Can Tares
Can Tares
Can Tares
DXraújo Filho
CANTARES
Celebração , Toesía e ‘Devoção
"De fato, Cantares, o encantador cântico do amor
homem-mulher, é uma grande dádiva de Deus a
todos nós e uma experiência de liberdade existen
cial de gratidão pela vida! 0 Pastor Caio Fábio, em
seu comentário, deixou-se ser conduzido pela melo
dia do texto e dançou conforme sua música: permi
tiu que o encanto natural do texto o seduzisse com
sua beleza, mistéiro e paixão. O resultado é que o
texto bíblico se explicitou desnudo, com sua pró
pria verdade e beleza, beleza-verdade de corpos em
amor, homem e mulher corpóreos, sexuados, segun
do o plano original do Criador.
Ageu Heringer Lisboa
000
CANTARES
Celebração, Toesia e devoção
5
DEDICATÓRIA
8
pelos crescentes e alarmantes índices de
separação, frustração e desajustes conjugais.
No entanto, nem sempre a discussão é
aproveitável para os que sinceramente dese
jam guiar suas vidas conforme a vontade de
Deus. Freqüentemente oscila-se entre posi
ções simplistas demais ou enfoques suposta
mente bíblicos mas de um legalismo asfixian-
te e perigoso.
Como pastor e marido sinto-me grato a
Deus por este “O casamento como devoção,
poesia e celebração.” A abordagem é total
mente bíblica e nova, fugindo das interpreta
ções metafóricas clássicas do livro de
Cantares.
É possível que o pensamento evangélico
mais conservador se assuste diante das idéias
expostas aqui de modo tão transparente e
realista. Escrevendo com fluidez e poesia, o
pastor Caio Fábio D’Araújo Filho consegue
organizar neste texto as profundas lições
dispersas entre os capítulos do livro de Can
tares de Salomão. Mas ele não é mais direto
e forte do que a própria Escritura quando ana
lisa com riqueza e brilhantismo o relaciona
mento conjugal descrito em Cantares.
Se, por um lado, uma avalanche de cargas
variadas se tem derramado sobre os já comba
lidos casamentos desta era, alegra-me muito
perceber que Deus não tem abandonado seus
filhos sem o prometido e tão desejado escape.
E vejo que este livro se situa neste plano
da contra-partida de Deus a favor de casamen
tos sólidos e felizes, distantes daquela solidez
hipócrita e felicidade aparente que nos acos
tumamos a ver.
Estou certo de que Deus, por Sua graça,
9
continuará a conceder sensibilidade, ternura,
visão crítica da vida e profundidade nas Escri
turas a este meu querido amigo Caio Fábio,
com o que possa prosseguir seu já muito pro
fícuo ministério entre casais, do qual minha
esposa Mônica e eu temos sido beneficiários
constantes e diretos.
10
INTRODUÇÃO I
A CHAVE HERMENÊUTICA
11
de Israel para com Deus e a legitimação do
amor divino em favor de Israel.
Na perspectiva cristã-exegética foi Oríge-
nes, especialista em alegorias, quem começou
a ver no texto de Cantares alusões ao amor
mútuo entre Cristo e a Igreja. Na época da
Reforma Protestante o livro esteve para ser
expurgado do cânon Sagrado, só permane
cendo graças à interferência de Calvino,
que o fez permanecer sob a alegação de que
se tratava de uma alegoria espiritual.
A relutância dos reformadores em fazer
Cantares permanecer na relação dos livros ins
pirados acontecia em razão de ainda estar
presente e enraizada na perspectiva deles a
mentalidade católica-medieval anti-sexual ou
pelo menos imputadora de um papel pecami
noso ao sexo
No nosso século, Watchman Nee, o escri
tor cristão chinês, celebrizou-se por seu
estilo alegorista, inclusive mediante a belís
sima exposição comentada que fez do “Cân
ticos dos Cânticos” , como se auto-intitula o
livro de Cantares (1:1).
Ao meu ver é inquestionável que o livro de
Cantares possa ser visto como alegoria ou,
melhor ainda: como parábola. Minha lamen
tação é que ele seja visto somente como tal.
Para que fique claro o que estou dizendo
permitam a confecção de um gráfico:
12
REALIDADE
O
cd
3
cr
ALEGORIA
13
ALEGORIA
A
2
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G
«D
13
3
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REALIDADE
Relação 1: Horizontal
Amor e Amizade
Homem Mulher
14
Relação 2: Vertical
DEUS
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IGREJA
15
tentando afinar a minha orquestra conju
gal.
Terceira: A atitude.
Enquanto estou escrevendo esta intro
dução, antes de adentrar o véu do amor,
nas páginas de Cantares, sinto-me cheio
de temor e tremor, percebendo que es
tou diante da terra Santa. Parece estra
nho, mas Cantares, mesmo nos seus mo
mentos mais íntimos, tem que ser lido
como conto de santidade e poesia da
pureza conjugal. Isso porque o amor con
jugal dos cristãos deve também ser de
voção a Deus entre um homem e sua
mulher. Deve ser a liturgia do culto con
jugal, no santo altar do leito, na oferen
da de corpos gratos e entregues um ao
outro sem egoísmo, na dança ritual
do amor e do prazer, em meio à melo
dia da respiração feliz, no ideal de gerar
alegria e bem estar no outro.
Se eu não pudesse encarar desse modo o
próprio ato conjugal, de duas eu esco
lhería uma opção: ou tomar-me-ia celi
batário ou consideraria meu leito uma
fuga à santidade, sempre que tocasse
em minha esposa. Mas quero viver a
vida com a perspectiva daquele que dis
se: “ E tudo quanto fizerdes, fazei-o
para a glória de Deus” (I Coríntios
16
10:31). É por essa razão que resolvi
chamar a esse trabalho de “Cantares: o
casamento como devoção, poesia e
celebração” .
17
INTRODUÇÃO II
1- O encontro na vinha:
H.A. Ironsaide imaginava assim a confec
ção do poema: O Rei Salomão tinha um
vinhedo na zona montanhosa de Efraim,
19
a uns 80 km ao Norte de Jerusalém
(8:11). Para cuidar do vinhedo ele con
tratou arrendatários (8:11), compostos
por uma mulher, dois filhos (1:6) e duas
filhas: a Sulamita e a sua irmãzinha (6:
13). A Sulamita era a bela da família,
ainda que passasse desapercebida (1:5).
Seus irmãos talvez fossem apenas filhos
de sua mãe (1:6). Sobre a Sulamita reca
íam grandes responsabilidades que lhe
eram impostas pelos irmãos. Por isso não
lhe sobrava quase nenhum tempo para o
trato pessoal (1:6). Seu cuidado com a
vinha era dioturno e indômito (2:15).
Também cuidava de rebanhos nas “ho
ras vagas” do dia (1:8). Por estar tão
exposta ao sol bronzeou-se demais e
machucou a pele (1:5).
Num certo dia chegou ao vinhedo um
forasteiro elegante e bonito. Era Salo
mão, desfigurado para não ser reconhe
cido. Demonstrou interesse pela jovem
vinhateira, que se sentiu incomodada
por julgar que seu aspecto pessoal estava
feio (1:6). Ela, no entanto, tomou o
forasteiro por um pastor de ovelhas, e
perguntou-lhe onde estava o seu rebanho
(1:7). Ele lhe respondeu com evasivas
(1:8), porém, ao mesmo tempo, lhe
falou palavras de amor (1:8 a 10). Pro
meteu-lhe também que no futuro lhe
traria presentes caros (1:11). Salomão
encantou o coração da jovem e lhe pro
meteu que um dia voltaria. De noite ela
sonhava com ele e em certas ocasiões
ela cria que ele estava voltando (3:1).
Finalmente,um dia, ele voltou com todo
20
o seu majestoso esplendor para fazê-la
sua esposa (3:6, 7).
Se essa interpretação histórica está correta,
então há apenas dois personagens centrais
na história: Salomão e a Sulamita. Além disso,
a narrativa supra serve apenas para explicar
o contexto histórico de um terço do livro,
pois para sua montagem em 3:6, 7. No en
tanto, é justamente daí em diante que se de
senrolam os principais poemas conjugais. Na
da invalida tal interpretação histórica, desde
que se permita que o livro permaneça aberto,
a fim de que seja mais do que um ensaio sobre
o namoro, porém uma descrição do namoro
(até 3:6, 7) e do casamento, no desenrolar
poético, até ao final dos Cânticos.
21
Rei a introduziu nas seduções da corte
(1:4). Suas recordações acerca do ama
do a perturbam (1:7).
Na luta por conquistá-la o Rei tenta se
duzi-la com jóias (1:11) e perfumes
(1:12). Mas ela prefere o cheiro do cam
po que há no corpo de seu amado
(1:13, 14). Ela se recorda de uma visita
feita pelo seu amado e de um sonho que
se seguiu a isso (2:8 — 3:5). Depois dis
so ela é novamente visitada e louvada
por Salomão (3:6 — 4:7). Imperturbá
vel, a jovem relembra as palavras de seu
amado e antecipa seu dia de casamento
com ele (4:8 - 5:1). Nesta expectativa
sua mente fica impregnada com as lem
branças do seu amado. Por isso, ela so
nha com ele e o descreve (5:2 — 6:3).
Nesse ínterim ela recebe mais uma visita
de Salomão, que tenta conquistar o seu
amor (6:4 — 7:9). Ela, no entanto,
mantendo sua fidelidade ao jovem pas
tor, resiste às tentativas do Rei (7:10 —
8:3). Depois disso Salomão a liberta ve
rificando ser impossível conquistar-lhe o
coração (8:4 — 14).
Pessoalmente sou seduzido a aceitar esta
interpretação. Isso porque essa maneira de ver
as coisas descreve um amor que não se deixa
domesticar. Tal história seria digna de figurar
como um texto sagrado. No entanto, não
posso aceitar essa interpretação histórica do
texto pelas seguintes razões:
1- Aceitá-la implica em negar a autoria de
Salomão — pois o Rei não descrevería de
si mesmo tal fracasso. E a autoria de
Salomão é uma afirmação antiquíssima,
22
tanto no judaísmo como no cristianis
mo. Aliás, até que Ewald montasse a
sua perspectiva (1826), não se conhecia
outra interpretação. Acho temerário
negar mais de dois mil anos de história
por causa de uma bela montagem textual.
