Yves Lacoste - Geopoltica

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Titulo original:

Geopolitique de la Mediterranee

©Yves Lacoste, 2006

TRADU<;:AO
A Geopolitica
do Mediterrineo
Pedro El6i Duarte

REVISAO
Pedro Bernardo

DESIGN DE CAPA
Yves Lacoste
FBA.

ISBN: 978-972-44-1523-9

DEPOSITO LEGAL N" 281810/08


~C (_
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sera passive! de procedimento judiciaL
Introdu<;ao

0 termo geopolitica, ao qual damos hoje multiplos usos, designa tudo 0


que diz respeito as rivalidades de poderes ou de influencia sobre territ6rios
ou sobre as popular;:oes que neles vivem: rivalidades mais ou menos pad-
ficas ou violentas entre poderes politicos de todo o genero, e nao apenas
entre Estados, mas tambem no interior dos pr6prios Estados, entre movi-
mentos politicos ou grupos armadas mais ou menos clandestinos. Estas
rivalidades exercem-se para o controlo ou dominio de territ6rios geogni-
ficos de grandes ou pequenas dimensoes. 0 caso de Israel e da Palestina
demonstra, desde ha mais de meio seculo, que urn conflito por territ6rios
minusculos pode ser violento e muito grave quanto as suas repercussoes
intemacionais.
0 interesse cada vez maior que se da as questoes geopoliticas, como as
que sao noticiadas pela imprensa que acompanha a «actualidade», traduz
o facto de muitos cidadaos terem tornado consciencia de que os conflitos
entre paises mais ou menos distantes, a maioria situada em redor do Me-
diterraneo, podem repercutir-se na Europa Ocidental e, especialmente, em
Franr;:a, ja que as suas relar;:oes geopoliticas com os paises mediterranicos
sao multiplas e muito importantes. Reflectir sobre os problemas geopoliti-
cos e sobre os riscos que comportam nao e urn exclusivo dos especialistas
e dos responsaveis politicos, cuja tarefa e tomar medidas de precaur;:ao.
Estas dizem respeito a todos os cidadaos, que devem compreender bern a

