Contando Histórias, Revelando Tradições
Contando Histórias, Revelando Tradições
Contando Histórias, Revelando Tradições
São Paulo
2020
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
São Paulo
2020
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
Dados inseridos pelo(a) autor(a)
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BANCA EXAMINADORA:
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Para Sara e Tutu.
AGRADECIMENTOS
Esta tese se propõe a fazer uma reflexão sobre a pesquisa realizada no campo
das práticas pedagógicas e experiências poéticas vividas junto aos indígenas
das etnias Kokama e Tikuna. Esses encontros sensíveis se pautaram pela busca
de diálogo com os saberes ameríndios e a criação de um espaço de
conhecimento e de trocas culturais que potencializa as vozes dos sujeitos
envolvidos - os indígenas, os alunos-performers e a performer-professora.
Encontros com outros corpos, de pessoas, de grupos, de experiências, de
lugares, de ideias, de histórias, de culturas, de etnias e de gênero, constituindo
a malha de colaborações. São quatro encontros: o primeiro e o segundo falam
da experiência com a comunidade indígena Parque das Tribos localizada no
perímetro urbano da cidade de Manaus, Amazonas, em que o foco está na
relação de troca junto às mulheres (professoras) e crianças indígenas em dois
espaços culturais assessorados pela Gerência de Educação Escolar Indígena
(GEEI/SEMED) instituídos dentro da comunidade: o Centro Cultural Mainuma e
o Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit. O terceiro e o quarto
encontro, revelam, a partir das memórias desta performer-professora, as
experiências vividas com o povo Tikuna no dia a dia da aldeia e especialmente
como convidada no ritual de iniciação feminina Worecü, A Festa da Moça Nova,
aprofundando algumas questões relacionadas aos mitos Tikuna e a performance
das máscaras que aparecem durante esse ritual.
Palavras-chave: Contação de histórias. Experiência poética. Performance.
Saberes ameríndios.
ABSTRACT
This thesis proposes to make a reflexive analysis on the research carried out in
the field of pedagogical practices and poetic experiences lived with the
indigenous peoples of the Kokama and Tikuna ethnic groups. These sensitive
meetings were guided by the search for dialogue with Amerindian knowledge and
the creation of a space of knowledge and cultural exchanges that potentiates the
voices of the subjects involved - the Indians, the student-performers and the
teacher-performer. Meetings with other bodies, people, groups, experiences,
places, ideas, stories, cultures, ethnicities and gender, constituting the network
of collaborations. There are four meetings: the first and the second talk about the
experience with the indigenous community Parque das Tribos located in the
urban perimeter of the city of Manaus, Amazonas, where the focus is on the
exchange relationship with women (teachers) and indigenous children in two
cultural spaces advised by the Indigenous School Education Management (GEEI
/ SEMED) established within the community: the Mainuma Cultural Center and
the Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit Cultural Space. The third and fourth
meetings reveal, based on the memories of this artist, the experiences lived with
the Tikuna people in the daily life of the village and especially as a guest in the
Worecü female initiation ritual, A Festa da Moça Nova, deepening some issues
related to the Tikuna myths and the performance of the masks that appear during
this ritual.
Keywords: Storytelling. Poetic experience. Performance. Amerindian
knowledge.
KUATIARAKARINKƗRA1
Nha’ã nhu’ãcü tana ũgüü̃ i de’ogü nhumatchi i cuãgü imae’ῖ. Wüigu ya maῖyugü
ya Kokama rü nhumatchi Tikuna rü ngema’ãcü. Wü’i cua’tchiruiũ ya maῖyugü
ye’ama i peagüe’ ngemaca’ni’ῖ tana üüca wü’i natchica. Cuagüpataü
nawatanaiügü’ü̃ i de’agü yima Parque das Tribos nuã nina ngemaü̃ Manaus
arüngaüwa.Nhemaca’ na’ãcu torü dawenüwa nge’ãtagüma’ã rica ta puracüeῖ ya
maῖyugü i ῖgü’e (nguetaerü’ü̃) Nhumatchi ya bu’egü ya maῖyugü i ῖgü’e ngema
tare natchicawa ni’ῖ ta puracüeῖ naca ya yima maῖyugüakü i ῖne (GEEI/SEMED).
Ngema ni tana ügü’ü̃ yima iane arü aiepewa ya Uka Umbuesara Wakenai.
Ngema puracügü ianema’ã ta ügü’ü̃ ngemaca’ na’ãcü naca’ ngue’ῖ i nacümagü
nhumatchi tümacügü Escola Superior de Artes e Turismo (ESAT) Universidade
do Estado do Amazonas (UEA) wüigu tana ügü’ü puracugü nama’a’ i nguetanügü
nhemaca’ ngemaca’ nagu ti de’agü wüigu ngema natchiga nacümagü nuã
ῖãneuia rü ngema i ngupetügü’ü̃ i nacümagü da’oῖanewa tümacümagu rü nama’a
tuma’arü cuagü ngu’epataü̃ nuã natchicawa. Norü tare ngune’ῖgu rü nagu narü
ῖnü na nhunhaãgü tamae’ẽῖ ya Ticunagü i wütchigü i ngune’ãgu ngema
natchicawa i meẽtchi’iwa rü ngema tchana na u’gü. Nawa i nhema Worecütchiga
inacümagü i Ticunagü ni’ῖ nhunhaãgü i norü yü’ütchiga. Nagu ni uta i wuitchigü
inacümagü i Ticuna ni nhunhaãcü na we’i i nacümagü. Rü nu’ü̃ dauta ngema
yü’ü̃ wa ngo’ogütchametü ngemaniῖ tchorü cua. Tcha ũ’ü̃ rü nhumatchi nü’ü̃ tchi
ũ’ü̃ ngemaca’wacü nhema nana’ã tchorü’ũ. Cuagü ngema namaaü̃wa na
nhunhaãcü nawa tchã ngutcha’ü̃ nhema cua nori’itchi nawa tchana ügü rü
putüragüni’ã na nü’ü̃ tchã cuaü̃ca’ ngema na’ῖ nina ũ’ü̃. I tumacümagü rü
nhumatchi tümaãrü cuãgü.
Ngema de’agü i toyegü’ũ: I ngema nü’ü̃ tchi’u’ü̃ inatchiga. I nhema cua’gü rü
nhumatchi. Tumacümagü. Ya maῖyu gü.
3
Me formei bacharel em Artes Cênicas – interpretação teatral no ano de 2008 pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) no Rio Grande do Sul, sou atriz-performer e desde julho de 2014
atuo como docente do curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) em
Manaus.
4
A partir do trabalho com Elisabeth Silva Lopes: “Uso o termo performer em vez de ator me
referindo aquele que não se restringe à interpretação teatral no sentido convencional, mas
transita por diferentes campos do conhecimento, desfronteriza as linguagens, amplia as noções
espacio-temporais e fricciona as relações entre o real e o ficcional incorporando estados
emocionais, subjetividades, memórias, criando a sua poética particular.” (LOPES, 2010: 135).
5
BORDIN, Vanessa Benites. O jogo do bufão como ferramenta para o artivista. Dissertação
de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2013.
6
Artista, pesquisadora e professora doutora da Universidade de São Paulo.
7
O curso oferecido pelo Instituto Hemisférico de Performance e Política foi realizado na cidade
de San Cristóbal de Las Casas, estado de Chiapas, México, no período de 24 de julho a 13 de
agosto de 2011. O curso foi coordenado por Diana Taylor pesquisadora dos estudos da
16
curso reflete em meu trabalho até hoje. Neste caso, o universo da performance
política focado no artivismo feito pelos artivistas8, artistas de diferentes campos
cujos trabalhos autorais protestam com ações em espaços cênicos e/ou
públicos.
Dessa experiência vivida no México, destaco os encontros com as
mulheres indígenas do FOMMA9 (Fortaleza da Mulher Maya) onde realizamos
práticas poéticas conjuntas, rodas de conversas e apreciamos suas intervenções
artísticas dirigidas pela atriz e diretora do Centro Hemisférico/FOMMA Doris
Difarnecio. As memórias dessa vivência reverberam na reflexão que está sendo
abordada aqui, pois os estudos e as práticas realizadas durante o curso
levantavam questões a respeito do trabalho com a alteridade e como
desenvolver práticas poéticas a partir de sua realidade, revelando as histórias de
opressão sofridas por essas mulheres.10 Outro momento importante que vivemos
no México foi o encontro com uma comunidade Zapatista11, onde percebemos
que outro modo de vida é possível, já que constroem uma sociedade com suas
próprias leis, em que a arte se faz presente como forma de resistência através
da prática do grafite, teatro e artesanato.
Nesse mesmo curso, ainda tivemos a experiência com a performer
artivista, Jesusa Rodriguéz que desenvolveu ao longo dos dias uma oficina que
visava a apresentação pública de uma performance – pensada a partir do
conceito de artivismo - pelas ruas de San Cristóbal de Las Casas. A ideia era
que todos os participantes do curso estivessem presentes nessa performance,
que seria uma intervenção para falar dos danos causados pela plantação de
Figura 112 – Performance realizada em San Cristóbal de Las Casas, representando a antiga
civilização mexicana contra a Monsanto, coordenada por Jesusa Ródriguez no curso de Arte e
Resistência. San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 15/08/2011.
12
Todas as imagens desta tese são do acervo pessoal desta pesquisadora, feitas e divulgadas
com autorização concedida pelos envolvidos.
13
Uso ‘encorporar’, como na tradução de Eduardo Viveiros de Castro (1996) para a tradução da
palavra embodiment que serve, também, a diferentes disciplinas.
14
Tikuna, Ticuna, Tukuna, são algumas das grafias utilizadas para denominar a etnia indígena
que hoje vive no Brasil, Colômbia e Peru, região Amazônica da tríplice fronteira, sendo a etnia
com a maior população indígena do Brasil. Eu opto neste trabalho pela grafia Tikuna, que é como
Mepaeruna escreve, ela, mulher Tikuna ‘personagem principal’ desta história que conto aqui.
Opto, quando possível, utilizar o nome indígena dos participantes deste trabalho, pois a maioria
dos indígenas possuem um nome em português e outro referente à sua etnia.
19
15
Santo Ângelo da Missões, Rio Grande do Sul. Falarei um pouco sobre essa relação com o
povo Guarani no próximo tópico.
16
O Rio Grande do Sul é frequentemente lembrado como a terra dos colonizadores alemães e
italianos.
17
No ano de 2014, quando fui jurada de quatro festivais folclóricos da Festa do Boi-Bumbá, um
em Manaus e três em diferentes cidades do interior do Amazonas.
20
18
Com base em Diana Taylor (2013) uso a noção de repertório para me referir às performances
do corpo. Doris Difarnecio também utiliza a expressão de ‘artista como repertório’ pensando
21
19
Para eles não existe esse conceito de arte, vida e arte não estão dissociadas, mas é o conceito
que trago a partir de minhas referências.
23
meus processos de criação fruto do diálogo que estabeleço com suas variadas
formas de saberes.
Esta ideia de ‘afeto’ tem sido muito usada, tanto no campo das artes
cênicas, quanto na antropologia, com trabalhos que se inspiram nas teorias de
Baruch Espinosa sobre ‘afecções’ e ‘afetos’ (CHAUÍ, 2001; DELEUZE, 2002) e
culminam no conceito de ‘devir’ de Deleuze e Guattari (1997), relacionando-o ao
conceito de ‘perspectivismo’ de Viveiros de Castro (2015). Devido ao fato de
Espinosa trazer para o centro da discussão filosófica o corpo, em contraponto as
ideias platônicas que colocam a alma como condutora do corpo, e cartesianas
que dividem corpo e alma.
Assim, Espinosa vai falar da capacidade que o corpo tem de ser afetado
por outros corpos. O ‘affectus’ (afeto) é a ‘potência de agir’ e ‘affectio’ (afecção)
é o efeito dessa potência sobre os outros corpos. Então, a afecção é a ação de
um corpo sobre o outro que diminui ou aumenta a sua potência de agir,
experimentando o afeto da tristeza ou da alegria. Com efeito, as afecções
transformam a pessoa a partir dos afetos, que não são considerados
sentimentos, mas sim, desejos, vontades. Mais tarde Deleuze e Guattari (1997)
vão trazer o conceito de ‘devir’ relacionado ‘a economia do desejo’ que vem
dessa ideia de afeto, dizendo que o fluxo do desejo opera por afeto e devir.
Deste modo, a ideia do devir é deixar-se afetar pelo que afeta o outro para com
ele estabelecer uma relação. Temos como referência nas artes cênicas, além de
Eleonora Fabião que citamos anteriormente, também a pesquisa de Renato
Ferracini (2013) que vai trazer esses conceitos para pensar o trabalho do ator.
A pesquisa de campo em artes não é uma pesquisa de campo como na
antropologia, não vou analisar os modos de vida dos Kokama, nem dos Tikuna,
vou mostrar como fluíram as relações que se estabeleceram, aproveitando os
momentos de encontros com as pessoas, revelando como tudo isso ecoa na
prática cotidiana e poética.
Trata-se de uma pesquisa mais próxima da autoetnografia, reverberando
em uma escrita “que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões
culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si”.
(FORTIN, 2006: 83). Deste modo, a autoetnografia se aproxima da autobiografia
- por ser uma escrita do ‘eu’ - deixando transparecer o componente sensível que
afeta aquele que reflete a partir de sua história de vida. Outra questão importante
24
20
Na banca de qualificação formada pela orientadora Professora Doutora Elisabeth Silva Lopes
e as Professoras Doutoras Maria Thais Lima Santos e Regina Polo Müller, foi sugerido que eu
começasse a tese falando da prática que estava desenvolvendo no Parque das Tribos em
Manaus, já que no relatório de qualificação apresentado eu começava falando da experiência na
aldeia de Nossa Senhora de Nazaré, que foi o primeiro encontro com os indígenas.
21
Primeira comunidade indígena que conheci e pude conviver durante o ano 2016, onde vive o
povo da etnia Tikuna, localizada no Alto Solimões, município de São Paulo de Olivença, região
Amazônica da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.
25
22
Em Kokama quer dizer Beija-Flor.
23
‘Contadores de histórias: o teatro de formas animadas na comunidade’.
24
A professora e pesquisadora Kokama Altaci Corrêa Rubim (2016) utiliza o termo vitalização,
ela diz que o termo é um contraponto aos termos revitalização ou resgate, pois revitalização, ou
resgate, quer dizer reviver, resgatar, e ela argumenta que a língua Kokama não está morta, nem
perdida, por isso vitalização no sentido de fortalecer.
25
‘Casa de Guerreiro’ na língua Aruak.
26
Núcleo de pesquisa e experimentações das teatralidades contemporâneas e suas interfaces
pedagógicas – CNPq – UEA liderado pelo Professor Doutor Luiz Davi Vieira Gonçalves.
27
Na língua geral Nheengatú quer dizer Casa de aprender a origem dos guerreiros.
28
Não eram as mesmas crianças do grupo de Tsuni.
26
diz respeito à escuta, ao invés de focarmos no que o outro está falando, antes
dele acabar sua fala já estamos pensando no que nós (eu) vamos falar, o que
impede uma reação e troca espontâneas. Importante destacar que nas reuniões
que participo com as mulheres indígenas existe o momento em que cada uma
fala, sem que ninguém interrompa a fala da outra, e após todas falarem elas
ficam em silêncio por alguns minutos.
No início achava estranho, pensava: será que ninguém vai falar nada?
será que devo tomar a iniciativa? Então, Mepaeruna, da etnia Tikuna, me disse
que funciona assim: é colocada a pauta do debate e em seguida se dá um tempo
para a reflexão individual de cada uma sobre o assunto: ‘primeiro pensa, depois
fala, e tem que ser uma de cada vez’. Existe um tempo para que o que foi dito
seja processado por aquela que escuta, esse tempo é importante para que as
resoluções não sejam tomadas precipitadamente.
Este relato pode ser pensado a partir do que Paul Zumthor (2002) diz a
respeito da relação entre emissor da voz e receptor auditivo. O historiador e
linguista nos fala que o encontro entre aquele que fala e aquele que escuta, gera
uma troca que leva à compreensão, uma compreensão que é de cada um, e
essa compreensão está relacionada ao prazer da experiência. Uma experiência
que envolve todas as funções da percepção: “(ouvido, vista, tato...), a intelecção,
a emoção se acham misturadas simultaneamente em jogo, de maneira
dramática” (ZUMTHOR, 2002: 59). Assim, o corpo dos dois (do emissor da voz
e do receptor auditivo) é modificado durante essa troca, que se dá em um
contexto circunstancial e sociológico único. Portanto, o corpo é a materialização
daquilo que é próprio do indivíduo, da realidade que se vive, e é através dele que
nos manifestamos, nos relacionamos com o mundo e construímos
conhecimento. “Ora, não somente o conhecimento se faz pelo corpo mas ele é,
em seu princípio, conhecimento do corpo.” (ZUMTHOR, 2002: 68).
Com efeito, a importância do trabalho de Zumthor também está em
quebrar com algumas dicotomias, como a relação corpo e voz, muito cara aos
profissionais das artes cênicas. Considera a voz, não separada do corpo, mas
como qualidade de emanação do corpo, representando-o sonoramente de
maneira plena, fazendo com que através da voz o sujeito atravesse o limite do
seu próprio corpo, mas sem rompê-lo, na medida em que possibilita uma
interação com o outro que habita o campo da linguagem.
29
29
Que também traz a referência de Paul Zumthor em seu trabalho.
30
30 Tradução nossa, a partir do original: “I believe that if the study of performance does not expand
and deepen going far beyond both the training of performance workers and the Western tradition
of drama and dance, the whole academic performing arts enterprise constructed over the past
half-century or so will collapse. The happy alternative is to expand our vision of what performance
is, to study it not only as art but as a means of understanding historical, social, and cultural
processes.” (SCHECHNER, 2004: 9).
31
comunicação com o outro que nos leva a refletir sobre nós próprios e acionar
processos de transformação e redefinição de identidade” (MÜLLER, 2005: 72).
A ideia do corpo como constituinte central nas sociedades ameríndias da
América do Sul é um conceito chave para começarmos a nos familiarizar com
sua realidade e visão de mundo. Para tanto, temos como introdutório o estudo
feito pelos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro, Anthony Seeger e Roberto
Da Matta (1979) em que falam: “que a originalidade das sociedades tribais
brasileiras (de modo mais amplo, sul-americana) reside numa elaboração
particularmente rica da noção de pessoa, como referência especial à
corporalidade enquanto idioma simbólico focal.” (P. 2).
A noção de ‘pessoa’ é sustentada a partir de um pensamento coletivo em
que todas as espécies possuem um fundo humano universal em si, e se definem
a partir da complementação do olhar do outro, onde o corpo é uma matriz
simbólica que ocupa um lugar central para o entendimento da natureza humana.
Essa maneira ameríndia de percepção do mundo, Eduardo Viveiros de Castro31
vai denominar de ‘perspectivismo’. Deste modo, a ideia de corpo não se dissocia
da ideia de pessoa, que está relacionada a um contexto, e o corpo vai sendo
construído ao longo da trajetória de vida de cada um.
Esse corpo está ligado ao conceito de saber, o ‘saber do corpo’, como
ideia de aprendizagem no mundo ameríndio. Trago este conceito a partir do
estudo da antropóloga Els Lagrou (2007) baseada em sua experiência com o
grupo indígena Kaxinawa da região do Acre da Amazônia. Lagrou diz que na
cultura ameríndia o conhecimento não se acumula fora, ele é construído a partir
do próprio sujeito e de suas relações com o outro e a natureza.
31
“Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (1996) e "Metafísicas Canibais:
elementos para uma antropologia pós-estrutural" (2015).
33
32 Apesar de Viveiros de Castro propor como grafia a palavra ‘encorporar’, é uma forma escrita
que foi substituída por incorporar. Dicionário on-line de português:
https://www.dicio.com.br/encorporar/ (acesso: 28/10/2019). No caso dos trabalhos de Viveiros
de Castro e Taylor, o ‘encorporar’ ou ‘incorporar’ tem o mesmo sentido de práticas relacionadas
a corporeidade.
34
33 Durante a pesquisa a respeito de conceitos, como o de cultura, para falar sobre as questões
das diferenças culturais que existem, conheci novos conceitos nesta direção, como
multiculturalidade, interculturalidade e transculturalidade. Eu optei por trazer dois termos:
‘interculturalidade’ (Homi Bhabha 1998) e ‘transculturalidade’ (Wolfgang Welsch, 2009). Já que
os dois autores são referências para muitos trabalhos que cito ao longo da escrita. Eles abordam
a ideia de ‘hibridismo cultural’ como importante para pensarmos o diálogo que ocorre entre as
culturas no processo de desenvolvimento de nossa sociedade. O ‘hibridismo cultural’ seria o
'entre-lugar', que carrega o significado da cultura, sem hierarquias, criando de certa forma um
espaço de interstício, onde se reconhecem as diferenças e se reconstroem identidades. A ideia
de transcultural traz as diferenças através do estabelecimento de trocas. E o intercultural se
coloca num lugar de interstício estabelecendo um encontro que forme uma rede. Assim, os dois
termos cabem para pensarmos o diálogo cultural aqui proposto.
36
que se comia era o corpo do inimigo entendido como signo, logo, se comia “a
relação do inimigo com o seu devorador (...). O que se assimilava da vítima era
essa alteridade como ponto de vista sobre o Eu.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015:
160).
Nesse sentido, Eduardo Viveiros de Castro vai além de Oswald de
Andrade, pois realmente convive com os indígenas, podendo dessa forma ter
uma compreensão mais fundamentada de seu pensamento, como nos fala
Renato Sztutman: “Viveiros de Castro e Oswald de Andrade se encontram no
registro antropofágico. O ponto é que apenas o primeiro teve oportunidade de se
defrontar diretamente com os antropófagos ‘em pessoa’; os ‘verdadeiros’ autores
do conceito.” (2007: 21).
