Autolesão
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Autolesão
Social
ISSN: 2318-8413
refacs@uftm.edu.br
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Brasil
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial 4.0 Internacional.
Artigos Originais
Resumo:
Estudo descritivo de caráter exploratório que fez uso combinado de métodos quantitativos e qualitativos, realizado num município
do interior mineiro, em 2019, com objetivo de analisar a ocorrência e as características da autolesão entre adolescentes de uma escola
pública. Aplicou-se questionário de autorrelato baseado na Escala de Comportamento de Autolesão, e a interpretação dos dados
se deu por estatística descritiva e pela análise de conteúdo temática. Participaram 112 estudantes do Ensino Fundamental II, dos
quais 63% do sexo feminino; entre 11 a 16 anos; 59% relataram ter realizado autolesão pelo menos uma vez na vida, principalmente
se morder, cutucar ferimento, se bater e se cortar; em 56% a autolesão ocorreu nos últimos 12 meses. Emergiram três categorias:
Autolesão e intenção suicida; Razões da autolesão; e Diálogos e narrativas dos estudantes sobre autolesão. O alívio de sentimento
negativo foi a principal explicação para autolesão, associando à depressão, bullying e problemas familiares. As/os pesquisadas/os
consideram a autolesão um problema relevante, polêmico e pouco abordado pela escola. A abertura de espaços de diálogos na escola
para esta demanda mostra-se essencial para o enfrentamento da autolesão em escolares.
Palavras-chave: Automutilação, Adolescente, Estudantes, Saúde mental.
Abstract:
Descriptive, exploratory study that used combined quantitative and qualitative methods, carried out in a city in the interior of
the state of Minas Gerais, in 2019. It aimed to analyze the occurrence and characteristics of self-injury among adolescents in a
public school. A self-report questionnaire based on the Self-Injury Behavior Scale was applied, and data were interpreted using
descriptive statistics and thematic content analysis. 112 students from Middle School participated, of which 63% were female;
between 11 to 16 years old; 59% reported having performed self-injury at least once in their life, especially biting, poking wounds,
hitting and cutting themselves; in 56% the self-injury occurred in the last 12 months. ree categories emerged: Self-injury and
suicidal intent; Reasons for self-injury; and Student dialogues and narratives about self-injury. e relief of negative feelings was
the main explanation for self-injury, associated with depression, bullying and family problems. e people interviewed consider
self-injury to be a relevant, controversial problem and little addressed by the school. e opening of spaces for dialogue at school
for this demand proves to be essential for coping with self-injury in schoolchildren.
Keywords: Self mutilation, Adolescent, Students, Mental health.
Resumen:
Estudio descriptivo, de carácter exploratorio que hizo uso combinado de métodos cuantitativos y cualitativos, realizado en un
municipio del interior de Minas Gerais, en 2019, con el objetivo de analizar la ocurrencia y las características de la autolesión
entre adolescentes de una escuela pública. Se aplicó un cuestionario de autoinforme basado en la Escala de Comportamiento de
Autolesión y la interpretación de los datos se realizó mediante estadística descriptiva y análisis de contenido temático. Participaron
112 estudiantes de la Escuela Primaria II, de los cuales, el 63% eran de sexo femenino; entre 11 y 16 años; el 59% informó haber
realizado autolesiones al menos una vez en su vida, principalmente morder, pinchar heridas, golpearse y cortarse; en el 56% la
autolesión ocurrió en los últimos 12 meses. Surgieron tres categorías: Autolesiones e intentos de suicidio; Motivos de la autolesión;
y Diálogos y narraciones de los estudiantes sobre autolesiones. El alivio de un sentimiento negativo fue la principal explicación para
la autolesión, asociándola con la depresión, el bullying y los problemas familiares. Los entrevistados consideran que las autolesiones
son un problema relevante, controvertido y poco abordado por la escuela. La apertura de espacios de diálogo en la escuela para esta
demanda es fundamental para afrontar la autolesión en los alumnos.
Palabras clave: Automutilación, Adolescente, Estudiantes, Salud mental.