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complexidade e a gravidade de algumas questoes que se colocam mais ou dente contra o Oriente - inspira discursos alegadamente filos6ficos que
menos longe e nos nossos paises, a fim de que mostrem sangue-frio face ignoram a complexidade das diversas situa9oes geopoliticas no Mediter-
a certas amea<;as ou a pretensas solu<;oes que poderiam ser ainda mais pe- riineo.
ngosas. So em redor da parte ocidental desta extensao maritima e que o con-
Se falarmos de todas as grandes questoes geopoliticas que a imprensa traste econ6mico e social entre os paises costeiros, os do Norte e os do Sul,
evoca a prop6sito do Mediternlneo no seu todo, ou se considerarmos os pode ser claramente imputado ao dominio colonial exercido pelos Estados
con:ftitos e as rivalidades de poderes mais ou menos antigos em cada urn europeus, sobretudo pela Fran<;a, sobre os paises do Magrebe a partir do
dos cerca dos 25 Estados, pequenos ou mais importantes, em redor desta seculo xrx. Por outro lado, em redor da parte oriental do Mediterraneo, o
longa extensao maritima - 4000 km de oeste a leste - , pode afirmar-se contraste econ6mico Norte-Sui e muito menos visivel. Quando o imperia-
que, nesta parte do mundo, os problemas geopoliticos sao muito mais nu- lismo modemo se estendeu ao mundo arabe, ha menos de do is seculos, nao
merosos, perigosos e complexos do que noutros lugares, porque, devido foram certamente os paises situados na costa norte, como a Grecia ou a
as suas repercussoes, se enredaram ao longo da hist6ria. Esforcei-me por Albania, que dominaram o Egipto, nem foi a Turquia, mas sim a Inglaterra,
descreve-los simplesmente, sublinhando as interferencias e as contradivoes que, evidentemente, nao e uma navao mediterranica. Gra9as a sua frota,
dessas hist6rias. este pais desempenhou urn papel geopolitico fundamental na bacia medi-
Por que dei a este livro o titulo Geopolitica do Mediterraneo? 0 sin- terranica ate ao final da Segunda Guerra Mundial. Desde ha 50 anos que
gular faz logo pensar que o conjunto formado pelo mar e pelos paises que esta frota foi substituida pela 6.a Esquadra da Marinha norte-americana,
o rodeiam e o palco ou a causa de urn grande confronto. E, alias, o que que cruza o Mediterraneo Oriental e cujos meios de ac9ao, sobretudo aere-
se pensa ha varias decadas, quando, de forma esquematica, se estabelece os, nao tern comparavao com os da antiga Marinha Real Britanica.
uma oposi9ao entre o Norte eo Sul do Mediternlneo: de urn lado, os paises No inicio de 2003, em vesperas da invasao do Iraque pelas tropas ame-
europeus situados na sua costa setentrional e, do outro, os que se situam na ricanas, algumas destas tropas, apoiadas pela 6.a Esquadra, deveriam de-
costa sul e que sao tambem paises qualificados como «subdesenvolvidos», sembarcar nas costas da Turquia- este pais era aliado dos Estados Unidos
devido ao dominio colonial que os paises do Norte sobre eles exerceram - e alcan9ar Bagdad pelo norte, passando pelo Curdistao iraquiano muito
desde 0 seculo XIX. Como as sequelas desta coloniza<;ao nao desaparece- hostil a Saddam Hussein. Mas, no ultimo momenta, o govemo turco opos-
ram depois de as na<;oes terem reconquistado recentemente a sua inde- ~se a esta manobra que am'ea9ava agitar os Curdos da Turquia. A invasao
pendencia, persistiriam muitas tensoes entre o Norte e o Sul. Esta forma do Iraque foi, entao, feita pelo sul, pelo golfo Persico, com forvas posi-
bastante maniqueista de ver as coisas e retomada hoje por aqueles que cionadas no Kuwait ou transportadas por mar e aviao, vindas da Europa
afirmam, a semelhan9a dos islamitas, que o mundo e agora o palco de urn e dos Estados Unidos. Ap6s a queda de Bagdad, foram as liga<;oes aereas
grande «choque de civilizayoes» ou de grandes religioes. Para eles, o Me- que permitiram a manutenvao e a substitui9ao dos corpos expedicionarios
diternlneo e a parte do mundo onde esse choque e mais grave, ja que o Sul americanos e britanicos. A partida mais ou menos breve destas tropas, para
e composto por paises mu<;ulmanos eo Norte e dominado principalmente se livrarem da guerra civil que se desenrola entre as diferentes fac<;oes da
por paises cristaos. Mas ha o caso muito particular de Israel. popula<;ao iraquiana, sera certamente vista como uma grande vit6ria dos
Veremos que as rivalidades de poderes no Mediternineo, se as obser- islamitas e nao deixara de ter consequencias em todo o Medio Oriente e ate
varmos com mais rigor, nao se podem reduzir a urn esquema Norte-Sui ou no Magrebe. Esta guerra do Iraque, que ja fez varias centenas de milhares de
a esta rivalidade entre o cristianismo e o islamismo. Ate na Idade Media, vitimas, marcara profundamente a situa<;ao geopolitica do Mediterraneo.
no tempo das Cruzadas, das quais muito se fala actualmente e que foram, Para compreendermos OS problemas geopoliticos do Mediterraneo, nao
sem duvida, urn grande fen6meno politico, os conftitos entre os multiplos podemos, portanto, limitar-nos a esfera mediterranica. E necessaria nao s6
protagonistas eram muito mais complexos do que hoje se pensa. A visao levar em conta a superpotencia que pode projectar as suas for<;as do outro
dualista do Mediterraneo - o Norte eo Sul que se combina com a do Oci- lado do Atlantica, mas tambem as repercussoes que algumas mudan<;as

