Caty
Caty
Caty
homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde,
telefones etc.; algo mais também do que uma mera constelação de instituições e dispositivos
administrativos — tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários civis de vários tipos.
Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos
e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras
palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está
envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e
particularmente da natureza humana.
A cidade, como Oswald Spengler observou recentemente, tem sua cultura própria: “A
cidade é, para o homem civilizado, o que é a casa para o camponês. Assim como a casa tem
seus deuses lares, também a cidade tem sua divindade protetora, seu santo local. A cidade,
humana, a cidade”.2
Até o presente, a Antropologia, a ciência do homem, tem-se preocupado principalmente
com o estudo dos povos primitivos. Mas o homem civilizado é um objeto de investigação
igualmente interessante, e ao mesmo tempo sua vida é mais aberta à observação e ao estudo.
A vida e a cultura urbanas são mais variadas, sutis e complicadas, mas os motivos
fundamentais são os mesmos nos dois casos. Os mesmos pacientes métodos de observação
despendidos por antropólogos tais como Boas e Lowie no estudo da vida e maneiras do índio
norte-americano deveriam ser empregados ainda com maior sucesso na investigação dos
costumes, crenças, práticas sociais, e concepções gerais de vida que prevalecem em Little
Italy, ou no baixo North Side de Chicago, ou no registro dos folkways mais sofisticados dos
habitantes de Greenwich Village e da vizinhança de Washington Square em Nova York.
programa para o estudo da vida urbana: sua organização física, suas ocupações e sua cultura.
estiverem em jogo. É difícil enganar uma vizinhança a respeito de seus próprios interesses. 3
A vizinhança existe sem organização formal. A sociedade de aperfeiçoamento local é
uma estrutura erigida nas bases da organização de vizinhança espontânea e existe com o
propósito de dar expressão ao sentimento local face a assuntos de interesse local.
Sob as complexas influências da vida de cidade, o que se pode chamar de sentimento
normal de vizinhança tem sofrido muitas mudanças curiosas e interessantes, tendo produzido
muitos tipos inusitados de comunidades locais. Mais do que isso, existem vizinhanças
nascentes e vizinhanças em processo de dissolução. Considere-se, por exemplo, a Quinta
Avenida em Nova York, que provavelmente nunca teve uma associação de aperfeiçoamento,
e comparem-na com a Rua 135 no Bronx (onde a população negra está provavelmente mais
concentrada do que em qualquer outro ponto do mundo), que rapidamente se transforma
numa comunidade muito intensa e altamente organizada.
Na história de Nova York a significância do nome Harlem vem mudando do alemão para o
irlandês, para o judeu e para o negro. Dessas mudanças a última se processou de modo bem
mais rápido. Através da América de côr, de Massachusetts ao Mississípi, e atravessando o
continente até Los Angeles e Seattle, seu nome, que nos últimos quinze anos raramente se
ouvia, representa agora a metrópole negra. De fato, o Harlem é a grande Meca para o
gozador, o curioso, o aventureiro, o empreendedor, o ambicioso e o talentoso do mundo
negro; pois seu atrativo já atingiu todas as ilhas do mar das Antilhas, tendo penetrado mesmo
na África.4
É importante saber quais são as forças que tendem a dissolver as tensões, os interesses e os
sentimentos que conferem às vizinhanças seu caráter individual. Em geral, pode-se dizer que
sejam tudo e qualquer coisa que tenda a deixar a população instável, a dividir e concentrar
atenções sobre objetos de interesse amplamente separados.
Que parte da população é flutuante?
De que elementos, isto é, raças, classes etc. se compõe essa população?
Quantas pessoas moram em hotéis, apartamentos ou casas alugadas?
Quantas pessoas possuem casa própria?
Que proporção da população é constituída por nômades, biscateiros e ciganos?
Por outro lado, certas vizinhanças urbanas sofrem de isolamento. Em diferentes épocas
têm sido feitos esforços no sentido de reconstituir e dinamizar a vida nas vizinhanças
citadinas e de colocá-las em contato com os interesses mais amplos da comunidade. Este é,
em parte, o propósito dos domicílios sociais. Estas e outras organizações, que tentam
reconstituir a vida da cidade, têm desenvolvido certos métodos e uma técnica de estímulo e
controle das comunidades locais. Em conexão com a investigação de tais agências, devemos
estudar estes métodos e técnicas, uma vez que somente o método pelo qual os objetos são
controláveis praticamente revela sua natureza essencial, o que vale dizer, seu caráter
previsível (Gesetzmässigkeit).5
Em muitas das cidades européias, e até certo ponto nos EUA, a reconstituição da vida
citadina levou até a edificação de subúrbios ajardinados, ou à substituição de habitações
insalubres e decadentes por edifícios-modelo de propriedade e controle da municipalidade.
