Revista Zygman - Consumo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

246

CONSUMO, LOGO SOU FELIZ (?): a relação entre consumo e


felicidade no filme ‘OS DELÍRIOS DE CONSUMO DE BECKY
BLOOM’

Rondinele Aparecido Ribeiro1


Larissa Ribeirete Cavazzana Pimentel2

RESUMO: A prática do consumo ocupa um lugar central na contemporaneidade. Atualmente, os


indivíduos realizam suas compras não levando em conta apenas os aspectos funcionais dos bens,
mas os significados que o ato do consumo simbólico carrega. Assim, o consumo mostra-se
indispensável para a compreensão do cenário contemporâneo, de modo que possibilita uma
profunda reflexão sobre a felicidade que a aquisição desses bens proporciona nos indivíduos. A
partir dessas reflexões, o presente artigo objetiva analisar a relação entre consumo e felicidade no
longa-metragem Os Delírios de consumo de Becky Bloom (2009). Para tanto, utilizará autores que
versam de forma relevante sobre o referido tema como Featherstone (1995), Douglas e Isherwood
(2004) e Bauman (2008).

Palavras-chave: Consumo. Consumo simbólico. Significado. Felicidade.

ABSTRACT: The practice of consumption occupies a central place in contemporary times.


Currently, individuals make their purchases not taking into account only the functional aspects of
goods, but the meanings that the act of symbolic consumption carries. Thus, consumption proves
to be indispensable for understanding the contemporary scenario, so that it allows a deep reflection
on the happiness that the acquisition of these goods provides in individuals. Based on these
reflections, this article aims to analyze the relationship between consumption and happiness in the
feature film Becky's Bloom's Delusions of consumption (2009). To this end, it will use authors who
deal in a relevant way on the referred subject as Featherstone (1995), Douglas and Isherwood
(2004) and Bauman (2008).

Keywords: Consumption. Symbolic consumption. Meaning. Happiness.

INTRODUÇÃO

Não se pode negar que o consumo é um ato central na cultura contemporânea. De


tão significativo, confere à sociedade atual o título de “sociedade de consumo”.
Compreende-se, pois, que o consumo, enquanto meio autônomo e centralizador, permite
que novos bens sejam adquiridos não apenas em consequência das necessidades humanas,
mas sim em virtude do querer ter para determinados fins. Nessa conjuntura, o ato de

1 Mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-ASSIS).


2 Especialista em Gestão de Pessoas pela UNOPAR

vol. 10, num. 23, 2020


247

consumir é induzido por meio de vários vetores como as vitrines das lojas, as mídias e
campanhas publicitárias, que “orientam” as escolhas dos bens que devem ou não ser
consumidos. A todo instante, os indivíduos são convidados ao consumo de novos produtos,
serviços, experiências e comportamentos que carregam em si a promessa de felicidade ao
comprador.
A produção cinematográfica Os Delírios de Consumo de Becky Bloom (2009)
retrata de maneira criativa e divertida essa relação entre o consumo e a felicidade. Com o
título original Confessions of a Shopaholic, o longa-metragem contou com a direção do
cineasta australiano P.J. Hogan e foi distribuído pela Disney/Buena Vista no ano de 2009,
com duração de uma hora e quarenta e seis minutos. A produção foi baseada na série de
livros Delírios de Consumo escrita pela britânica Sophie Kinsella, que também assinou o
roteiro ao lado de Tim Firth, Tracey Jackson e Kayla Alpert. Enquadrando-se no gênero
comédia, o elenco principal da narrativa é formado por Isla Fisher (Becky Bloom), Hugh
Dancy (Luke Brandon) e Krysten Ritter (Suze). O figurino leva a assinatura da estilista
Patrícia Field, responsável pelos figurinos dos conhecidos O Diabo Veste Prada (2006) e
Sex and the City: o filme (2008).
Tendo a cidade de Nova York como espaço, o filme conta a história da jovem
Rebecca Bloomwood, uma compradora compulsiva à beira da falência que sonha em
trabalhar na Alette, sua revista de moda favorita, mas que, ironicamente, consegue ser
contratada pela revista financeira Economias de Sucesso, do mesmo grupo editorial da
revista de moda. A jovem obterá grande sucesso no novo emprego escrevendo sobre
finanças pessoais, ficando conhecida como “a garota da echarpe verde”. Becky Bloom é
apresentada ao público como uma compradora compulsiva. Para justificar suas compras,
afirma que, quando as faz, “sente-se tão confiante e viva... E feliz. E plena! ’’ 3. Com efeito,
essa promessa de felicidade na sociedade contemporânea é analisada por Zygmunt
Bauman em sua obra Vida para Consumo (2008). De acordo com o sociólogo, a sociedade
consumidora é a única a prometer uma felicidade imediata e eterna.

