Jo o Batista Rodrigues JR
Jo o Batista Rodrigues JR
BELO HORIZONTE
2009
João Batista Rodrigues Júnior
BELO HORIZONTE
2009
Rodrigues Junior, João Batista.
R696a Avaliação critica das perícias de lesões corporais em crianças no
Instituto Médico Legal de Belo Horizonte – MG durante o período de um
ano e da contribuição na investigação do crime de maus-tratos
[manuscrito]. / João Batista Rodrigues Júnior. - - Belo Horizonte:
2009.
59f. il.
Orientador: Alexandre Rodrigues Ferreira.
Área de concentração: Saúde da Criança e do Adolescente.
Dissertação (mestrado): Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Medicina.
A toda minha família, meu porto seguro, especialmente Joana, minha amada esposa.
AGRADECIMENTOS
estimulado.
RESUMO
Lista de Figura
Figura 1- Fluxograma da Denúncia de Maus-tratos.................................................. 26
Lista de Quadro
Quadro 1- Manifestações clínicas da violência contra a criança............................... 24
Lista de Tabelas
Tabela 1- Distribuição das idades das crianças submetidas a exame pericial ........... 38
Tabela 2- Distribuição das perícias em relação ao dia da semana de realização do
exame....................................................................................................... 39
Tabela 3- Demora (em dias) do suposto trauma à perícia......................................... 39
Tabela 4- Distribuição das perícias em relação ao horário de realização.................. 40
Tabela 5- Acompanhante da perícia informado no histórico do laudo ..................... 40
Tabela 6- Suposto agressor informado no histórico do laudo................................... 41
Tabela 7- Segmentos onde foram encontrados vestígios de lesões em 173 perícias . 42
Tabela 8- Respostas ao primeiro quesito – Perícia de LC......................................... 42
Tabela 9- Respostas ao segundo quesito – Perícia de LC ......................................... 43
Tabela 10- Respostas ao terceiro quesito – Perícia de LC ........................................ 44
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 10
2 OBJETIVOS........................................................................................................ 12
4 MATERIAL E MÉTODOS................................................................................ 27
4.1. Delineamento do estudo ........................................................................... 27
4.2. Estrutura da Medicina Legal de Belo Horizonte.................................... 28
4.3. A perícia de “Lesões Corporais” e as respostas aos quesitos oficiais.... 29
4.4. Seleção de casos ........................................................................................ 33
4.5. Refinamento do banco de dados.............................................................. 37
5 RESULTADOS.................................................................................................... 38
6 DISCUSSÃO........................................................................................................ 46
7 CONCLUSÕES ................................................................................................... 54
8 COMENTÁRIOS FINAIS.................................................................................. 55
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 56
ANEXOS
1 INTRODUÇÃO
verifica dificuldades até nesse âmbito, por limitações técnicas, pessoais ou doutrinárias.
Descortinar a estrutura de abordagem dos casos suspeitos de abuso físico em nosso meio pode
auxiliar a revisão de conceitos, a avaliação do cumprimento da expectativa social e a
proposição de novos modelos de atendimento, caso sejam necessários.
12
2 OBJETIVOS
3 REVISÃO DA LITERATURA
exercidos contra as crianças”, sendo atribuído a este autor o primeiro uso do termo “criança
espancada”5,7.
As primeiras sociedades protetoras da infância surgiram em Paris em 1865, e,
posteriormente, em Lyon, e tinham como objetivo garantir a inspeção médica das crianças
colocadas pelos pais aos cuidados de nutrizes, além de aperfeiçoar os métodos de educação,
de higiene e a proteção das crianças de classes pobres8.
A preocupação com a violência contra a criança nas Américas começou em 1874, com
o caso de Mary Ellen Wilson, abandonada pela mãe. Com a morte do pai na Guerra Civil,
ficou sob os cuidados da madrasta e do marido, que a maltratavam fisicamente e a
negligenciavam, acorrentando-a à própria cama, tendo sido encontrada por religiosos e
assistentes sociais da época em grave estado de desnutrição. Como não existia nenhuma
entidade que defendesse os direitos das crianças, Mary Ellen foi protegida pela Sociedade
Norte Americana para Prevenir a Crueldade contra os Animais, com base no pressuposto que,
como criança, fazia parte do reino animal7,8.
Um marco importante no século passado aconteceu quando, em 1946, Caffey,
radiologista infantil americano renomado, publicou os achados de fraturas múltiplas de ossos
longos, associadas a hematoma subdural, em seis lactentes cujos pais não conseguiam
explicar de forma razoável a gênese das lesões. Em 1953 Silverman realizou um estudo
retrospectivo de crianças com quadro clínico semelhante ao descrito por Caffey e concluiu
que as lesões eram causadas por traumatismos provocados, sendo ratificado por Woolley e
Evans em 1955. Já em 1957, com uma casuística maior, o próprio Caffey pôde afirmar que as
lesões eram resultado inequívoco de maus-tratos a crianças por parte de adultos. Em 1962,
Kempe, Silverman, Steel et al. consolidaram o quadro clínico que foi designado Síndrome da
Criança Maltratada ou Síndrome de Caffey5,7,8.
