais, em condições históricas reais, sendo essa a base da crítica que faz
contra as duas correntes do pensamento linguístico: o subjetivismo idealista e o objetivismo
abstrato.
Assim, mesmo abordando apenas alguns poucos aspectos da filosofia de Marx
e de Mikhail Bakhtin, buscamos demonstrar o quão pertinente é instaurar um diálogo entre os
dois teóricos. Não se atentar ao pensamento de Marx quando se estuda Bakhtin empobrece as
formulações do pensador russo e perde-se de vista a base sobre a qual este último avançou em
suas teorias sobre a linguagem.
linguísticos são condicionados por uma organização social. Assim, o reflexo disso pode
expressar, para um educando que não domina o mesmo modelo de linguagem do seu
educador, uma sensação de rejeição quanto a sua própria forma de pensar e ser no mundo.
A teoria bakhtiniana parte do campo da filosofia da linguagem e aponta para o
fato de as pessoas falarem a partir de concepções de mundo distintas, o que reflete na própria
linguagem que elas utilizam, gerando tantos casos de ambiguidade linguística. Assim, a
dialogicidade revela tanto o ato de diálogo em si quanto as interfaces linguísticas expressas
por cada um. Nesses termos, no processo de interação verbal, a palavra extrapola o sentido
único do dicionário e reflete uma condição social, uma visão de mundo, uma ideologia, um
contexto social. Isso porque o diálogo está presente em todas as instâncias da vida humana e
em quaisquer relações interpessoais. Sobre o caráter ideológico da palavra, lemos:
O sujeito se constitui, portanto, pela alteridade, sendo que o próprio signo, por
sua natureza social, inexiste sem o (a) Outro (a); o homem e a mulher se conscientizam de sua
individualidade, seus anseios, seus direitos e suas necessidades na relação com as diferentes
subjetividades. Ainda, segundo Goulart (2009b), nos entranhamentos sociais, os sujeitos
podem, no decorrer de suas vidas, compor e recompor visões de mundo, sendo que nesse
percurso dão-se apagamentos e criações de sentidos. Nos espaços educativos, tais concepções
de mundo se embatem e conflitam com aspectos discursivos produzidos pelo homem e pela
mulher no que diz respeito à própria produção do conhecimento. A realidade é mostrada por
meio de esferas sociais do saber, como a arte, a filosofia, a história, as ciências, as quais se
estruturam em diferentes temas, categorias e conceitos e, ideologicamente, distingue-se quem
está nesses espaços para ensinar tais conteúdos e quem está para aprendê-los.
Ainda temos como um ponto agravante: a ideologia produzida por homens e
mulheres de que o fracasso dos excluídos e o fracasso escolar são um problema individual.
Dilui-se o conceito de coletividade e se esquece de que as aprendizagens não se dão
unicamente pelo educando, mas por sua relação de diálogo com o educador, com o objeto de
conhecimento, com suas vivências e experiências. Atribuir a culpa pelo fracasso da
aprendizagem a um único sujeito é desconsiderar a própria dialética da realidade.
Quantas vezes modelos únicos de aprender e conhecer se impõem,
homogeneizando os sujeitos e extraindo-lhes a própria historicidade do ser, dificultando
também a abertura dos indivíduos às elaborações de novos saberes e o compartilhamento de
suas aprendizagens numa dimensão de igualdade com relação às pessoas que têm o saber
reconhecido socialmente. A linguagem, desse ponto de vista, é tratada como se cada palavra
tivesse um único sentido e os conhecimentos escolares delineiam-se como verdades absolutas.
Entretanto, enquanto o espaço educativo muitas vezes descarta os saberes cuja
fonte está nas experiências diárias, Bakhtin (2010) atribui grande importância para a vida
cotidiana. Para ele, todo gênero do discurso nasce no cotidiano e nele se renova sempre, uma
vez que os próprios gêneros se constituem nas diferentes esferas da atividade humana. A
100
Não se admire de me ver sempre a vaguear com os olhos. Com efeito, esta é
a minha maneira de ler, e só assim a leitura se torna frutuosa para mim. Se
um livro me interessa verdadeiramente, não consigo segui-lo para além de
algumas linhas sem que a minha mente, captado um pensamento que o texto
lhe propõe, ou um sentimento, ou uma interrogação, ou uma imagem, não
saia pela tangente e salte de pensamento em pensamento, de imagem em
imagem, num itinerário de raciocínios e fantasias que sente necessidade de
102
De fato, este vaguear de olhos não reflete uma desatenção do leitor, mas um
momento em que, no encontro com o texto, o leitor cria sentidos para a realidade, os quais
extrapolam até mesmo a textualidade, isto é, o sentido expresso pelo seu autor. Dessa forma,
o sujeito que lê participa de maneira efetiva na construção de sentidos de um texto enquanto
injeta nele suas interpretações a partir de seu entendimento pessoal, de seu repertório de
leituras anteriores, sua experiência de vida, sua bagagem cultural e seu conhecimento de
mundo.
Além disso, pela leitura desvelam-se as diferentes vozes que compõem um
objeto literário, uma vez que “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto
é absorção e transformação de textos” (KRISTEVA, 1969 apud PERRONE-MOISÉS, 1990,
p.94). A esse processo em que um texto encontra-se com o outro Kristeva (1969) denominou,
a partir dos estudos de Bakhtin sobre dialogismo, de intertextualidade. Trata-se de um recurso
altamente produtivo de diálogo entre textos que faz com que as obras não apenas
sobreponham vários sentidos, mas, principalmente, modifique-os criticamente, de modo que o
novo texto não tenha necessidade de possuir um vínculo estreito com os sentidos primeiros
estabelecidos no texto do qual ele se apropriou.
Na medida em que uma obra literária se inscreve na relação com os textos que
a rodeiam e, ainda, enquanto ela se torna o próprio recipiente que acolhe as diferentes vozes
que polemizam entre si, a obra literária deixa de ser uma construção acabada e possibilita o
livre trânsito de interpretações. Assim, o livro não deve ser considerado um objeto artístico
imóvel; ele desfruta permanentemente de mudanças, de transformações, as quais são sentidas
a cada nova leitura.
O texto literário assume, pois, como postura básica, a absorção de discursos, e
essa característica fundamentada tão claramente nas teorias da intertextualidade é de grande
relevância para os processos educativos que se pautam no diálogo e na abertura para as
experiências alheias. Nesta pesquisa, consideramos o trabalho com a leitura dialógica,
materializada nas atividades de Tertúlias Literária Dialógica que, além de serem ricas em
103
intertextualidades, evidenciam como o encontro entre a cultura escrita e a cultura oral pode
levar os educandos a interpretar as obras, eles mesmos e o mundo que os cerca.
Ao descortinar os diferentes sentidos de um livro de literatura clássica e, ao
dividir com os demais participantes das Tertúlias – educandos e educadores – suas sensações,
interpretações e emoções suscitadas pela leitura, os estudantes compartilham seus
conhecimentos de vida e de cultura, mesmo que estes saberes emanem de suas tradições orais
e de fontes não científicas. Nesse contexto, a aprendizagem torna-se mais rica, todos se
instruem uns com os outros e fortalecem-se as identidades dos indivíduos que, se antes eram
sujeitos de exclusão, agora são coautores na criação de sentidos para o livro e para suas
próprias vidas.
As práticas de Tertúlia Literária Dialógica explicitam, portanto, um processo
de ensino-aprendizagem mútuo em que todos (as) têm igualmente o poder da palavra e, por
meio dela, colaboram na circulação de conhecimentos. Isso só é possível porque cada um, em
diálogo, se assume como sujeito em transformação, capaz de ensinar, mediar, dividir,
conhecer, aprender. Quanto a isso, nas teorias de Bakhtin (1981a) já encontramos um
caminho para essa participação na aprendizagem alheia quando o filósofo afirma que o
homem e a mulher, em sendo seres sociais, ideológicos e coletivos, mostram-se também seres
inacabados, em constante formação, devendo assumir um posicionamento humilde no sentido
de reconhecer a necessidade do Outro para se descobrir enquanto indivíduo.
A ideia de ser inacabado também faz parte das formulações de Freire (2003),
sobre quem discutimos, mesmo que de forma lacunar, mas não deixando de referendar a sua
importância para os estudos acerca da dialogicidade. Ao afirmar, em sua Pedagogia da
autonomia (2003, p. 50), que “ensinar exige consciência do inacabamento” Freire considera a
inconclusão do indivíduo como parte da experiência vital do ser humano, sendo que a
consciência disso conduz o homem e a mulher à intervenção no mundo, à luta, à tomada de
decisões. É por meio da aceitação da incompletude do ser que temos a certeza de que a
sociedade também não é predeterminada e que podemos construir uma História com mais
possibilidades e menos determinismos.
Além da questão do inacabamento, a produção do significado situa-se, para
Bakhtin, no social e não no indivíduo. Isso significa que o dito por cada sujeito responde a sua
104
conectado a uma realidade social e as ideologias, reveladas pelas palavras (signos ideológicos
por excelência e instrumento da consciência) se renovam e se modificam a cada situação de
interação social. Sobre a consciência, na filosofia bakhtiniana ela se divide em individual e
social, sendo que o discurso interior, ou seja, o sentido que a palavra tem para determinada
pessoa, parte da consciência individual que se constrói pela consciência social (diálogo), e a
consciência individual está repleta de conteúdo ideológico, de modo que não existe
consciência fora da ideologia.
Assim, as palavras são encobertas pelo tecido ideológico e servem a todas as
relações e classes sociais. O signo é plurivalente, dinâmico e capaz de transformar as relações
sociais. As próprias tensões entre classes fazem parte do signo e este comporta toda a dialética
humana, por isso, várias vozes expõem-se simultaneamente na ordem discursiva. Em síntese,
a palavra dentro do enunciado é afetada pela condição histórica e está em consonância com o
contexto social.
distintas expressões verbais que se embatem entre si, exibindo um pensamento complexo e
conflituoso que toma conta das personagens.
A palavra “polifonia” origina-se no campo da música e se refere ao efeito
obtido a partir da sobreposição de melodias independentes, mas harmonicamente
relacionadas. Bakhtin vale-se desse fenômeno ao revelar que o discurso é perpassado por
outros discursos, compondo, de forma semelhante, as várias linhas melódicas. A tese
defendida por Bakhtin, a qual é apresentada no primeiro capítulo de seu livro e segue-se
desenvolvendo durante todo o texto é a de que
pelas palavras ecoam a consciência de outrem e é assim que a alteridade se faz constituinte do
discurso.
Os interlocutores por sua vez, marcada sua posição sociocultural, fazem de
seus discursos/interpretações um emaranhado de vozes, a ponto de a orientação dialógica ser
de fato um fenômeno próprio a todo discurso vivo. Isso acontece porque os discursos sempre
se encontram com o discurso de outrem, de modo que as diferentes vozes sociais falam,
interpretam e constroem leituras ao estarem situadas no discurso da vida. Há que se destacar
que, em meio a esses enunciados cotidianos e às práticas sociais, o discurso artístico incorpora
o dialogismo e lhe confere um acabamento estético.
O diálogo bakhtiniano, porém, não é apenas uma forma composicional na qual
ocorre uma alternância de falas marcadas por dois pontos e travessão. A dialogia, para o
filósofo, representa os diferentes posicionamentos que envolvem os indivíduos e se
configuram no signo linguístico. O discurso veicula, portanto, valores que estão
fundamentadas nas posições sociais que os sujeitos ocupam no contexto da interação verbal.
Da mesma forma, na ampla concepção bakhtiniana sobre dialogismo, podemos
compreender a palavra “diálogo” não apenas como a comunicação em voz alta estabelecida
entre pessoas colocadas frente a frente, mas como todo e qualquer tipo de comunicação
verbal. A existência do diálogo penetra a linguagem e todas as relações humanas de forma
geral. Sob a perspectiva dessa onipresença da orientação dialógica, consideramos que, para
além das particularidades sintáticas léxico-semânticas, as relações dialógicas atingem o nível
extralinguístico se pensarmos que qualquer que seja o campo de emprego da linguagem
(científico, cotidiano, literário, político, propagandístico, etc.), ele está repleto de relações
dialógicas que se corporificam no discurso vivo.
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso.
Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o
objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode
deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que
chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este
Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio
110
para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa
medida e convencionalmente é que pode dela se afastar. (BAKHTIN, 1998, p. 88).
O locutor não é um Adão mítico que pela primeira vez nomeia as coisas; ele
encontra o seu objeto de discurso já atravessado por opiniões, crenças, julgamentos,
avaliações, perspectivas e visões de mundo que repercutem na enunciação e estão imersos
tanto nos discursos da vida cotidiana quanto no campo da comunicação cultural. Sujeito e
linguagem estão, portanto, interligados, se implicam mutuamente e estabelecem estreita
relação de dependência.
Lembramos que no contato com outros interlocutores, o indivíduo se constitui
enquanto sujeito ideológico e reforçamos a ideia de que a relação dialógica estabelecida entre
o “Eu” e o “Outro” nem sempre é pautada por concordâncias, como explica Geraldi (2010),
até porque vivemos em uma sociedade de classes e com grupos que possuem interesses muito
distintos. Sobre o dialogismo como essencial na constituição humana, o autor afirma:
com isso, a concepção clássica de sujeito cartesiano uno e constitui-se um sujeito solidário às
vozes, às alteridades.
O princípio dialógico estabelece, portanto, a alteridade como constituinte do
ser humano. Reconhecer a dialogia é compreender que somos diferentes e que a palavra do
Outro nos apresenta o mundo exterior. Conforme constata Bakhtin (1992):
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos
outros. [Elas] introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo,
que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (...) Em todo o enunciado,
contanto que o examinemos com apuro, (...) descobriremos as palavras do
outro ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade.
(BAKHTIN, 1992, p.314-318).
Nesse ponto, uma indagação nos vem à mente: se precisamos do Outro para
conferir sentido à nossa própria existência, como é possível falarmos em exclusão social?
Entendemos que é justamente o “vandalismo” contra a alteridade um dos fatores que gera
tantas desigualdades sociais e aumenta o número de excluídos. Por isso, defendemos um
trabalho sistemático com a dialogia e com a alteridade no sentido de resgatar valores de
solidariedade e de percepção da importância do Outro para uma vida mais igualitária e justa.
Para tanto, apoiamo-nos nesses conceitos definidos por Bakhtin para dar ânimo
aos nossos sonhos de ver uma educação transformadora e que estimula o pensamento crítico
por meio do diálogo em torno das obras clássicas. É atribuindo sentidos a cada nova leitura
que visualizamos uma prática pedagógica mais inclusiva, democrática, para todos e com
todos. Como afirma José Carlos da Siva, 52 anos, porteiro que resgatou um Karl Marx da
lixeira, “depois que você lê Machado nunca mais é humilhado. Machado me mostrou toda a
hipocrisia do mundo. Todos os preconceitos estão na obra dele”18.
Voltemo-nos, pois, a Machado de Assis e a tantos outros escritores clássicos
para compartilharmos palavras e contrapalavras, em um diálogo que nos ajuda a movermo-
nos no mundo com vistas à mobilidade social. Aproveitemos a conquista do domínio da
escrita/leitura para ampliarmos as possibilidades de interação, conferindo às minorias, às
18
A história do lixeiro José com a literatura está registrada em reportagem da Folha de São Paulo (versão
online), do dia 07/11/2014, e é de autoria de Karla Monteiro. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/11/1543921-conheca-historias-que-dao-vida-a-pesquisa sobre-
habitos-culturais-em-sp.shtml
112
periferias, aos excluídos espaço para que possam dizer a “sua” palavra e significar a realidade
circundante.
113
___________________________________________
Bakhtin.
114
19
O CREA avançou muito na compreensão da sua metodologia de trabalho. A cada pesquisa que realiza essa
metodologia é melhor elaborada, de modo que hoje os pesquisadores têm utilizado o termo: “metodologia
comunicativa de investigação” (ver Qualitative Research 2013) para o que antes denominavam de metodologia
comunicativa crítica).
115
20
Para saber mais sobre o paradigma indiciário:
GUINZBURG, C. “Sinais”. In: ___ Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das
Letras, 1989.
_____. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
117
outros indícios e outros sentidos até se chegar a um sentido construído com base em
argumentos coerentes e consistentes, mas sem esgotar os sentidos que são inacabáveis, como
argumenta Bakhtin (1992). A terceira metodologia é a investigação narrativa, que consiste em
extrair “conselhos” de dada experiência narrativa. O investigador que narra intui que há na
experiência investigada uma lição cujo sentido precisa ser aprofundado. Assim, a experiência
nunca é desperdiçada porque serve para ressignificar o passado e trazer lições para o futuro.
Considerando essas possibilidades, Geraldi (2012) constata:
poder baseadas na autoridade da sociedade patriarcal estão dando espaço para as relações
dialógicas onde ou se consensuam as coisas ou há um conflito permanente quando não se
chega a nenhum acordo".
Por isso, no contexto de uma sociedade dialógica, Gómez et al (2006)
evidenciam a necessidade de as investigações se abrirem às metodologias em torno do
diálogo, capazes de responder às demandas da sociedade. Afirmam também que o processo
de investigação pode ser organizado a partir de uma ação comunicativa, o que implica
construir conhecimento a partir da intersubjetividade e da reflexão. Assim, a metodologia
comunicativa de investigação é:
Dessa forma, tanto investigadores quanto sujeitos de pesquisa dizem o que pensam
e chegam a uma compreensão a mais próxima possível da realidade investigada a partir de um
consenso que se baseia em um reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validez. Segundo
Habermas (1987), todos os sujeitos são capazes de linguagem e ação, por isso, todos os
119
envolvidos têm o direito de se posicionar, compreender e agir no mundo, já que somos sujeitos de
transformação. E para que os fenômenos sejam compreendidos de forma mais ampla, é necessário
o contato direto com a realidade investigada, coletar opiniões e escutar as pessoas envolvidas.
A pesquisa deve prever um igual nível epistemológico, ou seja, tanto
pesquisadores quanto sujeitos de pesquisa precisam participar do processo comunicativo da
investigação em plano de igualdade. Assim, o investigador, além de incorporar o
conhecimento da comunidade científica, deve compreender o fenômeno investigado
incorporando os saberes e vivências das pessoas investigadas, de modo que o conhecimento
seja construído pela interação entre ciência e sociedade.
A metodologia comunicativa de investigação admite uma série de formas de
coleta de dados, desde que se tenha como princípio a orientação comunicativa. Em nossa
pesquisa, não adotamos todas as técnicas da metodologia comunicativa de investigação, por
isso, nem todas serão aqui descritas, entretanto, utilizamos três delas que merecem destaque:
I) o relato comunicativo que, de acordo com Gómez et al. (2006), trata-se de um diálogo entre
investigador e pessoa investigada com pretensão de refletir e interpretar aspectos da vida
cotidiana do participante, o que se configurou, na Tese, por meio da entrevista com os sujeitos da
pesquisa sobre momentos marcantes de sua trajetória de vida. II) o grupo de discussão
comunicativo que, de acordo com Gómez et al. (ibid), é uma estratégia que confronta a
subjetividade individual com a grupal, ou seja, constrói-se uma interpretação coletiva entre
investigador e investigado ao redor de um tema de estudo através do diálogo e da interpretação
conjunta.
Para a constituição da redação final desta Tese, os enunciados foram
apresentados a um grupo de estudantes que discutiram e deram a sua contribuição interpretativa
sobre os elementos em estudo. III) a observação comunicativa, uma outra estratégia de coleta
dos enunciados também apontada por Gómez (ibid) que permite ao investigador presenciar
diretamente o fenômeno observado, contando com sua versão e a versão das demais pessoas
investigadas, em que cada uma aborda seus conhecimentos, em plano de igualdade e diálogo. No
caso da presente investigação, a pesquisadora esteve presente nas Tertúlias Literárias Dialógicas
e participou das atividades com os seus conhecimentos sobre os trechos dos textos discutidos,
contando também com o conhecimento dos demais participantes.