Percebe-se que a vivência e o entendimento do contexto são essenciais
para assimilar questões que surgem do encontro com culturas diferentes, pois
com a teoria podemos ter um entendimento do todo, mas é com a vivência do
dia a dia que vamos compreendendo como esse todo se constrói, para
posteriormente, talvez, produzirmos um conhecimento que possa ser relevante
para nosso contexto relacionado a isso.
35Essa é uma questão complexa, mas a experiência pode ser vivenciada por um acontecimento
no plano físico, mental ou espiritual, por isso, não podemos classificá-las como mentiras.
39
transmitidos pelos antepassados muito antigos, eles vão além disso, pois se
transformam e se enriquecem pelas novas gerações. Os saberes tradicionais
são “conjuntos duradouros de formas particulares de gerar conhecimentos.”
(CUNHA, 2009: 365). Desta maneira, a ideia de tradicional não concerne aos
seus referentes e sim aos seus procedimentos que são múltiplos.
As formas tradicionais de produção de conhecimento dos povos
ameríndios na atualidade se manifestam nas aldeias e comunidades longe dos
centros urbanos, mas especialmente os indígenas que vivem na cidade estão
permanentemente reelaborando suas tradições, mantendo as relações com o
passado para ressignificar o presente. Eles querem ser reconhecidos enquanto
tais, mesmo fora das aldeias, porque o que ocorre frequentemente é serem
taxados de ‘não índios’ ao buscarem um espaço na cidade.
Convivendo com os indígenas da Comunidade Parque das Tribos, situada
no perímetro urbano de Manaus, onde moram famílias de cerca de vinte e quatro
etnias indígenas, tenho acompanhado a luta desses povos para manter as
características fundamentais de seus modos de vida, preservando aspectos
vitais de sua cultura, especialmente relacionados à sua língua.
Mepaeruna, da etnia Tikuna, é uma das mulheres do Parque das Tribos
com quem mais convivo, hoje temos uma relação que já é de amizade, para além
do trabalho e pesquisa. Percebo seu empenho para que os saberes tradicionais
de seu povo sejam mantidos na comunidade, começando por sua casa. Ela me
contou que logo que saiu da aldeia37 morava em um bairro de Manaus onde não
tinha espaço para as crianças brincarem e nem contato com outros indígenas.
Não podia plantar e nem fazer peixe, ‘só comia frango do mercado’, por isso
decidiu tentar um pedaço de terra no Parque das Tribos, agora lá, ela pode
manter seus costumes, fazer peixe para os filhos, plantar banana, macaxeira e
principalmente falar sua língua. Mepaeruna faz questão de só falar na língua
Tikuna com os seus filhos, que aprendem o português fora.
Amanda Mustafa (2018), professora-pesquisadora que trabalhou nos
Centros Culturais de Educação Indígena do Parque das Tribos, nos fala que até
pouco tempo só eram considerados indígenas os que viviam em territórios
tradicionais, mas existem literaturas que mostram que a ocupação dos indígenas
em centros urbanos é histórica. Fato que tem aumentado cada vez mais e não
apresenta boas perspectivas para esses povos em relação a preservação e
manutenção de sua cultura, língua e identidade, muito menos às suas condições
de sobrevivência. Acrescenta, que um dos grandes fatores de desconfiança e
invisibilidade do indígena em contexto urbano é acreditar que eles devem se
manter prisioneiros de sua ancestralidade também em questão territorial, como
povos pertencentes somente a floresta. No entanto, a configuração atual dos
povos indígenas mostra que eles estão buscando uma nova forma de
organização social dentro das comunidades citadinas para que consigam
continuar resistindo.
Mepaeruna trabalha com grafismos indígenas, artesanato e
especialmente como cantora, a maioria dos cantos de seu repertório são cantos
tradicionais Tikuna que ela aprendeu com sua avó: ‘Eu canto muito, minha
avozinha que me ensinou, até hoje esse canto está na minha cabeça.’ O canto
é um conhecimento que fica preservado no corpo daquele que sabe, o
conhecimento memória que se dá na relação com o outro, uma troca que se
estabelece estando junto com os mais velhos, ouvindo os cantos e
progressivamente aprendendo a cantar. É um saber que se elabora pela
experiência, ‘o saber do corpo’ (LAGROU, 2007), o saber ‘encorporado’
(VIVEIROS DE CASTRO, 1996), a experiência de repertório (Taylor, 2013). Na
mesma perspectiva que Zumthor (2002) fala que o conhecimento não somente
se faz pelo corpo, mas é do corpo, pois se trata de uma acumulação de
conhecimentos que ultrapassa a racionalidade, são da ordem da sensação.
As teorias e conceitos a respeito dos povos tradicionais ameríndios nos
ajudam a compreender o quão são particulares suas formas de interpretar e se
organizar no mundo. Precisamos refletir a partir delas para elaborarmos uma
prática conjunta, que realmente seja um diálogo entre saberes, não um se
sobrepondo ao outro ou supervalorizando o outro.
38
Uso aspas, pois a maioria das ‘lendas’ são colocadas em nosso cotidiano de forma folclorizada,
contadas a partir do ponto de vista do colonizador, do estudioso branco que coletou as histórias
e mitologias dos indígenas, traduziu, transcreveu, muitas vezes, sem levar em conta a forma de
ler o mundo daquela alteridade, e, até sem compreendê-la, já que é bastante particular.
43
40 ZUPPI, Patricia de Almeida. Ñembojera “como uma flor que se desdobra à luz do sol” rastros
entre poéticas. Dissertação apresentada ao Departamento de Artes Cênicas da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre. São
Paulo: 2013.
41 Bebida feita de erva-mate e água quente, servida em uma cuia feita de Porongo. Herança
42
http://www.portaldasmissoes.com.br (acesso em: 24/10/2019).
46
43 Quinze hectares de terras, que conseguiram em 2015 através de recursos do Ministério Público
do Trabalho e Ministério Público Federal, para abrigar cerca de onze famílias. As terras foram
escolhidas pelos indígenas pela proximidade do rio e por questões ligadas à sua espiritualidade.
Disponível em: http://www.portaldasmissoes.com.br/site/view/id/1629/aldeia-guarani-aldeia-
yanca-ju.html (acesso: 24/10/2019).
44 Esse movimento de dar lugar de fala aos indígenas cresceu na região, especialmente a partir
dos idos dos anos 2000, pensando-se principalmente na valorização, difusão e desmitificação
da cultura indígena, apoiada por indigenistas, pesquisadores e professores das universidades
(Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e Unipampa), bem como por órgãos como o
Observatório Missioneiro de Atividades Criativas e Culturais (OmiCult) e o Conselho de Missão
entre Povos Indígenas (Comin). Realizando diferentes tipos de projetos, como projetos
audiovisuais, onde os indígenas são os protagonistas - enquanto produtores e participantes do
processo - abrindo um espaço de reivindicação para suas pautas, além da divulgação de sua
cultura.
45 Os discursos pós-coloniais ganharam força entre os anos 1970 e 1980 com o intuito de 'dar
pelo 'homem branco europeu'. "Os discursos pós-coloniais exigem formas de pensamento
dialético que não recusem ou neguem a outridade (alteridade) que constitui o domínio simbólico
das identificações psíquicas e sociais." (BHABHA, 1998: 242).
48
Figura 2 - Apresentação dos Guaranis no evento: ‘Missa da Terra sem males’. Em frente à
Catedral Angelopolitana, Santo Ângelo, RS. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 15/09/2019.
49
Figura 3 – Coletivo performando a história dos mundos Kokama no Centro Cultural Mainuma,
Parque das Tribos, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 14/04/2018.
50
O mundo nasce quando nasce Kémarin, o primeiro homem Kokama, filho de uma
mulher muito boa e de Kémari, Deus Kokama que de pomba virou anjo. Os primeiros
tsumi, xamãs ayahuasqueiros, passaram o conhecimento da existência de cinco sóis
(Kuarachi) - mundos ou espaços - chamam sol porque o sol transpassa tudo.
Wepe Kuarachi, é o primeiro sol ou primeiro mundo, que fica debaixo da água, lá
vive a Mãe d’água, ela é dona deste espaço e decide quando acontecerá a crescente e
vazante dos lagos, rios e riachos. Neste espaço há uma enorme Mui Watsu (cobra
grande) que segura os cinco mundos e faz bolhas no mundo dos peixes, ela é
acompanhada pela Onça Preta, a Mãe das Arraias e a Mãe dos Tracajás que seguram
Mui Watsu para que ela não saia, senão haverá grandes redemoinhos e desastres nos
outros mundos.
Wepe Mukuika, é o segundo sol, onde vivem os peixes, lagartos, botos, tracajás,
jabutis e jacarés. A dona da água é Ipira Mama, com seus cabelos compridos e seu canto
penetrante, ela se relaciona com os ikuan (curandeiros) e os
payun (feiticeiros) transmitindo mensagens boas e ruins para cheguem até as
pessoas.
Mutsapɨrɨka kuarachi, o terceiro sol, é onde vive o povo Kokama com suas
plantas, animais, seres naturais, curandeiros e seres espirituais. Quando querem semear,
pescar ou caçar pedem permissão aos donos ou espíritos que vivem na mata, na
montanha, na água, na terra e nas árvores. O dono deste mundo, que cuida de todos os
habitantes, é Ɨwɨrati Mama, a Mãe da Mata. Ela não gosta que mexam com suas crias,
que são as árvores e todas as outras plantas que existem, quando isso acontece, ela
chama a Mãe do Vento e a Mãe da Chuva para atacar as pessoas. Às vezes, também se
apresenta disfarçada de pessoa para distrair quem está nas matas, impedindo quem
esteja com más intensões, fazendo com que errem o caminho.
Irakua kuarachi, é o quarto sol, nesse espaço vivem as almas que se relacionam
com o xamã ayahuasqueiro. As almas dos mortos bons vivem em casas entre flores,
estrelas e pássaros, sobre o cume das montanhas, já os mortos maus são queimados e
suas cinzas formam as nuvens do céu.
Pichka kuarachi, o quinto sol, é onde vive o Deus Iwatin Papa e Kémari, o Deus
Kokama que era uma pomba e se transformou em um anjo. Mais abaixo se encontram
colinas e um pouco acima no meio das colinas vive o Uruputini Mama, chefe de todas as
46
Localizado no Parque das Tribos, Manaus, AM. Assessorado pela Gerência de Educação
Escolar Indígena da Secretária Escolar Municipal de Educação (GEEI/SEMED).
51
aves da terra. Neste mundo é onde estão Yatsɨ (a lua) e mais acima Kuarachi (o sol) que
ilumina todos os mundos. 47
47
Trago aqui uma adaptação do mito de criação do mundo Kokama a partir do material didático
fornecido para o ensino da língua Kokama. Mesclei a versão do livro em português com a versão
em espanhol, que eu mesma traduzi, pois, a versão em português foi reescrita a partir do
espanhol. Rubim, Altaci Corrêa. Yawati Tinin. Brasília: Lexterm, UnB, 2015. Edição bilíngue:
Kokama e Português. Que foi retirado do livro produzido pelo: Programa de Formación de
Maestros Bilingues de La Amazonia Peruana-Formabiap/AIDESEP/ISSP, Loreto. Visiones
Kukama-kukamiria em relación al bosque y La sociedade. Série: Visiones y Conocimientos
Indígenas. Primeira edición, Iquito-Peru, Júlio, 2009. Essa história foi interpretada e adaptada
para a escrita do Kokama no Brasil por Altaci Corrêa Rubim/SEMED/PCSA/LEXTERM/UnB.
Também ouvi a versão de Dona Raimunda Kokama que me ajudou na adaptação.
52
que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma atenção
que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta.” (ZUMTHOR, 2002: 73).
Para que eu contasse a história dos mundos Kokama, Tsuni me
emprestou o material didático bilíngue de ensino da língua Kokama que utiliza
em aula: Yawati Tinin (Jabuti Branco), elaborado pela professora indígena
Kokama Altaci Corrêa Rubim, que além de ter produzido vários volumes desse
material, desenvolve pesquisas nas áreas linguísticas e educacionais a respeito
de seu povo. Rubim fala sobre a questão da memória coletiva na tradição oral,
passada de geração a geração pelos mais velhos, como uma característica dos
saberes Kokama:
48O povo Kokama vive em comunidades no Brasil, Peru e Colômbia, principalmente na região
da tríplice fronteira.
54
humor como uma característica, já que a maioria das histórias com que tenho
trabalhado permitem isso.
O figurino que utilizo é uma saia na cor neutra de tecido liso cru, com
bolsos grandes onde guardo os objetos cênicos e os instrumentos musicais, que
podem ser de cores e texturas variadas. Essa saia me acompanha nas
contações de histórias desde o final de 2007, quando eu e minha colega, hoje
artista-professora, Jordana de Moraes, apresentamos nossa montagem cênica49
de formatura em Artes Cênicas50, feita para a rua51. Na época, nossa orientadora
foi Luciana Hartmann, portanto, tivemos um bom suporte bibliográfico, além da
orientação prática que nos fez conhecer algumas técnicas de como contar
histórias, relacionadas ao que falei sobre a minha criação.
Hoje, a saia possui grafismos Kokama. Quando os adolescentes
indígenas da turma de Tsuni souberam que eu iria contar a história sobre os
mundos Kokama sugeriram que minha saia fosse pintada com os grafismos, que,
segundo eles, a deixaria mais bonita e combinaria com a história. Eu aceitei,
então os adolescentes desenharam os grafismos e agora a saia por si só conta
uma história, uma história que eles são os autores.
Grande do Sul.
51 Falo rua me referindo a espaços públicos abertos de fluxo de pessoas: praças, parques,
calçadões, esquinas etc. Nosso preparo foi para esses espaços, mas também apresentamos em
espaços alternativos que podiam ser fechados, para isso, adaptamos nossas ações, nosso uso
da voz e as relações com o espaço.
56
Figura 4 e 5 - Saia pintada com os grafismos Kokama pelos adolescentes do Centro Cultural
Mainuma, Parque das Tribos, Manaus, AM. Na barra da saia, em vermelho, o grafismo do casco
de jabuti. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
Como vimos, nessa lógica, as fronteiras entre vida e arte não se definem
de forma tão categórica, as coisas fluem de maneira mais orgânica, mesmo que
existam objetos para serem utilizados e objetos para serem contemplados, eles
possuem um significado de existência e relação com o ciclo da vida para as
pessoas daquele povo, através de práticas que ritualizam sua existência.
Na realidade, os conceitos de arte e cultura são definidos a partir de nosso
olhar de não indígenas e, ocasionalmente, apreendidos pelos indígenas como
uma forma de tentar se aproximar do nosso pensamento. Els Lagrou (2009) nos
faz pensar sobre isso, ao dizer que os indígenas não têm a mesma noção de
arte e estética que nós e, muitas vezes, nem mesmo palavras ou conceitos para
defini-la porque o que consideramos arte, a partir de nossas referências, são
para eles objetos com funções específicas dentro de sua sociedade.
Nesta direção, Manuela Carneiro da Cunha (2009) vai trazer uma
definição do conceito de cultura pensando as sociedades ameríndias,
diferenciando cultura e ‘cultura’ (que ela coloca entre aspas). Cunha vai falar que
58
muita coisa foi transformada dentro da nossa cultura, dentro da nossa vivência, dentro
das nossas comunidades indígenas, tudo foi modificado, não existe aquele índio de
1500 mais. E assim, você transmitir como professor isso para as crianças é o que gera
o preconceito que nós temos, a própria universidade transmite visões preconceituosas,
até que ponto o que os livros trazem é real?! então a gente tem que se questionar
muito quanto a isso. Eu fico feliz por estar aqui, por poder falar o que eu penso. As
vezes tenho dificuldade de leitura, de compreender o que os livros dizem e eu tenho
buscado fazer leituras para compreender o pensamento, porque quando você lê, você
começa a entender muitos fatores, por isso eu tenho me empenhado para entender o
olhar sobre a minha cultura e a grande questão em falar sobre a nossa cultura é o
respeito, respeito pela nossa cultura, pela nossa identidade. Muitas pessoas nos
perguntam por que nós saímos das aldeias e viemos para a cidade, para vir sofrer em
Manaus, porque nós não ficamos nas aldeias. ‘Vocês têm que voltar para as aldeias
de vocês!’ Mas as pessoas não entendem que o que nós temos na aldeia hoje não
permite a sobrevivência daquele povo que está lá, não existe mais isso, nós
sobrevivíamos da floresta, nós não precisávamos de dinheiro, nós curávamos nossas
doenças com nossas ervas, hoje nem esses remédios fazem mais efeito em nosso
corpo, nós precisamos dos remédios da farmácia para que nosso corpo reaja, nem
nossos pajés conseguem mais nos curar. Não há mais como sobreviver dentro da
nossa aldeia. Existe um movimento contrário hoje na sociedade é que as pessoas que
estão na cidade têm levado para aldeia esse conhecimento, as pessoas vêm para a
cidade adquirem conhecimento e voltam para suas aldeias, alguns ficam aqui, você
não vê índio médico voltando para sua aldeia, e essa é minha grande questão, mas os
professores estão voltando para suas comunidades, é muito importante a educação
dentro das aldeias e não é a educação do branco, os brancos são importantes porque
são nossos parceiros para tentar nos ajudar a compreender esse processo, o
conhecimento científico aliado ao nosso conhecimento ele soma forças que pode
ajudar a comunidade. O conhecimento científico, as experiências de outras pessoas
com o nosso conhecimento, eles unidos são muito, a gente fica batendo como
professor nós queremos uma educação diferenciada, mas porque vocês querem uma
educação diferenciada? porque se a gente não tem uma educação diferenciada a
nossa cultura, ela vai se perder, a nossa identidade ela vai se perder, porque dentro
da educação escolar indígena ela valoriza todos esses elementos da nossa cultura e a
gente precisa sim de uma educação diferenciada, isso é importante para nós.
61
Figura 6 - ‘Diálogo com as mulheres indígenas’. Sentadas nos bancos, a esquerda: Tsuni, eu,
em seguida, no centro, a Cacique Lutana, ao seu lado Jackeline Monteiro - discente do curso de
Licenciatura em Teatro da UEA, uma das organizadoras do evento - e a direita Vanda Witoto.
ESAT (Escola de Comunicação e Artes) – UEA (Universidade do Estado do Amazonas), Manaus,
AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 05/05/2018.
Eu faço questão de usar meu cocar , que é algo muito representativo, isso aqui é
nossa resistência, eu não preciso hoje estar de cocar pra dizer que sou índia, isso é
sagrado para nós, a nossa cultura é sagrada para nós, isso é muito da nossa
identidade e é resistência também, colocar um cocar na cabeça é dizer que nós
estamos aqui e que não vamos desistir de jeito nenhum.
62
Figura 7 - Vanda Witoto em seu momento de fala no evento ‘Diálogo com as mulheres indígenas’.
ESAT – UEA, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 05/05/2018.
Figura 8 – Contando a história dos mundos Kokama. Centro Cultural Mainuma, Parque das
Tribos, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 14/04/2018.
64
Figura 9 - Coletivo performando, recontando a história dos mundos Kokama. Centro Cultural
Mainuma, Parque das Tribos, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 14/04/2018.
Figura 10 - Improvisação a partir da história dos mundos Kokama. Centro Cultural Mainuma,
Parque das Tribos, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 14/04/2018.
65
dos que temos em português, por exemplo o glotal53. Além disso, identificamos
peculiaridades nos tempos e nos ritmos das falas e das canções, justamente por
colocarem nossa voz em registros que não estamos habituados.
Acreditamos que performar histórias estimula o espírito coletivo,
auxiliando na convivência das crianças em sociedade, permitindo que reflitam
sobre os conteúdos das histórias e tragam outros pontos de vista, além de
sentirem-se à vontade para contarem e criarem as suas próprias histórias, se
divertindo nesse espaço. A diversão é um dos pontos principais deste trabalho.
É fundamental a criação de um espaço lúdico e de prazer para que o processo
de ensino-aprendizagem aconteça, eu busco isso quando atuo com crianças, o
brincar é um elemento primordial, pois estão vivendo a infância.
de lá, fato que gerou bastante repercussão na mídia. Nesse ano houve dois
mandados que acabaram em confronto dentro da comunidade, já que os policiais
chegaram acompanhados de homens com patrolas que destruíram algumas
malocas, houve combate entre policiais e moradores, alguns foram levados
presos e tiveram que depor.
No ano de 2017 foi expedido outro mandado de reintegração de posse,
que não se efetivou. A partir desse ano a prefeitura de Manaus começou a dar
auxílio à comunidade com a implementação de equipamentos públicos no
espaço. Alguns auxílios foram destinados aos centros culturais de educação
indígena, também se iniciou o fornecimento de água pelos caminhões-pipas e
mais recentemente, no ano de 2018, começaram obras de asfaltamento,
instalação de iluminação pública e um projeto para a implementação de
saneamento básico e água encanada. Apesar da prefeitura já estar investindo
na comunidade, em novembro deste mesmo ano, houve mais um mandado de
reintegração de posse por parte de uma juíza federal, o que fez com que os
moradores do Parque das Tribos se manifestassem realizando uma marcha pela
comunidade, que foi divulgada na imprensa local.
No entanto, os indígenas estão bem respaldados pois contam com
parceiros como AGU (Advocacia Geral da União), MPF (Ministério Público
Federal) e FUNAI (Fundação Nacional do Índio) que auxiliaram no processo de
legitimação do terreno, que finalmente agora está se assentando. Inclusive, está
sendo construída uma Escola Municipal de Ensino Fundamental dentro da
comunidade, que de acordo com as professoras indígenas será uma escola
‘multilíngue’, pois além do conteúdo formal da BNCC (Base Nacional Comum
Curricular), os alunos terão aulas de línguas indígenas com a contratação das
professoras indígenas da própria comunidade, que continuarão com as aulas
nos Centros Culturais de Educação Indígena.