Em cidades americanas tem-se tentado renovar vizinhanças ruins pela construção de pátios
de recreio e pela introdução da prática supervisionada de esportes de vários tipos, inclusive
bailes municipais em salões de bailes municipais. Estas e outras atitudes, destinadas em
primeiro lugar a elevar o tom moral das populações segregadas das grandes cidades, devem
ser estudadas em conexão com a investigação da vizinhança em geral. Devem, em suma, ser
estudadas não apenas em seu próprio benefício, mas pelo que nos podem revelar do
comportamento humano e da natureza humana em geral.
Colônias e áreas segregadas. — No meio citadino, a vizinhança tende a perder muito da
significância que possui em formas de sociedade mais simples e primitivas. A facilidade de
meios de comunicação e transporte, que possibilita aos indivíduos distribuir sua atenção e
viver ao mesmo tempo em vários mundos diferentes, tende a destruir a permanência e a
intimidade da vizinhança. Por outro lado, o isolamento das colônias raciais e de imigrantes
nos assim chamados guetos e as áreas de segregação populacional tendem a preservar e, onde
exista preconceito racial, a intensificar a intimidade e solidariedade dos grupos locais e de
vizinhança. Onde indivíduos da mesma raça ou da mesma vocação vivem juntos em grupos
segregados, o sentimento de vizinhança tende a se fundir com antagonismos de raça e
interesses de classe. Distâncias física e sentimental reforçam uma à outra, e as influências da
distribuição local da população participam com as influências de classe e raça na evolução da
organização social. Toda cidade grande tem suas colônias raciais, tais como as
Chinatowns de São Francisco e Nova York, a Little Sicily de Chicago, e vários outros tipos
menos pronunciados. Em acréscimo a estas, a maioria das cidades tem seus distritos de vício
segregados, tais como o que até recentemente existiu em Chicago, seus pontos de encontro
para criminosos da vários tipos. Toda cidade grande tem seus subúrbios ocupacionais, como
os Stockyards em Chicago, e seus quistos residenciais, como Brookline em Boston, a assim
chamada Gold Coast em Chicago, Green Wich Village em Nova York, cada um com o
tamanho e caráter de uma aldeia, vila ou cidade completamente separadas, exceto quanto à
população que é de tipo seleto. A mais notável destas cidades dentro de cidades, sendo sua
característica mais interessante o fato de ser composta por pessoas da mesma raça, ou por
pessoas de raças diferentes, mas da mesma classe social, é sem dúvida East London, com
uma população de 2.000.000 de trabalhadores.
O povo da East London original agora extravasou e atravessou o Lea, e se espalhou por
sobre os pântanos e brejos abaixo. Esta população criou novas cidades que eram
anteriormente vilas rurais. West Ham, com uma população de cêrca de 300.000 habitantes;
East Ham, com 90.000; Stratford, com suas “filhas”, 150.000; e outras “aldeias”
similarmente supercrescidas. Incluindo estas novas populações temos um agregado de
aproximadamente 2 milhões de pessoas. A população é maior que a de Berlim, Viena, S.
Petersburgo ou Filadélfia.
É uma cidade cheia de igrejas e templos, entretanto não há catedrais, nem anglicanas, nem
romanas; tem um número suficiente de escolas primárias, mas não tem escolas públicas ou
ginásios, e não tem faculdades para educação superior nem universidade alguma; todo
mundo lê jornais, entretanto não existe um jornal de East London à exceção dos de gênero
menor e local. . . Nunca se vê nas ruas alguma carruagem particular; não há bairro elegante
algum. . . Não se encontram senhoras nas artérias principais. Gente, lojas, casas, transportes
— tudo marcado com o inconfundível selo da classe trabalhadora.
Talvez o mais estranho de tudo é que, numa cidade de dois milhões de pessoas, não há
Classes vocacionais e tipos vocacionais. — O velho adágio que descreve a cidade como o
ambiente natural do homem livre ainda permanece válido na medida em que o indivíduo
encontra nas possibilidades, na diversidade de interesses e tarefas, e na vasta cooperação
inconsciente da vida citadina a oportunidade de escolher sua vocação própria e de
desenvolver seus talentos individuais peculiares. A cidade oferece um mercado para os
talentos específicos dos indivíduos. A competição pessoal tende a selecionar para cada tarefa
específica o indivíduo mais adequado para desempenhá-la.
A diferença de talentos naturais em homens diferentes é, na verdade, muito menor do que
podemos achar; e os gênios muito diferentes que surgem para distinguir os homens de
profissões diferentes, quando desenvolvidos até a maturidade, não são em muitas ocasiões
tanto a causa, mas o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as pessoas mais
dessemelhantes, entre um filósofo e um porteiro comum de rua, por exemplo, parece surgir
não tanto da natureza, mas do hábito, costume e educação. Quando vêm ao mundo, e durante
os primeiros seis ou oito anos de sua existência, eles eram talvez bastante semelhantes, e
tampouco seus pais ou companheiros de folguedo poderiam perceber qualquer diferença
notável. Por volta dessa idade, ou logo depois, vieram a ser empregados em ocupações
diferentes. A diferença de talentos veio então a ser notada, e se amplia por
graus, até que finalmente a vaidade do filósofo não deseja reconhecer praticamente
semelhança alguma. Mas sem a disposição para o escambo, troca ou câmbio, todo homem
deve ter buscado para si tudo o que era necessário e conveniente para a vida que desejava.