Existem divergências se o primeiro caso de descrição brasileira de espancamento
infantil é atribuído a um dos professores da Faculdade de Ciências Médicas de São Paulo, em
1973 ou ao Prof. Canger Rodrigues, em 1974. Certo é que, dessa época em diante, as
descrições desse tipo de evento se multiplicaram cada vez mais na nossa literatura5,7.
15
3.2 Legislação
Art 2º - Considera-se criança, para efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Art 13º - Os casos de suspeita e confirmação de maus-tratos contra criança e
adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
Art 56º - Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao
Conselho Tutelar os casos de:
I – maus-tratos envolvendo seus alunos.
Art 70º - É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos
da criança e do adolescente.
Art 86º - A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á
através de um conjunto articulado de ações gorvenamentais e não-governamentais,
da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Art 87º - São linhas de ação da política de atendimento:
[...]
III – serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às
vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão.
Art 98º - As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre
que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
[...]
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável.
Art 129º - São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:
I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento de alcoólatras e toxicômanos;
III – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
16
vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo
supri-lo a confissão do acusado”.
A expressão “corpo de delito”, no entanto, não se refere exclusivamente ao “corpo
humano”. Prova disto é que, no mesmo Código, em diversos outros momentos, a expressão é
usada para determinar objetos, como no artigo 243, parágrafo 2º, quando é citado1 “Não será
permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando
constituir elemento do corpo de delito”.
Na realidade, “corpo de delito” se refere à “materialidade do delito”, podendo
constituir-se da arma utilizada, da porta arrombada, do local incendiado, da janela utilizada
para fuga, etc. Toda vez que o “corpo de delito” coincidir com o “corpo humano”, entra em
cena o médico-legista. É esse especialista que detém o treinamento para detectar e fornecer
elementos técnicos para a classificação das “lesões” ou alterações no corpo humano de
interesse para a justiça.
O médico-legista, ao avaliar um paciente lesionado, segue critérios para tentar
determinar quando aquela lesão ocorreu, a compatibilidade do histórico e da lesão encontrada
e principalmente qual o instrumento ou meio que a provocou. Doutrinariamente chega-se a
afirmar que o histórico “deve ser sucinto e não envolver as circunstâncias do fato”30.
“Instrumento ou meio”, na doutrina médico-legal mineira, diverge de “objeto”. O objeto atua
lesando a vítima através do instrumento ou meio. Assim, um martelo atinge a vítima, sendo o
objeto “martelo”, mas a maneira pela qual transfere energia para a vítima é através do
“instrumento contundente”. Cabe aos médicos-legistas, na imensa maioria dos casos,
determinar qual o “instrumento”, mas doutrinariamente se esquivam de fazer referência ao
objeto, pois essa extrapolação aumentaria as chances de erro.
Após examinar o corpo ou partes deste, o legista descreve o exame no laudo pericial e
responde aos quesitos específicos da perícia solicitada.
Quesitos são perguntas feitas aos peritos, variando segundo o tipo de perícia ou
situação a ser apurada. Podem ser “oficiais”, ou seja, definidos de forma padronizada, ou
específicos de cada questão investigada. O decreto lei que trata dos quesitos oficiais do Estado
de Minas Gerais é o 5.141, de 25 de outubro de 195612.
Os quesitos oficiais são, por força de lei, vinculados aos artigos do Código Penal
Brasileiro, ou seja, aos tipos penais. Porém não é o perito médico-legista o profissional que
tipifica crimes. Não cabe a esse profissional, portanto, dizer se tal fato foi “estupro”,
“homicídio”, “maus-tratos”, etc, já que essas classificações são delitos previstos no Código
Penal Brasileiro respectivamente nos capítulos 121, 213 e 136. Tecnicamente esses “tipos
18
Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância,
para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de
alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou
inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena - detenção, de
dois meses a um ano, ou multa.
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de um a
quatro anos.
§ 2º Se resulta a morte: Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
§ 3º Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de
14 (catorze) anos.
Fica claro, de imediato, que nenhuma das situações descritas é passível de perícia pelo
médico legista, não sendo esse profissional que estabelecerá quem é o suspeito, qual a sua
relação com a vítima e seu modo de tratamento e qual era a sua intenção nesse tratamento. Ao
legista compete a apuração dos elementos para classificação legal da lesão, caso encontrada, a
determinação da causa da morte se ocorre e, eventualmente, a estimativa da idade, caso não
possua documentação comprobatória.
O crime de Lesão Corporal é definido no artigo 129 do Código Penal Brasileiro1:
19
Na análise do texto legal do crime de LC nota-se que esse crime já engloba violência
de pais contra filhos no parágrafo 9º, “se a violência for praticada contra ascendente,
descendente...”. Outro dado importante é que os qualificadores do crime de LC (parágrafos 1º
e 2º do artigo 129) são os que, via de regra, são investigados pelos peritos médicos-legistas
durante a perícia afeita a esse tipo penal. Considera-se que a lesão corporal é chamada de
“grave” quando preenche qualquer um dos critérios elencados no parágrafo 1º do artigo 129 e
20
A despeito da antiguidade dos fatos e dos relatos, somente nas últimas três décadas é
que se iniciou, de fato, a construção de conhecimento para diagnóstico da criança maltratada
em nosso meio, e mesmo com a abundante literatura orientando o diagnóstico dessa
situação2,3,5,6,13,14,15,16,17,18,19,20,21,22, sabe-se que esse diagnóstico é, na prática, dificultado por
múltiplas questões15, 23, 24, 25.