Ademais, Cantares se presta também para
outras montagens históricas convenien-
tes.Espaço é o que não falta em meio à
hetereidade da poesia. Ê fácil conduzir
um texto poético em muitas direções
opostas.
23
terial que pode ser muito útil à compreensão
do estado febril do amor que nasce entre um
homem e um mulher, bem como do ideal su
blime que nele se encerra.
A opção é sua .Você pode portar-se diante
deste livro como um cirurgião com um bistu-
ri na mão, ansioso por encontrar enfermida
des; ou como um garoto com um sorvete na
mão, ávido por mergulhar no seu sabor. Eu
tenho certeza de que sua (eu) companheira
(o) preferirá que você faça a segunda opção.
24
CAPITULO I
A FORÇA DO AMOR
25
cessarão, havendo ciência, passará;” . . .
Não estou dizendo que no Cântico dos Cân
ticos não haja expressão dessa sublimidade.
Ao contrário, o sublime está presente no livro,
mas não é um sublime que sublima, que se
projeta para o imaginário, para o utópico-
abstrato. É um sublime no corpo, no sangue,
nos lábios, na pele, na voz e na amizade do
homem e de sua mulher. É um sublime aqui
e agora, na história cheia de ambiguidades
e contradições. E um sublime apaixonado
ao invés de fraternal, como é o caso de I
Coríntios 13. É nesse sentido que Cantares
não exalta o amor como virtude sublime,
conquanto o exalte como uma espécie de su
blime em imanência e não em transcendên
cia. Em Cantares, a transcendência do amor é
ser imanente no corpo, na alma e na trama da
alegria dos cônjuges. Por isso, não fique espe
rando encontrar grandes conceituações de
amor no livro. Os amantes de Cantares não
filosofam nem conceituam o amor. Apenas
deixam-se dominar por ele, permitem-se
inebriar pelo seu cheiro e entregam-se sem
resistência a sua magia. O amor não é defini
do em Cantares, apenas, às vezes, comparado
àquilo que dá gosto e poesia à vida:
—“É melhor que o vinho” (1 :2b)
— “Do teu amor nos lembraremos mais
do que do vinho, não é sem razão que te
amam” (1:4c).
Afinal, é “o vinho que alegra o coração
do homem e da mulher” (Salmo 104:15a).
E o amor conjugal deve ser um banquete de
almas, uma celebração de alegria pela preva-
lecência de dois seres sobre o egoísmo,
indômito adversário daqueles que desejam ser
26
um.
Não nos é estranho que a linguagem do
amor seja comparativa em relação ao vinho,
pois é também ele (o vinho) que deve ser ofe
recido “aos que perecem, . . . aos amargura
dos de espírito; para que bebam, e se esqueçam
da sua pobreza, e de suas fadigas não se lem
brem mais” (Provérbios 31:6). Pois que rea
lidade faz esquecer mais eficazmente o
infortúnio que o amor? É diante dele que a
pobreza e a amargura são esquecidas pelo
curto-eterno espaço do amor.
No curto espaço de amar, o eterno, o sem-
fim, se faz presente. Na linguagem de Carlos
Drummond de Andrade:
“O mundo é grande, e cabe nessa janela
sobre o mar;
o mar é grande e cabe na cama e no col
chão de amar;
o amor é grande e cabe no breve espaço
de beijar.”
No amor, o total invade o parcial, o eterno
o temporal, o júbilo conquista a tristeza, o
prazer vence o desconforto e a pobreza, a
gratidão faz esquecer as fadigas.
Em Cantares o amor aparece com o ímpeto
do desmaio, da perda dos sentidos, chega com
a veemência da fraqueza que domina o cor
po e a alma, traz consigo a força da rendição:
“ Sustentai-me com passas,
confortai-me com maçãs,
pois desfaleço de amor” (2:5).
Diante do amor, o egoísmo fica tomado de
anemia, o orgulho deixa de oferecer resistên
cia, e o corpo dominado pela impotência não
consegue esboçar reação de rejeição. Por isso
os apaixonados são fracos. Em Cantares o
27
amor não é chamado de grande ou majestoso
ou sacrificial, mas de belo. Trata-se de um sen
timento lindo, fascinante:
“Que belo é o teu amor,
ó minha irmã, noiva minha!” (4:10).
Esse amor pode e deve ser belo porque se
inspira no amor rasgado, partido, moído, usa
do e ensanguentado daquele que por nós se
deu:
“Mas Deus prova o Seu próprio amor para
conosco, pelo fato de ter Cristo morrido
por nós, sendo nós ainda pecadores”
Rm 5:8.
O amor no Cântico dos Cânticos é rendição
assumida e divulgada, é estado de entrega de
clarado, é vertigem das forças frias da razão
ante o exército avassalador da paixão que
sitia o coração, despotizando-o, enfraquecen
do-o nas suas próprias possibilidades de dizer
não àquele que o domina:
“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
se encontrardes o meu amado,
que lhe direis?
Que desfaleço de amor” (5:8)
No contexto do “Cântico dos Cânticos”
o amor tem paladar, tem sabor, tem tempero,
é apetitoso, inspirador de prazer:
“Quão formosa,
e quão aprazível és,
ó amor em delícias” (7:6)
No entanto, nem só de cheiro, gosto, alegria,
prazer e vantajosa rendição vive o amor. Em
Cantares esse amor é também luta, combate,
guerra e morte. É amor que enfrenta a própria
possibilidade de morrer. Em Cristo, o amor foi
mais forte do que a morte, porque tanto por
amor ele enfrentou a morte, como também por
28
amor dela ressuscitou (Romanos 4:24, 25).
Mas no nosso livro de afeições e de extasia-
mentos entre um homem e sua mulher, como
pode o amor ser forte como a morte?
“O amor é forte como a morte” (8:6).
A equivalência da força do amor em relação
à morte,no cotidiano apaixonado de dois se
res humanos, marido e mulher, não está nem
na sua longevidade, nem na sua prevalecên-
cia sobre o fato da morte. Está, sim, na de
terminação irremovível, inafastável e inexorá
vel de ambos caminharem na procura e na
promoção da felicidade. O amor é forte como
a morte porque quem morre por amor enfren
tou cara a cara a morte e prevaleceu. Perde na
luta com a morte, não quem morre, mas quem
foge dela. No entanto, literalmente falando, o
texto está aludindo à invencibilidade ordi
nária da morte. É uma maneira comparativa
de dizer: o amor é invencível, jamais acaba.
É forte como a morte porque ela sempre vem
de antemão vitoriosa.
O amor é forte como a morte quanto a vi
da é um dar da vida pelo outro, especialmente
o outro-eu, o cônjuge, minha carne noutro
corpo até a morte. Deve ser em razão desse
poder triunfante e conquistador do amor que
em Cântares se repete um fascinante estri-
bilho:
“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
que não acordeis nem desperteis o amor,
até que este o queira” (8:4).
Quando o amor chega, a sua força se ins
taura nos seus conquistados de tal forma que
a própria personalidade, temperamento são
parcialmente alterados:
“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
29
pelas gazelas e cervas do campo,
que não acordeis nem desperteis o amor,
até que este o queira” (2:7; 3:5).
Gazelas e cervas são animais conhecidos na
poesia oriental por sua timidez e recato. As
sim é o amor: é, ele faz com que até os tími
dos se declarem, e os recatados se aventurem
para além dos limites de suas estreitas frontei
ras de expressões. Se você tem dúvida do que
estou afirmando, então é só imaginar, ou me
lhor, lembrar como ficam os apaixonados:
falantes, desinibidos, soltos, livres, soprados
pela brisa da poesia, encantados.
Mas o estribilho do silêncio e das ações
cautelosas, para que não se acorde o amor de
seu sono, de seu inverno na alma, de seu leito
de sossego, visa revelar também esta outra
verdade:
Tenha cuidado para não provocar aquilo
que pode se tornar irreprimível.
Tal cautela refere-se àqueles que ainda não
foram atingidos pela força mortal e paradoxal
mente vivificadora do amor. E por isso que
é a mulher casada quem diz às amigas soltei
ras:
“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas e cervas do campo
que não acordeis nem desperteis o amor,
até que este o queira” .
Amar é mais que ser feliz; é perder o di
reito à auto-felicidade em favor do outro; é
ser feliz na felicidade promovida para o
cônjuge; é realizar-se realizando; é comple-
tar-se completando; é beber o refluxo do
nosso próprio fluxo abenççador; é vida
entregue e repartida com o objeto-humano
da nossa caminhada.
30
Mas o estranho é que esse amor que se
dá, que se entrega, que conquista e se dei
xa conquistar é, paradoxalmente, pleno de
auto-estima e dignidade. Seu padrão é ele
vadíssimo. Sua ética de entrega determina
que ele não negocia com coisa alguma. Ele
se coloca acima de riqueza, suborno, jogo
de interesses:
“ainda que alguém desse todos os bens
da sua casa pelo amor, seria de todo des
prezado” (8:7).
O interessante no texto é que quem fala
ao Rei — forte, majestoso e dono de tudo —é
a sulamita, mulher bela, porém simples e
pobre (6:13; 8:1 a 3).
A afirmação da mulher é que seu amor não
tinha preço. Dera-se a ele por amor, nada mais.
Escolhera ser serva do amor, mas jamais se
deixaria impressionar pelos tesouros do
amante.
Assim é o amor adulto e santo: é confiante,
digno, invendável, sem preço. Está acima do
poder de compra e barganha. E sentimento
inegociável.
A oferta de bens, adornos, casas e tesouros
a fim de obtê-lo, recebe como resposta o
desdém:
“ seria de todo desprezado” .
Os que tentam substituir o afago pelo vesti
do, a carícia pela jóia, a voz doce pela
serenata paga, a gentileza pelo luxo, a ami
zade pela diversão, a alegria e o prazer pe
lo humor comprado, acabarão sendo des
prezados.
O amor em Cantares é sobrevivente mesmo
nos dilúvios e nas pororocas da vida:
“As muitas águas não poderíam apagar o
31
amor nem os rios afogá-lo” (8 :7a).
O amor trafega na Arca da salvação, sobre
vive com sua chama mesmo no coração do
mais caudaloso rio.
A idéia é a de uma tocha de fogo que so
brevive à enxurrada e à imersão.
