06 - Trigger - Kingship TRADUÇÃO LEIGA
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In: TRIGGER,
Bruce C. Understanding Early Civilizations. Cambridge: Cambridge University Press.
pp. 71-91.
5. Realeza
No Egito, o título mais importante usado para designar o chefe de um Estado era
nswt. Somente um nswt legítimo poderia existir no mundo em um momento, embora o
título fosse também empregado para o rei dos deuses (nswt ntrw). O nswt governava por
direito não somente o Egito, mas o mundo inteiro e era responsável pela manutenção,
tanto da ordem social quanto do equilíbrio cósmico. Ele precisava ser egípcio. Se,
durante períodos de conflito social ou divisão política, mais de uma pessoa reivindicasse
o título, entendia-se que somente um único requerente poderia ser o governante
universal. Os reis de outros países eram chamados wr (‘príncipe’ ou ‘o grande’) ou ḥq3
(governante), termos que eram também empregados para dignitários ou chefes
subordinados dentro do Egito.
Em anos recentes, vem sendo sugerido que algumas civilizações iniciais podem
não ter tido monarcas, mas os exemplos propostos, que incluem o estado Teotihuacán
no Vale do México no primeiro milênio d.C. (Cowgill 1997) e a civilização do Vale do
Indo (Possehl 1998), são exemplos arqueológicos para os quais não há documentos
escritos contemporâneos. O argumento principal colocado em favor da ausência de reis
é a inexistência de representações desses governantes na iconografia desses estados, há,
entretanto, uma ausência notável de retratos reais na arte sobrevivente da china Shang e
dos incas. Para os Shang, não há evidencia de que os reis, que aparecem de forma
proeminente em registros escritos, tenham alguma vez sido representados na arte. Nós
sabemos, entretanto, através de fontes históricas que estátuas em tamanho real dos
governantes incas esculpidas a partir de folhas de ouro eram objeto de veneração. Todas
essas estátuas foram derretidas pelos invasores europeus no século XVI. Da mesma
forma, no Vale do México, representações reais claramente identificadas não parecem
ter sido frequentes durante o período Asteca Tardio e elas eram associadas
principalmente com os estados maiores e mais centralizados. Consequentemente, a
escassez de retratos reais em algumas civilizações iniciais não indica uma ausência de
reis. Além disso, cada um dos estados iorubas, nos quais sabemos que grande parte do
poder político era formalmente dividido entre os chefes de várias famílias proeminentes,
possuía um rei divino.
Tanto no Egito, quanto entre os incas, a realeza era passada de pai para filho,
com o herdeiro sendo designado pelo monarca em exercício. Idealmente, o herdeiro era
um filho da esposa principal do rei, mas em circunstâncias excepcionais, tais filhos
poderiam ser preteridos em favor de um filho de uma esposa secundária que fosse mais
capaz. Mesmo quando um herdeiro era designado com bastante antecedência, poderiam
surgir conflitos sobre a sucessão após a morte do rei, com as diferentes facções da
família real e a classe dominante apoiando candidatos rivais. Para garantir ainda mais
uma sucessão pacífica, às vezes os reis egípcios e incas colocavam seus herdeiros
preferidos como governantes “júnior” durante seus próprios reinados. Frequentemente o
rei júnior recebia o comando do exército como um delegado de seu pai idoso. Monarcas
velhos ou enfraquecidos em ambas as civilizações eram às vezes mortos ou depostos
por filhos ambiciosos buscando prevenir que outro irmão ou meio-irmão fosse nomeado
como sucessor. No Egito, era essencial para um novo rei realizar os rituais fúnebres de
seu predecessor de modo a validar sua reivindicação ao trono (Shafer 1997b: 283 n. 16,
287–88 n. 52). Entre os incas, a escolha de um herdeiro pelo governante anterior era
confirmada por um conselho de altos funcionários, por oráculos do deus sol que eram
recebidos pelo alto sacerdote daquela divindade e pelos sacerdotes do oráculo que
falavam pelos reis anteriores (Kendall 1973: 72–73; Patterson 1991; Rostworowski
1999). Nos dois Estados, a transferência do poder real era considerada como um evento
pelo qual tanto a ordem cósmica quanto a política eram, primeiro ameaçadas e então,
por fim, renovadas.