Um dos fatores relatados por profissionais de saúde como dificultadores do processo
de condução dos casos suspeitos de maus-tratos é o desconhecimento pelo profissional de
como suspeitar e qual a atitude a se tomar14,15. Mesmo com os dispositivos legais criados,
com penalidades previstas e responsabilidade objetiva, acredita-se que pouco se faz nesse
sentido. Além do desconhecimento de como suspeitar, diagnosticar e proceder à notificação
dos casos de maus-tratos, os profissionais de saúde ignoram, em sua maioria, o que é feito
posteriormente para apuração e acompanhamento dos casos, e que tipo de benefício essa
condução pode gerar.
A suspeita de maus-tratos pode surgir a partir de qualquer cidadão da sociedade.
Familiares, vizinhos, professores e profissionais de saúde são comumente os primeiros
indivíduos a levantarem essa suspeita.
Na avaliação de uma situação de suposta violência, múltiplos fatores podem ser
considerados como indicadores, como comportamento da criança, relato dos envolvidos,
histórico anterior, etc.
Em termos estatísticos, são os genitores os que mais são chamados a prestar contas à
Justiça, na condição de acusados da prática de maus-tratos26. Alguns autores referem que a
mãe seria o principal agressor27.
A avaliação física da criança supostamente agredida é fundamental durante a
investigação de maus-tratos, especialmente do tipo abuso físico. O encontro de alterações ao
exame físico pode auxiliar muito na interpretação do evento e tanto o Conselho Tutelar, a
Polícia ou o Ministério Público fomentam grande expectativa sobre o resultado da perícia
realizada na vítima.
As alterações ao exame físico que podem ser encontradas na avaliação da criança
vítima de maus-tratos são múltiplas, com grande variabilidade de acordo com a literatura
estudada2,3,5,14,16,22. As alterações cutâneas representam a forma mais reconhecível e comum
de abuso22 e o segmento cefálico é o mais comumente agredido5. Uma classificação útil é
23
topográfica ou sistêmica, citada pelo Ministério Público de Santa Catarina. Essa classificação
divide os achados de violência em topografias ou sistemas, conforme a tabela abaixo:
24
QUADRO 1
Manifestações clínicas da violência contra a criança16
Topografia Achados
Pele, mucosas - Contusões e abrasões, principalmente na face, lábios, nádegas, braços e
e tegumento dorso;
- Lesões que reproduzam a forma do objeto agressor (fivelas, cintos, dedos,
mordedura);
- Equimoses e hematomas no tronco, dorso e nádegas, indicando datas
diferentes de agressão;
- Alopécia resultante de arrancamento brutal e repetido dos cabelos;
- Queimaduras no dorso e genitais, com marcas de objetos (cigarro, por
exemplo);
- Lesões endobucais ocasionadas por laceração do freio da língua por tentativa
de introdução forçada de alimentos;
- Síndrome da orelha em lata (equimose unilateral, edema cerebral ipsolateral e
hemorragia retiniana);
- Fácies de boxeador, por traumatismo facial;
Músculo- - Fraturas múltiplas – ossos longos em diferentes estágios de consolidação,
esquelético secundárias à torção com sacudidelas violentas, com rápida aceleração-
desacerelação;
- Fraturas de costelas em menores de dois anos;
- Fraturas de crânio ou traumatismo craniano por choque direto ou sacudidas
vigorosas (síndrome do bebê sacudido), concomitantes com edema cerebral,
hematoma subdural e hemorragia retiniana, podendo também manisfestar-se
por convulsões, vômitos, cianose, apnéia e alterações de déficit motor;
- Hematoma subperiosteal de diferentes estágios (síndrome da criança
espancada);
Visceral - Ruptura subcapsular do rim e baço, trauma hepático ou mesentérico que
necessite intervenção cirúrgica de urgência;
Genito- - Lesões na área genital e períneo: observar presença de dor, sangramento,
urinário infecções, corrimento, hematomas, cicatrizes, irritações, erosões, assaduras,
fissuras anais, hemorróidas, pregas anais rotas ou relaxamento do esfíncter
anal, diminuição do tecido ou ausência himenal, enurese, encoprese,
infecções urinárias de repetição sem etiologia definida;
Psicológico - Aversão ao contato físico, apatia ou avidez afetiva;
- Retardo psicomotor sem etiologia definida, com melhora quando a criança se
separa da família (hospitalização);
- Transtorno do sono ou da alimentação;
- Episódios de medo e pânico; isolamento e depressão;
- Conduta agressiva e irritabilidade;
- Interesse precoce em brincadeiras sexuais ou conduta sedutora;
- Choro fácil sem motivo aparente;
- Comportamento regressivo, autodestrutivo ou submisso;
- Desenho ou brincadeiras que sugerem violência;
- Baixo nível de desempenho escolar;
- Fugas, mentiras, furto;
- Tentativa de suicídio;
- Fadiga, baixa-estima;
- Aversão a qualquer atividade de conotação sexual.