A luta pelo território do Parque das Tribos é antiga, mas se intensificou e
se consolidou em 2014 pela presença de um grupo maior de famílias indígenas
que se juntaram a Dona Raimunda Kokama, que já ocupava um pedaço do
terreno desde 1986, quando veio ao lado de seu marido e filhos em busca de
assistência médica e trabalho. Na época o lote era considerado propriedade
rural. Dona Raimunda conta que um senhor falou para ela e seu marido que o
68
espaço – que era só mato - não tinha dono e sugeriu que lá ficassem, roçando e
cuidando da terra.
Dona Raimunda foi a desbravadora do Parque das Tribos, junto de sua
filha, hoje Cacique Lutana Kokama, uma das lideranças da comunidade. Uma
geração de mulheres de luta. A filha de Lutana, de dezessete anos, foi uma das
adolescentes que sugeriu os grafismos na saia de contadora de histórias e
ajudou a desenhá-los. Ela está engajada no reconhecimento, manutenção e
continuidade dos saberes Kokama, sempre sugere atividades para que
possamos realizar e faz parte do Grupo Artístico Mainuma (Beija-flor)54. Ela tem
uma filha, que agora está com dois anos, e participa das atividades55, cantando,
dançando, brincando com os instrumentos musicais e com o sumo de jenipapo.
A transmissão do conhecimento tradicional e como ele vai se renovando a partir
da relação com os mais jovens fica evidente nesse vínculo de cumplicidade entre
bisavó, vó, mãe e filha.
Lutana foi quem movimentou a criação do espaço cultural para o ensino
da língua Kokama, o Centro Cultural Mainuma, que é assessorado pela Gerência
de Educação Escolar Indígena da Secretária Escolar Municipal de Educação
(GEEI/SEMED) onde Tsuni ministra as aulas. O espaço para que as aulas
aconteçam está junto da casa de Lutana, ainda em processo de construção.
Tsuni e Lutana são as mulheres que batalham para que o projeto se mantenha,
buscando parceiros que possam de alguma forma contribuir com sua efetivação.
O objetivo do Centro Cultural Mainuma é elaborar estratégias para
preservar e dar continuidade à cultura Kokama em meio à relação com o
contexto externo, ensinando a língua e vitalizando os costumes de seu povo. A
maioria das crianças que nascem na cidade não têm contato com a língua
materna, e no caso dos Kokama, em muitas aldeias, existem poucos falantes, já
que tentou-se apagar a língua ao longo dos processos de colonização. Altaci
Correa Rubim nos fala que o atlas das línguas no mundo em extinção da
UNESCO aponta a língua Kokama como uma das 190 línguas indígenas em
extinção. (2016: 27).
Apesar de ser considerada uma língua em extinção, nos últimos anos há
um movimento de manutenção dessa língua, o que mostra o quanto esse povo
54 Grupo criado pelos adolescentes do Parque das Tribos que falarei em seguida.
55 Desde bebezinha em nossos colos.
69
56Parentes é como os indígenas se referem entre si, independente da etnia a que pertencem. E
se são da mesma etnia se chamam de primos.
70
Mas vale dizer também que até mesmo o uso das tecnologias digitais,
como celulares, tablets, redes sociais, por indivíduos indígenas, em
centros urbanos, acabam favorecendo o surgimento de desconfiança
quanto à legitimidade da identidade cultural desses povos. (MUSTAFA,
2018: 56).
Contudo, identifico que no Parque das Tribos o uso da internet tem sido
de grande valia para facilitar articulações políticas e o estudo da língua,
sobretudo gerando interesse por parte das crianças e jovens. As crianças gostam
muito do aplicativo Wawa Kokama e do KukaMate, pois elas podem escutar a
pronúncia das palavras e se divertem com isso, assim o aprendizado da língua
se torna prazeroso e fácil de memorizar.
A língua materna dos povos indígenas funciona como um elemento
importante de construção de sua identidade étnica e sustenta as dimensões
culturais de seu povo. A linguista Marília Ferreira Silva nos fala que “a língua
materna de uma comunidade é um dos componentes mais importantes de sua
cultura constituindo o código com que se organiza e mantém integrado todo o
conhecimento acumulado ao longo das gerações.” (2011: 11). Com efeito,
verificamos que a linguagem tradicional dos povos indígenas é muito mais um
modo de ação do que uma manifestação do pensamento, pois ela guarda valores
culturais, identitários e cosmológicos. Portanto, aprender a língua é mais do que
um saber, é um modo de ser, de preservar sua forma de existir no mundo, porque
as palavras têm poder sobre as coisas.
As aulas da língua Kokama no Centro Cultural Mainuma são aos sábados
à tarde. No primeiro sábado que fui conhecer o espaço do Centro Cultural
Mainuma não teve aula, pois havia uma das feiras que acontecem com
frequência no Parque das Tribos, feiras indígenas com artesanato, comidas
típicas e apresentações artísticas. A feira foi realizada em uma área distante,
andamos bastante para chegar até lá. Tsuni também não estava habituada a
71
andar por aqueles lados, bem na fronteira com o bairro que é conhecido pelo
tráfico de drogas, considerado por ela perigoso.
Na volta da feira encontramos um lugar para cortar caminho, era uma
mata onde teríamos que passar por um igarapé. Tsuni disse brincando: ‘agora
vamos ver se a professora Vanessa vai passar na prova, vamos ver se ela pode
ser índia ou não’. Como ela havia me falado anteriormente, temos que pedir
permissão para tudo, para os ‘donos’, as ‘mães’, das coisas, dos lugares, então
pedimos permissão à ‘mãe da floresta’ para pisar naquele espaço, para
arrancarmos alguns galhos que estavam no caminho e cruzarmos o igarapé,
pisando em um tronco que ficava por cima dele para chegarmos ao outro lado.
Subimos uma ladeira de barro íngreme, foi difícil, estava resvalando, mas
conseguimos subir, uma se apoiando na outra. Por fim, chegamos na casa da
Cacique Lutana, Tsuni me apresentou aos que estavam lá e contou sobre o
ocorrido, dando risada porque eu estava com um sapato liso e tinha conseguido
andar no mato. Disse: ‘Gostei da professora Vanessa, é das nossas, não tem
frescura’.
Na casa de Lutana conversamos sobre a proposta de ações que
havíamos pensado para contribuir dentro da comunidade. Como Lutana é uma
das lideranças do Parque das Tribos, precisávamos pedir autorização a ela e
saber se havia interesse por parte dos moradores que estabelecêssemos essa
parceria. Dona Raimunda Kokama estava presente e mais algumas pessoas da
comunidade, que foram receptivas e entraram em acordo para que fosse
autorizada a nossa participação nas aulas. Todos gostaram da proposta e
acharam importante o projeto: ‘para que as crianças não fiquem na rua’. Alguns
deram sugestões de como poderíamos realizar as práticas, falaram de outros
professores e pesquisadores que já estiveram lá contribuindo, e o quanto é
significativo para eles serem reconhecidos e terem parceiros.
No sábado seguinte foi o encontro com o grupo de estudantes do Centro
Cultural Mainuma - bem diversificado - com crianças, adolescentes e alguns
adultos, a maioria da etnia Kokama, outros Tikuna e Sateré-Mawé. Nesse
primeiro encontro, que ocorreu em outubro de 2017, eu e mais quatro discentes
do curso de Teatro da UEA fomos recebidos por Tsuni e Lutana que nos
apresentaram os participantes das aulas e nos receberam falando na língua: ‘Era
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na karuka, iriakati, mani awati pana yuti?’ (Boa Tarde, sejam bem-vindos, como
vocês estão?).
O Centro Cultural Mainuma fica junto da casa de Lutana, em uma área
coberta do lado de fora, no espaço existe uma mesa grande de madeira com um
banco comprido e algumas cadeiras que ficam em volta da mesa. Na parede que
liga a área à casa tem uma lousa, um mapa do território onde vive o povo
Kokama, um mapa do Brasil, um casco de jabuti, um cartaz com algumas
expressões Kokama e um cartaz escrito Centro Cultural Mainuma com um
desenho de beija-flor.
Permanecemos na aula como observadores, era nosso primeiro encontro,
pensamos mais como um encontro diagnóstico para conhecer a turma, nos
apresentarmos e sentirmos um pouco da energia do lugar e das pessoas, e elas
sentirem a nossa.
Quando chegamos, os adolescentes, que eram os mais falantes e
extrovertidos, ficaram curiosos para saber quem éramos, de onde vínhamos e o
que fazíamos. Falamos que representávamos o curso de Teatro da UEA, eu
disse que era performer-professora, pois além de ministrar aulas de Teatro
atuava e dirigia, um deles falou que queria ser professor de Teatro, perguntou
como era o processo para entrar na UEA, eu expliquei a ele e no fim sugeriram
que ajudássemos a criar um grupo artístico do Centro Cultural Mainuma. Os
jovens falaram sobre grafismo indígena, estavam com tinta de sumo de jenipapo
e perguntaram se gostaríamos de nos pintar, mostraram alguns grafismos
Kokama, explicaram seus significados e desenharam em nossos corpos.
Antes de irmos embora, Tsuni e Lutana mostraram o cartaz de
apresentação do Centro Cultural Mainuma que elas tinham, era de papel e
estava se rasgando, então perguntaram se poderíamos providenciar outro e
sugeriram que tivesse o desenho de beija-flor. Eu pedi para um dos discentes
que desenha fazer a arte do cartaz com o nome do centro cultural e o desenho
do beija-flor, enquanto outro grupo levou na gráfica para ser produzido em lona
de vinil.
No encontro seguinte levamos o banner para a turma, todos
demonstraram satisfação, e o novo banner foi colocado no alto da parede. Além
disso, nos solicitaram folhas de ofício, lápis, canetas especiais para a lousa,
enfim, materiais escolares que pudéssemos doar. No final nos foi oferecido um
73
Figura 11 - Centro Cultural Mainuma, junto da casa de Lutana – Parque das Tribos, Manaus, AM.
Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 03/11/2017.
74
Figura 12 - Uma parte da turma do Centro Cultural Mainuma, alguns pintados com grafismo.
Lutana, pintada de grafismo a direita com sua neta no colo. Tsuni está sentada de camiseta
verde. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 03/11/2017.
Figura 13 - Nós da UEA aprendendo a dançar no fechamento da aula. Centro Cultural Mainuma,
Parque das Tribos, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 03/11/2017.
75
A primeira vez que estive no Parque das Tribos, foi em uma tarde de sábado. A
caminho do lugar percebi a longa distância e cada vez que nos aproximávamos mais,
as diferentes construções de casas. Na estrada as pessoas vendiam frutas que
ficavam penduradas em sacos de malha amarelos, as ruas não asfaltadas, o ar mais
seco e empoeirado. Quando descemos do carro, pisei num chão de barro seco e com
muita poeira, o sol castigava ainda mais naquele dia. Seguimos caminhando. Olhei ao
redor, respirei, senti o ar quente, tentando encontrar a essência daquele lugar... tinham
muitas árvores ao redor, e parecia que as pessoas estavam quietas nas suas casas.
Era inevitável, aquele lugar, tão simples me lembrou o lugar onde morei na minha
cidade, que hoje já deve estar melhor...Eu não sabia como iria ser, não fazia ideia...
chegamos em uma casinha simples com uma cobertura, com uma mesa e acho que
dois bancos. Nós fomos muito bem recebidos. Todos se cumprimentaram, a
professora era uma indígena que estava com umas duas ou três crianças, que foram
chamar outras. Depois apareceram mais duas crianças e uma jovem e sua mãe. A
gente ficou observando a professora que ensinava as letras da escrita indígena da
tribo deles, Kokama. A gente repetia a pronúncia da letra juntos. As crianças
cantaram, e nós trocamos coisas que sabíamos e vice-versa. Foi o que tínhamos
combinado para o encontro surgir naturalmente. Com a conversa, percebi a
simplicidade das pessoas, a necessidade de estrutura mesmo, de apoio social para os
indígenas e seus familiares descendentes que residem lá. Alguns dependiam mesmo
da ajuda de outras pessoas. Era um lugar que não podiam, não sei se já podem,
chamar de seu, porque sofrem com a ameaça constante de serem expulsos do local.
Aquela reunião ali nossa, apesar de poucas pessoas, me parecia tão grande em sua
importância. Primeiro, porque acredito que o papel da universidade é principalmente
contribuir compartilhando os trabalhos, os debates que são produzidos lá dentro com
quem está fora, o que pode gerar diversos aspectos positivos nesse contato, como o
interesse das pessoas daquele local por entenderem sobre seus direitos, deveres.
Segundo ponto positivo, a professora que ensinava o idioma da etnia deles paras
crianças, estava resgatando a cultura, o idioma, a essência dos antepassados, que se
conectam por esses aprendizados que chegam nelas.
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Deu para sentir a necessidade que eles tinham de compartilhar a cultura deles, o
idioma, suas vivências. Por outro lado, eles de alguma forma, também adquiriram no
contato com meio urbano, maneiras de falar e se portar de quem vive na cidade, que é
a transculturação, como é sabido, é o contato do indivíduo com uma cultura diferente,
tendo lados positivos e negativos.
57 Tsuni em língua Kokama quer dizer preto. Este nome foi escolhido para ela, pois ela pertence
ao clã (nação) de ariramba: um pequeno pássaro preto.
58 Parque das Nações, assim como o Parque das Tribos, iniciaram como loteamentos que
59
Projeto em parceria com mais dois professores da ESAT-UEA, o professor doutor Bernardo
Mesquita do Curso de Música e a professora mestra Amanda Aguiar Ayres do Curso de Teatro.
78
60 Iniciamos com a comunidade Colônia Antônio Aleixo, zona leste de Manaus. Um bairro que
ainda hoje é visto com preconceito devido à sua história. Afastado do centro da cidade, era o
bairro para onde antigamente (década de 1940) eram mandadas as pessoas com hanseníase.
Deste modo, o local ficou estigmatizado como um leprosário, evitado pelas pessoas da cidade e
sem receber a devida infraestrutura que deveria ser oferecida pelos órgãos públicos. Alguns dos
idosos do bairro são sobreviventes daquele tempo, muitos portadores da doença, mas hoje em
dia o bairro não tem mais essa função. No entanto, por ser um bairro periférico, desprovido de
infraestrutura e carregar esse estigma, muitos que moram lá têm dificuldade em arrumar
emprego, entre uma série de outros fatores que que essa carga histórica desencadeia.
Hoje quem toma conta das ações no bairro são alguns alunos que já se formaram em Teatro na
UEA, ao lado de outros estudantes em formação. Ainda contamos com Dona Socorro, uma
multiplicadora da própria comunidade, que foi parceira do projeto desde o início, acompanhando
as crianças até a Universidade e nos recebendo na comunidade. Dona Socorro aprendeu a fazer
bonecos e máscaras e hoje trabalha com as crianças e adolescentes de forma autônoma em um
espaço dentro da comunidade, o Instituto Ler para Crescer, um dos parceiros do projeto. Outra
comunidade em que atuamos é no Quilombo Urbano de São Benedito, onde a cultura afro se faz
presente, principalmente na figura das crioulas que movimentam diferentes ações em prol da
comunidade. Começamos ações no PROSAMIM (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de
Manaus) com habitações populares, na zona sul, próximo a ESAT (Escola de Artes e Turismo)
da UEA que é onde o curso de Teatro funciona. Quem está mais focada no trabalho com o
PROSAMIM é o grupo coordenado pela professora Amanda Aguiar Ayres, que foi até o espaço
por ser uma comunidade próxima a ESAT-UEA e ainda não havíamos nos integrado a ela. Por
fim, mais recentemente - desde agosto de 2017 - estamos na comunidade indígena Parque das
Tribos, sendo o coletivo que atua nesse espaço coordenado por esta pesquisadora.
79
máscaras, dos objetos e das sombras. Que agora estávamos mais focados nos
bonecos, máscaras e objetos, mas já havíamos experimentado o teatro de
sombras na comunidade Colônia Antônio Aleixo.61 Mas hoje não era o foco da
pesquisa, por ser um trabalho que necessita de equipamentos específicos para
o seu desenvolvimento, que, muitas vezes, são difíceis de ser transportados, e
também de um espaço fechado onde possamos trabalhar com a ausência de luz
para que os equipamentos de iluminação nos possibilitem jogar com as sombras
que iremos produzir, sejam a partir de nosso próprio corpo, objetos variados ou
silhuetas que criamos. Como trabalhamos em espaços abertos, sem muita
estrutura, os bonecos, as máscaras e os objetos62 são de melhor manipulação,
por isso optamos por eles.
Ao ouvir sobre o trabalho, Tsuni ficou empolgada com a proposta, ela
havia encaminhando um projeto para a Secretária Municipal de Educação
(SEMED) intitulado ‘Aprendendo Kokama através da história’, logo, começamos
a avaliar como poderíamos unir os dois projetos na prática. Pensávamos em algo
que contribuísse com a ideia de Tsuni, a partir do que tínhamos enquanto
pesquisa e prática artística. A proposta agregaria muito ao projeto como um todo,
agora estávamos expandindo nossas ações para mais uma comunidade, onde
eu seria a professora coordenadora responsável, pensando um diálogo com os
saberes ameríndios.
É constante a reflexão do coletivo que faz parte do projeto sobre como
trabalhar com a comunidade - que vai se fortalecendo com a prática - juntos na
construção de um caminho que está se delineando amparado por teorias e
experimentações.
Estamos atuando com as crianças e os jovens no intuito de fortalecer o
que eles já têm enquanto potencial poético, que vêm de sua maneira de se
colocar e agir no mundo, característica de seu modo de vida ameríndio,
fortalecendo o que está sendo desenvolvido pelas professoras indígenas. Ainda
não temos a intenção de realizar uma obra artística, mas sim, experimentar
significado dentro de seu contexto, por exemplo, hoje no Parque das Tribos, trabalhamos muito
com cestos, cuias, elementos da natureza, como plumagens, sementes, areia, folhas, galhos,
etc.
81
de ensino para facilitar a vida dos alunos, que a teoria não é suficiente, por isso
necessitamos desse contato com a comunidade para uma prática eficaz onde ali
iremos conseguir articular a teoria aprendida no âmbito universitário com a prática
vivenciada na comunidade.
Foi possível identificar o despertar do senso crítico, criativo e a interação com o outro,
respeitando a particularidade de cada um com troca de conhecimento através da
ludicidade, da contação de história, da brincadeira de fazer bonecos e da corporeidade
do personagem desenvolvendo um caminho que facilita a integração entre
universidade e comunidade. Através da ação-reflexão-ação foi observada que é
fundamental relacionar a teoria e a prática para que ambos tenham uma construção
mais significativa do conhecimento. Dessa maneira, acreditamos ter contribuído com a
construção de conhecimentos significativos para todos os sujeitos envolvidos no
processo. (Leandro Lopes, estudante do Curso de Licenciatura em Teatro da ESAT-
UEA, Manaus, AM).
Lembro da primeira vez que estive no Parque das Tribos para junto com a profª
Vanessa Bordin e demais colegas iniciarmos o projeto “Contadores de histórias: o
teatro de formas animadas na comunidade”, lembro do diálogo que tivemos com a
Profª Tsuni e com a Cacique Lutana (que temos um forte laço de amizade até hoje).
Até então eu nunca estive tão próxima dos indígenas e do teatro de formas aninadas
como estive nesses encontros, tenho um grupo de teatro chamado “ALLEGRIAH” e
nessa época desenvolvíamos um trabalho teatral na nossa comunidade, dessa linha
de pesquisa do projeto o meu grupo trabalhava apenas com a contação de história.
Nós da região norte muitas das vezes negamos nossas identidades culturais mesmo
sabendo que nossas raízes indígenas se fazem presente no nosso dia a dia, na
farinha que comemos, na banana cozida, no peixe, nos nossos olhos puxados e não
podemos esquecer dos contos e lendas contado por nossos ancestrais. A troca que
tivemos com os indígenas no parque das tribos por meio do projeto me fez observar as
danças, as músicas, as histórias contadas por eles, me instigando a pesquisar mais
sobre essa cultura que é tão minha.
O projeto foi tão rico para mim enquanto artista educadora, produtora, que nasceu em
2018 “O Diálogo com as Mulheres Indígenas” um diálogo realizado entre o Parque das
Tribos e um mestre da Cultura Popular de uma outra comunidade onde atuamos com
a profª Amanda Ayres chamada PROSAMIM e nesse ano de 2019 apresentamos a
importância desse diálogo no II Fórum Internacional Sobre a Amazônia que aconteceu
na Universidade de Brasília.
O meu grupo de teatro tem um projeto chamado “Os Contadores de Era Uma Vez”,
agregamos o trabalho realizado no Parque das Tribos ao nosso fazer teatral, uma
questão que hoje consideramos extremamente importante. Ainda com essa vertente,
vamos desenvolver em outubro uma oficina de contação de história e teatro de
bonecos no ENEARTE 2019 (Encontro Nacional dos Estudantes de Artes) que será na
Universidade Federal de Paraíba.
É notório que o projeto “Contadores de histórias: o teatro de formas animadas na
comunidade” mediado pela profª Vanessa Bordin, foi um divisor de águas na minha
vida pessoal, acadêmica, de artista-educadora e ainda me sinto instigada a sempre
pesquisar cada vez mais porque todos os meus projetos carregam essa vertente,
83
Esse momento foi surpreendente, porque não precisamos falar nada, não
esperávamos que eles tomasem a iniciativa, geralmente estão tímidos nas
atividades, mas os instrumentos musicais proporcionaram abertura para a
criação, eles se sentiram à vontade em tocar e cantar sem precisar que fosse
dito nada, intuíram que os instrumentos estavam ali e eram para ser tocados.
Nesse dia, apesar do momento ter sido mágico, ficamos pensativos em
como conduziríamos as atividades. E agora como seguiríamos diante de tanta
autonomia?