INTRODUÇÃO
O ato de lesar o próprio corpo sem que haja intenção de suicídio vem aumentando entre os/as adolescentes
brasileiros/as, principalmente no contexto escolar01. O enfrentamento deste fenômeno tem desafiado
profissionais da educação e da saúde que se veem na obrigação de notificar os casos de violência
autoprovocada. A notificação compulsória é uma das ações estabelecidas na política nacional de prevenção
de lesões autoprovocadas, que visa informar e sensibilizar a sociedade sobre a relevância da autolesão como
problema de saúde pública, passível de prevenção02.
A Sociedade Internacional para o Estudo da Autolesão define a autolesão não-suicida como o dano
deliberado e autoinfligido ao tecido corporal, que ocorre sem intenção suicida e sem perspectivas sociais
ou culturalmente sancionadas03. Vários termos são usados para designar esse fenômeno, tais como:
automutilação, autoagressão, comportamentos autolesivo, conduta autolesiva e autolesão não suicida04.
No Brasil, automutilação é o termo mais comum. Entretanto, este estudo adota o termo autolesão,
por ser a denominação mais aceita internacionalmente, bem como outros similares: conduta autolesiva e
comportamento autolesivo; com referência a comportamentos que não tem caráter suicida04.
Na psiquiatria, a autolesão é descrita tanto como um sintoma de alguns transtornos mentais como também
um transtorno em si mesmo. Na quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-V)05, a autolesão sem intenção suicida foi incluída na categoria dos transtornos que necessitam de
mais pesquisas e revisão de critérios diagnósticos para que resulte em uma nova categoria diagnóstica nas
próximas edições deste manual.
Entre os critérios indicados no DSM-V, tem-se: ter causado, no ano anterior, em cinco ou mais dias,
danos autolesivos na superfície de seu corpo que provavelmente induziram sangramentos, contusões ou dor
(exemplos: cortes, queimaduras, lesões, fricção excessiva), com a expectativa de que tais atos pudessem levar
a apenas um dano físico leve ou moderado, sem intensões suicidas05.
Há dois modos de classificar a autolesão: um é em relação ao tipo e o outro à gravidade. Em relação ao
tipo, apresentam-se quatro categorias de classificação: maior ou do tipo grave (comportamentos letais ou
que causam ferimentos irreversíveis); estereotipada (comportamentos repetitivos, com gravidade variável);
compulsiva (tricotilomania e onicofagia); impulsiva (cortar-se, queimar-se, bater-se)06. A respeito da
gravidade, a autolesão pode ser classificada em: grave (cortes na pele, queimaduras, cutucar áreas do corpo até
sangrar intencionalmente); moderada (bater em si mesmo e arrancar cabelos); e leve (morder em si mesmo,
arranhar a pele propositalmente)07.
Quanto às características da autolesão, as motivações para a prática são variadas, sendo mais relatada pelos
adolescentes a busca de alívio de sentimentos e afetos indesejados03. Diferentes pesquisas apontam maior
prevalência em adolescentes do sexo feminino3,7. Por esse motivo, optou-se por flexionar o gênero na escrita
desse artigo com intuito de alcançar e dar visibilidade as diversas categorias identitárias, buscando construir
uma linguagem múltipla não-sexista08.
A ocorrência da prática tende a iniciar na adolescência e a diminuir na idade adulta03. As subjetividades
dos/as adolescentes, produzidas a partir do meio sociocultural são essenciais de serem abordadas para
entender a autolesão nesta fase. Não há como pensar a constituição psíquica sem pensar no laço social que
a enseja09. A questão do laço está no centro da passagem adolescente, passagem do cenário familiar para
o cenário social, e dificuldades de inscrição no laço social09. As condições sociais atuais parecem facilitar
a adoção de comportamentos autolesivos, compreendidos como fenômeno complexo que inter-relaciona
fatores subjetivos e sociais.
A escola se constitui como ambiente de grande influência na formação do indivíduo, cuja vivência é
essencial para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional. Desse modo, a escola constituí campo
indispensável para acompanhar, monitorar e compreender fatores de risco e proteção dos/as escolares10.