120
Nesta perspectiva, não consideramos o Outro como um ente abstrato, por isso,
recusamos o termo objetos de pesquisa e optamos sempre por sujeitos de pesquisa, como
também propõe a metodologia comunicativa de investigação, já que os enxergamos como
pessoas cujas palavras se confrontam com as nossas, nos exigem respostas e nos auxiliam a
dar sentido aos nossos pensamentos. Por outro lado, não argumentamos em favor de nossa
total neutralidade enquanto pesquisadoras porque nos assumimos como sujeitos sociais,
integrados à vida e participantes de interações e experiências que nos movem a cada dia.
Por isso, entendemos que ao termos realizado uma investigação cujo cerne foi o
encontro entre pessoas na busca pela produção de conhecimento não há um modo definido de
conferir sentido à realidade estudada, uma vez que cada leitor deste texto também passa a
dialogar com este material na emissão e construção de outros saberes e sentidos, mas
objetivamos configurar uma forma relativamente estável de pensamento que se solidifica
122
pelos estudos e leituras feitas nesses anos de estudos e pelo diálogo com os participantes da
pesquisa. Esse é o momento ético em que, ao nos retirarmos do campo onde o diálogo se deu,
buscamos a construção de um conhecimento sólido do qual nos responsabilizamos e que
avaliamos poder ser humildemente útil para as transformações que almejamos. Em suma, o
nosso dever nesta pesquisa foi o de perseguirmos uma verdade consensuada, possível de ser
revelada por meio de trabalho acadêmico, com todo o rigor e seriedade que esta tarefa exige.
Já argumentamos que a compreensão que o sujeito tem de si se constitui a
partir do olhar e da palavra do Outro e, por seu turno, cada um de nós revela o seu ponto de
vista segundo o lugar que ocupa na esfera sociocultural. Nesse sentido, é impossível que um
sujeito enxergue esse Outro exatamente como ele próprio se enxergaria, por esse motivo,
nosso olhar de pesquisadoras é uma tentativa de captar a forma como o Outro se vê, o que
fazemos por meio da análise discursiva dos sujeitos participantes e do próprio diálogo com
eles. O conceito de exotopia, o qual já tratamos anteriormente, significa justamente essa
multiplicidade de olhares a partir de um ponto de vista exterior ao do sujeito falante e auxilia
na compreensão de que o que vemos enquanto investigadoras é uma releitura, o mais fiel
possível, do que realmente nosso sujeito de pesquisa vê.
Por fim, como sinaliza Bakhtin (1992), a ação humana deve ser compreendida
como um ato sígnico, de modo que o homem sempre se expressa através de um texto (escrito
ou oral) que, por sua vez, requer uma resposta. Uma vez que todos os acontecimentos da vida
se desenvolvem na fronteira entre duas ou mais consciências que estabelecem um diálogo,
nossa pesquisa orientou-se pelos textos oralizados pelos estudantes (os quais posteriormente
foram transcritos, ou seja, transformados em textos escritos) e pelo diálogo em torno desses
enunciados, por meio do qual buscamos o contexto ideológico que os discursos envolvem.
Fonte: www.ibge.gov.br
23
A Fundação Pró-Memória, criada em 1993, mantém e disponibiliza os documentos dos poderes executivo,
legislativo e judiciário, objetivando também a preservação do patrimônio artístico e arquitetônico do município.
Maiores informações: http://www.promemoria.saocarlos.sp.gov.br
126
Entre os anos de 1831 e 1857 foram formadas as lavouras cafeeiras, sendo que
o café passou a ser a principal atividade econômica da cidade, tornando-se, inclusive, produto
de exportação. A chegada da ferrovia, em 1884, contribuiu para que o produto fosse
facilmente escoado para o porto de Santos, firmando a importância da cidade no cenário
econômico e político. Quem trabalhava nas fazendas cafeeiras eram negros escravizados que
vinham de outras regiões do Brasil, uma vez que o tráfico de escravos vindos da África foi
abolido apenas em 1850.
Nas últimas décadas do século XIX ocorreu o fenômeno social que mais
influência deixou na região central do Estado de São Paulo: a imigração. São Carlos recebeu
imigrantes alemães trazidos pelo Conde do Pinhal em 1876 e, de 1880 a 1904, o município foi
um dos principais polos atrativos de imigrantes do Estado de São Paulo. Esses imigrantes
vinham para trabalhar nas lavouras de café e atuavam também na manufatura e no comércio.
Se nas últimas décadas do século XIX ocorreu o fenômeno da imigração, nas
décadas mais atuais tem ocorrido outro fenômeno social: a migração. Muitas pessoas vêm de
outras regiões do Brasil, especialmente do Nordeste, em busca de melhores condições de vida,
ofertadas pela “cidade da tecnologia”. A grande maioria dessas pessoas vive hoje na periferia
de São Carlos, cuja população é, geralmente, constituída de trabalhadores rurais,
especialmente atuantes na colheita da laranja, na lavoura de cana-de-açúcar e na granja. Foi
em uma comunidade periférica, pertencente aos bairros Cidade Aracy I, II e Antenor Garcia
com tais características que a presente pesquisa se desenvolveu.
As primeiras considerações sobre essa comunidade advêm do próprio olhar da
pesquisadora, isto é, são elocuções de uma pessoa que por 9 anos lecionou e/ou pesquisou
nesta região e que teve a oportunidade de avaliar o que via e o que sentia a partir das andanças
nos bairros e das interações com os seus moradores; pessoas simples, de classe popular, que
vivem em dificuldades financeiras, mas que esbanjam simpatia, ensinamentos diversos e
compartilham o gosto pela vida. São sobreviventes do subemprego, impulsionam a economia
informal e vivem de ajuda de entidades assistencialistas e de voluntários.
A Cidade Aracy, especificamente, é um bairro relativamente novo na cidade de
São Carlos e situa-se no limite entre a cidade e a zona rural. Muitos de seus moradores,
inclusive, abandonaram a vida no campo para viver na cidade e outros ainda continuam
127
trabalhando na zona rural, fixando residência nesta periferia. Caminhando pelas ruas, é fácil
deparar-se com animais soltos, cachorros, cavalos, vacas, galinheiros nas casas e pássaros
diversos. É a proximidade do campo com a cidade que permanece por aqueles ares.
Como a maioria dos bairros periféricos, esta comunidade desenvolveu-se
rapidamente, porém, sem a infraestrutura necessária para a qualidade de vida da população.
Fruto de uma ocupação desordenada, vemos moradias simples, muitas não acabadas, e são
escassas as possibilidades de lazer e cultura no bairro. É grande o número de bares nesta
região e vemos também algumas farmácias, padarias, lojinhas de roupas, salão de cabelereiro
e outros tipos de comércio que se alocam em meio às residências, uma vez que muitos
moradores têm dificuldade em “subir a serra” (referência à geografia do local) para ter acesso
a esses serviços no centro da cidade.
Em tempos de férias escolares é comum vermos as crianças brincando nas ruas,
tomando os campinhos de futebol e empinando pipas perigosamente em meio à rede elétrica.
Aos finais de semana ou fim de tarde encontramos muitas mulheres nas calçadas
conversando, homens nos bares e várias pessoas nas ruas. As igrejas evangélicas proliferam
pelo bairro e o domingo é dia de povoar os cultos.
Um relatório de abril de 2006 de uma pesquisa censitária solicitada pela
Secretaria de Educação da Prefeitura de São Carlos e retomada por Monte (2007) traz outros
aspectos importantes de serem considerados no intuito de compor o retrato da comunidade
investigada: mais de 42% das famílias vieram de outras regiões do Estado de São Paulo ou de
outros Estados; a População Economicamente Ativa (entre 16 e 60 anos de idade) – PEA – foi
mensurada em 9.432 moradores, sendo que 2.683 estão desempregados, ou seja, quase 30%, e
computa-se ainda um alto índice de desemprego.
Monte (2007) também destaca um aspecto importante com relação ao papel de
chefe de família que muitas mulheres chegam a exercer naquela região. Tal dado, segundo o
estudioso, acompanha uma tendência nacional, uma vez que, segundo os dados da
UNICEF/2000, durante as décadas de 80 e 90, pode-se notar um crescimento relativo nas
famílias formadas por mulher sem cônjuge, morando com os filhos (19 %). Paralelo a esse
dado, na comunidade estudada, muitas mulheres trabalham fora de casa, principalmente como
128
domésticas e faxineiras, e também não descartam a colheita e o plantio na zona rural, assim
como o trabalho em granja.
O nível de escolaridade dos adultos da comunidade é muito baixo, sendo que o
índice de analfabetismo na região investigada é de aproximadamente 10%, ou seja, quase
60% maior do que o índice de analfabetismo do município, segundo dados do IBGE e, hoje,
muitos jovens e adultos que não tiveram acesso à escola regular cursam, à noite, o ensino
supletivo – a Educação de Jovens e Adultos.
A escola de EJA que escolhemos pesquisar chama-se Escola Municipal de
Educação Básica “Arthur Natalino Deriggi” e está localizada na periferia descrita, entre os
bairros Cidade Aracy II e Antenor Garcia. A unidade escolar foi construída em 1996,
assumida por um projeto do Rotary Clube, uma organização que presta serviços à comunidade
composta por pessoas da classe média e classe média alta. O processo de construção da escola
começou em um terreno doado pela prefeitura, que assumiu a construção do prédio em
seguida. Devido a impasses políticos, as obras só foram entregues em 1998 e a construção foi
totalmente finalizada em 2002.
Atualmente, a unidade escolar atende alunos do 1º ao 5º ano no período diurno
(manhã e tarde) e possui uma sala de alfabetização e mais quatro salas de Termo I a IV
(correspondente ao 6º ao 9º ano) no período noturno, onde frequentam jovens, adultos e
idosos fora da idade escolar regular. É este último grupo, participantes da EJA, que formam
os sujeitos desta pesquisa e que serão descritos em seção oportuna.
surgiam enquanto ouvíamos os estudantes, ou seja, houve perguntas que emergiram como
uma atitude responsiva aos discursos dos entrevistados. Cada entrevista durou cerca de 20
minutos e todo o diálogo gravado, com o consentimento dos sujeitos participantes, foi
transcrito posteriormente, dando origem a mais um conjunto de textos que configuram a fonte
de dados para investigação nesta pesquisa. O roteiro de entrevista encontra-se no apêndice B,
ao final da Tese.
Lourdes
Eu, quando fui para escola, já nem era mais criança. E tipo assim... eu cresci
com meus avós, tanto que cresci chamando eles de pai e mãe. Então, meu
avô tinha a vida muito, muito complicada. Ele tinha que ir à luta para dar o
arroz com feijão pra gente. Não deixava os netos passarem fome. E eu não
fui a única que cresci com eles. Ele ficava muito tempo fora, trabalhando na
roça pra ganhar alguma comida. E a minha vó era deficiente visual. Então
meu avô me colocou na escola eu já tinha onze anos. (Lourdes).
132
Ela afirmou que nunca repetiu nenhum ano, apenas teve de fazer o 6º ano duas
vezes porque abandonou os estudos quando faltavam apenas três meses para conclui-los.
Quando indagada sobre por que parou de estudar, ela relatou que, na época, morava com uma
madrinha cuja filha não lhe tinha apreço, chegava até a colocar as suas roupas no fogão de
lenha, as quais não chegavam a queimar, mas ficavam todas pretas, de modo que ela não tinha
vestimenta adequada para ir para a escola. Lourdes morava muito longe da unidade escolar,
por isso tinha que dormir na casa dessa madrinha, mas não aguentou por muito tempo e logo
abandonou os estudos, só os retomando quando se mudou para São Carlos.
Nossa participante veio para essa cidade em fevereiro de 2013 sendo que, antes
disso, morou por um tempo em São Paulo, para onde foi em busca de emprego e de escola.
Na capital, entretanto, conseguiu apenas o emprego, pois as escolas não lhe arrumaram vaga.
Foi nesta ocasião que Lourdes decidiu vir morar com uma irmã que já residia em São Carlos
para ver se conseguia terminar os estudos (havia parado no 6º ano).
Arrumou vaga na EMEB “Arthur Natalino Deriggi”, onde na época da
pesquisa estava cursando o 9º ano. Gosta muito dessa unidade escolar, elogiou os professores
e a cidade de São Carlos, que lhe ofereceu a escola e o emprego que precisava.
Há quase um ano trabalha com limpeza de escritório na Ad’Oro, uma fábrica
de ração de frango, localizada na estrada de acesso à São Paulo e especializada no abate e
comercialização desses animais. Na ocasião da entrevista estava tentando negociar suas férias
do trabalho para a mesma data das férias escolares para que pudesse fazer um curso de
guardete (nome dado para guarda mulher) que durava vinte dias, das 7h da manhã às 18h da
tarde. Caso não conseguisse conciliar o curso com as férias escolares, faria o curso mesmo
assim e iria para a escola à noite, direto do trabalho (a escola oferece jantar na hora da entrada
aos estudantes, justamente para contemplar os que vêm do emprego).
Pretende se esforçar para poder sair da área de limpeza, a qual, segundo ela,
não é de seu agrado. Sabe que, por enquanto, este é o emprego que consegue devido à sua
baixa escolaridade, por isso, já pretende fazer o Ensino Médio assim que finalizar o Ensino
Fundamental.
Lourdes é divorciada, não tem filhos e mora com a irmã, o cunhado e dois
sobrinhos já adultos. Na época da entrevista, a participante relatou que estava para chegar
133
outra irmã de Minas Gerais, com dois filhos entre 9 e 10 anos, que também estava vindo para
São Carlos para concluir os estudos.
Quando indagamos sobre as suas experiências com leitura, a participante
afirmou que não sabia explicar exatamente para que servia a leitura e disse que, na verdade,
não gostava muito de ler, mas que, na Tertúlia, era diferente, pois ela sentia grande vontade de
ler e de participar. Em casa lia apenas um pouco da Bíblia, não tendo o costume de ler jornais
e revistas, por exemplo.
Apesar da relutância quanto à leitura, disse que lê bem (entende-se: não fica
engasgando nas palavras) e, em dado momento, chegou a afirmar que a leitura era “boa pra
mente”, que “ajudava no aprendizado e ajudava a falar melhor”. Não soube explicar ao certo
porque não gostava de ler, mas atribuiu essa falta de interesse a algum problema de memória
e à falta de concentração para realizá-la sozinha, individualmente. Ela disse: “eu não sei,
nunca fui ao médico ou coisa assim, não sei se eu tenho algum problema, porque eu não gosto
de ler, porque eu leio e não entendo o que foi que eu li, eu não lembro, o que foi que eu li”.
Ao perguntarmos sobre as experiências de leitura no decorrer de sua
escolarização, a aluna lembrou que as professoras, até a quinta série, pouco pediam para que
os alunos lessem, cobravam apenas que estudassem para as provas. Eles sequer frequentavam
a biblioteca, realidade bastante diferente da escola atual em que os estudantes, além de
frequentarem semanalmente a biblioteca, participam das Tertúlias e ainda leem muitos textos
nas aulas de Português.
A aluna reafirmou várias vezes que não gostava de ler, mas quando
perguntamos sobre a leitura dialógica ela afirmou: “a Tertúlia ajuda e, por incrível que pareça,
a Tertúlia é um dos momentos que eu gosto de ler”. Ela ressaltou, inclusive, os pontos
positivos dessa atividade quando se refere ao aprimoramento da competência leitora:
Eu não estava com vontade de ler naquele dia, mas chega na hora, não sei,
parece que coloca uma coisa no automático e me incentiva a ler. Aí é legal,
eu aprendo bastante. Aí eu vejo você e o Alexandre lendo, vocês dois, aí
vocês leem melhor que a gente, com certeza, aí dá pra gente aprender mais,
respeitar mais os pontos, as vírgulas, os parágrafos e tudo mais. (Lourdes).
134
José Edson
Duas horas da tarde tinha que andar mais ou menos daqui o Caic pra ir
estudar [Caic é uma escola situada em um bairro próximo, mas para ir a pé
fica longe até por causa do trajeto, com ruas muito íngremes] foi o tempo de
eu pegar e já abandonar a escola também... aí quando eu estava fazendo a
quinta série que faltava um mês aí precisei vir embora pra São Paulo aí
fiquei sem fazer a quinta série... aí eu peguei, conheci uma ex-namorada
minha, ela, falou: por que que você não volta estudar? Falei: ah sei lá é
muito cansativo, mas eu vou tentar. Aí eu gostei da ideia, sabe. Ela
conseguiu uma vaga pra mim e estou até hoje (José Edson).
O participante contou também que teve duas mulheres que eram muito
ciumentas, o que dificultava a volta aos estudos. Relatou também que em um dos serviços
entrava às 3 horas da manhã e saía às 20 horas, ou seja, extremamente cansativo,
impossibilitando-o de estudar. Quando refletiu que não estava valendo à pena viver de forma
135
tão sacrificada, pensando apenas em trabalho e deixando de dar atenção à família, resolveu
arrumar outro emprego.
José Edson disse que teve muito problema no relacionamento com a terceira
mulher, pessoa com quem ele viveu por quatro anos e, ainda no período de namoro,
engravidou além de ter-lhe pedido dinheiro para fazer um aborto, mas ele não aceitou. Este
foi um período em que ficou muito depressivo, se irritava com as cobranças dela e ficava
desanimado porque a mulher ficava com todo o dinheiro do seu trabalho e ele não tinha
nenhum bem material, mesmo trabalhando muito.
Para que a esposa não abortasse, o combinado foi que ele alugasse uma casa e
daria todo o suporte para ela e para a criança. Os dois ainda ficaram juntos por um tempo, mas
a situação foi ficando insustentável, pois ela sofria de uma suposta esquizofrenia e o agredia
muitas vezes. Como se não bastasse, a criança teve leucemia e a mãe não dava os cuidados
necessários que, segundo ele, era “obrigação da mãe”, “obrigação de mulher”.
Os dois se separaram definitivamente e o menino conseguiu vaga em um
hospital especializado, o Boldrini, em Campinas, graças à ajuda da madrinha da criança. O
garoto sofreu muito, fez os tratamentos e perdeu todo o cabelo. Naquela época, nosso
entrevistado já tinha arrumado outra esposa e esta, também por ciúmes, não o deixava visitar
com frequência o filho e a ex-mulher. A segunda esposa, da qual nos referíamos, devido ao
seu problema de possível esquizofrenia, não tinha muita consciência do que estava
acontecendo no que se refere à doença do filho, até que um dia a criança passou muito mal e
precisou ficar internada em Campinas. A mãe da criança achou que ela havia morrido e teve
um surto, saindo do banho e correndo desesperada pela rua ainda com o corpo nu. As pessoas
que a viram chamaram a polícia, ela foi presa e, depois de esclarecido sobre o seu problema
mental, foi levada para a Santa Casa, vindo a falecer 15 dias depois por ter contraído lúpus. O
José Edson teve, então, a guarda da criança.
Sendo pai, ele assumiu toda a responsabilidade do tratamento do filho,
levando-a para Campinas, mas sua mulher na época (a quarta), judiava muito da criança. Não
aceitava que ela se urinava, obrava, vomitava o tempo todo. Com essa mulher ele já tinha uma
filha e, quando a menina completou seis anos, os dois se separaram. Nesta parte da entrevista
136
o participante confessou que sempre teve a fama de mulherengo, mas parecia se justificar
dizendo que, apesar disso, sempre trabalhou muito.
Hoje ele está casado com uma mulher de 45 anos, que o incentivou a voltar a
estudar e com quem ele vive bem. O filho, hoje já adulto, ficou curado da leucemia.
