E-Book Narrativas Audiovisuais
E-Book Narrativas Audiovisuais
E-Book Narrativas Audiovisuais
Conselho Editorial
Alessandra Dale Giacomin Terra – Universidade Federal Fluminense
Andréa Cristina Marques de Araújo – Universidade Fernando Pessoa
Andrelize Schabo Ferreira de Assis – Universidade Federal de Rondônia
Bianca Gabriely Ferreira Silva – Universidade Federal de Pernambuco
Cristiana Barcelos da Silva – Universidade do Estado de Minas Gerais
Cristiane Elisa Ribas Batista – Universidade Federal de Santa Catarina
Daniel Ordane da Costa Vale – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Danyelle Andrade Mota – Universidade Tiradentes
Dayanne Tomaz Casimiro da Silva - Universidade Federal de Pernambuco
Diogo Luiz Lima Augusto – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Elis Regina Barbosa Angelo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Ernane Rosa Martins - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás
Ezequiel Martins Ferreira – Universidade Federal de Goiás
Fábio Pereira Cerdera – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Francisco Oricelio da Silva Brindeiro – Universidade Estadual do Ceará
Glaucio Martins da Silva Bandeira – Universidade Federal Fluminense
Helio Fernando Lobo Nogueira da Gama - Universidade Estadual De Santa Cruz
Inaldo Kley do Nascimento Moraes – Universidade CEUMA
João Paulo Hergesel - Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Jose Henrique de Lacerda Furtado – Instituto Federal do Rio de Janeiro
Jordany Gomes da Silva – Universidade Federal de Pernambuco
Jucilene Oliveira de Sousa – Universidade Estadual de Campinas
Luana Lima Guimarães – Universidade Federal do Ceará
Luma Mirely de Souza Brandão – Universidade Tiradentes
Mateus Dias Antunes – Universidade de São Paulo
Milson dos Santos Barbosa – Universidade Tiradentes
Naiola Paiva de Miranda - Universidade Federal do Ceará
Rafael Leal da Silva – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Rita Rodrigues de Souza - Universidade Estadual Paulista
Willian Douglas Guilherme - Universidade Federal do Tocantins
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89950-50-9
Editora e-Publicar
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
contato@editorapublicar.com.br
www.editorapublicar.com.br
Apresentação
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................... 18
O USO DA NOSTALGIA EM FILMES E SÉRIES NAS PLATAFORMAS DE
STREAMING ................................................................................................................................. 18
Brener Neves Silva
CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................... 30
INTERAÇÃO HUMANO COMPUTADOR EM REDES SOCIAIS – INSTAGRAM:
VERSÃO ANTIGA ........................................................................................................................ 30
Carla Gonçalves Távora
Eduardo Martins Morgado
Shelley Navari Christianini
CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................... 41
EXPANSÃO DAS MÍDIAS E REGULAMENTAÇÃO NA RADIODIFUSÃO: UMA
ANÁLISE ACERCA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O SETOR DURANTE O
GOVERNO DILMA ROUSSEF .................................................................................................. 41
Carlos Guilherme Vogel
CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................... 55
CONSTITUIÇÃO DO JULGAMENTO MORAL REPRESENTADO NO CINEMA: O
FILME O MONSTRO E SUAS POSSIBILIDADES EDUCATIVAS .................................... 55
Rosângela de Amorim Teixeira de Oliveira
Rafael José Bona
CAPÍTULO 6 ........................................................................................................................... 68
PRÁTICAS DE CONSUMO MUSICAL EM PLATAFORMAS DE STREAMING: UMA
ANÁLISE DAS DINÂMICAS DO SPOTIFY ........................................................................... 68
DOI: 10.47402/ed.ep.c202183339486 Leonardo Trindade Araújo
Cristiano Nascimento Oliveira
CAPÍTULO 7 ........................................................................................................................... 81
BROCHES, DOCUMENTOS SECRETOS E MEMÓRIAS AFETIVAS: OS
INGREDIENTES DO “FOLHETIM ELETRÔNICO” A DONA DO PEDAÇO................... 81
DOI: 10.47402/ed.ep.c20218346509 Rondinele Aparecido Ribeiro
Luciana Brito
CAPÍTULO 8 ........................................................................................................................... 93
O CINEMA DE BILLY WILDER E ALGUMAS APROXIMAÇÕES AO ARQUÉTIPO DO
HERÓI: OLHARES ATRAVÉS DA PELÍCULA IRMA LA DOUCE ................................. 93
Adriano Medeiros da Rocha
CAPÍTULO 9 ......................................................................................................................... 108
“É O QUE VENDE O SONHO”: A REPRESENTAÇÃO ONLINE DO CANADÁ PELAS
IMIGRANTES BRASILEIRAS ................................................................................................. 108
Rodrigo Fessel Sega
DOI: 10.47402/ed.ep.c20218357509
CAPÍTULO 1
IXCANUL: DO FEMINICÍDIO LATINOAMERICANO PELO CINEMA
GUATEMALTECO
RESUMO
O presente artigo — ancorado em referências bibliográficas, filmográficas e biográficas — pretende
analisar de forma ensaística a abordagem do cineasta guatemalteco Jayro Bustamente no que
se refere aos acontecimentos políticos em seu país. Ixcanul, primeiro da trilogia que contará o
genocídio através do paralelismo das narrativas escolhidas pelo diretor, é um convite ao
encontro com a cultura, as mazelas e ao novo cinema da Guatemala.
INTRODUÇÃO
Fonte: https://tvbrasil.ebc.com.br/cine-ibermedia/2017/12/ixcanul
Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica, que tinha como tema regimes
totalitaristas e o mal banal, atribui a prática nazista à desumanização do objeto de violência, de
forma que quem pratica o mal não vê no outro um semelhante. A desumanização se dá uma vez
que é retirado de um indivíduo o direito à fala e às escolhas sobre a própria vida.
A escolha dos fios condutores de Bustamante sem dúvida não foi aleatória.
Ironicamente, somos forçados a crer que há mais chances de uma possível ascensão em um país
não-Latino. E em uma situação de completa vulnerabilidade, o que uma menina pobre, indígena
e com pouco acesso à educação, acredita ter como moeda de troca senão o próprio corpo?
María planeja uma fuga que não acontece. É deixada para trás e o fruto dessa relação é
uma gravidez indesejada e logo descoberta pela mãe, que em um primeiro momento, questiona
a ausência do pai da criança, e sem resposta inicia uma série de tentativas frustradas de
interromper a gestação. É importante ratificar que a história se passa na contemporaneidade,
mas em uma região nada cosmopolita. A sexualidade feminina ainda é vista como um tabu e a
virgindade tratada como um troféu.
É claro que, quanto à criança, toda a responsabilidade recai sobre María, afinal, ela é a
mãe. Da tentativa de um aborto malsucedido a assinar um documento enquanto estava
desacordada, a cobrança vem de si e passa pela insensibilidade de mais um personagem
masculino, cuja função de investigador não lhe desperta empatia. Por fim, os questionamentos
do pai retomam a ideia de que uma possível adoção por uma família estadunidense amenizaria
essa perda, uma vez que a criança estaria bem amparada social e financeiramente.
Em uma narrativa que se desenrola a partir do “sonho americano”, o diretor faz escolhas
sensíveis que valorizam a apresentação da cultura local, tornando o ponto de partida lugar-
comum apenas um coadjuvante diante de suas consequências. As pautas que movimentam o
enredo do filme ora caminham pelo viés da busca por uma vida melhor, ora pelo conformismo,
mas sempre culminam nas decisões tomadas por homens a respeito da vida dessas mulheres.
“Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta,
rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. (...) A
organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm
criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe.”
(KRENAK, 2019, p. 11-12)
Quando Krenak cita o homem como medida das coisas não está necessariamente
fazendo uma separação de gênero, e sim entre o humano e a T/terra. Fala de como a humanidade
despreza e explora recursos naturais. No entanto, podemos pensar que isso se dá em qualquer
relação em que se compreende que há um lado mais frágil. Seja socialmente, como no caso das
mulheres, ou na relação em que manda quem detém mais poder aquisitivo. Se sabemos que há
uma disputa entre neo-colonizadores e remanescentes da cultura indígena que tentam ainda ter
alguma voz sobre seu território de direito, sabemos que há a mesma relação entre homens que
tentam silenciar mulheres enquanto tentamos resistir à violência física e moral seja aqui ou na
Guatemala.
Assim, se somos tão semelhantes, por que ainda é perceptível a falta de identificação
entre nós brasileiros e as demais culturas latinas? Por que ainda há uma parcela da população
que não considera nossas raízes?
Entre janeiro e fevereiro de 2018 estive na Guatemala. Passei um mês imersa na cultura
do país, cruzando diariamente com mulheres guatemaltecas trajadas com seus tecidos indígenas
no centro da capital. Me lembro que no primeiro dia minha amiga me levou para almoçar no
mercado central e o choque foi grande. Nós, forjados em uma cultura que exalta o que vem de
fora e nos distancia de nossos antepassados, não estamos acostumados a dialogar com nossa
própria história. Minha identificação veio rápido até e em pouco tempo me senti parte daquilo.
Ao passar tantos dias pelos mesmos lugares e observando paisagens que pareciam tão distantes,
entendi que essa distância nunca existiu.
Na última semana de viagem visitamos Tikal, o “lugar das vozes” onde o sotaque que
menos se ouve é o dos guatemaltecos. Como era de se esperar, o público que paga caro para
visitar as pirâmides Maias é formado majoritariamente por turistas. Um guia guatemalteco
Assisti Ixcanul algum tempo antes de passar pela Guatemala. De certa forma, as
personagens criaram em mim alguma expectativa do que eu encontraria por lá. Acho que o
cinema tem esse poder de transportar o espectador para qualquer lugar. Eu não sabia das vinte
e uma línguas Maias ainda preservadas. Tampouco que aquelas mulheres representadas no filme
passariam por mim na ida ao mercado. Não sabia que da janela do apartamento veria o vulcão
todos os dias pela manhã.
A viagem, como em Ixcanul, terminou como começou: numa ida ao mercado central.
Dessa vez, não houve choque. Senti como se estivesse saindo de um lugar o qual pertencia
também.
Ao refletir sobre o papel da arte diante da violência imposta na vida real, a artista visual
guatemalteca Julie Brasil realizou o curta-metragem Hijas de la Madre Tierra em que registra
A fábrica ocupava os três últimos andares do edifício Asch Building e tinha cerca de 600
empregados, majoritariamente mulheres jovens e imigrantes com uma carga horária de 14 horas
diárias e salários que variavam entre 6 e 10 dólares semanais. Das poucas vítimas identificadas
após o ocorrido, sabe-se que eram de nacionalidades diversas, entre elas italianas, ucranianas,
russas e palestinas. Mulheres que não dominavam suficientemente o idioma local para
compreender o alerta de fogo.
Para além das condições desumanas de trabalho e exploração que colaboraram com a
tragédia, o evento e o filme rememoram as vítimas de um sistema que reforça formas
contemporâneas de colonização. Assim, o que vimos em Ixcanul, lançado mais de um século
após o incêndio, pode ser entendido como um precedente da narrativa que se repete.
1
Acesso em 24 de julho de 2021:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/24/actualidad/1543075049_751281.html
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio, 1942 - O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer
III) / Giorgio Agamben: tradução Selvino J. Assmann. - São Paulo: Boitempo. 2008. UEstado
de sítio)
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Ed. Schwarcz S.A. 2019.
RESUMO
Ao longo dos anos, a indústria cinematográfica vem utilizando do recurso nostálgico para o
consumo de obras audiovisuais por meio de filmes e séries que rememoram o passado. Neste
cenário, a nostalgia pode ser visualizada como um importante elemento usado pelas plataformas
de streaming, como Netflix, Amazon Prime, Disney+, entre outras. O objetivo deste estudo é
refletir de que modo essa prática vem sendo aplicada nos streamings e quais os potenciais
motivos para o seu uso constante. Para esta discussão, foi realizada uma pesquisa bibliográfica
acerca dos usos da nostalgia e do consumo de mídias audiovisuais nostálgicas em plataformas
de streaming atuais, cujas fontes foram livros e trabalhos científicos publicados em revistas
nacionais e internacionais. A partir das reflexões, pode-se perceber que a cultura midiática atual
tem investido no desejo e anseio nostálgico do espectador, contudo, é necessário pensar a
nostalgia não só como estratégia mercadológica, mas também como um recurso que torna
possível compreender questões e valores socioculturais e políticos. Portanto, destaca-se a
importância de expandir os estudos interdisciplinares das relações entre nostalgia e cinema para
pensar suas implicações sociais no meio audiovisual.
INTRODUÇÃO
Atualmente as plataformas de streaming fazem parte do cotidiano das pessoas, por isso,
é preciso levar em consideração a importância que têm hoje no campo do cinema e do
audiovisual. Este estudo busca levantar reflexões sobre o modo como essa prática vem sendo
aplicada nos streamings e quais os potenciais motivos para o seu uso constante. Para isso, o
presente trabalho foi dividido em três partes: se inicia com a apresentação das teorias acerca
dos estudos e compreensões da nostalgia, seguido de uma contextualização do uso da nostalgia
nas plataformas de streaming e, por fim, uma discussão sobre os potenciais motivos do seu uso
e como é possível pensá-la para compreender determinados aspectos sociais.
2
Versão atualizada de uma obra que permanece fiel à original.
3
Releitura de obras com mudanças substanciais.
4
Quando o elenco de uma obra já finalizada se reúne novamente ou quando há o retorno de audiovisuais
anteriormente encerrados.
Ao mesmo tempo, a nostalgia passou a ser concebida como um desejo pelo passado e,
também, como uma busca por aquilo que não é possível alcançar. Desde então, diversos
estudiosos passaram a pesquisar de maneira mais profunda os significados e representações da
nostalgia. Nesse percurso, ocorreu o que Niemeyer (2014) chama de “boom da nostalgia”, pois
passou a ser cada vez mais presente em vários aspectos na vida das pessoas. Isso começou a
aparecer constantemente por meio das redes sociais, moda, alimentos, bebidas, móveis, festas
com temáticas de décadas passadas, edição de fotografias em telefones celulares para se
assemelharem a Polaroids, além de outros produtos mercadológicos, como é o caso, por
exemplo, da venda de vitrolas no século atual. Esta prática originou outros termos atrelados à
nostalgia, como a tecnostalgia, que se refere ao interesse pelas tecnologias de mídia do passado
e que são reapropriadas nas práticas de memória contemporâneas (HEIJDEN, 2015). Conforme
Niemeyer,
Nostalgia é o nome que comumente damos a um anseio agridoce por tempos e espaços
anteriores. Esse retorno privado ou público ao passado e, às vezes, a uma imaginação
interligada do futuro, obviamente não é novo. Sempre houve um fascínio pelos, como
costumamos chamá-los, "bons velhos tempos". Mas quem teria pensado, dada a
imaginação dos anos 1990 de um futuro repleto de tecnologia, que o início do novo
século seria de fato marcado por um aumento nas expressões de nostalgia e em objetos
nostálgicos, conteúdo de mídia e estilos? (NIEMEYER, 2014, p. 1).