Outros - Retardo pondero-estatural por aporte calórico inadequado;
- Intoxicação por medicamentos especialmente anti-histamínicos e sedativos;
- Síndrome de Munchausen por procuração (doenças simuladas ou provocadas
falsamente pelos pais ou responsáveis).
25
4 MATERIAL E MÉTODOS
Esse trabalho avalia os laudos das perícias do tipo LC, realizadas no IML-BH no
período de um ano (de 01 de julho de 2006 a 30 de junho de 2007), cujos periciados foram
indivíduos com até 12 anos incompletos, apurando-se a idade, o sexo, o acompanhante da
criança ao exame, o suposto agressor informado, a localização das lesões, o dia da semana e a
hora de aporte ao serviço, a resposta aos quesitos oficiais e a classificação legal das lesões
segundo o Código Penal Brasileiro.
O IML-BH teve seu atendimento descentralizado em agosto de 2007, motivo pelo qual
o período selecionado findou antes desse mês. Como o escopo deste trabalho é a avaliação do
abuso físico, outras formas de maus-tratos como abuso sexual, negligência e abuso
psicológico foram excluídos do estudo.
28
tendo sido designados ainda naquele mês. Em consequência desse aporte de profissionais, as
perícias médico-legais da grande Belo Horizonte foram devidamente descentralizadas, e
postos médico-legais que funcionavam precariamente, como os de Betim, Contagem, Ribeirão
das Neves, etc., gradativamente foram assumindo seus papéis na realização das perícias
daquelas localidades. Como o objetivo deste estudo era a avaliação de perícias ao longo do
intervalo fechado de um ano, verificou-se que um bom período para seleção dos casos jazia
entre o mês de julho de 2006, quando os modelos de perícia já estavam em pleno uso, e o mês
de junho de 2007, antes da descentralização que modificou o perfil de atendimento das
perícias da região metropolitana de Belo Horizonte.
Com a anuência do Diretor do IML-BH, o projeto foi inicialmente encaminhado para a
Câmara do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
Minas Gerais, tendo sido aprovado para envio ao Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) em 29
de agosto de 2008, conforme parecer número 49 de 2008. Sob a rubrica do Diretor da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, o projeto foi enviado ao
COEP da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo sido aprovado no dia 1 de outubro de
2008, conforme parecer ETIC 428/08. Após essa data, iniciou-se o processo de recuperação
dos casos.
A primeira etapa consistiu na busca de todos os arquivos de perícias do banco de
dados do período de 01/07/06 a 30/06/2007 nos quais houvesse registro de resposta a quesito
da perícia de LC. Para isso usou-se a máscara de busca “houve ofensa à integridade física”, já
que essa é parte do primeiro quesito desse tipo pericial. Após descarte de todos os laudos cuja
idade dos periciados não estava presente ou superava 12 anos, restaram 648 casos. Criou-se
uma sequência de comandos em Word® denominada “macro”, que abriu cada um dos
arquivos convertendo-o em arquivo de formato simples de texto (extensão txt). Através de
comandos em DOS, todos os arquivos de texto resultantes foram copiados para dentro de um
único arquivo. O arquivo resultante foi novamente aberto no programa Word® e, através do
comando “substituir”, todas as marcas de parágrafo foram retiradas, todos os textos iniciais
dos laudos foram substituídos por marca de parágrafo, o que alocou cada caso em uma linha
ou parágrafo. Através da substituição de todas as marcas comuns de texto, como “número do
laudo”, “data do exame”, “destino do laudo”, “nome do paciente”, “idade”, “hora do exame”,
“histórico”, “exame físico”, “resposta ao primeiro quesito”, “resposta ao segundo quesito”,
“resposta ao terceiro quesito”, “resposta ao quarto quesito”, “resposta ao quinto quesito” e
“resposta ao sexto quesito” pelo caractere “arroba”, foram criadas as delimitações das
variáveis respectivas. O arquivo resultante, gravado em forma de texto simples, continha uma
35
perícia em cada linha, com variáveis separadas pelo caractere arroba. Com o programa
Excel®, procedeu-se à importação desse arquivo, tendo sido selecionado como marco divisor
o caractere arroba. Ao final desse processo, tinha-se um banco de dados em Excel, com 648
casos, com as seguintes variáveis: “número do laudo”, “data do exame”, “hora do exame”,
“autoridade requisitante”,“nome”, “idade em anos”, “cidade de residência”, “histórico ou
relato”, “exame físico”, “resposta ao primeiro quesito”, “resposta ao segundo quesito”,
“resposta ao terceiro quesito”, “resposta ao quarto quesito”, “resposta ao quinto e sexto
quesitos”. A partir, daí passou-se à criação das variáveis:
• “Gênero”, que teve seu preenchimento determinado pela análise individual dos
casos, sendo considerado o nome, o texto do histórico e dados de exame físico.