O rei asteca era selecionado, frequentemente em meio a rivalidades
consideráveis, entre os irmãos ou filhos do rei morto por um conselho formado pelos
quatro funcionários mais altos do Estado (van Zantwijk 1994). Estes funcionários eram
usualmente membros da família real e o novo rei era um deles. O cihuacoatl, atuando
como regente, também cumpria um papel na seleção. Há relatos de que no período
formativo da monarquia asteca, a eleição de um novo rei era confirmada por todos os
homens e mulheres do estado (Durán 1964: 40–41), mas, mais tarde, o povo meramente
aclamava o novo governante. Conforme os estados astecas se tornavam mais poderosos,
a sucessão mudou de um padrão “pai-para-filho” para um no qual a realeza
frequentemente passava de um irmão para outro antes de “descer” para a geração
seguinte. Acredita-se que esta mudança tinha a intenção de aumentar o número de
candidatos adultos e experientes dentre os quais o novo governante poderia ser
selecionado. O novo procedimento favorecia a nomeação de um membro da família real
que já era militar e politicamente bem sucedido. Conforme o Estado asteca passou a
dominar mais reinos vizinhos, tais qualidades tornaram-se cada vez mais valorizadas em
um líder (Rounds 1982).
Tem sido sugerido que na dinastia Shang a realeza pode ter se alternado entre
dois ramos patrilineares e dez divisões matrilineares do clã real (K. Chang 1976: 84).
(alternâncias mais simples ocorriam entre ramos de famílias reais alhures, incluindo
iorubas e escoceses da Alta Idade Média [Whitaker 1976].) Entretanto, não há evidência
conclusiva que tal circulação da realeza tenha ocorrido na china Shang (Vandermeersch
1977: 284–93). A realeza parece, a princípio, ter passado de irmão mais velho para mais
novo em uma única linhagem antes de “descer” para o filho mais velho do irmão mais
velho. Mais tarde, a realeza passava de pai para filho, com uma forte preferência por
primogenitura (Chêng 1960: 216–17). Esta tendência – o oposto do que ocorria entre os
astecas – pode ter refletido uma necessidade de equilibrar a forte ênfase na ancianidade
como fonte de status elevado com a crescente necessidade de governantes que
estivessem na flor da idade, conforme a liderança militar se tornava mais importante.
Uma sucessão estritamente fraternal, com pouca possibilidade de deixar passar alguém
na frente dos candidatos mais irremediavelmente incapazes, teria encorajado uma rápida
sucessão de governantes envelhecidos
Uma vez que os reis nas civilizações iniciais, diferentemente dos monarcas
constitucionais modernos, tinham que ser capazes de governar efetivamente e muitas
vezes proporcionar liderança militar pessoal, era altamente desejável que eles fossem
homens adultos e competentes. Por esta razão, também era desejável que uma seleção
fosse feita entre um grupo de candidatos rivais. Onde os reis tinham mais poder, a
realeza era herdada de acordo com a primogenitura masculina ou o monarca em
exercício decidia qual de seus filhos deveria sucedê-lo. Em outros casos, decisões sobre
a sucessão eram feitas por representantes da família real ou por membros poderosos da
classe dominante. Mesmo onde o herdeiro era estabelecido por primogenitura, a
necessidade de realizar vários ritos a fim de se tornar rei, assegurava que um novo
governante ou podia governar eficazmente ou era controlado e apoiado por pessoas que
podiam.