3 Fala transcrita da personagem Rebecca Bloomwood do filme Os Delírios de Consumo de Becky Bloom
(2009).

vol. 10, num. 23, 2020


248

Como pode ser observado, a fala de Becky exprime o prazer e a felicidade


proporcionados por meio das compras, isto é, os valores simbólicos ora prometidos e
valorados na sociedade de consumo. Cabe ressaltar, segundo Bauman (2008), que a ideia
de ser feliz se tornou tão imperiosa que não ser feliz é visto como algo socialmente
condenável. Nas palavras do autor, é “crime passível de punição, ou no mínimo um desvio
pecaminoso que desqualifica seu portador como membro autêntico da sociedade”
(BAUMAN, 2008, p.61). A partir do ponto de vista apresentado, é preciso enfatizar que o
ato de consumo vincula-se à felicidade, uma vez que o meio mais rápido para alcançá-la é
consumindo.
Desse modo, ao se refletir acerca do tema, é coerente afirmar que o consumo se
constitui como prática imperativa na qual todos os bens e serviços ofertados são
relacionados a uma infinidade de significados e que, o indivíduo, ao adquiri-los, consegue
expressar sua participação ativa na sociedade, sua identidade e, portanto, sua felicidade.
Essa ordem social impõe que o indivíduo seja feliz a qualquer custo, pois esse é o único
modo de se viver a vida plenamente, uma vez que “o valor mais característico da sociedade
de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros são
instados a justificar seu mérito é uma vida feliz” (BAUMAN, 2008, p. 60).
Convém ressaltar, portanto, que os objetos adquiridos deixam de ter um caráter
meramente utilitário para ter um viés mais simbólico. Isso significa que não há mais o
consumo de um bem em si mesmo, mas o que ele representa socialmente, todos os
significados a ele vinculado. Na narrativa fílmica aqui analisada, os objetos adquiridos por
Becky carregam significados como status social, moda, elegância e a própria felicidade. As
escolhas feitas pela personagem entre quais produtos comprar são definidas pelos
significados que aquelas mercadorias carregam e não pelo seu uso em si.

CONSUMO SIMBÓLICO

Com uma análise mais distante, o consumo é reputado como uma prática
meramente econômica cujo objetivo principal é satisfazer as necessidades básicas dos
indivíduos, como alimentação, vestuário e moradia. Contudo, uma análise mais meticulosa