Às vezes, dependendo do ambiente, o trabalho com adolescentes é mais
difícil, pois essa fase de transição para adultos, período da puberdade, faz com
que a maioria tenha muita vergonha, ou são rebeldes, porém, com os
adolescentes do Centro Cultural Mainuma o processo foi muito produtivo e
tranquilo, eles demonstraram iniciativa desde o começo, especialmente ao
falarem do desejo em criar um grupo artístico.
63E mesmo que isso tenha a ver com o que Manuela Carneiro da Cunha falou sobre performatizar
a cultura, já que não eram as primeiras pessoas de fora que estavam ali, acredito que ainda
assim é um ponto positivo dentro da ideia de afirmação da identidade e resistência cultural.
85
o processo e o tempo do saber ameríndio é outro, pois seus modos de vida são
diferentes dos nossos.
A forte autonomia e engajamento por parte dos adolescentes nos fazia
pensar em que medida estávamos dialogando com seus saberes, até que ponto
agíamos como ‘mestres ignorantes’ (RANCIÈRE, 2002), instigando-os a buscar
conhecimento e contribuindo com o processo de ensino-aprendizado deles.
Percebo que mais do que as propostas artístico-pedagógicas, simplesmente a
nossa presença naquele espaço era importante para que se sentissem
estimulados a desenvolver experiências poéticas relacionadas à sua ‘arte’ (os
grafismos, as canções, as danças).
Depois da experiência com os jogos teatrais, compreendemos que com
as práticas de contação de histórias e com as canções, utilizando os
instrumentos musicais e a dança, já surgiam os elementos dos jogos de uma
forma não tão marcada e individual. O caminho que buscamos seguir era tentar
potencializar a espontaneidade deles, porque os jogos em si, colocados da
maneira como foram, com suas regras, um fazendo após o outro para que todos
se assistissem, não contribuiu muito com o processo que vinha se
desencadeando. Não que fosse ruim, mas para aquele grupo era retroceder,
porque era aquela espontaneidade de vida e arte borradas que nos fascinavam,
onde não sabíamos bem se as coisas aconteciam porque estávamos ali, abertos
para a criação, com os instrumentos, as histórias, conduzindo de uma maneira
muito sútil e intuitiva, ou se eram eles que estavam nos conduzindo a partir do
que tínhamos. Na realidade, acredito que eram as duas coisas, por isso era fluido
o processo.
A experiência de confeccionarmos bonecos para contar histórias, foi um
pouco mais expressiva, apesar de ser algo que eu trouxe com etapas de como
fazer, cada um fez seu boneco a partir de suas referências, desenharam
grafismos, fizeram as roupas e os cabelos como quiseram, usaram sua
criatividade individual e na hora de contar as histórias se divertiram,
principalmente as crianças pequenas.
A base dos bonecos foi feita de jornal e mais alguns materiais recicláveis
que cada um agregou à sua criação. Percebo que o trabalho de criação manual
para os indígenas é fácil e prazeroso, pois eles já têm isso como característica
de seus modos de saberes.
87
Kaitsuma
Kaitsuma
Figura 21 - Grupo Artístico Mainuma pronto para a apresentação no evento do bairro Cidade
Nova, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 25/11/2017.
94
Figura 22 - Depois da apresentação, todos nós (da UEA, do Centro Cultural Mainuma e vizinhos
do bairro) brincando na rua. Bairro Cidade Nova, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 25/11/2017.
Figura 23 - O grupo do Centro Cultural Mainuma levou sumo de jenipapo e desenhou grafismos
em quem tivesse interesse durante o evento no bairro Cidade Nova, Manaus, AM. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 25/11/2017.
95
Figura 24 - Grupo Artístico Mainuma apresentando na Feira indígena do Parque das Tribos,
Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 21/04/2018.
65
No dia 18 de abril de 2014 foram assentadas 280 famílias no Parque das Tribos.
96
Figura 25 - Grupo Artístico Mainuma apresentando na Feira indígena do Parque das Tribos,
Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 21/04/2018.
Figura 26 - Grupo Artístico Mainuma apresentando na Feira indígena do Parque das Tribos,
Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 21/04/2018.
97
Figura 27 - Grupo Artístico Mainuma apresentando na Feira indígena do Parque das Tribos,
Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 21/04/2018.
O ano de 2018 seria uma nova etapa para Tsuni, como ela mesma disse,
estava começando do zero o ensinamento da língua Kokama com muitos alunos
novos, a maioria crianças pequenas, todos Kokama. Para nós, também seria
uma nova etapa, não considero que começaríamos do zero, pois já estávamos
envolvidos no processo: eu, Tsuni, Lutana e os estudantes da UEA, que
formamos um coletivo, e isso fazia com que as atividades fossem mais bem
direcionadas.
Foi uma surpresa maravilhosa trabalhar com crianças pequenas (de dois
a sete anos), uma prática de criação que requer cuidado para não se tornar
maçante. Sempre parto do princípio da brincadeira como elemento primordial,
levando a contação de histórias como facilitadora de acesso ao mundo lúdico,
instigando as crianças a interagirem espontaneamente, no seu tempo, já que
cada criança tem um ritmo, algumas precisam de mais estímulos até ganharem
confiança, outras já são mais abertas desde o início, mas isso vamos
percebendo com a prática, sempre buscando soluções para que todos possam
ter seu momento de criação individual e em grupo.
98
conversamos com Cláudia Baré e Clotilde Tikuna (uma das lideranças que
representa os Tikuna no Parque das Tribos) e mais uma vez o projeto foi bem
aceito.
Clotilde Tikuna, que é enfermeira, acredita na importância desse tipo de
projeto, pois, cria um espaço de socialização para as crianças e os jovens,
possibilitando que estejam brincando e aprendendo, ajudando a evitar que
fiquem na rua, principalmente pela proximidade com o bairro onde ocorre o
tráfico de drogas, fato que preocupa os pais em relação à segurança e
envolvimento com as drogas que esse contato pode gerar. Todos já conheciam
a parceria com Tsuni e Lutana e já havíamos trabalhado juntos anteriormente,
eu, Cacique Messias Kokama, Clotilde Tikuna, Cláudia Baré e Mepaeruna, na
performance artística que irei contar no encontro que segue.
100
Figura 28 - Apreciando a história. Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque
das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 25/10/2018.
101
AS ÁRVORES DO EWARE
66
Retirado de: O Livro das Árvores: Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues.
Impressão: Gráfica e editora Brasil Ltda. Benjamin Constant, AM, Brasil, 1998. (P. 22-23).
67
Mepaeruna. Os Tikuna chamam de encantados, que seriam seres imortais, ou, espíritos.
102
68 Luiz Davi Vieira Gonçalves atua junto ao povo indígena Yanonami da região amazônica.
Podemos ter acesso ao seu trabalho a partir de sua tese de doutorado intitulada: O(s) corpo(s)
Kõkamõu: a performatividade do pajé-hekura Yanonami da região Maturacá. Disponível em:
https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/7109
69 “O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) tem como objetivo dar ensejo à
70 Nas comunidades onde atuo, tanto em Nossa Senhora de Nazaré, quanto no Parque das
Tribos, essa realidade se faz presente e é motivo de preocupação entre indígenas e indigenistas.
O relatório final da ‘I Oficina sobre Povos Indígenas e Necessidades Recorrentes do Uso do
Álcool: Cuidados, direitos e gestão’, de 2018, apresentado pelos órgãos: Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), Ministério da Saúde (MS), Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI),
Secretária de Atenção à Saúde (SAS) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que o
alcoolismo é considerado uma das enfermidades mais comuns nos grupos indígenas, a qual
acarreta o consumo de outras drogas, violência e suicídio. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/Outras_Publicacoes/Relatorio_Geral_Ofic
ina_Povos_Indigenas_Alcool/Relatorio_Geral_Oficina_Povos_Indigenas_Alcool.pdf
104
71 Como falei na introdução no primeiro semestre de 2015 fui aluna especial no curso de Pós-
graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) na disciplina
intitulada: ‘Arte e Xamanismo na Antropologia’ ministrada pela professora Doutora Deise Lucy
Montardo. Depois, em 2016, já aluna da pós-graduação da USP, cursei: A Escrita Etnográfica
em Questão, sob orientação do Professor Dr. Danilo Paiva Ramos, supervisionada pela
Professora Dra. Sylvia Caiuby Novaes e Redes de Saberes Ameríndios, sob orientação da
Professora Dra. Dominique Tilkin Gallois, ambas no Departamento de Antropologia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
105
Deste modo, as memórias que serviram como estímulo criativo para esse
trabalho vieram de algumas experiências, como a vivência no México e
inspirações a partir dos trabalhos dos performers Regina Polo Müller e Guillermo
Gómez-Peña.
Regina Polo Müller iniciou sua trajetória enquanto atriz no grupo de teatro
Dzi-croquetes nos anos setenta e foi estudar as sociedades indígenas
desenvolvendo seu ‘corpo decorado como meio de expressão’ (MÜLLER, 2005:
70). Assim, se coloca em campo como artista e antropóloga, adentrando o
universo da performance por perceber uma abertura que possibilita a experiência
a partir de diálogos inter/trans culturais.
Deste modo, Regina Müller, atua como artista e professora universitária
fazendo uma antropologia para dançarinos e atores. Ela traz a vivência com as
danças dos rituais xamanísticos do povo ameríndio Asuriní do Xingu (Amazônia)
para seus processos de criação performáticos. No entanto, a artista e
antropóloga não cria uma metodologia codificada da dança dos Asuriní, mas
coloca seu corpo como memória dessa vivência. Incorpora a dança com as
mulheres indígenas em seus processos criativos, o que possibilita a ela fazer um
‘Inventário do corpo’ (2010: 118), conceito que traz do trabalho com a coreógrafa-
pesquisadora Graziela Rodrigues, onde a memória do corpo é ativada,
permitindo que ocorra uma autodescoberta ao longo do processo relacionada à
sua própria história cultural e social, acessando sensações e sentimentos
pessoais.
73Antes disso, em 2011 durante o EIAP, tive a oportunidade de vivenciar um workshop ministrado
por Guillermo e Michele Ceballos, intitulado: ‘Ritual strategies to decolonize the body: a workshop
for performance artists, radical actors and dancers’, no intuito de descolonizar o corpo do ator,
do performer e do bailarino, realizado na ECA-USP.
107
Figura 29 – ‘Corpo insurrecto: ações psicomágicas para um mundo estragado’. SESC Vila
Mariana, São Paulo, SP. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 15/01/2013.
74 Tradução nossa a partir do original: “El performance para él, no es sólo un acto, o una acción,
sino una opción existencial.” (TAYLOR, 2012:13).
75 Objetos fetichistas, tatuagens, piercings.
108
76 Ariane Mnouchkine, a partir da tradução da atriz Juliana Carneiro da Cunha, usa o termo
‘estado’ que não é necessariamente um sentimento, mas uma energia, uma vibração, o estado
de presença do aqui e agora, próximo às emoções. Isto, a partir da experiência que tive em duas
110
‘estado’ em que elas se colocavam na situação, para tanto, eu tinha que estar
atenta e conectada a elas. Elas simplesmente agiam, não pensavam em como
performar, pois a situação já estava ‘encorporada’.
Fomos nos alimentando das narrativas relacionadas ao mandado de
reintegração de posse para construirmos a dramaturgia da performance, cada
um dos indígenas que vivenciou o conflito tinha seu depoimento, desabafando
coisas que sentiam vontade de falar. Nós, performers, também tínhamos textos
diversos relacionados ao acontecimento77.
Uma fala muito marcante que ouvi de uma das mulheres indígenas
revelou sua visão a respeito da ação dos policiais e mostrou uma sensibilidade
profunda. Ela disse o seguinte: ‘eu não culpo de todo os policiais, pois sei que
eles também estão ali cumprindo ordens, existe um poder que está acima deles
e se eles não fizerem aquilo, eles também serão punidos’. Muitas vezes, as
pessoas só responsabilizam os policiais como opressores, mas o olhar dela me
fez refletir a respeito de que muitos que estão ali não têm escolha, e o que me
tocou foi sua lucidez em se colocar no lugar do outro, mesmo esse outro sendo
alguém que estava contra ela naquele momento.
Durante o processo de criação/ensaios tivemos bastante dificuldade em
nos organizarmos enquanto grupo, pois, existiam pessoas que estavam
presentes desde o início e outras que apareciam ocasionalmente. Como os
ensaios passaram a ser somente no Parque das Tribos, toda a semana alguém
novo da comunidade agregava e não conseguíamos avançar muito nos
resultados, já que sempre precisávamos contextualizar a ideia da performance
para que se situassem, e não evoluíamos no desenvolvimento dos quadros que
tínhamos como proposta.
Um dos ensaios, aberto aos moradores, teve em torno de trinta pessoas
participando, o maior número de envolvidos durante todo o processo. E mesmo
que muitos estivessem lá pela primeira vez, foi emocionante, pois todos deram
seus depoimentos, muita gente chorou e no final o Cacique Messias Kokama
disse que estava se sentindo representado, assim como os demais. Depois
oficinas ministradas pelos integrantes do Théâtre du Soleil, dirigido por Ariane Mnouchkine, no
SESC Belenzinho e na Oficina Cultural Oswald de Andrade no ano de 2011 em São Paulo.
77 O próprio mandado, notícias a respeito do mandado, depoimentos dos indígenas, dos policiais,
União e Olho Vivo (TUOV) de São Paulo na década de setenta, grupo onde
também trabalhei durante o período que vivi em São Paulo, idos de 2010, que
agregou muito em minha trajetória como experiência de trabalho com
comunidades. O viés de trabalho do grupo é realizar processos artísticos com os
moradores de comunidades periféricas de São Paulo, bem como apresentações
de obras teatrais em comunidades, na rua e espaços alternativos, inclusive,
levando as pessoas da comunidade para se apresentarem em espaços formais
e conhecidos onde se faz teatro. Apesar da distância de tempo entre uma
experiência e outra, muitos integrantes ainda eram os mesmos do tempo de
Maria Júlia Pascali, inclusive o líder do grupo e diretor César Vieira.
Durante a oficina ministrada pela artista, foi que conheci Mepaeruna
Tikuna, que mostrou sua sensibilidade e liderança através de seu canto
manifestado durante o trabalho. A força e beleza de sua voz ecoou no espaço
da Sala Samambaia78 através de uma canção que eu não entendia o significado,
mas me fazia sentir como se eu estivesse em outro plano, como se eu fosse
transportada para outro tempo e espaço, não me sentia mais naquela sala onde
eu estava habituada a ensaiar e ministrar aulas.
O fio condutor proposto por Maria Julia Pascali foi desenvolvido em
etapas, começando com aquecimento em duplas até irmos agregando com todo
o grupo, para no final se transformar em uma dança que os próprios indígenas
regeram com Mepaeruna liderando o canto a partir do trabalho de voz realizado
na oficina. Depois, conversamos e cada um falou sobre suas sensações, a
maioria relatou que em muitos momentos conseguiu estabelecer uma relação de
contato e jogo com as pessoas, percebendo-se no momento presente do ‘aqui e
agora’. Os exercícios foram sendo propostos de uma maneira leve e sútil e fazia
com que criássemos partituras performativas, percebendo o nosso interior para
em seguida interagirmos com o exterior, com o outro, assim, a troca acontecia e
a improvisação se desenvolvia de uma maneira fluida e lenta.
A característica que chamo de lenta, acredito que esteja muito próxima do
tempo ameríndio. Quando comecei a estudar mais a respeito do universo
ameríndio e partilhar o dia a dia com os indígenas, fui descobrindo algumas de
78Sala onde ocorrem as aulas práticas do Curso de Teatro da UEA na Escola Superior de Artes
e Turismo, Manaus – AM. A primeira vez que ouvi Mepaeruna cantar foi durante a experiência
artística com o Tabihuni.
113
a leitura do artigo de GONÇALVES, Luiz Davi Vieira. Estudos étnicos no teatro: A Metodologia
Kõkamõu como Perspectiva Simétrica para o Processo de Pesquisa e Criação em Arte. Revista
Arte da Cena, v.4, n.1, jan-jun/2018. Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce
114
85“um grupo de pessoas descendentes de um ancestral mítico, ou seja, do qual não é possível
demonstrar uma conexão genealógica.” (MATAREZIO FILHO, 2015: 41).
117
No princípio, estava tudo escuro, sempre frio e sempre noite. Uma enorme
samaumeira, wotchine, fechava o mundo, e por isso não entrava claridade na terra. Yoi e
Ipi ficaram preocupados. Tinham que fazer alguma coisa. Pegaram um caroço de arara-
tucupi, tcha, e atiraram na árvore para ver se existia luz do outro lado. Através de um
buraquinho, os irmãos enxergaram uma preguiça-real que prendia lá no céu os galhos da
samaumeira. Jogaram muitos e muitos caroços e assim criaram as estrelas. Mas ainda
não havia claridade. Yoi e Ipi ficaram pensando e decidiram convidar todos os animais da
mata para ajudarem a derrubar a árvore. Mas nenhum deles conseguiu, nem o pica-pau.
Resolveram, então, oferecer a irmã Aicüna em casamento para quem jogasse formigas-
de-fogo nos olhos da preguiça-real. O quatipuru tentou, mas voltou no meio do caminho.
Finalmente aquele quatipuruzinho bem pequeno, taine, conseguiu subir. Jogou as
formigas e a preguiça soltou o céu. A árvore caiu e a luz apareceu. Taine casou-se com
Aicüna.86
86Retirado de: O Livro das Árvores. Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues.
Impressão: Gráfica e editora Brasil Ltda. Benjamin Constant, AM, Brasil, 1998: 14.
118
Esta história sobre o surgimento da luz para os Tikuna foi contada por
Mepaeruna em nosso primeiro encontro com o grupo - crianças de dois a dez
anos de idade - no Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit. Como
estou envolvida com os Tikuna desde 2015, já conhecia essa história,
Mepaeruna contou do seu jeito, trago aqui a versão do Livro das Árvores Tikuna,
que foi a que utilizamos para a prática de improvisação com as crianças,
sugerido pela própria Mepaeruna. Nesse livro, produzido por professores Tikuna,
encontramos várias histórias de seu povo escritas em uma linguagem acessível
para crianças.
Queríamos um nome para o nosso novo grupo focado nos saberes
Tikuna, pensamos em algo que remetesse a acolhimento, aconchego, por causa
das crianças e das mães. Eu, Mepaeruna e os estudantes participantes do
projeto falamos sobre vários possíveis nomes, até que por fim, Mepaeruna
sugeriu chamar de buetica, que é o lugar onde a criança fica guardada no útero
da mãe, seria o que chamamos de placenta, que é conhecida também como a
árvore da vida por seu formato cheio de ramificações e ser o órgão que exerce
todas as funções que mantém o bebê vivo. Como as histórias do universo Tikuna
traziam muitas imagens da natureza, especialmente relacionada às árvores, a
metáfora da árvore da vida foi significativa naquele contexto.
Conheço mais histórias e canções Tikuna do que conhecia Kokama
quando iniciei o trabalho com Tsuni. Fui aprendendo sobre o povo Kokama a
partir das aulas no Centro Cultural Mainuma e das relações de convivência que
fomos estabelecendo com Tsuni, a Cacique Lutana e sua família, as crianças,
jovens e adultos que frequentavam não só as aulas, mas a casa de Lutana, já
que o Centro Cultural Mainuma é junto da casa dela. Muitas vezes íamos até lá
sem ser especificamente dia da aula. Como os espaços culturais estão dentro
da comunidade, próximos às casas das famílias, a convivência acaba
acontecendo naturalmente, gerando laços de amizade.
Quanto mais vivenciamos o dia a dia na comunidade, mais
compreendemos o universo que envolve os ensinamentos trazidos pelas
canções e histórias do mundo ameríndio que são recheados de metáforas. Falo
aqui em metáforas a partir do estudo de Els Lagrou (2007) onde ela vai dizer
que:
119
Deste modo, Els Lagrou (2007) diz que toda linguagem é metafórica e
polissêmica na medida em que confere significado à experiência, associando
imagens que não se relacionam de antemão, mas geram novas perspectivas, o
que é essencial para o processo cognitivo que precisa de vias criativas para
compreender as relações entre as realidades que desconhece e as que conhece,
elaborando percepções e experiências novas. Portanto, as metáforas são
usadas para conectar mundos diferentes gerando um mundo novo por meio da
interação de perspectivas. Podem existir muitos mundos exteriores, mas, o
mundo onde vivemos é aquele que faz sentido para nós a partir do que
experimentamos, percebemos e imaginamos.
A criatividade poética intrínseca a elaboração do universo metafórico, que
permeia as canções e histórias ameríndias, contribui no processo de ensino-
aprendizagem a partir da perspectiva do olhar sensível que as experiências
poéticas proporcionam. O uso da metáfora muda nosso conhecimento e
percepção do mundo, fazendo com que nossa visão de mundo se transforme.
Esse universo metafórico aproxima crianças, jovens e adultos, pois se torna uma
linguagem acessível que permite diferentes interpretações a partir da vivência
de cada um, o que enriquece as práticas performativas com a contação de
histórias realizadas no contexto da comunidade.
Nesse primeiro encontro com as crianças do grupo de Mepaeruna,
algumas mães estavam presentes acompanhando seus filhos. Após Mepaeruna
contar a história fizemos uma roda e nos apresentamos com um jogo em que
cada uma falava seu nome fazendo um movimento que ajudasse nessa
apresentação, em seguida, todos na roda repetiam o nome e o movimento
realizado. As mães estavam muito desinibidas, mais do que as crianças, e isso
contribuía para que as crianças realizassem a atividade. Levamos bonecos, as
crianças ficaram curiosas, queriam pegá-los, me chamou atenção um dos
meninos desenhando grafismos no suporte do boneco. Como vimos, o universo
120
88 No ritual Tikuna de iniciação feminina Worecü ou A Festa da Moça Nova existem seres
mascarados, mas não são considerados personagens ficcionais como veremos no Encontro 3.