Todos devem ter tido os mesmos deveres a desempenhar, e o mesmo trabalho a fazer, e não
poderia ter havido tal diferença de emprego que pudesse sozinha dar ocasião a qualquer
grande diferença de talento...
Sendo o poder de troca o que dá ocasião à divisão do trabalho, a extensão dessa divisão
deve estar sempre limitada pela extensão daquele poder ou, em outras palavras, pela extensão
do mercado. . . Há certas atividades que, mesmo no seu gênero mais rudimentar, em lugar
O efeito dessa expansão do que se chama poder judicial tem sido produzir uma mudança
não apenas na diretriz política fundamental da lei, mas no caráter e posição dos tribunais.
Os tribunais de juventude e moral ilustram uma mudança que talvez esteja ocorrendo em
outro lugar. Nestes tribunais os juízes assumiram algo nas funções dos oficiais
administrativos, consistindo seus deveres menos na interpretação da lei do que em
prescrever remédios e dar conselhos com a intenção de reencaminhar a seu lugar normal na
sociedade os delinqüentes trazidos à sua frente.
Uma tendência similar de dar aos juízes ampla discrição e impor-lhes uma
responsabilidade adicional é manifesta nos tribunais que têm de dar com casos técnicos do
mundo dos negócios, e no aumento da popularidade de comissões nas quais se combinam
funções administrativas e judiciais como, por exemplo, a Comissão de Comércio
Interestadual.
A fim de interpretar de modo fundamental os fatos referentes ao controle social, é
importante começar-se com uma concepção clara da natureza da ação corporativa.
A ação corporativa começa quando há algum tipo de comunicação entre os indivíduos que
constituem um grupo. A comunicação pode ocorrer em diferentes níveis; isto é, as sugestões
podem ser emitidas e respondidas nos níveis instintivo, sensomotor ou ideomotor. O
mecanismo da comunicação é muito sutil, tão sutil, na verdade, que várias vezes é difícil
conceber como as sugestões são transportadas de uma mente a outra. Isso não implica que
haja qualquer forma de consciência, qualquer sentimento especial de parentesco ou
consciência de espécie, necessários para explicar a ação corporativa.
Na verdade, foi recentemente demonstrado que no caso de certas sociedades altamente
organizadas e estáticas, como a da bastante conhecida formiga, provavelmente nada do que
se chamaria comunicação ocorre.
É um fato bastante conhecido que se uma formiga for retirada de um formigueiro e mais
tarde for recolocada ela não será atacada, enquanto uma formiga que pertença a outro
formigueiro será quase invariavelmente atacada. Tem sido costumeiro usar-se para a
descrição desse fato as palavras memória, inimizade, amizade. Agora Bethe fez o seguinte
experimento. Colocou uma formiga nos líquidos (sangue e linfa) extraídos dos corpos de
companheiros de formigueiro, sendo então recolocada em seu formigueiro, sem que houvesse
sido atacada. Colocada então no líquido tirado de moradores de um formigueiro
“hostil”, foi imediatamente atacada e morta. 13
Outro exemplo do modo pelo qual as formigas se comunicam ilustrará quão simples e
automática a comunicação se pode tornar no nível instintivo.
Uma formiga, quando pela primeira vez toma uma direção nova ao sair do formigueiro,
volta sempre pelo mesmo caminho. Isso demonstra que algum rastro deve ser deixado atrás
para seguir como guia de volta ao formigueiro. Se uma formiga ao retornar por esse caminho
não traz nenhuma presa, Bethe descobriu que nenhuma outra formiga tenta essa direção. Mas
se ela traz de volta mel ou açúcar, outras formigas certamente tentarão o caminho. E, por
isso, algo das substâncias carregadas por este caminho pelas formigas deve permanecer no
caminho. Essas substâncias devem ser suficientemente fortes para afetar as formigas
quimicamente.14
O fato importante é que por meio desse artifício comparativamente simples a ação
corporativa se torna possível.
Os indivíduos não só reagem um em relação ao outro dessa maneira reflexa, mas
inevitavelmente comunicam seus sentimentos, atitudes e excitações orgânicas, e assim
fazendo necessariamente reagem não apenas ao que cada indivíduo efetivamente faz, mas ao
que ele pretende, deseja ou espera fazer. O fato de que os indivíduos traem outros
sentimentos e atitudes dos quais eles mesmos apenas obscuramente são conscientes,
possibilita o indivíduo A, por exemplo, a agir em função de motivos e tensões de B no
momento, ou mesmo antes, de B ser capaz de fazê-lo. Ainda, A pode agir sobre as sugestões
que emanam de B sem que ele mesmo esteja claramente cônscio da fonte de que surgem suas
motivações. As reações que controlam indivíduos unidos em um processo sócio-psicológico
podem ser a tal ponto sutis e íntimas.