A escola é lócus de estudo por ser o ambiente em que os/as adolescentes passam a maior parte de seu tempo,
expressam os dilemas vivenciados na juventude, além de ser entendida como espaço vital para promover
saúde11. Promoção da saúde é educar os/as alunos/as para hábitos de vida diferentes, por meio de atividades
que possibilitem o seu desenvolvimento, bem estar, à sua condição de se tornar sujeito da sua própria história
e cidadania12.
Existem poucas pesquisas brasileiras publicadas sobre autolesão em adolescentes07. Observa-se que as
pesquisas se debruçam sobre caracterização, frequência e perfil; poucas buscam compreender o que os/as
adolescentes pensam sobre a autolesão. Tendo em vista esta lacuna e a urgência de tratar sobre a autolesão
considerando a perspectiva dos/as estudantes, este estudo teve como objetivo analisar a ocorrência e as
características da autolesão entre adolescentes de uma escola pública.
MÉTODO
Trata-se de um estudo descritivo, de caráter exploratório que fez uso combinado de métodos quantitativos
e qualitativos, realizado com estudantes de uma escola pública de Uberaba - MG. A escolha da escola se deu
por conveniência. Esta instituição escolar recebe alunos de vários bairros da cidade, pertencentes a diversas
classes socioeconômicas e oferece ensino para alunos do 1° ao 9° ano do Ensino Fundamental.
Os/as participantes responderam um questionário, contendo perguntas fechadas e abertas, construído
com base na Escala de Comportamento de Autolesão13. Além de questões de caracterização dos/as
participantes, o questionário foi composto por questões sobre a prática de autolesão e suas características,
intenção suicida associada, razões da autolesão, conhecimento dos/das adolescentes com autolesão e o que
pensam sobre esse fenômeno.
A coleta ocorreu em setembro de 2019, foi conduzida por uma equipe composta pelos/as pesquisadores/
as discentes do curso de Psicologia da UFTM. Esta equipe se dividiu em duplas e passaram em 18 turmas do
Ensino Fundamental II, convidando os/as adolescentes a participarem da pesquisa.
Como critérios de inclusão, considerou-se: idade entre 11 e 16 anos, ser estudante do Ensino
Fundamental II do período matutino. Foram excluídos/as os/as estudantes que não entregaram o Termo de
Consentimento do Responsável Legal assinado no dia da coleta.
Para proceder a análise, todas as respostas dos questionários foram codificadas e digitadas em planilhas
Do programa Microso Excel 2019. Para análise descritiva (questões fechadas), foram realizados cálculos de
frequências (absolutas e relativas) e médias. A análise qualitativa (questões abertas) seguiu a técnica de análise
de conteúdo14. Esta compreendeu as seguintes fases: leitura geral do material; codificação para formulação
de categorias; recorte do material em unidades de registro com mesmo conteúdo semântico; formulação
das categorias que se diferenciaram; agrupamento progressivo das categorias e inferência e interpretação
respaldadas na literatura pertinente. Visando anonimato, os/as participantes foram identificados com a letra
“P” seguido de número arábico, P1 a P112.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro,
parecer N. 3.139.161, atendendo às recomendações previstas na Resolução 466/12, de 12/12/201215, do
Ministério da Saúde. Todos/as os/as participantes, por serem adolescentes, tinham que trazer Termo de
Consentimento do Responsável Legal e o seu Termo de Assentimento. Os/as participantes e seus respectivos
responsáveis foram esclarecidos da confidencialidade e anonimato, bem como a proposta do trabalho, sendo
obtidos os consentimentos e assentimentos informados antes da coleta. Os/as participantes avaliados em
situação de risco ou que indicaram no questionário interesse em conversar com os/as pesquisadores/as foram
contatados/as, entrevistados/as e encaminhados/as para atendimento, quando necessário.
RESULTADOS
Como elegíveis, tinha-se 440 estudantes matriculados na escola no turno matutino; 328 não participaram
por falta de interesse ou não atendiam os critérios de inclusão. Participaram 112 adolescentes, com idade
entre 11 e 16 anos (.=12,5 anos), maioria do sexo feminino (63%), estudantes do 6º ao 9º ano.