Com o passar do tempo, começou-se a notar que a nostalgia pode sugerir questões mais
profundas relacionadas ao espaço-tempo. Atualmente, os estudos são ramificados e dedicam-
se aos mais diversos campos, como a retromania (REYNOLDS, 2011), a obsessão midiática da
nostalgia (HUTCHEON e VALDÉS, 2000), a nostalgia ativa (FERRAZ, 2016), ciclos
nostálgicos (HIGSON, 2003; MARCUS, 2004), sonhos e pesadelos (LOWENTHAL, 2013),
modos (JAMESON, 2013), ondas (DAVIS, 1977), comoditização da nostalgia (GRAINGE,
2000), bem como a nostalgia e suas vizinhanças com a memória, utopia, retrotopia, distopia,
retrofuturismo, heterotopia e escatologia (NAGIB, 2006; BASSET e BAUSSANT, 2018;
BAUMAN, 2017; CAMPOPIANO, 2014; HEIJDEN, 2015).
Neste contexto, é nítido que a Netflix tem se destacado por essas produções e por trazer
de volta séries que foram canceladas ou finalizadas. Outra produção que se destaca no
streaming é Anne With An E (2017-2019), que se passa no final da década de 1890 e conta a
história de uma jovem órfã que luta por amor, aceitação e seu lugar no mundo. A série
reconstitui a atmosfera dessa época por meio do figurino, cenografia e caracterização ricos em
detalhes e traz de volta a “sensibilidade” do passado por meio da trama de modo geral. Em 2019
a série foi cancelada pelo canal canadense Canadian Broadcasting Corporation, detentor oficial
dos direitos da obra, mas essa notícia não foi bem recebida pelo público, que hoje assina uma
petição online de renovação que possui quase 2 milhões de assinaturas.
Além das plataformas citadas anteriormente, outro streaming de sucesso com grandes
produções é a Disney+, que estreou no Brasil em novembro de 2020, e trouxe uma categoria de
filmes intitulada “Filmes Nostálgicos”, contendo diversos clássicos de décadas passadas, como
Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Mary Poppins (1964), A Noviça Rebelde (1965),
Esqueceram de Mim (1990), entre outros. Há também as categorias “Favoritos do Disney
Channel” e “Lembranças”, que trazem diversas séries e filmes de sucesso exibidas no canal
Disney Channel ao final dos anos 1990 e início dos anos 2000, como Operação Cupido (1998),
Zack e Cody: Gêmeos em Ação (2005-2008), Os Feiticeiros de Waverly Place (2007-2010),
Hannah Montana (2006-2010), além da trilogia de filmes High School Musical (2006-2008),
entre outros.
Essas produções apontam para o fato de que o mecanismo da cultura da mídia, aliada à
nostalgia, tem funcionado e está rendendo bons números de audiência, o que resulta em filmes
e séries de época, além de outros recursos utilizados dentro das próprias plataformas, como os
remakes, reboots e revivals, bem como as prequelas5 e sequelas6. Essa estratégia produz o que
Ferraz (2016) chama de nostalgia ativa, que se coloca como uma forma de expressão da
memória, capaz de mobilizar pessoas e grupos, potencializar práticas, discursos e afetos que
operam, por exemplo, contra arbitrariedades de determinadas memórias oficiais e versões
legitimadas do passado (SANTA CRUZ e FERRAZ, 2018). Sobre isso, Niemeyer afirma que,
A mídia produz conteúdos e narrativas não apenas no estilo nostálgico, mas também
como desencadeadores da nostalgia. A mídia e as novas tecnologias em particular
podem funcionar como plataformas, locais de projeção e ferramentas para expressar
a nostalgia. Além disso, a mídia é muitas vezes nostálgica por si mesma, seu próprio
passado, suas estruturas e conteúdos. Mudanças de mídia perpétuas tornam a mídia
nostálgica por seu fim inexistente (NIEMEYER, 2014, p. 7).
É perceptível que o uso da nostalgia como ferramenta mercadológica na mídia está cada
vez mais crescente e, consequentemente, presente nas mídias audiovisuais de modo geral,
especificamente nos streamings citados, mas também em muitos outros, como HBO GO,
5
Obras cujas histórias ou enredos servem de antecedentes a uma já existente.
6
Obras cujas histórias ou enredos dão continuidade a uma anterior.
O uso da retrotopia pode ser visualizado como uma espécie de ferramenta dentro do
campo da estratégia nostálgica, já que atualmente parece haver uma tendência preferível em
investir em obras audiovisuais que retratem temáticas históricas do passado, devido às
incertezas do futuro, visto que o passado já se conhece e o futuro não se pode confiar. Esse é
um recurso que parece funcionar muito mais, pois foca em um público já existente ou que já
passou por situações parecidas. Desse modo, produzir e exibir filmes e séries que rememorem
o passado parece ser uma maneira de manter um público já cativado.
Nessas obras, Castellano e Meimaridis (2018) afirmam que é importante notar que não
se trata apenas da representação de um tempo passado, mas da retomada de um passado
próximo, possível de ser relembrado pelo espectador como parte de sua própria memória
afetiva. Contudo, há espectadores que não necessariamente viveram determinada época, mas
Conforme Boym (2001), isso vem acontecendo diante o cenário moderno em que
vivemos, no qual a nostalgia deseja obliterar a história e transformá-la em uma mitologia
privada ou coletiva para revisitar o tempo como o espaço, recusando-se a se render à
irreversibilidade do tempo que atormenta a condição humana. Desse modo, a nostalgia está
relacionada à dificuldade que as pessoas têm de lidar com o próprio espaço-tempo em que estão
inseridas, pois num cenário caracterizado por diversas questões socioculturais, descrença em
projetos políticos e nas narrativas que explicam o mundo e a realidade em que vivemos, bem
como vínculos sociais e afetivos mais fragilizados, o desejo pelo passado parece expressar o
esfacelamento da capacidade de projeção no futuro, tornando-se dificultoso imaginar “futuros
possíveis” (HUYSSEN, 2014; RIBEIRO, 2018).
Estudos apontam que embora atualmente possamos pensar em uma espécie de “obsessão
midiática” com o uso da nostalgia, não se deve encará-la apenas como estratégia mercadológica,
mas também como reveladora das questões sociais vividas na sociedade contemporânea e que
refletem as visões negativas ou positivas com relação ao espaço-tempo (HUTCHEON e
VALDÉS, 2000; NIEMEYER, 2014). É por isso que constantemente as pessoas parecem ter
cada vez mais consciência de que o tempo está passando e que é irreversível. Isso tem resultado
na procura por práticas nostálgicas para que haja uma restauração de fragmentos que, por sua
vez, irão aconchegar afetos e percepções dos indivíduos por meio da presentificação de filmes
e séries atuais com temáticas do passado.
[...] precisamos reconhecer as várias maneiras pelas quais as pessoas estão envolvidas
em colocar o passado situado em alguma forma de ordem narrativa para si mesmas,
ou na negociação crítica das representações mediadas do passado para suas relações
com identidades e experiências coletivas. Ao fazer isso, não queremos sugerir que o
consumo da mídia seja sempre e em toda parte caracterizado por uma resposta crítica
às formas de representação histórica. Se uma das pré-condições da nostalgia é a
insatisfação com o presente, isso ilumina uma das maneiras pelas quais representações
não críticas da mídia sobre o passado são legitimadas, ou pelo menos deixadas passar
sem contestação (PICKERING e KEIGHTLEY, 2006, p. 925).
A nostalgia parece ser, então, uma forma de reação à velocidade e à vertigem do espaço-
tempo moderno, resultado da insatisfação com o presente. Isso traz como consequência o desejo
de retornar imaginativamente ao passado como um modo de tentar recapturar uma suposta
continuidade que já não está mais disponível ou um ambiente moderno tardio (SMITH, 1998;
LOWENTHAL, 1989). No entanto, Castellano e Meimaridis (2018) apontam que nesse
processo pode ocorrer também um incômodo com relação à percepção de que o tempo passou
e que nós não somos mais os mesmos, bem como os atores e atrizes em tela, passando a ter
noção de que o tempo age de maneira inexorável nas relações com os objetos culturais.
Deste modo, expressões e práticas nostálgicas apontam para dois fenômenos recorrentes
atualmente: a reação às tecnologias rápidas com o desejo de desacelerar e o uso da nostalgia
como uma espécie de encorajamento a partir do consumo midiático audiovisual. Por isso, é
fundamental estar sempre pensando e repensando os significados de nostalgia em relação às
distinções entre o desejo de retornar ao passado idealizado e o desejo de não retornar, mas de
conseguir reconhecer aspectos do passado como a base essencial para a renovação e satisfação
no futuro, sendo a nostalgia também o caminho seguinte para as incertezas do presente
(NIEMEYER, 2014). Essa reflexão abre novos espaços para pensar a nostalgia em uma
dimensão positiva na contemporaneidade, especificamente no cinema e no audiovisual, e cabe
aos pesquisadores e pesquisadoras continuarem a busca pelas suas ramificações e
compreensões.
As reflexões sobre nostalgia vão muito além do senso comum e do que antigamente
significava apenas uma patologia ou a saudade de casa, pois reverbera e se entrecruza em
diversos campos distintos, especialmente na relação com a mídia audiovisual. Nota-se cada vez
mais o grande número de produções audiovisuais que retratam o passado em diversos contextos
narrativos, como as plataformas de streaming, que vêm investindo no desejo nostálgico do
espectador. Na cultura midiática atual, os grandes números de audiência nessas produções têm
mostrado que a instrumentalização da nostalgia é um movimento mercadológico crescente. No
entanto, não se deve visualizá-la somente como estratégia de mercado, mas também como um
recurso que pode viabilizar a compreensão das questões sociais vividas na contemporaneidade.
Portanto, o apelo à nostalgia do espectador vem sendo cada vez mais utilizado, tornando-se
uma grande característica do cinema e do audiovisual nesse início de século, mas que ainda
pode sofrer diversas alterações que apenas as próprias tecnologias e o consumo midiático
mostrarão.
REFERÊNCIAS
DAVIS, F. Yearning for yesterday: a sociology of nostalgia. Oxford: Oxford University Press,
2011.
DAVIS, F. Nostalgia, identity and the current nostalgia wave. Journal of Popular Culture, v.
11, n. 2, 1977.
GRAINGE, P. Nostalgia and style in retro America: moods, and modes, and media recycling.
The Journal of American Culture, v. 23, n. 1, 2000.
HIGSON, A. English heritage, english cinema: costume drama since 1980. New York: Oxford
University Press, 2003.
HUTCHEON, L.; VALDÉS, M. J. Irony, nostalgia, and the postmodern: a dialogue. Poligrafías
– Revista de Literatura Comparada, p. 189–207, 2000.
JAMESON, F. Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke
University Press, 2013.
KLEIN, A. A.; PALMER, B. Cycles, sequels, spin-offs, remakes, and reboots: Multiplicities in
Film and Television. Austin: University of Texas Press, 2016.
LOWENTHAL, D. Nostalgia tells it like it wasn’t. In: C. Shaw and M. Chase (Orgs.). The
imagined past: history and nostalgia. Manchester and New York: Manchester University Press,
1989.
MARCUS, D. Happy days and wonder years: the fifties and the sixties in contemporary cultural
politics. New Brunswick and London: Rutgers University Press, 2004.
NAGIB, L. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias. São Paulo: Cosac
Naify, 2006.
NIEMEYER, K. Media and nostalgia: yearning for the past, present and future. Springer, 2014.
PANATI, C. Panati’s parade of fads, follies and manias. New York: Harper Perennial, 2013.
REYNOLDS, S. Retromania, pop culture’s addiction to its own past. London: Faber and Faber,
2011.
SANTA CRUZ, L.; FERRAZ, T. (Orgs.). Nostalgias e mídia: no caleidoscópio do tempo. Rio
de Janeiro: E-Papers, 2018.
SMITH, J. S. The strange history of the decade: modernity, nostalgia and the perils of
periodization. Journal of Social History, v. 32, n. 2, p. 263-85, 1998.
RESUMO
Neste artigo propomos uma análise da interação humano computador com o aplicativo e
website Instagram. O aplicativo tem como funcionalidade mostrar o dia- dia das pessoas, com
suas fotográficas digital móvel. Pode ser acessado tanto em sistemas operacionais moveis
(celulares), quanto em sistemas operacionais (desktop e notebook). O usuário que acessa o
Instagram através do website não tem as mesmas funcionalidades que o aplicativo do celular
oferece. O usuário pode permitir que o aplicativo Instagram se conecte com a conta do
Facebook, então as postagens serão publicadas diretamente em ambos.
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a rede social se tornou parte da vida das pessoas que utilizam algum
computador ou dispositivo móvel em mãos. Estamos a viver o auge das redes sociais,
impulsionado pela globalização, pela ideia de compartilhar e socializar com quaisquer pessoas
ao redor do mundo e, com isso os jovens cada vez mais se admiram a este tipo de software
fazendo com que as redes sociais tornem- se extremamente importante em suas vidas.
O artigo a seguir, relata um aplicativo de rede social, no qual é um dos mais usados no
mundo atual. O Instagram é uma rede social de fotos onde milhões de usuários se comunicam.
O artigo também faz uma abordagem sobre o conceito de Interação Homem-Computador,
trazendo consigo uma análise do aplicativo baseado no IHC.
Por meio de uma descrição das principais funcionalidades, compreender mais sobre o
aplicativo Instagram, que se consolida cada vez mais entre os usuários, por ser de grande
utilidade para tirar fotos, aplicar efeitos nas imagens, compartilhar, curtir, comentar as fotos
dos seus amigos, além de possuir um chat para se manter mais próximos de seus seguidores. O
Um aplicativo bastante utilizado nos dias de hoje é o Instagram que possibilita a postagem
de fotos e vídeos onde todo esse conteúdo é compartilhado com seus amigos através desse app.