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geopoliticas longinquas que se produzem nos confins da Asia Central ou
dos vizinhos, mas tambem entre os que se encontram frente-a-frente, com
no AfeganisUio podem ter ate no Mediterraneo. Foi dos arredores de Ka-
um mar pelo meio, como foi o caso da rivalidade entre Fran~a e os Estados
bul que o miliomirio ex-saudita Osama bin Laden dirigiu as redes da
do Magrebe ou o que se designava por Levante. Tudo isto constitui aquilo
Al-Qaeda, que, atraves da Arabia, do Proximo Oriente e da Europa Oci-
a que podemos chamar «fen6meno geopolitico meditemlnico» ou «modelo
dental, lan~aram os ataques do 11 de Setembro de 2001 na costa leste dos
Estados Unidos. mediterranico», que pode ser definido pela multiplicidade das interacs;oes
directas por via maritima entre nurnerosos paises situados em redor de uma
Em redor desta extensao maritima muito particular que e o Mediterra-
mesma extensao maritima; os estreitos e as passagens entre dois oceanos
neo, muitos Estados vizinhos sofrem conflitos fronteiris:os , como o conflito
facilitam interven~oes navais vindas de outras partes do mundo.
entre a Siria e a Turquia, entre a Siria e Israel ou entre os Estados balcani-
A tal ponto que, por alusao a este modelo, fala-se hoje correntemente
cos, sobretudo entre os que resultaram do desmembramento da ex-Jugos-
de urn Mediterraneo americana e ate de urn Mediterraneo asiatico para
lavia. Alem disso, em todos os Estados situados em redor do Mediterraneo,
designar conjuntos maritimos da mesma ordem de grandeza (4000 km de
existem problemas de geopolitica intema mais ou menos localizados, que
comprimento), cada urn deles rodeado por varios Estados. Trata-se, por
se devem tanto a rivalidades religiosas e linguisticas como a desigualdades
urn lado, do conjunto formado pelo golfo do Mexico e o mar das Antilhas
econ6micas regionais que se traduzem por reivindicas:oes de autonomia
(entre a America Central, o arquipelago das Antilhas, a America do Norte
ou de independencia. Estas reivindicas:oes manifestam-se fortemente em
e a America do Sui) e, por outro, do mar abusivamente denominado «mar
Espanha, mas tambem em Italia. No Libano, as multiplas comunidades
do Sul da China», entre a China, a Indochina e os grandes arquipelagos do
religiosas institucionalizadas e com territ6rios pr6prios travaram entre si
Sudeste Asiatico. Mas cada urn destes do is Mediterraneos situados, nao en-
uma guerra civil durante 15 anos (1975-1990); todas .estas comunidades
tre continentes, mas ao longo do oceano, e rodeado por urn numero muito
trocavam de alianps com os Estados vizinhos. Em Julho de 2006, os xiitas
mais pequeno de Estados do que aquele que se estende entre a Europa, a