vol. 10, num. 23, 2020


249

denota que o ato de consumir decorre de outros fatores, dentre eles, a expectativa de
valores apresentada pelos produtos, isto é, o universo simbólico proporcionado.
É possível encontrar na literatura uma harmonia de ideias no que tange o consumo
simbólico. Autores que teorizam sobre o tema como Mike Featherstone (1995), Jean
Baudrillard (1995) e Mary Douglas e Baron de Isherwood (2004) indicam que os
indivíduos são motivados à compra de determinados produtos para além de seu enfoque
utilitário. O consumo se dá a partir da perspectiva de sentidos carregados por esses
produtos.
Mike Featherstone (1995) explana de maneira assertiva essa ideia. Segundo o
sociólogo, deve-se compreender a prática do consumo na qualidade de um consumo de
significados, ou seja, por sua condição representativa. “O consumo, portanto, não deve ser
compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas
primordialmente o consumo de signos” (FEATHERSTONE, 1995, p.122). Desse modo, é
possível inferir que a sociedade contemporânea enseja uma práxis consumidora voltada
mais ao valor simbólico que às características materiais e físicas de uma mercadoria.
Consome-se, por certo, encantamento e sentido dos bens.
Cabe ressaltar que o consumo simbólico é mediado por uma carga afetiva com a
intenção de realização pessoal, como de obter status, ou uma aparência melhor, ou até
mesmo o propósito de ser feliz. Nesse sentido, a prática do consumo é primordial para que
isso ocorra. Aqui, leva-se em consideração o fato que consumo, sucesso (enquanto
realização pessoal) e felicidade estão entrelaçados. Mary Douglas e Baron de Isherwood
(2004) apontam que “sucesso se traduz na posse infinita de bens que, agradavelmente,
conspiram para fazer perene nossa felicidade” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p.11).
Esse contexto permite justificar a escolha de um bem em detrimento de outro. No
momento em que o indivíduo tem à disposição produtos de mesma qualidade e preço, por
exemplo, sua escolha leva em conta o valor simbólico que cada um desses produtos possa
garantir. Assim, pode-se dizer que a preferência dos indivíduos no momento da compra é
mediada pelos significados que as mercadorias apresentam. No filme, objeto de estudo
desse artigo, é possível perceber esse cenário. Becky se depara com uma echarpe verde em
um manequim, visto pela protagonista não apenas como um acessório de vestuário. Apesar

vol. 10, num. 23, 2020


250

de estar vivendo uma crise financeira, ela pondera em fazer a compra, pois a echarpe
significa uma materialização de status, confiança e elegância:

Rebecca: Rebecca, a conta do cartão veio U$ 900,00. Você não precisa de


uma echarpe.
Manequim: Por outro lado, quem precisa de echarpe? Coloque um jeans
velho em volta do pescoço. Vai aquecer. É o que sua mãe faria.
Rebbeca: Tem razão. Ela faria.
Manequim: Mas o lance dessa echarpe é que ela se tornaria parte de uma
definição da sua... da sua psique. Está me entendendo?
Rebecca: Não, não entendi. Continua.
Manequim: Vai fazer seus olhos ficarem maiores.
Rebecca: Hum! Vai fazer meu corte de cabelo parecer mais caro.
Manequim: Pode usar com qualquer coisa.
Rebecca: Seria um investimento.
Manequim: Você vai para a entrevista mais confiante.
Rebecca: Confiante.
Manequim: E elegante.
Rebecca: Elegante.
Manequim: A garota da echarpe verde.4

Como pode ser observado, a personagem não compra a echarpe pelo material
utilizado na confecção, pelo tamanho, pela utilidade ou pela cor, mas pelo significado
representado pelo objeto. Desse modo, depreende-se que o consumo se relaciona com
outras esferas além daquelas de aspectos materiais e de satisfação das necessidades.
Ademais, é importante assinalar que os bens de consumo apresentam significados
diferentes para cada indivíduo. Podem significar, por um olhar amplo, status social e por
um olhar mais particular, autoconfiança, como no caso de Becky. Dessa forma, o fenômeno
do consumo é um meio classificador de indivíduos e de bens que permite às pessoas
estabelecer noções de semelhanças e diferenças e, ainda, possibilita reflexão acerca dos
motivos que levam os indivíduos à prática do consumo, como ensina Everardo Rocha
(2000). De acordo com o antropólogo, “o consumo é um sistema simbólico que articula
coisas e seres humanos e, como tal, uma forma privilegiada de ler o mundo que nos cerca”
(ROCHA, 2000, p. 19). O sociólogo Don Slater (2002) corrobora essa visão acerca do

4Diálogo transcrito entre a personagem Rebecca Bloomwood e o manequim da loja do filme Os Delírios de
Consumo de Becky Bloom.