O aplicativo é compatível com várias plataformas e também é composto de uma funcionalidade
muito importante chamada “Direct” que possibilita os usuários a conversar com seus
seguidores.
Essa funcionalidade permite que o usuário poste suas fotos e vídeos em sua linha do
tempo no qual as mesmas podem ser visualizadas por seus amigos permitindo eles curtir e
comentar em suas fotos, como mostra na figura abaixo:
Com esta opção o usuário pode conversar com seus seguidores, podendo enviar
multimídias através do direct que funciona como um bate papo.
Os usuários podem compartilhar seus momentos com fotos e vídeos personalizados com
emojis, desenhos coloridos feitos a mão e textos.
Esta funcionalidade permite que o usuário siga pessoas ou empresas para que ele possa
ver todas as publicações da mesma, onde para as empresas o foco é trazer marketing nas
Esta função fica localizada no perfil do usuário onde ele pode fazer uma descrição de
coisas interessantes de sua vida. Já para as empresas serve como uma descrição para que chame
atenção de seus visitantes a visitar os seus produtos.
Fonte: Print da tela do celular do aplicativo Instagram, na conta da Carla Gonçalves Távora.
Acesso em: 04/05/2017.
Esta funcionalidade permite que o usuário digite o nome da pessoa ou empresa para que
ele possa ver todas as publicações da mesma.
Fonte: Print da tela do desktop do website Instagram, na conta da Carla Gonçalves Távora.
Acesso em: 11/05/2017
Esta função tem como objetivos mostrar aos usuários as pessoas ou empresas que ele
possa conhecer, o aplicativo recomenda pessoa ou empresas que a maioria dos seus seguidores
conhecem.
A opção de favoritos tem como objetivo que o usuário possa visualizar os comentários,
as curtidas que recebe em suas postagens e seus novos seguidores.
Essa função não é obrigatória, o usuário pode adicionar quaisquer palavras, emoticons
no campo de Biografia. Pode-se observar que no lado esquerdo há mais funções que o usuário
pode ter acesso.
Fonte: Print da tela do desktop do website Instagram, na conta da Carla Gonçalves Távora.
Acesso em: 11/05/2017
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto aplicativos relacionados com a vida particular das pessoas tendem a ganhar
cada vez mais espaço em um mundo onde as pessoas têm a necessidade de se tornarem visíveis.
Quanto mais atrativo no que tange as funcionalidades e praticidade de uso um aplicativo se
tornar, mais espaço ele ganhará nesse mercado competitivo.
REFERENCIAS
FISZMAN, Gabriella. Sete funções super úteis que você quase não usa no seu Instagram. Disponível
em: <http://www.techtudo.com.br/listas/noticia/2015/09/sete-funcoes- super-uteis-que-voce-quase-nao-usa-no-
seu-instagram.html> Acesso em: 04 maio 2017.
GOMES, Helton S. Brasileiro criador do Instagram comenta alterações no app: 'Ou você muda ou
morre'. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/brasileiro- criador-do-
instagram-comenta-alteracoes-no-app-ou-voce-muda-ou-morre.ghtml> Acesso em: 04 maio 2017.
O Governo Dilma Roussef foi marcado por um processo de impeachment que culminou
no afastamento da Presidenta da República, provisoriamente a partir de 17 de abril de 2016,
com a instauração do processo pela Câmara dos Deputados, e em caráter permanente no dia de
31 de agosto de 2016, com a aprovação do afastamento definitivo pelo Senado Federal.
O mandato da Presidenta também foi marcado por diversas manifestações populares que
dividiram opiniões e contaram com ampla divulgação através dos meios de comunicação. Entre
estes eventos, as manifestações populares de 2013, que ficaram conhecidas como “Jornadas de
Junho” (MENDONÇA, 2018) e que tomaram grandes proporções a partir de protestos contra o
aumento das passagens de ônibus; manifestações populares durante a realização da Copa das
Confederações em 2013 e da Copa do Mundo de futebol em 2014 e as manifestações pró e
contra o impeachment nos meses que antecederam a votação na Câmara dos Deputados. Um
episódio marcante foi a divulgação em rede nacional de áudios relacionados à investigação da
Polícia Federal contra o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, áudios esses que deveriam ter
sido mantidos em segredo de justiça, em função do envolvimento da atual chefe do poder
executivo federal. O fato aconteceu um mês antes da votação na Câmara dos Deputados:
Curiosamente, o Governo Dilma, iniciado em 2011, tinha uma importante missão: levar
adiante as discussões avançadas em 2010 na Conferência Nacional de Comunicação
(CONFECOM), sobre a regulação econômica da comunicação de massa no Brasil.
Dilma Roussef tomou posse em 1º de janeiro de 2011, com a missão de dar continuidade
aos projetos de um dos governos mais populares da história recente do país – o do Presidente
Luís Inácio Lula da Silva. De acordo com Pieranti (2017), havia uma grande expectativa com
relação a nova gestão que assumia o Ministério das Comunicações, que pela primeira vez seria
encabeçado por um membro da sigla mais importante do Governo do Partido dos
Trabalhadores. O nome em questão era Paulo Bernardo, que havia ocupado a pasta de
Planejamento no mandato anterior:
Era grande a expectativa com a nova gestão que assumia o ministério em janeiro de
2011. Lula terminara seu mandato com popularidade alta e a nova Presidenta da
República, Dilma Rousseff, a primeira mulher a assumir o cargo, derrotara com
diferença considerável de votos os seus concorrentes. No início do mandato, contava
com ampla base parlamentar, ao menos em tese, o que possibilitaria ao governo
discutir temas polêmicos e aprovar medidas difíceis no Congresso Nacional
(PIERANTI, 2017, p.33).
Havia três grandes expectativas relacionadas ao setor de comunicação, que deveriam
entrar em pauta a partir de então: o novo marco regulatório da mídia – talvez o mais importante
deles; o tratamento dos processos de radiodifusão, visando o planejamento e a expansão do
setor; e a consolidação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), que previa a universalização
do sistema no país.
Banda larga é o nome dado a várias modalidades de conexão à internet (satélite, fibra
ótica, rádio) que operam com maior velocidade e maior capacidade de carregamento
de dados. As conexões de banda larga são as mais adequadas para que os usuários
acessem serviços virtuais como videoconferências, streaming de eventos ao vivo ou
redes privadas. Estima-se que no Brasil um em cada quatro usuários de internet dispõe
de conexão de banda larga fixa (BRASIL, 2014).
O Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), foi instituído no Brasil no ano de 2010,
ainda no Governo Lula, por meio do Decreto 7.175/2010. O objetivo principal deste programa
foi o de “fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias de
informação e comunicação” (BRASIL, 2014), tendo sido considerado pelo Ministério das
Comunicações como um projeto fundamental, valorizando a informação como um ativo
econômico para o desenvolvimento do país.
Neste cenário, a inclusão digital se revela uma aliada das novas políticas públicas
relacionadas à radiodifusão, abordadas a seguir.
Nos anos 1990, a retórica da revolução digital continha uma suposição implícita, e às
vezes explícita, de que os novos meios de comunicação eliminariam os antigos, que a
Internet substituiria a radiodifusão e que tudo isso permitiria aos consumidores acessar
mais facilmente o conteúdo que mais lhes interessasse. (JENKINS, 2009, p. 32).
A aposta no rádio digital não dera certo. De 2006 a 2012 o Governo Federal não
oficializara qualquer decisão, em parte pelas desconfianças técnicas sobre a nova
plataforma. Os testes de 2012 apenas confirmaram a validade das preocupações sobre
a cobertura. Ainda que fosse possível atingir um resultado diferente em nova bateria
de testes, as emissoras comerciais pleiteavam uma outra alternativa – a migração de
todas as interessadas para a faixa de FM. O Ministério avaliou, então, que essa seria
uma saída possível (PIERANTI, 2017, p.116).
No ano de 2013, foi publicado o Decreto nº 8.139, que oficializava o início da migração
de emissoras interessadas para a faixa de frequência modulada (FM). Neste decreto, o Governo
Dilma extinguia a faixa de ondas médias (OM) e criava mecanismos de adaptação à migração
para FM. Em 2014, a Portaria nº 127 definia o rito de migração, solicita por 1386 emissoras, de
um total de 1781 existentes no país. Em março de 2016 foi efetivada a primeira migração e, de
acordo com dados governamentais, cerca de mil outras emissoras já apresentavam condições
técnicas para concluírem o processo (PIERANTI, 2017).
Para Del Bianco e Prata (2018), apesar da dinâmica de inovações tecnológicas, o setor
de radiodifusão brasileiro enfrenta dificuldades de adaptação a essas mudanças. Para as autoras,
O modelo de negócio atual do rádio ainda é calcado em uma cadeia de valor analógica,
onde a produção de conteúdo, a administração da empresa, a comercialização da
publicidade e a transmissão da programação se dão como no século passado. As
tentativas de mudança acontecem de forma pontual, em um setor ou outro de algumas
empresas, mas ainda não há um entendimento de que é fundamental uma
reestruturação do que é hoje o negócio rádio (DEL BIANCO; PRATA, 2018, p.114-
115).
Neste cenário que evidencia uma dificuldade de adaptação a esse novo modelo, permite-
se afirmar que existem espaços em que podem ser observadas transformações a partir do
processo de migração das emissoras para FM. O Estado de Santa Catarina pode ser citado como
um exemplo. Para Zuculoto et al., em estudo realizado na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), é possível apontar algumas tendências no processo de migração ocorrido
naquele Estado:
No ano de 2011, é promulgada a Lei 12.485, conhecida como “Lei da TV Paga”, a qual
sinaliza mudanças para o esquema de produção audiovisual no país e afeta diretamente o
modelo de trabalho das produtoras, abrindo um novo espaço: a tela dos canais de televisão a
cabo.
Esse marco legal, em vigor desde setembro de 2011, regulamenta a entrada das
empresas de telefonia no setor de televisão a cabo e regula a veiculação de conteúdos
na TV por assinatura. Os mecanismos de fomento presentes no seu texto estabelecem
cotas para a produção independente e cotas de canais brasileiros no pacote das
operadoras. Ao promover o acesso à informação e dar voz a diferentes agentes, a “Lei
da TV Paga” tem como objetivos promover o interesse publico e regular o mercado
de TV por assinatura (LIMA, 2015, p.V).
A Lei, sancionada pela então Presidenta da República Dilma Roussef em setembro de
2011, proporciona uma reestruturação no mercado audiovisual, à medida que revoga a
legislação anterior, específica para televisão a cabo, e regulamenta em função do tipo de serviço
prestado, independentemente da tecnologia utilizada, englobando distribuição via satélite, cabo
e micro-ondas. Ao mesmo tempo, abre espaço à prestação deste tipo de serviço por empresas
do ramo de telecomunicações, tanto nacionais quanto estrangeiras, e ainda estipula cotas de
produtos nacionais a serem exibidos nos canais de acesso condicionado (serviço pago de
televisão), o que fortalece a produção de conteúdo por produtoras independentes.
A proposta foi uma resposta do Estado para romper a barreira do oligopólio, no ensejo
de estimular a concorrência, aumentar a oferta nacional de serviços de televisão por
assinatura e promover a expansão do mercado. Por outro lado, o Estado atua na
regulação do mercado audiovisual ao estimular a competição e fortalecer as atividades
de produção e programação das empresas brasileiras por meio de uma reserva de
mercado e políticas publicas para o setor.
(...) Para atingir esse objetivo, cria-se, entre outras coisas, uma reserva de mercado
para a produção e programação dos conteúdos exibidos pelos canais no horário nobre,
possibilitando surgir novos conteúdos nos canais já́ existentes e novos canais para
atender as exigências de empacotamento (distribuição do serviço). Assim, os canais
passam a ser obrigados a exibirem as obras produzidas por produtoras independentes.
Ao se estabelecer cotas mínimas de produção independente na TV por assinatura,
fomenta-se a formação de vínculos entre a produção independente e as programadoras
de TV por assinatura, o que permite a abertura de novas perspectivas para a
autossustentabilidade do setor (LIMA, 2015, p.2).
A produção audiovisual, a partir da mudança na legislação, encontra solo fértil para
crescer e se desenvolver. Este envolvimento dos canais de fora, que transmitem sua
programação no país, é um dos objetivos da “Lei da TV Paga” pois estes canais passam a
investir em produção nacional. Por exemplo, a receita que os canais recebem pela a venda de
“assinaturas” é reinvestido no país, por meio da realização de produtos audiovisuais para esses
mesmos canais.
Neste contexto, as séries de televisão passam a ser um dos principais produtos destes
canais, destacando-se produções como Magnífica 70,7 Sessão de Terapia8 e O Negócio9.
Contudo, a produção não se resume às séries já citadas, a cada ano novos títulos surgem, novos
canais de acesso condicionado apresentam produtos e inclusive a produção envolve plataformas
digitais, como é o caso da Netflix, com 3%10, produções associadas entre televisão aberta e por
cabo, como é o caso de A Garota da Moto11, parceria entre a FOX e o SBT; além da ocupação
de espaço na programação de canais públicos, como Baile de Máscaras12, produzida para a TV
Brasil. Tanto Baile de Máscaras quanto A Garota da Moto foram produzidas a partir de leis de
incentivo, com recursos do PRODAV (Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual
Brasileiro), envolvendo a participação de produtoras independentes. Em ambos os casos, trata-
se de produções veiculadas em canais de televisão aberta, o que evidencia o fato de que este
tipo de produto audiovisual ganha espaço, transpondo os limites dos canais a cabo. No caso de
A Garota da Moto, houve uma parceria entre um canal de televisão aberta (SBT), um canal de
televisão por cabo (FOX Brasil), uma produtora independente (Mixer) e a participação de
recursos públicos oriundos de lei de incentivo (PRODAV).
7
Série exibida originalmente pela HBO Brasil, entre 2015 e 2018. Fonte: www.imdb.com. Acesso em 30 Jun.
2021.
8
Série exibida originalmente pela GNT, entre 2012 e 2014. Fonte: www.imdb.com. Acesso em 30 Jun. 2021.