islamitas do Hezbollah e, sobretudo, a sua «milicia» fortemente armada
Africa e a Asia. Este Mediterraneo a que poderiamos chamar euro-arabe
desencadearam, 'a partir do sui do Libano, uma verdadeira guerra contra
ou, melhor, euro-mus;ulmano (para incluir a Turquia) 6, na verdade, muito
Israel, iniciada com o bombardeamento macis:o do dispositivo adversario e
mais complexo e conflituoso do que os outros dois, uma vez que o Medi-
de todas as vias de comunicas:ao libanesas. V arios contingentes franceses,
terraneo americano, cujos Estados sao todos herdeiros das colonizas:oes
italianos e espanh6is refors;aram a fors;a de interposis;ao da.ONU no Liba-
europeias do seculo XVI, nab tern costas pertencentes ao mundo mus;ulma-
no. Este conflito tern causas locais e regionais, mas tambem outras mais
no, e o da Asia encontra-se hoje novamente sob hegemonia chinesa, como
longinquas (o Irao e os Estados Unidos), e as suas consequencias nao se
esteve durante seculos.
limitam ao Medio Oriente, pois envolvem toda a esfera mediterranica.
A importancia e a antiguidade das interacs:oes entre os diferentes sec-
0 titulo deste livro poderia, portanto, ser posto no plural e ficar Geo-
tores das duas grandes fachadas do Mediterraneo euro-arabe, o antigo con-
politicas do Mediterrdneo, porque, para se compreender as suas multiplas
fronto entre uma e outra, e tambem a repetis;ao anunciada de urn grande
repercussoes, e necessaria levar em conta OS problemas especfficos de cada
conflito de civilizas;oes (o que nao exclui os esfor~os destinados a estabele-
urn dos Estados que se encontram em seu redor. Mas desde ha seculos, ou
cer finalmente uma complementaridade entre o Norte eo Sul), tudo isto in-
ate milenios, que cada urn dos sectores destes vastos litorais mediterrani-
cita a pensar globalmente e a analisar a extrema diversidade das situas;oes
cos (no total, cerca de 12 000 km, sem contar com as centenas de ilhas)
geopoliticas e as particularidades de cada uma delas.
se relaciona directamente com todos os outros, isto devido aos navios que
0 Mediterraneo, de certa forma, e para qualquer cidadao urn exce-
circulam neste mar rodeado de continentes. E isto que explica o poder que
lente campo de treino para o pensamento geopolitico em geral, porque o
algumas cidades portuarias - que se tomaram verdadeiros Estados, como
seu estudo obriga a levar em conta a localizas:ao de grande diversidade de
Genova e Veneza- exerceram sobre regioes longinquas. No Mediterraneo,
legados hist6ricos e a combinar relas;oes de fors;a de envergaduras muito
as rivalidades de poderes sobre territ6rios nao ocorrem apenas entre Esta-
diferentes, desde os conflitos locais ate as rivalidades planetarias; quando