Conversamos também sobre suas experiências de leitura. O participante
reconheceu a importância dessa habilidade principalmente para conseguir um bom emprego e
para se atualizar nas novidades, tendo mais assunto para conversar. Reconheceu ainda que é
preciso ler todos os dias, pois, só praticando a leitura nos tornamos um bom leitor. Disse que
no sítio onde morava havia poucos cartazes e placas, e que só quando mudou para a cidade
deu conta de que a leitura estava nas ruas e em todo lugar.
Dentro das atividades escolares por ele narradas, quando havia a leitura de
algum texto em sala de aula, a estratégia usada era: cada um lia um pedaço e o colega
continuava, se o aluno não soubesse onde parou a leitura ficava de castigo de joelho.
Hoje José diz gostar de ler, mas tem pouco tempo isso. Afirma que quando tem
prova leva alguma coisa para ler no trabalho e quando tem um tempinho ou se o patrão não
está vendo ele faz a leitura. Em outras palavras, o participante associa o ato de ler ao estudo
das matérias escolares. Ele não tem o costume de fazer outro tipo de leitura, além daquelas
necessárias para o seu dia-a-dia, como ler faturas do cartão de crédito, por exemplo.
Sobre a Tertúlia, o José Edson considera a atividade muito importante e
ressaltou que ela oferece segurança para aqueles que querem se expressar em sala de aula,
mas têm vergonha. Afirmou também que quando lê sozinho tem a sensação de que leu tudo
corretamente, mas quando lê em voz alta percebe os erros que comete, como falta de vírgulas,
pontuação, etc. Além disso, destacou que quando lê coletivamente, os colegas ajudam a
interpretar o texto lido, e que isso é uma facilidade, mas quando indagado sobre o que é ser
um bom leitor, ele reforçou que é não errar as palavras e a pontuação e afirmou que nos dias
de hoje, onde impera a internet, é importante aprender a ler rápido, pois assim você não perde
muitas informações e consegue ler mais coisas.
137
Dominga
Dominga tem 43 anos, nasceu em Mato Grosso do Sul e aos cinco anos de
idade veio para o Estado de São Paulo, na região do ABC, em Mauá. Lá ficou até os vinte e
dois anos, casou, trabalhou bastante e, segundo seu relato, teve uma vida agitada e muito
corrida. Relatou sobre os ônibus lotados que pegava, sobre o fato de ter de acordar de
madrugada e só voltar à noite para casa, deixando a filha com avós ou vizinhos. Lamentou
muito não ter acompanhado o crescimento da menina por ter de trabalhar tanto para sustentá-
la.
Falou de suas dificuldades financeiras, do frio que passava em São Paulo por
não ter condições de comprar agasalho, da vida dura que levou em abrigo e em casa de
parentes que pouco a ajudavam na capital paulista. Relembrou também de sua infância e da
dificuldade para ir para a escola, a qual ficava muito distante de sua residência, e dos
caminhos perigosos pelos quais passava até chegar lá: percorria matos, caminhava à beira do
riacho e gastava muito tempo no trajeto. Porém, em contrapartida, a escola lhe oferecia o
alimento que muitas vezes faltava em casa.
Seu primeiro emprego foi como empregada doméstica. Nele ficou por quatro
anos. Depois disso casou-se e ficou cinco anos com o marido. O casamento não deu certo e
ela não podia voltar para a casa dos pais porque o pai era muito rígido e seu regime era:
“casou, cada um que se vire”. Além de não apoiar o casamento, o pai também dizia que se ela
quisesse casar que o fizesse, mas se “quebrasse a cara” não era para voltar para casa.
Então Dominga arrumou um emprego onde podia também morar, já que o pai
não a aceitava mais em casa. Trabalhou lá por aproximadamente quatro anos e, nesse meio
tempo, resolveu tentar uma reconciliação com o ex-marido. Ficou grávida, mas o
relacionamento ainda não deu certo. Arrumou um emprego em uma lanchonete em que ela
entrava às cinco da manhã e saía às 23 horas até que resolveu mudar-se para São Carlos, onde
a mãe já residia após ter saído da Bahia e onde reside até hoje.
Nossa entrevistada trabalhou por quatro safras na colheita da laranja, trabalhou
em campanha eleitoral por contrato, foi cuidadora de idoso, faxineira, babá, trabalhou em um
frigorífico da cidade e ficou desempregada por três anos. Tentou, recentemente, voltar ao
138
frigorífico, mas diz não ter se adaptado mais ao serviço, pois, além de ter de acordar antes das
três da manhã porque o ônibus que a levava ao serviço rodava a cidade toda pegando os
moradores de diversos bairros até chegar na empresa às 6 horas, a linha em que ela estava
trabalhando ainda lidava com corte sendo que, por dormir pouco, Dominga achava arriscado
dar uma cochilada e acabar se machucando ou ferindo alguém que estivesse do lado. Além
disso, com esse emprego ela achava que acabaria saindo da escola e faltando um mês para se
formar, não considerava que valeria à pena.
Dominga, na ocasião da entrevista, estava desempregada e à procura de
emprego, mas não queria deixar os estudos. Aliás, ela valoriza muito a escola e os
professores. Aprendeu a ler por incentivo dos pais: a mãe saía muito cedo para trabalhar e
ensinou os filhos a ler as horas para não perder o horário da escola. No caminho, via as
placas, juntava as letras e quando chegava na escola perguntava para a professora o que
formava e o pai, em casa, pegava seu jornal e a ajudava a juntar as letras.
Havia parado de estudar na quinta série, para poder trabalhar, e quer muito
aprender a falar melhor para se sair bem nas entrevistas de emprego. Afirmou que por ser
nortista tem um jeito diferenciado de falar que a atrapalha na hora de arrumar serviço. O fato
de trabalhar fora também não foi algo tão normal na sua família, pois o pai achava que lugar
de mulher era dentro de casa, que não tinha que sair para trabalhar. Entretanto, como na casa
eram mais mulheres do que homens, elas tiveram, sim, que sair para ajudar no sustento da
família.
Dominga gostava de ler romances como Júlia e Sabrina, sempre lia a Bíblia e
o pai, que frequentava a igreja, sempre lia alguma coisa relacionada à religião. Além disso,
ela conta que teve de aprender a ler porque fazia parte do coral da igreja e precisava ler os
hinos na pasta. Hoje gosta de ler jornal e de assistir ao noticiário (não liga para novelas).
Compra alguns livros, lê os panfletos que recebe na rua e às vezes é até recriminada pelo
marido de tanto que lê; ele argumenta que a esposa depois fica reclamando de dor de cabeça e
nas vistas. Dominga se justifica dizendo que é melhor ficar em casa lendo do que ficar na rua
fazendo fofoca da vida alheia.
A lembrança mais marcante que Dominga tem sobre a leitura escolar é de uma
professora que pedia que os alunos lessem o texto em casa e, no dia seguinte, a docente
139
perguntava o que os alunos entenderam da história. Para a nossa entrevistada essa foi uma
metodologia significativa e considerada boa, uma vez que a professora não queria saber se a
criança pronunciou as palavras corretamente, mas se importava com o entendimento do texto
por parte dos alunos.
Sobre a Tertúlia Literária Dialógica, Dominga considera uma boa experiência
por poder compartilhar com outras pessoas seus conhecimentos e até seus problemas na
tentativa de resolvê-los. A Tertúlia ajuda os tímidos a se exporem mais, em sua opinião, e a
faz perder um pouco o trauma do falar “errado”, segundo a sua concepção. Dominga
consegue dar a sua opinião sobre o material lido, não se importando tanto com o seu sotaque
nortista, pois, para ela, o importante é participar da atividade, mas associa um pouco esse
trabalho com um grupo de terapia comunitária da qual participava em um posto de saúde,
onde as pessoas expunham seus problemas e tentavam se ajudar mutuamente.
Acreditamos que a Tertúlia Literária Dialógica não deva ser confundida com
terapia, porém, não nos cabe nesse momento fazer a defesa da atividade nos moldes como
acreditamos ser mais significativo para os processos de leitura. Portanto, passamos à nossa
próxima participante.
Adriana
depois que saiu da casa dos pais seria uma vergonha voltar do jeito que estava, por isso
preferiu a rua, mas a mãe ficou desesperada, dando-a como morta.
Depois de um tempo nas ruas, Adriana conseguiu arrumar um emprego em
uma casa de família. Morava lá e, aos finais de semana, ia para a casa de outra irmã mais
velha. Nessa época conheceu um homem com quem se casou apesar de não ter nenhum
sentimento de amor por ele. Teve três filhos, continuava sem estudar e trabalhava bastante. O
esposo era um homem trabalhador e honesto, segunda ela, mas começou a beber, não arcava
com as reponsabilidades de uma casa e não se preocupava com os filhos, o que gerou muitos
problemas para o casamento, o qual terminou tempos depois. Adriana foi morar com outra
pessoa, um homem bem mais velho, que a ajudou a criar os filhos, e voltou a estudar, mas o
marido era muito ciumento e em certo momento a impediu. Muito apaixonada, ela largou os
estudos e foi trabalhar na colheita da laranja.
Trabalhou depois como faxineira e teve outros serviços, mas em uma época em
que estava desempregada quebrou o calcanhar, o que lhe trouxe muito sofrimento porque,
além das complicações com as fraturas em três locais, tinha que viver na dependência do
marido. O médico disse que o pé não teria conserto e que ela não conseguiria mais trabalhar.
Em depressão, o filho a aconselhou a voltar a estudar para distrair a mente. Hoje ela acredita
que há males que vêm para bem, pois graças a esse acidente ela retomou os estudos.
Hoje Adriana continua sem poder trabalhar, mas com muito esforço está
terminando 9º ano e faz um curso de cabelereira. O marido está montando um salão de beleza
para ela trabalhar em casa e, finalmente, poder ser autônoma, pois a vida toda trabalhou para
as outras pessoas.
Também pedimos para a Adriana falar sobre o ato da leitura. Ela disse que ler
faz bem para o desenvolvimento humano, pois abre a mente das pessoas. Afirmou que faz
bem para a memória e para as pessoas aprimorarem a própria fala. Relembra que na sua
infância não tinha o costume de ler muitos livros e que a escola se preocupava apenas com o
ABC da cartilha. Trouxe à tona também a rigidez de alguns professores da época que usavam
a palmatória e faziam os estudantes ajoelharem nos grãos de milho.
Adriana também relembrou um dos encontros de Tertúlia no qual se
emocionou muito. Foi durante a leitura de um conto sobre o Natal que narrava a história de
141
um menino sem casa, o que trouxe à lembrança os períodos em que ela própria viveu como
moradora de rua. Afirmou ainda que a atividade auxilia os docentes a identificar os alunos
que têm dificuldades para ler e ainda dá coragem para aqueles que sentiam vergonha de expor
seus pensamentos. Um dos pontos interessantes mencionados pela entrevistada sobre os
benefícios da Tertúlia Literária Dialógica diz respeito à possibilidade de autoafirmação que a
atividade proporciona e a igualdade entre os participantes, independente do papel social que
ocupam:
Santina
10 anos de idade. Aos 16 casou-se e logo teve seu primeiro filho. Seu cunhado veio para São
Carlos e conseguiu emprego na Eletrolux (naquela época chamava-se Pereira Lopes). O rapaz
havia comentado com a família que lá se empregavam pessoas que vinham da roça e tinham
pouca escolaridade, o que motivou o marido de Santina (agora ex-marido) a mudar-se para
São Carlos com o mesmo intuito.
Santina estava de dieta ainda, após a gravidez, por isso o marido veio na frente
para se estabilizar. Após dois meses chegou a vez de Santina vir para São Carlos e, naquela
ocasião, relata ter passado por muitos sofrimentos por ter de ficar longe da mãe, das irmãs e
da família. Por várias vezes ela conta que foi o momento mais complicado de sua vida, pois
era muito apegada aos familiares que estava deixando e sabia que não teria recursos para
visitá-los sempre.
Quando chegou aqui na cidade Santina ainda era menor de idade, por isso não
conseguiu emprego. O marido alugou uma casa de um cômodo e um banheiro e lá ela ficou
cuidando do filho. Aos 18 anos Santina arrumou seu primeiro emprego, sentindo-se vitoriosa
e muito orgulhosa; foi uma grande conquista para ela ter um emprego de carteira assinada. A
saudade da família ainda era grande; Santina chorava muito, principalmente aos domingos,
dia em que a família se reunia em torno da mesa para fazer a refeição. Mas, foi assim;
lutando, chorando e batalhando que ela criou seus três filhos (todos gerados de parto normal,
como ela mesma se orgulha em dizer).
Seu primeiro emprego foi como empregada doméstica e babá. Trabalhou por
mais ou menos 3 anos e depois entrou em uma fábrica onde ficou mais um pouco. Ela morou
de aluguel por 7 anos e, com o dinheiro que recebeu por ter sido mandada embora da fábrica,
comprou dois terrenos no loteamento da Cidade Aracy, onde construiu sua casa e reside até
hoje. A conquista da casa também foi relatada como uma grande vitória na vida da Santina.
Às vezes ela e/ou o marido ficavam um período desempregados e a dificuldade
aumentava, mas ambos, segundo seu relato, nunca ficaram de braços cruzados: ela fazia uma
faxina e ele, quando perdia o emprego, trabalhava como servente de pedreiro.
Após trinta anos de casamento, o casal se separou. Foi um período muito difícil
para Santina, já que tinha uma vida toda baseada neste relacionamento. Santina ficou com a
casa, onde mora com o filho que é solteiro, de 17 anos, e voltou a estudar. Quando indagada
143
sobre o motivo que a fez abandonar os estudos a entrevistada contou que parou na quinta série
porque se casou. Não que o marido a impedia de estudar, mas, com a vida para ajeitar,
morando no quintal da sogra ou com a mãe, tinha muitas preocupações que um casamento
exige e toda uma vida para construir, precisava trabalhar, cuidar dos filhos, depois construir a
casa e, com isso, foi deixando os estudos para trás.
Hoje Santina trabalha como serviços gerais em um posto de saúde, voltou a
estudar, pretende fazer o Ensino Médio e fazer um curso de auxiliar de enfermagem. Tem o
sonho de ser enfermeira nem que seja, como diz ela, “para cuidar de velhinho no asilo”, mas
este será mais uma conquista que ela pretende alcançar.
Também a indagamos sobre questões que envolvem o campo da leitura.
Santina afirmou que ler é bom porque amplia os seus conhecimentos:
Olha, o ato de ler é assim: quanto mais a gente aprende a gente quer
aprender e às vezes a gente acha que sabe tudo e você vê que tem coisas que
você não sabe nada. Você fala: “puxa vida eu achei que eu sabia!” e você
fala: “puxa vida eu não sei nada!”, então, a leitura pra gente é assim: é você
reaprendendo, né, com as palavras, reaprendendo com as frases,
reaprendendo tudo que você está reciclando, né, porque às vezes você vê
uma coisa você fala: “ah isso aqui eu já sei”, mas às vezes tem coisas que
você não sabe, né?
Santina também afirmou que com a Tertúlia teve mais vontade de ler: “e a
Tertúlia, ela vem no meio disso ajudar a gente a mais reforçar o desejo de a gente ler, porque
eu gosto de ler livros, eu leio muitos livros”.
Nossa participante gosta de ler de tudo um pouco: de livros infantis, espírita até
Machado de Assis. Contou que hoje gosta de pegar muitos livros na biblioteca, pois quando
era criança e morava na roça, era a professora que ia na cidade pegar os livros e levava para
os alunos.
Relatou também sobre a dificuldade para chegar até a escola (“tinha que passar
no meio de pasto com vaca brava”), a alfabetização com a cartilha Caminho Suave e a
dificuldade em comprar os materiais escolares. Sua mãe fazia estojo com saco de açúcar e
nem calçado para ir à escola ela possuía. Andava cerca de duas horas com chinelo mesmo
para chegar à escola e, quando podia, ia a cavalo (conta que alguns pais tinham carroça e
podiam levar os filhos mais confortavelmente, mas não era o caso da sua família). Hoje vê o
144
depois uma leitura em que cada um que sentisse vontade poderia ler um pedaço. Como outra
opção, às vezes, faziam primeiramente essa leitura em que cada sujeito podia ler um pedaço e
em seguida o professor fazia uma leitura integral dos contos selecionados.
Após as leituras, o docente abria espaço para as inscrições e dava início ao
trabalho com a Tertúlia Literária Dialógica, sendo que a cada 15 dias, mais ou menos, a
atividade se repetia. Em época de provas ou quando ocorria algum evento diferenciado na
escola esse calendário das Tertúlias era revisto e ajustado.
24
O professor autorizou a divulgação de seu nome.
146
Pedimos a ele que falasse um pouco sobre as atividades de Tertúlia Literária Dialógica no
momento em que os dados desta pesquisa foram coletados, comparando com o momento atual
de desenvolvimento das atuações educativas de êxito e deixamos que o professor moderador
falasse livremente sobre o que julgasse mais relevante, sendo que foram feitas poucas
intervenções/perguntas por parte da pesquisadora. Em momento posterior (junho de 2016),
apresentamos o registro da entrevista ao entrevistado para que ele verificasse se estava de
acordo com o que estávamos escrevendo na Tese, ou seja, para que ele nos informasse se
conseguimos registrar fielmente as suas ideias, sendo que o deixamos livre para retirar alguma
parte ou acrescentar alguma informação ainda não dada que ele julgasse importante.
O professor começou a entrevista indicando a data de transformação da escola
em Comunidade de Aprendizagem: em 2010, sendo que naquele ano poucas foram as
mudanças sentidas na escola25 e as atividades pertinentes a essa transformação aconteciam de
forma muito tímida, tanto naquele ano quanto nos seguintes, sendo que em 2013 (ano da
coleta dos dados) elas foram mais recorrentes (as Tertúlias aconteciam em pelo menos três
salas de aula).
Naquele ano de 2013 a escola não contava com uma pessoa trabalhando
exclusivamente para pensar na implementação das Tertúlias, por isso, os professores de
Língua Portuguesa da época acharam que seria mais fácil começar as atividades lendo contos.
Na entrevista, o professor afirmou que em 2014 ele se afastou da sala de aula para trabalhar
na função de apoio que, para a Secretaria Municipal de Educação da cidade, é o profissional
que não assume aulas fixas, mas substitui a ausência de outros docentes. Sendo professor de
apoio, a equipe gestora da escola conseguiu que ele ficasse responsável pela organização das
Tertúlias na escola, o que foi um grande avanço. Podendo trabalhar quase que exclusivamente
na implementação dessas atividades juntamente com a professora de Língua Portuguesa da
escola, o docente moderador montava o calendário de leitura, sugeria os textos a serem lidos e
providenciava as obras, sendo que na ocasião os estudantes do 9º ano já estavam lendo um
livro clássico. A elaboração do calendário era/é importante para que a classe de alunos
conseguisse ler toda a obra em um semestre, sem que o livro ficasse pela metade, enfim, seu
25
A ação mais concreta daquele ano de 2010 foi a inserção da transformação da escola em Comunidade de
aprendizagem no Projeto Político Pedagógico da unidade escolar.
147
trabalho foi essencial para que essa atuação educativa de êxito deslanchasse a partir de 2015,
contexto que infelizmente não presenciamos no momento da inserção em campo.
Voltando ao ano da coleta dos dados (2013), isto é, no início da implementação
das Tertúlias Literárias Dialógicas na escola quando o moderador estava em sala de aula ainda
como professor da turma, ele se propôs a realizar as atividades, tendo como um de seus
objetivos ler bons textos de literatura de autores consagrados, como Guimarães Rosa,
Machado de Assis, Franz Kafka, Jorge Amado e outros, segundo suas palavras. Na ocasião da
entrevista, o moderador afirmou que, na verdade, no início das Tertúlias não liam obras
clássicas, embora muitos dos autores lidos tenham uma produção clássica; liam bons autores
e, naquela época, ele e a equipe escolar tinham dúvidas sobre essas questões. O entrevistado
esclareceu que nem tudo que determinado autor considerado clássico escreve é um clássico;
às vezes é apenas determinada obra desse autor que é clássica. Essa reflexão só foi feita após
a coleta de dados; os docentes foram amadurecendo durante o processo de execução das
atividades, principalmente por meio das formações que a equipe do NIASE/UFSCar oferecia
na escola. O docente moderador afirmou que aprendeu muito com essas formações.