9
Série exibida originalmente pela HBO Brasil, a partir de 2013. Fonte: www.imdb.com. Acesso em 30 Jun. 2021.
10
Série exibida originalmente pela Netflix, a partir de 2016. Fonte: www.imdb.com. Acesso em 30 Jun. 2021.
11
Série exibida originalmente pelo SBT e pela FOX Brasil, entre 2016 e 2019. Fonte: www.imdb.com. Acesso em
30 Jun. 2021.
12
Série exibida originalmente pela TV Brasil, em 2019. Fonte: www.imdb.com. Acesso em 30 Jun. 2021.
A lei em questão foi um dos pontos de uma política que se inicia no começo do primeiro
governo Lula, em 2003, quando o Ministério da Cultura propõe uma visão do audiovisual como
uma cadeia produtiva, envolvendo diversos setores. Neste sentido, vislumbra-se novas
possibilidades para a Agência Nacional de Cinema (ANCINE), fundada em 2002, no governo
de Fernando Henrique Cardoso; para o Conselho Superior de Cinema, criado em 2001; e para
a Secretaria do Audiovisual (SAv), existente desde 1992.
Além desses programas, uma tentativa importante, que acabou por não se concretizar,
foi a proposta de transformação da ANCINE em ANCINAV – Agência Nacional do Cinema e
do Audiovisual, a qual abarcaria não apenas a regulação da atividade cinematográfica, mas
também de todo o audiovisual produzido no Brasil, o que incluiria a produção para televisão.
Esse projeto recebeu inúmeras críticas da grande mídia, que apontava possibilidades de
intervenção do Estado, associando à censura e autoritarismo (o que remete às investidas do
Mesmo com a derrota do governo, a ANCINE saiu fortalecida, passando atuar de forma
mais contundente no fomento à atividade audiovisual. Essa atuação se dá através da
administração do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), um fundo criado com o objetivo de
fomentar toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil. Ligado ao Fundo Nacional
de Cultura (FNC), o FSA foi instituído pela Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, e
regulamentado através do Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007.
5. CONCLUSÃO
Com relação aos três pontos principais, mencionados no início deste artigo, que se
sobressaíam como expectativas para o Governo Dilma, o processo de regulação econômica da
mídia não evoluiu. Houve um forte movimento dos meios tradicionais de comunicação,
apresentando críticas que relacionavam o projeto à tentativa de censura, com o objetivo de
contaminar a opinião pública.
(...) a proposta, ainda que analisada, não gerou uma consulta pública, nem, muito
menos, o envio de um projeto-de-lei ao Congresso Nacional. O ministério adotaria,
ao longo do governo Dilma, a estratégia de tratar os temas possíveis por portarias e
decretos e, eventualmente e de forma pontual, por lei. Ainda assim, o envio ao
Congresso Nacional do marco regulatório como um projeto-de-lei era a grande
expectativa da sociedade civil e mesmo de parte do setor da radiodifusão. O não envio
Ainda de acordo com Pieranti (2017), apesar de não haver encampado esse projeto, o
Ministério das Comunicações do Governo Dilma Roussef formulou e implementou políticas
públicas importantes no setor de radiodifusão. Com relação à radiodifusão, pode se afirmar que
ambos os meios (rádio e televisão) se beneficiaram das legislações, que permitiram avanços em
questões técnicas.
Curiosamente, mesmo tão combatido pela mídia tradicional – e talvez por isso – o
Governo Dilma Roussef foi responsável por importantes mudanças no setor de comunicação
do país.
REFERÊNCIAS
AIRES, Janaine e SANTOS, Suzy. Sempre foi pela família: mídias e políticas no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2017.
BRASIL. Senado Federal. O que é o Plano Nacional de Banda Larga. Brasília, 2014. Disponível
em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/08/14/o-que-e-o-programa-nacional-
de-banda-larga. Acesso em 30 Jun. 2021.
LIMA, Heverton Souza. A Lei da TV Paga: impactos no mercado audiovisual. 2015. 149 f.
Dissertação (Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicação e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), 2015.
RÁDIO FREI CANECA FM. Edital de apoio à ocupação da grade de programação da Frei
Caneca FM 2019-2020. Disponível em http://www.freicanecafm.org/sites/default/ files/inline-
files/Retificado%20-%20Edital%20de%20Ocupacao%20Frei%20Caneca%20-%202019-
2020.pdf. Acesso em 30 Jun. 2021.
RESUMO
O objetivo deste artigo é refletir sobre questões contemporâneas como moral, julgamento
moral, cinema e educação. Utilizamos trechos do filme O monstro (1994, Roberto Benigni),
como material de pesquisa, com o propósito de que o leitor possa refletir acerca de qual é sua
primeira percepção sobre um determinado fato narrado sob diferentes ângulos. O tipo de
pesquisa deste trabalho é documental, de abordagem qualitativa, e utiliza a técnica de análise
fílmica. A ideia aqui é exemplificar de como os nossos julgamentos morais podem, a partir de
situações fragmentadas do seu contexto, serem frágeis e superficiais. Destacamos a fase atual
dessa falta de cautela pelos sujeitos ao se expressarem nas redes sociais digitais.
INTRODUÇÃO
Muitas produções fílmicas trazem no roteiro os mais variados temas de ficção, mexem
com o nosso imaginário, com as nossas emoções. Em entrevista, Ismael Xavier, cita: “um
cinema que educa é aquele que (nos) faz pensar – e que (nos) faz pensar não somente sobre o
cinema em si mesmo, mas, igualmente, sobre as mais variadas experiências e questões que ele
coloca em foco” (2008, p. 14).
É nesse sentido que este trabalho se alicerça na seguinte problemática: de que forma o
cinema, por meio dos filmes, proporciona uma formação educativa a respeito de nossos
julgamentos morais? Para elucidar esse questionamento, o artigo utiliza trechos do filme O
Como base teórica de estudos traremos textos que fundamentam o campo dos conceitos
de aproximação de cinema e educação, visto que por meio das mensagens de filmes também
podemos discutir sobre o julgamento moral dos sujeitos a partir da interpretação de certas cenas.
O trabalho está estruturado da seguinte forma: uma revisão de literatura, para podermos
situar o leitor sobre os aspectos fundantes dos temas que serão debatidos; de forma breve, os
procedimentos metodológicos da pesquisa; a seguir, a descrição do filme O monstro, para que
o leitor entenda o aspecto geral da narrativa; prosseguindo com as análises das cenas
selecionadas, que chamaremos de cenas A e B divididas em três partes; e, por fim, as
considerações finais de modo a realizar um fechamento das ideias colocadas no presente texto.
REVISÃO DE LITERATURA
Existem estudos que mostram quais são as reações em nosso cérebro conforme o gênero
do filme, bem como, sinais emocionais produzidos pelo nosso corpo ao assistir determinados
conteúdos fílmicos. Para além de reações físicas, nos direcionamos a destacar algumas questões
de ordem mais psíquicas. Uma delas é sobre nosso pensamento.
É nesse sentido que se parte do pressuposto que muito do que pensamos está associado
às condições sociais em que estamos inseridos. Além disso, também se complementa as
questões de estímulos, como quais os repertórios culturais proporcionados para
desenvolver/ampliar o nosso conhecimento sobre as coisas.
No que refere ao conceito de moral, podemos mencionar o conceito exposto por Ives de
La Taille, que define “como conjunto de deveres corresponder àquela filosoficamente
dominante atualmente, e também àquela que costumamos adotar no dia a dia” (TAILLE, 2007,
p. 19). De forma resumida, podemos dizer que moral diz respeito a deveres.
Segundo Duarte (2009, p. 33), “o cinema tem a seu dispor infinitas possibilidades de
produzir significados”. Além disso, Bona (2021, p. 33), também coloca que o “cinema é um
dos diversos meios com poder de comunicar, de informar e de discutir determinados temas
pertinentes e atingir povos em todos os cantos do planeta”.
Com o avanço tecnológico, muitas pessoas tem um acesso mais viável a variados títulos
e gêneros do cinema. “Com o passar do tempo, o cinema passou a ser visto de forma mais
abrangente, saindo da fantasmagoria, da ficção e passando a retratar as questões sociais,
econômicas, políticas e culturais” (PIOVISAN; BARBOSA; COSTA). São muitos os filmes
que retratam problemas sociais, nos mais diferentes contextos, e que servem como subsídio
educativo e, esses vão desde o nacional Central do Brasil (1998, Walter Salles) ao premiado
com o Oscar, 12 anos de escravidão (2013, Steve McQueen), entre muitos outros. (BONA,
2021, p. 53).
Assim sendo, cabe a escola formar cidadãos críticos e reflexivos, cabe também ao
educador, independentemente do nível de ensino e da área que leciona, aproveitar-se da função
pedagógica do cinema e suas múltiplas possibilidades de utilização nos contextos escolares. A
construção da formação crítica do sujeito se dá quando ele não analisa superficialmente os fatos.
Nesse sentido, que trazemos a proposta neste trabalho que o leitor reflita sobre a mesma situação
vista a partir de duas narrativas, uma ação humana pessoal e outra impessoal, e a partir dessas,
o espectador que fará a sua interpretação, ou seja, o seu julgamento moral.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O motivo da escolha deste filme se dá por este trazer ao espectador duas versões, um
julgamento feito do outro, de forma fragmentada, e o outro, pelo lado do protagonista, de forma
mais contextualizada, sendo possível analisar de que forma nossos julgamentos podem ser
feitos a partir de uma ou de outra perspectiva.
Utilizamos a análise fílmica como técnica. Para Penafria (2009, p. 1), “analisar um filme
é sinônimo de decompor esse mesmo filme”. Ainda, segundo a autora, “o objectivo (sic) da
análise é, então, o de explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-
lhe uma interpretação” (PENAFRIA, 2009, p. 1).
O FILME: O MONSTRO
O filme O monstro (II monstro) dirigido por Roberto Benigni, também protagonizado
pelo mesmo, teve sua produção na Itália e França no ano 1994, e estreou em outubro
mundialmente, no mesmo ano. O idioma original é italiano e seu gênero perpassa entre
comédia, suspense/mistério e policial. A idade indicativa para o público espectador direciona-
se para maiores de 16 anos e tem duração de 112 minutos. Também faz parte do filme a atriz
Nicolleta Braschi que, após essa produção, também ficou conhecida por atuar junto a Benigni
em A vida é bela (1997, Roberto Benigni).
Na tentativa de pegar o suspeito em flagra a polícia coloca uma agente, a policial Jéssica
Rosseti (Nicolleta Braschi) próxima a ele para seduzi-lo. A agente Jéssica vai morar junto de
Lóris e passa nesse convívio a provoca-lo de maneira exagerada para que o mesmo perca o
controle e possa atacá-la sexualmente. Quem acompanha e orienta a agente é o analista em
psiquiatria criminal, senhor Taccone (Michael Blanck) na busca incessante de adquirir provas
para efetuar a prisão do, então, suspeito, por achar que entende a mente do criminoso.
O trecho do filme que nos referimos como cena 1 trata-se de quando o analista em
psiquiatria criminal convoca todas as agentes mulheres para apresentar e mostrar as filmagens,
gravando o suspeito Lóris num dia normal. Em cada sequência de sua fala o analista
complementa com a caracterização das atitudes do suposto criminoso. A cena 2, trata-se do
desfecho do filme, ou seja, qual foi o contexto que ocorreram na forma real.
Quem gosta de animais não vai ter como não expressar um sentimento de raiva ao
interpretar as imagens da cena A e ver a tamanha maldade feita por Lóris àquele gatinho
indefeso. Contudo, o contexto mostrado na cena B é de que quem anda maltratando os gatinhos
na vizinhança não é ele, e sim, algumas crianças levadas que moram em seu prédio. O que
chama atenção é o ângulo da câmera que estava filmando Lóris naquele momento para a cena
A, pois se estivesse do lado da rua em que ele espanta o gatinho já teria sido descartada a
possibilidade de ele ter feito aquela maldade com o bichinho. De acordo com Duarte (2009, p.
37), “o ângulo de filmagem é um componente importante desse sistema de significação”. Não
teria como acreditar em Lóris se não fossem pelas cenas que o filme traz a seu favor.
É de impressionar a sincronização que Lóris fez para ver as partes de baixo da saia da
mulher. Nesse sentido, demonstra que ele está há um tempo acompanhando a rotina dela para
saber exatamente a hora em que ela sai na sacada para cuidar de suas plantas. Entretanto, o
desfecho da cena B traz a situação por outro contexto, que é Lóris correndo de um credor por
não ter pagado uma compra, ou seja, deu calote se passando por morto. “A posição a partir da
qual se filma também produz significados” (DUARTE, 2009, p. 36). Nesse sentido, os ângulos
das cenas são as principais fontes de interpretação, já que cada uma tem uma “visão” diferente
sobre a mesma situação. A questão do julgamento nessas cenas é que pela perspectiva do que
narra o analista criminal. Certamente Lóris é um assassino atento aos detalhes. Entretanto, o
conteúdo que o analista vê, de forma fragmentada, induz a realmente acreditar que Lóris é o
criminoso.
Difícil não analisar que a expressão facial de Lóris ao acompanhar a moça recolher suas
hortaliças é, no mínimo, desrespeitosa. Ao ver as filmagens da cena A deduzimos tratar-se de
um homem tarado, não necessariamente um assassino de mulheres. Todavia, o que está em foco
é a captura de um ‘serial killer’ e ele é um dos suspeitos, ou seja, um sujeito muito perigoso
que anda matando mulheres na cidade. Ao realizar uma suposição que se ele, enquanto suspeito,
estivesse em uma delegacia prestando depoimento e fosse a sua versão narrada (cena B), com
certeza, seria difícil tomar a sua versão como verdadeira dos fatos.
Por isso, é importante que se tenha cautela ao realizar pré-julgamentos sobre outras
pessoas sem estar disposto a entender o contexto daquele que encontra-se numa situação que
moralmente não convém com seus princípios e valores. No caso em específico, trouxemos um
assunto bem polêmico por se tratar de um ‘serial killer’ e um filme indicativo para maiores de
16 anos; mas poderia ser pontuado outros exemplos e termos diferentes ângulos para a situação.
Há de se entender que o ditado “a justiça tarda mas não falha” se refere a todos os trâmites
jurídicos de dar ao investigado o direito a ampla defesa com a intenção de também ouvir aquele
que, de uma forma ou outra, já foi culpabilizado pelo ato.