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muito, hoje em dia, por causa do petroleo. Veremos que e tambem neces- ate varios seculos. Nao e possivel compreender, mesmo em tras;os largos,
sario encarar urn conjunto geopolitico mediteminico mais vasto para nele uma situas;ao geopolitica sem saber «como e que se chegou ai», ou seja,
incluir os paises do Medio Oriente e as lutas que neles hoje se desenrolam. sem estar informado globalmente acerca das rivalidades de poderes que se
Este alargamento para o Oriente, daquilo a que podemos chamar, no sen- sucederam historicamente nos territorios em causa; tanto mais que, hoje,
tido geolitico, o mundo mediterranico (ou zona mediterranica, ainda que atraves da comunicas:ao social, muitas sao as fon;:as politicas que reavivam
a conotas;ao seja demasiado climatica) faz lembrar a extensao dos grandes memorias tendenciosas, velhos conflitos que se julgava pertencerem ja ao
imperios desde a Antiguidade, o dos Persas e mais ainda o de Alexandre dominio da Historia. A opiniao publica e cada vez mais informada pelos
(guiado pelas Historias de Herodoto ), o dos Omiadas, dos Ahassidas e, por media acerca dos problemas geopoliticos mais ou menos antigos (dife-
fim, o dos Otomanos, cujo desmembramento, em 1920, provoca a frag- rentes «deveres de memoria»), mas estes sao muitas vezes apresentados
mentas;ao do Proximo Oriente com as suas fronteiras actuais. em termos tendenciosos, como acontece em qualquer debate geopolitico.
No entanto, ainda que o pensamento geopolitico (o que foi construido A propaganda actual nao e apenas a do Estado, pelo menos nos paises
nas ultimas decadas pela nova escola geopolitica francesa, sob a egide de democraticos, mas tamhem a dos diferentes movimentos politicos, cada
Herodoto) permita compreender melhor retrospectivamente as rivalidades qual com o seu ponto de vista sobre o que se passa nos paises estrangeiros
de poderes, a dificuldade e muito maior no que respeita aos problemas e, mais ainda, sobre urn qualquer episodio da sua historia. Os media di-
geopoliticos actuais que estao a decorrer e nos quais se podem produzir fundem globalmente essas representas;oes geopoliticas contraditorias, nas
reviravoltas inesperadas. E esta geopolitica do Mediterraneo que hoje nos quais sao afirmados os direitos historicos deste ou daquele povo sobre este
interessa e que nos preocupa. Num determinado Estado, ainda nao sabe- ou aquele territorio, e negados, em contrapartida, os direitos do outro povo
mos o que acontecera, mas podemos avans;ar varias hipoteses e conside- ou da potencia rival.
rar cenarios mais ou menos perigosos (nao e inutil tentar prever o pior), Todas estas representa<;oes geopoliticas que funcionam por pares anta-
comparando-o com paises, nao necessariamente vizinhos, nos quais pos- g6nicos (mais raramente em trio) recorrem a hist6ria; mas cada uma delas
samos perceber semelhans;as geopoliticas e as diferens;as no seu modo de privilegia no passado o periodo que consolida os seus direitos e ignora os
evolus;ao. A Historia e tamhem aqui indispensavel para tentar compreender factos e acontecimentos cuja evocas;ao e favoravel a tese do adversario.
as componentes actuais; devemos partir daquilo que percebemos dos pro- Estas representa<;oes sao «produzidas» em determinadas circunstancias
blemas actuais, mas sabendo ja mais ou menos aquilo que se passou num historicas por homens que utilizam e difundem ideias, como professores,
tal pais ou regiao.
linguistas, jomalistas, politicos, militantes ...
0 pensamento historico e 0 metodo de analise geopolitica sao, de facto, Na comunicas;ao social, o debate geopolitico pode ser actualmente re-
indissociaveis. Por outras palavras, nao podemos utilizar este metodo sem trospectivo e incidir sobre rivalidades territoriais que ja nao existem, mas
recorrermos a Historia. Com efeito, tudo o que se pode representar em refere-se ao passado e as suas questoes politicas e ideol6gicas. Em Frans;a,
mapas de escalas diferentes ou mais precisamente em cada nivel de analise por exemplo, pelo menos nos meios intelectuais e estudantis, nunca se dis-
espacial (quer os conjuntos espaciais se mes;am em quilometros, em deze- cutiu tanto a colonizas;ao, pelo menos em termos da Moral e dos Direitos
nas ou em centenas de quilometros ), quer se trate de tras;ados de fronteiras, Humanos, quando a epoca colonial ja terminou M 50 anos em relas;ao a
de localizas;oes desordenadas de diferentes povos e das suas linguas, de Marrocos e a Tunisia (e as colonias da Africa Negra) eM mais de 40 anos
distribuis;oes desiguais do povoamento, etc., tudo isto resulta de relas;oes em relas;ao a Argelia. Ora, fala-se novamente da guerra que ai foi travada
de fors;as mais ou menos antigas que se desenrolaram em periodos de tem- durante sete anos.
po mais ou menos longos.
Aquilo que agora se comes;a a designar por questao p6s-colonial(l) e
0 essencial e explicar os confiitos actuais, associando os mapas que os constituido por problemas muito actuais que nao tinham sido previstos e
representam a analise das consequencias presentes de acontecimentos que
se produziram ha mais ou menos tempo, ha alguns meses, alguns anos ou
C) Ver o n° 120 da revista Herodote, 2006 .

