Seer,+4290 12508 1 CE
Seer,+4290 12508 1 CE
Seer,+4290 12508 1 CE
Valmor da Silva**
Resumo: apresenta criticamente o rei, no Antigo Oriente Médio e na Bíblia Hebraica, prin-
cipalmente na literatura sapiencial proverbial, na sua função primordial como juiz
que deve defender a causa de pobres, órfãos e viúvas. Apresenta a ideologia real que
moldou as monarquias do Antigo Oriente Médio, principalmente na Mesopotâmia
e no Egito, centradas na necessidade da prática da justiça e do direito, ideologia
esta que moldou muitos textos bíblicos. Analisa em seguida alguns textos do Antigo
Oriente Médio, relativos à função do rei, na prática da justiça, concretamente com
relação a pobres, órfãos e viúvas. Concentra-se, mais demoradamente, na apresen-
tação crítica de provérbios do livro bíblico de Provérbios, relativos à temática em
questão, para concluir que a função dos reis, em Israel devia ser, primordialmente,
de estabelecer a justiça, em favor de pobres, órfãos e viúvas.
O
regime de monarquia foi uma experiência traumática para o antigo Israel. Que o
digam os registros bíblicos de ataques dirigidos aos reis, sobretudo por parte de
profetas. A experiência original de Israel foi o tribalismo, um regime alternativo,
–––––––––––––––––
* Recebido em: 06.06.2015. Aprovado em: 05.07.2015.
* Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Mestre em Exegese Bíblica pelo PIB e em
Teologia Bíblica pela PUG. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ci-
ências da Religião da PUC Goiás. Pesquisador Bolsista de Pós-Doutorado da Capes/Fapeg
Seja pelo caminho da imitação, seja por iniciativa original, Israel aderiu à ideologia
real e se apropriou da teologia real. “Esta teologia real tão complexa parece
que pode ser resumida, no entanto, em duas palavras que se encontram em
numerosos textos e que parecem recolher todas as virtudes e capacidades que
se esperavam do soberano; são, em babilônico, as palavras kittu e mesharu”
(COLLIN, 1994, p. 14).
Na palavra mesharu se identifica a raiz do hebraico yashar (estar direito), nor-
malmente traduzida por “direito”, porém, aplicada ao rei, “significa pôr todas
as coisas em ordem para que cada um dos súditos possa prosperar no país”
(COLLIN, 1994, p. 14).
Kittu, originalmente é firmeza, solidez e duração, e costuma ser traduzida por “fidelida-
de”, porém, aplicada ao rei, significa que ele deve oferecer solidez e segurança
aos súditos (COLLIN, 1994, p. 14).
“Estas duas palavras passaram aos semitas do oeste – quer dizer, à região siro-palestina
–, já desde o reinado do babilônio Hammurabi. Porém nestas regiões o binô-
mio se transformou: mesharu se converteu em m(y)shr, e kittu foi substituído
por sedeq/sedaqah (o nome hebraico da “justiça”)” (COLLIN, 1994, p. 14).
As duas palavras, mishpat e sedaqah fundamentam a ideologia real no Antigo Oriente
Médio e, consequentemente, a teologia real de Israel. Quer dizer que os dois
Fensham (1962, p. 129-39) apresenta um apanhado sobre a discussão, até aquela épo-
ca, a respeito da proteção de viúvas, órfãos e pobres, na literatura legal e na
sapiencial do Antigo Oriente Médio. Pela riqueza das informações, o artigo
permanece como referência para os estudos sobre o assunto.
Na sequência, o presente item retoma as ideias centrais dessa discussão. Dada a am-
plitude das áreas de abrangência, o foco se volta, aqui, para a literatura pro-
verbial, com alguns exemplos selecionados. A ideia de justiça como proteção
das categorias mais desprotegidas, comum a Israel e aos povos vizinhos, tinha
motivações religiosas, associadas ao dom dos deuses e à virtude dos governan-
tes. “Esta política era vista como a vontade de Deus, a virtude de reis e o dever
do povo comum” (FENSHAM, 1962, p. 137).
Na Mesopotâmia, para além das leis, como o código de Hammurabi, a literatu-
ra sapiencial ilustra a função do rei como responsável pela defesa dos oprimi-
dos, sob a proteção de Shamash, o deus sol, juiz do céu e da terra (FENSHAM,
1962, p. 130-2).
No prólogo do código de Hammurabi, seguindo o estilo do autoelogio, o rei se apre-
senta como quem vem para “fazer justiça na terra” e para “fazer justiça aos
povos”. No epílogo, ao concluir “as sentenças de justiça”, acrescenta “fraco,
órfão e viúva”. Textualmente:
Hammurabi, o príncipe piedoso, temente a deus, para fazer surgir justiça na ter-
ra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco, para,
como o sol, levantar-se sobre os cabeças-pretas (povo sumério) e iluminar o país.