Após a criação da variável gênero e conferido o banco para excluir
duplicações, a variável nome foi excluída;
• “Dia da Semana”, gerada através da variável “data do exame”, com uso da
ferramenta do Excel® para esse fim, chamada “D_sem”;
• “Data da agressão”, criada e alimentada através da análise individual do
histórico de cada caso, sendo deixados em branco aqueles casos em que não
existia essa informação. Quando havia referência apenas ao mês do trauma, a
data considerada era o primeiro dia desse mês;
• “Tempo entre agressão e exame”, criada e calculada automaticamente pelo
Excel® a partir da subtração da variável “data da agressão” da variável “data do
exame”, com resultado em dias;
• “Acompanhante durante o exame”, criada e preenchida através das
informações do histórico de cada caso analisado individualmente. Essa variável
foi deixada em branco nos casos em que nada era informado a esse respeito no
histórico;
• “Suposto agressor informado”, criada e preenchida através das informações do
histórico de cada caso analisado individualmente. Foram deixados em branco
os casos em que essa informação não estava contida no histórico;
• “Topografia das lesões encontradas”, na qual era registrada em quais
topografias corporais (segmento cefálico, tronco, membros superiores,
membros inferiores e genitália) haviam sido descritas evidências de lesões;
36
Com as variáveis criadas, exportou-se o arquivo para formato dbf, quando foi aberto
no programa Epi Info para análise.
37
5 RESULTADOS
TABELA 1
Distribuição das idades das crianças submetidas a exame pericial.
A distribuição das perícias pelo dia da semana no qual o exame foi realizado,
calculado a partir da data do exame, teve a distribuição conforme a tabela 2.
TABELA 2
Distribuição das perícias em relação ao dia da semana de realização do exame.
A informação de quando teria ocorrido a agressão foi citada em 67,4% das perícias
(n=143), e a demora calculada distribuía-se conforme a tabela 3. Quando se considerava
exclusivamente os 173 casos nos quais evidências de lesões foram encontradas, a informação
da época da agressão esteve presente em 70,5% dos casos (n=122), com 78,7% destes com
perícia realizada até 3 dias após o momento relatado do trauma.
TABELA 3
Demora (em dias) do suposto trauma à perícia.
TABELA 4
Distribuição das perícias em relação ao horário de realização.
TABELA 5
Acompanhante da perícia informado no histórico do laudo.
TABELA 6
Suposto agressor informado no histórico do laudo.
Dos 173 casos nos quais foram encontradas evidências de ocorrência de lesionamento
corporal, essas lesões apresentaram distribuição corporal conforme demonstrado na tabela 7.
Nesse grupo, 51,4% dos casos (89) apresentava evidências em apenas um segmento do corpo.
Nos 84 casos restantes foram encontradas evidências de lesões em mais de um segmento
corporal de maneira simultânea.
TABELA 7
Segmentos onde foram encontrados vestígios de lesão em 173 perícias.
TABELA 8
Respostas ao primeiro quesito – Perícia de LC.
Resposta ao primeiro
Número de casos Percentual
quesito
TABELA 9
Respostas ao segundo quesito – Perícia de LC.
Resposta ao segundo
Número de casos Percentual
quesito
TABELA 10
Respostas ao terceiro quesito - Perícia de LC.
Resposta ao Terceiro
Número de casos Percentual
quesito
Dos casos com resposta afirmativa ao primeiro quesito (173), somente um caso (0,6%)
teve resposta afirmativa ao quarto quesito do crime de lesão corporal (Da ofensa resultou
perigo de vida?) e refere-se a um caso de um bebê que foi deixado aos cuidados do pai, tendo
sido encontrado em crise convulsiva. Durante a perícia desse caso, foi apresentada aos peritos
tomografia de crânio onde foi encontrada imagem compatível com coleção hemorrágica intra-
craniana, citada no histórico do laudo. No exame físico é descrita uma tumefação em couro
cabeludo em região parietal, sem outros achados. Todas as demais perícias tiveram resposta
negativa ao quarto quesito. Nenhum dos casos com resposta afirmativa ao primeiro quesito
teve resposta afirmativa ao quinto quesito (Da ofensa resultou incapacidade para as ocupações
habituais por mais de trinta dias?). Em nove casos foi sugerida a realização de exame
complementar. Da mesma forma, nenhum dos 173 casos com evidências de lesão teve
resposta afirmativa ao sexto quesito (Da ofensa resultou debilidade permanente de membro,
sentido ou função; incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável;
perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade permanente?) e em 10
casos foi sugerida a realização de exame complementar. Os nove casos nos quais foi sugerido
exame complementar na resposta ao quinto quesito tiveram também a mesma solicitação na
45
resposta ao sexto quesito. Desses, apenas em dois casos consta retorno ao IML-BH para
exame complementar em varredura feita até 18 meses da data do primeiro exame. Um dos
casos retornou 36 dias após o primeiro exame e o outro 47 dias após, e em ambos a resposta
foi negativa para os dois quesitos do exame complementar, equivalentes ao quinto e sexto
quesitos do exame de LC. O único caso em que foi solicitado exame complementar
exclusivamente para avaliação do sexto quesito, tendo o quinto quesito sido respondido de
maneira negativa já no primeiro exame, tratava-se de uma lesão dentária. O paciente desse
caso retornou para exame complementar 6 meses após o primeiro exame, e teve a resposta aos
dois quesitos também negativa.