No presente trabalho buscou-se trazer ao leitor uma reflexão acerca de qual é sua
primeira percepção sobre um determinado fato narrado utilizando-se de duas cenas de um
mesmo filme, vista por ângulos diferentes. Podemos dizer que o cinema, de forma geral, por
meio dos filmes proporciona uma formação educativa quando esses podem fazer com que o
espectador reflita sobre seus julgamentos morais.
A ideia deste texto foi apenas exemplificar de como os nossos julgamentos morais
podem, a partir de situações fragmentadas do seu contexto, serem frágeis e superficiais.
Atualmente, percebemos essa falta de cautela ao se expressar nas redes sociais digitais e,
particularmente, ao ver o número de compartilhamento das chamadas ‘fake news’, sem ao
menos, ter o cuidado de verificação da veracidade. Ainda mais, porque na maioria das vezes,
são narrativas falaciosas e caluniosas a respeito de órgãos ou pessoas.
REFERÊNCIAS
DURKHEIM, Émile. A educação moral. Trad. Raquel Weiss. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012.
FABRIS, E.H. Cinema e educação: um caminho metodológico. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 33, n. 1, p. 117-134, jan./jun. 2008.
FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Tradução Joice Elias Costa. 3 ed. Porto
Alegre: Artmed, 2009.
HOCHSPRUNG, J.; BONA, R. J. Cinema e educação na trilogia clássica dos filmes Star Wars.
In: ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO, 8., 2016, Curitiba. Anais
[...]. Curitiba: Enpecom/UFPR, p. 388-398, 2016. Disponível em:
https://publication/349124104. Acesso em: 14 jun. 2021.
O monstro. Direção: Roberto Benigni. Itália/França: Focus Filme, 1994, 112 min.
PIAGET, Jean. O juízo moral da criança. [tradução Elzon Lenardon]. 4ª ed. São Paulo:
Summus, [1932],1994.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 23. ed. rev. e atual. São
Paulo: Cortez, 2007.
TAILLE, Ives de La. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Dados eletrônicos. Porto
Alegre: Artmed, 2007.
XAVIER, Ismael. Um Cinema que “Educa” é um Cinema que (nos) Faz Pensar. [Entrevista
concedida a Revista Educação & Realidade]. Revista Educação & Realidade, p.13-20,
jan/jun. 2008.
RESUMO
O artigo discute a emergência e a consolidação do consumo musical em plataformas de
streaming, a partir das novas experiências que esse formato de circulação de música
proporciona aos artistas e ao público. Parte-se do pressuposto de que tais plataformas articulam
práticas de consumo individuais e coletivas, pois ao mesmo tempo em que permitem a criação
de listas musicais personalizadas, possibilitam também a construção de relações com outros
ouvintes, por meio de sistemas de recomendação musical e de redes sociais. Em um primeiro
momento, discutiremos o processo de construção dos gêneros musicais e as estratégias de
recomendação. Posteriormente, será abordado o crescimento dos serviços de streaming,
responsáveis por distribuir a música sem a necessidade do download de arquivos. Por fim,
analisa-se as ferramentas do Spotify, maior serviço de streaming musical do mundo. Com isso,
espera-se contribuir na compreensão das novas sensibilidades e práticas sociais engendradas
por essa modalidade de consumo da música.
INTRODUÇÃO
A prática cada vez mais disseminada de escutar música em qualquer lugar e a qualquer
momento, mesmo durante a realização de outras tarefas como trabalhar, estudar,
cozinhar ou dirigir – para citar apenas algumas – faz com que ouvir música seja um
comportamento emblemático do contemporâneo.
As discussões ora apresentadas são pontos que pretendemos debater nesse trabalho, a
partir da formação de gêneros musicais como orientação para o consumo, assim como entender
formas de distribuição da música em canais de streaming. Nesse sentido, o presente artigo
procura refletir como redes ou comunidades de música – utilizaremos aqui o Spotify como
exemplo - são ferramentas de compartilhamento e de interação no consumo musical.
A escolha pelo Spotify, como objeto de análise, decorre do fato de se tratar do maior
serviço de música por streaming do planeta, com 40 milhões de usuários em 57 países, entre
eles o Brasil. Além disso, está disponível tanto para computadores quanto em apps para
Android, iOS e Windows, permitindo sua utilização por um maior número de pessoas.
Para que possamos depreender a proposta acima, o trabalho será dividido em trêspartes:
num primeiro momento, discutiremos as dinâmicas da música popular massiva, apartir dos
gêneros musicais e as articulações que estabelecem entre si. O próximo ponto abordará o
consumo da música na modalidade streaming. Por último, será feita uma análise do aplicativo
Spotify e suas dinâmicas de recomendação musical. Como formade ilustrar esses fluxos da
música na contemporaneidade, recorreremos ao longo da nossa discussão à textos jornalísticos
que reforçam a forte presença das expressões musicais.
Para as pessoas que estudam gênero, as questões são retrospectivas: como essas
decisões foram tomadas, o que esses discos tinham que permitiu serem rotulados do
mesmo modo, o que eles têm em comum?As repostas são muito mais formais: blues
ou punk ou rock progressivo são descritos em termos da linguagem musical que eles
empregam, discos são excluídos de suas definições porque não se adaptam
tecnicamente – possuem a estrutura, batida ou orquestração erradas. (FRITH, 1998, p.
89).
Ao distinguirmos as regras que são trazidas à tona através de um horizonte de
expectativas dos gêneros musicais, cultivamos a possibilidade das perspectivas serem
confirmadas ou refutadas na elaboração de um produto associado a determinado gênero
musical. Ainda pensando nessa formatação e contextualização, faz-se necessário apontar um
dos fatos que mais chamou atenção para a compreensão e dinâmica dessa relação do surgimento
de estudo dos gêneros musicais. Janotti Jr. (2003) propõe uma estrutura para que se possa
entender o local do gênero musical na música popular massiva contemporânea:
Logo:
É necessário estar atento para o fato de que a ideia dos gêneros na música popular
massiva está ligada a processos de mediação presentes no consumo musical que se mostram
muito mais complexo do que a exploração comercial destes gêneros pelos meios de
comunicação e de entretenimento. É notório que delimitar uma ordem para o gênero musical é
estabelecer alguns parâmetros: questionar-se com que se parece determinado som e quem irá
comprar aquele tipo de música. Recorrendo à Janotti Jr (2003, p. 37), “todo gênero pressupõe
um consumidor em potencial. (...) Compreender aestética da música popular massiva é entender
também a linguagem, nas quais julgamentos de valor são articulados e expressos em que
situações sociais eles são apropriados”.
DO DOWNLOADO AO STREAMING
Logo, as novas tecnologias de comunicação estão cada vez mais imbricadas na forma
de pensarmos a política, a economia e a cultura, principalmente, em relação às expressões
musicais. Em meados de 2011, o financiamento coletivo - crowdfunding13 se firmou como uma
13
O objetivo central do é arrecadar capital para iniciativas de interesse coletivo através daagregação de múltiplas
fontes de financiamento, em geral na internet a intenção é viabilizar projetos culturais
É nessa perspectiva que os serviços de streaming (transmissão dos dados), lojas virtuais,
sistemas de recomendação, tornam-se ferramentas que propiciam distintas opções de consumo
de música, pensando nos diferentes estilos de consumidores. Vale ressaltar queessas dinâmicas
não invibializam a cultura do disco. Basta realizar uma busca na internet que encontramos lojas
e sebos online vendendo LPs, CDs e DVDs, fazendo comque todos possam de alguma maneira
desenvolver experiências com a música. No entanto, os sistemas de recomendação são fortes
influenciadores na cultura contemporânea. Simone Sá (2009, p. 1), em artigo publicado na
Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação / E-
compós, reflete sobretal realidade:
14
Rede que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital, além de serumcanal
que hospeda uma grande variedade de filmes, videoclipes e materiais caseiros.
É inegável que toda a cadeia de produção, circulação e consumo da música foi afetada
pelas tecnologias surgidas a partir da cibercultura. Para os produtores e músicos, o
avanço e barateamento dastecnologias de produção tornou possível a gravação de um
disco caseiro, feito inteiramente num home studio, com mais recursos e, ao mesmo
tempo gastos dez vezes menores do que os álbuns de Pink Floyd, Beatles ou Rolling
Stones da década de 70. Aliados ao desenvolvimento da rede internet, do MP3, de
programas de troca de música e de players, armazenamento e distribuição não são
mais problema, permitindo potencialmente, a aproximação de produtores e
consumidores.
Vale levar em consideração que existem ferramentas como Artist Program, que permite
que o artista receba um valor determinado quando qualquer usuário se associa em algumas das
plataformas de streaming por conta de sua obra. Um bom exemplodisso éa Rdio - que é uma
jukebox social com milhões de músicas para descobrir, tocar e compartilhar e que contribui
Ao todo são oito ferramentas que o Spotify concede aos seus ouvintes para que encontre
os artistas preferidos, as músicas mais tocadas, as recomendações de gêneros semelhantes e de
novos artistas. Todas elas apresentam vantagens e desvantagens. Um dos métodos de busca é o
separador de Artistas Relacionados, que tem como objetivo unir toda a rede de artistas, pela
qual podemos descobrir música e encontrar todos os artistas que tiverem alguma relação
musical. No entanto, essa ferramenta pode não funcionar totalmente, uma vez que as relações
feitas pelo programa podem não coincidir com o que procuramos.
A opção Seguidores, por sua vez, exibe as músicas que outros usuários estão escutando,
serve para descobrir novidades musicais e aumentar seu repertório. Nesse formatopodem ser
seguidos amigos, músicos, bandas, jornalistas, entre outros. Em Pesquisar por editora é
possível encontrar artistas associados a uma determinada gravadora, a exemplo da Universal,
da Sony Music e da Som Livre. O problema dessa ferramenta é que o usuário fica preso somente
em conhecer o que a editora produz. Por último, as Top Lists indicam quais os álbuns e quais
as músicas mais ouvidas no Spotify por país.Todavia, o que é sucesso em um país pode tornar-
se também no outro, principalmente, em relação à cultura pop.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após esse brevde debate, o que chama nossa atenção é a lógica de classificação desses
sistemas, a forma como eles contribuem para o consumo de música e como estabelecem
critérios para eleger as semelhanças musicais e vínculos entre os ouvintes.
É notório que recomendação sempre esteve presente no cotidiano das pessoas, indicação
de um disco, artista, de um filme feito através de um amigo, de um jornal, ou seja, sempre
existiu alguma forma de recomendação. No entanto, é em relação aos softwares que percebemos
que esta dinâmica vem modificando todo um consumo de produtos culturais, neste caso a
música. Sá (2009, p 7), diz que essa recomendação é feita:
REFERÊNCIAS
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/08/cresce-o-consumo-do-streaming-
servico-de-musicas-por-assinatura-na-internet-4223776.html>. Acesso em: 18/07/2014
CASTRO, Gisela G. S. . Música na era das tribos de ciberouvintes. Logos (Rio de Janeiro),
Rio de Janeiro, v. 22, p. 45-58, 2005
SILVEIRA, S. Pirataria no brasil deve cair com o crescimento do spotify, diz a empresa.
2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/07/1488339-pirataria-no-
brasil- deve-cair-com-o-crescimento-do-spotify-diz-empresa.shtml>. Acesso em: 08/07/2014
RESUMO
O artigo analisa a telenovela A Dona do Pedaço, exibida em 2019 pela Rede Globo, e elege
alguns expedientes tipicamente folhetinescos responsáveis pelo envolvimento sentimental do
telespectador, como a estratégia de recorrer a objetos afetivos, documentos secretos e memórias
afetivas para resolver um conflito instaurado na narrativa. Desse modo, o estudo confirma a
tese de que o gênero, ainda que passe por algumas reconfigurações típicas do cenário
perpassado por fluxos e trânsitos culturais, reafirma seus laços com a sua matriz cultural
folhetinesca.
INTRODUÇÃO
15
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
Parte do fascínio exercido por essa narrativa na sociedade está atrelada ao vínculo que
o gênero mantém com a tradição oral. Nesse sentido, a telenovela pode ser vista como uma
narrativa ancorada na presença de uma oralidade secundária, que se molda nos dispositivos
midiáticos responsáveis pela alimentação do imaginário social. O “folhetim eletrônico”, como
designa parcela significativa da crítica, tem mais de meio século de existência. Em termos
comerciais, essa narrativa consolidou-se no país como o gênero de ficção seriada mais
importante da televisão brasileira, sobretudo pelo fato de responder pela larga margem de lucro
obtida por meio da exportação de roteiros e do próprio produto. Assim, ao observar essa
peculiaridade do gênero, é preciso situá-lo no contexto marcado pela preponderância de uma
cultura imagética e da consolidação da indústria cultural.
Em termos gerais, essa narrativa apresenta uma fórmula herdada da longa tradição de
contar histórias, além da assimilação de técnicas de narrativas massivas oriundas do folhetim,
Como destaca Meyer (2005), o papel ocupado pelo folhetim no jornal se reconfigurou:
De modo mais pontual, os folhetins passaram a empregar vários recursos para garantir
o sucesso de vendas, dentre eles, o suspense e a redundância. O primeiro tinha como marca
principal o emprego do gancho como estratégia responsável por envolver sentimentalmente o
leitor no enredo, despertando-lhe o interesse em continuar lendo a continuação da história
publicada de forma parcelada; o segundo, por sua vez, consistia no emprego de aspectos
redundantes, responsáveis pela recapitulação da trama pelo receptor.
No campo técnico, por exemplo, essa telenovela contou com um bom número de
gravações externas. Outra renovação implementada relaciona-se à mudança de linguagem, que
abandonou os traços notoriamente melodramáticos para incorporar uma linguagem mais
coloquial. A partir dessas inovações, o gênero adquiriu uma nova roupagem. Desse modo,
temáticas relacionadas à política e à revolução de costumes passaram a ser incluídas nas
narrativas teleficcionais numa clara alusão ao sentido de propagar a imagem de um país que se
modernizava e que abandonava sua vocação meramente agrária. Ademais, vinculada ao
processo de transmutação da linguagem, a telenovela passou por várias etapas até sua
configuração atual, marcada pela preservação da estrutura folhetinesca e por mecanismos de
renovações temáticas acentuadas pela incorporação de nuances contemporâneas sob a forte
imposição de um modelo industrial responsável pelo sucesso comercial do gênero.