Entre os pesquisados, 59% indicaram realizar algum tipo de comportamento autolesivo pelo menos uma
vez na vida, sendo mais frequente no sexo feminino (71%) e, em 56%, a autolesão ocorreu nos últimos 12
meses.
O principal método utilizado pelos/as adolescentes foi “se morder” (76%), “cutucar ferimento” (50%),
“bater em si próprio” (50%), seguido de “se cortar” (41%). Se queimar foi o menos frequente (3%). Outros
tipos de autoagressão manifestados foram: dar socos na parede e/ou objetos e se arranhar.
TABELA 1
Métodos/tipos de autolesão, segundo estudantes de uma escola pública. Uberaba, Minas Gerais, 2019.
Em relação à quantidade de métodos/tipos de lesão autoinfligida, 24% do grupo com autolesão indicou
apenas um tipo, 29% dois tipos e 47% reportaram ter realizado três tipos de autolesão (Tabela 2).
TABELA 2
Número de métodos de autolesão, de acordo estudantes
de uma escola pública. Uberaba, Minas Gerais, 2019.
A idade da 1ª autolesão ocorreu entre 11 e 12 anos em 42% dos entrevistados, e entre 9 e 10 anos em 21%..
Entretanto, 10% revelou comportamento autolesivo antes dos 9 anos (Tabela 3).
TABELA 3
Idade da 1ª autolesão, segundo estudantes de uma escola pública. Uberaba, Minas Gerais, 2019.
Das questões abertas emergiram três categorias: Autolesão e intenção suicida; Razões da autolesão; e Diálogos
e narrativas dos estudantes sobre autolesão.
Não houve intenção suicida no momento da autolesão por 68% dos/as adolescentes:
Nunca desejei. (P64)
Nunca pensei em fazer esse tipo de comportamento. (P54)
Entretanto, 32% dos/as estudantes indicaram algum nível de intenção suicida. Os/as estudantes sugerem,
no ato de se lesionar, um sentimento ambivalente ou dúvida em relação à intenção suicida:
Não sei explicar ao certo. (P35)
Outros/as revelaram que já pensaram no suicídio, apesar de se lesionarem sem intenção suicida:
Mas já pensei em tirar minha própria vida. (P110)
Também, há aqueles/as que reconheceram o caráter impulsivo do comportamento de autolesão, feito sem
planejamento ou ideia de morte:
Fiz sem pensar. (P42)
Razões da autolesão
O alívio de sentimento negativo (dor, raiva, angústia e ansiedade) foi o mais citado:
Acabar com a dor que estava sentindo. (P9)
Apenas para aliviar. (P78)
Foi por nervosismo. (P92)
Foi citado também raiva/insatisfação direcionada para si mesmo/a e autolesão visualizados na internet:
DISCUSSÃO
59% dos/as alunos/as realizaram algum comportamento autolesivo pelo menos uma vez na vida. Pesquisa
realizada com adolescentes indica estimativa divergente de 13%16. As prevalências foram diferentes,
provavelmente pelos conceitos e métodos usados nas pesquisas7,17.
A prevalência de autolesão indicou que praticamente um terço dos/as estudantes (33%) realizou autolesão
nos últimos 12 meses. Este dado é semelhante à investigação realizada com adolescentes suecos18, na qual
35,6% dos/as adolescentes relataram pelo menos um episódio de autolesão durante o último ano. Em um
estudo com estudantes de Divinópolis-MG, 9,48% desses estudantes relataram ter realizado autolesão no
mínimo cinco vezes no último ano07. A frequência de episódios de autolesão realizados no período de um
ano é um dos critérios para diagnóstico05.
Perceber a alta prevalência da autolesão não significa dizer que há muitos/as adolescentes enquadrados/as
em um transtorno mental. Como explicar um número alto de adolescentes que se machucam de propósito?
Uma possível explicação é o contágio social19.