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orque seu poder nao era de tipo europeu, pois tinha origem na Asia
que se colocam hoje a Fran<;a e a Inglaterra, a outra grande potencia colo-
~entral. A partir do seculo xvm, o imperio esfor<;ou-se em vao por imitar
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nial, sobretudo devido ao numero de imigrantes que vern das antigas col6-
os progressos tecnicos e culturais dos Estados europeus para melhor lhes
nias. Como a sorte de muitos deles e dos seus filhos e relativamente pre-
resistir militarmente. 0 imperio otomano nao foi capaz, nem por si mesmo
caria em compara<;ao com as condi<;oes de vida da maioria da popula<;ao,
nem atraves dos povos que dominava, de produzir os efeitos da «revolu<;ao
algumas organiza<;oes humanitarias ou anti-racistas, por paixao militante
industrial» e do capitalismo. No seculo XIX, o enfraquecimento progressivo
e metafora orat6ria, acusam a sociedade francesa de ser ainda colonial ou
do imperio otomano e as manobras das potencias europeias provocaram
ate «colonialista», mas ignoram prudentemente as questoes de na<;ao e de
contra ele a revolta dos diferentes povos nao turcos; desde logo os povos
territ6rio.
dos Balcas e, depois, os do Medio Oriente, e todos eles, exortados pelos
E por isso que, se quisermos falar desse fen6meno geopolitico quase
seus intelectuais que ouviam o que se passava na Europa, se lembraram ou
planetaria que foi a coloniza<;ao, nao podemos esquecer os territ6rios e as
inventaram que eram na<;oes e travaram a luta pela independencia.
rivalidades de poderes que estavam em causa; e e tambem necessaria levar
Em certos casos, a recorda<;ao mais ou menos idealizada de antigos
em conta o aparecimento dos movimentos nacionais, que, ao fim de algum
Estados dominados pelo imperio otomano esta na base dos movimentos
tempo, acabaram com o dominio de uma potencia estrangeira. Sao os inte-
independentistas surgidos desde o inicio do seculo XIX na Grecia e nos
lectuais em geral, quando sabem captar o sentimento popular, que estao na
Balcas e no final da Primeira Guerra Mundial no mundo arabe, antes de
origem de qualquer movimento nacional; sao os primeiros a proclamarem
triunfarem ap6s a Segunda Guerra Mundial. A reivindica<;ao geopolitica de
a existencia num certo territ6rio de uma nova na<;ao ou a sobrevivencia de
uma nova na<;ao refere-se a diferen<;as religiosas ou a promo<;ao liteniria
uma na<;ao antiga, para exigirem a independencia contra urn poder definido
de uma lingua ate entao falada sobretudo nos meios po!mlares, ou a uma
como estrangeiro.
fronteira tra<;ada por urn poder estrangeiro e que delimita urn conjunto ter-
Mas os problemas geopoliticos em redor do Meditemlneo sao tanto
ritorial particular no seio de urn conjunto linguistico mais vasto, como no
mais originais e complexos ja que, historicamente, os fen6menos de domi-
nio nao decorrem apenas do fen6meno planetaria da coloniza<;ao: na Ame- mundo arabe.
Logo que se tomaram independentes, os povos balcanicos foram arras-
rica, na Asia e em Africa, a coloniza<;ao foi feita, na maioria dos casos, por
tados pelos seus dirigentes para lutas geopoliticas atrozes, que, pelo jogo
pequenos grupos de militares enviados por razoes mercantis por Estados
das alian<;as extemas, conduziram a Primeira Guerra Mundial e foram re-
da Europa Ocidental (Portugal, Espanha, Inglaterra, Fran<;a, Paises Baixos)
tomadas na Segunda Guerra Mundial. 0 caso jugoslavo, ha cerca de 12
e que entraram em contacto com diversas sociedades aut6ctones, em mui-
anos, mostra que ate os que falavam a mesma lingua (mas que nao tinham
e,
tos casos bern organizadas politicamente por vezes, tecnicamente muito
a mesma religiao) e que tinham criado uma federa<;ao, depois de terem lu-
avan<;adas. Mas estas nao puderam ou nao souberam resistir eficazmente e
tado heroicamente contra o invasor nazi, transformaram uma perestroika,
os seus chefes - ou muitos deles - perceberam que, afinal de contas, tinham
que podia ter sido pacifica, em lutas ferozes por urn territ6rio, exercendo
vantagens do ponto de vista econ6mico e cultural em partilharem o poder
metodos de «purificayaO etnica» pr6ximos dos genocidios.
com os Europeus(Z). Na verdade, trata-se de uma imensa questao cultural 0 mais espantoso eque, no conjunto mediterranico, este processo de
e geopolitica e considera-la-emos de forma mais rigorosa a prop6sito das
renascimento - forma<;ao de novas na<;oes, que, sob a pressao dos grupos
formas que assumiu nas conquistas coloniais no Magrebe.
nacionalistas, reivindicam a independencia e territ6rios para defenderem
Mas grande parte dos povos mediterranicos, os do Mediterraneo Orien-
a sua lingua - se manifeste actualmente em Espanha, em povos que nao
tal, cristaos ou mu<;ulmanos, esteve submetida durante seculos ao dominio
estiveram submetidos a urn dominio colonial (foi antes o contrario) e que
de urn poder que consideravam estrangeiro, o do grande imperio dos Tur- participaram juntos em grandes movimentos hist6ricos de conquista e re-
cos otomanos, mas sem que, porem, se tratasse de uma coloniza<;ao. Isto conquista, como e o caso dos Bascos e dos Catalaes. Estes nem sequer
tern o argumento classico das regioes europeias «subdesenvolvidas», de
0 Yves Lacoste, Geographie du sous-developpement, PUF, 1982.