vol. 10, num. 23, 2020


251

consumo. Em sua obra Cultura do Consumo e Modernidade, ao explicar sobre símbolos de


status e estratificação da sociedade, assinala que não há uma arbitrariedade social no que
tange o significado dos bens, mas uma vinculação social. Tanto o status quanto a
estratificação ocorrem a partir dos tipos de bens e dos tipos de consumidores:

Os significados das coisas não são socialmente arbitrários, e sim


intimamente vinculados – ou até refletindo e representando – as divisões
sociais subjacentes de uma sociedade. No caso exemplar do símbolo de
status, a estratificação social é projetada diretamente numa divisão entre
tipos de bens e de consumidores. Além disso, usando os bens de acordo
com seus significados, vivenciamos a ordem social como uma ordem moral
irresistível e reproduzimos fielmente na vida cotidiana (SLATER, 2002, p.
146).

Em suma, reitera-se que o consumo é um fato social em que o viés simbólico


possibilita a sociedade se comunicar, refletir e se reelaborar, haja vista que os bens não são
consumidos com um fim si mesmos, mas sim em conformidade com os significados
simbólicos contidos. A vista disso, o consumo é protagonista das relações dos indivíduos
não somente com as mercadorias, mas com o mundo que os cerca. Os significados dos bens
de consumo são integrados à sua funcionalidade e, por meio dessa integração, é possível
compreender a o indivíduo e a sociedade.
Nessa perspectiva, a intenção de adquirir um determinado objeto é motivada pelo
simbolismo identificado pelo indivíduo, procurando encontrar nesse objeto significados
que revelem e fortaleçam a visão que tem de si frente aos demais. É interessante
considerar, portanto, que o consumo é um fenômeno capaz de criar um elo entre a
dimensão utilitária e a dimensão simbólica dos bens, proporcionando ao indivíduo a
satisfação além de suas necessidades. Em Os Delírios de Consumo de Becky Bloom, essas
dimensões podem ser observadas na sequência de abertura do filme em que aparecem
meninas provando calçados bonitos e coloridos indicando que elas tinham estilo e bom
gosto e Becky, ainda criança, com um par de calçados antiquado que remete apenas à
função material dos sapatos: proteger os pés.
Sem dúvida, a prática do consumo é compreendida como mediadora das relações
sociais, uma vez que por meio de seu caráter simbólico, são transmitidos valores

vol. 10, num. 23, 2020


252

socioculturais além dos gostos e preferências dos indivíduos dela pertencentes. O ponto de
vista de Jean Baudrillard (1995) acerca dessa temática é bastante pertinente. O sociólogo
francês apresentou, por meio do conceito de “mercadoria-signo”, que os bens são mais que
sua materialidade, são carregados de significados. O autor pondera que “raros são os
objetos que hoje se oferecem isolados, sem o contexto de objetos que os exprimam.
Transformou-se a utilidade específica, mas ao conjunto de objetos na sua significação
total” (BAUDRILLARD, 1995, p.17). Nesse contexto de mercadoria-signo pode-se refletir
sobre os bens que garantem a felicidade mais que o seu simples valor de uso.

CONSUMO E FELICIDADE

O que pode proporcionar felicidade aos indivíduos na cena contemporânea é uma


questão frequentemente debatida nas mais diversas áreas. Entre os mais variados fatores,
o consumo é visto como um meio para ser feliz. Basta verificar as inúmeras mensagens
anunciadas nas mídias impressa e digital que valorizam essa procura pela felicidade,
sugerindo as melhores maneiras, de caráter mercadológico, para que esse encontro
aconteça. Nesse sentido, a prática do consumo é considerada como o caminho mais
oportuno para alcançar um estado feliz. A esse respeito, as postulações de Jean Baudrillard
(1995) são muito pertinentes, pois demonstram que a concepção tida sobre a sociedade
contemporânea encontra na felicidade a resposta.
Nas palavras do autor:

Todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia ingénua


(sic): a da propensão natural para a felicidade. Inscrita em caracteres de
fogo por detrás da menor publicidade para as Canárias ou para os sais de
banho, a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de
consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação
(BAUDRILLARD, 1995, p. 47).