Segundo seu relato, em momentos de formação como o mencionado, o corpo
docente da escola também compreendeu melhor o papel do moderador. Os professores
acreditavam que pelo diálogo igualitário todo mundo tinha o direito de falar o que quisesse,
mas ficavam incomodados com algumas falas preconceituosas, por exemplo. Foi em uma
ocasião como essa de formação que compreenderam que o moderador tem o papel
fundamental de intervir para desconstruir, por argumentos válidos, algumas falas que iam
contra a transformação social pretendida. Perceberam que o moderador não tem só a função
de organizar as falas; ele pode, sim, interferir de forma dialógica e respeitosa, questionando os
dizeres que comprometem a aprendizagem dialógica, perguntando quais são os dados que
evidenciam determinado argumento, solicitando pesquisas sobre o assunto, incrementando o
debate e estando atento para que as discussões não enviesem ou não se tornem um mero
momento de autoajuda.
Ainda com relação aos clássicos, a equipe formadora do NIASE sempre deixou
muito claro que se não se lê clássicos não se faz Tertúlia Literária Dialógica e isso foi
deixando o professor moderador impaciente, no bom sentido, o que o fez mudar de atitude na
148
escolha dos textos a serem lidos. Foi assim que o 9º ano passou a ler A metamorfose, de
Kafka; um clássico, de fato, da literatura universal. A partir dessa compreensão, a escola se
mobilizou para conseguir os exemplares (um livro para cada aluno) com o apoio do NIASE e,
desde então, tem lido obras dessa natureza e não apenas bons textos de bons autores.
Na ocasião da entrevista, o livro de Kafka já havia sido lido pelo 4º semestre
consecutivo, sempre com avanços, por exemplo: no início o professor não conseguia fazer
com que todos os educandos lessem o trecho selecionado em casa para posterior discussão
dos destaques em sala de aula, de forma que muitas vezes a atividade se tornava mera roda de
leitura. Percebendo esse enviesamento, o docente moderador, juntamente com a professora de
Língua Portuguesa, fez uma formação com os alunos, retomando todos os princípios da
aprendizagem dialógica, de modo que a atividade realizada com os estudantes não fosse outra
coisa senão a Tertúlia Literária Dialógica.
Outro avanço mencionado na entrevista foi com relação à organização dos
destaques. No início (época da coleta de dados), o moderador organizava a ordem das falas de
acordo com a ordem de inscrição da pessoa que queria se manifestar. Hoje os destaques são
feitos, em uma primeira rodada, de acordo com a sequência da narrativa, ou seja, se a última
pessoa a se inscrever quisesse fazer um destaque sobre o título da obra ela seria, então, a
primeira pessoa a falar. Após essa primeira rodada, um destaque puxa outro e o moderador
vai organizando as falas por ordem de inscrição e por quantidade de destaques já realizados
(de modo que não haja protagonismos). Além disso, antes se lia apenas contos, com o passar
do tempo os gêneros se diversificaram: os alunos leram, além dos contos (que ficavam para 7º
e 8º anos), crônicas (no 6º ano) e A metamorfose (no 9º ano), embora a dúvida se todos os
textos lidos eram mesmo clássicos ainda persistisse na fala do entrevistado.
Outro fato importante mencionado é que antes as atividades eram mais
fechadas, destinadas apenas às pessoas da escola. Hoje ela é aberta para a comunidade e
voluntários participam desse momento, sendo que a programação do mês da Tertúlia é fixa,
favorecendo a participação das pessoas de fora da escola.
Assim, com todas essas mudanças, hoje (2016) a Tertúlia Literária Dialógica
está totalmente implementada na escola, em todas as turmas, juntamente com as demais
atuações educativas de êxito; os próprios alunos já organizam as carteiras em roda e as
149
Tertúlias já fazem parte da rotina dos estudantes. No 8º ano, por exemplo, os participantes
estão lendo Romeu e Julieta, de Shakespeare. Na entrevista, o docente moderador enfatizou
que essa é uma proposta de que os alunos, em quase sua unanimidade, gostam e a consideram
uma atividade importante para se ter na escola. O professor moderador assumiu que ainda há
o que se aprimorar, principalmente na conquista de que todos os alunos tenham um contato
prévio com o texto, lendo-o em casa e fazendo os destaques dos trechos antes das sessões de
Tertúlia, entretanto, considerou que o que se fazia antigamente está bem diferente do que se
faz atualmente, motivo este que faz da escola mais viva e dinâmica, com mais pessoas
aprendendo de forma mais profunda, com mais qualidade, coletivamente e solidariamente.
26
Segundo Goméz et al (2006) o conselho assessor é formado por representantes da comunidade que participam
da investigação, ofertando a sua contribuição para a pesquisa a partir de suas maneiras de entender e transformar
a realidade. Eles podem orientar e avaliar toda a investigação, incluindo as suas conclusões e os resultados, de
modo a colaborar para a melhora da realidade de seus coletivos.
151
coluna da tabela com uma hipótese ideologia que a combinação daqueles vértices nos
inspirava de acordo com os estudos bakhtinianos que trazíamos como bagagem, de acordo
com os diálogos que estabelecemos e segundo o repertório teórico que assumimos. Tal
estratégia facilitou a triangulação dos enunciados, de modo que, primeiramente,
selecionamos, a partir das transcrições, as falas dos participantes durante a Tertúlia e, em
seguida, fomos preenchendo as demais células da tabela. Devido à extensão do material,
exemplificamos a trajetória de ordenação e categorização dos enunciados a partir de uma
matriz, como a que segue.
_______________________________________________
Bakhtin.
155
27
Todos os que saíram nas fotos autorizaram a divulgação neste trab
trabalho.
157
158
159
4.1.1 “Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o
namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme”28:
ideologias em torno das relações amorosas
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos
andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a
verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
28
As citações que compõem os títulos de cada seção deste capítulo foram extraídas dos contos que
compreendem o corpus desta pesquisa.
160
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar
pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou
por instantes, mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos
apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que, mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais
próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre
os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos
estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos
estavam com sede, mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes
de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a
água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida
voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir
os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua
de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente
ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida
havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que
sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o
corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente,
nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo,
sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha
acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo,
espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra,
descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que
logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
ao ciúme, que faz parte do relacionamento amoroso, mas deve ser dosado, segundo nos
reportam vários educandos:
D29 – E quando o amor que a pessoa diz que sente pela outra se torna
obsessivo demais? E a pessoa quando tem tanto amor pela outra que ela
sufoca? E aí, o que a pessoa faz? Têm muitos relacionamentos que é assim,
tudo demais, chega uma hora que sufoca a pessoa.
GDC30 – Eu acredito assim: no amor obsessivo são pessoas que está faltando
amor-próprio para elas. E essa obsessão não existe como a gente vê nos
noticiários: “um homem se matou por amor”. Ninguém se mata por amor; só
teve um que deu a vida por amor a todos, né? [referência a Jesus Cristo]. Só
teve Ele. Hoje nós não encontramos um ser humano, alguém que se mata por
amor. Isso é... uma prepotência do ser humano.
O comentário surgiu porque o texto “O primeiro beijo” traz uma frase de efeito
logo no seu primeiro parágrafo: “amor com o que vem junto: ciúme”. Discutiu-se se o ciúme
faz, obrigatoriamente, parte de qualquer relação amorosa. A concepção de amor foi tratada
exaustivamente pelo grupo até os participantes chegarem a algumas conclusões: de que
ciúmes é questão de falta de confiança no parceiro; falta de respeito; ausência de diálogo; que
ninguém morre por amor a não ser Cristo; que um pouco de ciúmes faz bem para a relação,
mas, sem exageros e que há casais que gostam de saber sobre relacionamentos antigos, o que
pode gerar conflitos.
O ciúme pode virar tragédia também, como comenta Dominga:
GDC – (...) por exemplo, eu sou casada com meu marido; aí me separo e ele
não aceita. Aí começa a matar... a família. Então... isso também... eu não
29
A partir de agora utilizaremos as letras iniciais de cada nome dos participantes para referenciá-los: (D)
Dominga; (S) Santina; (L) Lourdes, (J) José Edson e (A) Adriana. Os mesmos autorizaram o uso de seus nomes
verdadeiros.
30
Grupo de discussão comunicativo.
162
acho que isso é amor, não. Eu acho que isso aí é uma coisa ruim que entra na
pessoa pra destruir o lar dessas pessoas. É assim que eu penso.
tragédias ou o ciúme é bom em certa medida, temos neles imbrincados enunciados alheios
que, mais do que a reprodução de outros enunciados, são a internalização de um novo
conhecimento de mundo fruto de uma reelaboração da palavra alheia. Em outras palavras, nas
relações que os sujeitos estabelecem com o mundo, é possível compreender um enunciado de
diferentes formas, considerando que não existe, segundo Bakhtin, uma palavra que seja de um
único indivíduo, mas são enunciados construídos socialmente através da palavra do Outro. É
através desses enunciados que as ideologias circulam em diferentes esferas sociais e práticas
cotidianas.
Assim, as ideologias em torno do ciúme não se configuram unicamente no
campo da consciência individual dos sujeitos da pesquisa, isto é, no domínio do psiquismo
intersubjetivo. Elas se materializam dentro de uma organização social. É por isso que as suas
falas deixam transparecer elementos em cujo ciúme circulou em seus contextos de vida e nos
espaços sociais em que eles se movimentam. Nesse sentido, cada participante que expôs a sua
compreensão sobre o assunto revelou-nos que as suas reflexões são conectadas à palavras
alheias que se transformaram em ideologias e se constituíram dos diálogos e interações
sociais aglutinados nas inúmeras vozes e vivências que os cercam.
Com o respaldo das teorias de Bakhtin, vemos, então, que o sujeito se constitui
nos processos interativos de que participa, sendo capaz de elaborar e reelaborar sua
compreensão de mundo dentro da estrutura social. Essa concepção também é apoiada por
Geraldi (2013):
A não abertura dos homens para desabafar com suas parceiras é um discurso
arraigado na fala da Dominga. Ela argumenta que, às vezes, a mulher quer ajudar o esposo,
quer saber sobre seus problemas na tentativa de auxiliá-lo a solucionar os desafios, mas o
homem, mais introspectivo, não quer discutir sobre seus anseios e necessidades. Essa
compreensão compartilha das ideologias no campo científico das quais nossa participante
deixou-se penetrar na constituição da sua forma de pensar. Há estudos da neurociência que
demostram justamente as diferenças entre homens e mulheres, sendo uma delas o fato de a
mulher ser mais expansiva e comunicativa do que o homem. Já no grupo de discussão
comunicativo, quando esse dado foi apresentado, uma das falas que nos chamou a atenção foi
a de uma participante que, além de concordar com o fato de os homens serem mais retraídos,
ela reforçou a ideia da falta de diálogo nos relacionamentos e introduziu a questão religiosa, a
qual separamos como uma das ideologias a ser analisada, tamanha sua recorrência em nossos
dados.
Retomando a fala da Dominga, ela até tenta se colocar no papel do homem e
faz a seguinte reflexão:
D – Também tem um aspecto assim, né, “vou falar isso pra ela e o que ela
vai pensar?”. “O que vai pensar de mim?”. Então acho que eles pensam
muito assim, “o que ela vai dizer? Ela vai rir de mim? Ela vai me chatear?”
Então, às vezes, eles encobrem com uma mentira, que é mais fácil, ou fazem
uma pergunta, que às vezes você tem a resposta pra pergunta, dependendo
do assunto, e às vezes não. Mas também não é motivo pra você rebaixar a
pessoa ou rir dela, porque ela está pensando de um jeito e às vezes quer
saber porque acontece, mas, às vezes, se é a mulher, muitas vezes ela está
pensando assim: “mas se ele não falar o que está acontecendo, como que eu
posso ajudar?” Aí é onde entra outros fatores, você começa a pensar pra
outro lado, “ah por que o fulano está assim e não fala, por quê?” Aí já
começa a imaginar coisas erradas, porque o homem nunca fala o que está
pensando. (grifos nossos).
pistas sobre de onde vêm esses discursos, em que vozes se assentam, quais as palavras alheias
que os definem. Nesse material, identificamos um elemento comum a todas elas: nenhuma
das mulheres que entrevistamos continua com o mesmo marido com o qual se casou. Todas
são divorciadas, com ou sem um segundo esposo. Dessa informação podemos inferir que
todas elas tiverem momentos de insucesso em suas relações amorosas e isso as fez formar
uma opinião muito bem definida, e até depreciativa, em certo sentido, sobre o comportamento
dos homens dentro dos relacionamentos amorosos.
Por outro lado, devemos ressaltar que, naquela sala de aula em que a atividade
se desenvolveu, a maioria das pessoas eram mulheres e com mais idade, sendo que os homens
eram em menor número e adolescentes em sua maior parte. Isso evidencia tanto uma
experiência de vida maior entre o grupo das mulheres quanto fortalece os seus discursos
dentro do estigma um tanto pejorativo que constroem em torno da figura masculina, como
veremos no próximo destaque feito pela participante Santina. Antes, porém, apresentamos o
conto sobre o qual recai o comentário da participante, intitulado “Histórias de carnaval”, de
Jorge Amado.
- Sei que não tem nada de mais. Mas é que o finado, se fosse vivo, não havia de gostar.
Ele vivia falando contra esses namoros na janela. Sempre me dizia: - "É uma falta de
vergonha, Marocas, esses gabirus encostados nas janelas falando baixinho pra essas
sirigaitas. Filha minha não quero que faça isso. Se o rapaz tem boas intenções, que venha
conversar dentro de casa. Se não tem, então pau nele".
Teodoro concordou com um gesto com a teoria do finado. Dona Marocas continuou:
- O senhor já falou com Maria e com a mana Clara que vai pedir a menina em junho. Pois
bem: eu prefiro que o senhor venha conversar aqui na sala do que essa coisa de estar
encostado na janela. Não é por nada, é pela memória do finado... - ficou de repente
encabulada, nem sabia como tinha falado tanto, baixou a cabeça, empregou as mãos em
amarrotar a saia preta. Foi assim que Teodoro ficou frequentando a casa, noivo semi-
oficial, esperando o pai que vinha em julho para o pedido. O casamento seria depois dele
formado e nomeado promotor de uma cidadezinha qualquer. No princípio do outro ano.
Maria dos Reis já tratava do enxoval, comprava rendas e sonhava o casamento na igreja, a
grande cauda do vestido arrastando, as amigas jogando flores, o padre tomando das
alianças.
Mas o Carnaval se aproximava. Fazia um ano, ela saíra numa prancha, Felizes Borboletas,
saíra linda, linda, era a mais linda na mais linda prancha. Fora aí que começara o namoro
com Teodoro, que fazia o corso num carro de estudantes. As Felizes Borboletas eram uma
criação da família Cordeiro, cinco moças alegres e uma mamãe mais alegre ainda.
Naquele tempo, o Carnaval da Bahia era feito principalmente pelas pranchas, bondes
enfeitados de flores e papel, lotados de moças fantasiadas que corriam todos os itinerários
dos trilhos, levando a alegria a todas as ruas e arrastando atrás de si os autos dos rapazes
elegantes. Havia prêmios para as pranchas mais animadas e para as mais belas. Cinco
anos eram passados desde que, pela primeira vez, a família Cordeiro fizera a prancha das
Felizes Borboletas. E nesses cinco anos por duas vezes a prancha tirara o prêmio de
beleza, por outras duas o de animação, perdendo uma única vez devido "à mais elevada
injustiça jamais praticada sob céus da Bahia", como afirmava Reinaldo dos Santos
Ferreira, amigo da família e pai de duas das felizes borboletas.
Maria dos Reis, quando viera morar naquela rua, ficara amiga de Antonieta Cordeiro e
das suas quatro irmãs. Mas principalmente de Antonieta, que era uma simpatia de morena,
alegre e viçosa, namoradeira como ela só, dona da risada mais clara de todo o Largo 2 de
Julho. Fora assim não só membro como uma das mais ardentes animadoras e entusiastas
das Felizes Borboletas naquele ano. E, como era esguia e pálida, a fantasia foi-lhe muito
bem e divertiu-se imenso nos dois primeiros dias. No terceiro, já de namoro forte com
Teodoro, a alegria foi diferente, um pouco menos ruidosa, porém mais densa. Terminaram
dançando até de madrugada na casa dos Cordeiros, festejando o prêmio. Teodoro dissera-
lhe então que o prêmio tinha sido conferido principalmente devido a ela, à sua beleza, à
sua voz, à sua graça radiante.
Agora eram quase noivos, o Carnaval estava aí, as Felizes Borboletas ensaiavam e
Antonieta, as quatro irmãs de Antonieta, a mãe de Antonieta, o Sr. Reinaldo dos Santos
Ferreira, todos, contavam com ela, com sua voz e sua alegria. Seu concurso era
imprescindível, Antonieta vivia repetindo, as quatro irmãs diziam em coro, mamãe
Cordeiro dizia ainda mais alto. Só Teodoro não dizia nada, apenas fechava a cara toda vez
que ela falava em sair na prancha. Quando ela suplicava muito que ele dissesse alguma
coisa, se definisse, sim ou não, ele falava com voz soturna:
- Se tá com vontade, saia...
168
Ela não tinha coragem de confessar que estava com vontade. Ficavam os dois amuados,
cada qual para seu canto, nem aproveitaram as idas de tia Clara à sala de jantar para os
beijos rápidos, porém ardentes.
Maria dos Reis desabafou com Antonieta. Teodoro virava fera quando se falava no assunto
"prancha". Fazia uma cara feia, se fechava em copas. Ela não podia mesmo sair. Antonieta
prometeu resolver o assunto e nessa mesma noite abordou Teodoro:
- Então, seu Teodoro, não quer deixar a dos Reis sair na nossa prancha, hein? Só porque é
prancha de gente pobre e a futura esposa de um advogado não pode sair misturada com as
filhas de um escriturário do correio, não é? Se fosse a prancha dos Andrades, ela podia, não
é?
Teodoro estava mais duro que um rochedo:
- Se ela tiver vontade, pode sair...
Antonieta tinha que ir para o ensaio, disse logo as últimas:
- Pois eu saía, sabe? Não havia namoro que me empatasse. Ela é porque é uma tola. Deixa
que namorado tome conta dela. Não tá vendo que eu... - e foi embora, não sem lançar antes
um olhar de profundo desprezo ao futuro bacharel que assoviava, tentando bancar o
indiferente.
Aí ficaram os dois namorados calados. De vez em quando, Maria dos Reis espiava,
Teodoro espiava, nenhuma palavra. Porém, na hora de despedir-se, ele avisou:
- Se tiver com vontade, saia. Mas fica tudo acabado entre nós.
Ela quis responder, ele já ia pelo meio da rua, nem se despediu. Por isso ("bruto, bruto,
bruto") ela, na cama, resolve sair na prancha custe o que custar.
Mas não saiu coisa alguma. Não só estava totalmente arrependida no dia seguinte, como
também dona Marocas, quando soube do caso, ficou tiririca, mandou chamar Antonieta,
gritou-lhe na cara:
- Pensa que acaba assim o noivado de minha filha? Como não arranjam noivo, andam de
namorado em namorado, todas cinco, todas cinco, sim senhor, quer ver se toma o noivo das
outras com essa história de prancha. Mas nem pense. Minha filha não sai em prancha
nenhuma. Tá noiva, vai casar, não é uma sirigaita como você que vai tomar o noivo dela,
não. Saia daqui com sua prancha, vá se estourar no meio dos infernos.