É sobre a base desse tipo de controle instintivo e espontâneo que qualquer tipo de controle
mais formal se deve fundar a fim de ser efetivo.
As mudanças na forma de controle social podem ser agrupadas para fins de investigação
sob os títulos gerais:
1. A substituição do costume pela lei positiva e a extensão do controle municipal a
atividades até então deixadas à discrição e iniciativa individuais.
2. A disposição dos juízes dos tribunais municipais e criminais para assumirem função
administrativa de tal forma que a administração da lei criminal deixa de ser uma mera
aplicação do ritual social e se torna uma aplicação de métodos racionais e técnicos, que
requerem conhecimento ou conselho especializado, a fim de se reencaminhar o indivíduo à
sociedade e reparar o mal que sua delinqüência causou.
3. As mudanças e divergências nos mores de diferentes grupos segregados e isolados na
cidade. Quais são, por exemplo, os mores da vendedora de loja?; do imigrante?; do político?;
e do agitador trabalhista?
O objetivo dessas investigações deveria ser não apenas distinguir as causas dessas
mudanças, a direção em que seguem, mas também as forças capazes de minimizá-las ou
neutralizá-las. Por exemplo, é importante saber se os motivos que atualmente multiplicam as
restrições positivas à vontade individual irão necessariamente tão longe neste país quanto já
foram na Alemanha. Ocasionaram elas, eventualmente, uma condição próxima do
socialismo?
Vício comercializado e tráfico de bebidas. — O controle social sob as condições da vida
citadina talvez possa ser melhor estudado nas suas tentativas de eliminar o vício e de
controlar o tráfico de bebidas.
O bar e os estabelecimentos de vício surgiram como um meio de explorar os instintos e
apetites fundamentais da natureza humana. Isto torna interessantes e importantes como
objetos de investigação os esforços realizados para regulamentar e suprimir essas formas de
exploração e tráfico.
Uma investigação desse tipo deveria basear-se no estudo exaustivo: 1) da natureza humana
sobre a qual se erigiu o comércio; 2) das condições sociais que tendem a converter apetites
normais em vícios sociais; 3) dos efeitos práticos dos esforços de limitação, controle e
eliminação do tráfico do vício e para acabar com o uso e venda de bebidas.
Entre as coisas que desejaríamos saber estão:
Até que ponto o apetite para o estímulo alcoólico é uma disposição pré-natal?
Até que ponto tal apetite pode ser transferido de uma para outra forma de estímulo, isto é,
do uísque para a cocaína etc.?
Até que ponto é possível substituir estímulos patológicos e viciosos por estímulos
normais e saudáveis?
Quais são os efeitos sociais e morais da bebida em segredo?
Quando se estabelece o tabu cedo na vida, ele tem o efeito de idealizar os prazeres da
satisfação do vício? Isso acontece em alguns casos e em outros não? Se assim é, quais as
circunstâncias que contribuem para isso? As pessoas perdem repentinamente o gosto por
bebidas e outros estímulos? Quais são as condições em que isso acontece?
Muitas destas perguntas podem ser respondidas apenas por um estudo de experiências
individuais. Indubitavelmente os vícios, como certas formas de doença, têm sua história
natural. Podem, portanto, ser considerados como entidades independentes que encontram seu
habitat no meio urbano, são estimulados por certas condições, inibidos por outras, mas
exibem invariavelmente, através de todas as mudanças, um caráter que é típico.
Em seus primeiros dias, o movimento de temperança tinha algo do caráter de uma
campanha religiosa, e os efeitos eram altamente pitorescos. Nos últimos anos, os líderes
desenvolveram uma estratégia mais estudada, mas a luta contra o tráfico de bebidas ainda
tem todas as características de um grande movimento popular, um movimento que, tendo
inicialmente conquistado os distritos rurais, está agora procurando impor-se nas cidades.
Por outro lado, a cruzada contra o vício começou na cidade, de onde, na verdade, o vício
comercializado é originário. A simples discussão em público sobre este assunto significou
uma enorme mudança nos mores sexuais. É significativo o fato de coincidir este movimento,
em toda parte, com a ascensão das mulheres e uma liberdade maior na indústria, nas
profissões e nos partidos políticos.
Há condições peculiares à vida das grandes cidades (referidas sob o título “Mobilidade da
População das Grandes Cidades”) que tornam o controle do vício especialmente difícil. Por
exemplo, cruzadas e movimentos geralmente não têm no meio citadino o mesmo sucesso que
alcançam em comunidades menores e menos heterogêneas. Quais as condições que fazem
com que isso aconteça?