A autolesão é uma experiência discutida entre os/as adolescentes (online . offline) e reproduzida em seus
círculos de amizade; assim é possível que, devido ao contágio social, a processos culturais ao seu redor e
ao processo fluido de formação de identidade na adolescência, eles/as identifiquem e inconscientemente
selecionem um sintoma socialmente “disponível” como forma de expressão20.
Os tipos de autolesão mais relatados foram: morder-se, cutucar ferimento, bater em si próprio e cortar-se;
76% já realizou mais de um tipo destes comportamentos. Pesquisa conduzida com estudantes de outra cidade
mineira. demonstra dados semelhantes, incluso utilizar até três métodos de autolesão, variando a intensidade.
Ter conhecimento do número de métodos autolesivos junto com o tipo de autolesão e o potencial de causar
dano, permite classificar a conduta como sendo grave, moderada ou leve21. Os comportamentos dos/as
estudantes desta pesquisa são de menor gravidade e de caráter impulsivo6-7.
No que tange à idade da primeira autolesão, os/as adolescentes apontaram fazê-la entre os 11 e 12 anos,
sendo a ocorrência mais frequente em meninas. Esses dados são convergentes com outros trabalhos7,22, que
indicam a primeira ocorrência entre os 11 e 15 anos, mais comum entre o sexo feminino7,21.
A maioria negou autolesão com intenção suicida, apesar de 32% expressarem tal interesse. Um estudo
sugere que pessoas que se machucam tem mais probabilidade de tentar suicídio do que aquelas que não
o fazem23. Por mais que a conduta autolesiva não esteja associada à tentativa de suicídio, a presença de
comportamento autolesivo confere risco para pensamentos e comportamentos suicidas no futuro23.
Como motivação principal para a autolesão, observou-se o alívio de emoções negativas. Investigação
demonstrou o mesmo resultado da busca de alívio para sensação de vazio ou indiferença07. Pesquisa
internacional apontou resultados semelhantes24. Outro estudo indica também regulação emocional,
especificamente, o alívio da tensão afetiva25. A autopunição como uma função apareceu nas justificativas,
de modo que se machucar expressa raiva contra si mesmo, a própria derrogação, ou punição por maus
pensamentos24.
O alívio de emoções negativas como função compõe um roteiro difundido nas mídias pelos/as profissionais
de saúde20. Na tentativa de organizar, significar e comunicar o seu sofrimento, o/a adolescente reproduz esse
discurso pré-existente20.
Os/as estudantes relatam que tem ou teve conhecimento de algum adolescente com autolesão e já tentou
conversar com ele/a sobre. O teor dos diálogos expressa a dissuasão do/a adolescente da prática, mas também
pode assumir tom de ameaça e culpabilização.
Chama-se atenção para o uso da linguagem adequada para falar com pessoas que se machucam, de modo
a garantir uma abordagem menos estigmatizante e mais empática26. A utilização do termo “comportamento
desadaptativo” para se referir a autolesão abre precedentes para o estigma e a incompreensão26, em
consequência, adolescentes podem acabar se isolando, por sentir culpa e vergonha. Este tipo de informação é
importante para orientar intervenções preventivas e promotoras da saúde no ambiente escolar.
Os/as estudantes associaram autolesão à depressão, seja usando os termos sinônimos ou estabelecendo
uma relação causal. Encontram-se semelhanças nessas falas com o discurso médico/psiquiátrico vigente,
que associa a autolesão a várias dificuldades em saúde mental, sendo o diagnóstico mais frequente em
pessoas com autolesão a depressão21. Este discurso contemporâneo delineia o conceito de autolesão, suas
causas e consequências, e os/as estudantes o elegem como forma de entender este fenômeno. Ao aceitar
incontestavelmente esse paradigma que sugere a patologização, corre-se o risco da complexidade inerente à
adolescência27 ser reduzida a sintomas e a individualidade da experiência emocional ser ignorada.
Defendeu-se também nas falas que, ao se machucar de propósito, vive-se problemas familiares ou bullying.
Conflitos dessa ordem são relatados pelos/as adolescentes, que se autolesionam, de um estudo, com destaque
a ausência paterna, o distanciamento materno, os conflitos emergidos com o divórcio dos pais e/ou a violência
física, sexual e psicológica realizada por familiares28.