O amor vence as intempéries, o calor, o des
conforto, a pobreza, as catástrofes, as bancar
rotas e os dilúvios do medo, da violência e da
oposição.
Amar é levar nas mãos a “pira Olímpica”
que sobrevive aos jogos da vida e é testemu
nha da vitória e prêmio dos perseverantes.
Assim é o amor em Cantares: alegre como o
vinho, delicioso como os mais inebriantes
acepipes e manjares, irresistível como o des
maio, inexorável como a morte, inapagável
como chama na olimpíada da vida e invendá-
vel como tudo que não tem preço.
É a pro-cura pois desse ideal e dessa utopia
em carne e osso que o homem e mulher de
vem pôr-se a caminho.
32
CAPÍTULO II
33
FIDELIDADE
34
É claro que essa é uma declaração posta na
boca da mulher. Mas quem tem dúvida de que
tal assertiva possa e deva embutir-se perfeita-
mente em lábios masculinos?
Os seios altos e belos da esposa eram torres
inalcançáveis. Que bela figura para caracterizar
que o seu corpo a ninguém mais entregava,
e por ninguém se deixava apalpar ou possuir!
O resultado de tal atitude é óbvio:
“ fui tida (o) por digna (o) da confiança do
(a) meu (minha) amado (a)” .
O amor não arde em ciúme”, mas também
não dá motivos reais para o outro arder em
ciúmes. Normalmente são os mais tendentes
à infidelidade os que mais ciúmes têm. Proje
tam suas próprias fantasias no outro e nele
concebem o mal.
Outra belíssima figura que Cantares
empresta à fidelidade é a de um indevassável
e oculto Éden de amor, paraíso perdido, cujo
caminho só o cônjuge conhece, e de cujos
frutos só ele provou, e cujas cristalinas águas
mitigavam exclusivamente sua sede:
“Jardim fechado és tu,
minha irmã,
noiva minha,
manancial recluso,
fonte selada” (4:12)
Que amor se mantém inteiro e sadio sob a
supeita de que outro já bebeu ocultamente da
fonte, já comeu do fruto, já penetrou triun
fante no jardim das delícias que só a ele per
tencia?
A resposta é dispensável.
35
AMIZADE
36
temperamento, gostos e idéias, a amizade
ajuda mais que a própria paixão, o desejo e o
prazer.
Nesses momentos os cônjuges têm que ten
tar vencer o que os vence com fraternidade e
camaradagem; tratar-se como parcimoniosos
amigos; respeitar-se como os estranhos se res
peitam.
Quando, por causa das diferenças, um côn
juge não está conseguindo amar o outro,
deve amá-lo ao menos como ao amigo (a).
Todos nós sabemos que na hora das discor-
dâncias é difícil ver o outro como tal, mas
esta é a única maneira de eles preservarem o
respeito mútuo.
SANTIDADE
37
trai, não engana e não se polui —sobretudo e
antes de tudo — por encarar o seu casamento
como uma relação sagrada e improfanável.
Eis a razão por que no Cântico dos Cânti
cos se lê:
“Abre-me (a porta),
Minha irmã,
querida minha;
pomba minha,
imaculada minha. . . ” (5:2)
ou ainda:
“Mas uma só é a minha pomba,
a minha imaculada. . .” (6:9).
Outra vez perguntamos: À luz de toda a
Escritura, e especialmente do Novo Testamen
to, tal assertiva relaciona-se somente à mulher,
ou diz respeito também aos deveres do ho
mem?
Não há necessidade de responder ao óbvio.
A tradução de Efésios 5:25 a 27 para o
contexto da relação conjugal fica assim:
“O marido deve amar a sua mulher,
a ponto de se entregar por ela,
para que a santifique,
purificando-a por meio da água da palavra,
para apresentar a si mesmo
esposa gloriosa,
sem mácula,
porém santa e sem defeito” .
Somente os santos santificam!
A relação da palavra imaculada com a pom
ba sugere uma santidade sem pedantismo,
sem fanfarrismo, sem vanglória, mas pelo
contrário, inocente, pura e simples (Mt.
10:16b).
38
HONRA
39
da uma de suas vitórias, afirmar sua alegria,
acreditar em sua palavra, considerar seus de
sejos, homenageá-lo por suas realizações, dis-
tingui-lo com favores especiais, reconhecer
suas qualidades publicamente, celebrá-lo co
mo a alguém especial.
Ora, mas alguém diría: Tal pessoa é especial
demais para ser o meu marido ou a minha es
posa! Digo eu: Mas como você conseguiu
casar com alguém a quem não admira? Com
alguém que a seus olhos não é especial? Com
uma pessoa sem feitos, sem realizações, sem
virtudes?
Não consigo acreditar que haja alguém que
se tenha deixado conquistar e fascinar pela
desgraça com cara humana, e nem posso
crer que a mais banal das criaturas não seja em
si mesma especial.
Quem ama vê motivos suficientes para
honrar o outro.
A honra é indispensável virtude na conso
lidação da vida a dois.
SUBMISSÃO
40
“Como, porém, a Igreja está sujeita a
Cristo, assim também as mulheres
estejam sujeitas aos seus próprios mari
dos” .
41
. .Como a seus próprios corpos”
. . antes a alimenta, e dela cuida,
como também Cnsto o faz com a Igreja” .
“ . . . cada um de vós de per si,
também ame a sua própria esposa”
(Efésios5:23,25, 28, 29, 33)
Se entendo o que leio acima, a submissão
da mulher ao marido é quase-devocional, ou
mesmo, totalmente devocional. É uma submis
são inspirada, estimulada e engravidada pelo
amor do marido, por suas atitudes maduras,
altruístas, solidárias, de uma autoridade não
despótica.
Portanto, quando se fala na responsabilida
de das mulheres quanto a serem submissas a
seus próprios maridos, se está falando — de
fato e muito mais — no amor dos maridos,
amor gerador dessa submissão leve e livre na
alma da esposa.
Sem esses cinco pilares, a utopia descrita
na FORÇA DO AMOR não sobrevive à lua-de-
mel.
A poesia do amor só não é engano e ilusão
quando repousa segura sobre fidelidade, ami
zade, santidade, honra e submissão.
É assim que o amor se mantém.
42
CAPÍTULO III
AMOR: OS AGENTES
PSICOLÓGICOS DE
SUA AFIRMAÇÃO
43
explicar carências, identificar compatibilida-
des, descobrir sonhos comuns, projetar espe
ranças semelhantes, perceber iguais desejos
veementes, encontrar congruências quase
absolutas. Mas nada disso vai explicar tudo;
ou nada, sobre a chegada do amor. Pois
quantas são as vezes em que duas pessoas
identificáveis passam a vida juntas sem jamais
encontrarem em suas semelhanças ou sadias
e complementares dessemelhanças razão para
se associarem na vida e no amor!
Mas no presente momento minha preocupa
ção, mais do que fazer nascer, é manter vivo
o que existe; é conservar incandescente, ar
dente, candente a chama do amor. Por isso,
me dedicarei a refletir sobre o fenômeno pos
terior à sua súbita e vitoriosa chegada. Minha
reflexão voltar-se-á para os aspectos psicoló
gicos essenciais à manutenção da chama ar
dente do amor no coração já por ele incen
diado.
DIFERENCIAÇÃO
44
quando não percebe nenhuma diferença en
tre o tratamento a ele (a) dispensado e o que
é projetado em direção às pessoas do sexo
oposto à sua volta?
Sem a diferenciação comparada como
glorificação do outro, o amor sucumbe ante
o igualitarismo comportamental. Nesse senti
do o amor é paradoxal: fraternalmente ele é
socializador, mas conjugalmente é cataliza
dor de todas as afeições que puder obter.
É por isso que a linguagem da diferencia
ção em Cantares é quase rude e irreal:
“Qual o lírio entre os espinhos,
tal é a minha, querida
entre as donzelas” (2:2).
Se comparados aos demais, os cônjuges
querem ter a afirmação de sua superioridade
inalcançável. É como fazer espinho concor
rer com lírio:
“Qual a macieira entre as árvores do
bosque,
tal é o meu amado
entre os jovens” (2:3)
A excelência da qualidade, do sabor, do
prazer que promove, da natureza que possui,
tem que ser afirmada. Seu gosto é inigualá
vel, assim como a maçã, inimitável em seu
paladar.
E essa capacidade de afirmar a diferença
do objeto do amor — mesmo que seja para
enfrentar os que não vêem nada de especial
na pessoa que recebe a concentração única
do nosso amor —tem que ser suficientemente
forte:
“Quem é o teu amado
mais do que outro amado,
ó tu, mais formosa entre as mulheres?
45
Que é o teu amado
mais do que outro amado,
que tanto nos conjuras?” —perguntam
as amigas.
Diz ela:
“o meu amado é alvo e rosado,
o mais distinguido entre dez mil”
(5:9 e 10).
Na sociedade poligâmica, no harém real,
havia o pano de fundo histórico explicativo
do que se segue:
“Sessenta são as rainhas,
oitenta as concubinas,
e as virgens sem número.
Mas uma só é a minha pomba,
a minha imaculada,
de sua mãe a única,
a predileta daquela que a deu à luz;
viram-na as donzelas
e lhe chamaram ditosa;
viram-na as rainhas
e as concubinas
e a louvaram” (6:8, 9).
E assim que o amor vê, isso porque ele é
justificador, embelezador, atribuidor de virtu
de, pleno de graça, encobridor de falhas,
projetador de grandezas, onde tantas vezes
nem elas existem:
“Tu és toda formosa,
querida minha,
e em ti não há defeito” (4:7)
Sem dúvida você deve estar pensando:
“E , mas mesmo amando
o meu cônjuge,
vejo nele
muitos defeitos,
e até feiúras” .
46
Mas saiba ò seguinte: o amor não deixa de
ver erros e defeitos, ele simplesmente os su
blima, transcende, perdoa; embeleza-os com
qualidades que existem no ser objeto do
amor.
Na declaração supra, feita pelo esposo, o
que realmente dá significado à poesia não é:
“Tu és toda formosa”
ou
“Em ti não há defeito” ,
mas sim:
“querida minha” .
É o fato de ser querida e amada que a torna
“ toda formosa” e “ sem defeito”. Não que ne
la não houvesse extraordinária beleza, mas
sem dúvida é o amor que lhe atribui ausên
cia total de defeitos. Não é uma constatação
objetiva, mas subjetiva e graciosa.