E como vimos anteriormente, o ritual pode se aproximar do campo das artes cênicas, da
performance, onde temos elementos de teatralidade, de performatividade, com danças, músicas,
máscaras, elementos visuais, em uma estrutura com início, meio e fim estipulados, mas não
fixos, como uma improvisação, com alguns ‘papéis’ estabelecidos, que pressupõe ações
específicas, repleto de signos que são compreendidos pelos pertencentes aquele povo.
123
colegas do lado, nos concentrando, nos conectando com nós mesmos, com os
outros e com o espaço.
Em seguida, introduzíamos alguma canção que nos levava à dança.
Quem sugeria as canções era Mepaeruna ou alguma das crianças, que deveria
repeti-la até que todos conseguissem cantar juntos. Como acompanhamento de
nossas canções e danças tínhamos flautas, chocalhos e tambores.
Nós criamos uma prática com o tambor para as crianças, misturando a
experiência na aldeia aos ensinamentos da oficina de ‘Música orgânica’ com o
músico amazonense Eliberto Barroncas, realizada no II seminário da região
Norte: educação, arte e intercultura em setembro de 2018.
Eliberto Barroncas traz sua vivência com os indígenas e fala sobre a
circularidade do tambor relacionada à circularidade da roda e às danças
circulares em sentido anti-horário para que aconteça o fluxo de energia,
propondo uma metodologia que se desenvolve em diferentes etapas até
chegarmos a tocar o tambor.
Primeiro; experimentamos o som do tambor batendo com as palmas da
mão, assim, dependendo de como batíamos, produzíamos o som grave (mão
em concha) e o som agudo (pontas dos dedos na palma da mão). Segundo;
fazíamos a batida em quatro tempos com os pés, caminhando pelo espaço.
Terceiro; experimentávamos a batida do pé ao mesmo tempo em que tocávamos
um instrumento (chocalho, flauta, tambor). Quarto; introduzíamos o canto. Por
fim; dançamos, cantamos e tocamos nessa roda em sentido anti-horário que
girava no espaço da sala.
Seguindo esse caminho trabalhamos com as crianças. Mas, antes de
formarmos a roda coletiva sugerimos que cada uma experimentasse tocar os
diferentes instrumentos individualmente, e na sequência, os reproduzissem com
o seu corpo, fazendo a percussão a partir de diferentes formas de tocar o próprio
corpo, ou com a voz, pensando que a voz é manifestação do corpo, como vimos
em Zumthor (2002).
Com essa proposição buscamos aguçar a percepção das crianças para
os sons produzidos pelos instrumentos, para que então experimentassem em
pequenos grupos compor ritmos, pois percebemos que com todos juntos era
mais difícil controlar o caos sonoro que essa experiência evocava, já em grupos
menores era mais fácil de orquestrar e fazer com que se percebessem enquanto
125
coletivo. Quando já estavam melhor afinados é que partíamos para a roda com
todos juntos. Depois, de ‘aquecidos’ e ‘entrosados’, abríamos nosso pequeno
tapete verde no chão, que nos ajudava a concentrar o grupo no espaço e
começávamos a contação de histórias, com a improvisação dela na sequência.
Ao final das atividades, entregávamos folhas de ofício, giz de cera e lápis
de cor para as crianças desenharem - que elas haviam pedido desde o primeiro
encontro - com a proposta de manifestarem nos desenhos o que foi mais
significativo das práticas. Todas ficavam à vontade em desenhar e podíamos ver
como se expressavam as que eram mais tímidas. Fechávamos com o
compartilhamento do lanche e nos despedíamos.
E assim era a estrutura do nosso ‘ritual’ semanal no Parque das Tribos:
início, meio e fim definidos, como um roteiro, uma partitura, mas que a cada
encontro nos propiciava uma nova experiência.
Nosso coletivo estava constantemente conversando, refletindo e
buscando referências que nos ajudassem na prática, pensando em ações que
conseguissem envolver de forma significativa as crianças. Entramos até em
alguns embates, como, por exemplo, quando observamos que enquanto
Mepaeruna contava uma história muitas crianças estavam dispersas, querendo
pegar os bonecos, mexer nos objetos que havíamos levado, algumas viram o
lanche e desde o começo só perguntavam dele.
Essa atitude de interesse pelo lanche desde o início aconteceu em outros
encontros e fez com que uma das estudantes da UEA questionasse o momento
do lanche, pois ela sentia que muitos só estavam interessados nele.
Particularmente, acho normal as crianças, principalmente as menores,
esperarem ansiosas o momento do lanche, não acho que participavam das
atividades somente por isso e mesmo que fosse não vejo problema, não
atrapalhavam, realizavam as proposições com tranquilidade e podiam sair
quando quisessem, já que estavam do lado de suas casas e o portão do Espaço
Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit ficava aberto, além disso, não
eram ‘obrigadas’ a permanecer como se sentem, muitas vezes, em uma aula
formal. Penso que abrindo mão desse momento a turma não iria mudar, pois
sempre chegava gente nova, alguns ficavam um tempo sem vir, depois voltavam,
e o lanche não era nada de extraordinário.
126
Figura 33 - Começo - Roda inicial todos de mãos dadas, momento de concentração. Espaço
Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto:
arquivo pessoal da pesquisadora. 09/10/2018.
127
Figura 34 - Desenvolvimento - Canto e dança com o tambor. Espaço Cultural Uka Umbuesara
Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 20/09/2018.
Figura 35 - Atividade principal. Primeiro momento: apreciando a história. Espaço Cultural Uka
Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 25/10/2018.
128
Figura 36 – Atividade principal. Segundo momento: performando a história. Espaço Cultural Uka
Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 25/10/2018.
Figura 39 - Mepaeruna fervendo o sumo do jenipapo. Figura 40 - Jenipapo esfriando para ser
usado como pintura corporal. Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das
Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 28/08//2018.
Figura 41 - Mepaeruna desenhando grafismo Tikuna de Tambor com sumo de jenipapo. Espaço
Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto:
arquivo pessoal da pesquisadora. 25/10/2018.
130
Figuras 42 e 43 – Finalização. Fechando com as impressões das práticas através dos desenhos.
Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus,
AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 15/06/2018.
Figura 44 - Finalização – vamos lavar as mãos para lanchar? Figura 45 - Lanchando, nesse dia
pipoca. Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã,
Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 30/07/2018.
A minha vivência no Parque das Tribos foi uma experiência criativa, colorida, rica,
intuitiva, inovadora e feliz. A maneira de conhecer e experimentar a proposta de uma
nova pedagogia dentro das escolas indígenas contribuem muito para entendermos a
metodologia desses novos centros de ensino, que pensam o mundo de forma
integrada, mente, corpo e espírito. Essa forma tem tudo a ver com a nossa região
amazônica, seu patrimônio imaterial e ambiental, a cosmologia dos povos da floresta;
e o teatro não poderia ficar de fora disso, pois contribui muito como área do
conhecimento para que essa identidade cultural seja formada desde os pequenos até
o ensino médio. Durante as nossas visitas ao Parque das Tribos planejávamos as
aulas utilizando como metodologia o teatro de formas animadas, estabelecendo logo
um contato direto com o nosso público alvo: as crianças do povo Ticuna, tendo
Mepaeruna, uma artista Ticuna, com uma imensa sabedoria sobre seu povo, como
131
grupo. Para seguirmos até o campo de futebol nosso lema era: ‘ninguém solta a
mão de ninguém.’
Figura 46 – Aprendendo a usar a máquina para filmar. Figura 47 - As crianças nos levando para
o campo de futebol. Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit, Parque das Tribos,
Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 07/12/2018.
Figura 48 - Descendo a mata para chegar do outro lado do Parque das Tribos onde
encontraríamos o campo de futebol. Figura 49 - O campo de futebol. Parque das Tribos, Tarumã,
Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 07/12/2018.
89Os indígenas com quem convivo usam muito essa palavra para se referir as pessoas piadistas,
brincalhonas.
133
Figura 50 - As crianças assistindo sua filmagem. Espaço Cultural Uka Umbuesara Wakenai
Anumarehit, Parque das Tribos, Tarumã, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
14/12/2018.
90 Nessa época a cidade era chamada de ‘Paris dos trópicos’ pois começou a se desenvolver
rapidamente no final do século XIX e início do século XX, gerando muito lucro para os que
começaram a investir ali, trazendo inovações para a cidade, que foi a primeira a ter energia
elétrica no Brasil e a ter uma Universidade Federal, a UFAM (Universidade Federal do
Amazonas).
135
velha xamã que veste a ‘capa’ de onça que pertencia a seu falecido marido,
também xamã, e se transforma em onça91.
Quase um ano depois - dias 09 e 10 de agosto de 2018 - Djuena Tikuna
movimentou outro evento no Teatro Amazonas, a I Mostra de Música Indígena
do Estado do Amazonas – WIYAE, realizada pelo Governo do Estado do
Amazonas, a Fundação Estadual do Índio – FEI e os artistas indígenas, em
comemoração ao dia internacional dos povos indígenas. Mepaeruna disse que
Wiyae na língua Tikuna quer dizer cantoria.
Para esse evento Djuena convidou algumas cantoras Tikuna da cidade de
Manaus, Mepaeruna foi uma delas. Ao saber da notícia, a mãe de Mepaeruna,
que estava na aldeia Porto Cordeirinho, chorou de felicidade pela conquista da
filha.
Um dos motivos que fez com que Mepaeruna fosse convidada para
cantar, além de ter uma boa voz, foi porque conhece a história de seu povo, o
que era tão importante para Djuena quanto saber cantar.
Djuena e sua irmã Weena Tikuna (cantora e artista visual) falaram sobre
a importância do evento em trazer as músicas tradicionais que falam da sua
cultura, dos conhecimentos ancestrais de seu povo e as músicas
contemporâneas dos indígenas, destacaram a questão do aprendizado dos
cantos com as avós e os avôs.
Além dos Tikuna, cantaram, ainda, artistas Kokama, Sateré-Mawé e
Munduruku. Weena Tikuna disse que o povo indígena não tem religião, mas sim,
espiritualidade. Ela que realizou uma apresentação bem animada e no final
conseguiu fazer com que todos cantassem juntos uma das músicas Tikuna de
seu repertório, de uma maneira divertida e fácil ensinou o público a cantar
repetindo várias vezes o refrão.
Mepaeruna apresentou no dia 10 de agosto, o último dia da Mostra, recebi
um convite especial dela com espaço reservado na primeira fileira, além disso,
fez um brinco igual ao seu e me presenteou para que eu usasse nesse dia.
Mepaeruna cantou duas músicas tradicionais Tikuna, que são canções de
aconselhamento durante o ritual de iniciação feminina Worecü, mesmo nervosa
91
Mito na íntegra em anexo.
136
por estar no Teatro Amazonas conseguiu realizar sua apresentação sendo muito
aplaudida.
Figura 51 - Mepaeruna ao lado de sua sobrinha durante sua apresentação na WIYAE – I Mostra
de Música Indígena do Estado do Amazonas. Teatro Amazonas, Manaus, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 10/08/2018.
Omi
92
Estilo musical que surgiu no Panamá e mistura música eletrônica com funk, salsa e hip-hop.
137
Lagarta
Durante o refrão baé – baé – baé, que seria o som da lagarta, temos que
dar as mãos para quem está ao nosso lado e nos movermos juntos,
serpenteando, descendo até o chão, como se fosse a própria lagarta.
Mepaeruna havia nos ensinado essa dança-canção no Espaço Cultural
Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit e era uma das preferidas das crianças,
pois pressupõe uma brincadeira que é a da imitação da lagarta, o que faz com
que se divirtam ao se ver nessa situação cômica e ver o outro na mesma
situação.
canções vão lhe afetando, e assim, começa a criar e improvisar junto com os
outros participantes.
Thomas Richards falou sobre o estudo das tradições ancestrais que
buscavam para desenvolver o trabalho, ele disse que tinha como estímulo as
referências de seus antepassados africanos em suas experimentações.
Durante a oficina tomei conhecimento a respeito do trabalho de Maud
Robart, ao assistir um vídeo exibido por Thomas Richards que mostrava o diretor
polonês Jerzy Grotowski conduzindo seus performers a partir da experimentação
com cantos vibratórios tradicionais.
Jerzy Grotowski guiava a prática fazendo com que os performers
percebessem o som que ressoava de seu corpo a partir das características
vibratórias das canções. O vídeo mostrava a experimentação de Thomas
Richards, mas, me chamou atenção a mulher que estava realizando o exercício
ao lado dele: Maud Robart. “De 1978 a 1980, Maud trabalhou como co-diretora
de Grotowski na fase de pesquisa cênica conhecida como Teatro das Fontes.”
(MOTTA, 2019: 38). Nesse período, Grotowski não visava mais a produção de
espetáculos teatrais para serem assistidos, mas sim, experiências realizadas
para ‘testemunhas’, testemunhas de uma prática, de uma obra e da vida
daqueles que com eles estiveram, o teatro era compreendido como um encontro.
Maud permaneceu nesse trabalho com Grotowski até o ano de 1993.
Nesse sentido, Grotowski acreditava que a arte deveria revelar ao
performer e provocar no público a sensação de um estado pulsante, não só pela
via racional, mas ativando todos os sentidos (pensando corpo-mente-voz como
um todo). A necessidade de fugir da ideia de um teatro convencional fez com
que buscasse inspiração nas formas não-ocidentais de teatro, onde se depara
com os rituais de culturas tradicionais.
Assim, as proposições de Grotowski queriam aproximar suas criações
artísticas de um ato ritualístico, um ato coletivo, propiciando um espaço de
encontro e comunhão entre todos: “eu acreditava que por meio do retorno ao
ritual fosse possível reencontrar aquele cerimonial da participação direta, viva,
uma reciprocidade peculiar, a reação imediata aberta, liberada e autêntica.”
(GROTOWSKI, 2007: 119-120). Nesta direção, Grotowski dizia que para que o
teatro continuasse vivo e pulsante ele deveria resgatar a espontaneidade teatral
original provinda dos rituais, já que que os ritos primitivos deram vida ao teatro.
139
93https://www.maudrobart.com/
94MOTTA, Cristiane Madeira. O corpo que somos na experiência de cantar tradições. Tese de
Doutorado apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Orientação: Profa. Dra. Elisabeth Silva Lopes. São Paulo, 2019.
95 Organicidade e Liberação da Voz Natural: Perspectivas sobre a Voz no Teatro
Maud aponta que o corpo humano tem a capacidade de fazer com que
nos conectemos e relacionemos com: os outros seres humanos, a
natureza, o ar, o sol, o todo ao nosso redor. Temos que tomar
consciência de que o nosso corpo é um corpo relacional e de que isto
faz parte de sua essência e para tal, temos os sentidos: olfato, tato,
audição, paladar, visão. A prática proposta por Robart nos ajuda a
permitir que nossos corpos sejam corpos relacionais. (MOTTA, 2019:
41-42).
Figura 52 – Mepaeruna contando sua história na aula de Expressão Vocal I. Escola de Artes e
Turismo, Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 22/09/2018.
96 Primeira menstruação.
97 Palmeira típica amazônica.
145
as mães, ‘se a menina não passa pela Festa ela briga com a mãe, fala que
jenipapo é sujo, fica respondona e só depois da Festa pode cozinhar’.
Mepaeruna e as outras mulheres Tikuna com quem conversei disseram
que arrancar os cabelos dói muito, sai um pouco de sangue, mas que beber o
payauaru – bebida típica servida na Festa, com teor alcóolico moderado, feita da
fermentação da mandioca98 - ajuda a não sentir tanta dor, porque deixa o corpo
mais relaxado. Mepaeruna falou que quando saiu do curral (que é um espaço de
madeira onde a Worecü - Moça Nova - fica fechada durante A Festa e só pode
sair ao final do último dia) levou um susto ao ver tanta gente, mas se divertiu
bastante, principalmente depois que passou a dor de arrancar seus cabelos e foi
para o banho de igarapé, que é uma ação coletiva como fechamento do ritual. E
garantiu que após A Festa ficou mais obediente.
Mepaeruna fechou nosso encontro cantando uma das músicas da Festa
da Moça Nova. A linguagem metafórica99 fica evidente nesta música, que fala
sobre a vagina da mulher, simbolizada por Macuya, uma espécie de perereca
que possui várias cores. Quando ouvi a música pela primeira vez na aldeia de
Nossa Senhora de Nazaré achei muito bonita, simplesmente pelo ritmo da
canção, não sabia o significado da letra, pedi que Marijane Tikuna me falasse a
respeito da música, só não entendia por que ela parecia não saber ou não querer
me falar o significado, demorou dias para traduzir a música, ficava conversando
em Tikuna com seu pai para que ele a ajudasse e eu sem entender nada. Achei
estranho, mas depois quando falei da música para Mepaeruna, ela dava muita
risada e me explicou o significado.
Fiquei pensando se Marijane sentiu vergonha de falar sobre o sentido da
música, já que na aldeia tem muita influência católica, mesmo nós estando
sempre juntas, foi a pessoa de quem mais me aproximei enquanto estive lá 100,
ou, por ser óbvia a relação da perereca com a vagina que nem precisava de
explicações, mas eu não fiz essa relação, só quando Mepaeruna me disse.
Quem já estudou outras línguas sabe que algumas piadas, velhos ditados,
frases prontas, expressões, etc. só fazem sentido na língua de origem e se
estava passando um período na aldeia, mas vivia na cidade onde cursava Pedagogia na UEA.
146
traduzidas não fazem sentido algum, da mesma forma é no universo Tikuna, uma
tradução literal não vai fazer entendermos o verdadeiro significado,
principalmente por se tratar de um universo cheio de metáforas.
Abaixo a música e sua versão traduzida:
Macuya
Quando você olha pra ela, você fica com vontade de rir e chorar
A cor azulada é a cor da roupa (pele) dela, Macuya (perereca que seduz)
Porque é assim mesmo, quando você fica olhando para a cor da roupa (pele)
sempre você vai ficar com vontade de rir e chorar.
Quando o velho vovô sol se pôr no final da tarde, é quando a perereca
encantadora canta no alto (topo) da montanha. Amarelo e azul é a cor da roupa dela.
E sempre que você ver as cores pintadas em sua pele você vai se emocionar e
sentir vontade de rir e chorar.
‘Se o pajé coloca uma reza na pessoa e a pessoa canta a música da Macuya
ela se torna uma sedutora.’
147
O humor Tikuna
Não foi à toa o meu interesse pelo universo Tikuna, já que minha paixão
por esses seres considerados em muitas culturas como tricksters vem desde
quando comecei os estudos sobre os bufões, ainda na graduação, contudo,
foram dois fatores que me fizerem querer conhecer mais a respeito dos Tikuna:
- primeiro; quando soube do ritual de iniciação feminina ligado à menarca:
Worecü (a moça que tem a primeira menstruação), no Brasil chamado de A Festa
da Moça Nova, na Colômbia e no Peru Festa da Pelação (Fiesta de Pelacion), já
que ao final do rito os cabelos da neófita são arrancados como forma de
purificação. A professora doutora Artemis de Araújo Soares (2001) fala que esse
ritual é um dos de maior destaque dado a mulher que se tem notícia em
sociedades ameríndias, a mulher é vista como uma figura importante,
responsável por gerar a vida e dar continuidade ao povo Tikuna, logo, a
sobrevivência desse povo está ligada a esse ritual, pois é um evento que garante
a fertilidade da terra.
- segundo; quando descobri que durante esse ritual apareciam seres
mascarados que eu consideraria cômico-grotescos - a partir de minhas
referências de estudo do bufão - com pênis a mostra, alguns com bocas
escancaradas, ou orelhas grandes, entre outras características hiperbólicas, que
surgem com o intuito de alertar a Worecü e os convidados da Festa sobre os
perigos que assolam quem descumpre as regras estabelecidas ao povo Tikuna
por seus ancestrais. E isso se dá de forma 'assustadora', por se tratar de algo
sobrenatural, mas ao mesmo tempo com uma dança-brincadeira (em que tentam
acertar seu pênis em quem estiver por perto) que arranca gargalhadas dos
participantes da Festa, é um riso ambíguo que causa ao mesmo tempo medo e
diversão.
No início, quando relacionei as máscaras Tikuna ao universo bufonesco,
não foi no sentido de fazer uma comparação entre os bufões e os mascarados,
já que cada cultura possui sua especificidade, contudo, existe a herança cultural
deixada pelos rituais primitivos com figuras sobrenaturais que guardam uma
certa relação com os bufões, ou com o mundo do riso, numa perspectiva
antropológica, a partir da referência de figuras que sempre existiram nas culturas
mais distantes e que serviam para divertir, criticar, ofertar ou mesmo espantar as
149
101 Podemos saber mais a respeito disso a partir do estudo de Elisabeth Silva Lopes que aborda
as possíveis origens remotas do bufão em diferentes culturas: LOPES, Elisabeth Silva. Ainda é
Tempo de Bufões. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2001.
102 A título de curiosidade acrescento neste trabalho as histórias de ‘Moé’ e ‘Torama’ em Anexo
Figura 55 – Mulheres Tikuna. Nossa Senhora de Nazaré, município de São Paulo de Olivença,
AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Julho de 2016.
151
A MOÇA DE UMARI
103
Isso não quer dizer necessariamente que ocupe um lugar privilegiado dentro da sociedade.
104
Este é o resumo de uma das partes do mito de surgimento do povo Magüta a partir de relatos
colhidos em campo e das seguintes referências: ANGARITA (2010); MATAREZIO FILHO (2015);
SOARES (1999).