O Estado egípcio colocava uma ênfase especial na ideia de que o rei era filho do
sol ou uma manifestação terrestre do deus criador-solar e, consequentemente, um
governante universal. Como o sol, o rei passava por ciclos infinitos de morte e
renascimento. Os reis alegavam serem a manifestação terrestre de todos os deuses
egípcios principais, cada qual sendo associado com uma comunidade particular no Egito
e identificado naquele lugar como a divindade criadora. Ao nutrir todos esses deuses
como um filho nutre os espíritos de seus ancestrais mortos, o rei cumpria um papel
fundamental na manutenção da ordem cósmica (Frankfort 1948; Silverman 1991: 56–
71). Apenas os reis eram classificados como deuses (ntr) durante suas vidsa (Hornung
1997: 301). As enchentes anuais do Nilo e as derrotas dos inimigos do Egito eram
resultado direto do poder sobrenatural dos reis. Contudo, parece que os reis eram vistos
como divinos apenas no sentido de que seus corpos, como as imagens de culto nos
templos, eram receptáculos nos quais diversos deuses podiam entrar. Um rei enquanto
indivíduo tornava-se dotado de tal poder como uma consequência de rituais de
entronização que envolviam sua purificação, renascimento ritual e coroamento pelos
deuses (L. Bell 1997: 140; Goebs 1998: 340). Como conseqüência desses rituais, cada
rei sucessivo representava o renascimento e a renovação terrestre do monarca anterior (e
em última instância de Hórus), ao passo que os reis mortos eram identificados com
Osíris, o governante imutável do reino dos mortos. Pode ser como encarnação terrena
do poder divino que o rei em exercício era chamado ntr nfr, que é convencionalmente
traduzido como “deus belo”, mas pode ter significado deus “jovem” ou “reencarnado”
(Hornung 1982: 138–42; Malek 1997: 227).
Acreditava-se que os reis egípcios eram tão dotados de poder sobrenatural que
apenas tocar neles ou em seus emblemas sem tomar precauções rituais poderia causar
sérios danos. Entretanto, apesar de eles regularem o cosmo, não se esperava que eles
operassem milagres. Se um conselheiro de confiança ficava doente, o rei ordenava um
médico real para atendê-lo. Um culto funerário elaborado era mantido para cada rei
morto na expectativa de que, enquanto a forma imutável (dt) do poder sobrenatural, os
reis mortos poderiam conceder bênçãos sobrenaturais ao Egito. Apesar de muitos
estudiosos sugerirem o contrário, é evidente que mesmo no Império Antigo todos os
seres humanos mortos se tornavam formas dt, mesmo se eram pouco importantes.
Assim, a diferença entre plebeus mortos e reis mortos era a extensão de seu poder
sobrenatural e não uma diferença qualitativa (O’Connor and Silverman 1995).
Os súditos dos reis incas eram ensinados que o rei era descendente e a
contraparte ou manifestação terrena do deus sol, Inti, e talvez também do deus criador
mais velho, Viracocha. O sol era considerado como a fonte e o repositório imediatos do
poder de cada governante inca. Como no Egito, acreditava-se que a ordem cósmica era
recriada a cada reino sucessivo (MacCormack 1991: 117). A transformação na natureza
do rei que resultava de seus rituais de investidura requeria a ele casar novamente com
sua esposa principal, que agora se tornava sua rainha (quya [coya]), uma prática que
levou muitos cronistas espanhóis a acreditar que um governante inca casava-se com sua
esposa principal apenas depois de se tornar rei (MacCormack 1991: 125). Duzentos ou
mais garotos e garotas eram sacrificados por todo o reino como parte dos rituais de
entronização real (Kendall 1973: 197). Se o rei ficava doente em qualquer tempo,
quatro lhamas e quatro crianças eram mortas e grande quantidade de roupas eram
queimadas para assegurar sua recuperação (Murra 1980: 58).
Tanto os monarcas incas vivos quanto os mortos eram vistos como exercendo
papéis chave na promoção da fertilidade agrícola e do sucesso militar, atividades que
nas crenças e nos rituais, eram fortemente ligadas. Os reis mortos eram considerados
como reunidos ao sol, embora seus corpos mumificados, que mantinham suas
identidades pessoais, continuassem a ser vestidos e a receber comida como se eles
estivessem vivos. Cada rei morto era um lócus de poder sobrenatural e uma importante
fonte de pronunciamentos oraculares sobre assuntos políticos. Reis mortos e vivos eram
assim considerados, como o próprio sol, como uma fonte de vida e prosperidade para
seus descendentes e para o Estado inca como um todo (Gose 1996a). Como no Egito, os
ancestrais mortos das pessoas ordinárias também olhavam pelo bem estar de seus
descendentes; o que distinguia os reis mortos a esse respeito era a fonte e a extensão de
seu poder.