É possível inferir a partir das concepções do estudioso, que as realizações e as


satisfações humanas decorrem essencialmente do consumo, mas para que isso ocorra, um
discurso midiático é construído sinalizando que aqueles bens serão responsáveis por trazer

vol. 10, num. 23, 2020


253

felicidade. Logo, pode-se dizer que a manifestação mais clara da relação entre a prática do
consumo e a felicidade recai nas produções audiovisuais, uma vez que os personagens
vistos como mais realizados, satisfeitos e felizes são aqueles que adquiriram algum bem. A
sociedade do consumo materializou o conceito de felicidade distanciando-se do
pensamento que a caracterizava. Agora, a felicidade ganha uma nova roupagem,
transfigurando-se em algo fixo, palpável e real. Nesse ínterim, essa ressignificação da
felicidade, enquanto mensurável e visível aos olhos, indica que o estado feliz pode ser
encontrado nas prateleiras e ser adquirido à vista ou em suaves prestações. No filme, Becky
opta sempre por parcelar suas pequenas porções de felicidade no cartão de crédito. Logo
no início, a personagem ao demonstrar seu encantamento pelas lojas, observava que as
mulheres adultas poderiam adquirir o que quisessem, sem precisar de dinheiro para isso,
bastando um cartão. O trecho a seguir ilustra perfeitamente a afirmação:

Becky: Quando eu olhava as vitrines eu via um outro mundo. Um mundo


de sonhos cheio de coisas perfeitas. Um mundo onde as garotas adultas
tinham o que queriam. Elas eram lindas, como fadas ou princesas. E nem
precisavam de dinheiro. Tinham cartões mágicos. Eu queria um. Mal sabia
que acabaria tendo doze!5

É possível perceber pela fala da personagem que os cartões de crédito tornam


possível o mundo encantador apresentado pelas vitrines. A respeito do uso dos cartões de
crédito, Bauman (2010) assinala que eles foram introduzidos no mercado como uma forma
de evitar que o consumidor deixasse sua compra para depois, como acontecia em tempos
passados. A ordem das coisas torna-se invertida sendo possível realizar os sonhos agora e
pagar por eles posteriormente. O autor descreve que “com o cartão de crédito você está
livre para administrar sua satisfação para obter as coisas quando desejar, não quando
ganhar o suficiente para obtê-las” (BAUMAN, 2010, p. 12, grifos do autor).
Desse modo, é válido dizer que o cartão de crédito, enquanto substituto do dinheiro
em espécie, possui as funções já existentes somadas, ainda, ao diferencial de liberdade,
podendo o indivíduo realizar seus desejos quando quiser, tornando os “cartões mágicos”,

5 Voz over da personagem Rebecca Bloomwood no filme Os Delírios de Consumo de Becky Bloom

vol. 10, num. 23, 2020


254

um facilitador de sonhos. No filme aqui analisado, este contexto é descrito na cena em que
Becky comenta sobre a emoção sentida ao realizar uma compra com o cartão de crédito:

A emoção quando você passa o seu cartão e ele é aprovado e tudo agora é
seu. O prazer que você sente quando compra alguma coisa. É só você e as
compras. Você só precisa entregar um cartãozinho. Não é a melhor
sensação do mundo? Não dá vontade de gritar do alto de uma montanha?6