Escrita por Walcyr Carrasco, com direção artística de Amora Mautner, a telenovela A
Dona do Pedaço foi exibida em 2019 pela Rede Globo de Comunicação no horário das 21
horas. Em termos gerais, essa narrativa audiovisual comprovou que o receptor, mesmo inserido
num cenário de grandes mutações culturais, ainda consome a produção televisual, embora não
precise esperar mais para ter acesso aos capítulos diários. Dessa forma, a potencialidade
mostrada pelo gênero contraria os prognósticos pessimistas de parcela da crítica, que anuncia a
Divulgada como uma narrativa criada para destacar o empoderamento feminino, A Dona
do Pedaço abordou a trajetória da personagem Maria da Paz, interpretada pela atriz Juliana
Paes. Personagem humilde, a jovem moradora da cidade fictícia de Rio Vermelho, localizada
no Espírito Santo, integra uma família de matadores profissionais e acaba se apaixonando pelo
jovem Amadeu, interpretado por Marcos Palmeira, membro da família rival. Pela apresentação
inicial, já se percebe claramente a típica base folhetinesca centrada numa relação amorosa
impossível, de modo que a preservação dessa característica pode ser explicada pelo processo
de sincronização de linguagem desencadeado pelo avanço técnico responsável pela migração,
extinção e reconfiguração de gêneros.
A protagonista resolve preparar o bolo de aniversário que aprendeu com a avó, Dulce,
interpretada por Fernanda Montenegro. fizeram na festa de aniversário de Vivi e Fabiana
quando eram crianças. Quando provou o bolo, a jurada se lembrou de cenas da infância:
Vivi: - Eu lembro. Minha mãe, minha irmã.... Eu não posso continuar. Estou muito
emocionada. Eu não posso continuar. Me ajudem, eu estou sem ar. Eu tenho que sair
daqui. Me ajudem (GSHOW, 2019).
Após passar mal, a jurada procura Maria da Paz:
Vivi: - Ontem, quando você fez o bolo de aniversário, eu botei na boca, eu senti um
gosto de infância.
Maria da Paz: - Gosto de infância?
Vivi: - Veio a recordação de um aniversário, há tanto, tanto tempo atrás. Dizem que
o sabor de um doce que a gente comeu quando criança traz de volta aquele sentimento
de afeto, de amor, que a gente sentia quando criança. E seu bolo de aniversário me fez
ser menina de novo.
Maria da Paz: - Eu estou emocionada, mas não entendo. Aquela foi uma receita que
minha avó me ensinou. Eu fazia nos aniversários da minha família (GSHOW, 2019).
O trecho fortemente perpassado pelo tom melodramático, além de revelar a plasticidade
da estrutura típica da trama seriada incorporada pelas narrativas audiovisuais, apresenta a
projeção de sentimentos, responsável por difundir uma visão esquemática em que a integração
sentimental do público, sob certa capa da modernidade, é estimulada por valores maniqueístas
com a finalidade de obter índices de audiências mais expressivos.
Fabiana: - Que é isso? Vai entrando, como se fosse sua casa? Marcou hora? Não
marcou, se tivesse marcado eu saberia. Faça o favor. Se quer falar comigo, saia daqui
e marque hora, Maria da Paz.
Maria da Paz: - Não vou marcar hora na minha própria fábrica.
Fabiana: - Sua fábrica, ainda continua com essa ilusão?
Maria da Paz: - A Bolos da Paz é minha, Fabiana. E eu achei o documento que me
devolve a posse da fábrica (GSHOW, 2019).
Sobressaem, na cena descrita, mais uma vez, aspectos tipicamente perpassados pela
presença de aspectos folhetinescos acentuados pelo tom melodramático da cena, que se reveste
de significados maniqueístas, sobretudo por sinalizar a reviravolta na trama, reverberando a
vitória do bem em detrimento do mal. Como se pode perceber, em A Dona do Pedaço, as
situações melodramáticas aliadas à estrutura folhetinesca foram os ingredientes responsáveis
para atingir o público, alimentando suas projeções e reafirmando valores considerados éticos
envoltos numa verdadeira pedagogia sentimental em que broches, documentos secretos e
memórias afetivas foram expedientes empregados para contar a história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa peculiaridade, pode-se dizer, torna o gênero tão singular no Brasil. Com efeito, a
narrativa televisual tornou-se uma poderosa narrativa de entretenimento e reflexão sobre os
dilemas enfrentados pela sociedade, sobretudo por contar com elementos que instauram o
sentido de pertencimento e de participação do sujeito. A partir de sua origem folhetinesca e
mecanismos de transformação ao longo dos tempos, o gênero ganhou fôlego na cultura
Se não há mais a necessidade de se reunir em torno dos serões de leitura para ter um
momento de devaneio, os tempos notoriamente perpassados pela globalização e seus meandros
típicos do cenário caracterizado pela convergência midiática apontam perspectivas inovadoras
sobre a veiculação de histórias. Vista dessa forma, a telenovela apresenta-se sob certa capa da
modernidade mesclada a nuances melodramáticas e expediente tipicamente folhetinescos para
continuar envolvendo o público nos novelos da teleficção. Ainda que passe por algumas
reconfigurações típicas da cena contemporânea, o folhetim eletrônico reafirma sua vitalidade,
dando provas de que as presunções pessimistas que anunciam sua morte estão equivocadas.
Ademais, enquanto a chama da necessidade de acesso à ficção se mantiver viva no ideário da
sociedade, o gênero continuará envolvendo o telespectador.
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas cidades, 2003.
HAMBURGER. Esther. Telenovelas e Interpretações do Brasil. Lua Nova, São Paulo, 82, p.
61-86, 2011.
HUMMELL, Rosita; ALVETTI, Celina. Apontamentos sobre a imagem da vilania: uma leitura
do horário nobre. Revista Estudos de Comunicação. Curitiba, v. 8, n. 17, p. 255-261, set./dez.
2007.
MACHADO, Arlindo. A Televisão levada a sério. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
RESUMO
Esta pesquisa apresenta o diretor de cinema Billy Wilder, através de características
significativas de sua trajetória, e promove reflexões sobre o processo de construção fílmica
empregado pelo cineasta na película Irma La Douce (1962). Inicialmente, buscaremos
descortinar uma delimitação do conceito de herói empregado neste estudo, e, na sequência,
desenvolveremos uma análise fílmica da construção narrativa encontrada na referida obra.
Assim, analisando como o arquétipo do herói está presente em Irma La Douce, buscaremos
também refletir a respeito de aspectos relacionados às articulações do roteiro, às possibilidades
advindas do perfil construtor das personagens principais, à arquitetura dos cenários principais,
aos elementos simbólicos da fotografia proposta, bem como à montagem estabelecida e ao
direcionamento do olhar do espectador.
O HERÓI
A origem dos heróis nas narrativas mistura-se com a origem dos mitos. Dario de Barros
Carvalho Junior (2002) lembra que, na Grécia Antiga, os mitos eram representados por
narrativas que contavam histórias repletas de criaturas maravilhosas.
Analisando o herói sobre um viés histórico, Hook propõe uma distinção entre o herói
Mais do que um ser humano extraordinário, por seus feitos, um herói representa um
padrão de valor, tem a capacidade de satisfazer à necessidade (ou necessidades) de
um povo, encarnando os valores que simboliza. É ou se torna, de maneira
emblemática, uma soma de aspirações de um indivíduo, de uma sociedade, de uma
época. (JUNIOR, 2002, p. 06)
Para Joseph Campbell (1990), um herói ou uma heroína é alguém que descobriu ou
realizou alguma coisa além do nível normal de realização ou de experiência. Normalmente, sua
façanha convencional, ou seja, o início do seu trabalho se daria com a perda ou falta de alguma
coisa entre suas experiências normais. Assim, esse ser parte numa série de aventuras que
ultrapassa seu usual e perfaz um círculo entre partida, descoberta de algum elixir da vida e
retorno. Ele deixa o mundo onde está e se encaminha em direção de algo mais profundo, mais
distante, mais alto: tenta atingir aquilo que faltava em sua consciência. “O herói se sacrifica
por algo e ai está a moralidade da coisa.” (CAMPBELL, 1990, p.135)
Campbell estabelece duas espécies de heróis. A primeira delas trata daqueles que
escolhem realizar certa empreitada, se preparam responsavelmente e intencionalmente para a
proeza. A segunda diz respeito àqueles que são lançados à aventura. Não era sua intenção, mas,
de repente, eles se veem jogados naquela situação. O autor afirma que, independentemente das
inúmeras diferenças entre os heróis, sua jornada sofre poucas alterações do ponto de vista
físico/estrutural.
Aqui, temos o destaque para o herói dinâmico, ou seja, aquele que não está ligado a um
destes mundos, demonstrando a possibilidade de transpor essas fronteiras. Yuri Lotman dialoga
com esta proposta, informando que “A estrutura do mundo apresenta-se ao herói como um
sistema de proibições, uma hierarquia de fronteiras que não se pode transpor. Isto pode tanto
ser a linha que separa a casa da floresta, no conto de fadas, como os vivos dos mortos, no
mito”. (LOTMAN, 1978: 118)
Tentando fugir do governo de Hitler, Wilder mudou-se para a França em 1933. Lá,
apesar de ele ter trabalhado como ghost writer, também conseguiu a oportunidade de realizar
seu primeiro filme como diretor: Mauvaise graine. A obra foi co-dirigida por Alexander Esway.
Com a iminência da Segunda Guerra Mundial, ele e outros artistas e técnicos da UFA
resolveram sair da Europa e buscar um local de trabalho mais seguro nos Estados Unidos.
Não comecei com idéias extravagantes, projetos revolucionários, como provar que
Griffith estava errado ou que eu iria fazer melhor que Eisenstein e Pudovkin. Não.
Unicamente queria escrever um roteirozinho e dirigi-lo. Pois, quando terminava um
roteiro ficava muito curioso para saber o que iria acontecer.16
Muitos foram os cineastas e artistas que contribuíram para o desenvolvimento de Billy
Wilder enquanto diretor e para o aprimoramento de sua narrativa cinematográfica. Todavia,
entre eles, destacaram-se dois: o alemão de origem judaica Ernst Lubisch e o norte-americano
Howard Hawks. O primeiro era considerado por Wilder como o melhor roteirista que ele havia
conhecido. Já o segundo, era uma espécie de bom “engenheiro” ou “relojoeiro” da arte
cinematográfica.
Depois de se consolidar como roteirista e diretor, o novo desafio de Wilder foi tornar-
se produtor. Através desta ação, desejava ter um controle ainda maior da sua obra, visando
garantir que todos os processos seguiriam a risca aquilo que foi escrito, pensado e planejado
ainda no roteiro e na pré-produção. Para ele, tornar-se produtor não representava simplesmente
ter poder, mas sim, a garantia de levar para o cinema, da maneira mais fiel possível, as histórias
que ele havia imaginado anteriormente. Seu primeiro filme como produtor foi A montanha dos
sete abutres (Ace in the hole / The big carnival, 1951).
Como grande parte dos diretores, o estilo de Billy Wilder foi sendo aprimorado ao longo
de sua carreira, trafegando e entrecruzando diversos gêneros do cinema e combinando
estratégias narrativas que pudessem satisfazer, ao mesmo tempo, a crítica e o público. “A obra
de Billy Wilder traz as principais contradições entre objeto artístico e mercadoria de consumo.
(...) Inteligente, sofisticado, elegante, cínico, irônico e mordaz são alguns dos adjetivos
comumente relacionados ao cinema feito por Wilder”. (ANDRADE, 2004, p. 31).
16
Cf. CIMENT. Hollywood – Entrevistas, p. 60 apud ANDRADE, 2004, p. 37.
Desejando explicitar um pouco deste desejo de Billy Wilder, optamos pela escolha de
Irma La Douce para esta análise. No filme, de 1962, o cineasta conseguiu a oportunidade de
roteirizar, produzir e dirigir. Dessa maneira, acreditamos que, aqui, ele pode canalizar suas
forças no sentido deixar o filme bem próximo daquilo que havia visualizado/aspirado
anteriormente.
A arquitetura desses cenários é pensada para uma íntima aproximação entre eles.
O Mercado Lês Halles é onde boa parte dos clientes das poules trabalham. A rua
Casanova é o espaço de trânsito de mercadorias transportadas por estes trabalhadores até o
mercado e, ao mesmo tempo, local de exposição das poules. Na mesma rua, encontramos o
Hotel Casanova – local de atendimento individualizado de Irma La Douce e, do outro lado da
rua, o bistrô/bar Ches Moustache. Este último cenário será fundamental para diversas trocas e
cenas de ação propostas pela narrativa.
A trama começa na rua Casanova, onde a protagonista Irma, interpretada pela atriz
Shirley MacLaine, é apresentada buscando a sua sobrevivência. A fotografia de perspectiva
clássica trabalha afunilando o espaço exibido, ou seja, saindo de um enquadramento mais
aberto, como um plano geral, que mostra boa parte da rua, para aproximar-se, fechando o
enquadramento e destacando Irma. Diferente das demais poules, ela está sozinha, do lado direito
da porta de entrada do Hotel Casanova, seu “escritório” de trabalho.
Rompendo a piada inicial com um fade preto, o diretor passa a nos apresentar Paris, às
5h da manhã, a partir da voz de um narrador em off e das imagens de alguns pontos turísticos
da capital francesa – todos eles quase desertos. Todavia, num tom de conversa amigável,
rapidamente, esse narrador vai reconduz o espectador para os cenários-base do filme. Ele aponta
para uma contradição positiva desses cenários-base, através do convite: “Se querem ação,
esqueçam os bairros chiques. É melhor virem para o nosso bairro”.17
O narrador em off ainda é utilizado por Wilder para duas funções. A primeira delas
trata-se de apresentar ao espectador os principais cenários da obra, em especial, o atacado de
alimentos Lês Halles (onde nossa protagonista teria nascido), e o curioso Bistrô/bar Ches
Moustache. A segunda função diz respeito à apresentação dos três tipos mais representativos
de personagens que figuram por aquelas bandas: as poules (prostitutas como Irma La Douce),
os macs (protetores e exploradores da poules, como Hippolyte – o Cavalo) e os flics (policiais
como sargento corrupto). A coexistência entre essa tríade de tipos era pacífica, desde que os
acordos econômicos fossem cumpridos, ou seja, as poules entregam o que ganham para os
macs, estes as protegem e repassam uma parte do que ganham para os flics corruptos, que, por
sua vez, fazem vista grossa aos fatos. Para o narrador em off, esse sistema amigável e delicado,
17
Retirado da fala do narrador em off no filme Irma La Douce
O Bar Ches Moustache é um local estratégico para o filme. A direção de arte chama a
atenção por manter o espaço sempre bem iluminado e colorido, sem falar na grande quantidade
de fumaça cotidianamente presente – simulando o uso dos cigarros e charutos. No bar, as poules
tomam seu café da manhã, e as principais disputas e brigas acontecem. Apesar de Billy Wilder
não apreciar o gênero de western americano, poderíamos propor uma analogia entre Ches
Moustache e aqueles saloons do velho oeste – locais de perigo e muita ação.