46
6 DISCUSSÃO
segundo a idade ocorreu de maneira heterogênea. A idade com maior grupo de perícias foi a
de 11 anos, com 11,8% dos casos, porém o segundo lugar em incidência restou aos indivíduos
de apenas 4 anos, com 10,8% dos casos. Considerando que culturalmente “educação” e
“disciplina” são justificativas usadas para emprego de força física, o encontro de 13,6% das
perícias em indivíduos com até 1 ano de idade coloca em dúvida essa assertiva. Ressaltando-
se o fato de que as crianças muito novas, especialmente abaixo dos 3 anos de idade, têm
limitações naturais na expressão verbal, o que poderia favorecer a ocultação dos casos de
agressão a essas vítimas, essa incidência significativa fica ainda mais preocupante. Por lógica,
seria de se esperar que as crianças de maior idade compusessem claramente o maior grupo, ao
possuir “autonomia” para denunciar a agressão sofrida, especialmente aquelas com idade
escolar, quando teriam aumentadas as chances de convívio social e detecção do problema pela
sociedade. Imagina-se, porém, que os profissionais responsáveis por denunciar práticas de
violência contra a criança, como médicos, professores e responsáveis por estabelecimentos de
saúde, sejam especialmente omissos nos casos de crianças com maior idade, por crenças
individuais, questões culturais, etc. A repulsa despertada diante da evidência de violência em
um lactente indefeso é mais difícil de ser contida.
A complexidade do tema “violência doméstica contra a criança” é realçada durante a
análise de qualquer ponto de expressão do fenômeno. Um desses pontos é, a título de
exemplo, o aporte da vítima de agressão ao IML-BH para realização de perícia de LC, em
relação ao dia da semana. Mesmo considerando que o final de semana prolongaria o contato
dos agressores mais frequentes, que são os pais, com sua vítimas, e que as perícias desse tipo
seriam mais comuns nesses dias, os resultados ora obtidos contrariam esse raciocínio.
Avaliando-se o dia de realização das perícias é visto, paradoxalmente, um maior aporte dos
casos ao IML-BH nos primeiros dias úteis da semana, com 50% dos casos atendidos nas
segundas e terças-feiras. O IML-BH funciona de maneira ininterrupta 24 horas por dia, todos
os dias da semana, porém considera-se que o fator cultural, levando a população a acreditar
que esse serviço público não possui atendimento adequado nos finais de semana, pode
explicar esse maior aporte nos primeiros dias úteis, com a demanda reprimida dos finais de
semana. Muitas delegacias localizadas em bairros não funcionam em finais de semana, o que
dificultaria o acesso a recurso nesses dias. Outra consideração é que, nos finais de semana,
provavelmente os dois pais estariam juntos da criança, o que inibiria a tomada de providências
legais de um deles contra o outro. Por fim, marcas deixadas pela violência podem ser
detectadas no momento em que a criança comparece ao convívio social, como a escola, o que
pode aumentar a suspeita de crime e a adoção de medidas legais protetoras nos dias úteis. Se
48
observarmos que a maior parte dos atendimentos ocorreu até 3 dias após a suposta violência,
sendo os atendimentos centrados nos primeiros dias úteis, pode-se considerar que grande parte
dos traumas ocorreu nos finais de semana, o que facilita o entendimento do evento.
Quando da anamnese prévia ao exame, apesar das afirmações conservadoras de que o
histórico deva ser sucinto30, é salutar que o perito pergunte a respeito de “quando ocorreu a
lesão”, “em que topografia corporal”, “qual o mecanismo causador de lesão” e se foi dado
“algum tipo de tratamento”. Do ponto de vista médico-legal, essas informações podem, em
combinação com o exame físico, auxiliar na avaliação de compatibilidade cronológica entre a
época da lesão e seu estado evolutivo, no rastreio de pequenas lesões na superfície corporal
em locais de pouca exposição, como regiões retro-auriculares, interdigitais, sulco interglúteo,
planta dos pés, períneo, etc., na avaliação de compatibilidade entre o mecanismo relatado e a
lesão encontrada e no encontro de eventuais interferências que tratamentos podem apor às
lesões, respectivamente. Em se tratando do crime de maus-tratos, no entanto, é de especial
interesse “quem é o suposto agressor”. É doutrinário na Medicina Legal que o perito não deve
se deixar influenciar pelo histórico, pois suas conclusões são sempre fundamentadas nos
achados periciais, mas o histórico bem colhido, além de auxiliar no exame físico, pode fazer
do perito, no mínimo, uma “testemunha” de que aquelas informações foram prestadas,
anotando sempre quem as informou. Como a coleta de informações no histórico durante a
perícia de LC não estava padronizada na época das perícias aqui estudadas, esses históricos
encontravam-se heterogêneos, variando de pormenorizados a completamente superficiais. A
informação da época ou dia em que teria ocorrido a lesão, por exemplo, constava em apenas
67,4% dos casos estudados, somente sendo possível estudar a chamada “demora” (relação
entre a data da agressão e a data do exame) nesses indivíduos. Dos casos que possuíam essa
informação, 74,8% das perícias foram realizadas até 3 dias depois do dia relatado como da
agressão. Na análise do subgrupo no qual foram detectadas evidências de lesões, a informação
da época da agressão permanece baixa. Esse fato sugere que a citação no laudo da suposta
época da agressão não é uma preocupação universal dos médicos, a despeito da possibilidade
de detecção de incoerências entre a época relatada do trauma e a fase evolutiva temporal das
lesões surpreendidas. Outro dado de interesse é que o tempo encontrado de demora até a
perícia é relativamente curto, se contextualizado às dificuldades econômico-culturais de nossa
população para acesso a recursos.