152
pela pintura do corpo com o sumo de jenipapo retira o cheiro de sangue e renova
a pele. O antropólogo Edson Tosta Matarezio Filho (2015) nos informa que são
três momentos da vida Tikuna em que a pessoa é pintada por inteiro com o sumo
de jenipapo:
A CRIAÇÃO DO MUNDO
A criação do mundo Magüta começa com o grande Deus criador do universo: Mowíchina
que criou o primeiro casal de imortais: Ngutapa e sua esposa Mapana, os dois viviam em
um local que é sagrado para os Tikuna, o Eware. Um dia os dois saíram caminhar na
floresta e brigaram, porque Mapana não gerava filhos. Então Ngutapa bateu em Mapana
e amarrou ela em um tronco de árvore com as pernas abertas onde foi picada por vespas
que a deixaram sangrando até ser socorrida por um gavião que disse que ela deveria se
vingar do marido. Quando Mapana encontrou Ngutapa jogou as vespas nele que picaram
seus joelhos, ele sentiu muita dor por vários dias e seus joelhos incharam muito, devido a
isso ele gerou dois casais de filhos dentro de seus joelhos. Do joelho direito saiu Yoi com
154
sua zarabatana e Mowatcha com sua rede de pesca, do joelho esquerdo saiu Ipi com seu
arpão e Aicüna com seu paneiro.105
105 Transcrevo a história a partir da leitura do artigo de ANGARITA, Abel Antonio Santos.
Narración Tikuna del origen del territorio y de los humanos. Revista Mundo Amazônico, n. 1,
Letícia, Colômbia, 2010.
155
Essa é lógica na maioria das aldeias, ainda regida pela divisão sexual de
trabalho onde as atividades da mulher se dão no âmbito doméstico que
determina que à mulher corresponde a reprodução, de acordo com os estudos
de Cristiane Lasmar (1999) e Elizabeth Ibarra e Liliana Souza (2016).
Contudo, recentemente - menos de vinte anos para cá - na cidade
especialmente, isso está se organizando de forma diferente, as mulheres estão
ocupando lugares que antes eram somente dos homens, principalmente
espaços de liderança, graças ao crescente processo de politização com o
surgimento de organizações indígenas femininas. A mulher continua sendo a
responsável pela educação dos filhos, mas agora ocupa outros espaços na
sociedade, de intervenção e relação com o mundo exterior, bem como novas
formas de trabalho, ajudando nas ações que defendem os direitos coletivos. No
Parque das Tribos isso é nítido, se formos pensar no lugar de cacique ocupado
por Lutana Kokama, a liderança de Cláudia Baré que é quem leva parceiros e
organiza diversos movimentos com ações culturais e de reivindicação dentro da
comunidade.
O MITO DE TO’OENA106
To’oena era filha de Aicüna com o quatipuruzinho, aquele que foi o único a
derrubar a árvore da Samaumeira que escondia o sol e por isso recebeu Aicüna para se
casar. Depois que Mowatcha, irmã de Aicüna morreu, Aicüna ficou muito triste e foi com
sua filha para a montanha Moruapü, chegando lá, Aicüna mandou To’oena, que já era
quase moça, subir no pé de umari, amarrar sua rede e ficar por lá, mas deveria tomar
cuidado e ficar com o tio Yoi e jamais com Ipi, porque Ipi é mal. To’oena então ficou lá em
cima do pé de umari em sua rede, até que os umari começaram amadurecer e foram
caindo aos poucos no chão. Ipi juntou todos e To’oena virou um umari, só que ela não
caiu, ficou amadurecendo lá em cima (aqui é uma referência a reclusão da Worecü).
Finalmente a fruta caiu e era uma mulher muito bonita, Yoi a encontrou e então começou
a fazer A Festa com ela, ele caçou durante dias para fazer moqueado e convidou muita
gente e foi assim que começaram a fazer A Festa da Moça Nova. Yoi guardou To’oena
106Apresento aqui um resumo a partir do estudo de MATAREZIO FILHO Edson Tosta. A Festa
da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. Tese de doutorado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, 2015.
Da página 111 a 126 ele falará sobre o mito trazendo versões da história.
156
em reclusão, só que ela desobedeceu as regras e saiu de seu quarto para ver o to’cü, o
aricano, que é um instrumento proibido para as mulheres e crianças, quando ela viu o
instrumento se assustou, pois parecia um jacaré, e acabou se mijando, depois foi pega
pelos Nge’cutu (bichos) da floresta que mataram ela e lavaram seu corpo no igarapé
sagrado Eware, cortaram em pedaços, assaram e levaram para os convidados da Festa.
Os Nge’cutu botaram o espírito de To’oena no to’cü e ela começou a cantar para sua
mãe alertando que a carne que eles estavam comendo não era de anta e sim dela. Yoi
castigou a mãe de To’oena porque não cuidou bem da filha, passando carvão em seus
olhos para que não pudesse chorar.
Essa é uma das histórias que a Worecü escuta enquanto está reclusa em
seu curral durante A Festa da Moça Nova. Mito que possivelmente deu origem
ao ritual de iniciação feminina Tikuna, contando a história da primeira Worecü.
De acordo com Matarezio Filho (2015) To’oena é uma variação da Moça de
Umari e a flauta onde a Moça do Umari fica guardada seria a representação da
reclusão. Portanto, as variações do mito mostram a origem da reclusão das
moças durante a menarca e a proibição das flautas sagradas para mulheres e
crianças. To’oena morreu por olhar os instrumentos sagrados, seu sangue foi
derramado no rio Eware e pode ser visto até hoje em forma de manchas
avermelhadas.
O ritual é uma das maneiras de acessar o conhecimento cosmológico,
pois se consolida enquanto experiência e trata-se da união dos discursos
variados que constituem determinada sociedade, união de pensamento e ação.
A relação com o cosmos e os seres que nele habitam faz com que os
Tikuna entendam que tudo que vive é formado pelos mesmos princípios, pela
mesma matéria e energia. Eles nomeiam as partes da superfície da terra e das
plantas como as partes do corpo humano, todos tem coração, cabeça, pernas
etc. Portanto, todos se reconhecem como humanos (duũgü). Deste modo, todos
os seres, de qualquer reino, possuem um corpo orgânico naü̃ne que seria a
materialização do corpo maior Naane (cosmos). Naane é tudo que existe no
universo, mas que não conseguimos enxergar: imaginação, pensamentos,
ideias, espíritos. E naü̃ne é matéria, tudo que conseguimos ver. Todo Naane
possui um naü̃ne e todo naü̃ne tem as mesmas origens, está formado pelos
mesmos princípios vitais de pora ‘poder’, kuã ‘conhecimento’, naẽ ‘pensamento’
e maü̃ ‘vida’, que também tem o sentido de identidade pessoal. O cosmos, o
157
O mito pode ser considerado uma linguagem estética, poética, e por isso
performatizada em forma de ritual. De acordo com Regina Polo Müller (2010) o
158
Até aqui trouxe algumas teorias para elucidar reflexões a respeito do que
representa o ritual dentro de uma sociedade ameríndia, falando especificamente
do povo Tikuna e o contexto em que está inserido o ritual Worecü, não tendo a
intenção de ser um relato etnográfico no sentido clássico, já que existem diversos
trabalhos etnográficos sobre os Tikuna, e feito por Tikunas, que possibilitam
estudos mais detalhados sobre os modos de vida desse povo e seu ritual, que
foram utilizados como referências ao longo da escrita107.
Agora, tentarei descrever os principais momentos vivenciados no ritual
Worecü, A Festa da Moça Nova, apesar de ser algo complexo de registrar, por
se tratar de uma experiência sensorial, acredito que a tentativa de refletir sobre
essa experiência, a partir das referências que trago a respeito do tema, ajuda a
avançar na perspectiva de revisitar rituais ancestrais como forma de repensar as
107ANGARITA (2010; 2013); COSTA (2015); GOULARD (2009); MATAREZIO FILHO (2015);
NIMUENDAJÚ (1952); SOARES (1999).
160
108 Durante o período que cursei artes cênicas em Santa Maria no Rio Grande do Sul tive o
professor, Paulo Márcio, que trabalhava a partir de exercícios com sonhos lúcidos em sua
metodologia de treinamento para o ator. Seus estudos tinham como base as teorias do
antropólogo e romancista Carlos Castaneda, que trazia de uma experiência ao lado de povos
indígenas mexicanos. Quando fiz terapia de regressão tive a mesma sensação do sonho lúcido,
já que aquela ‘história’ se construía na minha mente como um sonho, mas eu estava consciente,
diferente de um sonho dormindo, que não conseguimos interromper conscientemente.
109 Uma alimentação diferente da que estou acostumada: bastante peixe e animais do rio (jacaré,
tracajá), animais de caça, a farinha de Uarini (que é a da mandioca brava), várias espécies de
banana e vários pratos feitos com banana, sucos de frutos típicas da Amazônia (distantes da
minha realidade: cubiu, cupuaçu, taperebá, jenipapo).
161
110Não tive como fugir do meu pensamento colonizado, foi automático pensar no artista francês
Antonin Artaud devido a seus escritos sobre teatro, era como se suas ideias fizessem todo
sentido naquele momento.
162
111 Durante os anos (2008 – 2013) que vivi em São Paulo estive presente em diferentes
montagens que Zé Celso realizou no Teatro Oficina. No ano de 2011 e 2012 pude acompanhar
o processo de criação da montagem de Macumba Antropófaga, a partir do Manifesto Antropófago
de Oswald de Andrade, com a abertura de uma Universidade Antropófaga que permitiu com que
muitos artistas e interessados na arte estivessem dentro do Teatro Oficina colaborando em
diferentes esferas, foi ali que ‘absorvi’ essa referência para minha vida/arte. Os espetáculos do
Teatro Oficina - assumidamente - buscam a criação de um espaço de ritual, trabalhando com
elementos que agucem os sentidos (cheiros, bebidas, comidas, envolvimento/contato tátil com
os atores-performers), instigando os participantes a interagir, a entrar no jogo dos atores-
performers, dentro de um evento que pode durar cinco horas seguidas (mais ou menos) aludindo
à uma festa.
112 Como encontramos em diversos estudos sobre a história do teatro que falam de seu
o evento que deu origem ao nosso teatro ocidental do que grande parte do teatro
que fazemos nos dias de hoje.
O ritual da Worecü, A Festa da Moça Nova, é a experiência que me
permite refletir sobre esses estudos a partir da prática, pois tive a oportunidade
de vivenciar essa experiência, o que reforça a questão do diálogo entre teoria e
prática, arte e vida.
Os preparativos
113
Espaço de madeira feito espacialmente para esse momento da vida da menina localizado na
Casa de Festa.
164
lugar do meio. “Os neófitos são meramente entidades em transição, não tendo
ainda lugar ou posição.” (TURNER, 1974: 126). Essa característica
indeterminada é expressa nas sociedades que ritualizam as transições culturais
e sociais por um amplo conjunto de símbolos, como os presente no ritual da
Worecü. “Assim, a Iiminaridade frequentemente é comparada à morte, ao estar
no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e
a um eclipse do sol ou da lua.” (TURNER, 1974: 117).
As pessoas no estado liminar estão em um momento de transição e
necessitam passar por provas que as façam ter conhecimento e maturidade para
ocupar o lugar de relevância à que estão destinadas. Com efeito, durante o rito
de iniciação feminina Tikuna são entoadas canções de aconselhamento pelas
mulheres mais velhas que falam como a Worecü deve se comportar, além dos
suplícios pelos quais passa desde sua reclusão até o fim da Festa. Suplícios
esses, que de acordo com Turner, são característicos dos ritos de passagem,
onde as figuras dos neófitos devem ter um comportamento humilde e passivo,
mantendo-se submissas e em silêncio, obedecendo os aconselhadores e
aceitando as punições sem reclamar. “É como se fossem reduzidas ou oprimidas
até a uma condição uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas de
outros poderes, para se capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida.”
(TURNER, 1974: 118).
O estado de liminaridade representa a transição através de experiências,
deste modo, os suplícios permitem o rompimento com o status antigo para o
estabelecimento do novo. A Worecü durante esse período ouvirá os
aconselhamentos das mais velhas, beberá payauaru, será ameaçada com a
presença dos seres mascarados que surgirão na Festa, terá seu corpo pintado
de jenipapo e seus cabelos arrancados. Em seguida, receberá a reza do pajé
que utiliza a fumaça de seu cigarro para ‘defumaçá-la’ e aproximá-la dos seres
invisíveis. Por fim, será encaminhada ao igarapé para ser lavada, findando o rito.
O rolo de corda de tucum que a Worecü enrola durante sua reclusão é
dado de presente ao üaü̃cü (copeiro), ele é o responsável por cuidar dos
165
Figura 56 - Peixes e caças sendo moqueados. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município
de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
03/11/2016.
114 Os peixes e as caças ficam na fumaça do fogo quase que apagado, alguns enrolados em
folha de bananeira, como que defumando, para que durem um longo tempo para consumo, não
precisando de geladeira.
166
Essa, de acordo com Turner, seria a fase final do processo ritual, a fase de
‘reagregação ou reincorporação’ (1974: 117), quando consuma-se a passagem,
a neófita adquire uma posição estável dentro do grupo a que pertence e passa
a ter obrigações e direitos perante os demais do tipo ‘evidentemente estrutural’.
Deste modo, espera-se que se comporte de acordo com certas regras e padrões
éticos referentes a sua posição social. No caso do ritual da Worecü, esse
comportamento se refere ao seu lugar de mulher dentro da aldeia, realizando as
tarefas que lhe competem, isso inclui o casamento e a concepção, além do
trabalho na roça e da produção de utensílios e artefatos domésticos.
Quando cheguei em Nossa Senhora de Nazaré, todos estavam
envolvidos com os preparativos para A Festa da Moça Nova para que tudo
corresse bem. O curral onde a Worecü ficaria durante os dias de Festa estava
pronto, feito de madeira, pintado com alguns desenhos e grafismos Tikuna,
enfeitado com plumas, conchas do rio e um cocar que representa o sol. Por
dentro, o curral é envolto de tecidos e lá está tudo que a Worecü precisa para se
preparar quando for o seu momento de entrar na Festa: água, comida, payauaru,
sua vestimenta da Festa, um lugar para fazer suas necessidades etc. Existe uma
taquara colocada como uma viga horizontal dentro do curral que a Worecü
segura virada para a parede, para que não olhe para ninguém que entre no curral
enquanto espera, já que mulheres e parentes próximos entrarão para aconselhá-
la.
As mulheres me chamaram para entrar e ver a Worecü, inclusive me
incentivaram a tirar fotos. Geralmente os cabelos da Worecü já foram arrancados
aos poucos durante as semanas anteriores, ou, em alguns casos, raspados, para
que não sofra tanto arrancando-os todos no mesmo dia e não seja tão demorado
o processo durante A Festa, que acontece no último dia.
167
Figura 57 - Curral visto de frente, do lado de fora. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município
de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
03/11/2016.
168
Figura 58 - Curral visto de dentro, com a Worecü aguardando o momento de entrar na Festa.
Aqui ela se encontra no estado ‘limiar’ como se estivesse no útero esperando o momento de
(re)nascer. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas,
Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 60 - Payauaru sendo peneirado para caldo mais fino. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré,
Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
04/11/2016.
O payauaru é uma bebida que tem que ter muito na Festa, a gente faz de leite de
macaxeira. Macaxeira ralada, a gente deixa um ou dois dias pra torrar essa massa de
170
macaxeira igual a farinha. Depois, quando chega na festa que a gente vai fazer, molha
com água morna numa bacia essa farinha de payauaru, a gente tira a folha de banana
coloca assim no chão, coloca maniçoba também em cima e depois fecha com folha de
maniba, aí cobre com folha de banana, passa um dia e no segundo dia a gente tira,
levanta que a gente chama, coloca na igaçaba ou no tapi, passa durante bem mais de
dois meses pra ser fermentado, pra ter caldo mais forte, pra pessoa ficar animada,
quando ele tá meio embriagado gosta de cantar, gosta de brincar, gosta de se divertir,
assim que foi a preparação da Festa. (Ondino Tikuna falando sobre a preparação do
payauaru).
A dança do tracajá
Toritchiga115
Assim é a música do tracajá, Ondino Tikuna me disse que ela fala sobre
um fato que ocorreu na montanha De’cüãpu: ‘uma montanha que antigamente a
vovozada defumaçou para matar os tais de buri buri, bichos que estavam
comendo as pessoas antes de defumaçarem a montanha. Então, apareceu esse
vovô muito velho, o’i o’i, que morava lá dentro da montanha. Tchürüne era o
nome dele, era um ü’üne (encantado) e ele saiu de lá com o tori e começou a
chamar as pessoas que estavam defumaçando a montanha para que o
acompanhassem a tocar o casco do tracajá, dançando e cantando, foi lá que as
pessoas aprenderam essa música, e depois que voltaram da montanha já
sabiam cantar quando tocavam o casco de tracajá que aprenderam com o velho.’
De acordo com Matarezio Filho (2015) a palavra ‘ü’üne’ pode ser traduzida
como ‘encantados’ ou imortais, mas acrescenta que a palavra ‘üne’ se refere a
corpo, assim, “ü’üne pode ser interpretada como ‘aquele que não tem mais males
no corpo’.” (P. 157). Ou seja, aqueles que são imortais. Angarita (2013), ainda
acrescenta que: “Os ü’üne são também ne, igualmente são a imaginação, as
115 Tchiga se refere a palavra, narração, história, canção, notícia, relato, ligado à entidades
míticas (ANGARITA, 2013, p.23); (MATAREZIO FILHO, 2015, p. 276) Vamos ver que todas as
canções e histórias dos mitos acabam com a terminação tchiga,
116 Ondino não traduziu a música palavra por palavra por isso trago o que ele me falou sobre a
história da música.
172
Figura 61 – A dança do tracajá. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de
Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
117Tradução nossa, a partir do original: “Los ü’üne son también ne, igualmente son las
imaginación, las ideas, el pensamento, el saber; todo lo que es intangible como son las
construcciones sociales y culturales, por ejemplo, los ritos, la habla, las curaciones, el trabajo,
además de las atividades cotidianas.” (ANGARITA, 2013, p.118).
173
Figura 63 - Dono da Festa com os homens puxando a dança com o tambor por volta da Casa de
Festa para animar os convidados. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo
de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 64 - Grafismo para o rosto feminino representando a nação (clã) de onça, feito de sumo
de jenipapo, dura em média uma semana e vai desaparecendo aos poucos. Aldeia de Nossa
senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
O jenipapo e o To’cü
Figura 65 – Jenipapo sendo ralado. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo
de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
177
Figura 66 - Detalhe do bastão de avaí à frente durante a ralação do jenipapo. Aldeia de Nossa
senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 67 - To’cü, aricano, escondido atrás do curral. O tocador fica sentado de frente para essa
parte mais fina que é onde apoia a boca para realizar o sopro. Aldeia de Nossa senhora de
Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 04/11/2016.
A sensação de transe coletivo provocada pelo toque do to’cü não foi à toa,
já que os instrumentos de sopro têm um significado cosmológico ligado à
possibilidade de elevação aos céus, como um passeio rumo à imortalidade.
Matarezio Filho (2015) nos traz essa informação a respeito da predominância
dos instrumentos de sopro entre os sul-ameríndios, dizendo que esses
instrumentos estão ligados à respiração, que representa o sopro de vida, que se
canaliza nas atividades que asseguram a fertilidade. Como vimos, o ritual
Worecü, A Festa da Moça Nova, é a comemoração da abundância, representada
pela fertilidade da mulher e da terra.
Assim, fluímos com o vento, o vento que entra em nossos corpos, que sai
de nossos corpos, o vento que é um dos agentes polinizadores da terra,
elemento importante para o processo de crescimento do alimento, vento que
regula a temperatura, entre outras funções na natureza. De fluxo. De giro. De
voo. Esse vento que representa também a possibilidade de durante o ritual
Worecü elevar a Ye’egune para os ares, como um caminho para a imortalidade.
Interessante que o significado de Ye’egune (Casa de Festa) é ‘mudar de lugar
como um pássaro que entra no ninho.’
Figura 68 – O auge da Festa, momentos antes de ter sido levada para o meio do salão. Aldeia
de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto:
arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
180
Os ‘mascarados’
A chegada dos seres mascarados foi o momento mais esperado por mim,
já que, como relatei anteriormente, o que me levou a querer conhecer o universo
Tikuna foi descobrir essas ‘máscaras’ que aparecem durante o ritual Worecü.
Máscaras que não são máscaras, no mesmo sentido que para nós, pois não
existe a palavra máscara para os Tikuna, a vestimenta é chamada dos materiais
de que é feita, que são as entrecascas de árvores (tururi - nho’ê) ou da madeira
balsa (punẽ). Já materializada - com vida - ‘as máscaras’ são chamadas dos
seres que personificam: Toü (macaco), Mawü (Mãe do Pixuri – árvore), O’ma
(Mãe/Pai/dono do vento).
Esses seres chegam na manhã de domingo, vindos do meio da mata e
vão ganhando espaço entre os convidados na Ye’egune, que têm diferentes
reações diante da presença deles.
Após as ações da madrugada, que considerei o auge do ritual, por
proporcionarem uma sensação de transe, devido ao ritmo frenético das danças
e das cantorias, ao som inebriante do to’cü, à claridade da luz do luar que em
meio à escuridão da noite era crepúsculo119, ao sabor do payauaru com o caldo
fino e mais alcóolico – amargo - e o caldo grosso, tão pastoso que causava
sensação de saciedade alimentícia, ao ralar o jenipapo em pé cuidando para não
ralar os dedos.
Depois de todas essas ações experienciadas, com o amanhecer do dia, o
silêncio se estabeleceu por alguns instantes e quando tudo estava calmo, eis
que chegaram os mascarados, causando surpresa, reforçando a atmosfera de
sonho que permeava o ritual, mais uma vez, fomos suspensos pelos ares pela
magia que essas figuras evocaram. Nesse dia, os primeiros mascarados que
chegaram vieram acompanhados de crianças, trazendo uma leveza ao espaço.
Contudo, essa foi uma impressão momentânea, logo eles quebraram com o
silêncio e voltaram a ‘animar’ A Festa da Moça Nova.