Além do bom atendimento, o senhor Moustache irá oferecer algo a mais para Patou: o
conhecimento sobre campos até então inexplorados pelo jovem policial. Desde o
posicionamento inicial e em um crescente dentro da narrativa, Moustache vai se tornando uma
espécie de arquétipo mentor para Nestor Patou, tentando orientá-lo e provê-lo de instrumentos
para suportar ou ultrapassar os obstáculos de sua jornada como herói.
Durante esta fase inicial, o soldado Patou se mostra um personagem reto, ou seja,
inflexível em suas convicções. Ele é o policial-exemplo: ganha medalha por salvar crianças do
afogamento, faz questão de pagar a maçã que colhe da banca do mercado; não bebe em serviço
e nem fora dele; não aceita qualquer ilegalidade e sabe mais das regras e leis do que o próprio
atendente da delegacia de polícia.
Mas antes de continuarmos, propomos um rápido flashback para explicitarmos uma das
cenas mais engraçadas do filme. Trata-se da prisão das poules. Depois de entender que o
delegado estava querendo suborná-lo e de colocar todas as moças no camburão da polícia, o
soldado Patou também entra na parte de trás do veículo. A ingenuidade de nosso herói é
escancarada na cena. A falta de habilidade no trato com as poules fica explícita rapidamente.
Primeiro, ele tenta desviar o olhar das moças ainda sem roupas, logo depois, cede ao pedido de
ajuda de duas poules ao mesmo tempo, fechando o zíper de uma e segurando um pequeno
espelho de outra. Aliás, nesta obra, Billy Wilder se utiliza de vários espelhos em momentos-
chave para a narrativa. Aqui, o espelho acaba caindo e obrigando ao gentil soldado a tentar
resgatá-lo no piso do camburão. A partir daí, com nosso herói cercado por pernas femininas, a
confusão está formada. Percebendo sua ingenuidade, as poules se insinuam para ele, contam
piadinhas e chegam a tratá-lo como criança, propondo música uma música característica e até
bigodinho de lápis no rosto do policial. Nem o motorista do veículo resiste a brincadeira e quase
causa uma batida.
Após esta dinâmica inicial e a perda do cargo, Billy Wilder mostra Nestor Patou
desamparado, caminhando, sem o seu uniforme, em uma noite de chuva pela rua Casanova. Por
mais inesperado que pareça, é exatamente lá que Wilder vai colocar, novamente, este
personagem. Evidencia-se um enorme contraste entre a postura da chegada de Patou, como
policial naquele lugar, no início do dia, e sua postura neste momento da narrativa. A chuva
contínua e as zombarias das poules de plantão contribuem ainda mais para reforçar o momento
ruim para o personagem.
18
Retirado da fala de Moustache no filme Irma La Douce
Após uma briga histórica e um tanto coreografada entre Nestor e Cavalo, na qual não
percebemos qualquer esboço de participação das várias outras pessoas presentes no
estabelecimento, nosso herói acaba vencendo de forma cinematográfica. Poderíamos fazer uma
analogia desta cena à passagem bíblica que se refere a Davi e Golias. O único detalhe seria a
substituição da pedra pela bola de sinuca que, no filme, não é jogada contra a cabeça do gigante,
mas, colocada dentro da boca do mesmo. Irma, que até então praticamente nem olhava para
Nestor, agora, é mostrada, em close, ou seja, bem mais próxima, esboçando um sorriso que é
direto para nosso destemido herói. Depois de assumir a nova postura, e de ganhar o respeito
dos demais mecs e poules, “o Tigre” esbanja auto-confiança ao sugerir que Irma o acompanhe
para algum local mais agitado: “Este lugar está ficando muito chato” 19
O apartamento simples de Irma vai conduzir Nestor Patou para um novo desafio. Dessa
vez, o obstáculo para vencer é algo mais íntimo: a própria timidez. Primeiro, ele resolve fazer
uma cortina de jornais para os grandes vidros da varanda. Logo depois, tenta prolongar ao
máximo o tempo gasto em suas ações, a fim de atrasar sua ida para cama, onde está Irma. Como
se não bastasse, pede para a mesma colocar o tapa-olhos e ainda leva a cadelinha Coquette –
fiel companheira da poule – para fora do quarto. Tentando se defender da situação de tanto
acabrunhamento, Nestor vai resgatar uma das falas de seu mentor a respeito das contradições
entre o amor e o ódio. Na cena, Billy Wilder se utiliza de um adereço revelador: um espelho
em formato circular e de tamanho médio que mostra ao espectador o reflexo de Irma se despindo
em frente a Nestor.
Após a noite, Wilder brinca com o espectador, deixando o casal acordar apenas às quatro
da tarde. Para completar a piada, agora, quem utiliza o tapa-olho é Nestor. A harmonia do novo
19
Retirado da fala de Nestor Patou no filme Irma La Douce
Um momento simbólico, que demonstra de forma sensível o carinho de Nestor por Irma,
se apresenta quando ele acha um binóculos no armário da poule e aponta o mesmo, do lado
contrário, para Irma, que está tomando banho. Com a imagem distanciada da moça, e boa parte
da tela em preto, simulando o halo de visão do aparelho, Nestor argumenta que ninguém nunca
a teria visto assim. Aqui, Wilder coloca seu personagem expressando uma mensagem
aparentemente simples e direta para nos comunicar um sentido bem mais profundo. Trata-se da
forma romântica e interior que aquele personagem visualiza Irma. Depois de ouvir a defesa da
profissão de poule pela moça, Nestor acaba aceitando a oferta dela para se tornar seu novo mec.
Quando os demais macs e poules ficam sabendo da nova galinha dos ovos de ouro de
Irma, instantaneamente, Tigre é promovido a presidente da Associação Protetora dos Mecs,
devendo pagar a festa de comemoração e novos tributos. Assim, para manter economicamente
a farsa e continuar impedindo Irma de se encontrar com mais homens, Nestor é obrigado a
enfrentar outra jornada de trabalho, escondido de Irma, no atacado de alimentos Les Halles.
A dupla jornada castiga nosso herói. Como Lorde X, ele começa a se atrapalhar na
constituição do personagem, chegando a colocar, no lado errado do rosto, o tapa-olho, num dos
encontros com Irma. Todavia, como Tigre, a situação é bem mais complicada. A poule começa
a desconfiar da fidelidade de Nestor. Primeiro porque ele já não consegue ânimo para dar-lhe a
atenção costumeira, depois, ele acaba esquecendo uma marca de batom no rosto. Wilder brinca
com Tigre, uma vez que a marca foi feita pela própria Irma, todavia, não em Nestor, mas no
Lorde X. Irma acredita que o atrevimento tenha sido obra da poule Lolita. Tudo acaba em outra
briga, agora de mulheres, no Ches Moustache. A fotografia da parte final da cena se apresenta
com uma característica diferente: a câmera fica em Tigre, acompanhando seu olhar para o que
estaria acontecendo e o espectador não consegue ver tal ação. Há uma construção imagética
desta ação através dos sons e das expressões de Nestor.
O jeito difícil de Nestor para evitar a vida fácil de Irma vai se complicando a vida do
casal a cada dia. Aos poucos, a poule se aproxima e se familiariza com Lorde X, buscando,
inclusive, ajudá-lo em seus problemas de “meio homem”. Para isso, ela contribui com a criação
de uma cena bem engraçada, transformando o quarto de hotel em uma espécie de consultório
de psicologia e adotando uma postura que deixaria qualquer Freud com inveja. O Lorde X é
convidado a viajar até o sensual mundo das odaliscas e da dança dos sete véus. Qual nobre
inglês resistiria a tanto charme? Com tamanha proximidade, Irma decide que vai embora com
o Lorde para seu castelo.
Outra cena engraçada escrita por Billy Wilder trata-se da busca dos policiais no
apartamento de Irma. Eles olham por tantos os cantos, mas não percebem que Nestor agora é,
novamente, um deles. Wilder ainda enfatiza a brincadeira com um dos soldados, colocando este
último e Nestor (vestido de policial), olhando, ao mesmo tempo, embaixo da cama. Em um
recorte espacial muito curto, o policial figurante olha para o outro afirmando: “Não está aqui
embaixo”. Nestor responde com as mesmas palavras. A câmera, também posicionada no chão,
contribui para que a brincadeira com a polícia seja ainda mais cômica.
Depois que os policiais saem do apartamento, Nestor declara novamente seu amor por
Irma, defendendo a possibilidade de um milagre acontecer e retornando, contraditoriamente, ao
pensamento de “pequeno-burgues” questionado por Moustache (e também pelo próprio Billy
Wilder) no início da trama. Acreditamos que a defesa de uma cerimônia formal, com tudo o
que sonha (ou sonhava naquela época) boa parte das mulheres, não é o problema. Ao nosso
olhar, a contradição trata-se da postura novamente muito reta/rígida de Nestor, na separação
entre bom e ruim, apresentada pelo personagem na fala: “Quando conheci você, era uma mulher
da vida, agora, vai ser uma esposa e mãe. Isso não é um milagre”? Poderíamos questionar
sobre um resquício de Código Hays em 1962?
Como na maioria das comédias clássicas, ainda falta o tradicional final feliz. Neste caso,
o casamento de Nestor e Irma. Novamente, o senhor Moustache é figura fundamental para o
acontecimento. Ele teria preparado toda a cerimônia, convidado todos os amigos do casal e
ainda entra com a noiva na igreja. Observando o atraso do pupilo, ele inclusive diz que, na pior
das hipóteses, poderia se casar com ela. Dedicado mentor, não?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Boa parte dos filmes de Billy Wilder busca impacto, leveza e redenção. Acreditamos
que, em Irma La Douce, ele tenha conseguido tais aspectos importantes e muitos outros. Pensar
o herói nesta obra não é, e nem pode ser, isolar Nestor Patou. Acreditamos que, aqui, o trabalho
de equipe foi fundamental para obtenção do resultado positivo. Entre os personagens, três deles
se destacam para a constituição deste herói: o próprio Patou (que enfrentará uma dezena de
obstáculos na luta pelo amor de Irma); a poule Irma (que levará Nestor até o encontro com o
20
Retirado da fala de Moustache no filme Irma La Douce
Estudar uma partícula do cinema de Billy Wilder foi uma experiência extremamente
importante não apenas para a construção de um possível diálogo com nosso objeto de estudo
no curso de doutorado, mas, principalmente, para adentramos em uma cinematografia rica e
com aspectos diferenciais daqueles filmes também considerados clássicos e também
direcionados para um grande público, mas limitados pelo raso aprofundamento. Através de
Irma La Douce, evidenciamos uma forma de fazer cinema que pode sim, buscar o sucesso de
mercado, mas, ao mesmo tempo, apresentar o requinte e as sutilezas de amarração que
contribuem para sua inegável aprovação também pela crítica.
REFERÊNCIAS
ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa, Portugal: Texto e Grafia,
2004.
CAPUZZO, Heitor. Cinema: a aventura do sonho. São Paulo: Editora Nacional, 1986.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
LOTMAN, Yuri. Estética e semiótica do cinema. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa, 1978.
Sites consultados
Filmografia
IRMA La Douce (vídeo). Direção, roteiro e produção de Billy Wilder. Estados Unidos, 1962.
1 DVD (120 min.), sonoro, colorido.
RESUMO
Este texto tem por objetivo analisar como é construída a representação online do Canadá pelas
imigrantes brasileiras residentes no país. Aciono uma combinação de metodologias, tais como
a análise textual e visual de blogs, canais de YouTube e contas do Instagram, etnografia
multissituada no Brasil e no Canadá, etnografia virtual e entrevistas semiestruturadas, para
evidenciar que a representação online do Canadá é sempre positiva e romantizada. No decorrer
deste texto, portanto, discorro o que significa, para essas imigrantes, uma produção online ser
romantizada e quais são as suas características.
INTRODUÇÃO
Em uma postagem de 2016, uma imigrante brasileira escreveu em seu blog que
muitos(as) brasileiros(as) entravam em contato com ela para dizer que estavam cansados(as) de
morar no Brasil. Os principais pontos abordados eram a falta de segurança, a corrupção e o alto
custo para uma baixa qualidade de vida. Com links para reportagens exaltando os pontos
positivos de morar no Canadá e mostrando o país como um lugar onde os(as) brasileiros(as)
enriquecem e vivem maravilhosamente bem, a publicação versou sobre as dificuldades que
os(as) imigrantes se deparam quando chegam ao país, a saber: a língua, a concorrência por uma
21
Este texto faz parte da minha pesquisa de doutorado que teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2016/03629-5 e do Projeto Temático FAPESP Observatório das
Migrações em São Paulo: Migrações Internas e Internacionais Contemporâneas no Estado de São Paulo,
processo nº 2014/04850-1, ao qual meu projeto de pesquisa esteve vinculado. Também obtive apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
– e do Emerging Leaders in the Americas Program (ELAP) – reference number 166764. Realizar pesquisas em
contextos internacionais é um trabalho extremamente dispendioso, que só foi possível com o apoio desses apoios
e financiamentos.
Esse é um post comum em blogs dessa natureza. Sempre que leio esse tipo de
publicação, no entanto, questiono-me se ele realmente desanimaria alguém a migrar para o
Canadá. Ao comparar a corrupção e a insegurança no Brasil – que meus(minhas)
interlocutores(as) mobilizaram nos discursos – com esses pontos negativos, tenho a sensação
de que o post estaria mais incentivando os(as) brasileiros(as) a migrar do que os(as)
desanimando. A linguagem utilizada pela comunidade brasileira na internet ao produzir o
conteúdo sobre migração para o Canadá contempla publicações pouco agressivas ou
desconfortáveis. Tal linguagem favorece discussões mais amenas, pouco densas,
emocionalmente não pesadas ou agressivas. Até os pontos negativos elencados trazem uma
visão otimista do processo migratório e, não de forma inesperada, a blogueira, ao final, afirma
que é muito bom morar no Canadá.