O formulário anexo à portaria 196832 contém várias informações de interesse para
auxílio no esclarecimento das questões envolvidas na violência contra a criança.
Curiosamente, essa portaria somente se aplica aos serviços de atendimento pelo Sistema
49
Único de Saúde (SUS). Caso esse formulário devidamente preenchido fosse realmente
disponibilizado para as autoridades envolvidas na questão, certamente agregaria informações
à investigação. A carência de dados adequados quando da perícia médico-legal é um fator que
prejudica sobremaneira os resultados da investigação e o não envio dessas informações
através de relatórios de atendimento médico é mais um fator que prejudica os resultados.
A distribuição de horários de realização das perícias favoreceu o período da tarde e o
início da noite, que juntos englobavam 76,9% dos casos. O fato de se tratarem de crianças, a
disponibilidade do acompanhante e fatores já citados com relação à distribuição semanal,
como a inibição pelo suposto agressor nos horários da madrugada, por exemplo, podem
explicar essa distribuição. Aceitando-se que as providências se iniciaram na manhã, como a
ida à Delegacia ou ao Conselho Tutelar, também é natural que as perícias sejam feitas à tarde
ou início da noite.
Somente constava a informação de quem acompanhava o exame da criança no IML-
BH em 74,1% dos casos, demonstrando que não existia rotina para anotação do acompanhante
à época dessas perícias. Dentre as perícias que continham a informação de quem havia sido o
acompanhante, a mãe foi a mais comumente citada. Esse dado pode refletir o papel da mãe
como cuidadora principal dos filhos, devido à estrutura social. O pai esteve presente em 23
casos, sendo superado até mesmo pelo acompanhamento do Conselho Tutelar, que
acompanhou 26 casos.
A anotação pelo perito do suposto agressor poderia auxiliar a Autoridade condutora da
investigação no discernimento de qual caminho a seguir, incluindo em qual artigo criminal
enquadrar o fato. Infelizmente, essa informação também não é colhida de forma padronizada,
talvez pela concepção de que essa não seria a função do perito legista. Como um dos filtros da
pesquisa foi a presença da informação sobre o suposto agressor e essa informação não estava
devidamente caracterizada em mais da metade dos casos, houve uma grande perda de dados
(vide refinamento do banco de dados). Nos 212 casos em que foi possível recuperar a
informação do suposto agressor e este preenchia critérios para o enquadramento no crime de
maus tratos, o genitor foi o sujeito mais acusado da autoria, sendo encontrado em 44,3% dos
casos (94). A genitora ocupou a segunda posição em relação à acusação de autoria,
perfazendo 27,4% dos casos (58). O padrasto ou companheiro da mãe ocupou a terceira
posição nas suspeitas de autoria, em 14,2% dos casos (30), mas deve ser lembrado que o
trabalho não avaliava abuso do tipo sexual, culturalmente imputado a esses indivíduos. Dado
interessante foi o encontro de babás e professores como supostos agressores, já que também
poderiam ser enquadrados no crime de maus-tratos, dada a sua relação com a vítima. Apesar
50
da literatura sugerir que a mãe seja a agressora mais frequente, é bom lembrar que a mãe foi o
acompanhante mais encontrado na análise desta casuística e, como informante, acusou
especialmente o pai. Esses dados podem ajudar a compreender porque, por outro lado, a
figura paterna foi menos presente até mesmo que o Conselho Tutelar como acompanhante dos
periciados.
Dos 173 indivíduos com evidências de lesões, quase metade (48,6%) as apresentavam
em mais de um segmento do corpo, sugerindo mais de um movimento agressor. A
predominância do segmento cefálico como o mais comumente atingido confirma dados da
literatura e sugere que essas lesões, talvez pela maior dificuldade de ocultação, tenham
provocado maior investigação, incluindo perícia. A imensa maioria das lesões foi detectada
pela simples ectoscopia. Em apenas 3,5% dos casos o diagnóstico pode ter sido incrementado
com a palpação.
Como o conceito de saúde é vasto, tende o perito a centrar-se no conceito “integridade
física” na resposta ao primeiro quesito. À luz da verdade, o exame clínico que constitui a
perícia somente é capaz de perceber alterações funcionais grosseiras ou alterações
superficiais, especialmente no tecido de revestimento. É razoável entender que a presença de
alterações indicativas de lesão leve o perito à resposta “sim” ao primeiro quesito, o que
aconteceu em 81,6% dos casos. Na ausência dessas alterações, no entanto, a resposta esperada
a esse quesito, do ponto de vista técnico, seria unicamente “sem elementos para afirmar ou
negar”. Fato intrigante é o encontro de 1,9% dos casos (4) nos quais a resposta ao primeiro
quesito foi “não”. Uma interpretação possível desses dados é a de que os peritos tenham sido
influenciados pelo histórico e, quando neste não existe informação de agressão, aliado a
ausência de evidências externas de lesões, restaria a resposta “não”.