Somente os reis iorubas podiam realizar os rituais que eram cruciais para o bem
estar de sua terra e de seu povo. Os poderes dos reis mortos eram transmitidos a seus
sucessores em rituais que envolviam que o novo rei ingerisse pequenas porções do
corpos de seus antecessores. Não obstante, indivíduos reais que se tornavam senis ou
cujo comportamento seriamente desagradava seus conselhos podiam ser executados.
Muitos iorubas ainda acreditam que, por curtos períodos, quando devotos comuns
entram em transe durante seus rituais, os deuses tomam posse e falam e agem através
deles. Acreditava-se, ao que parece, que os reis, no curso de suas cerimônias de
investidura, tornavam-se possuidores dos poderes de várias divindades, as quais
permaneciam com eles pelo resto de suas vidas ou enquanto eles permanecessem
saudáveis e ritualmente puros. Estes rituais eram acompanhados de sacrifícios humanos
planejados para aumentar o poder do rei. Enquanto os espíritos de todos os iorubas
mortos eram venerados por seus descendentes, que buscavam beneficiar-se de sua
proteção e apoio sobrenaturais, os espíritos dos governantes eram objeto de cultos
especialmente elaborados. Porque seu poder beneficiava o governante vivente, bem
como fazia o poder das divindades cósmicas, eles ajudavam a sustentar o reino inteiro
(Pemberton and Afolayan 1996: 73). O culto dos ancestrais reais era mais elaborado no
Benin, onde cada rei morto recebia um complexo ritual separado (ugha) com seu
próprio altar (Bradbury 1957: 55). Todavia, aqui também o poder real, apesar de
sobrenatural em origem, tendia a ser quantitativamente e não qualitativamente diferente
daquele de outras pessoas.
O termo maia para “governante” que era comumente usado após 400 d.C., k’ul
ahaw, tem sido interpretado como significando um líder com poder divino ou status
semelhante ao de um deus. Os governantes maias portavam os trajes e atributos de
diferentes deuses e ostentavam nomes que incorporavam referências a numerosas
divindades. Em Tikal, essas referências frequentemente eram a Kawil, um deus da
fertilidade e da continuidade dinástica, em Naranjo elas eram a Chak, o deus da chuva e
das tempestades (Houston 2001; Martin and Grube 2000: 17). Eles podem ter sido
considerados como recebendo poderes sobrenaturais no curso dos rituais de investidura
ou de designação de herdeiros. Não há, entretanto, evidências de que eles fossem
considerados deuses. Governantes mortos, em contraste, eram identificados com heróis
ancestrais e divindades cósmicas principais, aparentemente enquanto mantinham suas
próprias personalidades, e eram adorados em templos mortuários elaborados que cada
rei eregia para esse propósito (Freidel and Schele 1988a; Houston and Stuart 1996).
Desta forma, os reis astecas se tornavam divinos (teotl) mesmo se eles não
fossem considerados deuses. Dizia-se que seus lábios e línguas tornavam-se os dos
deuses, uma vez que os deuses falavam através deles, e que eles eram os ouvidos, os
olhos e os dentes dos deuses (Townsend 1992: 205; López Austin 1988, 1: 398–99).
Uma vez investido, esperava-se que um monarca lançasse uma campanha militar que
demonstraria seus poderes recém-adquiridos e produziria um grande número de
prisioneiros para o sacrifício aos deuses que completaria sua investidura. Em seus
funerais, os reis astecas eram novamente vestidos nos trajes, uns sobre os outros, das
principais divindades cósmicas, a fim de que fossem identificados com esses deuses
antes da cremação (Heyden 1989: 41). Os sacrifícios humanos que são relatados como
tendo sido realizados em intervalos regulares para fortalecer a alma tonali (a fonte de
vigor e racionalidade) do rei Montezuma II podem ter sido planejados para alimentar os
poderes divinos especiais que habitavam nele (Clendinnen 1991: 82). Ao passo que os
reis astecas eram tratados com grande reverência, não há evidência de que eles fossem
considerados como sendo diferentes em essência dos outros membros da nobreza
hereditária (Read 1994). No lugar disso, eles eram homens em quem os poderes
sobrenaturais se manifestavam em um grau exclusivo. Apesar de as cinzas dos reis
serem enterradas na base do templo público principal, não havia culto público aos reis
mortos.