O amor sempre gera graça!
Que fique claro que a diferenciação é uma
necessidade suprema, na psiquê do objeto
do amor (ele ou ela), quanto a manter a cha
ma do sentimento ardente na alma.
AUTO-IMAGEM
47
imagem.
Mesmo a eventual cor de sua pele, excessi
vamente queimada do sol, não lhe tira a cer
teza de sua beleza:
“Estou morena,
porém formosa” (1:5)
Seu ego também se vê de alguma forma
belo:
“Eu sou a rosa de Sarom,
o lírio dos vales” (2:1)
Pouca coisa faz tanto bem quanto possuir
uma auto-imagem sadia e equilibrada. Sem as
auto-exaltações dos soberbos e sem a auto-fla-
gelação dos culpados e ingratos.
A nossa Sulamita de Cantares é mulher se
gura e de firmes convicções. Não se julga inca
paz de despertar o amor, como sucede com
muitas pessoas. Porque não se amam, nunca
admitem que são amadas. E quem não se
ama, jamais se vê como capaz de despertar
amor ou admiração em alguém.
Ela diz com certeza:
“ O meu amado é meu,
e eu sou dele” (2:16)
Essa convicção é tão forte, que a faz afir
mar de novo, agora invertendo a ordem ini
cial, de possessão para entrega:
“Eu sou do meu amado,
e ele é meu” (6:3).
Outra vez a Sulamita aparece como uma
mulher consciente de que a sua ausência é
geradora de saudade e desejo no companhei
ro. Estar longe dela é estar carente, é estar
com menos, é ser infeliz, é estar incompleto:
“ Eu sou do meu amado,
e ele tem saudades de mim” (7:10).
Por último, ela se afirma como conhecedo-
48
ra do tipo de caráter de que é tecida.
Nada é mais perigoso do que ver-se como
invulnerável, mas também nada é tão vul
nerável quanto enxergar-se como fácil e rapi
damente conquistável.
Mas a mulher do Cântico dos Cânticos de
senvolveu auto-imagem positiva também em
relação à estrutura do seu caráter:
“Eu sou um muro,
e os meus seios
como as suas torres;
sendo assim,
fui tida por digna
da confiança do meu amado” (8:10)
Assim é que nela encontramos vários níveis
de expressão de auto-imagem:
Em relação à aparência: “Estou morena,
porém formosa” .
Em relação ao ego: “Eu sou a rosa, o lí
rio...”
Em relação ao possuir: “O meu amado é
meu e. . .”
Em relação a entregar-se: “eu sou do meu
amado. . .”
Em relação d sua ausência: “ele tem sauda
des de mim” .
Em relação ao seu caráter: “fui tida por
digna de confiança.”
Mas é bom que fique claro: boa parte da
auto-imagem que nosso parceiro de vida co
mum possui nós é que provocamos nele, se
ja por elogios e reconhecimentos, seja por
massacres psíquicos e nossa incapacidade de
atribuir-lhe virtude. Isso não exclui —nem po
dería ser diferente — o fato de que a criação
que cada um de nós recebeu contribuiu signifi
cativamente para determinar a maneira como
49
nos vemos e nos aceitamos. Um bom cônjuge
pode ser agente de terapia psíquica para o
companheiro durante toda a vida.
O amor também se mantém psiquicamente
sadio e aceso mediante esse abanar da afir
mação que gera auto-imagem incandescente,
esbraseado, no fogareiro da alma.
A MUTUALIDADE
50
pois, caindo, não haverá quem o
levante.
Também se dois dormirem juntos,
eles se aquentarão;
mas um só como se aquentará?
Se alguém quiser prevalecer contra
um, os dois lhe resistirão;
o cordão de três dobras não se rebenta
com facilidade”
(Eclesiastes 4:7 a 12).
O amor pode existir e se manter por mui
to tempo sem ser correspondido apenas no
espreitar dos corações daqueles que amam a
distância, platonicamente, de modo inconfes-
so, oculto, no esgueirar das sombras e das es
quinas, mediante contemplação semi-adorati-
va — como menino com fome em frente à
vitrina da padaria. Mas na relação conjugal o
amor não correspondido se deixa acumular
de amarguras, revoltas, azedumes, lembranças
dolorosas, agudas e profundas, fazendo nas
cer, por fim, não raramente, uma espécie de
ódio ou de amor dissimulado e adoecido.
A mutualidade exige uma co-respondência,
pois sem resposta a proposta de quem ama
toma-se oferecimento rejeitado, portanto
humilhado, pisoteado e chicoteado pela indi
ferença daquele ao qual alegremente se doara.
A relação conjugal é relação de mutualida
de, ou então não é relação con-jugal, con-ju-
gada, relação de mesmo jugo, de distribuição
equânime, de socialização de amor e afetos.
A psiquê humana responde e exige ser co-
respondida. Por isso, a mutualidade é outro
forte agente psicológico de manutenção do
amor conjugal.
51
SENSO SEXUAL
52
carnal, maligna e promíscua.
Quando falamos de “ senso sexual” deseja
mos retratar exatamente o valor etimológi-
co das duas palavras:
—Senso: Faculdade de apreciar: sentido,
tino, sensibilidade, percepção.
—Sexual: referente à cópula, à união entre
os sexos; pertinente à relação en
tre um homem e sua mulher,qua
lidade do macho e da fêmea, ele
mento distintivo e caracterizador
tanto na diferença quanto na atra
ção entre os opostos.
Portanto, senso sexual, em nosso conceito,
significa a percepção aguçada para a diferença
sexual do outro, na sua capacidade de atrair.
Senso sexual no sentido em que estamos em
pregando é a capacidade de apreciar, de sen
tir, de perceber a diferença do cônjuge. Ele
se deixa impressionar pelo mistério, pela bele
za, pelo encontro e a dessemelhança atrativa
do outro (a), como também se deixa invadir
por uma sadia curiosidade, desejo de penetrar
o impenetrável, possuir o impossuível, apro
priar-se do inapropriável. Na realidade, eu
creio que mesmo entre aqueles que se perten
cem, na qualidade de marido e mulher, tal
realidade pode continuar presente. Toda nu
dez, entre.um homem e uma mulher, deve
ser nudez plena de mistério; nudez dada e, es
tranhamente, reservada; nudez exposta e, ao
mesmo tempo, resguardada da banalidade;
nudez livre, mas jamais vulgarizada; nudez
sempre percebida, mas nunca tornada comum
e não-poética; nudez sempre mágica e cheia
de uma inocente capacidade de insinuar o
53
amor e o prazer no companheiro (a).
Assim é que no Cântico dos Cânticos esse
senso sexual e essa curiosidade desejosa con
tinuam presentes na relação dos cônjuges:
“O meu amado é semelhante ao gamo,
ou ao filho da gazela;
eis que está detrás da nossa parede,
olhando pelas janelas,
espreitando pelas grades” (2:9).
É desse modo que ele alimenta tanto a sua
psiquê quanto a dela: por trás, olhando, es
preitando, curioso, a intimidade dela. Isso
porque o homem vive — sexualmente fa
lando — do desejo de possuir o corpo da
quela que o inspira — sua mulher — e ela —a
esposa — do prazer de saber que faz nascer
na alma dele o desejo de possuí-la. São duas
psiquês diferentes: uma quer possuir, a outra
quer ser possuída.
Homem e mulher são assim!
Quem nega isso, ou está sendo hipócrita, ou
está negando a história, ou assinando seu ates
tado de patologia sexual.
O senso sexual prossegue em Cantares na
medida em que tanto o marido percebe o
dançar especial do corpo de sua mulher,
quanto ela se apresenta marcada por uma fe
minilidade expressiva:
“Que formosos são os teus passos dados
de sandália,
filha do príncipe!
Os meneios de teus quadris
são como colares trabalhados
por mãos de artistas” (7:1).
Portanto, parece evidente que no Cântico
dos Cânticos o amor é psicologicamente te-
rapeutizado pela afirmação diferenciada, que
54
pelas gazelas e cervas do campo,
que não acordeis nem desperteis o amor,
até que este o queira” (2:7; 3:5).
Gazelas e cervas são animais conhecidos na
poesia oriental por sua timidez e recato. As
sim é o amor: é, ele faz com que até os tími
dos se declarem, e os recatados se aventurem
para além dos limites de suas estreitas frontei
ras de expressões. Se você tem dúvida do que
estou afirmando, então é só imaginar, ou me
lhor, lembrar como ficam os apaixonados:
falantes, desinibidos, soltos, livres, soprados
pela brisa da poesia, encantados.
Mas o estribilho do silêncio e das ações
cautelosas, para que não se acorde o amor de
seu sono, de seu inverno na alma, de seu leito
de sossego, visa revelar também esta outra
verdade:
Tenha cuidado para não provocar aquilo
que pode se tornar irreprimível.
Tal cautela refere-se àqueles que ainda não
foram atingidos pela força mortal e paradoxal
mente vivificadora do amor. É por isso que
é a mulher casada quem diz às amigas soltei
ras:
“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas e cervas do campo
que não acordeis nem desperteis o amor,
até que este o queira” .
Amar é mais que ser feliz; é perder o di
reito à auto-felicidade em favor do outro; é
ser feliz na felicidade promovida para o
cônjuge; é realizar-se realizando; é comple
tar-se completando; é beber o refluxo do
nosso próprio fluxo abençoador; é vida
entregue e repartida com o objeto-humano
da nossa caminhada.
30
gera auto-imagem positiva, que se corresponde
mediante a mutualidade, que produz o senso
sexual.
E esse senso sexual prossegue se manifes
tando através da especial e convidativa manei
ra de olhar, ou seja, mediante uma salutar
insinuação:
“Arrebataste-me o coração,
minha irmã,
noiva minha;
arrebataste-me o coração
com um só dos teus olhares. . .” (4:9)
O senso sexual, como fenômeno de aprecia
ção, de percepção, expressa-se também como
sensibilidade gustativa, cheia de apetite. Os
cônjuges devem manifestar sua fome e sede
de amor e sua necessidade de se satisfazerem
na entrega mútua, na troca de seus auto-sa-
bores:
“Qual a macieira entre as árvores
do bosque,
tal é o meu amado entre os jovens;
desejo muito a sua sombra,
e debaixo dela me assento,
e o seu fruto é doce ao meu paladar”
• (2:3).