A “resposta prejudicada” a um quesito equivale à afirmativa de que aquele quesito
“não se aplica”, devido ao fato de depender de resposta positiva que não ocorreu em quesito
anterior. No único caso de resposta prejudicada ao segundo quesito em que ocorreu resposta
positiva ao primeiro, talvez o perito tenha querido informar que a “análise do instrumento ou
meio” foi prejudicada pelo estado cicatricial. Nesse caso, a resposta mais adequada teria sido
“sem elementos para afirmar ou negar” devido ao estado cicatricial. Esses dados sugerem uma
influência dos históricos nas respostas aos quesitos criminais, fato tecnicamente temerário.
O instrumento foi determinado em 96% dos casos nos quais foram encontradas
evidências de lesões. O instrumento “contundente” esteve presente em 91,9% dos casos. A
clara predominância das lesões de pele (96,5%) nos casos de violência contra a criança é
parcialmente explicada por sua facilitação da suspeita. Deve-se lembrar, no entanto, que até a
51
pigmentação da pele pode interferir nesse diagnóstico, podendo torná-lo mais difícil em
crianças melano ou feodermas.
A complexidade do texto do terceiro quesito oficial para o crime de lesões corporais já
denota a dificuldade de resposta adequada. Uma estratégia de resposta a esse quesito é a de
decompô-lo em seus itens, respondendo separadamente um a um. Assim, o perito pode
assinalar, por vezes, a presença de sinais do uso de veneno, fogo, explosivo ou asfixia durante
o exame, negar a presença desses ou revelar a sua impossibilidade de resposta, através do
jargão “sem elementos para afirmar ou negar”. Com relação à averiguação pericial de tortura,
novamente o conceito genérico se mistura ao conceito legal. Do ponto de vista de crime,
“tortura” tem lei própria, e nunca o perito poderia afirmá-la. Do ponto de vista de “sinais
físicos de tortura”, nem mesmo a literatura tem um consenso razoável a respeito, pois vendo
os sinais, dificilmente se caracterizaria a intenção. De toda forma, caberia uma associação
meticulosa do exame físico ao histórico e outros elementos da investigação, o que
doutrinariamente não cabe ao perito médico-legista. Ainda restaria a constatação de “outro
meio insidioso ou cruel”, que a Doutrina Médico-legal, especialmente a Mineira, entende
escapar à capacidade de avaliação do médico-legista, já que são termos imprecisos,
extrapolando o limiar técnico. Novamente, a resposta mais adequada a esse quesito,
especialmente aos itens de “tortura” ou “outro meio insidioso ou cruel” seria “sem elementos
para afirmar ou negar”, porém a resposta predominante foi “não”.
O conceito de “perigo de vida”, envolvido no quarto quesito, seria específico para
situação de real ameaça à vida, usualmente exigindo tratamento médico imediato. Assim, no
único caso que teve esse quesito respondido de maneira afirmativa (0,6%) dentre os
indivíduos com lesões detectadas ao exame físico, essa resposta fundamentou-se
exclusivamente na análise de um exame complementar de imagem. Habitualmente essa
informação seria insuficiente para a caracterização de “perigo de vida”, já que, mesmo com a
coleção hemorrágica intracraniana da forma que foi citada, a criança poderia não ter
necessitado de nenhum cuidado médico especial, tendo sofrido somente o risco à vida. Se o
fornecimento de relatórios médicos bem construídos para as vítimas de traumas fosse uma
prática cotidiana, o perito, diante dessa documentação, especialmente se evidenciasse
situações como hemorragias vultuosas, coma, necessidade de assistência ventilatória de
emergência, etc., teria maiores subsídios para caracterização do “perigo de vida”. Na prática
pericial, raras vezes essa documentação é citada.
Como a resposta pericial é, via de regra, diagnóstica e não prognóstica, e as perícias
são, em sua predominância, realizadas poucos dias após a agressão, é natural a ausência de
52
perícias nos casos de violência contra a criança na região metropolitana de Belo Horizonte em
nada contribui para o adequado atendimento desses casos, constituindo mais uma barreira
burocrática que dificulta o atendimento das vítimas.
Dentre as múltiplas limitações impostas a este estudo, destaca-se o fato de tratar-se de
uma avaliação retrospectiva de um tipo de exame realizado por diferentes indivíduos de forma
pouco padronizada, o que levou a uma grande perda de informações. A carência de
informação mais abrangente sobre o andamento dos casos, especialmente sobre de que forma
foi gerada a necessidade de exame e como o resultado desse exame foi utilizado na
investigação, também prejudicou a avaliação da eficácia da perícia. Mesmo a confusão
conceitual a respeito do que seria “maus-tratos” e qual a relação com o crime e a perícia de
LC, dificultou ainda mais o entendimento da questão e a compreensão dos resultados.
Considerando-se que o refinamento dos casos se baseou na presença de informações do
histórico, deve-se lembrar da possibilidade de ocorrência de vício dessa amostragem, já que
foram privilegiados os casos com informações sobre possíveis agressores, e essas podem ser
colhidas por apenas um grupo dos examinadores.
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7 CONCLUSÕES
8 COMENTÁRIOS FINAIS
REFERÊNCIAS
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questão cultural. Texto & Contexto – Enfermagem, Florianópolis, v. 15, n. 1, p. 151-
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58
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31- HERCULES, H.C. Medicina Legal Texto e Atlas. São Paulo: Atheneu, 2005. 714p.