Tia Clara apoiou inteiramente dona Marocas. No fundo, Maria dos Reis apoiou também,
começou a achar suspeito aquele grande interesse de Antonieta pela sua presença na
prancha. E se fosse mesmo um plano para tomar-lhe o noivo? Essa gente é capaz de tudo...
Antonieta é que nem ligou. Os ensaios tomaram-lhe todo o tempo. As Felizes Borboletas
pretendiam, nesse ano, conquistar os dois prêmios: o de beleza e o de animação. Seu
Reinaldo dos Santos Ferreira dizia que "seria um triunfo só comparável aos de Alexandre
na antiguidade e aos de Napoleão na Idade Moderna". E foi mesmo. Na terça-feira, após a
conquista dos dois prêmios, a prancha vinha festejando numa alegria imensa, quando, ao
passar na Praça Castro Alves, Antonieta descobriu Maria dos Reis que ia pelo braço do
noivo, um lança-perfume na mão, atrás a mãe e a tia, solenes os quatro, marchando pelo
Carnaval com passos medidos e rostos sérios. Então as Felizes Borboletas cantaram ainda
mais alto, tão alto que Maria dos Reis não pôde fingir que não ouvia e teve que parar, olhar,
apertar os lábios para que os soluços não rebentassem.
169
S – Então o que eu acho é assim. Eu acho que quando isso acontece [Santina
está falando de uma situação de traição] é porque entre os dois não tem mais
aquele amor que tinha, porque se o homem faz isso ou ele é sem vergonha
ou o que tinha entre os dois acabou, porque tem homem que faz isso como
sem-vergonhice, não é porque a mulher é mal, que é isso, que é aquilo, não.
Ele nasceu pra fazer e vai continuar fazendo e ninguém conserta ninguém. E
não vem falar: “ah eu vou ficar com tal pessoa e ela vai mudar e vai ser
diferente comigo. Não vai acontecer isso”. Que não acontece o que?!
Acontece, sim, ninguém muda ninguém, não.
31
A citação a que Scherma e Turati fazem referência foi retirada de VOLOCHÍNOV, V. N. (1930). Estrutura do
enunciado. (tradução de Ana Vaz, para fins didáticos).
Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/81664106/BAKHTIN-Estrutura-Do-Enunciado#scribd.
171
um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem, mas de repente piorou. Uma febre, só
febre....- Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a
expressão doce. - Só sei que Deus não vai me abandonar.
- É o caçula?
- É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de
mágico quando de repente avisou, 'vou voar!' A queda não foi grande, o muro não era alto,
mas caiu de tal jeito... tinha pouco mais de quatro anos.
Atirei o cigarro na direção do rio, mas o toco bateu na grade e voltou, rolando aceso pelo
chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o
assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
- E esse? Que idade tem?
- Vai completar um ano. - E, no outro tom, inclinando a cabeça para o ombro: - Era um
menino tão bonzinho, tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía
nada, mas era muito engraçado... Só a última mágica que fez foi perfeita., 'Vou voar', disse
abrindo os braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços -
os tais laços humanos - já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante.
Mas agora não tinha forças para rompê-los.
- Seu marido está a sua espera?
- Meu marido me abandonou.
Sentei-me novamente e tive vontade de rir. Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira
pergunta, mas agora não podia mais parar.
- Há muito tempo?
- Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem! Quando ele
encontrou por acaso com uma antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma
brincadeira, a Duca enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito...' E não falou
mais no assunto. Uma manhã ele levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal,
brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, e eu estava na cozinha
lavando a louça e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lembro até que eu
quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela de arame no
meio...Mas eu estava com mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta.
Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou
professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as
sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente
participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa,
perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos
braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma
apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa
irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
173
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê,
perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era
a tal fé que removia montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou
com voz quente de paixão:
— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí
pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele!
Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com
tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer
só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma
vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como
dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na
minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no
jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e
me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol
batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma
coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale
novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para
dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o
contra o peito. Mas ele estava morto.
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela
descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma
larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar
a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu
pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
174
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão
definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada.
Fiquei olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia.
Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na
noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo
com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver
o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
S – Também tem uma história que eu já ouvi, é curtinha. [...] foi numa noite
de Natal, Jesus chegou pra um moço e falou assim “ó, você prepara sua casa
que essa noite eu vou jantar na sua casa”. E ele preparou a casa dele, uma
mesa farta, só que antes de Jesus aparecer, pra jantar na casa dele como ele
tinha prometido, chegou uma criança toda suja, descalça, pé no chão, e viu
aquela mesa farta e o frango, que o frango era o mais especial que ele não
queria mexer porque era pra Jesus aquele frango. Ele pediu uma coxa. Se o
moço dava uma coxa do frango pra ele comer. Ele, né, tirou uma, mas ainda
ficou uma. Deu uma coxa do frango pro moleque comer, o moleque comeu,
agradeceu e foi embora. Passaram algumas horas o moleque voltou de novo.
Pra ir testando até onde a fé do homem ia, né. Pediu a outra coxa. Aí o
homem falou assim: “estava esperando visita”, mas, tudo bem, ele pode
comer a outra coxa, mas, ainda sobra o resto do frango. E ele deu a outra
coxa. E foi embora, aí passou umas horas, “mas Jesus não vem mais a essa
hora, já tá ficando tarde, não vai vir mais a essa hora”. Aí passou um
pouquinho aí ele falou assim: “é, Jesus, eu preparei a mesa bonita, mas,
apareceu um menino assim, assado, aí eu peguei as coxas do frango e dei”.
175
Aí Jesus falou: “não, eu bati na sua porta e você me atendeu, aquela criança
que pediu o frango era eu; você já matou minha fome e matou minha sede”.
Então, agora, voltando ao texto, quem vai dizer que aquele velho que estava
ali [o personagem do conto], às vezes não era Jesus disfarçado também?
GDC – A pessoa às vezes fica esperando Deus aparecer ali na sua frente. As
pessoas precisam abrir o olho e observar: não é que Deus está em tudo, mas
Deus pode aparecer, porque Ele não vai descer do céu pra falar com a gente,
Ele está usando alguém pra falar com as pessoas e as pessoas estão com os
olhos fechados, coração fechado, não estão abrindo uma oportunidade pra
Deus agir.
GDC – Não adianta ficar desesperado. O tempo de Deus não é o mesmo que
o nosso.
aparecem na interpretação dos contos. Assim, vejamos mais alguns exemplos em que
podemos identificar algumas ideologias relacionadas a essa categoria:
S – É porque é noite de Natal, né? Deus quis dar esse presente pra ela e
ressuscitar o seu filho. Já pensou no outro dia, chegar o Natal, e o único
filho, a única coisa que ela tinha era o filho. [...]. A fé salvou a personagem.
Temos de considerar ainda que não se pode compreender uma obra literária
deixando de lado as interações sociais pelas quais as pessoas constroem seu corpo ideológico,
177
uma vez que todo texto pressupõe um destinatário que possui uma atitude responsiva ativa,
nos termos bakhtinianos. É por isso que a escritura literária, dando espaço para um
pensamento artístico plural, tem o leitor como ente imprescindível, o qual dialoga com a arte
e lhe confere a sua interpretação pautada não apenas no que o autor comunica, mas também
com base em suas referências de vida e linguagem.
Retomamos agora a última fala de Santina. Já mencionamos que os discursos
que compõem a nossa forma de ser no mundo vêm de diferentes áreas da nossa vida, já que
vivemos relações e diálogos com pessoas distintas e em contextos comunicativos variados.
Nesse ponto, retomamos Bakhtin com a sua teoria de que é na dinâmica social da linguagem
que estruturamos as relações interpessoais, de modo que, pela linguagem, podemos explicar
práticas cognitivas e sociais. Essa argumentação vale para exemplificar a força das palavras
de Santina ao dizer: “a fé salvou a personagem”. Santina faz essa interpretação porque
provavelmente, na sua vida real, é nisso que ela acredita: que, pela fé, podemos ser salvos,
podemos enfrentar as dificuldades e superar os desafios.
Quando tomamos a entrevista de Santina para respaldar nossa análise,
percebemos que a quantidade de vezes que ela fala de Deus não é mero vício de linguagem.
Deus é o centro de todas as coisas, a Ele Santina credita todas as suas vitórias, dando-Lhe
graças também pela superação dos problemas. Os negritos abaixo são nossos, a título de
realce do que estamos argumentando:
S – Eu já tinha meu segundo filho, foi aí que eu consegui minha casa, foi
uma coisa que eu não tinha e eu também consegui. Uma grande conquista na
minha vida, uma vitória que é a gente ter a casinha da gente, ter o cantinho
da gente. Eu consegui também, graças a Deus.
[...]
[...]
[...]
178
[...]
[...]
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de
roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem
por estas bandas? (TELLES, 2014, grifos nossos).
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto
resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até
que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso
diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-
me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde
e quente. Verde e quente. (TELLES, 2014, grifos nossos).
L – O texto, acho que ele fala umas duas ou três vezes a palavra verde, né?
Termina com verde, verde quente, né? Esse verde, pra mim, me lembra
muito esperança.
O verde lembra esperança porque esse conceito está fortalecido entre algumas
culturas e grupos sociais. Não deixa de ser uma ideologia também e, se buscarmos o
significado das cores dominantes no Natal, veremos que o verde está entre elas e representa
180
32
O verde e o vermelho são cores dominantes no Natal. O verde é renovação, esperança, regeneração. O verde
das plantas capta a energia solar e pelo processo de fotossíntese a transforma em energia vital. O vermelho está
ligado ao fogo e ao poder, tanto que aquecer como de destruir, e também ao amor divino. O dourado também é
utilizado, e está associado ao sol, à luz, à sabedoria e principalmente a luz da Ressurreição de Cristo, como uma
espécie de transformação do material para o espiritual.
(fonte: http://www.comamor.com.br/simbolos_do_natal.asp acesso em 25/01/2015).
181
quem os canoniza e como esse processo se dá. Não nos falta interesse nessas questões,
entretanto, deixamos esses questionamentos para futuras pesquisas e retomamos brevemente o
que a literatura nos aponta em torno das características da obra clássica, a sua função e
importância na formação do leitor literário e os motivos pelos quais os clássicos são eleitos
nas atividades de Tertúlia Literária Dialógica.
Muitos docentes, estudiosos e até leigos pensam ser impossível trabalhar os
clássicos com determinadas faixas etárias ou com certo público, especificamente, o de classe
popular, acreditando que essas pessoas têm pouco referencial linguístico para compreender
tais obras. As Tertúlias Literárias Dialógicas provam, justamente, o contrário: é possível ler os
clássicos em uma sala de aula na periferia da cidade, por exemplo, com alunos de baixa
escolaridade.
Os clássicos têm um papel importante na formação dos leitores literários, pois
é por meio deles que compartilhamos um arcabouço artístico e cultural que permite o
encontro com gerações passadas e a reflexão sobre situações do presente; é por meio deles
que nos identificamos em muitos aspectos da condição humana, uma vez que os enredos
falam de alma, de sentimentos, dores, paixões e emoções diversas. Como definiu o escritor
italiano Ítalo Calvino (2007), os clássicos trazem as marcas das leituras que precederam a
nossa e os traços nas culturas que atravessaram. A complexidade de seus conflitos perpassa
por gerações e é sempre atual.
É função da escola possibilitar o acesso à literatura de qualidade e de forma
prazerosa, estimulando o gosto pela leitura, papel este bem cumprido por meio das atividades
de Tertúlia Literária Dialógica, as quais, ao eleger os clássicos, rompem com as barreiras
elitistas culturais que determinam qual grupo social é capaz ou não de ler uma literatura de
qualidade indiscutível, democratizando, assim, o acesso à cultura a todas as pessoas.
Além disso, muitos questionam por que ler os clássicos e não outros livros,
uma vez que há inúmeras obras que permitem várias interpretações e desvendamento de
ideologias. Encontramos a resposta a este questionamento no portal lançado pelo Instituto
Natura, que divulga e apoia as ações da UFSCar no contexto das Comunidades de
Aprendizagem, do qual extraímos alguns trechos:
182
(Fonte: http://www.institutonatura.org.br/blog/por-que-estimular-a-leitura-
dos-livros-classicos/ Acesso em fev. 2015).
33
A obra clássica de Franz Kafka é A metamorfose e não o conto “O exame”. Já salientamos, pela entrevista
com o professor moderador, que no início das atividades de Tertúlia Literária Dialógica na escola os professores
optaram por trabalhar com os contos que aqui apresentamos ao invés de escolher uma obra mais extensa,
contudo, o tema da condição humana tão caro aos clássicos está também presente brilhantemente neste conto do
autor.
183
estava passando por um exame, do qual nem ele mesmo tinha conhecimento. O criado parece
querer fugir, no que é impedido por certo hóspede que o aborda, dizendo: “–Fica-te!, disse.
Isto era somente um exame. Aquele que não respondesse às perguntas está aprovado no
exame” (KAFKA, 2013).
E, dessa forma, o conto termina, dando margem para muitas interpretações.
Um conto extremamente curto, sintético, como são muitos contos de Kafka, inconcluso e
aberto a leituras distintas. Assim, puxando o fio do novelo de interpretações tecido pelo autor,
foi Adriana quem lançou a primeira discussão sobre o texto, argumentando aos colegas de
turma sobre a paralisia do criado diante das situações da vida, o que pareceu incomodá-la:
“Ele não se sentia como os outros. Eu acho que ele queria ser, talvez, melhor. Não queria
enfrentar fila; ele queria todas as coisas com facilidade”.
Considerando a trajetória de vida difícil de Adriana, passando fome e frio nas
ruas, sem abrigo e sem família, ela se mostra bastante incomodada com o perfil estático do
personagem, que não se movimenta em nenhuma direção durante todo o conto e sequer se dá
ao trabalho de enfrentar uma fila, quanto mais os desafios da vida ou um exame qualquer.
A constituição da consciência do personagem, de fato, intrigou não só Adriana,
como também outros participantes. Trazendo esse tema para os estudos bakhtinianos, vemos
que o filósofo também se preocupou com a constituição do indivíduo e abordou a questão
procurando descrever a realidade dos problemas ideológicos, considerando-a não apenas
como uma manifestação psicológica da consciência, mas revelando a forma como a
linguagem se relacionava com a consciência e em que medida era determinada pela ideologia.
Nesse sentido, Bakhtin (2010) orienta seus leitores sobre como pode se dar o
desvendamento das ideologias dentro do discurso: através do estudo do papel da língua e não
do estudo da consciência individual. A ideologia existe a partir dos signos e sempre reflete ou
refrata uma realidade. Os signos, por sua vez, emergem do encontro entre uma consciência e
outra, isto é, são criados nas relações sociais. É por isso que as ideologias podem se revelar
tanto por meio do texto escrito, no caso, um conto, quanto por meio das falas das pessoas, as
quais deixam transpassar suas crenças e valores que formam a sua consciência.
Adriana, por exemplo, trouxe para a formação da sua consciência as ideologias
relacionadas à importância de encarar desafios, de combater as formas de opressão, de ser
185
sujeito da própria história. Ela buscou se movimentar em sociedade o tempo todo: saiu da
casa dos pais, na Bahia, para estudar, enfrentou a hostilidade da irmã, marido alcóolatra,
largou os estudos, morou nas ruas e hoje está terminando o Ensino Fundamental e é dona de
um salão de beleza. Não pode concordar com a atitude do protagonista imóvel de Kafka, mas
consegue fazer uma leitura sobre a paralisia dele. Adriana entende que o criado se sente preso,
por isso, não consegue lutar pelas coisas que quer, como um emprego, por exemplo. Ao lado
de sua interpretação, segue sua argumentação sobre o que é sentir-se preso: “Sentir-se preso é
não ter tempo para si mesmo”.
O comentário de Adriana faz todo o sentido se pensarmos nas atribulações da
nossa sociedade atual, em que, de fato, muitas pessoas têm dificuldade em conciliar suas
tarefas com um tempo para lazer ou para cuidar de seu bem-estar. Contudo, Adriana também
compreende que o personagem pode não ter tanta culpa assim por sua paralisia porque admite
que o medo que ele sente pode ser o agente da sua falta de movimentação no mundo; assim,
associa à leitura do texto às suas próprias vivências:
Pensando nas ideologias do discurso de Adriana, vemos que sua fala anterior, a
de que o personagem de Kafka era meramente um folgado, agora se fragiliza um pouco. Ela
se compadece do criado quando a voz literária que ela ouve toca diretamente em questões do
seu cotidiano. Adriana expressa, neste momento, o discurso ideológico de que o medo impede
as pessoas de agirem e, tal mudança de pensamento é fruto de suas reflexões durante a leitura
e, principalmente, é fruto de uma leitura dialógica em que os participantes vão expressando
suas opiniões e visões de mundo, as quais, no encontro com sua consciência individual,
fazem-na refazer o seu pensamento.
A Tertúlia Literária Dialógica permite esse quadro porque ela é o espaço em
que as pessoas não aprendem, necessariamente, informações sobre o autor ou sobre o gênero
186
literário em questão, tão pouco aprendem formas de leitura mais ou menos bem pronunciadas
foneticamente. Essas aprendizagens podem, sim, ocorrer espontaneamente, mas a função
principal da Tertúlia, nos moldes como elas são desenvolvidas pelo Núcleo de Investigação e
Ação Social e Educativa (Niase/UFSCar), está mais relacionada à troca de conhecimentos, à
possibilidade de expressão respeitosa do pensamento e à conquista de aprendizagens que
extrapolam a simples interpretação do enredo segundo as ideias do autor da obra. Na Tertúlia
Literária Dialógica,
Após a leitura, Adriana traz um relato interessante sobre o ser humano e sujeito
social, contando ao grupo uma experiência vivida:
A – O que aconteceu comigo esses dias atrás, eu estava num ônibus e uma
senhora começou a passar mal, deu convulsão nela dentro do ônibus, e o
ônibus parou e passou aquela crise, mas ela ainda não tinha voltado ao
normal. Todo mundo estava vendo, todos que estavam dentro do ônibus não
fizeram nada... uns começaram a contar a vida, outros começaram falar e
foram falando, falando e eu fiquei muito irritada, e o motorista chamou a
ambulância e a ambulância não vinha logo e eu fiquei muito irritada, fiquei
muito irritada dentro do ônibus porque ninguém fazia nada e eu via a hora
que a senhora ia morrer lá dentro. E eu não tenho firmeza na minha perna,
então, eu comecei gritar, falei pra todo mundo sair da frente, peguei a
mulher, coloquei a mão dela aqui em cima [o gesto indica que Adriana
colocou a mão da senhora em seus ombros], arrastei ela e consegui descer as
escadas do ônibus e coloquei ela sentada num ponto e aí do lado tinha uma
189
farmácia e um moço que estava no ponto pra esperar o outro ônibus viu
aquilo, e ninguém me ajudou a tirar ela. Aí ele foi, chamou o farmacêutico e
eles vieram lá, tudo, e, mesmo assim, o motorista não pôde sair e ele tinha
que assinar, lá, um termo de responsabilidade, mas todos que estavam no
ônibus, ninguém teve coragem de se mover, absolutamente nada. Eles
começaram contar coisa da vida deles, coisa de trabalho [...], eu achei muito
errado. Eu não sei se eles ficaram com nojo daquela pessoa, porque quando
dá convulsão, eles começam dar tapa, fazer coisa feia, mas eu não fiquei
com nojo, aí eu senti orgulho de mim mesma porque eu acho que acabei
salvando uma vida, mesmo que eu tivesse alguma coisa, eu não fiquei com
nojo, fui na farmácia, lavei minhas mãos, tudo, mas eu fiquei lá até o
momento que a ambulância veio.