Com base na fala da personagem, assinalamos o fato de que os cartões de crédito


desmotivam os indivíduos a juntar uma determinada quantia em dinheiro para adquirir
bens no futuro, uma vez que é oportunizada a compra no instante em que a vontade da
compra ocorre, ainda que esse indivíduo não tivesse a sua disposição o dinheiro
necessário. É importante notar, portanto, que os cartões são ferramentas necessárias para
que a sociedade do consumo mantenha viva a promessa de satisfação dos desejos e alcance
da felicidade.
Por esse viés, Bauman (2008) explica que a sociedade contemporânea propicia aos
indivíduos alcançarem a felicidade instantânea, pois “a maior atração de uma vida de
compras é a oferta abundante de novos começos e ressurreições (chances de “renascer”) ”
(BAUMAN, 2008, p. 66). No entanto, a magia dos cartões tem um lado perverso. Se, por
um lado os cartões de crédito transformaram a prática do consumo tornando mais próxima
a ideia de realização pessoal por meio da liberdade de compra; por outro, a satisfação
imediata proporcionada pelas compras a crédito traz como consequência o pagamento do
que já foi outrora consumido, podendo assim ocasionar uma inquietação de sentimentos,
quando se procura evitar o inevitável: o verdadeiro acerto de contas.
Ocorre que os indivíduos ora livres para realizar suas compras no momento que
quisessem, veem-se amarrados às faturas dos cartões de crédito. Esse fato justifica a
crescente inadimplência na cena cotidiana, uma vez que os indivíduos acostumaram-se ao
conceito de viver o agora de maneira intensa, protelando os efeitos colaterais. No filme
analisado neste artigo, o imediatismo de Becky Bloom a faz ter uma dívida de mais de

6 Fala da personagem Rebecca Bloomwood no filme Os Delírios de Consumo de Becky Bloom

vol. 10, num. 23, 2020


255

dezesseis mil dólares nos cartões de crédito, motivo que a leva a receber constantemente
ligações de seu gerente do banco.

Suze: Tá, eu cuido disso. Não pode ser tão ruim. É que nem band-aid. Não
pode ser tão ruim.
Suze: Oh, Bex, duzentos dólares em lingerie Marc Jacobs?
Rebecca: Lingerie é um direito básico do ser humano.
Suze: Setenta e oito dólares em lavanda de mel?
Rebecca: Eu estava com pena da vendedora, ela era estrábica. Eu não
sabia para onde ela estava olhando, se ela estava olhando para mim...Me
deu pena!
[...]
Rebbeca: Disseram que eu era uma cliente valiosa e agora ficam me
aterrorizando.
Suze: Bex, olha só, como é que você vai pagar dezesseis mil, duzentos e
sessenta e dois e setenta dólares se você não tem trabalho?7

Tanto na ficção, como na cena real, a felicidade em realizar a compra minimiza no


indivíduo a preocupação com o pagamento das parcelas deixadas para depois, entretanto,
como pontuou Bauman (2010) antes que se perceba o depois, torna-se agora. E, chegada a
hora de arcar com os valores dos desejos satisfeitos, pode gerar sentimento de frustração e
arrependimento ou pode fazer com que o indivíduo adquira novos produtos como forma
de escape de emoções. “Mais cedo ou mais tarde, descobre-se que o desagradável
“adiamento da satisfação” foi substituído por um curto adiamento da punição – que será
realmente terrível – por tanta pressa” (BAUMAN, 2010, p. 13).
E o ciclo em busca da felicidade é reiniciado. Buscando ser feliz no aqui e agora, o
indivíduo lança mão dos meios a ele disponíveis. O cartão de crédito como aliado facilita
essa busca, tornando-a mais vibrante a cada “transação aprovada”, mas não eterna. No
filme, Rebecca justifica “quando eu compro o mundo fica melhor. O mundo é melhor. E
depois deixa de ser. Aí eu compro outra vez”.8
A fala de Becky Bloom exemplifica o que Baumam (2008, p. XX) assinala com “cada
agora sucessivo”. Ou seja, é possível perceber que a felicidade não é algo perene, mas sim,
com grandes chances de acontecer sempre. E é essa característica não duradoura da