Do mesmo modo, o conceito mesopotâmico de realeza era baseado na religião.
Os sumérios acreditavam que os deuses haviam inventado a realeza como a maneira
mais eficaz de governar a si próprios e então haviam transmitido-a aos humanos. Joan
Oates (1978: 476) argumenta que a posição do rei (en or ensi) evoluíra de um cargo
primordial e masculino nos rituais do templo mais comumente associados com as
divindades femininas que eram as padroeiras das cidades-Estado. Em cidades onde a
divindade patronal principal era masculina e, portanto o sacerdote en era feminino, a
realeza passava para as mãos de um lugal (literalmente “grande homem”), cujo cargo
pode ter derivado de um cargo de liderança militar em tempo parcial. Somente após o
período dinástico inicial esses títulos começaram a formar uma hierarquia na qual o
lugal, agora interpretado como significando “hegemônico”, tomava precedência sobre o
ensi, que significava “governante da cidade” ou “governador” (Hallo 1957).
Era dever dos reis da Mesopotâmia assegurar que as divindades fossem bem
alimentadas, vestidas e abrigadas. Eles corriam o risco de punição divina se eles
falhassem em realizar os desejos de um deus. Um rei prudente, entretanto, poderia
esperar com razão o favor e a proteção da divindade padroeira de sua cidade em retorno
por seu bom comportamento pessoal e conduta diligente dos negócios da cidade. Os reis
recebiam revelações e ordens divinas em sonhos e visões. Para evitar ofender
involuntariamente os deuses, eles constantemente buscavam averiguar a vontade das
divindades através de práticas divinatórias. O único aspecto inerentemente sobrenatural
da realeza era que os reis, juntos com as sacerdotisas ou mulheres da família real,
personificavam as divindades principais durante os rituais de ano novo que eram
associados com a fertilidade e a renovação cósmica. Presumivelmente, o poder dessas
divindades entrava no rei e em outros participantes durante este curto período (Postgate
1992: 265–66).
Ironicamente, a Mesopotâmia, a civilização onde os reis eram tidos como mais
humanos, era a única cujas lendas retratavam reis orgulhos ou impiedosos provocando e
insultando divindades (Pritchard 1955: 84). Estas histórias, entretanto, ilustravam que
era impossível mesmo para o mais ambicioso dos humanos opor-se aos deuses ou
adquirir novos poderes. Os governantes da Mesopotâmia algumas vezes conseguiam
escapar da ira divina, quando eles a descobriam através das práticas divinatórias,
mediante o apontamento de uma pessoa de origem humilde como substituto do rei cuja
morte poderia aliviar a ira dos deuses. Tal substituto era executado depois que o perigo
havia passado (Frankfort 1948: 262–65).
SACRÍFICIO DE SERVIDORES
Uma indicação interessante de como os reis eram vistos nas civilizações iniciais
é a medida na qual servidores e outras vítimas humanas, voluntaria ou
involuntariamente, eram executados nos funerais de reis e membros de alta patente da
nobreza. Há evidencias de sacrifício de servidores nas fases iniciais de ambas as
civilizações do Egito e da Mesopotâmia. Centenas de servos homens e mulheres, bem
como artesãos, eram executados e enterrados em volta dos complexos funerários reais
egípcios da Primeira Dinastia em Abidos e em números menores em volta das tumbas
de funcionários de alta patente em Mênfis (Edwards 1985: 23). Números substanciais
de servidores eram enterrados no que geralmente considera-se que tenham sido enterros
reais do período Dinástico Inicial em Ur na Mesopotâmia, apesar de que os enterros
femininos podem ter sido o de sacerdotisas en de alta patente ao invés de rainhas
(Pollock 1999: 211). Algumas reminiscências dessa prática podem ter sobrevivido na
poesia épica mesopotâmica posterior, a qual fala de servos acompanhando governantes
falecidos ao mundo inferior (Kramer 1963: 130). Contudo, este tipo de assassinato
parece não ter persistido por muito tempo nas culturas em que as vítimas humanas não
eram regularmente sacrificadas aos deuses.