Alguns trechos dessa fala mostram as ideologias que perpassam pelo discurso
da Adriana em torno do certo e do errado sobre como agir quando uma pessoa desconhecida
passa mal na frente de outra pessoa. A irritação de Adriana por ninguém ter feito nada para
socorrer a senhora que estava doente já nos dá pistas de que, para ela, quando alguém não se
sente bem, é dever ajudar a socorrer. Além disso, para ela, faltou coragem aos demais
passageiros do ônibus para ajudar, o sistema de saúde foi precário, visto que a ambulância
demorou a chegar e, tudo isso, em sua opinião é ideologicamente incorreto.
Adriana reforça sua indignação ao trazer um elemento de sua vida pessoal para
corroborar a argumentação: mesmo sem ter “firmeza nas pernas”, devido ao seu problema
físico, ela gritou, chamou ajuda, pediu espaço e tirou a senhora do transporte coletivo,
colocando-a, de forma mais segura, em um ponto de ônibus. Assim, fica evidente, por sua
fala, que não fazer nada, nesta situação, é a única ação inviável e não compreensível.
Reiteramos que só nos é possível fazermos essas reflexões em torno das
ideologias que estão presentes nos discursos dos participantes porque os fenômenos
ideológicos estão diretamente ligados às formas de comunicação social, comunicação esta que
pode ser textual ou verbalizada. Adriana comunicou-nos suas ideologias por meio de seus
comentários sobre o conto de Machado de Assis e, em sala de aula, isso aconteceu porque
estávamos em um momento de interação social pautado em uma atividade específica: a leitura
dialógica. Essa reiteração se faz importante porque nem todos os momentos em sala de aula
são dialógicos, nem todas as propostas pedagógicas são abertas a discussões dessa natureza e,
principalmente, poucos são os momentos, em âmbito de sala de aula, em que é permitido
190
O que determina o que é certo e o que é errado para a Adriana na situação por
ela relatada é o sistema ideológico que foi absorvido por sua consciência individual. Assim,
os valores sociais que perpassam suas palavras são considerados como de sua propriedade,
pois foram apropriados de uma esfera ideológica relativamente estável que lhe fez totalmente
sentido dentro de suas experiências de vida, sua personalidade e seu modo de enxergar o
mundo. É possível que esses valores não fizessem sentido pelos demais passageiros, os quais
não compartilhavam da mesma esfera ideológica que Adriana, por isso, sem qualquer
constrangimento, não se moveram para socorrer a pessoa que passou mal no ônibus.
191
permeado por ideologias, espera-se uma atitude responsiva por parte do leitor, quer seja um
pensamento, uma contrapalavra, uma reflexão ou simplesmente o riso.
No caso do conto de Machado de Assis, temos enunciados que se deslocam do
campo discursivo ideológico do Direito, enquanto conjunto de leis, para o campo discursivo
ideológico do humor. Tais deslocamentos colocam duas forças em oposição: a da literatura
séria, remetendo ao discurso jurídico, contra a literatura cômica e irônica, sendo no signo
ideológico o local onde essas forças entram no embate. O humor na literatura cumpre o papel
de representar a realidade e o riso que ele suscita desperta os discursos não autorizados, as
contrapalavras que dizem aquilo que ficou velado na seriedade da vida.
O próprio Bakhtin preocupou-se com a questão do riso e desenvolveu uma
teoria altamente inovadora em torno da cultura cômica popular na Idade Média e no
Renascimento em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Para ele, o carnaval seria um conjunto de manifestações da
cultura popular que, transportado para as obras literárias, configuraria o fenômeno da
carnavalização da literatura. O carnaval seria o locus da inversão de papéis, onde a
simbologia permitiria que os marginalizados fossem destaque, onde as barreiras hierárquicas,
sociais, ideológicas, de gênero seriam derrubadas, extravasando um “mundo às avessas”.
Com essas reflexões em mente, considerando a peculiaridade do discurso
humorístico e o tratamento que Bakhtin deu para as questões que envolviam o discurso
cômico por meio de suas concepções em torno do carnaval na Idade Média e no
Renascimento, nossas análises recaem sobre o caráter ideológico dos discursos que ecoaram
da leitura dialógica de um conto humorístico de um escritor que utilizou de sua fina ironia
para criticar aspectos da sociedade da sua época. Nesse ponto, nosso interesse voltou mais
uma vez sobre a fala da Adriana acerca de uma experiência pessoal ao andar também via
transporte coletivo. Ela nos conta:
então é a mesma coisa, a gente sai de manhã pra trabalhar, pega o ônibus,
vem a tarde, aquele ônibus cheio, então tem aquelas pessoas que têm essa
[...] que você falou, né? [...] A gente não se sente bem. Nossa, mas o hálito
dele era muito forte e eu me senti incomodada.
GDC – O problema é que a gente pega ônibus sempre lotado, tem que sentar
perto, quase em cima das pessoas, é um problema isso aí...
Adriana tem um discurso bem-humorado, que fez a turma rir, mas também
expressa por meio dele uma fala séria, desnudando duas situações importantes: o grande
problema social do transporte coletivo lotado (identificado no grupo de discussão
comunicativo) e o bom senso de que as pessoas devem realizar corretamente a sua higiene
quando se está perto de outras pessoas, de modo a evitar desconforto e constrangimentos.
Adriana também faz a denúncia de uma dificuldade comumente relatada pelos estudantes
daquele bairro, a de que as linhas de ônibus que levam até lá são extremamente cheias, sendo
urgente a colocação de novos carros para circulação. Além disso, ela indica algumas diretrizes
de como bem agir em espaços públicos.
Por outro lado, destacamos um trecho de sua fala carregado de ideologias
quando ela afirma que o moço era “até de boa aparência, mas tinha o hálito muito forte”. Pelo
seu comentário, fica subentendido que se a pessoa não tivesse uma aparência apresentável
seria até aceitável o mau hálito, mas o mesmo não é imaginável sendo o rapaz bem apessoado,
ou seja, aqui identificamos a ideologia de que a aparência determina a forma como a
sociedade trata, olha e até julga as pessoas. Essa ideologia também apareceu em alguns
momentos do grupo de discussão comunicativo; por exemplo, na ocasião em que um
estudante lança a seguinte afirmativa “eu sou preto, mas sou limpinho”, sob o riso do grupo,
rendendo-se cruelmente à ideologia do homem branco dominante.
Além da higiene pessoal, outra regra social que precisa ser respeitada refere-se
à questão do barulho, como lembrou um dos participantes que não será identificado porque
não faz parte de nossos sujeitos de pesquisa:
bem?!", e você está lá no ônibus, cansada, com dor de cabeça, vai até
cochilando aí você dá até aquela acordada, né? e tem também a música alta,
né? Você está lá, que aconteceu comigo uma vez: a mulher estava com
nenenzinho dormindo e aí entrou uma moça com celular super alto e o
nenenzinho acordou e começou chorar, e como é constrangedor a gente, às
vezes, não tem coragem de pedir, né? É tão simples: "você podia abaixar um
pouco?”.
transporte público da região e, mais uma vez, abordando a questão da higiene como regra
básica para o convívio social. Desta vez, seu argumento foi o de que a falta de cuidados com a
higiene é preocupante quando se está em local público, pela maior probabilidade de
proliferação de doenças, como a gripe. Para além do caso de saúde pública, expõe também
seu ponto de vista acerca de um contrato social que, segundo ela, não foi respeitado: o de ao
espirrar ser imprescindível colocar a mão na boca, caso contrário, fica comprovada a falta de
educação.
Vemos, portanto, que esferas ideológicas distintas (da saúde, das regras
sociais, dos comportamentos sociais tidos como preferíveis, etc.) compõem o arcabouço da
argumentação da Adriana, mostrando como o sujeito é formado pelas ideologias e pelas
interações de que participa.
Retomando a análise dos discursos, para além das críticas ao transporte
público, também ouvimos vozes ideológicas em torno de Deus, mais uma vez, e do que se
espera de um cristão. Desta vez, as falas são de Adriana, que aborda questões que envolvem a
religiosidade e que foram depreendidas da leitura dialógica desse mesmo conto “Como
comportar-se no bonde”:
A – Dessa parte dos amoladores, né, que eu queria destacar que fala assim:
"se alguém teve necessidade de contar seus negócios íntimos..." que é
desinteressante, daí ele fala assim: "...primeiro deve perguntar se o
passageiro é católico e cristão..." e se o passageiro for católico e cristão, tem
que agir dessa forma. Assim, se ele quiser pagar seus pecados, se ele quiser
ter compaixão pelo outro e ouvir o que o outro tem a dizer, né? aí, então ele
prefere ou que narre, ou que dê descarga de ponta pés, aí ele diz: "...sendo
provável que ele prefira os ponta pés", né...é melhor você levar uns chutes
do que ficar ouvindo alguém contando suas intimidades. Isso acontece tanto
em ponto de ônibus, se a pessoa fica só parado, só querendo pegar o ônibus e
ir embora, chega alguém, você nem conhece, e a pessoa começa: "blá blá
blá...", contando todos os detalhes da vida, isso não deixa de ser uma forma
de...de falta de respeito, né? Você não percebe se aquela outra pessoa quer te
ouvir ou não. É desrespeitoso também e a gente fica constrangida...
com a do sujeito que faz penitências sendo que, nesse contexto, ao ouvir as conversas
inoportunas, ele estaria pagando os seus pecados. O cristão, para ela, também seria aquele que
tem compaixão pelo próximo, assim como prega os ensinamentos bíblicos e como o próprio
Jesus se mostra na visão dos religiosos cristãos. Adriana trouxe a ideologia da esfera religiosa
para seu discurso, mas complementou sua argumentação de que a atitude do personagem é
desrespeitosa (esfera ideológica das regras socioculturais), o que nos mostra que diferentes
campos ideológicos estão em diálogo na formação discursiva de cada um.
Uma vez que estamos falando de regras de comportamento social, veio à tona a
questão da regulamentação e fiscalização dessas regras por meio de leis, afinal, o próprio
conto é elaborado na forma de artigos jurídicos. O assunto surgiu pelo destaque do Art. IV –
Dos quebra-queixos – que estabelece: “É permitido o uso dos quebra-queixos em duas
circunstâncias: – a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer”.
Os participantes não sabiam o que era “quebra-queixo”, por isso recorreram ao
dicionário e encontraram a palavra como sinônimo de charuto. Neste instante, Adriana fez um
comentário relacionado à lei antifumo (Lei nº 13.541/09), que proíbe, entre outras coisas,
fumar em ambientes fechados públicos e privados. Adriana concordou com a lei porque esse
código deixou as pessoas mais conscientes sobre como se comportar em locais coletivos.
Exemplificando, a participante argumentou:
pode ser regulado por leis, por isso, é preciso agir com consideração e coerência dentro dos
coletivos.
Finalizamos nossas análises desta categoria com um exemplo de ação
respeitosa dentro do transporte coletivo, pensada e exemplificada pelos próprios participantes:
se o usuário for descer logo, deve posicionar-se perto da porta; se o ônibus estiver cheio, as
pessoas devem pagar a passagem com antecedência e não na hora de descer; por fim, de
preferência, deve-se entrar no coletivo com o dinheiro da passagem em mãos, para acelerar a
saída do ônibus e nunca ficar interrompendo a passagem pela catraca.
Essas foram as reflexões finais suscitadas da leitura dialógica do conto
machadiano, lembrando que toda a formação ideológica dos participantes e muito de suas
experiências pessoais contribuíram para que eles associassem o enredo com as regras de
comportamento social e para que demostrassem a sua forma de pensar sobre a convivência
coletiva. E para dar seguimento às análises, passamos a uma categoria bastante conectada a
essa que acabamos de discutir que se refere à luta de classes, tema do próximo tópico.
4.1.5 “Sou um criado, mas não há trabalho para mim”: algumas questões
sobre luta de classes
exame”, de Kafka, por exemplo, José Edson fez uma análise totalmente conectada à diferença
de classes sociais ao relacionar a personagem que ficava observando as pessoas de um
cômodo situado na parte superior de uma casa com a figura de um gerente, apesar de isto não
ser lido diretamente na história. A conclusão do educando nasceu do contexto do enredo, em
que um personagem chamado apenas de criado passa por um exame (talvez em busca de um
emprego) e pela metáfora da altura em que o personagem se colocou em seu posto de
observação. A interpretação de José Edson com relação à personagem de que falamos surge
com essas breves palavras:
J – Ele falou que conhecia o criado... mas que o criado ficava na parte de
cima e não no quarto dele... eu acho que ali, sei lá, podia ser, vamos supor,
um gerente do hotel, pois o gerente é quem se acha superior, que fica por
cima.
GDC – Nem todo chefe é orgulhoso, mas eu concordo que a maioria “se
acha” mesmo, se sente superior só porque tem uma empresa, uma loja... é
assim mesmo essa situação aí.
J – Eu acho que encaixa na história porque a vida dele é mais uma rotina.
Ele tá lá talvez como aposentado e uma rotina um pouco mais tranquila, né.
[...] Eu acho que é uma pessoa aposentada já que ela não trabalha mais; ela
quer trabalhar, mas como é aposentado não consegue trabalhar... É isso.
Para José Edson, o aposentado é aquele indivíduo que, por não mais trabalhar,
pode ter uma rotina de vida mais sossegada. Entretanto, chamou nossa atenção o trecho em
que ele diz que, por ser aposentado, o personagem “não consegue” trabalhar. Trata-se da
reprodução da ideologia da improdutividade, de sujeito descartável que mencionamos há
pouco. A negativa que destacamos (“não consegue”) é exatamente o reflexo da visão negativa
do próprio sujeito idoso dentro da nossa sociedade. Tal ideologia é tão forte que perpassa
diversas áreas do conhecimento, inclusive a psicologia, a pedagogia, entre outras, quando
afirmam em suas teorias equivocadas que os mais velhos não têm capacidade aprender como
os jovens, por exemplo. Este é um discurso que ouvimos até mesmo dos próprios educandos
da EJA quando querem justificar suas dificuldades com os estudos, as quais são muito mais
203
por falta de tempo de dedicação, por excesso de preocupações e de trabalho do que por
incompetência para aprender.
É importante destacar que as falas de José Edson não são apenas o suporte de
um discurso cujo agente são as classes e as frações de classes sociais. Acreditamos que o
sujeito reproduz, sim, muitos discursos que assimila durante a sua formação, mas não
defendemos que a realidade impõe o que o indivíduo pensa de modo tão automático e direto.
Somos todos frutos das interações sociais e das ideologias circundantes, mas também
consideramos o discurso como um modo de representação e de ação em que as pessoas
podem agir no mundo e sobre ele. As ideologias sobre as quais os sujeitos foram expostos
durante a sua vida toda têm um papel significativo na formação do indivíduo, conforme temos
demonstrado nesta pesquisa, mas os sujeitos são também capazes de lutar contra essas
ideologias, principalmente as propagadas pelas classes mais privilegiadas, e rever discursos
tidos como dominantes. A educação e o estímulo ao pensamento crítico pelos educadores nas
escolas, por exemplo, são fundamentais nesse processo.
Apesar de ter achado que o personagem intitulado criado é um aposentado,
concordando, assim, com José Edson, a participante Adriana fez uma leitura totalmente
distinta da do colega para chegar a essa mesma conclusão. Ela não reproduz o discurso de que
o aposentado é o sujeito inútil na sociedade, mas argumenta que o personagem pode, sim, ser
um aposentado apenas por questões linguísticas intrínsecas ao conto. Vejamos a que
conclusão interessante Adriana chega após a leitura do seguinte trecho:
Assim permaneço, pois, no catre, no quarto de criados, o olhar fixo nas vigas
do teto, durmo, desperto e, em seguida, torno a adormecer. Às vezes cruzo
até a taverna onde servem cerveja azeda; algumas vezes por desfastio
emborquei um copo, mas depois volto a beber. Gosto de sentar-me ali por
que, atrás da pequena janela fechada e sem que ninguém me descubra, posso
olhar as janelas de nossa casa. Não se vê grande coisa; sobre a rua, dão,
segundo creio, apenas as janelas dos corredores, e além do mais, não
daqueles que conduzem aos aposentos dos senhores; é possível também que
eu me engane; alguém o sustentou certa vez, sem que eu lho perguntasse, e a
impressão geral da fachada o confirma. Apenas de vez em quando são
abertas as janelas, e quando isso acontece, o faz um criado, o qual, então, se
inclina também sobre o parapeito para olhar para baixo um instantinho. São,
pois, corredores onde não se pode ser surpreendido. Além do mais não
conheço esses criados; os que são ocupados permanentemente na parte de
cima, dormem em outro lugar; não em meu quarto. (KAFKA, 2013).
204
4.1.6 “Pois eu saía, sabe? Não havia namoro que me empatasse. Ela é uma
tola. Deixa que namorado tome conta dela”: a ideologia sobre as relações de gênero34
sociais e ideológicas pelo viés bakhtiniano. Assim, não temos a intenção de nos aprofundar
em questões que tangem os estudos de gênero, mas pretendemos identificar as ideologias que
percorreram os comentários dos nossos participantes em torno do tema, principalmente
considerando o estigma do “ser homem” e do “ser mulher” segundo as interpretações dos
contos dialogadas entre os participantes deste estudo. Apesar disso, consideramos as relações
de gênero de maneira mais ampla do que as interações sociais entre homens e mulheres, uma
vez que buscamos compreender os discursos de feminilidades e masculinidades socialmente
construídos e expressos nas vozes de nossos sujeitos de pesquisa.
O debate sobre o teor ideológico pautado nas relações de gênero nos leva a
uma breve discussão sobre a crise do discurso predominantemente masculino e certa abertura
para o discurso feminino na atual sociedade moderna. Sobre a tensão pela qual passa esse
discurso masculino, consideramos que ela representa a própria crise do sujeito moderno, a
qual foi instaurada a partir de descentramentos da subjetividade que retiraram o sujeito
cartesiano de seu centro.
Sobre o assunto, Hall (2006) identifica cinco pilares teóricos que influenciaram
na desconstrução de vários paradigmas culturais: a teoria sociológica de Marx, a psicanálise
de Freud, a linguística moderna de Saussure, a filosofia de Foucault e o movimento feminista,
os quais ocorreram a partir dos anos 60 do século passado. Marx negou a essência individual
do homem e o considerou como historicamente determinado pelas condições de sua
existência. Freud, por seu turno, compreendeu o homem como sujeito moldado pelo
inconsciente. Saussure postulou a língua como um sistema social e não individual de signos e
Foucault afirmou que o poder disciplinar das instituições controla e transforma os indivíduos
em seres dóceis, isolados e individualizados. Por fim, o descentramento derradeiro ocorreu
com o feminismo, que até os dias atuais vem questionando uma identidade androcêntrica e
patriarcal.