Recordemos que para o marido a mulher é
o paraíso perdido, é seu Éden de prazer
(4:12).
É por isso que para ele o ato de prová-la
é tão saboroso como o degustar de variados e
doces frutos, o sentir de inebriantes cheiros:
“Os teus renovos são um pomar de
romãs, com frutos excelentes:
a hena e o nardo;
o nardo e o açafrão,
o cálamo e o cinomano,
55
com toda sorte de árvores de incenso;
a mirra e o aloés,
com todas as principais especiarias.
Es fonte dos jardins,
poço das águas vivas,
correntes que correm no Líbano!”
(4:13 a 16).
Tal descrição é tão bela e apetitosa, tão
reveladora de gosto e prazer, que a mulher se
auto-oferece ao marido:
“Ah! venha o meu amado para
o seu jardim,
e coma os seus frutos excelentes”
(4:16b).
Após o saborear da relação sexual, ou seja,
da entrada no paraíso, no Éden psíquico e
emocional, o esposo declara:
“Já entrei no meu jardim,
minha irmã,
noiva minha;
colhi a minha mirra
com a especiaria,
comi o meu favo com o mel,
bebi o meu vinho com o leite” (5: 1).
56
CAPITULO IV
A ESTÉTICA NO AMOR
57
belo e na minimização do valor da for
mosura íntima, psíquica, profunda:
“Não seja o adorno das esposas
o que é exterior,
como frisado de cabelo,
adereços de ouro,
aparato de vestuário;
seja porém,
o homem interior do coração,
unido ao incorruptível
de um espírito manso
e tranquilo,
que é de grande valor diante de Deus”
(I Pd. 3:3,4).
Mas me parece que Pedro não está combaten
do a beleza e o trato estético com o corpo,
antes sim a materialização absolutista do belo.
Ele está se insurgindo contra a filosofia da
política do corpo, da exacerbação do ex
terior em detrimento da vida íntima, bela e
mansa,
Tão perigosa quanto a hipervalorização
da estética é sua hipovalorização. Valorizá-la
demasiadamente é correr o risco de cair na
adoração do corpo humano:
“mudaram a glória do Deus
incorruptível em semelhança
de homem corruptível. . .” (Rm l;23a)
Porém desvalorizar o corpo é pecado de
natureza gnóstica, ascética, purista, e desti
tuída de valor com relação a enfrentar a sen
sualidade:
“Tais coisas, com efeito, têm aparência
de sabedoria,
como culto de si mesmo,
e falsa humildade,
e rigor ascético;
58
todavia não têm valor algum contra a
sensualidade” (Cl 2:21 a 23).
Assim é que em Cantares a estética tem seu
valor sadio e equilibrado pela pendência
entre o subjetivo e o objetivo, o exterior e o
interior, o aparente e o profundo, o rosto e
o coração.
FORMOSURA
59
ó amor em delícias!” (7:6).
—Formosura como a das grandes capitais
do Oriente:
“Formosa és, querida minha, como
Tirza,
aprazível como Jerusalém,
formidável como um exército com
bandeiras” (6 :4 ).
— Formosura crescente: estrela d ’alva, lua,
sol. Aumentando sua glória.
“Quem é esta que aparece como a alva
do dia,
formosa como a lua, pura como o sol,
formidável como um exército com ban-
eiras?” (6:10).
— Formosura convidativa:
“O meu amado fala e me diz:
Levanta-te, querida minha,
formosa minha, e vem ” (2:10).
ADORNO
60
minha irmã,
noiva minha;
. . . com uma só pérola do teu colar”
(4:9).
PERFUME
61
especiarias” (4:10).
— Os vestidos dela lembravam o encanta
dor cheiro dos bosques e campos do
líbano:
“A fragrância dos teus vestidos
é como a do Líbano” (4:1 lb).
— O assoprar do vento sobre ela era um
espalhar de aromas:
“Levanta-te, vento norte,
e vem tu, vento sul,
assopra no meu jardim,
para que se derramem
os seus aromas” (4:16).
— O mero toque de suas mãos contagiava
objetos com seu cheiro:
“As minhas mãos destilavam mirra,
e os meus dedos mirra preciosa,
sobre a maçaneta do ferrolho” (5:5).
OS CORPOS
62
do espírito, e o material do espiritual. No
Cântico dos Cânticos o corpóreo é vazado pe
lo espiritual, e o físico santificado no uso e
na ação do amor. E é no ato conjugal o mo
mento no qual surge a maior oportunidade e o
melhor pretexto para que se tenha uma mente
grata pela bênção de ser alma corpórea e de
se poder psicossomatizar alegrias e emoções
na respota que o corpo dá ao prazer que vem
pelo encontro apaixonado de duas almas
con-jugadas pelo amor.
63
CAPÍTULO V
ELE E ELA
ELA
65
A CABEÇA E OS CABELOS
OS OLHOS
66
O seu brilho é tão reluzente, diz tanta coisa
silenciosamente, que mesmo um véu não os
impede de serem notados:
“Os teus olhos. ..
brilham
através do véu” (4: lb).
Os seus olhos exerciam um fascínio hipnó
tico e perturbador sobre seu marido:
“Desvia de mim
os teus olhos,
porque eles me perturbam” (6:5).
Uma outra figura belíssima que se oferece
para caracterizar a transparência do olhar da
esposa é a da piscina de águas claras:
“Os teus olhos
são como
as piscinas de Hesbom,
junto às portas
de Bete-Rabim” (7:4).
Há um poder arrebatador no seu olhar:
“Arrebataste-me o coração,
minha irmã,
noiva minha,
arrebataste-me o coração
com um só dos teus olhares” (4:9).
O ROSTO
67
porque a tua voz é doce,
e o teu rosto é amável” (2:14),
No rosto dela havia revelação. Era o apoca
lipse do amor. Por isso ele diz “mostra-me o
teu rosto” . Na face da esposa se desenhava a
fisionomia daquilo que é amável.
Que diferença há entre esse semblante fe-
minino-amigo e algumas carrancas que vesti
ram de vez o rosto de certas esposas!
Tamanha era a luz de amor que esplendia
do rosto da esposa que o marido dizia:
“As tuas faces (são) como romã
partida,
brilham através do véu” (4:3).
A impressão que a beleza radiante e cheia
de vida que o rosto da esposa deixou no seu
marido foi tão grande que ele repetiu outra
vez o verso anterior:
“As tuas faces como romã partida,
brilham através do véu” (6:7).
Repetições são comumente enfatismos ca-
racterizadores das realidades que marcam a
mente com fortes impressões. É nessa pers
pectiva que as repetições de Cantares também
devem ser lidas.
Do geral o marido apaixonado desce aos
detalhes do fisionômico no rosto da esposa.
Como já nos detivemos nos olhos e no
aprofundamento deles no olhar, limitar-nos-
emos a ver outros elementos definidores da
configuração facial.
Os lábios dessa mulher objeto de poesia
são vistos como bem cuidados, pintados e
bem desenhados no todo da boca:
“Os teus lábios são como um fio de
escarlata,
a tua boca é formosa” (4:3).
68
Mas a boca dessa mulher não é apenas bela
e atraente. Sua encantação atinge níveis mais
profundos. Mergulha numa dimensão abso
lutamente importante da percepção humana.
Atinge o paladar: universo do gosto:
“Os teus lábios,
noiva minha,
destilam mel” (4:11).
Certamente tal descrição deve ser lida com
maior objetividade que subjetividade. Não
é mera descrição poética, subitamente dotada
da beleza que no mundo real não se conhece.
A asseveração de que há mel derramando-se
da boca da esposa revela antes de ficção
amorosa, o bom trato da mulher para com a
sua boca. Tamanha é a grandeza objetiva dessa
percepção que o marido diz:
“Mel e leite se acham debaixo da
tua língua” (4:11).
Tal é a magia da boca na encantação do
amor, que os dentes são vistos como essen
cialmente importantes e dignos de observa
ção:
“ São os teus dentes
como rebanho de ovelhas recém-tos-
quiados,
que sobem do lavadouro,
e dos quais todos produzem gêmeos,
e nenhuma delas há sem crias” (4:2).
Numa linguagem contemporânea manifesta-
dora da realidade parafrasearíamos a poesia
supra da seguinte forma:
“ Os teus dentes
estão bem escovados,
devidamente higienizados,
estão todos completos.”
69
Novamente vale notar a impressão que essa
boa aparência dos dentes causa na mente do
cônjuge. É tal o impacto que ele repete a
poesia mais adiante:
“ São os teus dentes
como o rebanho de ovelhas,
que sobem do lavadouro,
dos quais todos produzem gêmeos,
e nenhuma delas há sem crias” (6: 6).
O rosto da esposa é percebido como uma
obra de arte, como uma arquitetura em car
ne e osso. Por isso até o nariz da companhei
ra é descrito com a força de uma comparação
arquitetônica:
“O teu nariz é como a torre do Lí
bano,
que olha para Damasco” (7:4b).
Certamente que a intenção do marido é
afirmar a forma bem construída do nariz de
sua esposa. Todavia, é verdade que esse con
ceito de beleza é tão lato quanto subjetivo,
tão misterioso quanto inexplicável, tão pro
fundo quanto impenetrável. Há uma ótica
cultural pela qual se enxerga a beleza.
O belo no ocidente pode ser o feio no
oriente. O atraente na Europa pode ser o re
pugnante na África. Isso porque a beleza é
mais conceituai e cultural do que objetiva e
pragmaticamente palpável.
O PESCOÇO
70
da contemporaneidade dos que se deixam
encantar pela beleza:
“O teu pescoço é como a torre de
Davi,
edificada para arsenal;
mil escudos pendem dela,
todos broquéis de valorosos” (4:4).
Outra vez a beleza é contemplada na pers
pectiva cultural: torre de Davi, escudos, bro
quéis. Alude-se assim aos adereços embele-
zadores do pescoço da esposa: colares, gar-
gantilhas e enfeites.
A perfeição e os belos contornos do pesco
ço da esposa são vistos como “uma torre
de marfim” (7 :4 ).
Essa meticulosidade do olhar poético do
marido tem muito a ensinar aos homens
acerca de seus olhares freqüentemente ge-
neralistas e incapazes de notar a beleza sutil
da esposa.