7 Diálogo transcrito entre as personagens Suze e Rebecca no filme Os Delírios de Consumo de Becky Bloom
8 Fala transcrita da personagem Rebecca no filme Os Delírios de Consumo de Becky Bloom

vol. 10, num. 23, 2020


256

felicidade que faz a sociedade do consumo ser cada vez mais desenvolvida e propiciadora
de novos reinícios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os indivíduos da sociedade do consumo têm como propósito de vida o alcance da


felicidade, para isso buscam incessantemente meios para que isso ocorra. É sabido que a
prática do consumo, no cenário atual, é considerada como o meio mais rápido de se
conseguir esse ideal. Assim, a relação entre consumo e felicidade pode ser analisada a
partir do momento em que foi perdendo sua característica subjetiva e ganhando contornos
que a fizessem visível a todos. Desse modo, o estado feliz de um indivíduo poderia ser
medido, por exemplo, pela aquisição de um celular recém-lançado no mercado. De acordo
com os apontamentos de Bauman (2008), a sociedade contemporânea tem como um dos
pilares a promessa de felicidade terrena. Para que essa promessa possa ser satisfeita, o
mercado disponibiliza inúmeros bens e serviços, que, tornam-se a garantia de felicidade
instantânea no mundo perpassado pela indústria cultural.
Diante do cenário rotulado como liquidez, a utilização dos cartões de crédito
popularizou-se entre as camadas sociais de um modo geral. Como artifício utilizado para
realizar a satisfação de um desejo de forma imediata, o uso dos “cartões mágicos” garante a
felicidade onde e quando desejada. Não obstante, à medida que o uso dos cartões de
crédito foi ampliando-se entre a população, remodelando comportamentos, nota-se um
aumento do número de pessoas inadimplentes no mercado. Esse fato sinaliza o caráter
ambíguo dos cartões. Se, por um lado eles tornam possíveis os sonhos e desejos dos
indivíduos, por outro, se utilizado de forma descontrolada, são causadores de grandes
problemas financeiros. Ressalta-se ainda o fato de que os bens adquiridos pelos indivíduos
com a intenção de se alcançar a felicidade somente o são porque estes apresentam não
apenas seu valor funcional como ocorria em tempos passados. Hoje, os bens possuem uma
carga simbólica que os ressignificam social e culturalmente. E, como expõe muito bem o
historiador Eric Hobsbawm (1955, p. 446): “não o bife, mas o chiado; não o sabonete, mas
o sonho de beleza; não as latas de sopa, mas a felicidade familiar”.

vol. 10, num. 23, 2020


257

A relação existente entre consumo e felicidade foi retratada na obra cinematográfica


Os Delírios de Consumo de Becky Bloom (2009), na qual a protagonista, fazendo uso de
seus doze cartões de crédito, realizava inúmeras compras com o objetivo de ser plenamente
feliz. Becky é, portanto, a representação clara do indivíduo consumidor da sociedade
contemporânea, pois, a fim de alcançar a felicidade ora prometida, a personagem
interpretada por Isla Fisher adquiria determinadas mercadorias como sapatos, bolsas, um
casaco de cashmere ou uma echarpe verde. Dessa forma, o presente artigo buscou tecer
considerações acerca do consumo e sua relação com a felicidade, tendo como base a trama
ficcional dirigida por P.J. Hogan. Diante o exposto e longe de se findar as teorizações sobre
o tema, cabe ressaltar que um estado feliz não é eterno e novas porções de prazer e
felicidade são colocados à venda diariamente para que a sociedade do consumo seja a cada
dia uma sociedade de consumidores “sempre” felizes.

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.

BAUMAN, Zigmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em


mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

BAUMAN, Zigmunt. Capitalismo Parasitário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron de. O Mundo dos Bens: para uma
antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Studio


Nobel, 1995.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.

ROCHA, Everardo. Totem e consumo: um estudo antropológico de anúncios


publicitários. Revista Alceu: comunicação, cultura e política, Rio de Janeiro, v. 1, n.
1, p. 18-37, jul./dez. 2000. Disponível em: http://revistaalceu-acervo.com.puc-
rio.br/media/alceu_n1_Everardo.pdf. Acesso em: 26 fev. 2020.

SLATER. Don. Cultura do Consumo e Modernidade. São Paulo, Nobel, 2002.

vol. 10, num. 23, 2020

Você também pode gostar