Todas essas mudanças culminaram na concepção de identidades plurais e hoje
podemos dizer, inclusive, que não há um modelo único de feminilidade nem de
masculinidade, mas há diferentes inserções dos homens e das mulheres na estrutura social,
política, econômica e cultural. A partir dessas constatações, o homem vê o seu tradicional
papel dominante um tanto abalado, bem como percebe as exigências de novas atribuições
206
J – Meu pai era muito sozinho pra trabalhar e eu tinha que ajudar ele né... e
eu fazia a quinta série, mas não terminava; todo ano era sempre assim: fazia
a quarta, chegava no final quase para acabar aí desistia. Aí continuava de
novo, fazia a quarta o ano inteiro terminava, aí ia para a quinta série, fazia
metade do ano, daí parava... tinha que ajudar o pai e foi assim. Teve hora
que eu tive que sair de casa para ir ajudar minha irmã, que tinha casado logo
e ela precisava ajudar o meu cunhado. Aí eu tive que ir pra casa dela, então,
ali eu lavava, passava, era uma mulher dentro de casa né... e trocava criança,
dava banho, mamadeira, levava pra dormir, fazer janta e ela chegava estava
pronta [...].
identificada, pois não faz parte dos nossos sujeitos de pesquisa, comentou sobre as
dificuldades que a mulher encontra ao ter de andar em um transporte público, principalmente
se este estiver lotado, relatando que uma vez ela estava sentada no banco de um ônibus, do
lado do corredor, quando um rapaz parou de pé, ao seu lado, encostando e esfregando a
genitália em seu ombro e assim permaneceu durante todo o percurso. Pelo relato da estudante,
isso foi constrangedor; ela não conseguia sequer olhar dos lados porque estava com muita
vergonha e só pensava em sair o mais rápido possível da condução. Nesse instante, outro
participante da Tertúlia, desta vez um homem, que também não será identificado pelo mesmo
motivo supracitado, comentou:
Com a gente [homens] isso não acontece, ninguém encosta na gente... isso é
constrangedor também, não é verdade? A gente entra, todo mundo corre...
constrangedor, não é verdade? Estou mentindo? É um palpite...
L – Na hora que ele fala desse noivo dela, Teodoro, toda vez que era pra ela
ir pro ensaio ele fazia cara feia. Mas será que ele já não conheceu ela assim e
agora quer proibir depois? Tinha que ter visto isso antes de quando ele
conheceu ela. Então, acho que isso não é nem de antigamente, porque isso
costuma acontecer agora também. Muitos rapazes conhecem as meninas
dançando, indo pras festas e depois que ficam com elas acham que podem
proibir tudo. Aqui também, no caso, ele [o personagem Teodoro] fala: “se
estiver com vontade, saia, mas que fique tudo acabado entre nós”. Ele deu
uma intimada nela. Ou ela fica com ele ou vai pular carnaval? Foi aí que eu
disse na parte do machismo dele né...
208
S – Eu acho, na minha opinião, assim como o homem não deve ser machista
nem a mulher, porque eu conheço muitos casos que os homens são uns
bananas e as mulheres partem pra cima, não estão nem aí. Eu acho que um
deve respeitar o outro, independente do sexo. E lá mesmo na rua onde eu
moro tem uma mulher que bate no marido e ele dá dois dela, e ela é
pequenininha, só que ele apronta né, só que aí, no caso, um tem que respeitar
o outro. Acho que num relacionamento isso não deveria existir.
Nesse ponto, Lourdes fez seu um comentário na ânsia por amenizar esse conflito ideológico
de gênero estabelecido. Ela comentou:
L – Eu penso assim comigo, se o homem traiu e a mulher for fazer igual ela
está fazendo o mesmo papel que ele, porque ela vai falar assim: ah porque aí,
então, eu vou dar o troco. Então ela está fazendo o mesmo papel que ele.
Cada um na sua vai embora e acabou, cada um vive a sua vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
_______________________________________
Geraldo Vandré
212
discursivas, mostrando sobre o que falam os sujeitos da EJA quando estão em situação de
encontro com o texto literário e com outros leitores em momento de profunda reflexão e
constituição de conhecimento instrumental.
Discutimos também que no trânsito entre cultura oral e cultura letrada a escola
perdeu muito dos conhecimentos informais que poderiam colaborar para a aprendizagem do
conhecimento escolar, de modo que várias situações de ensino e aprendizagem ainda se
constituem apenas no protagonismo do docente, abafando a pluralidade discursiva e
colocando o educando na penumbra dos processos educativos.
O debate entre cultura oral e cultura letrada levou-nos a aprofundar nossa
argumentação de que a classe popular não é digna apenas de cultura popular, mas que pode e
deve ter acesso à cultura erudita, de refinamento estético, a fim de ampliar suas vivências no
âmbito artístico-cultural e de compartilhar de um conhecimento que já está historicamente
orientado para a classe dominante. Constatamos que é preciso romper as barreiras culturais,
desmistificar a ideia de que há saberes melhores e outros piores e dar oportunidade para que
todas as pessoas tenham acesso ao mesmo conhecimento de qualidade, independente da
condição socioeconômica a que pertence.
Com o intuito de quebrar barreiras e possibilitar que qualquer pessoa tenha
acesso aos bens culturais arraigados na história da humanidade, desenvolvem-se no Brasil e
no exterior as Tertúlias Literárias Dialógicas, atividades que promovem o encontro de pessoas
de diferentes gerações, regiões, modos de vida, etc. para dialogar em torno da leitura de obras
clássicas e constituir conhecimento de qualidade e profundo teor crítico. São atividades
reconhecidas na academia internacionalmente pelos benefícios cientificamente comprovados
em qualquer lugar do mundo, em qualquer contexto. Seu caráter dialógico chamou-nos a
atenção, a ponto de irmos ao encontro dessas atividades para estudar o quanto a dialogicidade
bakhtiniana poderia contribuir para ampliar ainda mais os estudos e pesquisas de âmbito
internacional envolvendo as Tertúlias.
Para Bakhtin, toda obra possibilita o diálogo com o leitor (e acrescentamos:
independente da posição social que esse leitor ocupa), o qual vem para a leitura trazendo o
seu repertório cultural e suas experiências de vida para constituir um arcabouço de
interpretação, portanto, não faz sentido dizer “esse leitor é capaz de ler essa obra e esse outro
214
só tem capacidade para ler essa outra”. Assim, por que não oferecer a todos a oportunidade de
ler obras que estruturam formas refinadas de pensamento, de argumentação e de se
autoenxergar no mundo circundante como sujeitos de ação e transformação? Obras essas
chamadas clássicas por sua qualidade estética, por expressarem, de forma atemporal, a
condição humana, estimulando novas aprendizagens de cunho subjetivo e intelectual. Não se
trata apenas de o docente apresentar obras clássicas aos educandos, mas de dialogar de forma
igualitária e solidária em torno delas, constituindo uma ação educativa respeitosa e
significativa. Para tanto, há princípios da aprendizagem dialógica instaurados nas
Comunidades de Aprendizagem, estudados a fundo pelo CREA e pesquisadores (as) formados
(as) pelo NIASE/UFSCar, que devem ser rigorosamente seguidos e, de forma alguma,
deturpados, com o prejuízo de não se fazer Tertúlia Literária Dialógica e não se alcançar os
benefícios já comprovados.
Para uma compreensão mais ampla sobre um paradigma de leitura pautado na
dialogicidade, buscamos em Bakhtin e em sua “estética do Outro”, se assim podemos chamar,
os respaldos teóricos para discutir a importância de se dar espaço para a alternância de
consciências nos momentos de leitura, ou seja, de se abrir espaço para que cada um pronuncie
a sua palavra de acordo com a sua subjetividade a fim de se complementar e se constituir no
encontro com a alteridade. Para chegar a essas conclusões, fomos à fonte do Materialismo
Histórico Dialético, traçando os pontos de convergência entre Marx e Bakhtin, ampliando o
horizonte de compreensão das formulações em torno da filosofia marxista da linguagem. No
tocante a esta parte da pesquisa, constatamos o quanto consciência e linguagem são produtos
sociais, que nascem da interação entre os sujeitos, estando neste ponto a importância do
caráter dialógico das atividades de leitura compartilhada, como as Tertúlias Literárias
Dialógicas.
Segundo a filosofia da linguagem bakhtiniana, as palavras são encobertas pelo
tecido ideológico, sendo o signo linguístico pluridiscursivo. Dessa elaboração teórica
ramificam-se os conceitos de dialogia, polifonia (específico do romance de Dostoiévski) e
alteridade, sendo que a relação dialógica que constitui os seres humanos não os torna
hegemônicos e detentores de um pensamento único e de senso comum; pelo contrário: a
dialogia os unifica na diferença, ou seja, o Outro é essencial para a formação do Eu. Sem as
215
REFERÊNCIAS
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diálogo. 2011. 63 f. Monografia de Especialização. Centro de Educação e Ciências Humanas
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222
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leitura e a escrita na biblioteca. In: Revista Brasileira de Educação. n. 22, jan-abril 2003.
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APÊNDICES
233
Apêndice A
Transcrição de um dos encontros
234
12/03/2014
P: Pra quem nunca participou, só vale retomar: tudo o que se falar aqui é válido. Nós não
estamos discutindo o certo e o errado. Nós estamos aqui trocando ideias, debatendo ideais, tá?
Teve a necessidade de falar alguma coisa que lembrou, que gostou, que não gostou... e
ninguém vai discordar ou concordar... é só trocando ideias mesmo. Podem começar, quem
quiser.
P: Antes de falar sempre faça a inscrição... para ter esse respeito, tá bom gente? Pode falar
Da.36
Lourdes: É que o Da. e a C. fizeram uma pergunta, e assim... não teve uma resposta, mas a
gente entre nós, pode responder alguma coisa?
P: Pode. Nós estamos discutindo. Assim, desvinculem a tertúlia àquela aula tradicional. Nós
não estamos aqui para dar aula, mas a gente pode perguntar, o outro pode responder. Eu
esqueci de trazer os dicionários, mas de repente eu deixo uns dicionários espalhados... se
alguém quiser procurar uma palavra e ler pra classe... eu depois posso falar, mas eu vou falar
na hora que eu achar que eu devo falar também, entendeu? Depois eu posso retomar... pode
falar Lourdes.
Lourdes: A C. falou do carro alegórico, eu acho que sim né, porque afinal é carnaval a única
coisa que usariam parecido ao carnaval, além das fantasias seria mesmo o carro alegórico,
então talvez seria isso.
35
Cada um dos sujeitos da pesquisa é indicado pela letra inicial do seu nome. Os demais estudantes não são
identificados. Ainda utilizamos a letra P para mostrar as falas do Professor da sala e S para Sabrina.
36
Nome abreviado para ocultar a identificação.
235
D: Desse trecho aqui que ele fala assim: “eu sei que não tem nada demais, mas é por finados
fosse vivo não havia de gostar, ele vivia falando contra a esse namoro na janela, sempre me
dizia: é uma falta de vergonha maior. Esses gabirus encostados nas janelas falando baixinho
para essas sirigaitas. Filha minha não quero que faça isso, se um rapaz tem boas intenções,
que venha conversar dentro de casa, se não tem, ou então, pau nele“. É só sobre esse assunto
aqui, antigamente no meu tempo, também um pouquinho, não muito, mais no meu tempo lá
atrás, existia isso e ainda na nossa idade ainda tem um pouco, que os pais... hoje é tudo liberal
né, mas no meu tempo um pouquinho que eu peguei lá atrás meus pais ainda pegavam no pé,
não liberavam e não deixavam as meninas tão soltas como hoje é. Hoje é liberal, hoje tudo
pode e se você tenta, vai corrigir, no caso os pais ainda são errados. Então eu peguei um
pouco desse assunto aqui, na minha época ainda usava muito, hoje a molecada tá tudo mais
liberal né, e muitas vezes a gente é condenado por querer fazer usar um pouco daquela atitude
lá atrás, ainda hoje em dia a gente é punido.
P: Santina.
Santina: Eu achei aqui muito, foi palavras diferentes né, palavras as vezes difíceis de
pronunciar, de falar e tem pedaços assim que fala muito assim... como é que ela fala...
“fechar a luz” e a gente sabe que é apagar a luz e não fechar né, então tem muita coisa aqui
que tem palavras assim, que a gente fala que é ao contrario do que realmente é.
P: Eu vou me inscrever tá? Eu conheço Jorge Amado, acho ele um autor bem interessante, ele
morreu recentemente, em 2001, e ele tem aquelas grandes obras que a gente conhece porque a
televisão já fez, já adaptou muito pra novelas, séries, as obras dele... a Tieta, é do Jorge
Amado, Gabriela, que recentemente passou com a Juliana Paes, é uma obra adaptada de Jorge
Amado. Dona Flor e seus 2 Maridos né? mas ele tem mais histórias longas que a gente chama
de romances. Contos, assim, dá pra contar nos dedos. São poucas as histórias curtas, os
contos. Bom, mas, enfim, eu gostei muito porque eu gosto do Jorge Amado, e sobre a
prancha eu também achei curioso, eu não conhecia essa palavra para o carnaval. A gente
sempre ouve falar de carro alegórico, de bloco, eu pensei em bloco, sabe esses blocos de
carnaval? Eu acho que é um bloco, um carro que sai essas, no caso, que saiu essas meninas.
Porque tinha o prêmio de beleza, não tinha? De beleza e de animação. Eu achei que era
parecido com um bloco, um carro, eu não sei também como é uma prancha, eu pensei em
carro, um bloco, as pessoas seguindo e essas meninas em cima, não sei. Eu lembro que
algumas novelas de época da rede Globo, às vezes têm, mas não no carnaval, quando tem um
desfile não sei... mas dá pra ver aí o que é, lembra isso pra mim também, um carro, um
bloco... a M. se inscreveu, né M? Pode falar.
236
– Não, sim... mas eu estou falando assim que nem aqui fala sobre prancha tal, achamos que é
algum carro, alguma coisa que eles colocavam em cima da prancha, aí fala que é um
tabuleiro... não ajudou muito não.
P: Você está se inscrevendo Da.? Então vai, mas sempre lembrando disso tá, mesmo pra esses
comentários que eu acho importante, que você deve fazer, mas pra todo mundo sempre se
inscrever porque tem uma questão de respeito. Eu sei que é difícil, mas a gente tem que se
acostumar a essa dinâmica, então, é como se tivesse se inscrito eu passo a palavra pra você
Da., pode fazer esse comentário que é interessante.
– Não, é sério professor. Tem algum dicionário pernambucano ou um baiano, será que tem?
P: Ele perguntou se existe algum dicionário baiano? Eu vou me inscrever então novamente
tá... e eu pergunto pra todo mundo, é uma pergunta. Por que que será que ele falou de um
dicionário baiano? Por que que ele se referiu à Bahia?
P: Hum...tá, ele cita isso, certo?! Eu vou também falar... e o Jorge Amado ele nasceu na
Bahia, ele é um escritor baiano, mas ele fala, de fato, da Bahia.
Santina: Então, aqui fala também sobre as borboletas né, então o que seriam as borboletas,
aquelas mulheres... as pequenas que são mais espertas...
P: Ele falou que borboleta é uma mulher que tem mais corpo.
P: M. ...
– Eu acho que as borboletas que eles querem dizer são pessoas felizes né, porque já fala...
borboletas felizes, são pessoas animadas né, eu acho que deve ser isso...fala borboletas
felizes.
– Eu já falei.
S: Bom, primeiro eu queria falar só pra gente tomar um pouquinho de cuidado né, quando a
gente faz comparação principalmente, tocando no universo feminino, no que diz respeito a
nós mulheres. Será que nós gostamos de ser comparadas? Isso é pra gente refletir, não é pra
responder. Será que nós estamos acostumadas a ser comparadas? A mulher que tem o corpo
de violão, a mulher que... só pra gente pensar se estamos acostumadas com isso, se gostamos,
se não gostamos o que podemos fazer pra isso não acontecer mais ...então é assim não sei,
depois vocês podem também concordar ou discordar comigo, mas pensei nisso na fala do
Dan. É... na verdade a gente pode pensar um pouquinho em tomar um cuidado eu acho com as
palavras, isso vale pra tudo em todos os contextos. Eu acho que os homens também não
gostam de ser comparados e não devem e não merecem. Só pra gente refletir mais um
pouquinho, mas Dan., a sua opinião, lógico, tem a sua validade porque foi a sua interpretação
né... então a pessoa interpreta a borboleta de uma forma, outra pessoa interpreta de outra, eu
posso interpretar como uma fantasia. Não é um bloco de carnaval?! Eu posso interpretar que é
só simplesmente um traje né, então esse era o meu destaque, só pra gente refletir um
pouquinho sobre isso.
– Também pode ser felizes borboletas, pode ser simplesmente um nome, como tem a ala das
baianas, a ala de tal fulana..., pode ser só um nome de uma ala.
P: Santina...
238
Santina: Também eu gostaria muito que quando a gente fosse cada um que quando ler o texto,
aí depois o professor lia o texto inteiro pra gente entender melhor, porque as vezes a gente
lendo a gente tem medo de errar, as vezes a gente erra, então as vezes seria melhor né, o
professor ler o texto pra gente, se tiver dúvida de alguma palavra, a gente ter ajuda.
P: Tá...vou me inscrever tá? A gente pode, então, combinar isso durante a próxima aula e eu
discuto com vocês, de repente eu estou com uma intenção, mas a gente faz os acordos depois,
eu estou com a intenção de trazer o texto sempre antes pra nós. A gente pode fazer já na aula,
não na tertúlia, pra gente vir pra tertúlia já com o texto lido e claro que mesmo assim na
tertúlia a gente faz essa roda pra dar oportunidade de quem quiser ler em voz alta ler, mas a
gente já faz uma leitura contínua, a gente discute na próxima aula, de trazer o texto com
antecedência pra vocês tá?! É melhor mesmo Santina.
Santina: É porque às vezes a gente pronuncia uma palavra e às vezes a outra pessoa não
entende direito né.
Lourdes: Eu vou ler um pedacinho aqui. Bom, eu não sei exatamente em qual paragrafo tá,
porque são tantos...
Lourdes: Aqui... “então Seu Teodoro, não quer deixar a Dos Reis sair na nossa prancha? Só
porque é prancha de gente pobre e a futura esposa de um advogado não pode sair com as
filhas de um escriturado do correio, não é? Se fosse a prancha dos Andrades ela podia, não
é?...”
... será que o pai dela estava sendo preconceituoso só porque a outra prancha era de pessoa
mais humilde ou coisa do tipo? Se fosse uma prancha de uma pessoa digna, ela poderia, será?
P: Eu vou me inscrever tá?! O Seu Teodoro que aparece neste destaque que a Lourdes fez, é o
pai dela ou o namorado? O futuro noivo dela?
Lourdes: Eu acho que é o futuro noivo, porque o pai dela já tinha falecido, eu acho que é o
futuro noivo, porque o pai dela morto não ia falar isso pra ela.
P: Olha as inscrições pessoal. Eu lancei a questão, mas tem que respeitar as inscrições. Então
fala Santina.
Santina: Não... é que eu acho que é o noivo dela, porque o pai dela que a gente sabe, já tinha
falecido né. Parece que já tinha falecido né, tanto que a mãe falava que no final ele não queria
ver as filhas dele namorando na janela, então eu acho que o noivo que quis dizer isso daí.
239
P: Eu vou falar de novo, não tem ninguém inscrito. A reflexão que a Lourdes faz ainda é
válida, ela levanta a questão de um preconceito aí que surgiu. Será que o noivo não queria que
a Dos Reis saísse por uma questão de preconceito? E essa a reflexão que ela traz.
Santina: Eu acho que ele devia ser machista, porque ele não queria ver a namorada dele
envolvida com outras pessoas que não fosse ele mesmo né, porque sempre quando ela queria
ir, ele sempre falava que ela ia, mas não que ele queria que ela fosse né.
Lourdes: Na hora que ele fala desse noivo dela, Teodoro, toda vez que era pra ela ir pro
ensaio e ele fazia caras feias. Mas será que ele já não conheceu ela assim e agora quer proibir
depois? Tinha que ter visto isso antes de quando ele conheceu ela.
P: Pode falar C.
– Então, acho que isso não é nem o antigamente, porque isso costuma acontecer agora
também. Muitos rapazes conhecem as meninas dançando, indo pras festas e depois que fica
com elas acha que pode proibir tudo.
... aqui também no caso, ele fala: “se estiver com vontade, saia mas que fique tudo acabado
entre nós”. Ele deu uma intimada nela. Ou ela fica com ele ou vai pular carnaval? Foi aí que
eu disse na parte do machismo dele né, queria que ela fosse, mas não queria né...difícil...