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serem uma «periferia» desfavorecida por uma capital centralizada, porque de independencia, ou seja, a uma rivalidade de poderes. A forma particular
a Catalunha e o Pais Basco tiveram a oportunidade e o merito de, a partir como os cidadaos representam, mais ou menos claramente, a sua na<;ao
do seculo xrx, realizarem o desenvolvimento econ6mico mais importante refere-se certamente a sua hist6ria, aos projectos que se lhe atribui, aos
da Peninsula Iberica. perigos que preveem, aos perigos de que suspeitam. No entanto, esta repre-
Este processo de forma<;ao da nova na<;ao esta ainda em curso, como sentas;ao particular que e cada na<;ao evolui por efeito de grandes choques
mostra o crescimento de diversos movimentos nacionalistas em varios pai- geopoliticos. Estes, por vezes, podem levar a exacerbas;ao de sentimentos
ses meditemlnicos, nao s6 o basco e o catalao, mas tambem o corso, o patri6ticos ou, pelo contrario, ao seu adormecimento.
siciliano, o sardo e ate o cabila. Muito singular e dramatico no seu contexto A maioria das numerosas tensoes geopoliticas que se manifestam em
geopolitico e o aparecimento relativamente muito recente (por volta de redor do Mediterraneo traduz rivalidades entre poderes territorialmente vi-
1960) de uma na<;ao palestiniana, cuja originalidade os intelectuais decidi- zinhos, quer se trate do con:flito entre Israelitas e Palestinianos, entre Ser-
ram afirmar, apesar da oposi<;ao dos Estados arabes vizinhos e, certamente, vios e B6snios, entre Turcos e Curdos ou entre Catalaes e Castelhanos. Isto
dos Israelitas. Para os Arabes e tambem para muitos anticolonialistas eu- nao corresponde em nada a imagem geopolitica que temos normalmente
ropeus, Israel, apesar da sua forrna<;ao recente, e visto como o prot6tipo da do Mediterraneo e dos paises que o rodeiam. Esta imagem seria o cenario
conquista colonial; mas, na Palestina, ao contrario de todas as conquistas ou a causa de urn grande confronto entre o Norte eo Sul, entre os paises
coloniais, os primeiros «colonos» judeus chegaram no final do seculo xrx, europeus situados na costa setentrional e os que se estendem na costa sul e
nao como conquistadores enviados por urn Estado europeu, mas como sub- que, na maioria dos casos, sao qualificados como «subdesenvolvidos», de-
ditos do poder otomano, para cultivarem as terras desocupadas adquiridas vido ao dominio colonial que os paises do Norte sobre eles exerceram des-
a Arabes notaveis; ap6s a Primeira Guerra Mundial e ate ao final da Segun- de 0 seculo XIX. Como as sequelas desta colonizas;ao nao desapareceram
da, esses judeus ficaram submetidos a forte autoridade britanica, que tinha depois de as nas;oes terem reconquistado independencia, muitas tensoes
urn mandato das Sociedade das Nas;oes para administrar a Palestina e que perdurariam entre o Norte e o Sul. Esta representas;ao e agora posta em
desconfiava desses judeus que falavam alemao e que eram mais ou menos causa por aqueles que afirmam, quer se trate de islamitas ou de «neocon-
marxistas. Ap6s 1948, os Estados arabes, apesar de terem meios conside- servadores americanos», que o Mediterraneo e a parte do mundo onde o
raveis e da ajuda extema que tambern recebiam, deram varias vezes pro vas «choque de civiliza<;oes» sera mais grave.
da sua ineficacia militar, mas, em 2006, o exercito israelita sofreu urn serio Os dois unicos Estados mediterranicos que poderiam corresponder a
reves no Libano. este esquema de confronto sao a Frans;a e a Argelia, devido as suas posi-
Esta extensa introdu<;ao tern a finalidade de dar uma ideia actual da s;oes espaciais a norte e a sul do mar, as suas diferen<;as culturais e rela<;oes
enorme complexidade dos problemas geopoliticos existentes em redor do hist6ricas; a conquista da Argelia pelo exercito frances foi uma das mais
Mediterraneo, antes de apresentarmos esta extensao maritima enquanto longas e dificeis conquistas colonias realizadas no mundo. Quanto a sua
tal e o grande conjunto espacial que a rodeia. Em seguida, faremos uma independencia, a Argelia conseguiu-a, ao contrario da maioria dos pafses
especie de grande sobrevoo das suas costas para analisar, uma a uma, as colonizados, a custo de uma guerra, que foi urn dos mais longos confiitos
caracteristicas geopoliticas de cada urn dos Estados, que nao vale a pena de descoloniza<;ao e que mergulhou a Fran<;a numa grave crise politica
considerar como fazendo parte de urn conjunto geopolitico mediterranico. intema. Espantoso paradoxo geopolitico: e entre a Argelia e a Frans;a que
Em rela<;ao a cada urn desses Estados, coloca-se o problema da na<;ao, as rela<;oes p6s-coloniais sao mais importantes e mais complexas, se as
nao em termos jurfdicos ou filos6ficos, mas sim nas suas rela<;oes hist6rias compararmos com as que existem entre as outras ex-metr6poles coloniais
mais ou menos confiituosas com outros Estados do outro lado da fronteira e as suas ex-co16nias. Apesar das mem6rias da guerra da Argelia, que es-
ou do outro lado do mar. candalizou tambem a opiniao publica de outros dois paises do Magrebe,
A ideia de na<;ao, fundamental em geopolitica, e em si mesma eminen- seis milhoes de pessoas de cultura mu<;ulmana e, sobretudo, de origem ma-
temente geopolitica, uma vez que se refere a urn territ6rio e ao principio grebina (com grande maioria de ascendencia argelina) vivem em Fran<;a,