Talvez os fatos mais merecedores de estudo com relação ao movimento para a suspensão
do vício são aqueles que indicam as mudanças nos mores sexuais ocorridas nos últimos
cinqüenta anos, especialmente com referência ao que é considerado modesto ou imodesto no
vestuário e no comportamento, e com referência à liberdade com que os assuntos sexuais são
agora discutidos por jovens, moças e rapazes.
Parece, na verdade, como se estivéssemos em presença de duas mudanças demarcadoras
de épocas, uma que parece estar definitivamente destinada a colocar as bebidas alcoólicas na
categoria de drogas venenosas, e a outra a levantar o tabu que, especialmente entre os
povos anglo-saxões, tem efetivamente impedido até o momento presente a discussão franca
dos fatos do sexo.
Política partidária e publicidade. — Existe atualmente em toda parte uma disposição para
aumentar o poder do ramo executivo do Governo às custas do ramo legislativo. A influência
dos Legislativos estaduais e dos conselhos citadinos tem diminuído em alguns casos pela
introdução do referendo e pela revogação. Em outros, tem sido amplamente substituída pela
forma de Governo por comissão. A razão ostensiva para essas mudanças é que elas oferecem
um meio de derrubar o poder dos políticos profissionais. A base real parece-me ser o
reconhecimento do fato de que a forma de Governo que tinha sua origem na assembléia da
cidade, e que bem se adaptava às necessidades de uma comunidade pequena baseada em
relações primárias, não é apropriada para o Governo das populações heterogêneas e em
mudança de cidades de três ou quatro milhões de habitantes.
Muito, é claro, depende do caráter e do tamanho da população. Onde ela é de origem
americana e o número de cidadãos eleitores não é grande demais para uma discussão calma e
completa, não se pode imaginar melhor escola de política nem mais acertado método de
controle dos negócios para evitar a corrupção e o desperdício, para estimular a vigilância e
criar satisfação. Quando, porém, a assembléia citadina cresceu além de setecentas ou
oitocentas pessoas e, mais ainda, quando alguma seção considerável é constituída por
estrangeiros, tais como irlandeses ou canadenses-franceses, ultimamente vindos para a Nova
Inglaterra, a instituição trabalha menos perfeitamente por que a multidão é grande demais
para o debate, as facções tendem a surgir, e os imigrantes, não-treinados em autogovêrno, se
tornam presa de demagogos mesquinhos e de indivíduos que manobram por trás dos
bastidores.15
Por um lado, os problemas do Governo citadino tornaram-se tão complicados com o
crescimento e a organização da vida citadina que não é mais desejável deixá-los ao controle
de homens cuja única qualificação para orientá-los consiste no fato de haverem conseguido
ganhar o Governo através da maquinaria comum da política de bairro.
Outra circunstância que tornou pouco prática, sob as condições da vida citadina, a seleção
dos funcionários citadinos por voto popular é o fato de que, exceto em casos especiais, o
eleitor pouco ou nada sabe sobre o funcionário por quem vota; pouco ou nada sabe sobre as
funções do cargo para o qual aquele funcionário se elege; e, além de tudo o mais, está muito
ocupado em outra coisa para se informar das condições e necessidades da cidade como um
todo.
Numa recente eleição em Chicago, por exemplo, convocaram-se os eleitores para
selecionarem candidatos de um quadro contendo 250 nomes, a maioria dos quais
desconhecida para o eleitor. Sob essas circunstâncias, o cidadão que deseja votar
inteligentemente confia em alguma organização ou em algum conselheiro mais ou menos
interessados para lhe dizerem como votar.
Para responder a essa emergência, primariamente criada por condições impostas pela vida
citadina, surgiram dois tipos de organização para controlar aquelas crises artificiais que
chamamos eleições. Uma delas é a organização representada pelo chefe político e pela
máquina política. A outra é a representada pelas ligas dos eleitores independentes, pelas
associações dos contribuintes e por organizações como os escritórios de pesquisa municipal.
Uma indicação das condições bastante primitivas em que se formaram nossos partidos
políticos é que eles procuraram governar o país com o princípio de que o remédio para todos
os tipos de males administrativos era uma mudança de Governo, expressa numa frase
popular — “expulsar os velhacos”. A máquina política e o chefe político surgiram no
interesse da política partidária. Os partidos eram necessariamente organizados para vencer as
eleições. A máquina política é apenas um instrumento técnico inventado com o propósito de
atingir este fim. O chefe é o perito que opera a máquina. Ele é tão necessário para a vitória
nas eleições quanto um treinador profissional é necessário para o sucesso no futebol.
É característico dos dois tipos de organização, que se desenvolveram com o propósito de
controlar o voto popular, que o primeiro, a máquina política, baseia-se em última análise em
relações locais e pessoais, isto é, primárias. O segundo, as organizações por um bom
Governo, faz seu apelo ao público, e o público, como normalmente entendemos esta
expressão, é um grupo baseado em relações secundárias. Os membros de um público, em
regra, não se conhecem pessoalmente.