Diferentes grupos de mascarados vieram com seus bastões de avaí e com
um pedaço de pau que remete a um pênis que chegam batendo, dançam pelo
espaço, assustam a mulherada, que corre e ri, fazem suas brincadeiras com os
convidados, ameaçam invadir o curral da Worecü e no final ganham do üaü̃cü
moqueados e garrafas de payauru que servem como recompensas.
119
Não tinha iluminação elétrica, nem outra forma de iluminação.
182
Figura 70 - É’é (orelhudo), To’ü (macaco) e Po’ü (murucututu – maior coruja tropical). Aldeia de
Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
183
Figura 71 - O’ma batendo seu pênis com um chocalho de avaí, brincou, assustou interagiu com
todos dançou com a mãe da moça que segurou no seu tururi e no fim ganhou do copeiro suas
recompensas payauru e moqueados. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São
Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 72 - Mawü e To’ü. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de
Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 73 – Worecü saindo do curral. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São
Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 75 - Worecü na esteira tendo os cabelos arrancados. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré,
Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
04/11/2016.
187
Figura 76 – Worecü de costas tendo seus cabelos arrancados. Aldeia de Nossa senhora de
Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 04/11/2016.
diferença entre sentir a dor e pensar sobre ela. Assim, a função da arte seria dar
sentido ao sentir:
Vimos, a partir do relato das mulheres Tikuna, que depois do ritual elas se
sentiram mais fortes, pela transformação provocada pelos sacrifícios aos quais
passaram durante o ritual, que garante uma nova etapa de vida. Uma etapa
relacionada à fertilidade, a fertilidade da terra e da mulher que gera fartura e
abundância. A possibilidade de um novo ciclo em que a vida se manifesta na
forma de subsistência e na forma de fortalecimento de um povo, que tem a
chance de se perpetuar.
Após arrancarem o cabelo da Worecü, colocam o cocar de penas, que
representa o sol, em sua cabeça, e jogam os tururis que ganharam dos
mascarados em cima dela. Depois, ela já pode abrir os olhos.
Figura 77 – Tururis por cima da Worecü. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São
Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
189
Figura 78 – Banho coletivo – Fim da Festa. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de
São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 04/11/2016.
120
Ela já passou por todos os suplícios, saiu do enclausuramento, estava o tempo todo com os
olhos tampados, séria e quando foi para o banho estava rindo e brincando com seus parentes.
190
Figura 79 - Pai fazendo remo – Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de
Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Julho de 2016.
121
Esse local era um espaço aberto de madeira, coberto com um telhado e uma parede para a
lousa. A nova escola é de alvenaria com salas fechadas, lousas, refeitório e banheiros (embora
ainda não tivesse saneamento básico quando estive lá, os sanitários já estavam postos).
192
Marijane foi quem nos recebeu quando chegamos na cidade de São Paulo
de Olivença, que era de onde pegaríamos o barco para descer até Nossa
Senhora de Nazaré. O fato de Marijane falar muito bem o português facilitou a
nossa relação, com ela aprendi a fazer farinha122, um ensinamento cotidiano, já
a produção de máscaras pertence a um momento ritualístico, pois é parte da
preparação para o ritual Worecü, e inicia somente após o convite para A Festa.
122
A farinha é feita da mandioca brava, uma espécie de mandioca venenosa, devido ao ácido
cianídrico, para ser consumida é preciso ralar ela, colocar no tipiti, que é feito de palha de arumã
e funciona como uma prensa, então você espreme essa mandioca que foi ralada e o caldo
venenoso sai, depois você leva a massa que restou para o fogo em panela de barro ou ferro e
vai mexendo até pegar o ponto da farinha.
193
Figura 81 - Farinha feita de mandioca brava. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de
São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Julho de 2016.
123
Uma planta presente em toda a América tropical, geralmente usada como ornamento.
194
Figura 82 - Mulher Tikuna desenrolando o tucum para tecer a maqueira Aldeia de Nossa senhora
de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. Julho de 2016.
Figura 83 - Mulheres Tikuna tecendo a maqueira. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município
de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Julho de
2016.
195
Figura 84 - Pacóva fervendo para servir de tinta para tingir o tucum. Aldeia de Nossa senhora de
Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. Julho de 2016.
Figura 85 - Tucum sendo retirado da tinta. Comunidade Nossa Senhora de Nazaré, município de
São Paulo de Olivença, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 2016.
196
Figura 86 - Tucum colocado na lama para ficar preto. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré,
Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
Julho de 2016.
Figura 87 - Tucum após lavado e seco, pronto para tecer. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré,
Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
Julho de 2016.
197
Figura 88 – Grafismos Tikuna sendo tecidos na maqueira. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré,
Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora.
Julho de 2016.
124
Feitas de barro e servem para guardar água, comida, farinha, etc.
198
125
A Igreja Católica é a que se estabeleceu na comunidade, levando a bíblia e as canções das
missas em língua Tikuna. Todos os domingos pela manhã são realizadas as missas na
comunidade.
199
Deus me deu esse dom, eu escuto uma vez e já está escrito na minha cabeça’.
Essa ideia de Deus que deu o dom está ligada à percepção da produção de
conhecimento dos pajés que recebem de seres espirituais os saberes, são
inspirações que surgem frequentemente em sonhos. A produção das máscaras,
alguns instrumentos musicais e outros artefatos surgiram e surgem dos sonhos.
Deus é falado aqui como uma referência a religião católica que é forte em Nossa
Senhora de Nazaré.
Na primeira vez que estive na aldeia, como tinha interesse em saber sobre
as máscaras presentes no ritual, em um dos encontros que aconteceram no fim
da tarde em que as pessoas da aldeia se reuniram, uma das crianças Tikuna
pegou um resto de tururi que havia sido usado em uma Festa da Moça Nova e
performou o Toü, mostrando como ele assustava e arrancava gargalhadas das
pessoas ao correr atrás delas batendo em seu pênis de madeira.
Mais tarde, outro Tikuna que conheci, sem que eu pedisse, improvisou
com um tururi antigo a performance de O’ma, não era exatamente a roupa-
máscara de O’ma, mas ele queria me mostrar como era a sua dança, para isso
trouxe alguns apetrechos que compõe a figura: o pênis que é feito de madeira e
o chocalho de avaí que fica amarrado em seu tornozelo. Além de me mostrar a
dança de O’ma, queria que eu vestisse a roupa para me ensinar a dançar como
O’ma. Aceitei o desafio e fomos improvisar, primeiro eu observei como ele fazia
e fui tentando imitá-lo, depois eu vesti o tururi, amarrei o chocalho de avaí em
meu tornozelo, peguei o pênis e comecei a tocar e a correr pelo espaço, até que
alguém se agarrou nas minhas costas, eu não tive forças para dominá-lo e
acabei caindo no chão.
Não obtive muito sucesso na realização da dança, que exige força e
habilidade. Observando os mascarados durante o ritual, percebi que existe um
dinamismo em suas ações, eles têm força física para aguentar os puxões dos
convidados. Os mascarados chegam batendo o pênis e os convidados seguram
com força em seu tururi para que não invadam o curral da Worecü, e eles têm
que dançar pulando de um lado para outro tentando bater com seu pênis em
quem está segurando.
200
Figura 89 – Menino Tikuna vestido de To’ü. Figura 90 – Eu vestindo tururi para dançar. Aldeia de
Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. Julho de 2016.
Pelo fato do encontro com as máscaras terem sido tão relevantes em meu
processo de aprendizado enquanto artista, desde quando soube que faziam
parte do ritual Worecü, conhecendo-as a partir dos estudos bibliográficos e
iconográficos, através de conversas com os Tikuna, participando do processo de
confecção, e, por fim, quando as encontrei na Festa da Moça Nova, quero trazer
um pouco mais de referências a respeito.
As máscaras de rituais de culturas tradicionais têm sido bastante
investigadas nas artes cênicas. Ao longo dos anos acompanho pesquisadores
indo para a África, Bali, Japão, Índia, Itália, pesquisar sobre máscaras e mais
recentemente percebo o interesse pelas máscaras indígenas brasileiras
presentes na vida das diferentes etnias que povoam nosso território.
O estudo sobre o universo ameríndio e sobre as máscaras Tikuna ainda
está em processo, mas vou apresentar a seguir alguns apontamentos que
construí até aqui a partir do encontro que tive com os Tikuna, quando conheci
suas ideias sobre as máscaras.
201
Figura 91: Tambor Tikuna, avaí, O’ma e máscara de balsa. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora.
202
O Nascimento
126
Como vimos, para os Tikuna não existe a palavra máscara, ele usou a partir de minha
referência.
203
mataram não era a própria paca’, esse daí era o filho do governo que governa essa
montanha, o filho desse governo que vocês estão matando e hoje vocês vão acabar com
isso, o buri buri vai comer vocês – o bicho que morava lá dentro da montanha Yare (esse
daí do tamanho de cavalo, onça, boi, tem vários tipos dele, macaco, gorila todo o tipo de
bicho que tem lá). Aí aquela mulher Ngutcha avisou o pessoal lá: vai acontecer isso com
nós porque vocês comeram aquela paca que não era paca é o filho do governo daqui.
Eles não acreditaram, disseram que era mentira que ela tava falando à toa, não vai
acontecer nada. E aquele rapaz que falou pra mulher disse: ‘se você quiser se salvar
vocês vão fazer as tendas lá em cima, lá num galho de árvore’. Ela acreditou e mandou o
marido dela fazer o girau (tenda) de cipó lá em cima e descascava o pau pra os buri buri
não poder subir. Ela fez e alguns deles fizeram o girau lá em cima e os outros que não
acreditaram na palavra dela ficaram lá em baixo no chão mesmo. Demorou, quando
chegou umas onze horas da noite chegou um estrondo bem forte com chuva, com vento
e agora sim o rapaz vem avisar nós, que nós vamos morrer agora e o pajé que tem lá
também soprava pra fechar a montanha.
Demorou e saiu todos aqueles buri buri do buraco da montanha e tacaram fogo na gente,
comeram, mataram e também eles tinham dois artistas127 deles, porque antigamente
todos os povos tinham dois artistas, aquele era artista mesmo, igual aquele que a gente
vê na televisão, eles matavam aqueles bichos com a lança, os Toü (macaco) dele, sobe
mesmo como macaco em cima da árvore pula pra lá e pra cá igual macaco, por isso
chamava de Toü. Eles mataram um bocado de bicho buri buri e o pessoal também
morreu e saíram outros, até que amanheceu o dia, quatro horas da manhã, quando
morreu um dos Toü e ficou só um pulando e pulando, quando chegou oito horas até que
morreu. Ficaram alguns buri buri, não muitos e as pessoas que estavam em cima nas
tendas foram as que se salvaram, mas ainda tinha aquele tipo macaco subindo em
árvore com um cacete pra caceta quem não tinha subido. Eles se juntaram, quem tava
vivo, e os buri buri voltaram todos pra montanha e aqueles que ficaram lá em cima
desceram e avisaram as pessoas da aldeia que não foram, porque naquela época o povo
Tikuna morava só numa casa, uma maloca bem grandona, redonda, umas trezentas
pessoas na mesma casa, mas cada um tinha sua cozinha, não tinha mosquiteiro dormia
só na maqueira e a casa era bem fechada de palha daqui de baixo até lá em cima com
uma só porta sem janela. Eles voltaram e avisaram que os buri buri tinham comido os
parentes dele: ‘o que que nós vamos fazer agora para pagar o nosso parente que foi
comido pelo buri buri?’ então eles decidiram fazer uma roça bem grande pra plantar
pimenta ardida, pimenta tchara e fizeram uma roça bem grande pura pimenta. Passou
uns quatro meses, ‘acho que pimenta amadurece em quatro meses’, e convidaram as
pessoas que tinham sobrado, agora nós vamos apanhar todas essas pimentas e levaram
junto com o pajé pra fechar os buracos e ele soprava com um cigarro aí conseguiram
127
Aqui também ele usa essa termo a partir da minha referência, falando de artista como os
heróis, os guerreiros, homens fortes dos filmes de ação.
204
fechar e não saiu mais o buri buri. Depois, tiraram as bacabera, uma árvore bem grossa e
bem dura, aí fecharam todos os buracos daquela montanha e depois abriram um
buraquinho bem pequeno e o pajé fazia fogo em cada buraco e colocaram aquela
pimenta no fogo e abanaram a fumaça lá dentro da montanha, abanaram, abanaram e
abanaram. Demorou um pouco e estava cheio de barulho dos bichos querendo sair de lá,
demorou um pouco e saiu, tinha muito bicho que morava lá. Primeiro saiu Beru128 com o
seio comprido, aí ela abanou o fogo com aquele seio dela e o fogo se apagou mas
colocaram de novo o fogo ai ela cantava: ‘a minha montanha é a montanha de papagaio,
minha montanha é uma montanha de estrela, minha montanha é De’cüãpu’. Os povos
abanaram, abanaram e ela morreu. Quando ela morreu apareceu Matirawe que tinha o
corpo cheio de água e com essa água ela apagava o fogo pra se salvar, mas o pessoal
abanava o fogo nela e ela morreu também. Depois saiu o Domitadó, pé grande, largo,
abanaram e morreu esse Domitadó. Depois saiu ῖchawa, Dono da ferida, porque ele tem
ferida nas costas dele, não mataram esse, deixaram ele sair e foi embora. Depois desse
tem também o Dono da arara – Tchowaru – bem grandão e cumprido carregava ‘assim’
uma arara, uma que fica aqui na frente e outra que fica aqui atrás, mas esse aí ninguém
pode olhar, se a gente olha ele a gente morre, porque o poder dele é igual ao do raio, se
a gente olha ele a gente se assusta e morre, o raio dele bate e a gente fica cego com o
poder dele, aí deixaram ele sair da montanha. Depois desse saiu da montanha o que eles
chamam de galera, tipo um coxo de colocar massa de mandioca, ela anda por si, Tauta
na língua Tikuna, depois, saiu um Quiricá, que também anda por si só, essa pakavra
quiricá é pra gente amassar a massa da mandioca, fica bem fina a massa, e foi embora.
Também tem outro, o Tocári, não sei como a gente chama na língua portuguesa, tem o
pilão e aquele pau que a gente usa pra amassar o arroz e outras coisas, mão de pilão,
que também anda por si mesma e foi embora também.
Quando acaba tudo esses bichos, que chegou a hora daquele homem que nós cantamos
ontem da música do Tracajá, o Tchürüne, ele saiu tocando o casco de Tracajá e
cantando aquela música junto com o irmão dele que chamava Morapane, batendo o
casco de tracajá, eles são gente encantada, ü’üne, quando eles saíram chamaram
aquele povo que estava abanando a montanha (chamaram com aquela música 129), por
isso que na festa quando tocam o casco de tracajá todo mundo tem que acompanhar,
porque esse Tchürüne ainda existe dentro da montanha, na hora que estavam
defumaçando ele foi pra outra montanha, ainda tá lá tocando, todo dia ele toca esse
casco de tracajá, se a gente não canta, não faz festa pra Moça Nova a gente fica sem
roça, dá preguiça na pessoa (tcha o’oti – eu tô com preguiça), fica sem banana, por isso
ele chamava todos aqueles povos que estavam lá de neto, meus netos vem me
128
Uma figura mitológica Tikuna, Mãe do macambo (árvore), ela come gente e com seus seios
gigantes ataca as pessoas, às vezes aparece como gente, outras como borboleta. De acordo
com Faulhaber (2007) todos esses seres mitológicos podem aparecer como máscaras na Festa
da Moça Nova.
129
A Toritchiga, música do tracajá, que está no terceiro encontro.
205
acompanhar, se não me acompanhar vai ficar sem comida, aí todo mundo acompanhou
ele. Então saiu aquelas máscaras junto com ele, a máscara O’mã, Mawü, Toü, todo tipo
de máscara que a gente fazia na Festa, lá que viram, lá que aprenderam a fazer e lá
também que aprenderam a cantar as músicas do Toü, Mawü, O’ma, com o Tchürüne.
E, como a cada tipo de máscaras se ligam mitos que têm por fim
explicar a sua origem lendária ou sobrenatural e fundamentar o seu
papel no ritual, na economia, na sociedade, uma hipótese que alargue
as obras de arte (que, porém, o não são exclusivamente) um método
que já deu boas provas no estudo dos mitos (que também são criações
artísticas) encontrará verificação se, em última análise, pudermos
descobrir, entre os mitos que estão na base de cada tipo de máscara,
relações de transformação homólogas daquelas que, somente do
ponto de vista plástico, prevalecem entre as máscaras propriamente
ditas. (1979: 16).
Tudo antigamente foi tirado das cavernas que os pajés sonham, eles vão fazer já, pra
poder fabricar isso. A gente sonha, a gente pensa, desenha naquela coisa chamado
dupã (bastão). A gente inventa, faz a do macaco, da onça, tudo isso existe, tudo os
animais da caverna são assim. Por isso tem orelha, tem dente, tem nariz, tem tudo,
são todos os animais da caverna.
Figura 92 - Pequeno To’ü com seu bastão de avaí chegando na Festa da Moça Nova. Aldeia de
Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. Novembro de 2016.
To’ü tchiga
Cumatürüwai ῖpeemawa
Tape’ewa perü tutanü
Tüü̃’ türüwai pe omatchie~e
Pa aῖyu aῖyu pa To’ü
Cumatüwai dünecü yepetchinüwa, cuna türüwai
Nabumü’ü̃ i curü tchurara i maῖetcha
Pa aῖyu aῖyu pa To’ü
Cuicatürü cugüma
Ye cucaü’ü pa to’ü
Cumatürüwai ya o egacü
Ya ῖtchicü arü ngaü̃wa
Rü üü̃ne ya tchutchunene
Ya wairetanüne ya
Derepüüne ya ῖtü arü
Büü̃ paü̃ruũ cuῖü̃ena
Pa aῖyu aῖyu pa To’ü
Gua ya ya türabüne ya
Curü pumara namaiã
Türü cuya ãyaane a
Pa aῖyu aῖyu pa To’ü
Tücüenatchi ngü̃itürüwai
209
Canção de To’ü
Vamos fazer uma breve análise da música para entender alguns de seus
significados. Começamos pelo lugar onde encontramos To’ü: ele está lá no meio
das palmeiras, escondido na floresta. Vimos no ritual Worecü, A Festa da Moça
Nova, que os mascarados chegam do meio da floresta e para a floresta retornam,
onde deixam apenas seu tururi, sua pele, que é trazida de volta para a Ye’egune
por algum dos convidados.
130
Quem me passou a letra e a tradução desta e das canções que seguem nesse tópico sobre
as máscaras foi Ondino Tikuna.
210
O tururi é a casca de árvore batida que serve para fazer todo o traje da
máscara: a indumentária completa que cobre o rosto e o corpo, e sobre esse
tururi também pode ser feita a ‘cara’ da máscara com a madeira balsa (punẽ),
que cobre o rosto. Assim, o tururi remate à ideia de pele, ou capa, porque ele
transforma aquele que veste. “O tururi, portanto, é a “pele” dos seres que vêm
visitar a Festa, os próprios mascarados, muitos deles considerados “bichos”
(ngo’o).” (MATAREZIO FILHO, 2015: 34).
A canção também fala sobre o perfume da árvore de matamatá exalado
por To’ü. Essa árvore propicia a retirada de um componente importante para o
processo de confecção das máscaras, que são as franjas colocadas na barra do
tururi. Todos os mascarados que vi possuíam essas franjas feitas de matamatá.
‘Com um pauzinho vai raspando o tronco do matamatá pra fazer as franjas, mas
esse matamatá é rosa, faz com o vermelho’. (Ondino). Podemos ver pela fala de
Ondino que existe mais de uma espécie de matamatá e que o indicado para
utilizar no tururi é o vermelho. Algumas vezes, as franjas podem ser feitas a partir
do talo da árvore de buriti, que as deixam com uma cor clara, um verde
amarelado de textura mais fina e lisa que o matamatá.
Abaixo os mascarados com seus tururis onde podemos ver na parte de
baixo as franjas feitas de matamatá, e em seguida franjas sendo retiradas do talo
de buriti e depois colocadas no tururi:
211
Figura 93 – As franjas de matamatá nos tururis. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município
de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Novembro
de 2016.
Figura 94 – Buriti tendo seu talo desfiado. Figura 95 – Franjas de buriti sendo colocadas no tururi.
Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil.
Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Novembro de 2016.
O’ma tchiga
131
Característica do perspectivismo ameríndio.
213
Você é O’ma
Você chegou com os ventos fortes
Melodia - Aῖyu aῖyu pa O’ma
Na cor avermelhada daquela árvore
que quebrou a cabeça do teu pênis
Aquele que vem chegando com o vento forte
e derruba a casa da gente
Aῖyu aῖyu pa O’ma
No meio dessa árvore avermelhada ele estava lá
e a árvore caiu na cabeça do pênis de O’ma e quebrou
Aῖyu aῖyu pa O’ma
A criação
Figura 96: Confecção de máscaras. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São Paulo
de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Novembro de 2016.
132
Em anexo está o mito de Torama onde podemos identificar a relação da ideia de tururi com a
pele, transformando quem veste.
216
Figura 97 - Torama, máscara da onça, feita de tururi e a cara de madeira balsa. Teatro
Amazonas, Manaus, AM. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. 23/08/2017.
Figura 98 - Açafrão. Figura 99 – Urucum. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de São
Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Julho de 2016.
Figura 100 – Pacóva. Figura 101 – Folha verde esfregada no tecido. Aldeia de Nossa senhora
de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. Julho de 2016.
Figura 102 – Tururi de Mawü em processo. Aldeia de Nossa senhora de Nazaré, Município de
São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da pesquisadora. Novembro de
2016.
Figura 103 – A cara de Mawü pintada no Tururi. Figura 104 – Mawü. Aldeia de Nossa senhora
de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. Novembro de 2016.
Mawü tchiga
Música do Mawü
O destino final
Figura 105 - Mascarados recebendo os moqueados antes de partirem. Aldeia de Nossa senhora
de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo pessoal da
pesquisadora. 04/11/2016.