Há relatos de que quando um rei inca morria, suas esposas secundárias favoritas,
servos e alguns funcionários eram estrangulados, muito deles voluntariamente. Além
disso, mil garotos e garotas de cinco a seis anos de idade, muitos deles filhos da nobreza
provincial não-inca (Betanzos 1996: 131–33), eram reunidos e enterrados em pares
através do reino. Entre os Shang e os incas, sacrifícios de servidores eram praticados em
uma escola muito menor no enterro de altos funcionários.
VALIDANDO O PODER
Eles também tinham que preservar sua autoridade pessoal em relação a outros.
Suas interações com seus súditos eram pesadamente ritualizadas e governadas por uma
etiqueta especial. Entre os incas, por exemplo, mesmo o mais alto dos funcionários
tinha que usar roupas simples, ficar descalço e carregar pequenos sacos quando hes era
concedida uma audiência com o rei (Rowe 1944: 259). Entre os asteca e alhures, fazer
contato visual com o governante era proibido. Os reis tendiam a gastar muito do seu
tempo em aposentos privados de seus palácios, aos quais poucas pessoas alem de seus
servos tinham acesso, concedendo audiências para apenas uma fração selecionada de
seus súditos e aparecendo em publico apenas em conexão com os principais rituais e
festividades comunais. A reclusão real era levada mais longe entre os iorubas, cujos reis
raramente deixavam os alojamentos internos de seus palácios e apareciam em público
somente com suas faces cobertas pela borda adornada de suas coroas (Bascom 1969:
30–31).
Os reis também tinham que estar aptos para gerenciar os negócios políticos de
seus reinos de forma eficaz. Muitos reis lideravam exércitos à batalha, e sua habilidade
para derrotar inimigos estrangeiros refletia e reforçava seu poder político. Em estados
centralizados, reis poderosos podiam, se necessário, usar a força para assegurar a ordem
publica e manter tanto os funcionários quanto o povo sobre controle. Onde o poder era
menos centralizado, os reis tinham que confiar mais em suas habilidades diplomáticas e
de persuasão (Apter 1992). O papel político dos reis nos estados pré-industriais foi
resumido em uma observação que os escritores árabes atribuem ao monarca persa do
séc. VI d.C., Cosroes I. Acredita-se que ele tenha observado que um reino somente pode
prosperar se o seu governante tiver a capacidade de frear a rapacidade de seus
funcionários de modo que a produção agrícola e artesanal possa florescer e sustentar o
sistema de taxação real do qual o poder real depende (R. McC. Adams 1965: 71).
Mesmo um rei ioruba astuto podia transcender as severas limitações físicas e políticas
de seu cargo para frear a competição mutuamente destrutiva entre membros rivais das
classes dominantes e assegurar sua própria autoridade.
Finalmente, somos nós, não as pessoas que viveram nas civilizações iniciais, que
diferenciamos entre poder político e sagrado. Os iorubas acreditavam que o rei ao
canalizar a energia sobrenatural para o mundo humano cumpria um papel não menos
importante em derrotar os inimigos estrangeiros que os dignitários hereditários não-
reais que comandava os exércitos do estado. Os rituais de ano novo cumpriam um papel
fundamental nas observações religiosas públicas mesopotâmicas, ao reencenar e assim
renovar a criação do mundo e o estabelecimento da realeza entre os deuses, afirmava o
paralelismo entre o reino terrestre e aquele das divindades celestiais do qual a
prosperidade da terra dependia (Hooke 1958). No Egito, o mesmo verbo (ḫꜥı͗ )
designava a aparência de um rei em sua gloria sobre seu trono e a aurora e o ciclo
geracional pelo qual um jovem rei sucedia um mais velho complementado pelo
nascimento, morte e renascimento diários do sol e pela inundação anual do Nilo. A
sucessão real era tão essencial quanto esses ciclos naturais porque ela renovava o poder
cósmico pelo qual os deuses e, portanto, o universo, nada menos que o próprio Egito,
eram mantidos (Frankfort 1948: 148–61). Em uma cultura na qual a realeza era
percebida como “um poder como o dos deuses” e algo essencial para a manutenção da
ordem cósmica, tais paralelos abarcavam tanto a ideologia central quanto o papel na
pratica da realeza.