A máquina política é, de fato, uma tentativa de manter, dentro da organização
administrativa formal da cidade, o controle de um grupo primário. As organizações assim
constituídas, das quais o Tammany Hall é a ilustração clássica, parecem ser profundamente
feudais em seu caráter. As relações entre o chefe e seu cabo eleitoral parecem ser exatamente
as envolvidas na relação feudal: por um lado, de lealdade pessoal, e, por outro, de proteção
pessoal. As virtudes que tal organização demonstra são aquelas velhas virtudes tribais de
fidelidade, lealdade e devoção aos interesses do chefe e do clã. As pessoas internas à
organização, seus amigos e sustentadores, constituem um grupo “nós”, enquanto o resto da
cidade é meramente o mundo exterior, que não está propriamente vivo, nem é propriamente
humano, no sentido em que os membros do grupo “nós” é e está. Temos aqui algo que se
aproxima das condições sociais da sociedade primitiva.
A concepção de “sociedade primitiva” que devemos formar é a de pequenos grupos
espalhados por um território. O tamanho dos grupos é determinado pelas condições da luta
pela existência. A organização interna de cada grupo corresponde a seu tamanho. Um grupo
de grupos pode ter alguma relação um com o outro (parentesco, vizinhança, aliança,
connubium e commercium) que os reúne e os diferencia de outros. Assim surge uma
diferenciação entre nós mesmos, o grupo “nós”, ou grupo interno, e todo mundo mais, ou
os grupos dos outros, ou grupos externos. Os que estão dentro de um grupo “nós” estão
numa relação um com o outro de paz, ordem, lei, Governo e indústria. Sua relação com todos
os forasteiros, ou grupos dos outros, é de guerra e saque, exceto na medida em que os
acordos a tem modificado.
A relação de camaradagem e paz no grupo “nós” e a de hostilidade e guerra contra os
grupos dos outros são correlativas uma com a outra. As exigências de guerra com os
forasteiros são o que garante a paz no interior, ou a discórdia interna enfraqueceria o grupo
“nós” para a guerra. Essas exigências também garantem o Governo e a Lei no grupo interno,
As cidades grandes sempre foram o cadinho de raças e de culturas. A partir das interações
sutis e vívidas de que têm sido os centros, surgem as novas variedades e os novos tipos
sociais. As cidades grandes dos Estados Unidos, por exemplo, tiraram do isolamento de suas
aldeias natais grandes massas de populações rurais da Europa e da América. Sob o impacto
de novos contatos, as energias latentes desses povos primitivos se libertam, e os processos
mais sutis de interação trouxeram a existência não apenas de tipos vocacionais, mas de tipos
temperamentais.
A mobilização do homem individual. — O transporte e a comunicação efetuaram, entre
muitas outras mudanças silenciosas mas penetrantes, o que chamei de “mobilização do
homem individual”. Multiplicaram as oportunidades do homem individual quanto ao contato
e associação com seus semelhantes, mas tornaram esses contatos e associações mais
transitórios e menos estáveis. Uma parcela bem grande das populações das cidades grandes,
inclusive as que constituem seu lar em casas de cômodo ou apartamentos, vivem em boa
parte como as pessoas em algum grande hotel, encontrando-se, mas sem se conhecer umas às
outras. O efeito disso é substituir as associações mais íntimas e permanentes da comunidade
menor por uma relação casual e fortuita.
Sob essas circunstâncias o status do indivíduo é determina do num grau considerável por
sinais convencionais — por moda e “aparência” — e a arte da vida reduz-se em grande parte
a esquiar sobre superfícies finas e a um escrupuloso estudo de estilos e maneiras.
Não somente o transporte e a comunicação, mas também a segregação da população
urbana tendem a facilitar a mobilidade do homem individual. Os processos de segregação
estabelecem distâncias morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos que se
tocam, mas não se interpenetram.
Isso possibilita ao indivíduo passar rápida e facilmente de um meio moral a outro, e encoraja
a experiência fascinante, mas perigosa, de viver ao mesmo tempo em vários mundos
diferentes e contíguos, mas de outras formas amplamente separados. Tudo isso tende a dar à
vida citadina um caráter superficial e adventício; tende a complicar as relações sociais e a
produzir tipos individuais novos e divergentes. Introduz, ao mesmo tempo, um elemento de
acaso e aventura que se acrescenta ao estímulo da vida citadina e lhe confere
uma atração especial para nervos jovens e frescos. O atrativo das cidades grandes é tal vez
uma conseqüência de estímulos que agem diretamente sobre os reflexos. Enquanto tipo de
comportamento humano, pode ser explicado, numa espécie de tropismo, como a atração de
urna mariposa pela chama.