Figura 106 - Restos de matamatá dos tururis pendurados no teto da Ye’egune Aldeia de Nossa
senhora de Nazaré, Município de São Paulo de Olivença, Amazonas, Brasil. Foto: arquivo
pessoal da pesquisadora. Julho de 2016.
.
Uma grande preocupação dos antropólogos é não pensarmos as
‘máscaras’ rituais representando o mesmo que representam para nós, das artes
cênicas, e muito menos representando objetos (peças de museu), como
frequentemente são estudadas por outras áreas de conhecimento. Contudo,
quem já tem um estudo aprofundado sobre máscaras no campo das artes
cênicas está atento para isso, como nos fala Ana Maria Amaral:
133
No momento da confecção já começa a estabelecer-se uma relação entre ator-performer e
objeto. Um envolvimento que exige presença, pois é necessária concentração, atenção, relação
224
com aquele objeto e isso faz com que o ator-performer se engaje nessa ação, as escolhas
estéticas para a criação da máscara já pressupõe a performance futura daquele que irá vesti-la.
134 Além do projeto de extensão: ‘Contadores de histórias: o teatro de formas animadas na
comunidade’ em que trabalho com essa linguagem, ministro a disciplina Teatro de Formas
Animadas para os estudantes de graduação em Teatro da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA).
135 Que havia trabalhado na graduação em artes cênicas, em uma disciplina específica e na
136
Casou-se com um Tariano e vive com a família dele, tendo participado da disciplina Teatro de
Formas Animadas que ministrei no segundo semestre de 2014. Depois fui sua orientadora no
ano de 2017 em seu trabalho de conclusão de curso (TCC) relacionado aos Tariano: OLIVEIRA,
Dayane Maria Nunes de. Diálogo entre saberes: repensando a improvisação teatral a partir da
vivência com o grupo indígena Tariano Diroa Baya. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso.
(Licenciatura em Teatro) - Universidade do Estado do Amazonas.
226
confecção, mas agora nosso imaginário estava povoado por outras formas e
tínhamos uma nova referência de confecção e de concepção a respeito de
máscaras, que vinha dos Tikuna.
Acredito que o desejo por uma transformação de perspectiva, a partir da
relação com o outro, se dá nas pequenas ações cotidianas que vamos realizando
e transformam nosso olhar, nos fazem atentar para novas possibilidades de se
relacionar com o mundo, com as pessoas, com a natureza, é uma transformação
na vida que consequentemente transforma nossa arte. Percebemos que tudo já
está dado na natureza, é só estarmos atentos e abertos para o conhecimento.
A arte é o campo do saber que permite a experimentação, que não passa
pelo senso comum, ela é única de cada indivíduo a partir de sua imaginação, e
nos mostra as complexidades de cada ser humano. Na experimentação cênica
vemos que cada corpo, cada músculo, se comporta de uma maneira, cada voz
ecoa de forma única, cada ação e reação espontânea é particular. Por isso, a
partir de um único estímulo para um coletivo de diferentes sujeitos existe a
possibilidade de surgirem inúmeras proposições. Assim, o que busco nas artes
cênicas é o prazer em criar, o ato criativo que nasce do improviso com música,
dança, canto, relação, diversão, cumplicidade e comunhão. Neste sentido, a
ideia de brincadeira é pertinente, pensando na criação de um espaço lúdico onde
a imaginação possa fluir, fugindo do óbvio, dos clichés e dos estereótipos.
Com efeito, os encontros com os indígenas permitiram momentos em que
criou-se esse espaço de ludicidade, com experimentações poéticas a partir de
seus modos de saberes que se constroem pela dança, pela música, pelos
grafismos e pela relação com a natureza que é particular, permitindo que o
conhecimento fosse sendo ‘encorporado’ como forma de repertório, de cultivo da
memória cultural, transmitindo e transformando esse conhecimento.
Nós somos por natureza caóticos em nossas intensidades buscando nos
manifestar de alguma maneira, e as experiências performativas são uma
possibilidade, porque são geradas a partir do corpo. O corpo percebe o que
sentimos, muitas vezes não conseguimos elaborar essas sensações de forma
racional, mas o corpo aberto e livre para criar pode traduzir isso em signo. É um
processo que faz parte da nossa natureza, no entanto é moldado pelos valores
impostos pela nossa cultura, uma cultura que dissocia a arte da vida e não nos
ajuda a refletir, naquele sentido ‘processual/reflexivo’ (MÜLLER) presente no
227
ritual, que faz com que eu reviva o mito para me compreender enquanto agente
(de agir, nem sujeito, nem objeto, nem indivíduo) da sociedade.
Assim, cada vez mais temos dificuldade em estar presentes, no aqui e
agora que a performance propõe, porque estamos sempre vivendo virtualmente
(no sentido do que virá a ser). As experiências poéticas através de práticas
performativas podem nos ajudar a olhar para nós mesmos e encontrar um pouco
de nossa humanidade, a humanidade ancestral. Saindo por um momento das
lógicas e regras determinadas para vivermos instantes de caos. Sabendo que a
ordem é extremamente necessária para a vida em sociedade.
A arte nos permite acessar esses momentos de caos para depois
voltarmos e estabelecermos a ordem, mas a partir de transformações, porque a
vida pode ser cíclica, mas não é sempre igual.
Portanto, o encontro com a tradição, algo que é feito há muito tempo, foi
de extrema importância nesse processo de busca de uma performer-professora.
Não precisei ir muito longe para encontrar essa inspiração, ela já estava próxima
a mim, só faltava enxergá-la, conhece-la, já que há muito tempo tem sido
ocultada, abafada, negada, calada, esmagada, deixada de lado. O processo de
conhecimento e reconhecimento é uma possibilidade de renovação. Esse novo
conhecimento a respeito dos povos ameríndios e sua perspectiva diferenciada
em relação ao mundo e aos modos de se colocar nesse mundo, está ajudando
no processo de desconstrução para reconstrução de si, porque acredito que
nunca estamos prontos enquanto artistas, é uma busca constante por
trabalharmos esse corpo-saber.
O trabalho seguirá dentro desta perspectiva, com o projeto de extensão
na Universidade do Estado do Amazonas ao lado dos estudantes do curso de
Teatro. Experimentando também, processos criativos nas aulas das disciplinas
de Improvisação, Interpretação e Teatro de Formas Animadas, valorizando o
saber ameríndio que faz parte da realidade e do contexto desses estudantes que
são amazônidas, e mais recentemente com a chegada de estudantes indígenas
no curso de Teatro.
Os relatos aqui apresentados, junto com as reflexões, fortalecerão a
prática nesse sentido, e acredito que novas possibilidades serão geradas a partir
de então, produzidas pelos estudantes e pelos próprios indígenas, que já está
228
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANGARITA, Abel Antonio Santos. Narración Tikuna del origen del territorio y de
los humanos. Revista Mundo Amazônico, n. 1, Letícia, Colômbia, 2010.
COSTA, May Anyely Moura da. “Nós, Ticuna temos que cuidar da nossa
cultura”: um estudo sobre o ritual de iniciação feminina entre os Ticuna de
Umariaçúi, Tabatinga, Alto Solimões, AM. Dissertação de mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do
Estado do Amazonas, Manaus, AM, 2015.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo:
Cosacnaify, 2009.
230
ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias
do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: ROCCO, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GIL, José. Um bom encontro? Rumos Itaú Cultural. Org. Cristina Espírito Santo,
Eleonora Fabião e Sônia Sobral. São Paulo: Itaú Cultural, 2013.
SILVA, Marília Ferreira. Cultura e oralidade: uma viagem aos textos poéticos
cantados na língua parkatêjê. Desenredo. Universidade de Passo Fundo, v. 7, n.
1, 2011.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das letras,
2003.
234
ZUPPI, Patricia de Almeida. Ñembojera “como uma flor que se desdobra à luz
do sol” rastros entre poéticas. Dissertação apresentada ao Departamento de
Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Mestre. São Paulo: 2013.
Sites:
https://portal.aprendiz.uol.com.br/2016/08/19/ute-craemer-e-utopia-de-uma-
vida-mais-brincante/.
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orio_Geral_Oficina_Povos_Indigenas_Alcool/Relatorio_Geral_Oficina_Povos_I
ndigenas_Alcool.pdf
http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce
https://www.maudrobart.com/
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm
http://www.portaldasmissoes.com.br
235
Anexo
Segue a versão que ouvi em campo dos mitos de Torama e Moé, contados por
Ondino:
Mito de Torama
Antigamente existia uma mulher que se chamava de Torama, ela era uma
velha pajé, (mulher pode ser pajé também? Pode) ela tem uma capa de onça,
quando ela quiser matar a pessoa ela veste a capa dela e se transforma em
onça, vai atrás (da caça) e come, ela não come inteira, ela tira só o coração e o
fígado, ela abre a barriga da gente e tira só o coração e o fígado só isso que ela
quer comer, tira o fígado e leva pra casa. Ela já matou muita gente, comia muita
gente. Primeiro que a capa era do marido dela, marido dela também é pajé, acho
que mataram o marido dela, morreu, aí ela ficou com a capa dele. Aí, um certo
dia, teve uma festa e todo muito foi pra festa, a moçarada e ela ficava sozinha
na casa velhinha dela. Um dia, tinha um rapaz de 10 anos e um de 5 anos
passeando, foram tirar pupunha, fizeram uma escada, amarraram um pauzinho
até lá em cima pra apanhar pupunha, aí quando os meninos passaram no terreno
dela, ela disse: ‘pra onde vocês vão minhas netas?’ Aí os meninos responderam:
nós vamos apanhar pupunha, ai ela falou traz uma pra eu comer, aí o menino
mais pequeno peidou, ela ficou com raiva e foi atrás do rapaz. Eles estavam
fazendo escada pra apanhar pupunha, demorou, ele tava amarrando o pau
assim (mostrando como) e ela já estava lá, pulou na árvore e matou o rapaz, na
mesma hora tirou o coração dele e o fígado e pegou uma lança do irmão mais
velho. Depois ela voltou pra casa e o irmão dele ainda estava lá. Aí ele cavou
um buraco e enterrou o corpo do irmão dele embaixo da pupunheira. Ele foi
embora, e viu aquela velha na casa dela dormindo, e ele escutou que estava
fervendo o coração e o fígado do irmão dele na panela de barro dela de barro.
Aí, ele foi buscar lenha e jogou no terreno daquela velha. E ela disse: ‘o que tu
vem me espantar aqui? eu tô dormindo, tô sentindo dores’. Aí o rapaz pegou um
terçado e foi atorar o pescoço da velha e ela se transformou em onça, foi então
que ele matou Torama. Depois, o rapaz ficou triste pensando no irmão dele. Aí,
passou uma moçarada e disse que ele não podia ir pra Festa porque o irmão
dele tinha morrido. Ele ficou com raiva e foi procurar a capa do Torama,
encontrou e tava viva a capa, os olhos brilhosos abrindo a boca pra ele,
236
mostrando os dentes, ai ele não tinha medo e foi lá e experimentou vestir e não
deu nele, ai ele vestiu a capa do marido dela e deu nele. Depois que ele vestiu
a capa, ele passou o urucum pequeno, passou na mão dele e na cabeça dele e
vestiu a capa e disse: ‘agora sim eu vou atrás daquele pessoal que ia pra Festa’.
E foi atrás do pessoal, no meio do caminho encontrou algumas onças do mato
que acompanharam ele e foram pra Festa da Moça Nova e ele entrou lá no meio
do pessoal e o pessoal da festa nem conhecia que era o Torama pensavam que
era alguém que tinha vestido capa feita de tururi fazendo máscara de Torama, ai
puxavam no rabo dele até que ele se zangou e começou a matar todo mundo da
festa, alguns subiram em cima do casarão, e quando terminou tudo que estava
lá embaixo e ele subiu lá em cima e matou todo mundo. Alguns que ficaram no
buritizeiro ficaram vivos, aí pra tirar a capa dele não saiu mais não, ficou grudado
só saiu a cabeça de onça e mãos e pés de fora. E ficou uma velinha que chamava
Yaurina, ela escondia as crianças dentro da igaçaba bem grande, aí ficou lá e
quem tava lá em cima do buritizeiro tocando tambor e cantando caiu e escapuliu
no chão e comeu aquelas pessoas que estavam lá. Depois de passado uns
tempos, ele ficou sozinho com a velha e ela alimentava as crianças, dava milho
pra elas escondidas, ela passou uma folha amarga na igaçaba e um dia o
Torama perguntou o que tinha dentro da igaçaba, porque as crianças comiam
milho lá dentro e as vezes caiam uns grãos pra fora e Torama queria saber o
que tinha lá, e ela disse que não tinha nada, ele perguntou se podia lamber a
igaçaba e foi lá morder pra ver o que tinha lá dentro, já sabendo que tem gente
lá, mas a vovó não deixava e disse que se ele lambesse ele iria morrer, mas ele
queria lamber e também queria lamber a vovó, e ela passou aquela folha amarga
no corpo dela pra ele não comer ela e ele lambeu o corpo da vovó e achou
amargo e não comeu a vovó, ai ele ficou chorando e pensando: ‘o que que eu
vou fazer para ser gente de novo’. Passou um tempo e a vovó Yaurina mandou
ele pra ‘avaia’, um lugar de pajé, ela falava: ‘meu neto você tem que no avaia pra
tirar essa capa e se curar’, aí ela tirou tabaco embrulhou, colocou uma corda e
colocou no pescoço dele pra ele ir lá com o pajé e virar gente de novo. Ele foi lá
e nesse dia estavam fazendo Festa de Moça Nova, aí, chegou na festa e entrou
no meio dos povos que estavam dançando e brincaram com ele, pensaram que
era uma máscara, puxaram a roupa dele, bagunçaram com ele até que ele se
zangou e pulou em cima das pessoas e matou todos, só sobrou alguns. Ele foi
237
de novo pra vó dele e chegou do mesmo jeito que foi, não saiu a capa. Aí, o
pessoal que tinha sobrado vivo fez feitiço pra ele para ele ficar doido. A vovó
pegou um coxo e jogou por cima dele e amarrou bem forte e quando ele tava
amarrado ela mandou sair as 4 crianças de lá: ‘saiam meu neto tá preso vamos
fazer fogo pra queimar ele’. As crianças foram fazer fogo e abanaram fogo, ai
pegou fogo de todo lado nele, pegaram palha lenha e jogaram em cima dele, até
que o fogo queimou todo o corpo de Torama, e as crianças estavam
desanimadas e a vovó saiu gritando: ‘vamos que nosso inimigo já morreu’, mas
o pessoal foi se transformando em sapo e as crianças se salvaram. Bem tardinha
ela juntou a cinza do Torama e jogava dentro da água e a cinza dele se
transformava em sangue ‘suga mixuga’. Depois, hoje, as pessoas imitam fazer
a máscara do Torama.
Moé é um caçador que gosta de caçar. Aí um certo dia ele foi caçar no
mato, ele encontrou uma ‘encantada’ ou um pássaro que cantava na frente dele,
aí ele falou: ‘se você se transformar moça eu quero casar com você’, demorou
um pouco e vinha atrás dele uma moça bonita, ele olhou para trás e viu, aí ele
falou quem é você? (ela respondeu) ‘Moé, tu ta me chamando que queria casar
comigo, era você Moé’, aí, ele levou ela pra casa dele, quando ele chegou na
casa dele, e quando foi no outro dia, a mãe dele falou: ‘porque minha nora tem
pé chato e a cara bem fininha?, a moça escutou essa palavra, não gostou e foi
embora. Então Moé ficou sem mulher, e ai no outro dia ele foi caçar e encontrou
uma minhoca que estava lá no subterrâneo em baixo da terra fazia ‘tchururu
tchururu’, diz essa minhoca, ele escutou essa voz e falou de novo: ‘se você
virasse gente eu ficava com você’. Passou um tempo ele caçou, caçou e
apareceu aquela mulher, e ele perguntou: ‘quem é você?’ aí ela disse: ‘você tava
me chamando vou ficar contigo’, e ele disse: ‘tá bom então’, e levou pra ela casa
dele. Com essa daí, ele ficou mais tempo, teve filho com ela. Aí demorou, Moé
caçava todo dia, Moé também tinha uma roça, e a mulher parece que era ruim
pra mãe do Moé, mandava carpinar a roça, ai ela foi pra roça carpinar deixou o
filho dela com Moé e chegou bem mais tarde, amanhã de novo e no outro dia de
novo. Aí no outro dia, essa sogra dela foi atrás dela, foi lá na roça dela ver se ela
238
buraco do sapo, a sapo engravidou. A sapo foi atrás dele: ‘Moé, Moé, tá aqui teu
filho’, já estava carregando o filho dele. ‘Você é um homem doido que mijou no
buraco da gente eu engravidei, está aqui teu filho. Moé levou a mulher e o filho
pra casa dele, aí a mãe dele falou; ‘essa minha nora eu gosto, tem a perna curta,
braço, tudo curto, é musculosa, só que a bunda dela é chata’. Moé caçava com
ela, mas ela não comia a comida dele, só comia besouro que tem no mato. Moé
fazia tucupi e ela colocava os besouros dela no tucupi, a sogra ficou com raiva e
disse: ‘eu vou por pimenta no tucupi dela’. Moé foi caçar com ela e chegaram
tarde, ela chegou e foi lá no tucupi e comeu pensando que era besouro e se
transformou em sapo. Antes, ela tinha um empregado rato que cuidava do
filhinho dela, ai o empregado estava cuidando do filhinho dela e cantava “ticuna”,
o rato estava cantando, chamando o sapo baru baru, dizendo: ‘seu filho está
chorando’, e o sapo falou: ‘deixa pra lá, quando eu tava lá minha sogra e a tia
me chamavam de bunda chata, agora tenho outro pra me engravidar’, e deixou
o filhinho dela lá.
A última mulher que Moé se casou foi um tipo papagaio, essa ‘anca’ comia
pupunha. Ele foi lá com a zarabatana dele, soprava e não acertava, pelejando,
pelejando, até que acertou na asa dela e ela caiu no chão. Moé foi lá e ela já era
a moça, e perguntou para Moé: ‘o que você quer?’ e ele disse que queria casar
com ela, ‘então tá bom’, e levou ela pra casa dele. Ela vivia brincando com Moé,
e a mãe do Moé não gostava que ela brincasse com ele, parece que era
trabalhadora essa mãe do Moé, ela vivia carpinando a roça e colocava um monte
de milho na travessa da casa e tirava aquele milho, jogava no chão e mandava
a mulher de Moé moer pra fazer tchitchare, dizia: ‘porque você vive só brincando
não trabalha’, mas ela continuou brincando. Depois que a mãe de Mé saiu, ela
pegou só uma espiga de milho para assar, assou só aquela espiga do milho tirou
do fogo e mastigava, depois lavou umas igaçabas bem grandes, umas cinco e
virou, em cada boca de igaçaba ela colocou peneira e um pouquinho da massa
de milho que ela tinha mastigado, demorou encheu toda aquela igaçaba de milho
e ela continuava brincando, demorou, já era uma seis e meia e a mãe do Moé
voltou da roça e escorregou num monte de milho, caiu e disse: ‘essa minha nora
preguiçosa não moeu o milho que eu pedi pra moer’, a mulher nem falou nada e
pensava que ia moer todo aquele monte de milho porque era encantada. A
mulher de Moé disse: ‘agora Moé eu vou me embora porque tua mãe é ruim, se
240
grande chorava e cantava ‘Moé vem me tirar daqui abre a canoa que eu to
sofrendo de frio’, Moé ficou com pena do cunhado e tirou a canoa do fundo e foi
plantar na terra, criou de novo a água e os velhos contam que é de lá que vem
a piracema e não falta peixe. Eu acredito nessa história porque a gente vê o leite
na piracema dentro do peixe. Aí ficou com ela pra sempre, ele casou com uma
moça tipo mágico se torou no meio essa mulher fazia roça e um dia ele foi atrás
dela e ela trazia um monte de peixe e Moé foi atrás dela pra ver da onde, ela
trouxe tanto peixe e ficou só um pedaço dela, um pedacinho dentro da água e ai
o peixe chupava o sangue dela e ela pegava os peixes e depois se grudou de
novo ai Moé não gostou, ela não se separou de uma vez porque ficou grudado
no osso que tem no tutano ai Moé fez um gancho e puxou, ai que ela torou de
uma vez não se grudava mais ai ficou o pedaço dela e Moé foi embora, demorou,
e ela gritava ‘Moé vem me buscar’, Moé tinha pena dela e ela tinha trepado no
pau no meio do caminho e Moé foi lá e passou em baixo daquele pau e pousou
em cima do ombro dele e ficou grudada ela não sai ele fazia tudo com ela, ela
não sai nunca e no outro dia o colega dele aconselhou ele no ouvido dele e disse
tu leva o dente de piranha tu mergulha com ela no fundo do igarapé e tu arranha
no rosto dela pra ela sair do ombro de você, e Moé acreditou nessa palavra e foi
lá e disse sai das minhas costas e fica aqui no igarapé ela não acreditou e vou
pegar os peixes que tão lá no fundo e a piranha vão te morder e lá no fundo ele
arranhou o rosto dela e ela disse ‘Moé minha cara está sangrando a piranha me
mordeu’ e ele disse ‘bem que eu disse e você não quis sair da minha costa, agora
você sai’ ela saiu e ficou na beira, ‘me espera que eu vou demorar pra pegar
peixe’ lá fundo eu vou lá na outra ponta do igarapé, Moé assobiou pra ela e ela
falou esse Moé ta me enganando, ai ela ficou lá e Moé foi embora, passou uma
semana e Moé foi ver de novo e ela ficou no tronco de uma árvore e ela se
transformando nesse papagaio grande, na outra semana Moé foi ver de novo e
ela já estava cheia de pena e na outra semana ela foi embora e nunca mais
voltou.