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ou seja, quatro vezes mais do que o numero de mu9ulmanos que vivem em
Inglaterra, oriundos do Medio Oriente, do Paquistao e do Bangladesh.
Podemos felicitar-nos, e e o meu caso a titulo pessoal, com a impor-
tancia das rela96es p6s-coloniais entre a Fran9a e a Argelia, mas estas nao
deixam de conter perigos. Ja vimos que, para muitos, sao uma das causas
da terrivel guerra civil em que o povo argelino mergulhou, 30 anos ap6s a
independencia, durante os ultimos oito anos do seculo xx. Nao nos admire-
mos, portanto, que nesta obra se desenvolvam capitulos dedicados a estes
dois paises e as suas rela96es geopoliticos.
Visao de Conjunto

0 mar Mediterraneo e o grande conjunto


geopolitico mediterranico

Antigamente, durante seculos e seculos, no saber e na memoria visual


dos navegadores havia apenas o Mar, Thalassa, esse mar do qual se falani
entre muitos outros, o mar que se estende do B6sforo as Colunas de Her-
cules a que chamamos actualmente o estreito de Gibraltar. Quando os pri-
meiros mapas foram desenhados, apresentavam apenas o Mar, a extensao
maritima entre a Europa, a Asia e aquilo a que entao ainda nao se chamava
Africa, mas a Libia. A designa9ao mar Mediterraneo, ou seja, o mar que
esta no meio das terras, data apenas do seculo xvr.
Dantes, os ge6grafos europeus, os principes e os soberanos falavam
apenas do Mar, pois ignoravam que havia outros; julgavam que os mares
a oeste da Europa formavam uma especie de grande rio, o rio Oceano, que
dava a volta ao mundo. No seculo xv, os Portugueses e, depois, os Espa-
nh6is, lan9aram a pouco e pouco uma serie de explora96es ao longo das
costas de Africa para tentarem encontrar as misteriosas rotas do «ouro do
Sudilo». Desde ha seculos que, atravessando o oeste do Sara, as caravanas
do ouro chegavam aos portos daquilo a que hoje chamamos o Mediterra-
neo Ocidental e, sobretudo, aoporto de Ceuta, junto ao estreito de Gibral-
tar, antes de prosseguirem em direc9ao as grande cidades do Oriente. Mas,
em finais do seculo xrv, o ouro do Sudao deixou de chegar ao Mediterraneo
Ocidental. Sera que se esgotara a jazida? Nao, porque o metal precioso
chegava em grande quantidade ao Egipto atraves do vale do Nilo, para

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