Entretanto, a atração da metrópole é em parte devida ao fato de que a longo prazo cada
indivíduo encontra em algum lugar entre as variadas manifestações da vida citadina o tipo de
ambiente no qual se expande e se sente à vontade; encontra, em suma, o clima moral em que
sua natureza peculiar obtém os estímulos que dão livre e total expressão a suas disposições
inatas. São motivações desse tipo, suspeito eu, que têm suas bases não no interesse, nem
mesmo no sentimento, mas em algo mais fundamental e primitivo, que trazem muitos, se não
a maioria de jovens e mulheres, da segurança de suas casas no interior para a grande e
atordoante confusão e excitação da vida citadina. Na comunidade pequena, o homem normal,
o homem sem excentricidade ou gênio, é o que parece mais tendente a se realizar. Poucas
vezes a comunidade pequena tolera a excentricidade. A cidade, pelo contrário, a recompensa.
Nem o criminoso, nem o defeituoso, nem o gênio, tem na cidade pequena a mesma
oportunidade de desenvolver sua disposição inata que invariavelmente encontra na cidade
grande.
Há cinqüenta anos atrás, toda aldeia tinha um ou dois tipos excêntricos que eram
normalmente tratados com uma tolerância benevolente, mas que eram entrementes
considerados esquisitos e intratáveis. Esses indivíduos excepcionais viveram uma existência
isolada, separados do intercurso genuinamente íntimo com seus colegas, por suas próprias
excentricidades, quer de gênio, quer de deficiência. Se tinham a potencialidade de
criminosos, as restrições e inibições da comunidade pequena os faziam inofensivos. Se
tinham em si a substância do gênio, permaneciam estéreis por falta de apreciação ou
oportunidade. A estória de Mark Twain Pudd’n Head Wilson é uma descrição de um desses
gênios obscuros e não apreciados. Como
Muita é a flor que nasce rósea sem ser vista
Desperdiçando seu perfume no ar deserto
Gray escreveu a “Elegia no Pátio de uma Igreja do Campo” antes do surgimento da
metrópole moderna.
Na cidade, muitos desses tipos divergentes encontram um meio no qual, para o bem ou
para o mal, suas disposições e ta lentos dão frutos.
Na investigação desses tipos excepcionais e temperamentais que a cidade produz,
deveríamos procurar distinguir, na medida do possível, entre as qualidades mentais abstratas
em que se baseia a excelência técnica e as características inatas mais fundamentais que
encontram expressão no temperamento. Podemos portanto perguntar:
Até que ponto as qualidades morais dos indivíduos estão baseadas no caráter inato? Até
que ponto são hábitos convencionalizados do grupo, impostos a eles ou por eles assumidos?
Quais as qualidades e as características inatas sobre as quais se baseia o caráter moral ou
imoral aceito e convencionalizado pelo grupo?
Que conexão ou que dissociação parece existir entre as qualidades morais e mentais dos
grupos e dos indivíduos que os compõem?
Os criminosos são em regra de ordem de inteligência mais baixa que os não-criminosos?
Se assim é, que tipos de inteligência se associam a diferentes tipos de crime? Por exemplo,
ladrões profissionais e homens de confiança profissionais representam tipos mentais
diferentes?
Quais os efeitos sobre esses diferentes tipos (mentais) do estímulo e da repressão, do
isolamento e da mobilidade?
Até que ponto os pátios de recreio e outros tipos de recreação podem fornecer o estímulo
que, de outra forma, é procurado em prazeres viciosos?
Até que ponto a orientação vocacional pode auxiliar os indivíduos a encontrar vocações em
que serão capazes de obter uma expressão livre de suas qualidades temperamentais?
A região moral. — É inevitável que indivíduos que buscam as mesmas formas de
diversão, quer sejam proporcionadas por corridas de cavalos ou pela ópera, devam de tempos
em tempos se encontrar nos mesmos lugares. O resultado disso é que, dentro da organização
que a vida citadina assume espontaneamente, a população tende a se segregar não apenas de
acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos e seus temperamentos. A
distribuição da população resultante tende a ser bastante diferente daquela ocasionada por
interesses ocupacionais ou por condições econômicas.
Cada vizinhança, sob as influências que tendem a distribuir e a segregar as populações
citadinas, pode assumir o caráter de uma “região moral”. Assim são, por exemplo, as zonas
do vício encontradas na maioria das cidades. Uma região moral não é necessariamente um
lugar de domicílio. Pode ser apenas um ponto de encontro, um local de reunião.
Com o intuito de entender as forças que em toda cidade grande tendem a desenvolver esses
ambientes isolados nos quais os impulsos, as paixões e os ideais vagos e reprimidos se
emancipam da ordem moral dominante, é necessário referir-se ao fato ou teoria dos impulsos
latentes dos homens.