OS SEIOS
71
Numa alusão abreviada mas totalmente
semelhante ele diz:
“Os teus seios
como tuas crias,
gêmeas de uma gazela” (7:3).
Os seios da esposa são vistos como jovens
(duas crias), como iguais (gêmeas) e como per
fumados (entre os lírios). Esse trato da esposa
com o seio aparece também na relação compa
rativa com duas torres, eretas, rijas, sobres
saídas:
“Eu sou um muro,
e os meus seios
como as suas torres” (8 :10a).
Há no texto supra, como já vimos ante
riormente, não apenas uma alusão ao fato de
que os seios da mulher não eram tocados e
alcançados por qualquer ambição masculina
tornando-se ela assim digna de confiança —
mas há também uma referência ao trato para
com os seios. Por isso eles não são flácidos e
precocemente envelhecidos. Conservam-se em
pertigados como duas torres. Obviamente que
tal reivindicação tem tempo e hora. Afinal,
o corpo humano envelhece e morre.
Tamanha é a inspiração que o seio da es
posa gera no cônjuge que ele diz:
“Esse teu porte é semelhante
à palmeira,
e os teus seios a seus cachos.
Dizia eu: Subirei à palmeira,
pegarei em seus ramos.
Sejam os teus seios
como os cachos da vida” (7 :7 ,8 ).
São seios que convidam a serem tocados
como os cachos da palmeira e revelam-se
saborosos como os cachos da uva. É por isso
72
que o marido tem prazer em descançar em
seu regaço:
“O meu amado é para mim
um saquitel de mirra,
posto entre os meus seios” (1:13).
O UMBIGO
73
ta, bela e sensualmente própria:
“ O teu umbigo é taça redonda,
a que não falta bebida ” (7:2).
ELE
74
OS OLHOS
O ROSTO
75
afirmamos que esse dado é deveras impor
tante.
OS CABELOS
AS MÃOS
76
“As suas mãos
são cilindros de ouro,
embutidos em jacintos;” (5:14).
O VENTRE
77
AS PERNAS
78
Creio que se essas dimensões da vida forem
também redimidas na mentalidade evangéli
ca,então criar-se-á o espaço emocional e psi
cológico para a plena realização afetiva e
sexual de muitos casais cristãos, que hoje
vivem entre a monotonia ascética de suas
relações íntimas e o sentimento de culpa
promovido à categoria de pecado pela falsa
noção que se tem a respeito da condição
do físico e do sexual diante de Deus. Mas se
o leito for transformado num altar no qual os
sacerdotes (marido e mulher) tiverem espaço
para se movimentarem na santa e livre litur
gia do amor conjugal, certamente algo novo
nascerá em suas vidas.
79
CAPITULO VI
O ATO CONJUGAL:
A DANÇA DO AMOR
81
Igreja, é porque o paradigma (a união homem-
mulher) é igualmente misteriosa. O óbvio não
ilustra o misterioso. Somente o mistério es
clarece o mistério. O esclarecimento de um
mistério é a sua admissão como tal, na afir
mação de sua impenetrabilidade. A con-fu-
são sexual é imperscrutável na sua profundi
dade. É mistério.
Que linguagem pode haver de mais miste
riosa do que a dos beijos?
Que pode existir de mais profundo do que
confissões de amor?
Que pode acontecer de mais sublime no
espaço do corpo físico do que a mútua pro
moção do prazer?
O ato conjugal nada mais deve ser do que
o “Grand Finale” de todo um dia de respeito,
honra, carinho, carícias, amizade, desejo e
ansiedade.
Tudo quanto dissemos até aqui neste livro,
nos cinco capítulos antecedentes, tem a fina
lidade de mostrar a realidade de que o genuí
no ato conjugal é a consumação de um proces
so. Atos que não decorrem de processos são
apenas absurdos e incompreensíveis aconteci
mentos.
Sempre que o ato conjugal acontece apenas
na projeção do hepidérmico prazer que vem
pelo encontro de peles, corpos e formas o
que resulta é frustração e uma certa sensação
de se ter reduzido a vida ao piso dos seres de
instinto.
A relação sexual deve ser o balé do amor, o
show do desejo santificado, o espetáculo da
mútua satisfação, o festival da alegria dos
corpos, a comemoração de mentes reconcilia
das, a vitória dos fiéis.
82
Quem lê o Cantares percebe que o ato con
jugal deve ser uma afirmação de liberdade nas
fronteiras do corpo do outro. Peca-se por
excesso no sexo quando estende-se a fronteira
do prazer para outro corpo que não seja o do
cônjuge; ou quando se veste nos bastidores da
imaginação o corpo do parceiro (a) com a
aparência de alguém que não se pode possuir;
ou quando se usa o corpo do (a) parceiro (a)
sem respeito pelas suas próprias fronteiras psi
cológicas de inibição e retraimento. No mais,
os dançarinos de Cantares estão livres para
todos os movimentos que a melodia do amor
quiser e souber realizar, porque “a mulher
não tem poder sobre o seu próprio corpo, e,
sim o marido; e também semelhantemente, o
marido não tem poder sobre o seu próprio
corpo, e sim, a mulher” (I Co. 7:4). No ato
conjugal há uma troca de doações. Os reis
de auto-domínio apropriam-se e rendem-
se ao mesmo tempo a outros reinos. Há uma
permatura de autoridade. Por isso, tanto
mais madura é a relação quanto mais ambos
os cônjuges tenham conseguido estabelecer
essa “troca” sem criar constrangimentos um
no outro. E isso só se consegue mediante o
oferecimento de si mesmo ao domínio do ou
tro.
“ Levantemo-nos cedo de manhã
para ir às vinhas;
vejamos se florescem as vides,
se se abre a flor,
se já brotam as romeiras;
dar-te-ei ali o meu amor” (7:12).
Exatamente neste momento é que se impõe
a reflexão, acerca do ambiente favorecedor
da relação sexual. E claro que cada mente
83
tem seu próprio modelo Edênico em fantasia
na própria imaginação. Todavia, há alguns re
ferenciais básicos que muito podem contri
buir no norteio da preparação do cenário para
o ato conjugal.
A CASA
O QUARTO
84
guarda tesouros contidos em sons, sorrisos,
delírios e prazeres vividos a dois.
A CAMA
85
como cachos da vide,
e o aroma da tua respiração
como o das maçãs.
Os teus beijos são como o bom vinho”
(7:8, 9).
O que daí em diante acontece é somente
penetrado pela alegria dos dois ou melhor,
numa perspectiva devocional, pela alegria
dos três: do homem e da mulher que trocam
doações e pelo Deus que inventou e abençoa
esse encontro de amor.
86
CAPÍTULO VII
A MANUTENÇÃO DA POESIA
87
a chance de viver.
Ora, o tempo é perigoso mas também pode
ser o promotor do amor. Afinal, só há
saudade porque existe tempo e espaço, por
que as pessoas se separam, porque as esquinas
encobrem os nossos rostos àqueles que ama
mos.
O tempo é ambíguo:
Pode matar o sentimento
ou aumentá-lo.
É somente diante do tempo que demora a
passar que se pode dizer:
“Antes que refresque o dia,
e fujam as sombras,
volta, amado meu;
faze-te semelhante ao gama
ou ao filho das gazelas
sobre os montes escabrosos” (2: 17).
Exatamente neste momento é assim que me
sinto. Isso porque faz quinze dias que estou
longe de minha esposa. E quando escrevo es
tas linhas acho-me imensamente frustrado pe
lo fato de que vi-me obrigado a passar mais
três solitários dias num Hotel em Tel-Aviv. A
saudade aumenta mais porque sei que no
momento dessa minha afirmação de saudade
Alda embarca do Brasil na direção de Lisboa,
onde nos encontraremos na noite do quarto
dia. Mas o tempo que apaga lembranças, es
fria emoções, banaliza o sublime e transforma
o amor em hábito, pode, no entanto, conver
ter-se em sopro que acende um fogareiro na
alma, fazendo toda a força do amor nascer
na forma da saudade que quer o outro mais
que tudo.
A saudade é a dor dos pássaros
sem asa;
88
é o banzo dos desterrados da pátria
geográfica do amor;
é a revolta do coração contra o espaço;
é o sentimento que surge do choque
do sempre contra o nunca,
do hoje contra o amanhã,
do desejo contra a espera.
Saudade é o lado apaixonado da
esperança de ver, ter, possuir e amar...
Para que os cônjuges não desfaleçam con
gelados ante a frieza do tempo é preciso
que saibam usá-lo a seu próprio favor. E essa
esperteza do coração na luta contra o tempo
deve ser de uma perspicácia diária, deve usar
todas as situações para soprar a brasa da sau
dade.
O TRABALHO
89
te da manutenção do amor e da poesia no casa
mento. Assim é que para ela o trabalho dele
deve ser como um apascentar de rebanho en
tre os lírios:
“O meu amado é meu,
e eu sou dele;
ele apascenta o seu rebanho entre os
lírios” (2:16).
Ela também mantém uma sadia curiosi
dade a respeito de onde estará ele, o que esta
rá fazendo, como estará trabalhando:
“Dize-me, ó amado de minha alma:
Onde apascentas o teu rebanho,
onde o fazes repousar pelo meio-dia,
para que não ande eu vagando
junto ao rebanho dos teus
companheiros?”
Ao que ele responde:
“ Se tu não sabes,
ó mais formosa entre as mulheres,
sai-te pelas pisadas dos rebanhos,
e apascenta os teus cabritos junto
às tendas dos pastores ” (1:7 e 8)-
E interessante notar que ele a informa acer
ca de onde ela pode encontrá-lo durante o
dia:
“ Sai-te pelas pisadas dos rebanhos...
junto a tenda dos pastores” (1:8).
Se de um lado ela tem uma sadia curiosi
dade acerca do que ele faz —curiosidade essa
que até estimula e dignifica o companheiro —
por outro lado, ela mantém-se suficientemen
te informada a fim de responder àqueles que
lhe perguntarem acerca de onde está seu ma
rido e acerca do que faz:
“Para onde foi o teu amado,
ó mais formosa entre as mulheres?
90
Que rumo tomou o teu amado?
e o buscaremos contigo” — indagam
os amigos.
Ela responde:
“ O meu amado desceu ao seu jardim,
aos canteiros de bálsamo,
para pastorear nos jardins
e para colher os lírios.