P: Pode falar M.
– Agora vou fazer a minha crítica. Eu conheço vários advogados, tenho amigos advogados,
fui casada com um Bacharel em Direito e depois ele se formou em Direito e é uma... digamos
assim, um preconceito deles mesmos com as outras pessoas, porque eles estudam muito muito
muito e mesmo que as pessoas sejam iguais, mas eles sempre tem uma critica a fazer com as
pessoas. Eles sempre rebaixam as pessoas e isso eu já vi muito. Eu mesma já tive essa
experiência comigo mesma. Sabe, tem pessoas que acham que é mais que as outras só porque
tem um pouquinho mais de estudo, eles são bem preconceituosos, é uma crítica bem... eu sei
como que é isso!
P: Eu vou me inscrever tá? Eu... eu vejo que surgiram duas questões, duas reflexões bem
interessantes que eu também concordo. Que às vezes dá pra separar e às vezes até ocorre
conjuntamente. Uma é a questão do machismo..., uma sociedade que ainda é machista, sim, e
acredito que nessa época e ainda mais se tratando da região que se passava, devia de ser mais
ainda, então, tem essa questão, independentemente se a pessoa tinha escolaridade ou não. E aí
tem uma outra questão... então, as mulheres, a gente sabe do histórico das mulheres de sofrer
240
muito. Hoje elas conquistaram muitas coisas, mas ainda assim e tem uma questão que é a que
a Marcia colocou que é a escolaridade. Às vezes uma pessoa que tem mais escola, mais
escolaridade se acha superior a outra, mas as vezes isso não é entre homem e mulher, as vezes
é até entre homem e homem, mulher e mulher e aí aqui no caso, pode se agravar no caso da
história, apesar de que a gente não sabe qual escolaridade. Eu não lembro se aparece aí a
escolaridade dela, da noiva, da Dos Reis, da Maria dos Reis, mas aí pode se agravar, então,
por dois motivos: uma por ela ser a mulher e o outro é porque ele é o homem machista e além
de ele ser um homem machista ele se julga superior porque ele tem uma escolaridade, ele é
estudado. Mas são duas questões boas de refletir na nossa sociedade atual inclusive, na nossa
sociedade atual porque realmente eu também concordo que ocorre muito ainda esse tipo de
discriminação, de preconceito. Se alguém mais quiser comentar sobre isso viu, se inscrever
pra comentar.
Santina: Então a gente né, falando sobre essa situação, da pessoa às vezes querer ser livre. A
gente vê no jornal hoje em tudo quanto é lugar hoje, quando a gente abre o jornal ou assiste na
televisão, às vezes a gente vê mulheres morrendo porque quis se livrar do preconceito daquele
homem com elas e é onde que eles não aceitam que elas vão viver a vida delas e acaba com
essas tragédias que a gente vê hoje, então isso já vem de lá de trás. E hoje se uma mulher sabe
mais do que o homem ele já se sente muito pequeno, então sempre um quer ser mais que o
outro.
– Eu acho que esse tipo de pessoa só faz isso porque são inseguras.
P: Pode falar M.
– Aqui nessa mesma questão aqui do Teodoro, ele tá falando sobre a prancha das pessoas
pobres, como que a futura esposa de um advogado ia desfilar tipo numa escola de pobre,
então já tá fazendo a discriminação aqui. Uma filha de um advogado, uma esposa de um
advogado, não poderia sair misturada com as filhas de um escriturário, não é? Já fala, já
discrimina ali mesmo né na própria...
Sabrina: Pegando um gancho da M., ele pode estar falando que é por isso, que ele não quer
que ela desfile, pra não se juntar aos pobres, porém, na verdade, pode ser realmente por
machismo por querer mostrar o seu poder, que quem manda na relação é ele, quem domina é
ele, e quem dá as ordens é ele. Então talvez né M., não sei, ele coloca esse motivo, mas que
pode ser um motivo aparente né.
241
P: Eu vou me inscrever também tá. Tem alguém na frente? Mas o que eu observei aqui,
voltando nesse trecho, não é ele quem fala, não é o Teodoro. Eu vou ler de novo, é uma das
amigas lá, acho que é a Antonieta. Antonieta era uma das quatro que saía na prancha Felizes
Borboletas. Ela que fica indignada com a situação e é ela que questiona, na verdade o
Teodoro não fala nada, mas ele também não se defende, ele simplesmente fala: “se ela tiver
vontade pode sair”. Depois que ele vai falar: “mas se você sair eu termino”. Até aí ele estava
falando isso, mas quem faz essa pergunta, eu estava reparando aqui, é a Antonieta. Ela fala
assim “então seu Teodoro, não quer deixar a Dos Reis sair na nossa prancha hein?” Olha lá
na nossa porque ela era uma das meninas que saia também, uma das mulheres... “só porque é
prancha de gente pobre e a futura esposa de um advogado não pode sair misturada com as
filhas de um escriturário do correio, não é? Se fosse a prancha dos Andrades ela podia, não
é?” Então, na verdade, é a Antonieta cutucando o Teodoro. Ele não fala nada ele fica duro
como um rochedo e ele só fala: “se ela tiver vontade pode sair...” mas é importante a gente
destacar isso, quem questiona é a Antonieta não é ele que fala isso, porque ele falando isso
acho que estaria sendo preconceituoso escancaradamente né, tanto é que eu fico com dúvidas
se é por isso, eu o Alexandre, o leitor deste conto, eu tenho dúvida. Eu acho que é mais pelo
machismo, eu acho... é mais por ele achar. Ela é uma mulher, agora ela é minha futura noiva e
quem manda na relação sou eu. E só pra terminar a minha fala, eu gostei do que a Santina ou
a Dominga falou. Eu não me lembro, ele conheceu ela na prancha das felizes borboletas, acho
que num carnaval, então ele sabia que ela gostava, ele sabia. Porque proibir depois então?
– Mas é o que acontece. É assim às vezes, um homem pensa que a mulher num determinado
lugar, e depois quando ele se aproxima, que eles tem um relacionamento ele já não quer mais,
ele já quer mudar a situação.
– Eles falam que o que é deles, então eles tem que tampar e não pode deixar ela sair sozinha e
não ir no lugar que ele não goste. Tipo assim, se conheceu ela lá no funk e ela estava de roupa
curta, ele não deixa mais.
– Eu acho que tem que aceitar a pessoa como a pessoa é, não querer mudar isso.
P: Eu vou lançar uma questão pra gente ver se dá um debate aqui. E o contrário, porque nós
estamos falando de um machismo, a sociedade nossa eu também acho que ainda traz esse
machismo. Essa questão é muito forte ainda, do homem querer dominar e tudo mais, mas
pode acontecer com uma mulher também, não pode? A mulher fazer isso com o homem, sim
ou não... se alguém quiser fazer comentários... Santina.
Santina: Eu acho, na minha opinião, assim como o homem não deve ser machista nem a
mulher, porque eu conheço muitos casos que os homens são uns bananas e as mulheres
partem pra cima não tá nem ai, eu acho que um deve respeitar o outro, independente do sexo.
E lá mesmo na rua onde eu moro mesmo tem uma mulher lá que bate no marido e ele da dois
242
dela e ela é pequenininha, só que ele apronta né, só que ai no caso um tem que respeitar o
outro. Acho que num relacionamento isso não deveria existir.
Dominga: Por que que numa relação entre homem e mulher, quando a mulher trai ela é
crucificada e quando o homem trai ele passa ileso? Não é uma traição? Não deixa de ser
traição né?!
P: Olha as inscrições.
Santina: Os homens ficam com fama de garanhão e as mulheres de biscate, porque com
mulher um fala eu já catei, outro fala também já catei, o outro fala também já catei, então eles
vão ficar com fama de garanhão e ela vai ficar com fama de galinha também. Eu acho que é
direitos iguais, se um pode o outro também pode, porque chumbo trocado não dói.
P: Só um momentinho, mas a Santina falou mais, então o Da. falou menos, pode falar Da.
– Uma fechadura que abre qualquer porta, com qualquer chave, não é uma fechadura ruim?
Uma chave que abre qualquer fechadura não é uma chave boa? Tem essa não tem?
Santina: Então o que eu acho é assim. Eu acho que quando isso acontece é porque entre os
dois não tem mais aquele amor que tinha, porque se o homem faz isso ou ele é sem vergonha
ou o que tinha entre os dois acabou, porque tem homem que faz isso com sem-vergonhice,
não é porque a mulher é mal, que é isso, que é aquilo não. Ele nasceu pra fazer e vai continuar
fazendo e ninguém conserta ninguém. E não vem falar... ah eu vou ficar com tal pessoa e ela
vai mudar e vai ser diferente comigo. Não vai acontecer isso, que não acontece o que?!
Acontece sim, ninguém muda ninguém não.
P: Dan. ...
– Eu acho que os dois tem que ter o mesmo direito não tem essa, só isso!
Lourdes: Eu penso assim comigo, se o homem traiu e a mulher for fazer igual ela tá fazendo o
mesmo papel que ele, porque ela vai falar assim: ah porque aí então eu vou dar o troco. Então
ela tá fazendo o mesmo papel que ele. Cada um na sua vai embora e acabou cada um vive a
sua vida.
P: Olha, nós vamos terminando, mas não é pra sair do lugar ainda, alguém quer fazer algum
comentário a mais? Principalmente as pessoas que não falaram, querem fazer algum
243
comentário? Os jovens... se sentirem vontade, querem? Nós vamos para as últimas inscrições.
Ninguém quer fazer nenhum comentário a respeito da comparação que o Da. fez da
fechadura... da chave? Algum comentário sobre isso? As mulheres... C, você.
Sabrina: Eu não consigo ficar quieta. Eu ia esperar pra ver se alguém se manifestava, mas eu
queria fazer uma proposta, primeiro pra gente pensar nessas falas que são tidas como naturais,
então, por exemplo: que o homem pode trair, não que nós achamos né, mas que são falas que
são ditas por aí e que as vezes nós vamos introjetando isso, então essa é a primeira coisa, pra
gente sempre refletir um pouco com essas falas que são tidas como normais, naturais, com
esses ditados preconceituosos, com essas brincadeiras que no meu ponto de vista mostram um
preconceito. Eu acho que se a gente tá falando de tertúlia, de respeito, de solidariedade, por ue
nós demos risadas quando o Da. falou? Porque a gente introjetou já um pensamento machista.
Nós mulheres temos também um pensamento machista, nós somos machistas, porque nós
demos risadas do que ele disse. Então, pra gente pensar um pouquinho nisso, pra gente
continuar essa reflexão na nossa vida. Apareceu aqui, mas que a gente possa levar isso no
nosso dia a dia, pras nossas relações, na nossa casa, pro nosso diálogo com nosso marido,
nossa esposa... então é isso.
P: Então sempre a gente termina a tertúlia com a leitura do registro... dos assuntos que foram
discutidos. E vocês vão ver quantos assuntos foram discutidos e eu gostaria que vocês
pensassem no seguinte, como que uma leitura como esta, compartilhada, expondo suas ideias
o outro também, como que ficou uma leitura muito mais fácil, de um texto que às vezes
poderia ser um texto mais complicado de se ler sozinho, então, ficou uma leitura mais gostosa
e mais fácil né, um ajuda o outro também, nessas interpretações e nessas ideias, nessa troca de
ideias, tá bom?! Então agora a Sabrina vai fazer a leitura. O texto vai ficar com vocês,
guardem, façam uma leitura depois, agora vocês sozinhos é importante pra não perder todo
esse espírito. E só uma coisa que eu peço depois, arrumar as carteiras. Cada um colocando a
sua no lugar porque amanhã tem aula aqui, mas antes silêncio que a Sabrina vai fazer a leitura
do registro.
Sabrina: O que são pranchas? Foi a primeira questão colocada ao grupo. Carros alegóricos,
blocos carnavalescos, foram essas algumas das compreensões do vocábulo. Destacou - se que
antigamente os pais eram menos liberais do que hoje e a repressão dos pais tem sido vista
como algo errado na nossa sociedade. Houve uma opinião de que o texto traz algumas
palavras diferentes e difíceis. Explicou-se que o Jorge Amado é considerado um grande
escritor, com obras adaptadas para novelas. Questionou-se por que o conto traz a questão do
Baiano, do ser baiano, vocábulo baiano. Chegou-se à conclusão de que na Bahia tem a
244
referência ao carnaval e que o próprio escritor Jorge Amado é baiano. E o que seriam
borboletas? Foi outro questionamento, seriam mulheres ousadas? Mulheres que têm um corpo
bonito? Mulher feliz, animada? Seria só o nome de uma ala ou fantasia? Fica a reflexão e a
compreensão de todos e será que gostamos de ser comparadas a animais ou a outros objetos?
Discutiu-se também uma outra dinâmica para atividade de tertúlia uma outra forma de ler o
texto. Um destaque importante foi em relação ao preconceito relacionado à participação de
blocos... blocos de ricos e pobres. Falou – se também sobre a questão da proibição do
machismo que é um assunto bem atual, uma vez que os homens ainda acham–se com direito
de proibir algumas atitudes de suas mulheres. O preconceito em relação à profissão e ao
estudo também foi destacado, no sentido de que algumas pessoas podem desmerecer outras
por terem tido mais condições de estudo. Retomou-se dois pontos importantes, a questão do
machismo e, como já dito, da baixa escolaridade. Preconceito e opressão da mulher têm
acarretado inclusive tragédias na nossa sociedade, porém, o preconceito pode vir da
insegurança. Quem questiona a participação no bloco é Antonieta, porém, de fato, o noivo já
conheceu a noiva na prancha e agora quer proibi-la, mostrando a sua necessidade de dominar
a relação, mas ao final lançou-se uma reflexão: e o contrário a mulher pode agir como o
homem do conto? A importância de ser ter o respeito independente do sexo do parceiro foi
um dos destaques. Por que quando a mulher trai apenas ela é crucificada? Mais uma
reflexão... e um participante retomou a questão da fama e das falas solidificadas na sociedade
consideradas como naturais, é preciso ter cuidado com isso. Por fim o grupo chegou à
conclusão que todos merecem respeito e os mesmos direitos. Se alguém quiser complementar
alguma coisa...
P: Bastante coisa nós discutimos. E você percebe que ela não fica anotando nome pra falar,
ela não precisa. Dominga disse isso, Santina disse isso... o nome não é importante pra nós e
sim os assuntos que foram levantados, discutidos. Então daqui quinze dias nós temos uma
outra tertúlia, um outro conto, tá bom? Então só peço agora que vocês guardem o texto com
vocês e arrumem as carteiras.
245
Apêndice B
Roteiro da Entrevista
246
Roteiro de Entrevista
1) Conte um pouco sobre a sua vida: onde nasceu, sua idade, onde mora e trabalha, sua
trajetória na escola...
5) Conte alguma experiência de leitura que marcou você (pode ser uma lembrança positiva ou
negativa).
11) Antes de participar da tertúlia, como a leitura era trabalhada nas aulas de português desde
que você começou a frequentar a EJA?
12) Você lê fora da escola? O que e com que frequência você lê?
14) Fale um pouco sobre a experiência de leitura que você vive dentro da Tertúlia Literária
Dialógica.
16) (SE A RESPOSTA ANTERIOR FOR AFIRMATIVA) Que estratégia você usa ou acha
que deveria usar para tentar sanar essa dificuldade?
17) Qual a diferença entre ler sozinho(a) em voz alta ou baixa e ler em grupo? Qual é melhor?
19) Em sua vida toda, você tem mais lembranças positivas ou negativas com relação à leitura?
Dê exemplos?
20) Se você tivesse que definir, com uma palavra, o tipo de leitor que você é, que palavra
você usaria?
23) Você acha que a leitura traz benefícios para as pessoas? Se sim, quais?
ANEXOS
249
Anexo A
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos – UFSCar
250
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
SÃO CARLOS/UFSCAR
Página 01 de 02
252
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
SÃO CARLOS/UFSCAR
Assinado por:
Maria Isabel Ruiz Beretta
(Coordenador)
Página 02 de 02
253
Anexo B
Modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
254
Você foi selecionado (a) para a pesquisa por fazer parte de um grupo de Tertúlia Literária
Dialógica em contexto de Educação de Jovens e Adultos. Sua participação não é obrigatória.
Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com a pesquisadora ou com a escola.
Você receberá uma cópia deste termo onde consta o contato da pesquisadora, podendo tirar
suas dúvidas sobre o projeto e sua participação agora ou a qualquer momento.
255
_____________________________________
Sabrina Maria de Amorim
Tel. 3361-3174
Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação na pesquisa e
concordo em participar.
_________________________________________
Assinatura do/a participante (sujeito da pesquisa)
256
Ele (a) foi selecionado (a) para a pesquisa por fazer parte de um grupo de Tertúlia Literária
Dialógica em contexto de Educação de Jovens e Adultos. A participação dele (a) não é
obrigatória.
A qualquer momento ele (a) pode desistir de participar e você também pode retirar seu
consentimento.
Sua recusa ou a recusa dele (a) não trará nenhum prejuízo em sua relação ou na relação dele
(a) com a pesquisadora ou com a escola.
257
Você receberá uma cópia deste termo onde consta o contato da pesquisadora, podendo tirar
suas dúvidas sobre o projeto e a participação nele agora ou a qualquer momento.
_____________________________________
Sabrina Maria de Amorim
sa_amorim@hotmail.com
_______________________________________ ___________________________________________
Assinatura do/a participante (sujeito da pesquisa) Assinatura do/a responsável pelo(a) participante
258
Anexo C
Termo de Autorização para Utilização de Imagem e Som de Voz para fins de pesquisa
259
Termo de Autorização para Utilização de Imagem e Som de Voz para fins de pesquisa
Minha imagem e som de voz podem ser utilizados apenas para análise por parte da equipe de
pesquisa, apresentações em conferências profissionais e/ou acadêmicas, atividades
educacionais e publicações com fins acadêmico-científicos.
Tenho ciência de que não haverá divulgação da minha imagem nem som de voz por qualquer
meio de comunicação, sejam elas televisão, rádio ou internet, exceto nas atividades vinculadas
ao ensino e à pesquisa explicitados acima. Tenho ciência também de que a guarda e demais
procedimentos de segurança com relação às imagens e sons de voz são de responsabilidade da
pesquisadora responsável.
Deste modo, declaro que autorizo, livre e espontaneamente, o uso para fins de pesquisa, nos
termos acima descritos, da minha imagem e som de voz.
Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com a pesquisadora responsável pela
pesquisa e a outra com o (a) participante.
____________________________ ________________________________
Assinatura do (a) participante Sabrina Maria de Amorim (pesquisadora responsável)
Termo de Autorização para Utilização de Imagem e Som de Voz para fins de pesquisa para
menores de 18 anos
A imagem e som de voz dele (a) podem ser utilizados apenas para análise por parte da equipe de
pesquisa, apresentações em conferências profissionais e/ou acadêmicas, atividades educacionais e
publicações com fins acadêmico-científicos.
Tenho ciência de que não haverá divulgação da imagem nem som de voz dele (a) por qualquer meio
de comunicação, sejam elas televisão, rádio ou internet, exceto nas atividades vinculadas ao ensino e à
pesquisa explicitados acima. Tenho ciência também de que a guarda e demais procedimentos de
segurança com relação às imagens e sons de voz são de responsabilidade da pesquisadora responsável.
Deste modo, declaro que autorizo, livre e espontaneamente, o uso para fins de pesquisa, nos termos
acima descritos, da imagem e som de voz do (a) participante.
Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com a pesquisadora responsável pela pesquisa
e a outra será entregue a você.
______________________________________
Sabrina Maria de Amorim (pesquisadora responsável)
____________________________ ________________________________
Assinatura do (a) participante Assinatura do (a) responsável
A palavra mágica