A verdade parece ser que os homens são trazidos ao mundo com todas as paixões, instintos
e apetites, incontrolados e indisciplinados. A civilização, no interesse do bem-estar comum,
requer algumas vezes a repressão, e sempre o controle, dessas disposições naturais. No
processo de impor sua disciplina ao indivíduo, de refazer o indivíduo de acordo com o
modelo comunitário aceito, grande parte é completamente reprimida, e uma parte maior
encontra uma expressão substituta nas formas socialmente valorizadas ou pelo menos
inócuas. É nesse ponto que funcionam o esporte, a diversão e a arte. Permitem ao indivíduo
se purgar desses impulsos selvagens e reprimidos por meio de expressão simbólica. É esta a
catarse de que Aristóteles escreve em sua Poética, e à qual têm sido dadas significações
novas e mais positivas pelas investigações de Sigmund Freud e dos psicanalistas.
Não há dúvida de que muitos outros fenômenos sociais como greves, guerras, eleições
populares e movimentos religiosos desempenham uma função similar ao libertar as tensões
subconscientes. Mas há, no interior de comunidades pequenas, onde as relações sociais são
mais íntimas e as inibições mais imperativas, muitos indivíduos excepcionais que não
encontram dentro dos limites da atividade comunal nenhuma expressão normal e saudável de
suas aptidões e temperamentos individuais.
As causas que fazem surgir o que aqui descrevemos como “regiões morais” são devidas
em parte às restrições que a vida urbana impõe; e em parte à permissibilidade que essas
mesmas condições oferecem. Temos dado muita atenção, até bem recentemente, às tentações
da vida citadina, mas não temos dedicado a mesma consideração aos efeitos das inibições e
repressões de impulsos e instintos naturais sob as condições transformadas da vida
metropolitana. Por um lado, as crianças que no campo são consideradas uma vantagem se
tornam na cidade uma responsabilidade. Afora isso, é muito mais difícil criar uma família na
cidade do que na fazenda. Na cidade, o casamento acontece mais tarde, e algumas vezes não
acontece de jeito nenhum. Esses fatos têm conseqüências cuja significância somos ainda
totalmente incapazes de estimar.
A investigação dos problemas envolvidos bem poderia começar por um estudo e
comparação dos tipos característicos de organização social existentes nas regiões referidas.
Quais os fatos externos referentes à vida boêmia, ao submundo, à zona proibida, e a outras
“regiões morais” de caráter menos pronunciado?
Qual a natureza das vocações ligadas à vida comum dessas regiões? Quais os tipos
mentais característicos atraídos pela liberdade que oferecem?
Como os indivíduos se orientam nessas regiões? Como escapam delas?
Até que ponto as regiões referidas são o produto da licenciosidade; até que ponto são
devidas às restrições impostas ao homem natural pela vida citadina?
Temperamento e contágio social. — O que concede uma importância especial à segregação
do pobre, do viciado, do criminoso e das pessoas excepcionais em geral é o fato, uma
dimensão tão característica da vida citadina, de que o contágio social tende a estimular em
tipos divergentes as diferenças temperamentais comuns, e a suprimir os caracteres que os
unem aos tipos normais à sua volta. A associação com outros de sua laia proporciona não
apenas um estímulo, mas também um suporte moral para os traços que têm em comum,
suporte que não encontrariam em uma sociedade menos selecionada. Na cidade grande, o
pobre, o viciado e o delinqüente, comprimidos um contra o outro numa intimidade mútua
doentia e contagiosa, vão-se cruzando exclusivamente entre si, corpo e alma, de um modo
que muitas vezes me faz pensar que aquelas extensas genealogias dos Jukes e das tribos de
Ismael não teriam demonstrado uma uniformidade de vício, crime e pobreza tão persistente e
tão angustiante a menos que estivessem adequadas da maneira peculiar ao meio em que
foram condenadas a existir.
Devemos então aceitar essas “regiões morais” e a gente mais ou menos excepcional e
excêntrica que as habita, num sentido, ao menos, como parte da vida natural, se não normal,
de uma cidade.
Não é preciso entender-se pela expressão “região moral” um lugar ou uma sociedade que
é necessariamente ou criminosa ou anormal. Antes, ela foi proposta para se aplicar a regiões
onde prevaleça um código moral divergente, por ser uma região em que as pessoas que a
habitam são dominadas, de uma maneira que as pessoas normalmente não o são, por um
gosto, por uma paixão, ou por algum interesse que tem suas raízes diretamente na natureza
original do indivíduo. Pode ser uma arte, como a música, ou um esporte, como a
corrida de cavalos. Tal região diferiria de outros grupos sociais pelo fato de seus interesses
serem mais imediatos e mais fundamentais. Por essa razão, suas diferenças tendem a ser
devidas mais a um isolamento intelectual.
Devido à oportunidade que oferece, especialmente aos tipos de homens excepcionais e
anormais, a cidade grande tende a dissecar e a desvendar à vista pública e de maneira maciça
todos os traços e caracteres humanos normalmente obscurecidos e reprimidos nas
comunidades menores. Em suma, a cidade mostra em excesso o bem e o mal da natureza
humana. Talvez seja este fato, mais do que qualquer outro, que justifica a perspectiva que faz
da cidade um laboratório ou clínica onde a natureza humana e os processos sociais podem ser
estudados conveniente e proveitosamente.