. . . ele pastoreia entre os lírios”
(6:1 a 3).
A VOLTA DO TRABALHO
91
e tudo interiormente ornado
com amor pelas filhas de Jerusalém”
(3:6 a 10).
Essa volta do trabalho, depois do dia agita
do, na batalha pela sobrevivência, deve ser
marcada pela psicologia da raposa do Pequeno
Príncipe. Foi a rapozinha quem nos ensinou
que o ato de cativar o coração pelo amor surge
da esperança do encontro, da saudade
produzida por pequenas expectativas:
“Antes que refresque o dia,
e fujam as sombras,
volta, amado meu;
faze-te semelhante ao gama
ou ao filho das gazelas
sobre os montes escabrosos” (2: 17).
A SAUDADE
92
Levantar-me-ei, pois, e rodearei a
cidade,
pelas ruas e pelas praças;
buscarei o amado da minha alma.
Busquei-o, e não o achei.
Encontraram-me os guardas que
rondavam pela cidade.
Então lhes perguntei: Vistes o amado
da minha alma?
Mal os deixei, encontrei logo o amado
da minha alma;
agarrei-me a ele e não o deixei ir
embora, até que o fiz entrar
em casa de minha mãe, e na recâmara
daquela que me concebeu ” (3:1 a 4).
Sem dúvida a poesia conjugal se mantém
na medida em que sobre ela se exerce alguma
pressão e uma comedida dose de expectativa
pela presença do outro:
“Vem depressa,
amado meu
faze-te semelhante ao gamo
ou ao filho da gazela
que saltam sobre os montes aromáti
cos” (8: 14).
O SONHO
93
e a produção psicológica dos anelos da al
ma.
As vezes são os próprios pesadelos que
revelam nossos vínculos, ansiedades, desejos.
No Cantares a jovem esposa dorme com
saudade do companheiro que não chega para
lhe aconchegar nos braços, por isso sua neces
sidade de calor, amor, proteção e amizade
cria-lhe uma contra-partida psicológica. Ela
sonha que o marido chega, bate à porta,
mas retira-se em razão da demora dela em
abrir. Na percepção de que ele se fora ela lan-
ça-se ao seu encalço, noite a dentro, não o
achando. Pelo contrário, sua busca encontra
uma violência sexual ou semi-sexual.
Só nega a possibilidade de ter sido molestada
por um pesadelo dessa natureza a mulher que
estiver mentindo:
“ Eu dormia,
mas meu coração velava;
eis a voz do meu amado, que está
batendo:
Abre-me, minha irmã, querida minha,
pomba minha, imaculada minha,
porque a minha cabeça está cheia de
orvalho, os meus cabelos das gotas
da noite.
Já despi a minha túnica,
hei de vesti-la outra vez?
já lavei os meus pés,
tornarei a sujá-los?
O meu amado meteu a mão por uma
fresta, e o meu coração se
comoveu por amor dele.
Levantei-me para abrir ao meu amado;
as minhas mãos destilavam mirra,
e os meus dedos mirra preciosa
94
sobre a maçaneta do ferrolho.
Abri ao meu amado,
mas já ele se retirara e tinha ido
embora;
a minha alma se derreteu quando
antes ele me falou;
busquei-o, e não o achei;
chamei-o, e não me respondeu.
Encontraram-se os guardas que
rondavam pela cidade;
espancaram-me, feriram-me;
tiraram-me o manto os guardas
dos muros” (5:2 a 7).
A mim é impossível ver esse texto senão
como um pesadelo em razão de que não
posso conceber que os guardas vistos como
protetores da noite (3: 3,4), passem subita
mente ao plano da violência (5:7).
De fato a esposa está apenas descrevendo uma
realidade subjetiva e psicológica: seu sonho
de mulher ansiosa, insegura e apaixonada em
meio à noite longa e solitária.
Quando os cônjuges se desejam e introje-
tam seus desejos mútuos na intimidade sub
consciente, então o próprio sonho que daí
advém torna-se promotor da realidade positi
va em oposição àquela que neles era o tema
do susto, do medo e do desejo frustrado.
O IMPROVISO
95
antes da hora (3:5; 2:7). Todas as vezes que
se tenta fazer do amor parte de um rígido
mecanismo existencial ele se cristaliza.
Converte-se em patrimônio da moral e nada
mais.
O amor como fenômeno vivo, quente, ra
diante e poético só sobrevive onde lhe dão
espaço. Ele é essencialmente livre e necessita
de luz e calor. O amor não perdura nos frios
limites dos mecânicos planos daqueles que
não são capazes de improvisar uma brincadei
ra, uma aventura, um passeio, uma festa, um
sorriso, uma frase, uma confissão. . .
Na cidade de Aco (Ptolemaida) no litoral
norte de Israel há uma figueira que foi planta
da dentro de um pátio jscuro, no interior de
um prédio que está sobre o que fora uma for
taleza cruzada dos franceses templários.
O curioso é observar que a necessidade de
vida e liberdade da figueira foi tão forte e in-
dômita que fez com que ela simplesmente
atravessasse a parede por um estreito cami
nho para o lado de fora, à rua, a fim de en
contrar o espaço que dentro lhe faltava.
O amor tem essa obssessão da figueira. No
estreito espaço do comportamentalismo petri
ficado e incapaz do novo ele torna-se fóssil,
guardado no museu do casamento, para ser ex
posto como interessantíssimo fenômeno que
existira no passado.
No âmbito e na fronteira do amor puro e
exclusivo entre um homem e sua mulher deve
se ter liberdade para freqüentes inovações
e surpresas. Assim é que a esposa de Cantares
é capaz de se dar ao seu marido não apenas
no seu leito conjugal, mas era capaz de pro
mover uma possibilidade súbita e apaixonada
96
para que o amor de ambos se expressasse
numa entrada fortuita no quarto da mãe
dela, visitada inesperadamente pelo casal
bem cedo da manhã:
“ encontrei o amado da minha alma;
agarrei-me a ele
e não o deixei ir embora,
até que o fiz entrar em casa de minha
mãe, na recâmara daquela
que me concebeu ” (3;4).
A seguir ela diz que fez assim porque o
amor é como torrente irrepresável, como for
ça irreprimível, como gigante que quando
acordado torna-se invencível:
“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas e cervas do campo,
que não acordeis,
nem desperteis o amor,
até que este o queira ” (3:5).
Um casal que aprende a manter a novidade
e a criatividade está possibilitando espaço
para a sadia expansão do amor.
Outro elemento de promoção do novo no
casamento é a freqüência no quebrar a rotina
e a monotonia da vida a dois, não permitin
do que a vida dos dois se circunscreva somen
te à casa ou ao mesmo lugar.
Esse casal de Cantares é capaz de sair jun
to à noite para jantar. Na descrição da esposa
o marido a leva a um banquete:
“Leva-me à sala do banquete,
e o seu estandarte sobre mim é o
amor” (2:4).
Essa capacidade de quebrar o círculo vicio
so da vida familiar, por melhor que ele seja,
é extremamente necessária à relação do casal.
97
Na realidade essa alegria conjugal dos apai
xonados do Cântico dos Cânticos ganha me
lodias festivais. A tal ponto que eu hesito em
escrever o que escreverei pelo fato de conhe
cer a capacidade mórbida e tirânica de certos
“cristãos” , cuja religiosidade se deixou
tomar por um ascetismo hipócrita e
castrante, que é a própria negação da vida e
do amor. Mas não importa. Seja como for,
eu prossigo. Direi o que devo dizer, pois nada
estarei declarando que a própria poesia do
Cantares não esteja declarando antes.
Na relação dos dois cônjuges do Cântico
dos Cânticos, paradoxalmente, a liberdade e
a espontaneidade se converteram em leis
dogmáticas, criando espaço para eles se ex
pressarem como sentiam que deviam.
O único dogma do amor é a liberdade san
ta que gera um respeito livre. Tamanha é essa
espontaneidade que Cantares põe na boca
da esposa a afirmação de que sua dança era
desejável de se ver:
“Por que quereis contemplar
a sulamita
na dança de Maanaim?” (6:13).
A nossa reflexão sobre a manutenção da
poesia no casamento prossegue buscando en
contrar novos meios e formas de se manter
o coração alerta e acordado diante do amor.
No aguçar das nossas observações desco
brimos que a esposa ia engravidar sua imagi
nação de amor na beleza de um jardim:
“ Desci ao jardim das nogueiras,
para admirar os renovos do vale,
para ver se brotavam as vides,
se floresciam as romeiras” (6:11).
Não somente ela tentou ter a mente cheia
98
do belo e do poético, mas também ele é capaz
de imaginar a beleza de umas férias de verão e
convidá-la para realizar tal programa:
“Levanta-te, querida minha,
formosa minha, e vem.
Porque eis que passou o inverno,
cessou a chuva e se foi;
aparecem as flores na terra,
chegou o tempo de cantarem as aves,
e a voz da rola ouve-se em nossa terra.
A figueira começou a dar seus figos,
e as vides em flor exalam o seu aroma;
levanta-te, querida minha,
formosa minha, e vem” (2 :1 0 a 13).
Mais adiante ele faz novo programa de pas
seio para ambos. Convida-a para uma escala
da nos montes do norte:
“Vem comigo do Líbano,
noiva minha,
vem comigo do Líbano;
olha do cume de Amaná,
do cume de Senir e de Hermom
dos covis dos leões,
dos montes dos leopardos” (4:8).
A certeza de que o sair do ambiente da luta
pela vida é um necessário êxodo para uma
liberdade tranquila e criativa tornou-se tam
bém um patrimônio da compreensão da espo
sa:
“Vem, ó amado meu,
saiamos ao campo,
passemos as noites nas aldeias.
Levantemo-nos cedo de manhã
para ir às vinhas;
vejamos se florescem as vides,
se se abre a flor,
se brotam as romeiras;
99
dar-te-ei ali o meu amor” (7:11, 12).
Não é possível descrever-se apelo mais belo,
santo e convidativo do que o desta esposa.
Quanta poesia,
beleza,
cheiro,
cor,
simplicidade,
. prazer,
vida,
amor!
É assim que a poesia se mantem no casa
mento. Mas, obviamente, não estamos pensan
do que as coisas são fáceis e simples conforme
descrevemos até aqui.
Naturalmente é verdade que Cantares nos
apresenta algumas dificuldades e não somente
poesia.