O sofrimento frente ao bullying ocorre por uma marca da pessoa que não se encaixa no que é considerado
padrão, seja o tipo físico, raça, estilo musical, ou até mesmo a prática autolesiva28. Pressupõe-se conflitos
interpessoais enfrentados na adolescência, tanto de ordem subjetiva quando o/a adolescente que se vê num
distanciamento das figuras parentais27, e mais próximo/a dos pares de forma mais ou menos conflitiva; ou
social, quando descrevem as situações de violência e vulnerabilidade.
Os/as adolescentes expressaram demanda de um diálogo responsivo e cuidadoso, afirmando que a escola
necessita de apoio para discutir o tema da autolesão, pois adolescentes que se autolesionam não se manifestam.
Ao propor o diálogo aberto e responsável com os alunos, considerando não só os aspectos cognitivos,
mas, sobretudo, as questões emocionais envolvidas e as influências sociais, a escola pode ter desfechos que
influenciem diretamente na saúde do/a adolescente e em sua aprendizagem29.
As escolas públicas enfrentam em seu cotidiano distância entre suas propostas previstas nas legislações
e a realidade de sua prática. Em si, uma complexa rede em que imbrica condições sociais, perspectivas
individuais e de grupo, atravessada pelos interesses do Estado, dos gestores, bairros, e outros30. Imersa
nesses enfrentamentos estruturais da educação brasileira30, a equipe escolar carece de apoio para lidar com
a demanda da autolesão e outras que acometem os/as seus estudantes. Profissionais de saúde mental e
de atenção psicossocial devem ser pensados como esse apoio, compondo a equipe escolar nas frentes da
prevenção de agravos e promoção da saúde.
CONCLUSÃO
A conduta autolesiva se insere no contexto escolar em uma parcela expressiva de estudantes, que indicam
como razão da prática, o alívio de afetos negativos e como fatores que a cercam: conflitos familiares, depressão
e bullying. Essas narrativas mantêm semelhanças com o discurso instaurado e disseminado socialmente
nas mídias sociais, que delineia o que é autolesão, suas motivações e consequências. Os/as adolescentes se
identificam com esse discurso e o incorporam como forma de expressar e significar o que sentem.
O modo como dialogam entre si sobre a autolesão denuncia os estigmas implícitos destes estudantes.
Mesmo que não seja a intenção, as conversas assumem tom de ameaça e culpabilização de quem pratica.
Entender como os diálogos tem se construído sinaliza como pensar estratégias de promoção da saúde
e prevenção de agravos que alcance a escola, de modo a desestigmatizar a autolesão como um ato
meramente para chamar atenção, ou simplesmente para o alívio de tensão. Necessita-se investigar a raiz deste
comportamento, construindo espaços de diálogos entre estudantes e equipe escolar.
Compreendendo a escola como uma instituição que promove saúde, defende-se que esta seja amparada por
profissionais da saúde mental e de atenção psicossocial, visto que as escolas públicas no Brasil se veem imersas
em desafios estruturais que as deixam sobrecarregadas para cumprir, sobretudo, o seu papel na produção de
conhecimento, mas também de desenvolvimento do sujeito.
Como limitação, aponta-se a coleta ser realizada, por conveniência, apenas com estudantes do turno
matutino. Resultados com estudantes dos períodos vespertino e noturno podem ser diferentes. Além disto,
o uso do termo “autolesão” no questionário de autorrelato pode ter influenciado na compreensão das
perguntas. Sugere-se que estudos brasileiros adotem o termo “automutilação”, que é mais comum entre os
estudantes. Entretanto, é importante esclarecer que automutilação não se limita ao corte.
Apesar destas limitações, este estudo contribuiu para expandir o entendimento da autolesão na perspectiva
dos estudantes, não só para a escola, mas também para a comunidade científica. Sugere-se que pesquisas
futuras incluam professores e demais profissionais da escola para ampliar as percepções da comunidade escolar
sobre o fenômeno e contribuir com as estratégias de prevenção de agravos e promoção da saúde.
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