Para que o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva.
(BOUZON, 1999, p. 40, 222).
Não desloques um marco até o limite dos campos cultivados e não mudes o com-
primento da trena. Não cobices um côvado de terreno nem violes as cercas de
uma viúva. Quem prejudica nas lavouras... é caçado pelo poder da Lua (o deus
Tot) (cap. VI-A; VII,12-19; VIII,6-20) (TEB, nota v, a Pr 22,28).
Em Ugarit, embora não haja código legal nem livro de sabedoria, encontramos um
texto que menciona explicitamente o rei Daniel julgando a causa das viúvas e
órfãos (GINGSBERB, in ANET, p. 151, apud FENSHAM, 1962, p. 134):
Pela pequena amostra, pode-se concluir quão importante era esse aspecto na reali-
dade do Antigo Oriente Médio, para além da proximidade com a literatura
bíblica. A responsabilidade que pesava sobe o rei, para fazer justiça às pes-
soas mais desprotegidas, era considerada como oriunda da própria vontade
divina, e não deixava de ser reivindicada pelas próprias vítimas em caso de
injustiça.
A metáfora dos canais de água, tão preciosos no Antigo Oriente, indica a docilidade do
coração do rei na mão de Deus. O coração, centro das decisões, está na mão,
membro do corpo humano que indica o caminho a seguir. O paralelo entre o
coração do rei e a mão divina estabelece uma relação de estreita dependência.
Ao provérbio, é acrescentada uma sentença explicativa, para reforçar a von-
tade divina sobre o rei. Paralelos semelhantes a este, encontramos na aproxi-
mação entre o temor a Yhwh e ao rei (Pr 24,21), assim como entre a glória de
Deus e a glória dos reis (Pr 25,2). O nosso provérbio, portanto, aproxima o rei
de Deus e coloca em paralelo as funções de ambos (DELL, 2005, p. 184-5).
Como único rei de Israel, Yhwh estabelece a justiça, ao assumir a causa dos
pobres, das viúvas e dos órfãos. Deus mesmo é chamado “Pai dos órfãos e
justiceiro das viúvas” (Sl 68,6). Tamanha é a importância desse direito, que
o próprio Deus toma para si a responsabilidade pela proteção do terreno da
viúva. É política divina proteger o limite da propriedade da viúva.
Cuidado! Não despojes os miseráveis, nem violentes o fraco... quando ele cla-
ma, sua voz sobe ao céu, e a Lua (o deus Tot) perseguirá seu crime (o do explo-
rador) (Amenemope, cap. II; IV, 4-5.18-19) (TEB, nota r, a Pr 22,22).
O provérbio faz parte de uma espécie de coleção sobre a função do rei relativa à prática
da justiça (Pr 16,10-15). Nessa pequena coletânea, em forma de encadeamen-
to, em seis dísticos, cinco deles repetem o termo rei, relacionado com justiça
e retidão. O único versículo que não menciona rei, trata exatamente da justiça
(Pr 16,11) e pode ser interpretado como a chave de leitura do conjunto. Além
disso, o critério que determina a ação positiva ou negativa da ação real é a prá-
tica da justiça. Para praticar a justiça, o rei necessita o sábio, que tem o poder
de aplacar a sua ira (Pr 16,14).
Na discussão sobre a referência do provérbio, como crítica aos outros ou ao próprio
rei, Catherine Dell se inclina, positivamente, para a interpretação do provérbio
como máxima geral, não necessariamente de origem palaciana, e conclui: “Se-
gundo os princípios da sabedoria, cabe a todos evitar o mal. No entanto, para
os reis isso é muito mais difícil, porque assumem o papel divino de protetores
da justiça” (DELL, 2005, p. 182).
Outros provérbios relacionam a pessoa do rei com a prática da justiça. Possivelmente
são de origem popular, e alertam para a coerência do rei quanto ao justo julga-
mento na maneira de governar.
Na mesma linha de interpretação, pode-se ler o provérbio seguinte, que Alonso Schökel
e Vílchez Líndez (1984, p. 392-3) juntam num mesmo comentário. Para os re-
feridos comentaristas, a roda se refere à imagem agrícola do instrumento que
separa a maldade.
Outra pequena coletânea de provérbios sobre o rei se encontra em Pr 25,1-6, que en-
cabeça a chamada segunda coleção salomônica, com provérbios transcritos
pelos homens de Ezequias, rei de Judá. A firmeza do trono está na prática da
justiça, visto que “A glória dos governantes consiste em investigar a corrup-
ção” (SCHWANTES, 2009, p. 62).