É o que veremos a seguir.
100
CAPITULO VIII
AGENTES CIRCUNSTANCIAIS
POSITIVOS E NEGATIVOS
101
ram a flor do amor e da amizade dos cônjuges.
Dessa forma a luta se estabelece e os guer
reiros cuja bandeira é o amor, têm que vencê-
la (2:4).
A CONCORRÊNCIA
102
cológico da relação não baixe o nível, criando
assim espaço para que o outro cônjuge, ainda
que inconscientemente, comece a estabelecer
comparações e a desenvolver anelos direcio
nados para fora do círculo conjugal.
A MINIMIZAÇAO
103
relação de um casal do que essa falsa idéia de
que o cônjuge não nos merece, ou então, essa
impressão de que se deu o coração ao vulgar,
aq comum ou ao banal. Quando na vida a dois
se desmoronam esses pilares, então a estrutura
conjugal está prestes a cair ou a manter-se
num constante exercício de equilíbrio, me
diante escoras frágeis que não aguentam os
vendavais.
OS DESNÍVEIS SOCIAIS
104
dade, sem os fantasmas que lhe povoam a
mente com as possíveis idéias daqueles que a
conhecem e a criticam. Assim é que ela prefe
riría que ele tivesse o nível social dos irmãos
dela. Se fosse assim, ela não se constrange
ría em beijá-lo em praça pública, sob os o-
lhares dos conhecidos. E ainda mais: ela se
sentiría à vontade na casa dos seus familia
res, sem ter que vigiar-se tan to :
“Oxalá fossses como o meu irmão,
que mamou os seios de minha mãe!
Quando te encontrasse na rua,
beijar-te-ia,
e não me desprezariam!
Levar-te-ia e te introduziría
na casa de minha mãe,
e tu me ensinarias;
eu te daria a beber vinho aromático
e mosto das minhas romãs” (8:1 a 3).
Pior do que o preconceito externo e dire
cionado àquele (a) que é socialmente oriundo
de uma camada inferior, é a psicologização
desse sentir, quando introjetado por aquele
que se sente a vítima do preconceito. Ou seja,
mais prejudicial do que ser segregado e rejei
tado é ver-se como tal, assumindo-se esse
abissal posto de pessoa de segunda categoria,
guindada — segundo ela mesma pensa — à
uma situação melhor pelo oportunismo for
tuito.
Nesse ponto é imprescindível a ação do ou
tro parceiro, aquele que não é a vítima do
preconceito, no sentido de afirmar sua inten
ção absoluta e consciente de direcionar seu
amor àquela pessoa, o cônjuge sofrido e des
confiado. Dessa forma o marido do Cântico
105
dos Cânticos diz:
“Debaixo da macieira te despertei,
ali esteve tua mãe com dores;
ali esteve com dores aquela
que te deu a luz” (8:5b).
Assim asseverando, ele indica que sua re
lação com ela é consciente, assumida e livre. Ele
conhecia sua casa, sua mãe e sua história.
Escolheu-a sabendo disso tudo, e não fortui-
tamente.
Hodiernamente esse nível de segregação
social encontra outras facetas. Introduz-se
no conflito a questão da educação universitá
ria, os meios profissionais, a origem da famí
lia, etc. . . E fundamental que os cônjuges es
tejam dispostos a amparar e afirmar um ao
outro, a fim de que o complexo de inferiori
dade não se exacerbe, gerando uma profunda
amargura, sempre danosa e auto-destrutiva.
Parece que na superação desse sentimento de
inferioridade o marido usou como elemento
de afirmação da companheira, a demonstração
do valor dela, mediante a organização de um
negócio por ela gerido:
“A vinha que me pertence está
ao meu dispor;
Tu, ó Salomão, terás os mil siclos,
e os que guardam o fruto dela,
duzentos” (8:12).
A FAMÍLIA
106
visita repentina dela e do marido (3:4); além
disso a relação do seu marido com a mãe
dela parece ser franca e livre (8:5b). Todavia,
os grandes problemas familiares desse casal
residem basicamente na atitude super prote
tora e despótica dos irmãos dela.
Os irmãos dela são capazes de impor a
ela certas funções e serviços que lhe prejudi
cavam:
“Os filhos de minha mãe
se indignavam contra mim,
e me puseram
por guarda de vinhas. . .” (1:6b).
Como se isso não bastasse eles se sentiam
no obsessivo dever de protegerem-na:
“Temos uma irmãzinha,
que ainda não tem seios;
que faremos a esta nossa irmã,
no dia em que for pedida?
Se ela for um muro,
edificaremos sobre ele uma torre
de prata;
se for uma porta
cerca-la-emos com tábuas de cedro”
(8:8,9).
Sem dúvida é uma grande bênção ter pes
soas que se preocupem conosco. Os resultados
do cuidado de outros por nós pode ser muito
positivo. O problema todo é quando esse
estado de proteção vira protecionismo, espe
cialmente quando perdura como tal mesmo
depois que o objeto dele transfere suas liga
ções para o cônjuge, como é natural, após o
casamento. E bom ter pais que nos abram sua
casa (3:4) e que sejam amigos íntimos do nos
so cônjuge (8:5b). Também é bom ter paren
tes chegados que se preocupem conosco (8:8,
107
9). Além disso, é ótimo ter amigos que se
jam da nossa intimidade (8:13). O que não é
bom é que haja ingerência de qualquer tipo so
bre a vida do casal.
O marido e a mulher são dois numa carne
e sua ligação é um mistério indevassável:
“Eis por que deixará o homem
a seu pai e a sua mãe,
e se unirá à sua mulher,
e se tornarão os dois
uma só carne.
Grande é este mistério. . .” (Ef 5:31,
32b).
Como disse claramente na introdução
desse livro não me estou oferecendo como
diapasão conjugal. Minha vida está longe dos
mais belos e afinados dos sons dessa orquestra
conjugal do Cantares. Mas Deus sabe, e minha
esposa também, como tenho tentado andar
na direção de afinar a minha modesta orques
tra conjugal pela melodia da sinfonia do Cân
ticos dos Cânticos. Se isso acontecer, minha
simples orquestra se transformaria numa fi
larmônica do amor conjugal.
Apesar das lutas e ambigüidades da vida,
Deus sabe o quanto eu quero isso.
Concluo este livro consciente das tremen
das implicações que significa tentar encarnar
os ideais nele expostos. Mas o faço na certeza
de que o Espírito Santo há de conceder graça
a mim e aos meus leitores, a fim de que haja
uma cura profunda na vida conjugal de tan
tos quantos — amando o amor — queiram
viver histórias que sejam canções para a glória
de Deus.
108
APÊNDICE
PREVENÇÃO DE PROBLEMAS
CONJUGAIS
109
manutenção e prevenção de problemas no
casamento.
Minha perplexidade advinha não do prag
matismo traduzido em princípios — método
tão incomum à psicologia moderna — mas do
conteúdo exposto pelo especialista, tão estra
nho aos conceitos expostos em geral pelos
psicólogos. Suas declarações mais se asseme
lhavam àquelas expressas por pastores em tex
tos de aconselhamento conjugal. Dada a sim
plicidade e praticidade dos princípios, resolvi
enunciá-los sem maiores comentários. Tão
somente acho justo lembrar que eles
procedem das observações de um psicólogo
que elaborou seus estudos a partir de fatos
concretos e de repetidas narrativas. Nesse caso
nossa atenção deve recair sobre o fato de que
ele chegou na prática, estatisticamente, a al
gumas conclusões que a Bíblia nos induz a
chegar. Para que isso fique claro tentarei fazer
uma relação entre os princípios enunciados
pelo psicólogo e os textos bíblicos explícitos
que possam lhes ser pertinentes.
Conquanto eu não seja daqueles que cos
tumam dar “receitas de felicidade” , no entan
to julgo que os princípios acima listados
podem ser de extrema valia para aqueles que
desejam nortear sua caminhada por um m í
nimo de certezas promotoras de um balisa-
mento útil à condução da vida a dois.
Além disso, penso que a inserção destes
princípios de prevenção de problemas conju
gais, pode dar um certo toque necessário de
pragmatismo a um livro tão fluido, utópico
110
e idealista como este nosso comentário de
Cantares.
Na realidade, creio que a poesia do livro
pode açucarar esses frios princípios e os prin
cípios podem direcionar e dar concreção
histórica a essas idealistas poesias conjugais do
Cântico dos Cânticos.
A fórmula, portanto, é a de um pragmatis
mo poético e de uma poesia pragmática e
praticável.
Que Deus tom e história nossos melhores
sonhos e ideais conjugais, mesmo em meio aos
inevitáveis e necessários conflitos do nosso
existir h u m a n o ......................
111
1- Princípio I Co. 6:14 a 16
Os cônjuges ajustam-se melhor quan O texto fala por
do praticam a mesma fé. si mesmo.
2- Princípio: Pv 30:18,19.
O casamento tem mais chance de ser Notar que a ên
ajustado quando os implicados tiveram fase não está no
um namoro de no mínimo 1 ano. encontro, mas
no caminhar, no
estar juntos, no
conhecer.
3- Princípio: Pv 31:13 a 20
As possibilidades de ajustamento na A mulher de pro-
relação a dois crescem quando os côn vébios é capaz de
juges têm o mesmo nível intelectual, de solucionar pro
interesses e de potencialidades. blemas normal
mente apenas da
alçada dos ho
mens.
4- Princípio: Rm 14:5
Uma certa diferença de pontos de Conquanto esse
vista desde que não tantos e nem tão princípio preten
profundos - ajudam em muito a criar da criar um espa
um certo espaço de criatividade entre ço de convívio
o casaL entre os crentes,
no entanto, sua
observância é vá
lida também no
casamento.
112
6- Princípio: Pv. 5:18-20
As idades dos parceiros conjugais não O que se diz é
devem ser tão diferentes a fim de que que o parceiro é
não decorram certas defasagens de in da mocidade.
teresses e potencialidades físicas e emo Pressupõe regula-
cionais. gem etária.
7- Princípio: Eclesiastes4:9-12
É imprescindível que os dois implica O que se vê nes
dos no projeto conjugal tenham a mesma te texto é uma
concepção a respeito do papel, do valor determinação
e do significado do casamento. mútua inque-
brantável, além
de uma mesma
visão.
113