A escolha dessas três mídias sociais23 se justifica, pois foram as mais utilizadas pelos(as)
meus(minhas) interlocutores(as) no processo migratório, tanto para conseguir informações
quanto para produzir o conteúdo online. As imagens apresentadas aqui foram modificadas ou
produzidas por mim para preservar meu(minha) interlocutor(a) e servem para ilustrar essa
linguagem romantizada na rede. Por meio delas, podemos observar as cores das fotografias e
de fundo, disposição das imagens, tamanho da letra e do texto, iluminação, corporalidades e
ângulos que estão presentes nesse discurso online.
Uma página comum de um blog sobre migração brasileira para o Canadá pode ser
visualmente exemplifica na Figura 1. Nela, podemos perceber que o fundo claro, o título e
alguns subtítulos coloridos, a imagem da blogueira em branco e preto e o uso de fotografias de
paisagens do país compõem um tipo de blog que tem um viés mais comercial, artístico ou
profissional. Destaco a composição da fotografia em que se observa uma montanha com cores
vivas ou mais saturadas, alto contraste e em um plano aberto.24 Esse tipo de imagem, em
consonância com a estética do blog, evidencia os aspectos positivos, belos e agradáveis da
experiência migratória.
22
Apesar da crítica, inclusive pela própria Hine (AMARAL, 2010), utilizo esse termo porque ainda estamos
tateando várias metodologias em um campo que está se consolidando (PELÚCIO, 2015), a partir de várias práticas
etnográficas online e multissituadas (HINE, 2009).
23
Faço uma discussão mais detalhada sobre o conceito de mídias sociais no artigo “Os usos das mídias sociais
pelas imigrantes brasileiras no Canadá” (SEGA, 2021, no prelo).
24
Plano aberto é o plano fotográfico que mostra uma visão panorâmica daquilo que se propõe fotografar e tem a
intenção de evidenciar o todo do ambiente ou de uma paisagem.
Eu: Mas você tem uma noção de quem é o seu público? Ou para quem, pelo menos,
você direciona sua fala?
Mariana: Tenho. [...] Eu sei que é mais mulher do que homem. Que o [Google]
analitycs te conta tudo, né? [...] por causa das inscrições, do perfil da pessoa. [...]
Depende do tipo de vídeo que eu tô fazendo, eu vejo que o canal começa a cair. Cair
inscrição, cair visualização. Aí, você já vê que você tá indo para o caminho errado.
Eu: Como assim?
Mariana: Sério! Ó, vamos supor, um vídeo que não dá muito view [é] se eu falo do
meu cabelo ou alguma coisa. Por quê? Porque eu sei que o meu público vem para o
meu canal por causa de Canadá. Então, eu mesclo com algumas coisas também que
eu gosto de falar, mas você tem que focar em Canadá. Só que, por outro lado, muita
gente pergunta: “Ah, Mariana, por que que você não pôs [o nome do canal no YouTube
de] ‘Mari no Canadá’? Alguma coisa com Canadá”. Porque eu sei que [...] o tipo de
inscrito que eu tenho, ele é volátil, porque, depois que a pessoa chega aqui e começa
a vida dela, ela para de me consumir, consumir meu vídeo. Então, é um público com
data de validade.
Mariana é do interior de São Paulo. Nossa primeira entrevista foi no começo de 2017,
quando ela estava no Canadá há doze meses. Aos 31 e casada há seis anos, mantinha um canal
Eu: Mas eu posso dizer que [...] você coloca fotos mais românticas do Canadá?
Mariana: Sim.
Eu: Não românticas, mas mais romantizadas.
Mariana: Sim... mais artísticas, sabe? Umas fotos... Tipo: hoje, eu coloquei de um
pôr do sol maravilhoso, assistir o nascer do sol... É, tem umas fotos mais artísticas.
[...] É, são mais... Ah, tem muito gato. Mais fotos de Toronto [...] Aí, às vezes, eu boto
foto engraçada, de viagem... Mais foto artística. Tipo assim: eu fiz uma foto, pus um
filtro, aí, põe uma mensagem, uma legenda; tipo os produtos que eu tô usando agora
no inverno, aí, eu faço mais alguma coisa mais... eu fiz com fundo invisível, peguei
um papel, aí, você faz... Sabe? Com...
Eu: Ah, tá... É branco, né?
Mariana: Sim.
25
Essas plataformas são explicadas com maior aprofundamento no Capítulo 3 da minha tese de doutorado (SEGA,
2020).
Figura 2 – Ilustração de uma postagem no Instagram de uma blogueira em meio à plantação de abóboras
no outono canadense
Algumas publicações assumem um viés cômico, de rir quando algo dá errado, mas,
ainda assim, tais publicações só são feitas depois que a situação chegou ao fim. Além disso,
trata-se, sempre, de um engraçado ingênuo, que faz piada de uma queda sofrida na neve, da
dificuldade que é arrumar os filhos para sair no inverno ou do gasto extra no mercado devido à
confusão na identificação dos preços. Ou seja, uma visão alegre e leve.
A esse respeito, outra imigrante, Paula, 39 anos, proveniente da cidade de São Paulo,
produtora de conteúdo de um famoso blog sobre a experiência de morar no Canadá, contou-me
que, apesar de também participar ativamente dessa comunidade brasileira online, sentia-se
desconfortável pelo modo como algumas postagens eram escritas. Segundo a blogueira, ela
quase nunca entrava com o seu perfil pessoal em outros blogs para criticar ou discordar, mas,
Paula: [...] não sei qual vai ser teu foco, tipo, dessa meio síndrome brasileira de vira
lata, de falar que tudo no Brasil é uma bosta e tudo que é daqui é maravilhoso. [...]
[mas] Elas tinham ido pro Brasil e [diziam] que se incomodavam porque o discurso
brasileiro era super preconceituoso... e que, aqui, as pessoas eram super abertas, eram
super incríveis e que só comiam morango silvestres todo dia e, do tipo: se eu vou na
escola do meu filho, a mulher... Eu já me voluntariei aqui e tem criança que leva
Mcdonalds frio para comer no lanche da escola, sabe? Tipo, essa coisa do idealizar
me incomoda muito.
Eu: Sim, sim. Você acha que os blogs que fazem mais sucesso são esses mais
idealizados?
Paula: Super! Que vende o sonho, né?
Paula deixou claro que a linguagem utilizada nas mídias sociais é idealizada. Sua fala
sugere que as pessoas que migram para o Canadá estão preocupadas em sair do Brasil,
abandonar o país e os aspectos ruins que elas observam, como insegurança, corrupção e custo
de vida alto com baixa qualidade de vida, exatamente como afirmou a famosa blogueira no
começo deste texto. A comparação com o Brasil, portanto, é inevitável e também é o que move
essas postagens, o que dá visualizações e likes. “É o que vende o sonho”.
Além disso, Paula atentou-se ao fato de que esse conteúdo é também feito para um
público consumidor ávido por sair do Brasil, mas que nunca vai imigrar de fato, embora se
encante com essa possibilidade; leitores(as) que querem sair do Brasil e acompanham essa vida
idealizada e romantizada vendida online:
Eu: E você acha que as pessoas que mais leem os blogs, elas estão aqui no Canadá
ou estão no Brasil?
Paula: Eu acho que tem uma rixinha [risos], tipo, tem uma panela internética... É
que eu acho que, nesses últimos dois anos, a internet também mudou muito por
causa dos canais do YouTube, sabe?
Eu: Sim. Sim.
Paula: Mas eu acho que o cara que sonha tem uma coisa muito aspiracional, do cara
que quer fazer o movimento e que nunca vai fazer. [...] Tem muita gente que me
escreve que fala assim: “Meu, não tenho coragem de fazer o que você fez, mas era
meu sonho”.
Eu: Entendi. Você acha que é mais algo conectado ao Brasil, então, mais uma
ansiedade de querer sair do Brasil do que de fato pensar no Canadá? Está muito
conectado...
Paula: Às vezes eu acho. As pessoas também não são bestas, né? Do tipo: quem
entra em contato comigo tem um tipo de afinidade com o meu tom. Se as pessoas
me perguntam coisas que são muito específicas, eu me faço super disponível,
principalmente se tem criança, está com alguma dúvida que eu sei que a experiência
que eu tive vai fazer diferença; eu marco Skype, dou meu telefone... de boa, sabe?
Mas eu não respondo pergunta random que tem em qualquer fórum. Eu tento não
responder coisa que eu vejo que tem uma provocaçãozinha também, porque rola... E,
para mim, no final, o legado do blog é que eu realmente senti que eu não estava
louca.
Eu: Mas porque você sentia que você estava louca?
Paula: Ah, porque eu olhava esse povo aqui falando no Canadá, que [o país] coloca
um tapete vermelho para você e... “Os meus filhos comem vitamina de morango no
café da manhã todos os dias” e... Aquela coisa meio, “Ai...”. Aqui tem um [post]
A Figura 3 apresenta uma colagem feita por mim para representar uma conta do
Instagram. Os sorrisos, as paisagens naturais, os animais de estimação e as fotografias de
crianças compõem a cena. As imagens em tons mais claros, coloridos ou tons pasteis, a
claridade nas fotografias e frases motivacionais – na nona foto lê-se a palavra “inspire” (cognata
ao português) em uma pedra – materializam, na rede, a experiência migratória canadense. O
visual não é agressivo e materializa essa visão bela, agradável, familiar e idealizada. Bebês, por
exemplo, demandam muito cuidado, atenção, e podem trazer estafa para quem está encarregado
de sua educação. Bebês sujos, que choram, gritam ou fazem birra não é algo incomum no
cotidiano da maternidade, mas o é nas mídias sociais. Quando ocorre, a imagem vem
acompanhada de um texto ou um vídeo com tom engraçado, editado depois que o bebê chorou
ou fez birra, por exemplo, e um discurso de que “na hora foi ruim, mas agora é risível”.
Experiências cotidianas com sujeira, falta de controle, cansaço ou desentendimentos são
trazidas à tona sempre com um viés final esperançoso, depois que já se passaram por elas, que
a sujeira foi limpa.
Paula: “Tenho que concordar que o outono é a estação mais fotogênica do hemisfério
norte”. Putz. “A luz linda, os contrastes, as cores são deslumbrantes, e há todo aquele
charme bucólico daqueles filmes Meg Ryan andando pelo Central Park”, tipo, ah,
meu filho... é óbvio [risos].
Eu: Mas quem escreveu isso?
Paula: Eu escrevi. “O outono também marca a minha chegada em [nome da cidade
do interior do Canadá]: há um ano eu desembarcava aqui de mala e cuia. Foi
impossível selecionar essas fotos sem pensar nesse último ciclo, então, eu quero
aproveitar esse post para saber se tem muita gente que visita o blog e quer novidades,
mas ainda não consegui escrever sobre esse primeiro ano aqui. Não tem sido fácil,
mas uma hora sai”, porque as pessoas queriam saber, né? “Obrigada pelo carinho e
tal”. Aí, eu mandei minilegendinhas assim: “Setembro é volta às aulas”; “Rolê de
bike”... e é muito bonito mesmo o outono aqui.
Esse momento da entrevista com Paula foi muito rico, pois a blogueira se insere nesse
processo de romantização online do Canadá e também faz a crítica, inclusive a si mesma, da
maneira como a experiência migrante é traduzida nas mídias sociais. Enquanto lia suas
postagens para mim, Paula, ao mesmo tempo, concordava com elas (“e é muito bonito mesmo
o outono aqui”) e criticava essa visão com risos e expressões de descrédito (“Putz” e “ah, meu
filho... é óbvio”). Essa experiência dela de releitura e reflexão sobre seus escritos, que
presenciei, foi importante, pois pude recuperar as incoerências do cotidiano imigrante por meio
da crítica que ela fazia ao seu próprio texto.
Tanto o texto quanto a estética visual do post se apresentavam para mim, leitor, coerente.
A postagem acompanhava fotos do final da tarde e folhas amarelas, marrons e vermelhas caídas
ao chão. A própria foto do perfil da imigrante tinha uma cor mais amarelada, manipulada
digitalmente, que parecia ter sido tirada ao pôr do sol. Palavras como “charme bucólico”, “cores
[...] deslumbrantes”, “luz linda” ajudavam a compor essa estética fílmica. A imigrante
evidenciou várias vezes como o Canadá parece um lugar ficcional nas produções online,
citando, inclusive, um filme da atriz Meg Ryan, famosa por atuar em filmes românticos da
década de 90, como em Feitos Um Para O Outro (Figura 4). A alusão a esse filme também se
conecta pela sua estética bucólica e romântica. Seus rastros incoerentes foram apagados na
tradução da experiência do universo online, mas foram recuperados na releitura dessas
postagens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
26
Disponível em: https://filmow.com/harry-sally-feitos-um-para-o-outro-t2738/. Acesso em: 09 maio 2020.
HIRAI, Shinji. ¡Sigue los símbolos del terruño!: etnografía multilocal y migración
transnacional. In: Ariza, Marina; Velasco, Laura (orgs). Métodos cualitativos y su aplicación
empírica: por los caminos de la investigación sobre migración internacional. México: UNAM
- Colégio de la Frontera, p. 353-384, 2012.
HOOKWAY, Nicholas. Entering the blogosphere: some strategies for using blogs in social
research. Qualitative research, v. 8, n. 1, p. 91-113, 2008.
MARCUS, George E. Ethnography In/of the World System: The Emergence of Multi-sited
Ethnography. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 95–117, 1995.
SEGA, Rodrigo Fessel. Os usos das mídias sociais pelas imigrantes brasileiras no Canadá.
Revista Eletrônica Interações Sociais, Rio Grande, v. 5, n. 1. 2021. No prelo.
SEGA, Rodrigo Fessel. Produções ciborgues: imigrantes brasileiras & mídias sociais no
Canadá. Tese (Doutorado em Sociologia) –, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, IFCH,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.
TRAMMELL, Kaye D.; KESHELASHVILI, Ana. Examining the new influencers: A self-
presentation study of A-list blogs. Journalism & Mass Communication Quarterly, v. 82, n.
4, p. 968-982, 2005.