Seguindo a linha crítica com relação à prática efetiva da justiça no âmbito da monar-
quia, chega-se aos provérbios que usam metáforas de animais domésticos rela-
cionadas com atividades dos reis, nomeadamente gafanhotos, lagartixas, galo
e bode. Datharine Dell (2005, p. 188-9) usa esses exemplos para argumentar
em favor da visão popular e da origem desses provérbios junto a pessoas co-
muns, que pouco sabiam sobre o ambiente da corte. Os ditos fazem parte de
provérbios numéricos, com elencos de enigmas, dentre os quais são listados.
Abstract: critically presents the king in the Ancient Near East and in the Hebrew
Bible, especially in the proverbial wisdom literature, in its primary function
as a judge who must defend the cause of the poor, orphans and widows. It
presents the real ideology that shaped the monarchies of the Ancient Near
East, especially in Mesopotamia and Egypt, focusing on the need of the prac-
tice of justice and right, this ideology that has shaped many biblical texts. It
then analyzes some Ancient Near East texts relating to the role of the king
in the practice of justice, particularly with respect to the poor, orphans and
widows. It focuses, at greater length, critical presentation of proverbs of the
Bible book of Proverbs, on the theme in question, to complete the function of
kings in Israel should be, primarily, to establish justice in favor of the poor,
orphans and widows.
Notas
1 Os textos bíblicos são citados, normalmente, da Bíblia de Jerusalém, salvo indicação, quando
se trata de tradução própria.
2 O nome divino mantém a forma Yahweh, quando citado da Bíblia de Jerusalém, e transcreve
o tetragrama original Yhwh quando mencionado em citação livre
Referências
ALONSO SCHÖKEL, Luis; VÍLCHEZ LÍNDEZ, José. Provérbios. Madrid: Cristiandad, 1984.
BAINES, John. A realeza egípcia antiga: formas oficiais, retórica, contexto. In: DAY, John (Org.). Rei e
Messias em Israel e no Antigo Oriente Próximo: Dissertações do Seminário Veterotestamentário de Oxford.
São Paulo: Paulinas, 2005. p. 19-56.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BOUZON, Emanuel. O Código de Hammurabi: introdução, tradução do texto cuneiforme e comentários.
7ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999.
BRUEGGEMANN, Walter. Theology of the Old Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1977.
COLLIN, Matthieu. De la ideología real a la teología real em Israel. In: VVAA. Biblia y realeza. Navarra:
Verbo Divino, 1994. p. 14-16. (Cuadernillo Bíblico, nº 83).
CRENSHAW, James L. A mother´s instruction to her son (Proverbs 31:1-9). In: CRENSHAW, James L.
(Ed.). Perspectives on the Hebrew Bible: essays in in honor of Walter J. Harrelson. Macon:
���������������������
Mercer Univer-
sity Press, 1988. p. 9-22.
CROATTO, José Severino. A figura do rei na estrutura e na mensagem do livro dos Salmos. Ribla, Petró-
polis, n. 45, p. 38-62, 2003.
CROATTO, José Severino. Dívida e justiça em textos do Antigo Oriente. Ribla, Petrópolis, n. 5-6, p. 35-39,
1990.
DELL, Katherine J. O rei na literatura sapiencial. In: DAY, John (Org.). Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Próximo: Dissertações do Seminário Veterotestamentário de Oxford. São Paulo: Paulinas, 2005.
p. 171-194.
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003.
DREHER, Carlos A. Resistência popular nos primórdios da monarquia israelita. Ribla, Petrópolis, n. 32,
p. 58-84, 1999.
EICHRODT, Walther. Teología del Antiguo Testamento. I. Dios y pueblo. Madrid: Cristiandad, 1975.
FENSHAM, F. Charles. Widow, Orphan, and the Poor in Ancient Near Eastern Legal and Wisdom Litera-
ture. Journal of Near Eastern Studies, Chicago, v. 21, p. 129-139, 1962.
FLOR, Gerson Luis. A fé em Israel a partir da monarquia. São Leopoldo: IEPG, 2000. (Série Ensaios e
Monografias, 24).
GARCÍA TRAPIELLO, J. El rey de Israel, valedor de la justicia social. In: AGUIRRE, Rafael y GARCÍA
LÓPEZ, Felix. Escritos de Biblia y Oriente: miscelánea conmemorativa del 25º aniversario del Instituto Es-
pañol Bíblico y Arqueológico (Casa de Santiago) de Jerusalén. Salamanca/Jerusalén: Universidad Pontifi-
cia/Instituto Español Bíblico y Arqueológico, 1981. p. 171-192. (Bibliotheca Salmanticensis, Estudios, 38).